campos da comunicação 20110829-actas_vol_4 campos da comunicação

734
ANTÓNIO FIDALGO e PAULO SERRA (ORG.) Ciências da Comunicação em Congresso na Covilhã Actas do III Sopcom, VI Lusocom e II Ibérico UNIVERSIDADE DA BEIRA INTERIOR Volume IV CAMPOS DA COMUNICAÇÃO

Upload: domingos-bezerra-lima-filho

Post on 27-Oct-2015

189 views

Category:

Documents


2 download

TRANSCRIPT

  • 3JORNALISMO

    ANTNIO FIDALGO e PAULO SERRA (ORG.)

    Cincias da Comunicao em Congresso na CovilhActas do III Sopcom, VI Lusocom e II Ibrico

    UNIVERSIDADE DA BEIRA INTERIOR

    Volume IV

    CAMPOS DA COMUNICAO

  • 4 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBRICO Volume IV

    Actas dos III SOPCOM, IV LUSOCOM e II IBRICO

    Design da Capa: Catarina Moura

    Edio e Execuo Grfica: Servios Grficos da Universidade da Beira Interior

    Tiragem: 200 exemplares

    Covilh, 2005

    Depsito Legal N 233236/05

    ISBN 972-8790-39-2

    Apoio:

    Programa Operacional Cincia, Tecnologia, Inovao do III Quadro Comunitrio de Apoio

    Instituto da Comunicao Social

  • 5JORNALISMO

    NDICE

    Apresentao, Antnio Fidalgo e Paulo Serra ................................................................. 9

    Captulo IJORNALISMO

    Apresentao, Jorge Pedro Sousa .................................................................................... 13Reportagens sobre a Cor da Pele em Jornais de Salvador e Aracaju/Brasil: criminalidade,loucura e macumba, Ana Cristina de Souza Mandarino .............................................. 15O Iraque nas televises europeias: representaes da segunda guerra do Golfo, AnabelaCarvalho .............................................................................................................................. 23Caractersticas de jornais e leitores interioranos no final do sculo XX, BeatrizDornelles ............................................................................................................................ 37Jornalismo na Web: Desenho e Contedo, Claudia Irene de Quadros e Itanel de BastosQuadros Junior ................................................................................................................... 47A cobertura de epidemias na imprensa portuguesa. O caso da Sida, Cristina Ponte ... 53O caso Jayson Blair / New York Times: da responsabilidade individual s culpas colectivas,Joaquim Fidalgo ................................................................................................................. 61Uma Teoria Multifactorial da Notcia, Jorge Pedro Sousa .......................................... 73Anlise quantitativa sobre os espaos noticiosos da Internet e as consequncias para osatores do processo informativo, Juara Brittes .............................................................. 81Internet como fuente de informacin especializada, Leopoldo Seijas Candelas ....... 89O que o jornalismo pode aprender com a cincia: Objetividade na perspectiva doracionalismo crtico de Karl Popper, Liriam Sponholz ................................................ 97A exploso dos weblogs em Portugal: percepes sobre os efeitos no jornalismo, LusAntnio Santos ................................................................................................................. 105A impiedade das crticas ou a conscincia da auto-regulao? O processo Casa Pia eo julgamento metajornalstico, Madalena Oliveira ....................................................... 115Ventos cruzados sobre o campo jornalstico. Percepes de profissionais sobre as mudanasem curso, Manuel Pinto ................................................................................................. 123A presenza da lingua galega na prensa diaria de Galiza. Mnima, de baixa cualidadee sen xustificacin, Marcos Sebastin Prez Pena, Berta Garca Orosa, Jos VillanuevaRey, Miguel Tez Lpez .............................................................................................. 133Los medios como protagonistas de la noticia, Marina Santn Durn ...................... 143Periodismo y literatura, relaciones difciles, Moiss Limia Fernndez .................... 149Noticiabilidade no rdio em tempos de Internet, Nelia R. Del Bianco .................. 157A imprensa na Velha Provncia 170 anos do Monitor Campista. O terceiro jornal maisantigo do pas e a morte misteriosa do jornalista Francisco Alypio, Orvio de CamposSoares ................................................................................................................................ 167

  • 6 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBRICO Volume IV

    Agenda e Discurso Miditico: quando a minoria notcia. O caso indgena na Imprensaem Pernambuco, Patricia Bandeira de Melo ................................................................ 177El Prestige en los medios. Las claves de una gran confusin, M. Pilar DiezhandinoNieto .................................................................................................................................. 183Alberto Bessa e a sua histria do jornalismo uma memria de cem anos, RogrioSantos ................................................................................................................................ 193Os Temas da Guerra. Estudo exploratrio sobre o enquadramento temtico da Guerrado Iraque na Televiso, Telmo Gonalves ................................................................... 203Weblogs y Periodismo Participativo, Tiscar Lara ....................................................... 219O Jornalismo de Informao Sindical no Brasil: atores, prticas, mecanismos e estratgiasde produo jornalstica, Vladimir Caleffi Araujo ...................................................... 229A eurorrexin Galicia-Norte de Portugal a travs das pxinas da prensa galega. Anlisedo discurso meditico transmitido polos xornais galegos, Xos Lpez Garca e BertaGarca Orosa ..................................................................................................................... 239O traballo xornalstico de Eduardo Blanco Amor en Amrica: a divulgacin da culturagalega nas pxinas de La Nacin, Xos Lpez Garca y Marta Prez Pereiro .... 245A informacin cultural nos medios de comunicacin en Galicia, Xos Lpez Garca eMarta Prez Pereiro ......................................................................................................... 253Periodismo de servicio en la prensa local de Galicia, Xos Lpez ........................ 261O jornalismo entre a informao e a comunicao: como as assessorias de imprensaagendam a mdia, Zlia Leal Adghirni ......................................................................... 269

    Captulo IICOMUNICAO E EDUCAO

    Apresentao, Vtor Reia-Baptista .................................................................................. 281Desenho animado e formao moral: Influncias sobre crianas dos 4 aos 8 anos deidade, Ana Lcia Sangudo Boynard ............................................................................ 283A Investigao e o Desenvolvimento da Comunicao Audiovisual na Universidade: aUniversidade Fernando Pessoa como estudo de caso, Anbal Oliveira .................... 291Comunicacin, Educacin y Tecnologa, Antonio R. Bartolom ............................... 299Memria e imagem do idoso como experincia pedaggica, Benalva da Silva Vitorio ... 311Magia, luzes e sombras. Uma perspectiva educacional sobre vinte cinco anos de filmesno circuito comercial em Portugal * 1974 1999 *, Carlos Capucho .................. 317Comunicao, Ludicidade e Cidadania, no Projecto Direitos Humanos em Aco, ConceioLopes e Ins Guedes de Oliveira ................................................................................. 327Memria quotidiana e comunicao: prticas memoriais na escola, Fernando Barone ... 331Anim(a)o na Educao. O entre-entendimento na teia da produo do sentido e suamediao na educao, Geci de Souza Fontanella ..................................................... 343Por dentro do filme o cinema na sala de aula, Graa Lobo ............................... 353Internet, alguns desafios: a representao que os jovens revelaram da internet, Jos CarlosAbrantes ............................................................................................................................. 361

  • 7JORNALISMO

    O potencial educativo do audiovisual na educao formal, Lara Nogueira Silbiger ... 375Comunicao/Educao: Um campo em aco, Maria Aparecida Baccega ............. 383Comunicacin y Educacin de cine, M del Mar Rodrguez Rosell .................... 395La dieta televisiva en la infancia espaola. Aproximacin al estudio de las audienciasinfantiles, Amelia lvarez, Marta Fuertes, ngel Badillo y Zoe Mediero ............. 403A educao popular no Brasil: a cultura de massa, Maria da Graa Jacintho Setton ... 419Crescer com a Internet: Desafios e Riscos, Neusa Baltazar ..................................... 427A rdio de modelo multimeditico e os jovens: a convergncia entre o FM e a Internetnas rdios nacionais, Paula Cordeiro ............................................................................ 433Educar para comunicar: una reflexin sobre la formacin de los comunicadores en elcontexto de la sociedad de la informacin, Viviana Fernndez Marcial ................. 443

    Captulo IIIOPINIO PBLICA E AUDINCIAS

    Apresentao, Joo Carlos Correia ................................................................................ 453A Profissionalizao das Fontes na disputa pelas Audincias, Boanerges Lopes ... 455Gutenberg cai na rede. Os principais impactos que a internet imps aos processos deproduo de um jornal dirio, de porte mdio, da cidade de Campinas, Carlos AlbertoZanotti ............................................................................................................................... 463Ideias que vendem, ideias que ningum quer comprar e as outras. Breve estudo acercado poder de legitimao das audincias, Isabel Salema Morgado ........................... 473Consumo cultural, consumo de medios de comunicacin y concepcin de la cultura, JavierCallejo ............................................................................................................................... 481Moeda e Construo Europeia: Uma abordagem identitria, Maria Joo Silveirinha .. 491Inteno de Voto e Propaganda Poltica: Efeitos e gramticas da propaganda eleitoral,Marcus Figueiredo e Alessandra Ald ........................................................................... 503Opinin pblica y medicin de audiencias en el mbito local: el caso de Segovia,Mara Jess Daz Gonzlez, Concepcin Anguita Olmedo, Francisco Egido Herrero, JosManuel Garca de Cecilia e Eduardo Moyano Bazzani .............................................. 511Cenas e sentidos na tribo Raver: A ordem da fuso, Marli dos Santos ................ 521Conducta meditica de los adolescentes en Espaa y Portugal. Modos de consumo derdio y e televisin, Milagros Garca Gajate .............................................................. 529Processos cognitivos, cultura e esteretipos sociais, Rosa Cabecinhas .................... 539Visibilidade e accountability: o evento do nibus 174, Rousiley C. M. Maia ...... 551A Ponte mais vista do pas: o que se disse da cobertura jornalstica da queda da pontede Entre-os-Rios, Sandra Marinho ................................................................................. 569Universidade e Mdia: A Opinio Pblica In-formao, Simone Antoniaci Tuzzo ... 581Mediatizao do real: consumos e estilos de vida. Contributos e reflexes, SusanaHenriques .......................................................................................................................... 589

  • 8 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBRICO Volume IV

    Captulo IVCOMUNICAO E ORGANIZAO

    Apresentao, Eduardo Camilo ...................................................................................... 599Apresentao, Jos Viegas Soares ................................................................................. 603Quando falo o que quero e digo o que preciso, Adriana Gomes Moreira e Maria MadalenaSimo Duarte .................................................................................................................... 605Comunicao, Identidade e Imagem Corporativas: o caso da Caixa Econmica Federal,Brasil, Ana Regina Barros Rego Leal e Maria das Graas Targino ........................ 617O Marketing poltico encarado como agente de progresso da comunicao em poltica,Antnia Cristina Perdigo ............................................................................................... 627A Evoluo Tecnolgica e a Mudana Organizacional, Carlos Ricardo .................. 637La integracin de la comunicacin comercial en la gestin corporativa, David AlamedaGarca ................................................................................................................................ 647Intencionalidade e Diferena: Uma Aproximao Fenomenolgica Interseco Aco/Comunicao/Informao, Fernando Ilharco ................................................................. 657Comunicacin audiovisual corporativa: Un modelo de produccin, Fernando GalindoRubio ................................................................................................................................. 667A Influncia do Teatro no Marketing de Vendas Directas, Jorge Dias de Figueiredo ... 677Identidade e Estilo de Vida: Novos Impactos no Contexto da Comunicao Organiza-cional, Joo Renato Benazzi e Joo Maia ................................................................... 683Comunicao institucional em organizao pblica. O caso da Controladoria Geral doMunicpio do Rio de Janeiro 2001/2004, Lino Martins da Silva e Sonia VirgniaMoreira .............................................................................................................................. 691Comunicao Estratgica: Aplicao das Ideias de Dramaturgia, Tempo e Narrativas, LusMiguel Poupinha .............................................................................................................. 699Ctedra Unesco/Umesp e seu papel articulador no cenrio da comunicao: desafios nosculo XXI, Maria Cristina Gobbi ................................................................................ 705El estado del Corporate en la empresa extremea: el diseo y la imagen corporativa,Maria Victoria Carillo Duran e Ana Castillo Daz .................................................... 713El desarrollo de la competencia comunicativa de los portavoces de la organizacin (propuestapragmtica y retrica), M Isabel Reyes Moreno ....................................................... 719O estado da arte em Comunicao Organizacional. 1900 2000: um sculo de investigao,Teresa Ruo ...................................................................................................................... 727

  • 9JORNALISMO

    APRESENTAOAntnio Fidalgo e Paulo Serra

    Cincias da Comunicao em Congres-so na Covilh (CCCC) foi a designaoescolhida, pela Direco da SOPCOM Associao Portuguesa de Cincias da Co-municao, para o seu III Congresso, inte-grando o VI LUSOCOM e o II IBRICO,e que teve lugar na UBI, Covilh, entre osdias 21 e 24 de Abril de 2004 (o LUSOCOMteve lugar nos dois primeiros dias e oIBRICO nos dois ltimos).

    Dedicados aos temas da Informao,Identidades e Cidadania, os Congressos deCincias da Comunicao na Covilh cons-tituram um momento privilegiado de encon-tro das comunidades acadmicas lusfona eibrica, fazendo pblico o estado da pesquisacientfica nos diferentes pases e lanandopontes para a internacionalizao da respec-tiva investigao. Ao mesmo tempo, contri-buram de forma importante para a conso-lidao, tanto interna como externa rela-tivamente comunidade cientfica, ao mun-do acadmico e ao prprio pblico em geral das Cincias da Comunicao como campoacadmico e cientfico em Portugal.

    Este duplo resultado ainda mais rele-vante tendo em conta que se trata de campode investigao recente em Portugal. Nopretendendo fazer uma descrio exaustivado seu historial, assinalem-se algumas datasmais significativas. O primeiro curso delicenciatura na rea das Cincias da Comu-nicao na altura denominado de Comu-nicao Social iniciou-se em 1979, naFaculdade de Cincias Sociais e Humanas daUniversidade Nova de Lisboa, a que seseguiram o do ISCSP da Universidade Tc-nica de Lisboa (em 1980) e o da UBI (em1989), para citarmos apenas os trs primei-ros, expandindo-se at aos 33 cursos supe-riores do ensino pblico universitrio epolitcnico actualmente existentes.

    No que se refere aos antecedentes ime-diatos dos Congressos que tiveram lugar naUBI, em Abril de 1997 realizava-se na

    Universidade Lusfona, em Lisboa, o IEncontro Luso-Brasileiro de Cincias daComunicao, momento em que os investi-gadores portugueses decidem criar aSOPCOM Associao Portuguesa de Ci-ncias da Comunicao. Um ano mais tarde,em Abril de 1998, o II Encontro organi-zado na Universidade Federal de Sergipe, noBrasil, incluindo investigadores de pasesafricanos de lngua portuguesa. ento quese funda a LUSOCOM Federao dasAssociaes Lusfonas de Cincias da Co-municao. A terceira edio do LUSOCOMrealiza-se na Universidade do Minho, nova-mente em Portugal, em Outubro de 1999,regressando ao Brasil para a sua quartaedio, desta vez a S. Vicente, em Abril de2000. Depois de dois anos de pausa, o VLUSOCOM estreia Moambique como pasorganizador, decorrendo em Maputo em Abrilde 2002. Apenas com uma edio, realizadaem Mlaga em Maio de 2001, o CongressoIbrico de Cincias da Comunicao procuraagora, pela segunda vez, juntar investigado-res e acadmicos de Espanha e de Portugal,e assumir-se assim como momento de unioe debate acerca do trabalho levado a cabonos dois pases. O primeiro congressoSOPCOM a Associao teve a sua criaolegal em Fevereiro de 1998 , realizou-se emMaro de 1999, em Lisboa, sendo tambma que, decorridos mais dois anos, viria aorganizar-se o II SOPCOM, em Outubro de2001.

    No decurso dos quatro dias em quedecorreram os Congressos de Cincias daComunicao na Covilh foram apresentadascerca de duzentas comunicaes, repartidaspor dezasseis Sesses Temticas (repetidasem cada um dos Congressos), a saber: Teoriasda Comunicao, Semitica e Texto, Econo-mia e Polticas da Comunicao, Retrica eArgumentao, Fotografia, Vdeo e Cinema,Novas Tecnologias, Novas Linguagens, Di-reito e tica da Comunicao, Histria da

  • 10 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBRICO Volume IV

    Comunicao, Esttica, Arte e Design, Pu-blicidade e Relaes Pblicas, Jornalismo,Estudos Culturais e de Gnero, Comunica-o e Educao, Comunicao Audiovisual,Opinio Pblica e Audincias, Comunicaoe Organizao.

    A publicao do enorme volume depginas resultante de tal nmero de comu-nicaes um volume que, e a aplicar oformato estabelecido para a redaco dascomunicaes, excederia as duas mil equinhentas pginas , colocava vrios dile-mas, nomeadamente: i) Publicar as Actas doVI LUSOCOM e do II IBRICO em sepa-rado, ou public-las em conjunto; ii) Publi-car as Actas pela ordem cronolgica dasSesses Temticas ou agrupar estas em grupostemticos mais amplos; iii) Dada a impos-sibilidade de reunir as Actas, mesmo que deum s Congresso, em um s volume, quantosvolumes publicar.

    A soluo escolhida veio a ser a depublicar as Actas de ambos os Congressosem conjunto, agrupando Sesses Temticascom maior afinidade em quatro volumesdistintos: o Volume I, intitulado Esttica eTecnologias da Imagem, compreende osdiscursos/comunicaes referentes Aber-tura e Sesses Plenrias (Captulo I), Fo-tografia, Vdeo e Cinema (Captulo II),Novas Tecnologias e Novas Linguagens

    (Captulo III), Esttica, Arte e Design(Captulo IV) e Comunicao Audiovisual(Captulo V); o Volume II, intitulado Te-orias e Estratgias Discursivas, compreen-de as comunicaes referentes a Teorias daComunicao (Captulo I), Semitica e Texto(Captulo II), Retrica e Argumentao(Captulo III) e Publicidade e RelaesPblicas (Captulo IV); o Volume III,intitulado Vises Disciplinares, compreendeas comunicaes referentes a Economia ePolticas da Comunicao (Captulo I),Direito e tica da Comunicao (CaptuloII), Histria da Comunicao (Captulo III)e Estudos Culturais e de Gnero (CaptuloIV); finalmente, o Volume IV, intituladoCampos da Comunicao, compreende ascomunicaes referentes a Jornalismo (Ca-ptulo I), Comunicao e Educao (Cap-tulo II), Opinio Pblica e Audincias(Captulo III) e Comunicao e Organiza-o (Captulo IV).

    A realizao dos Congressos de Cinciasda Comunicao na Covilh e a publicaodestas Actas s foi possvel graas ao apoio,ao trabalho e colaborao de muitas pes-soas e entidades, de que nos cumpre destacara Universidade da Beira Interior, o Institutode Comunicao Social, a Fundao para aCincia e Tecnologia e a Fundao CalousteGulbenkian.

  • 11JORNALISMO

    Captulo I

    JORNALISMO

  • 12 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBRICO Volume IV

  • 13JORNALISMO

    ApresentaoJorge Pedro Sousa1

    No espao lusfono, os estudosjornalsticos so uma das reas de maiorvitalidade dentro das Cincias da Comuni-cao. O volumoso fluxo de trabalhos paracongressos e outros eventos comprova-o.Neste VI Congresso Lusfono de Cinciasda Comunicao, a mesa temtica de Jorna-lismo teve de ser desdobrada em duas, parapermitir a apresentao de vinte trabalhosentre os que foram submetidos para avali-ao.

    Infelizmente, muitos dos excelentes tra-balhos que foram remetidos aos coordena-dores da Mesa Temtica de Jornalismo nopuderam ser integrados no programa, porausncia de tempo e no por falta de qua-lidade.

    Os trabalhos submetidos aos avaliadoresdenotam preocupaes e linhas de investi-gao diferenciadas. No seu conjunto, doconta da diversidade de objectos de estudoque se desenham a partir do campojornalstico e da interaco, muitas vezesproblemtica, entre jornalismo, sociedade ecultura. Do conta tambm da naturezamarcadamente interdisciplinar das Cinciasda Comunicao. As conexes com a His-tria, por exemplo, so bem vincadas emvrios dos trabalhos que foram submetidosaos coordenadores da Mesa Temtica deJornalismo.

    Assim, Rogrio Santos faz uma descri-o do primeiro livro sobre jornalismopublicado em Portugal: Jornalismo, deAlberto Bessa, editado em 1904; AdrianoLopes Gomes e Crmen Daniella Avelinodesmontam o agendamento das rotinas so-ciais no jornal A Repblica, de Natal (RN,Brasil), durante a II Guerra Mundial; OrvioSoares relembra os 170 anos do jornalMonitor Campista; e Beatriz Dornelles mostrauma preocupao simultaneamente comuni-cacional e historiogrfica ao descrever ascaractersticas dos jornais e leitores do finaldo sculo XX.

    Por seu turno, as conexes das Cinciasda Comunicao com a filosofia e aepistemologia so estabelecidas por trabalhoscomo Crticas mpias, apresentado porMaria Madalena Oliveira, e O Que o Jor-nalismo Pode Aprender com a Cincia:Objectividade na Perspectiva doRacionalismo Crtico de Karl Popper. Ci-ncia e jornalismo so tambm questestratadas por Isaac Epstein, que apresenta umtrabalho sobre Etos e Tempos de Cinciano Jornalismo Cientfico.

    As pontes entre as Cincias da Comu-nicao e a sociologia, designadamente entreas Cincias da Comunicao e a sociologiada produo de notcias (newsmaking) sopatentes em trabalhos sobre a problemticanatureza das relaes entre fontes de infor-mao e jornalistas, como os apresentadospor Zlia Adghirni, sobre a interaco entrejornalistas e assessores de comunicao, e porVladimir Arajo, sobre jornalismo sindicalno Brasil. Neste campo, Eduardo Meditschd o seu contributo edificao de uma teoriado jornalismo, ou da notcia, questionandoas falcias lgicas, falhas argumentativas egeneralizaes sem base cientfica na inves-tigao do newsmaking.

    O elevado nmero de comunicaes sobrejornalismo online indicia a importncia e anovidade do fenmeno. Para o seu estudo,desenvolveram-se metodologias e conceitosespecificamente ligados s Cincias daComunicao, usados, por exemplo, nostrabalhos sobre webjornalismo apresentadospor Cludia Quadros, Itanel Jnior e LucianaMielniczuk e no trabalho sobre Noticiabi-lidade no Rdio em Tempos de Internet,apresentado por Nlia Del Bianco.

    A anlise do discurso tem permitido aobteno de conhecimentos proveitosos so-bre o comportamento editorial dos meios decomunicao e os contedos e formatos dasnotcias, sendo um dos mtodos mais usadosno campo dos estudos jornalsticos. Para no

  • 14 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBRICO Volume IV

    fugir regra, so tambm vrios os trabalhosseleccionados para o VI LUSOCOM queelegem como principal mtodo a anlise dodiscurso. So os casos das pesquisas de XosLpez Garcia e Marta Prez sobre a infor-mao cultural nos meios jornalsticos ga-legos; de Telmo Gonalves sobre osenquadramentos temticos da segunda Guer-ra do Golfo; de Patrcia Melo sobre o ndiona imprensa pernambucana; e ainda o de AnaCristina Mandarino sobre a cor da pele naimprensa brasileira Nordestina. Finalmente,a teorizao da anlise do discurso jornalsticodramatizado constitui a questo central queocupa Pedro Diniz de Sousa.

    Lanar luz sobre o jornalismo e os jor-nalistas e a sua funo e repercusso nasociedade e na cultura tarefa dos pesqui-sadores em jornalismo. Estamos certos deque os trabalhos seleccionados reflectemessa preocupao e atingem o seu nobreobjectivo de construir um conhecimento ci-entificamente vlido sobre os fenmenosjornalsticos, enquanto fenmenos pessoais,sociais, ideolgicos, histricos, tecnolgicose culturais.

    _______________________________1 Universidade Fernando Pessoa.

  • 15JORNALISMO

    Reportagens sobre a Cor da Pele em Jornais de Salvadore Aracaju/Brasil: criminalidade, loucura e macumba

    Ana Cristina de Souza Mandarino1

    Introduo

    O presente trabalho fruto de minha tesede doutorado apresentada na Escola deComunicao da UFRJ como resultado deminhas observaes e do envolvimentoenquanto pesquisadora, desde a graduao,com as comunidades de terreiro do Rio deJaneiro no perodo em que, como assistentede pesquisa, pude desfrutar do convvio depais e mes-de-santo, fora do momento ri-tual, onde a descontrao e a intimidadefaziam as conversas discorrerem sobre osmais diversos assuntos.

    Podemos perceber que um dos assuntospreferidos dizia respeito a como hoje encontra-se a religio, e quais as medidas que poderiamser tomadas para que o Candombl fosse melhorvisto pela sociedade em geral. Os comporta-mentos percebidos pelos adeptos como nocondizentes com a tradio, acabavam sendotomados como exemplo, nas notcias de jornaise de programas veiculados na mdia em geral,alm de programas religiosos.

    Assim, aps comentarem sobre o compor-tamento de certos indivduos, e o quanto esteera prejudicial imagem da religio,relembravam e enfatizavam a luta que a re-ligio travou para que fosse mais respeitada,dos anos de perseguio policial, e de comoaqueles que professavam a religio dos Orixs,Voduns e Inquices2 eram perseguidos com ortulo de loucos e depravados.

    A familiaridade adquirida com a viso demundo do povo-de-santo3 conduziu-me apensar, sobre as representaes,4 que aindahoje incidem sobre estes grupos e em quemedida so percebidas pelo senso comum5,da mesma maneira que so elaboradas ealimentadas a partir das notcias sadas naimprensa.

    De acordo com Bastide, Verger e Elbeinentre outros, o Candombl pode ser definidocomo uma manifestao religiosa resultanteda reelaborao das vrias vises de mundo

    e de ethos6 provenientes das mltiplas etniasafricanas que, a partir do sculo XVI, foramtrazidas para o Brasil. somente no sculoXVIII que esta designao ser aplicada aosgrupos organizados e espacialmente locali-zados. Verger (1981), porm indica as pri-meiras menes as religies africanas noBrasil como existentes nas anotaes feitaspela Inquisio em 1860.

    Segundo Elbein (1988), guardando asdevidas reservas, uma vez que a impossibi-lidade de uma comprovao mais rigorosaesbarra na escassez de material oficial, provvel que o primeiro contingente deescravos vindo da regio de Ketu, tenhachegado ao Brasil por volta de 1789. Estegrande grupo, proveniente de uma vastaregio, ser conhecido no Brasil pelo nomegenrico de Nag, portadores de uma tradi-o, cuja riqueza deriva das culturas indi-viduais dos diferentes reinos de onde seoriginaram.

    A fim de situar, aproximadamente, achegada dos primeiros grupos nag ao Brasil seguindo por um lado, o esquema dos quatrociclos distinguidos por Luis Viana Filho(1964) e que foram mais tarde minuciosa-mente examinados e modificados por PierreVerger (1964 e 1968), e por outro lado acronologia deduzida das fontes orais pode-se admitir que os Nag foram os ltimos ase estabelecerem no Brasil, no fim do sculoXVIII e incio do sculo XIX.

    Segundos estes autores os ciclos estariamassim divididos:

    I Ciclo da Guin, sculo XVI;II Ciclo de Angola, sculo XVII;III Ciclo da Costa da Mina e Golfo

    do Benin, sculo XVIII at 1815;IV ltima fase: a ilegalidade: de 1816

    a 1851.

    Os chamados Jje e Nag teriam vindono IV ciclo, no perodo compreendido entre

  • 16 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBRICO Volume IV

    1770 e 1850, sendo que estaria a includoo perodo do trfico clandestino.

    Cabe ressaltar, que, se estamos dandomais nfase ao grupo tnico jje-nag, porque ser este que ir fundar as primeirascasa de culto que se tem oficialmente no-tcia, passando este modelo ser tido comoreferncia quando se fala de estudos sobreas religies afro-brasileiras. Inclusive curioso lembrar, que o prprio NinaRodrigues a estes exalta como os negrosnags possuem uma mitologia bastante com-plexa, com divinizao dos elementos natu-rais e fenmenos meteorolgicos (ELBEIN,1988: 216), [...] da preponderncia adqui-rida no Brasil pela mitologia e culto dos jejese iorubanos a ponto de, absorvendo todos osoutros, prevalecer este culto quase como anica forma de culto organizada dos nossosnegros fetichistas.(ELBEIN, 1988: 215).

    Os Terreiros, Roas, Abas ou Casas-de-Santo, denominaes correntes utilizadaspara nomear os espaos e grupos de cultoaos deuses africanos Orixs, Inquices eVoduns representam assim historicamente,uma forma de resistncia cultural, coesosocial, e ao mesmo tempo centro de fermen-tao para sublevaes e rebelies, relatandos vrias rebelies ocorridas no sculo XIXcomo tendo relao com a f que professa-vam os insurretos (RODRIGUES, 1988). interessante ressaltar que Nina Rodrigues aoreferir-se as rebelies levava em considera-o apenas a origem e a f dos rebeldes,esquecendo-se que as prprias condies emque estes viviam sub-humanas por si sj eram motivos suficiente para a rebelioou motim.

    As formas da religiosidade africana, nocaso brasileiro, podem ser consideradasfatores fundamentais para a formao dereagrupamentos institucionalizados de africa-nos e seus descendentes, escravos, foragidose libertos. Ao lado de associaes religiosaspropriamente ditas, como Terreiros e Irman-dades de Igrejas Catlicas, e mais tarde Federaes, desenvolveram-se durante aescravido formas de resistncia poltica os quilombos que geralmente estavamassociados s prticas religiosas africanas.

    Assim, passaremos a encontrar mais tarde,em diversas regies do Brasil, a dissemina-o dos cultos de origem africana, que agora

    tomariam o nome de religio afro-brasileiradenominadas genericamente sob os nomes deUmbanda e Candombl.

    Podemos perceber que a base dessasrepresentaes est situada no nvel de re-lacionamento existente entre o rtulo religi-oso, a cor da pele e o nvel social dosparticipantes dos grupos religiosos.

    Vale ressaltar que as representaes so,elas prprias, marcadas por critrios sociaise por mecanismos classificatrios fundamen-tados no sistema hierarquizado da organiza-o social. Neste sistema, possvel perce-ber fronteiras nitidamente estabelecidas paraa firmao individual e grupal, fundamen-tadas nos credos religiosos assumidos, naaparncia fsica (cor da pele, feies, cabe-los, vesturio, etc.), que indicam a pertenaa um dos diversos grupos profissionais econfessionais que, por sua vez, ajudam apromover a insero individual e grupal nas diferentes camadas da pirmide social.(TEIXEIRA, 1992).

    A articulao entre as rotulaes religi-osas e a racial considerada como um fatorimportante para a compreenso do cenriosocial brasileiro, marcado pelo medo dofeitio, conforme mostrado por Maggie(1992), e alimentado e reforado pelasnotcias estereotipadas veiculadas na mdia. esse medo exagerado do feitio/malefcio,fruto muito mais de um imaginrio, do quebaseado em verdades comprovadas, que irpromover durante muito tempo uma justifi-cativa a qual, imprensa e polcia, atribuamcomo resultado s perseguies.

    Assim, procuramos buscar identificar apossvel articulao existente entre as repre-sentaes acerca da loucura, criminalidade ereligies afro-brasileiras (Umbanda e Can-dombl) e as notcias veiculadas nos jornaisdas cidades de Salvador e Aracaju e de comoestas participaram da construo e cristali-zao de esteretipos negativos incidentessobre aqueles que praticam e cultuam Orixs,Voduns, Inquices e entidades afro-brasileiras.

    A leitura das representaes engendradassobre a populao macumbeira, rtulo ge-nrico incidente sobre negros, mestios ebrancos, adeptos das religies afro-brasilei-ras, aponta para o processo de classificaoque incide sobre grupos e indivduos que tantoserve para justificar desigualdades sociais,

  • 17JORNALISMO

    como para sedimentar hierarquizaes atra-vs de uma inferioridade atribuda. Um dosaspectos ressaltados na confeco dos retra-tos dos adeptos das comunidades religiosas,mostrado nos noticirios dos jornais, e maisrecentemente na TV, o da criminalidade,da loucura, devassido e luxria.

    Assim, este trabalho tem como objetivodemonstrar como os esteretipos acerca dasreligies afro-brasileiras foram cristalizadosnas notcias de jornais nas cidades de Aracajue salvador durante o perodo de maior re-presso aos cultos afro, que teve seu inciona dcada de 30 e perdurou at o final dadcada de 60.

    Ao partimos para nossa pesquisa nosrgos pblicos do Estado de Sergipe, e aoconversarmos com cada um dos dirigentes,dessas instituies, outra surpresa nos aguar-dava. Segundo estes, no havia registros emjornais que tratassem da perseguio aoscultos negros no Estado, porque, por ordemdos poderes pblicos da poca, era proibidoqualquer registro que retratassem as aesde perseguio, invaso e priso ocorrida nosterreiros de Umbanda e Candombl.

    Diante desta nova perspectiva, que nosimpedia o acesso ao material bibliogrfico,resolvemos centrar nossa pesquisa, pelomenos no Estado de Sergipe, nos usos dahistria de vida e da oralidade, mesmoconscientes das limitaes deste mtodo.

    Entretanto, devemos ressaltar que nodescartamos a busca por materiais oficiaisque comprovassem nossa idia, pois consi-deramos que independente da quantidade aque tenhamos acesso, nos deteremos emanalisar a importncia, qualidade e signifi-cado do que encontrarmos.

    J nos Estado da Bahia, especificamentena cidade de Salvador, empreendemos pes-quisa nos rgos e jornais em que houves-sem referncias aos cultos afro-brasileiros,buscando ressaltar as diferenas que marcamestas duas sociedades to prximas uma daoutra, e, no entanto, distanciadas pela ma-neira atravs da qual optaram tratar o mesmotema uma a represso e a negao daexistncia; no caso da cidade de Aracaju, ea outra a represso e a veiculao da notciaem manchetes de jornais e em que graurefletem as vises de mundo e modusvivendi das prprias sociedades.

    Encontramos na cidade de Aracaju cercade 15 notcias por ns analisadas que diziamrespeito a uma perodo que ia desde a dcadade 50, at o final da dcada de 70. Valeressaltar, que no perodo anterior, onde arepresso levada a cabo pelo regime polticoque se instalou no Brasil a partir da dcadade 30 e que perdurou at o final da dcadade 40, e que caracterizou-se como o perodode maior represso do Estado aos cultos afro-brasileiros, a ocultao por parte da impren-sa das prises e perseguies, mantinham umacerta coerncia com o momento poltico deento, que iria marc-la por muito tempoainda.

    sabido por todos em Sergipe, do epi-sdio envolvendo um secretrio de seguranaque ordenou a queima de todos os boletinsde ocorrncia que registrassem as prises denegros ou que retratassem perseguies.

    Desta maneira, as dcadas de 50 e 70,perodo onde as comunicaes de massacomeam a exercer influncia significativasobre os indivduos, ditando e alterandopadres de comportamento, questionandovalores e levando informaes rpidas eprecisas atravs do surgimento da TV e dosjornais de grande circulao, so o momentoonde encontraremos um maior nmero denotcias na imprensa envolvendo os cultosafro-brasileiros e acerca de suas prticas.

    Ao contrrio, no Estado da Bahia, desdeo incio do sculo, vamos encontrar notciasveiculadas que do conta da perseguio aoscultos. Dentre tantos, escolhemos cerca de12, que de vrias formas nos possibilitavamum panorama de como esta sociedade lidavacom a questo das religies afro-brasileirase da possesso. Acreditamos, que diferentede Aracaju, que no possua uma tradi-o forte em relao a organizao dos cultose quanto a uma origem que pudesse serevocada, em Salvador, ao contrrio, desdecedo a imprensa acostumou-se a ceder es-paos em seus dirios aos debates levadosa cabo pela Escola de Medicina e por seusseguidores, que acreditavam ser de sumaimportncia a divulgao na imprensa sobrea periculosidade que envolviam negros emestios praticantes das religies afro-bra-sileiras.

    Com relao a loucura associada aospraticantes dos cultos afro-brasileiros, partire-

  • 18 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBRICO Volume IV

    mos por considerar que durante os primeirosanos deste sculo, os estudos da Psiquiatriavoltavam-se para as religies afro-brasileirascomo local capaz de promover a teoria aceitapor muitos e, principalmente, por algunspsiquiatras de que negro e religio eram osingredientes perfeitos que, combinados, eramcapazes de promover a loucura e acriminalidade

    Os estudos de Raimundo Nina Rodrigues7,Ulisses Pernambucano e Cunha Lopes entreoutros, grandes expositores desta teoria,acreditavam que a populao negra partici-pante das religies afro-brasileiras (Umbandae Candombl) eram passveis de desenvolveralgumas patologias e degeneraes. Assim,diante desta perspectiva os terreiros em vriospontos do pas, especialmente os do Rio deJaneiro, Salvador e Recife viram-se invadi-dos durante as sesses pblicas (fato que dariamaior destaque s notcias de jornal) porilustres personagens que tentavam ali encon-trar a prova cabal que referendasse suasteorias.

    Este autor inclusive foi o fundador daEscola de Patologia Social fortemente influ-enciado pelas teorias evolucionistas em vogana Europa, que articulava trs disciplinas: amedicina, o direito e a antropologia social.Esta associao tinha como objetivo demons-trar atravs de argumentos lgicos e cien-tficos que a populao brasileira era inte-lectual e psicologicamente inferior na con-frontao com a superioridade indiscutveldos brancos. (RODRIGUES, 1988).

    No quadro em que se explana apluralidade da sociedade brasileira, alm dadiscriminao que recai sobre tudo ou todosque so considerados negros ou afro, o rtulode macumbeiro supe ainda uma outra di-menso: aquela estabelecida pela Escola dePatologia Social que associa certas prticasrituais, como possesso, loucura e acriminalidade (BIRMAN, 1986). Outrasdoenas tambm foram atribudas aos negrose mestios, assim como atributos morais ecomportamentais, o que contribui fortementepara o enquadramento dessas populaes ede suas manifestaes culturais e religiosascomo produzidas por gente de segundacategoria conforme Nina Rodrigues.

    Vale ressaltar, que segundo AngelaLunhing (2000), no perodo que realizou sua

    pesquisa que vai de 1920 at 1942, nos jornaisA Tarde e Estado da Bahia sobre asperseguies aos Candombls baianos, ape-nas uma reportagem foi escrita por umjornalista presente a invaso, no havendonenhum outro registro nas inmeras repor-tagens que prove a presena de jornalistaspresentes. O que demonstra que as notciaseram veiculadas de acordo com o imaginrioe o senso comum daqueles que as escreviam,deixando transparecer no s o desconheci-mento a respeito das religies afro-brasilei-ras, como representavam os esteretipos pelosquais as religies afro-brasileiras eram per-cebidas.

    Com o passar do tempo notcias querelatavam a invaso e posterior captura eencarceramento dos freqentadores e adep-tos dos terreiros comearam a aparecer naimprensa escrita. Estas notcias serviriam parareforar os preconceitos que j se encontra-vam latentes no imaginrio social, agorasubstanciados e legitimados pela imprensa.Essas notcias transformar-se-iam na manhseguinte em manchetes de jornais.

    Notcias: ideologias e esteretipos aosnegros

    Os jornais de uma forma geral sempretrouxeram em suas manchetes relatos acercadas curas obtidas nos terreiros da mesmaforma que questionavam a validade e averacidade de tais fatos, fornecendo, assim,material amplo para moldar o imaginriosocial acerca da loucura e da criminalidadee as religies afro-brasileiras.

    Assim, perda de controle, exploraopblica, crime, suicdio, brigas, adultrio,roubos, loucuras sempre foram vistas pelosjornais como atividades comuns no mbitodos terreiros, da mesma forma que seusfreqentadores eram percebidos como cida-dos perigosos, que deveriam permanecersobre suspeita policial. Em sntese, todomacumbeiro era classificado como um pos-svel delituoso ou delinqente.

    Quase sempre matria de primeira pginaem jornais populares, este tipo de destaquetanto pode ser interpretado como apelo paraa venda de jornais atravs do sensacional edo misterioso, marcas, representaes eestigmas quanto o que se desejava ver

  • 19JORNALISMO

    reforado. Nesta perspectiva era delimitado,de forma mais ntida o espao social paraas religies afro-brasileiras; principalmentena dcada de 50, quando tais formas reli-giosas no tinham recebido ainda a marcada legitimidade conferida pelos estudosantropolgicos desenvolvidos a partir dasdcadas de 50 e 60.8 (BROWN, 1985;TEIXEIRA, 1986).

    Assim, buscamos demonstrar que asnotcias veiculadas na imprensa valorizam osensacional e o caricato, sendo enfocadoprincipalmente homicdios, suicdios e casosde loucura. Tendo sempre consciente que anotcia no um ingnuo relato de um fato,mas uma construo elaborada segundodeterminada tica e tica, do nosso ponto devista, todo jornal um veculo, um instru-mento, criador de um mundo no qual se pe conscincia e ao consumo dos leitores.

    As informaes, portanto, so elaboradaspor escolha, interpretao e avaliao, tor-nando-se assim significativas. O jornal co-locando-se como reprodutor de uma realida-de que se d observao, torna-se, naverdade, produtor e reprodutor de um uni-verso ideolgico que atende a interessesespecficos.

    Acreditamos que a notcia tem um de-terminado fim, no entanto, resta-nos saberse aqueles que a produzem tm uma cons-cincia clara de seu contedo e de como esterepercutir sobre aqueles que as lem, ou sesimplesmente atuam como agentes de umacoisa maior, reproduzindo, eles prpriosarticulaes do imaginrio social acerca dedeterminados grupos, em especial aqueles queprofessam a religio dos Orixs Inquices eVoduns.

    Concluso

    Aps empreendermos nosso trabalho, cujoobjetivo reside em percebermos as represen-taes que incidem sobre a cor da pele dosadeptos e praticantes dos cultos afro-brasi-leiros, acerca das notcias veiculadas naimprensa sergipana e baiana, algumas ques-tes nos parecem relevantes.

    O incio do sculo surge como ummomento de grande reflexo por parte da-queles que enxergavam a necessidade detransformar o pas. A realidade social,

    econmica, poltica e cultural, com a qualse defrontavam intelectuais, escritores, po-lticos, profissionais liberais e setores popu-lares, no se ajustava facilmente s idias eaos conceitos, aos temas e s explicaesemprestadas, s pressas, de sistemas depensamentos elaborados em pases da Euro-pa. Estava em curso uma fase importante noprocesso de construo de um movimentocapaz de pensar a realidade e a culturanacional.(IANNI,1992, apud MANDARINO,1995: 40).

    As transformaes polticas, econmicase culturais por qual passavam o pas, foiresponsvel pelo surgimento de vrias cor-rentes contrrias a aproximao, se que sepode dizer desta maneira, entre as classespopulares e os setores mais conservadores ehegemnicos da sociedade.

    A busca pela instaurao de uma novaordem mais prximas das aspiraes daque-les que pensavam a necessidade de um Brasilmoderno, no condizia com uma sociedadeonde a presena de negros e de seus rituaisimpuros pudessem proliferar.

    Com isso, procuramos demonstrar que osmecanismos reguladores criados pelo Estadodesde a Repblica no extirparam a crenana magia e em sua eficcia, mas ao contr-rio, foram fundamentais para sua constitui-o.

    Isto vai gerar inmeras estratgias pelopovo-de-santo, que em determinado momen-to vo se fazer acompanhar de polticos epessoas influentes, que acabaro por criarespaos para estes nos meios de comunica-o. Esta estratgia de mo dupla, que porum lado capaz de fazer com que algunsrepresentantes e seus terreiros, passem a servistos de forma diferenciada por uma parcelada sociedade, por outro, vai gerar um com-prometimento capaz de afastar alguns, e delevar a suspeita a outros.

    Estes mecanismos podem ser percebidosnos processos de formao das vrias Fede-raes em diversos Estados, onde estes locaispassam a servir de espao para a cooptaopoltica em troca de favores, como espaosem colunas de jornais e revistas, alm daconcesso de horrios em rdios.

    Sobre as perseguies aos cultos afro-brasileiros, podemos concluir que, diferentedo que ocorreu em outros Estados, embora

  • 20 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBRICO Volume IV

    o contrrio seja enunciado nas poucas repor-tagens recolhidas, e apenas apontado nosdepoimentos, em Aracaju, as perseguies ea represso no tinham como principalobjetivo punio dos adeptos por estespraticarem feitiarias ou malefcios. NoEstado de Sergipe a perseguio fora muitomais organizada como forma de instauraoda ordem do que por acusaes de feitiaria.

    Como a sociedade sergipana poucocontato tinha com aqueles que praticavam,o medo do feitio era algo apenas cogitado.O carter norteador dado s perseguies ea represso encontravam-se muito mais re-vestido de uma postura ideolgica, do quepropriamente com preocupao da possvelincidncia de malefcios.

    curioso percebermos que Dantas (1984),ao tratar das perseguies aos cultos afro-brasileiros no Estado de Sergipe, e sua relaocom as acusaes de que serviam de localpara abrigo de comunistas, e o papel desem-penhado pela imprensa, se utilize, como ns,para sua anlise de jornais da Bahia, escla-

    recendo ela prpria que muita pouca coisaencontrou na imprensa local nos poucosjornais ainda preservados.

    No caso especfico deste estudo, nos foipossvel identificar que isto vem ocorrendojunto queles pertencentes s minorias, se-jam elas caracterizadas pelos negros, pelosadeptos dos cultos afro-brasileiro, enfim, umaparcela que acaba por ficar margem dasociedade por no conseguir se articular emum sistema voltado para atender queles quese proclamam brancos e superiores aosdemais.

    Nesta linha, identificamos ainda que, osque se intitulam serem brancos, vm desdeo incio do desenvolvimento desse pas,pontuando e delimitando seu territrio, sejaeste ligado aos aspectos poltico, culturais,sociais, enfim, na maneira pela qual marcame exercem suas aes em sociedade. Nestesentido, encontramos os jornais e as notciasveiculadas servindo em verdade comodifusores e norteadores de opinies de umdeterminado grupo.

  • 21JORNALISMO

    Bibliografia

    Archanjo, Marcelo V. Candombl, Ma-cumba e Umbanda: o Feitio do O Dia -In: Cadernos de Iniciao Cientfica, n.5,LPS/IFCS/UFRJ, 1995.

    Cohn, Gabriel. Theodor W. Adorno: So-ciologia. So Paulo: tica, 1994.

    Concone, M. H. e Negro, L. N.Umbanda: da represso cooptao. Oenvolvimento poltico partidrio da Umbandapaulista nas eleies de 1982. Rio de Janei-ro: Marco Zero, 1985.

    Dantas, Beatriz. Vov Nag e PapaiBranco: usos e abusos da frica no Brasil.Rio de Janeiro: Graal, 1988.

    ___. De feiticeiros a Comunistas: acu-saes sobre o Candombl. So Paulo,Revista Ddalo, 23/1984, Museu de Etnologiada Universidade de So Paulo/Edusp.

    ___. Nan de Aracaju: trajetria de umame plural. In Caminhos da Alma. So Paulo:Selo Negro, 2002 Org. Vagner Gonalves daSilva.

    Dantas, Ibar Costa. Revoluo de 30 emSergipe - Dos Tenentes aos Coroni. SoPaulo: Cortez/UFS, 1983.

    ___. Os Partidos Polticos em Sergipe.Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989.

    Elbein, Joana dos Santos. Os Nag e aMorte. Petrpolis. Rio de Janeiro: Vozes,1988.

    Holfeldt, Antonio, Martino, Luiz C. eFrana, Vera. Teorias da Comunicao.Petrpolis: Vozes, 2001.

    Mandarino, Ana Cristina de S. Umestudo das representaes raciais em doisterreiros de Umbanda

    Maria ou Jurema? Dissertao deMestrado FFLCH/Departamento de Antropo-logia Social/USP, 1995.

    Moraes, Enio. Sociologia da Comunica-o: abordagens tericas. Aracaju: 1997(mimeo).

    Rodrigues, Raimundo Nina. Os Africa-nos no Brasil. Braslia: Editora UNB, 1988.

    Lnhing, Angela. Acabe com este santo,Pedrito vem a... - mito e realidade daperseguio policial ao candombl baianoentre 1920 e 1942. Dissertao de Mestrado,Escola de Comunicao/ USP, 1997 (mimeo).

    Maggie, Yvonne. Medo de feitio: rela-es entre magia e poder no Brasil. Rio deJaneiro: Arquivo Nacional, 1992.

    Teixeira, Maria Lina L. Identidade re-ligiosa e relaes raciais no Brasil. Boletimn 6 Laboratria de Pesquisa Social/IFCS/UFRJ,1992.

    Torres, Acrsio. A Imprensa em Sergipe.Braslia: Senado Nacional,1993.

    Fairclough, N., A Mdia e a linguagem:organizando uma pauta.Traduo de lvaroSouza, Aracaju, 2002.

    Winne, Joo Pires. Histria de Sergipe:de 1930 a 1972. Rio de Janeiro. Ponguetti,1973,vol 2.

    _______________________________1 Universidade Tiradentes, Sergipe/Universi-

    dade Federal de Sergipe, Brasil.2 Estas denominaes dizem respeito as vrias

    tradies que denominam os principais grupos decultos.

    3 Conjunto de adeptos das diferentes formasreligiosas denominadas de afro-brasileiras.

    4 Segundo Goffman, representao seria todaatividade desenvolvida por um indivduo numperodo caracterizado por sua presena contnuadiante de um grupo particular de observadores eque tem sobre estes alguma influncia.(GOFFMAN, 1975).

    5 Conforme indicou Schultz, o que distingue osenso comum como um modo dever a simplesaceitao do mundo, dos seus objetos e dos seusprocessos exatamente como se apresenta, comoparecem ser e o motivo pragmtico, o desejo deatuar sobre esse mundo de forma a dirigi-lo e coloc-lo em seus prprios limites (GEERTZ, 1988).

    6 Na discusso antropolgica recente, osaspectos morais e ticos de uma dada cultura, oselementos valorativos, foram resumidos sob otermo ethos, enquanto os aspectos cognitivos,existenciais foram designados pelo termo visode mundo.(GEERTZ, 1989: 143).

    7 Introdutor do rigor cientfico nas pesquisassobre o social, Nina Rodrigues inaugurou a prticaetnogrfica no meio urbano e sobre as relaesentre negros e brancos, dando especial atenoao fenmeno religioso afro-brasileiro e sua inci-dncia sobre a criminalidade praticada por negrose mestios.

    8 A produo acadmica ultrapassa os meiosintelectuais, vindo a tornar-se objeto de interessedos adeptos nas comunidades, ou temtica pararomances novelas e filmes.

  • 22 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBRICO Volume IV

  • 23JORNALISMO

    O Iraque nas televises europeias:representaes da segunda guerra do Golfo

    Anabela Carvalho1

    1. Introduo

    A inteno de intervir militarmente noIraque, promovida durante largos meses pelosEUA, conduziu a um longo confronto diplo-mtico e a uma profunda diviso polticainternacional em 2002 e 2003. As posiesoficiais de cada pas no tiveram, em muitascasos, correspondncia na forma como os seuscidados percepcionaram o problema. NaEuropa ocidental, mesmo nos pases cujosgovernos se colocaram ao lado dos EUA,ocorreram algumas das maiores manifesta-es populares de sempre, como protesto faceaos planos de guerra, e as sondagens apon-taram para elevados ndices de oposio aosmesmos. Apesar de tudo, venceu a vontadede alguns polticos de fazer a guerra.

    Nas suas primeiras semanas, o confrontomilitar no Iraque foi uma experinciatelevisiva intensa. Um exrcito de jornalis-tas, com um enorme arsenal de meios tc-nicos, trouxe at aos espectadores de (quase)todo o mundo um constante fluxo de ima-gens. No entanto, apesar das aparentes se-melhanas, tratou-se no de um nico, masde vrios retratos da guerra que foramveiculados pelos media (e.g. Lamloum, 2003).

    Neste texto, pretende-se fazer uma com-parao crtica da representao da guerra noIraque em trs cadeias de televiso: BBCWorld, TV5 e RTPi. Estas escolhas relevamda variedade de posies e graus deenvolvimento na guerra dos trs pases a queesto ligadas. Comea-se por rever algumasdas questes centrais na investigao sobreos media nas situaes de guerra e procede-se depois anlise da imagem do conflitoque foi veiculada por cada um dos canais.

    2. Os media e a guerra

    A reflexo sobre a re-construo televisivado conflito no Iraque como de qualquerguerra tem que ser enquadrada pela inves-

    tigao sobre a relao entre o sistemapoltico e o sistema meditico. Tal relaotem sido frequentemente descrita como dedependncia mtua e de influncia recpro-ca. Porm, o exaltado poder dos media,enquanto rbitros e juzes da vida pblica,parece cada vez mais diminudo, pelo quealguns analistas apontam para uma relaode subjugao estrutural dos mesmos rela-tivamente aos poderes polticos. Tal estariarelacionado com questes como a proprie-dade dos meios de comunicao e o podereconmico, a dependncia das fontes oficiaise a influncia ideolgica sobre as organiza-es mediticas (Bennett, 1988; Herman eChomsky, 1988). Na expresso de Chomsky(1989), o complexo militar-industrial-meditico estaria cada vez mais refinado, comos media a desempenhar uma funo essen-cial na engenharia do consentimento. Aproduo de concordncia ou, pelo menos,de anuncia tcita dos cidados relativamen-te s polticas projectadas, seria um servioessencial que os media prestariam aos go-vernos (Lippman, 1960).

    Associadas expanso globalizante dastecnologias da comunicao, as relaes in-ternacionais constroem-se hoje, ecrescentemente, com o soft power o poderassociado imagtica, comunicao e informao, por contraste com o poder militare econmico. A diplomacia electrnica vaitomando o lugar da diplomacia tradicional.As implicaes polticas da mediatizao,bem como o modo como os actores polticosprocuram utilizar os media para angariar oapoio da opinio pblica nacional e interna-cional para determinadas medidas de polticaexterna, tm vindo a ser objecto de vriosestudos (e.g. OHeffernan, 1991). Gilboa(2002) atribui aos media globais tais comoa CNN, a BBC World e a Sky quatro tiposde papeis na formulao e implementao depolticas externas: papel de controlo doprocesso de deciso poltica (por exemplo,

  • 24 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBRICO Volume IV

    exercendo presso no sentido de interveneshumanitrias); papel de limitao das opesde poltica externa; papel de mediao (nor-malmente desempenhado por determinadosjornalistas em situaes de conflito); e papelinstrumental (em que os media so utiliza-dos pelos actores polticos para promover de-terminadas posies e mobilizar apoio po-pular).

    Por boa razo, as situaes de guerra tmconstitudo um objecto de estudo privilegi-ado para os investigadores em cincias dacomunicao. Se bem que muitos dos traosda relao entre os media e a poltica semantm, a prestao dos media nos perodosde guerra (incluindo a preparao para amesma) , em muitos aspectos, excepcio-nal. Veremos como nos prximos pargra-fos.

    A guerra do Vietname um marcoimportante na histria da mediatizao deconflitos internacionais. Na primeira guerraintensivamente televisionada, com uma amplae realista cobertura dos acontecimentos, ainformao alimentou o mal-estar da popu-lao norte-americana relativamente actu-ao militar externa do seu pas e fomentouintensos protestos. Este impacto social dateleviso foi designado como sndrome doVietname, to grave foi considerado o papeldos media pela mquina poltico-militar norte-americana. No sentido de evitar a repetiodo sndrome, o Pentgono e outras instnciasde poder definiram uma poltica de controlorestritivo sobre os media nos palcos de guerra.O sistema de pooling implementado naguerra do Golfo de 1991 traduziu essa pre-ocupao. Nessa guerra, os mediacontribuiram para mobilizar apoio popular epara aumentar a popularidade de GeorgeBush, tendo as organizaes mainstreamaderido quase totalmente propagandaoficial (Taylor, 1992).

    Em democracia, a deciso de envolver umEstado numa guerra tem que ser acompanha-da por um plano de legitimao pblica damesma. Os governantes tendem a prapararmeticulosamente os argumentos que susten-tam a sua posio e a oferecer uma anliseda situao congruente com os seus planosde aco. Tipicamente, o inimigo construdo socialmente como uma ameaapara a nao. Seja pelo apelo ideolgico do

    patriotismo, seja pelos factores j enuncia-dos atrs, os media dominantes tm vindoa colaborar com os governos dos seuspases. Assim, nos perodos que precedem asguerras, os media tendem a no ofereceralternativas ao discurso das instnciasgovernativas (Lewis & Rose, 2002) e, emmuitos casos, a embarcar activamente noprocesso de demonizao do inimigo(Vincent, 2000). Depois de iniciados osconfrontos militares, o pouco debate em tornodas grandes questes poltico-ideolgicas quepossa ter existido a guerra justificada? a guerra justa? deixa completamente deter lugar. Os jornalistas centram-se emquestes processuais Como correu umadeterminada aco militar? O que se vai fazera seguir? A guerra naturalizada.

    Comparando com o discurso mediticoem guerras anteriores, que constantes e trans-formaes possvel identificar na guerra noIraque? Internacionalmente, o panoramameditico era substancialmente mais comple-xo em 2003 do que noutros perodos. Aanterior supremacia dos EUA em termos demeios tcnicos e humanos para a recolha edifuso de informao sobre o palco de guerraesbatera-se. Jornalistas de um variadssimoconjunto de pases deslocaram-se para oIraque, armados com recursos tecnolgicosmais ou menos sofisticados mas capazes, emqualquer caso, de assegurar a transmissoimediata de imagens a partir do terreno (comoo videofone). Os exclusivos da CNN naprimeira guerra do Golfo deram lugar cobertura pelas mais variadas estaes ame-ricanas, europeias e sublinhe-se do MdioOriente. A Al-Jazira foi uma alternativa svises mais prximas do sistema anglo-ame-ricano de poder, muito procurada no mundorabe e no mundo ocidental. A internet, agoracom uma implantao mundial bastante sig-nificativa, ofereceu tambm mltiploscontrapontos aos media convencionais.

    Os jornalistas embedded foram umaimportante componente da coberturameditica desta guerra. Estes profissionaisacompanharam as colunas militares anglo-americanas, aceitando um conjunto de regrasde censura militar prvia em troca de acessodirecto ao campo de batalha. As imagensque constantemente nos fizeram chegar teromarcado fortemente a percepo do conflito.

  • 25JORNALISMO

    Outro trao importante desta guerra queambas as faces accionaram fortemente assuas mquinas de propaganda. Do lado norte-americano, essa mquina era, naturalmente,mais sofisticada, envolvendo mais meios(como o media center de Doha, Qatar) emais expertise em termos de newsmanagement. Do lado iraquiano, houvetambm uma notvel pro-actividade na re-lao com os media, com constantes confe-rncias de imprensas, disponibilizao degravaes e oferta de visitas guiadas aosjornalistas.

    Para as cadeias televisivas, tal comooutras guerras, o conflito no Iraque foi, emgrande medida, um produto comercial. Houvegrandes investimentos no envio de meioshumanos e tcnicos para o Iraque e pasesvizinhos e a expectativa era de recompensaem termos das dimenses das audinciasconquistadas.

    The networks and cable are massingtheir own forces at home and overseasfor this potential war, anextraordinary story. If theres no warin Iraq, a lot of money will have goneto waste. (S/A, 2003)

    Os estudos j produzidos sobre amediatizao da guerra do Iraque sugeremque foram mostradas verses muito diferen-tes do conflito em diferentes media. Com basenuma comparao internacional, Lamloum(2003: 15) fala-nos de six guerres diffrentesvues de six postes dobservation distincts(os media de cinco pases e a cadeia deteleviso Al-Jazira). Uma anlise produzidapara o jornal alemo Frankfurter AlgemeineZeitung por Media Tenor (2003) aponta paraum forte contraste entre a avaliao daactuao poltico-militar dos EUA pelastelevises alems sobretudo as privadas e pelas televises norte-americanas: predo-minantemente negativa no caso das primei-ras e positiva no caso das segundas. NosEUA, ter havido uma colagem da maiorparte dos media mainstream e, em parti-cular, das televises posio oficial ame-ricana relativamente interveno no Iraque.Mecanismos de auto-controlo dos media,como o sistema de pr-aprovao do guiodas estrias adoptado pela CNN2, garantiram

    uma representao da situao conforme aosinteresses oficiais. A cadeia Fox foi a ex-presso mais alta do servio prestado pelosmedia mquina ideolgica da direitaamericana, com os seus aliados no mundodos negcios, os seus think tanks e outrosmecanismos de influncia. Houve, porm,notveis excepes a esta linha de anlise,como oNew York Times que disse claramen-te no guerra3.

    Os casos estudados aqui so as estaespblicas de televiso, com emisso globalpor satlite, de trs pases europeus com umarelao muito diversa com a guerra no Iraque:BBC, TV5 e RTP (cujos telejornais foramdifundidos na RTP Internacional). O ReinoUnido, atravs do governo liderado por TonyBlair, constituiu-se aliado dos EUA relativa-mente ao plano de interveno militar noIraque desde a primeira hora, vindo a enviaro nico outro contingente de tropas nume-ricamente significativo. A populao britni-ca demonstrou, no entanto, uma larga opo-sio guerra. Neste quadro, ser relevanteanalisar a forma como a BBC re-construiuo conflito.

    A TV5 um canal multilateral. As suasemisses de informao so, sobretudo, decanais franceses como France 2 e France 3,embora associe vrias estaes pblicas domundo francfono (Suia, Blgica e Qubec).A Frana um dos Estados que, oficialmen-te, mais contestou a guerra. O presidente eo governo franceses oposeram-se frontalmen-te ao plano americano e procuraram por vriosmeios poltico-diplomticos impedir aconcretizao da guerra. A populao fran-cesa manifestou-se, tambm, contra a guerra.

    O governo portugus teve uma posiode apoio administrao norte-americana,embora de modo mais passivo que o ReinoUnido. O patrocnio do primeiro ministro JosManuel Duro Barroso e da coligao PSD/CDS no poder a George W. Bush teve,porventura, a maior expresso na cimeiraentre Bush, Blair e Aznar que ocorreu nosAores nas vsperas da guerra. Embora semtropas no terreno no perodo inicial da guerra,Portugal enviou para o Iraque alguns con-tingentes de foras de segurana aps oderrube do regime de Saddam Hussein.

    Este texto procurar identificar as posi-es polticas das televises referidas acima

  • 26 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBRICO Volume IV

    relativamente guerra e responder, entreoutras, s seguintes questes: At que ponto que houve alinhamento para com aposio do governo do pas em que cadateleviso est sediada? Tero as televisesfuncionado como peas na engenharia doconsentimento controlada pelos governos ou,pelo contrrio, promoveram a crtica edisseno?

    A anlise ter em conta vrios indicado-res tais como o grau de destaque dado adiferentes dimenses da guerra (o que enfatizado e o que secundarizado?); osactores cuja perspectiva predominante nacobertura televisiva da guerra (ex. militares,civis, polticos); os jornalistas de cada es-tao envolvidos na cobertura da guerra (ex.jornalistas embedded e outros); oscomentadores seleccionados; e a iconografia(escolha de imagens, smbolos, grficos).Sero ainda consideradas as opes lingus-ticas de cada televiso para falar da guerra.Tentar-se- compreender como que aspalavras utilizadas para designar ou avaliara guerra e os seus agentes simultaneamentereflectem e produzem formas particulares depensar tal realidade.

    Procede-se a uma anlise dos noticiriostelevisionados entre os dias 20 de Maro e16 de Abril de 2003, procurando, tambm,avaliar se h alteraes ao longo do perodoanalisado no discurso jornalstico e na pos-tura destes media sobre a guerra no Iraque.

    2. BBC: Baghdad Broacasting Corporationou aliado do governo britnico?

    A BBC foi objecto de crticas por vriaspartes pela sua cobertura do conflito. Osmilitares britnicos e alguns membros dogoverno acusaram a BBC de se colocardemasiado ao lado dos iraquianos4. Algunscomentadores e crticos consideraram que aBBC prestou um servio de propaganda aogoverno britnico. Investigadores e outrosanalistas apreciaram tambm de modo vari-ado o desempenho da estao.

    Na anlise de Media Tenor (2003), a BBCaparece como relativamente equilibrada naavaliao da actuao poltica e militar norte-americana no Iraque e na quantidade de tempodedicada s baixas nas foras da coligaoliderada pelos EUA e no lado iraquiano.

    Numa anlise textual e de discurso da co-bertura das primeiras semanas do conflito naBBC, Clark (2004) e Haarman (2004) noidentificaram um posicionamento ideolgicoclaro da estao. Em contraste, um estudoda Cardiff University (2004) revelou umaorientao da BBC favorvel intervenomilitar no Iraque e portanto prxima daposio oficial do Reino Unido. De um modoainda mais assertivo, Cromwell (2003) e aorganizao Media Lens5 apontaram vriasvezes a amplificao das posies governa-mentais nos relatos que a BBC fez da guerra.

    Dentro da prpria BBC, houve divergn-cias entre os membros da direco relativa-mente qualidade da cobertura. EnquantoRichard Sambrook (2003), director de infor-mao, defendeu a informao dada pelaBBC, Mark Damazer (cit. por Wells, 2003),sub-director de informao, afirmou publi-camente que a imagem da guerra veiculadapelos reprteres embedded foi demasiadoassptica, sem mortos nem feridos, e queprestou um mau servio democracia. Partedo interesse em analisar o caso BBC resideprecisamente nesta falta de consenso sobreonde se situou politico-ideologicamente a suarepresentao da interveno no Iraque.Percorramos, ento, cronologicamente, acobertura da guerra nesta estao.

    A ofensiva militar liderada pelos EUAinicia-se no dia 20 de Maro de 2003. NaBBC, os primeiros dias do conflito sodominados por imagens da progresso mi-litar, do avano da mquina de guerra anglo-americana e do poderio do armamento oci-dental. A abertura dos blocos noticiosas ,pelo menos durante a primeira semana,dedicada predominantemente aoavano dasforas da coligao (expresso usada vriasvezes pelos pivots da BBC). Enfatiza-seo percurso feito pelos militares anglo-ame-ricanos em cumprimento do plano de tomarBagdade. Mostram-se tanques em andamen-to e as extensas colunas militares nas estra-das de terra do Iraque. O discurso da glriamilitar claramente estruturante neste per-odo.

    H, mesmo assim, referncias resistn-cia iraquiana, e poucos dias aps o inciodo conflito, comea a emergir a ideia de que,porventura, se ter subestimado a dimensodessa resistncia. No dia 27 de Maro, porexemplo, diz-se que os iraquianos esto a lutar

  • 27JORNALISMO

    de uma forma imprevista e que o inimigocom que os militares ocidentais se confron-tam no o mesmo com que fizeram simu-laes antes do confronto.

    Na imagem construda pela BBC, a guerra, porm, eminentemente assptica, depuradados seus piores horrores. Ocasionalmente, hreferncias verbais a corpos vistos ao ladoda estrada pelo reprter que penetra o pascom o exrcito invasor. Mas no h qualquerequivalente grfico. Os mortos e mesmo osferidos podem ser quantificados (provavel-mente com grande impreciso) mas no semostram. Como se refere no relatrio doestudo feito por investigadores da CardiffUniversity (2004: 6), [t]he coverage seemsto take us closer to the reality of war, andyet () [exclude] the ugly side of that reality.

    sobretudo pelos olhos desses jornalis-tas embedded que vemos a guerra. Elescolocam as foras britnicas em evidnciacontra fanatical zealots (expresso utiliza-da por militares no dia 24 de Maro). Huma aparncia de proximidade e de trans-parncia no retrato que nos chega dessastropas.

    The television event that was the 2003Iraq War collapsed the news into areal-time vacuum where instantaneityconquered content. The mass ofcorrespondents embedded with themilitary produced a scattered andmobile simultaneity of coverage. Inthese circumstances, the distinctionbetween witness to and subject of themedia event was collapsed. More,faster and closer coverage simplyproduced more fog, to use themetaphor of war. (Hoskins, 2004: 109)

    Com a mediao dos embedded vai-seestabelecendo uma relao de empatia entreo pblico e os militares britnicos. O espec-tador convidado a participar no combate,a associar-se misso de derrotar o ini-migo, a identificar-se com aquela guerra. Emjogo, est a sorte de jovens soldados brit-nicos que, naturalmente, a populao brit-nica no querer ver morrer, mesmo que(sobretudo?) ao servio de uma guerra vistapor muitos como injusta. A lgica do sloganamericano support our troops (ver

    Chomsky, 1991) sobrepe-se s interrogaesticas e ideolgicas sobre a guerra.

    As possveis repercusses socio-polticasdeste modo de cobertura esto bem expres-sas nas palavras de Jeff Hoon, Secretrio daDefesa britnica:

    I believe the publics understandingof what our troops are achieving isincreased by the access weve giventhe media. The professionalism,courage, dedication, restraint of theBritish and coalition forces shonethrough. The imagery [embeddedjournalists] broadcast is at leastpartially responsible for the publicschange in mood with the majority ofthe people now saying they back thecoalition. (cit. por Tumber & Palmer,2004: 25).

    Outra dimenso de anlise importante soos actores sociais que as televises privile-giam na sua representao do conflito. Comosugerido acima, a BBC deu frequentementevoz aos militares britnicos. Estes puserama tnica em questes tcnicas (e nopoltico-ideolgicas), como o tipo de arsenalutilizado,destacaram as vitrias militares e,de algum modo, legitimaram a guerra coma sua mostra de determinao e coragem. Noexemplo seguinte, h uma clara tentativa derotulagem moral do inimigo pelo jorna-lista embedded e pelo militar.

    2 Abril 2003 (14 dia de guerra)Ben Brown, o reprter embeddedda BBC em Basra, encontra-se juntoa soldados britnicos. Ouvem-sedisparos e exploses. Brown diz queos combatentes iraquianos estodeliberadamente a tentar que a popu-lao iraquiana seja apanhada no meiodo fogo cruzado. O reprter perguntaa um militar britnico: What do youthink about that? I think its sick,responde ele decididamente.

    Muito frequentes no ecr desta estaoforam tambm actores governamentais doReino Unido e dos EUA.

    Apesar disto, h alguma diversidade deopinies na BBC, trazida sobretudo pelos

  • 28 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBRICO Volume IV

    comentadores que, com frequncia, so es-pecialistas em questes do Mdio Oriente oudo Iraque e mesmo originrios dessas regi-es.

    Obviamente, as caractersticas da repre-sentao da guerra na BBC descritas at aquitomaram forma tanto no discurso verbal comona imagtica, de que a fig. 1 um bomexemplo. Como pode ser visto abaixo, osmbolo ou logotipo televisivo que acom-panhou toda a cobertura da guerra na BBCintegra as palavrasIraq War e uma ima-gem com um ponto de luz ao centro queirradia em toda a volta. As cores dominantesso o laranja e o preto.

    Para este estudo, perguntou-se a cerca de30 pessoas como interpretavam aquelasimbologia6. A maior parte dos inquiridos viuna imagem um nascer ou pr do sol e vriosassociaram-na ideia de um novo comeoou um renascer. Nesta leitura, a guerraestaria relacionada com libertao e eman-cipao. Um nmero significativo de pesso-as aludiu tambm imagem de uma explo-so. A polissemia da imagem poder ter sidodeliberada.

    Figura 1:Imagem da BBC, 2 de Abril de 2003

    medida que a guerra se vai prolongan-do, h uma transformao nos significadosconstrudos pela BBC. Aps cerca de duassemanas de combates, a estao mostra cadavez mais o impacto dessa guerra na popu-lao. A destruio e o sofrimento, o modode sentir das populaes rabes e o que dizemos jornais da regio, entre outras questes,esto cada vez mais presentes na coberturada BBC.

    H tambm uma mudana ao nvel dosjornalistas que relatam a actualidade doIraque. Os embedded passam a ocuparmenos espao, dando lugar a jornalistas noenquadrados. A partir de Bagdade,Rageeh Omar, especialmente, passa a teruma presena muito significativa nos ecrsda BBC. Muito mais prxima dosiraquianos e das suas experincias daguerra, a imagem que ele constri dosacontecimentos suscita, potencialmente,bastante mais crtica relativamente sconsequncias daquele conflito.

    Aps 9 de Abril e a tomada deBagdade, fortemente simbolizada no muitomediatizado derrube da esttua de SaddamHussein, a capital iraquiana assiste a umaenorme vaga de saques. As imagens deroubo e de caos generalizados, afectandolocais como o Museu Nacional do Iraquee os seus tesouros culturais, criaram umaaura profundamente negativa em torno daguerra e deram mostra da incapacidadeamericana de controlar a situao, deixan-do adivinhar muitas dificuldades para ofuturo. A 10 de Abril, a pivot da BBCrefere-se a um disturbing report sobre umhospital a ser saqueado. A situao descrita como a very worrying and verydangerous turn of events por RageehOmar.

    Os parmetros da anlise realizada estosintetizados na tabela 1. A meta-narrativa um indicador composto: resulta dumaapreciao das muitas estrias construdaspelos media a propsito da guerra; daanlise da seleco dos aspectos do acon-tecimento feita pelos media; da hierarqui-zao desses elementos; dos actores soci-ais que intervm na informao; daiconografia, etc. Atravs das setas presen-tes na segunda coluna, a tabela d, tam-bm, conta das mudanas que se verifica-ram na imagem construda pela BBC emtorno da guerra. Naturalmente, estas mu-danas so progressivas e relativas. No setrata, portanto, de caractersticas exclusi-vas mas de traos dominantes em diferen-tes momentos. destacado na tabela olado da equao que ter sido maismarcante (devido, por exemplo, suaextenso no tempo) no quadro global daimagem da guerra veiculada pela estao.

  • 29JORNALISMO

    Tabela 1: Traos dominantes da representao da guerra no Iraque na BBC

    alguns analistas, estendido ao servio pbli-co de televiso em Frana: canais comoFrance-Info e France 2 teriam feito umacobertura excessiva do incio dosbombardeamentos no Iraque de forma a captaraudincias (ACRIMED, 2003). De notar,porm, que todas estas apreciaes tm amesma fonte, j que foram publicadas no siteda ACRIMED, uma associao francesa decrtica dos media. Os resultados da anlisecomparativa realizada no mbito deste estu-do e descritos abaixo permitir-nos-o re-avaliar estes comentrios.

    Nos primeiros dias de guerra, h umaespcie de recusa da TV5 em embarcar nocomboio da mediatizao da guerra. Dis-cutem-se ainda questes de geopoltica egeoestratgia, apresentam-se ainda argumen-tos contra a guerra. H longas reportagenssobre as questes de fundo que podero terdeterminado a guerra e sobre as suas pos-sveis implicaes. A 25 de Maro, porexemplo, a TV5 passa um documentrio sobrea primeira guerra do Golfo, as trgicasconsequncias do regime de sanes adop-tado pelas Naes Unidas e as mortes desoldados americanos relacionadas com osndrome do Golfo. Nesse dia, a TV5 o nico dos trs canais em consideraoareferir a que se destinam os 75 mil milhesde dlares adicionais pedidos ao Congressoamericano por George W. Bush 63 parafinanciar as operaes militares, 4 parareforar a segurana interna e 8 para recons-truir o Iraque. A este propsito, a TV5 falatambm do envolvimento de uma empresade Dick Cheney no processo de reconstruodo pas.

    Rapidamente, passa-se, na TV5, para umaimagem da guerra dominada pelo trgico. A

    3. TV5: O efeito da oposio sistemtica?

    Dada a posio do governo e da popu-lao franceses relativamente guerra, po-der-se-ia esperar que os media francesesfizessem, entre si, uma abordagem muitosemelhante da guerra alimentando(-se d-) aoposio interveno anglo-americana efomentando a solidariedade para com o povoiraquiano.

    A comunicao social francesa foi, noentanto, alvo de recriminaes bastante di-versas. A crtica mais feroz , porventura,a de Alain Hertoghe (2003) que argumentaque os preconceitos dos media francesesembotaram a anlise e levaram a gravesexageros e omisses. Na sequncia de umaanlise de cinco jornais dirios, Hertogheconsidera que nas redaces francesas im-peravam trs objectivos: diabolizar a admi-nistrao Bush pela caricatura sistemtica;aderir linha de Chirac e Villepin num fervornacionalista e comungar com as opiniespblicas anti-guerra com um populismocompulsivo.

    Esta concluso contrasta com as obser-vaes de Thorens (2003) relativamente estao de televiso francesa privada TF1.Este analista sugere que ter havido umacolagem viso americana da guerra, coma heroicizao de Tommy Franks, altodirigente militar norte-americano, e aneutralizao do sentido das manifestaescontra a guerra. Referindo-se sobretudo TF1, Maler (2003) fala, na mesma linha, detrs traos dominantes: la lgitimation dela guerre par son rcit (), la fascinationpour la puissance militaire (), la fascinationde la tlvision pour sa propre puissance.Este tipo de enviesamento ter-se-ia, segundo

    avitarran-ateM anacirema-olgnaratilimossergorplevcalpmI adovitagenotcapmI>=arreugserotcA sonaciremaseratilim,socintirbseratiliM anaiuqarioalupoP>=satsilanroJ deddebmeseretrpeR onerretonseretrpeR>=

    serodatnemoC mesatsilaicepse,sacitlopeseratilimsetseuqmesatsilaicepsE etneirOoidModsotnussa

    aifargonocI;levrapmionavamereguslatnedicoratilimaniuqmadsnegamI

    recsanereregusolobms meregusoiurtsedeseuqasedsnegamI>=aiuqranaeolortnocsed

  • 30 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBRICO Volume IV

    destruio e a dor causadas pela guerraocupam uma grande parte do retrato dasituao. A TV5 perspectiva a guerra essen-cialmente pelos seus impactos junto dapopulao, fazendo um convite empatiapara com este povo que atacado por umexrcito invasor. A hierarquizao da infor-mao e outros aspectos relativos selec-o e construo da informao colocam oespectador mais prximo do olhar dosiraquianos do que em qualquer uma dasoutras trs estaes. O alinhamento abaixo,do bloco noticioso das 21:00 horas do dia27.03.03 da TV5 (a emitir o canal France3), d conta disso mesmo.

    27 Maro 2003 (8 dia de guerra)- Iraquianos no norte do Iraque:beijam o Coro; esto prontos amorrer na batalha pelo pas- Mostra da destruio causada pelosamericanos: criana magoada embombardeamento; homem queimadopara o qual no h medicamentos- Combates volta de Basra; possi-bilidade de catstrofe humanitria- Imagens da Al-Jazira de um heli-cptero americano alegadamente aba-tido pelos iraquianos- Najaf: nfase nos soldadosiraquianos mortos (imagem dos cor-pos ao longo da estrada)- 37 marines feridos em friendly fire- Americanos anunciam 24 mortosdesde o incio da guerra- Paraquedistas americanos no nortedo Iraque (assunto que teve umdestaque muito maior noutras estaesde televiso)- Referncia a mais mortos (segundoa Al-Jazira)- Anlise detalhada da importncia dafrente norte na batalha iraquiana e detoda a estratgia de guerra

    No dia 2 de Abril, enquanto a BBC iniciaos seus blocos informativos com notcias deavanos militares e fomenta cumplicidadespara com os militares, na TV5 a primeiranotcia a de uma maternidade bombardeadapelos americanos. Os atrozes efeitos da guerramostram-se na expresso de sofrimento das

    pessoas, nas suas palavras, nas imagens decasas e ruas destrudas.

    A morte e o luto so evocadas pelosombrio smbolo utilizado pela TV5. Como visvel na fig. 2, esse logotipo con-siste num quadrado em que as palavrasGuerre en Irak aparecem a branco sobreum fundo negro. Na parte de baixo, huma barra vermelha cujo limite superior irregular. Os sujeitos inquiridos nesteestudo fizeram associaes desta imagemcom os temas referidos acima (morte eluto; muitas pessoas consideraram o ver-melho da imagem como sugesto de san-gue).

    Figura 2:Imagem da TV5, 2 de Abril de 2003

    Na TV5, a populao iraquiana humanizada: muitos nacionais do Iraque soentrevistados (na maior parte dos casos nopapel de vtimas da guerra) e os seus nomesaparecem no ecr. Ao contrrio, na BBC,os iraquianos so normalmente apenas mos-trados de longe e mesmo quando entrevis-tados no tm nome (alude-se a estehomem, por exemplo). As reportagens daTV5 tm lugar em diferentes regies doIraque e do conta da diversidade tnica ecultural do pas. Em vez de um conjuntoindiferenciado de pessoas, os cidadosiraquianos so assim representados quaseideossincraticamente. As perspectivas, pre-ocupaes e interesses destes diferentesgrupos so discutidos pelos comentadoresque, frequentemente, so especialistas emquestes culturais, tais como historiadorese outros investigadores.

  • 31JORNALISMO

    Tabela 2: Traos dominantes da representao da guerra no Iraque na TV5

    dias so os militares americanos, embora emquase equilbrio com a populao iraquiana.A nvel de comentadores, oGeneral Lourei-ro dos Santos e outros militares de alta patenteso presenas regulares. Suellentrop (2003,s/p) argumenta que the TV generals () arehired by the networks to lend an air ofauthority to the broadcasts.

    A iconografia da guerra refora a ideiado avano militar. Imagens de tanques, denavios de guerra e de outro aparato tcnicomostra o poderio das foras anglo-america-nas. O logotipo da cobertura (ver fig. 3)contm uma bandeira iraquiana sobre a qualse v uma circunferncia que distorce aimagem. Os sujeitos inquiridos sobre asimbologia televisiva referiram-se seme-lhana com uma lupa ou com uma mira e possvel aluso ao trabalho jornalstico debusca e anlise e ao avano militar.

    At chegada das tropas americanas aBagdade, o logotipo da RTP apresentavatambm, sobre uma barra laranja, as palavrasObjectivo Bagdade, que parecem aludir aoplano militar. O espectador , assim, colo-cado ao lado do exrcito invasor, partilhandocom ele o propsito de atingir a capital doIraque. Tais palavras, aparentemente neutras,em articulao com o foco sobre a ban-deira iraquiana, envolvem tambm os jorna-listas na misso de alcanar Bagdade.Posteriormente, o texto muda para EmBagdade e para Aps Saddam, relevandoa ideia de transio.

    Passados alguns dias sobre o incio daguerra, o centro nevrlgico da cobertura daRTP passa para Bagdade. Os directos deCarlos Fino a partir da cidade fornecem osprincipais enquadramentos da cobertura daguerra. O jornalista fala muitas vezes coma populao local (que mostra uma posioanti-americana) e d conta da destruiocausada: a guerra continua implicvel com

    Note-se que na TV5 no h mudanassignificativas na perspectivao enarrativizao da guerra no Iraque ao longodas semanas analisadas.

    4. RTP: Profissionalismo ou comercia-lismo?

    Durante a transmisso contnua inicialsobre a guerra, a RTP a mais sensaciona-lista das trs cadeias. H uma quase-obses-so pelos directos e uma repetio constantede imagens e comentrios sobre os aconte-cimentos.

    Os primeiros dias so dominados por umaviso militarista da guerra que se relacionacom vrios aspectos da cobertura: a escolhade imagens da guerra a partir de cadeias deteleviso e agncias de informao estrangei-ras; a localizao de alguns jornalistas da RTP,como o enviado especial Armando SeixasFerreira, no porta-avies USS TheodoreRoosevelt; e os comentadores no estdio queso, quase exclusivamente, militares.

    A RTP reproduz frequentemente asemisses da CNN sobre o avano militar noterreno. Na estao americana h uma claratentativa de veicular uma imagem favorveldos soldados dos EUA: estes so mostradosa tratar bem os iraquianos capturados e dadoum grande nfase recepo positiva dosamericanos pelos iraquianos. No entanto, aRTP emite, tambm, excertos da Al-Jaziracomo, por exemplo, as imagens de 77 mortoscivis iraquianos, potencialmente chocantes,no dia 20 de Maro. No mesmo dia, mostra-se, prolongadamente, a tentativa de capturade um piloto americano em Bagdade poriraquianos. dado muito mais destaque aostiros, agitao da polcia e aco em geraldo que nos outros canais.

    Os actores sociais dominantes no retratoque a RTP oferece da guerra nos primeiros

    avitarran-ateM anaiuqarioalupopanatsujniarreugamuedocigrtotcapmIserotcA socintsopurgeserotcessoirvanaiuqarioalupoPsatsilanroJ onerretonseretrpeRserodatnemoC siarutlucsetseuqmesatsilaicepsE

    aifargonocI otuleregusolobms;oatsavedmeregusonerretodsnegamI

  • 32 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBRICO Volume IV

    o seu rosrio de morte e sofrimento(07.04.03). No dia 10 de Abril, por exem-plo, algumas das questes cobertas pela RTPdo conta dos impactos devastadores daguerra: mortes de marines em Bagdade;mortes de civis e militares iraquianos (ima-gens de corpos); pilhagens em Bagdade;destruio em Najaf; situao calamito-sa em Bassor.

    O trabalho de Carlos Fino, muito acla-mado, marcou fortemente a cobertura da RTP.O videofone permitiu ao reprter superar aconcorrncia das grandes estaes, transmi-tindo o incio dos bombardeamentos ameri-canos em Bagdade, naquilo queSantos(2004: 26) designa como ademocratizaodo scoop.

    A guerra foi usada como um forte ins-trumento promocional para a RTP. Empublicidade a si mesma, a empresa passouinmeras vezes o anncio abaixo.

    Spot promocionalA RTP foi a primeira estao domundo a transmitir a guerra em di-recto O mundo parece estar adesabar No centro do furaco, aRTP tem uma equipa de luxo.

    Note-se o hiperblico aproveitamento dasituao para auto-engrandecimento. Ao longodo perodo analisado, a informao na RTP, em vrios momentos, profundamente auto-referencial. Como se pode ver na fig. 3, noTelejornal de 7 de Abril, a notcia no oavano das tropas da coligao, mas o factoda RTP os ter testemunhado.

    Figura 3:Imagem da RTP, 7 de Abril de 2003

    Outro exemplo deste discurso auto-centrado do dia 16 de Abril: RTP des-cobre militar iraquiano na clandestinidade emBagdade. Durante o conflito no Iraque houtros dois episdios que tornam a prpriateleviso o centro das atenes. Trata-se deagresses a dois jornalistas da RTP, CarlosFino e Lus Castro, que foram largamenteexploradas pela RTP para promover o suacobertura.

    A tabela 3 resume as principais carac-tersticas da imagem da guerra na RTP eapresenta a sua meta-narrativa.

    Concluses

    O presente estudo identificou trs repre-sentaes da guerra no Iraque substancial-mente distintas. Este tipo de comparaopermite constatar a existncia de alternativasa uma forma particular de re-construir arealidade e torna mais evidente a naturezano-essencial e no-necessria do discurso,quer verbal quer iconogrfico.

    A imagem tende a criar a aparncia deuma maior veracidade e realismo do queas palavras. No entanto, a diversidade deretratos da guerra confirma as conclusesde outros investigadores de que, mais doque fornecer informao nova e indepen-dente, as imagens apoiam uma narrativapreviamente construda e reforam umquadro interpretativo pr-existente (Griffin,2004).

    frequente considerar-se que h doisfactores que tm uma influncia significativana imagem meditica das situaes de guer-ra: as opes governamentais do pas em queesto baseados os rgos de comunicaosocial e as preferncias das audincias. Oprimeiro factor parece ter tido mais peso nareconstruo discursiva da guerra pelascadeias de televiso. O apelo ideolgico dopatriotismo, no caso britnico reforado pelaparticipao das suas tropas na guerra, terimpulsionado os profissionais de informaoa veicularem uma imagem consonante como posicionamento oficial do seu pas.

    No caso do Reino Unido, as prefernciasdas audincias tero, realmente, sido poucoimportantes, dado que, perante um pblicolargamente contrrio guerra, a BBC am-

  • 33JORNALISMO

    plificou uma imagem militarista da interven-o que a neutralizou ideologicamente. Nocaso da TV5, a posio oficial coincidiu coma posio popular. No ter havido, portanto,grandes dilemas ideolgicos. No caso por-tugus, a audincia poder ter tido algum pesoj que, como vimos, a estao de televiso

    no se comprometeu completamente com olado ocidental do conflito, preferido pelogoverno. Ter sido o nico dos trs canaisque convidou disseno relativamente aogoverno, se bem que a BBC tambm poderter motivado a crtica na parte final do perodoanalisado.

    Tabela 3: Traos dominantes da representao da guerra no Iraque na RTP

    avitarran-ateM odnumoaarreugaartsomPTR

    serotcA anaiuqarioalupop;sonaciremaseratiliM ;anaiuqarioalupoP>=sonaciremaseratilimsatsilanroJ onerretonseretrpeRserodatnemoC seratilimsetseuqmesatsilaicepsE

    aifargonocIedmumocedadilaniferegusolobms;ratilimoiredopmeregussnegamI

    satsilanrojeseratilim olobms;oatsavedmeregusonerretodsnegamI>=oisnart,anadumeregus)maddaSspA(

  • 34 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBRICO Volume IV

    Bibliografia

    ACRIMED (Sem Autor) Service public,20 mars: informer ou tenir lantenne?, 21Maro 2003, disponvel em http://www.acrimed.org/article990.html, acesso em10.10.04.

    Bennet, Lance, News. The Politics ofIllusion, New York & London, Longman,1988.

    Cardiff University, Too close forcomfort?: The role of embedded reportingduring the 2003 Iraq war: Summary report,Cardiff, Cardiff School of Journalism, Mediaand Cultural Studies, 2004.

    Chafetz, Josh, The disgrace of theBBC, Weekly Standard, 25 Agosto 2003,disponvel em:http://www.weeklystandard.com/Content/Public/Articles/000/000/003/005iqpvz.asp,acesso em 19.11.04.

    Chomsky, Noam, Media Control,Westfield, Open Media, 1991.