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IVETE MIRANDA PREVITALLI
CANDOMBLÉ: Agora é Angola
1
Foto: Syntia Alves – Inzo dia Roxe Mokumbo ni Dandalunda
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais, sob orientação da Profa. Teresinha Bernardo.
POTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
2006 1 Nos candomblé de nação angola, há um toque de atabaque que se chama muzenza e a coreografia que os filhos de santo desenvolvem ao som deste ritmo é muito peculiar. Os braços formando um ângulo de 90 graus se agitam fazendo subir e descer os cotovelos, enquanto os pés, um de cada vez, sem se levantarem do chão se arrastam em movimentos rápidos e repetitivos para os lados. Essa dança sugere uma galinha de angola ciscando no chão ao mesmo tempo em que abre e fecha suas asas, reproduzindo um gracioso balé.
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Banca Examinadora
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Este trabalho teve apoio financeiro de CNPq
Para Heitor Barbosa Previtalli.
Agradecimentos
Agradeço a Professora Dra. Teresinha Bernardo, orientadora e amiga que com
paciência e dedicação, ensinou-me a pesquisar nestes anos que estivemos juntas desde
minha iniciação científica até o mestrado.
Aos professores Eliane Hojaij Gouveia e Acácio Sidinei A. Santos que
compuseram a mesa de qualificação e que competentemente contribuíram de maneira
positiva para o aperfeiçoamento deste trabalho.
À minha filha Luciana que esteve sempre presente me estimulando e acreditando
no meu trabalho, além de dar consultoria nos escritos em língua inglesa.
Ao meu filho Amílcar pela colaboração com as questões das leis em tempo de
escravidão.
Ao meu filho Daniel pelo suporte em informática que em muitas horas fez-me
perder a razão.
Ao Walter pela paciente leitura preliminar, pelos achados nas bibliotecas e por
suas opiniões precisas.
À filha-de-santo, amiga e colega de academia Syntia Alves, que nunca me
deixou esquecer prazos, e esteve presente em todos os momentos, sempre estimulando e
oferecendo todos os seus préstimos.
À Lajara Correa amiga que sempre solícita acudiu-me com as mais diversas
informações sobre a comunidade do candomblé e a comunidade negra de Campinas.
À Letícia Reis Vidor, doutora, antropóloga, filha de santo e amiga, que nos
intervalos dos ritos me auxiliou a pensar e organizar o trabalho.
À Maria José Sanches makota de minha casa de candomblé que ajudou-me com
os textos em francês.
À Melissa Barreti que muitas vezes acolheu-me em sua casa.
Aos meus filhos-de-santo que tiveram paciência com a diminuição da minha
disponibilidade como sacerdotisa e que continuaram assumindo as atividades relativas
aos inquices e às entidades espirituais, além da administração da casa.
Aos meus pais em especial à minha mãe que nunca deixou de me estimular
mostrando o caminho que eu já havia percorrido.
Ao tateto dia inquice Ubiacylê, à maeto dia inquice Corajacy, ao tateto dia
inquice Gitalanguange, à mameto dia inquice Dangoroméia, ao tata Tawá, ao baba
Tologi, e a todo povo do santo que em entrevistas ou conversas informais ofereceram
dados preciosos para a realização deste trabalho.
Aos meus professores na graduação e na pós das Ciências Sociais da PUCsp,
que sempre me incentivaram a ir em frente na carreira acadêmica elogiando e lapidando
meus trabalhos.
Ao CNPq órgão que financiou este trabalho durante dois anos.
Em especial agradeço a Inkossi o grande guerreiro que me ensina a vencer as
lutas da vida e o carinho de pai Congo que nunca deixou de me acolher.
A todos aqueles que comigo tem caminhado e que de alguma forma ajudaram-
me a escrever este trabalho, meus sinceros agradecimentos.
.
Resumo Esta pesquisa trata dos candomblés de nação angola de Campinas, e analisa-os sob a perspectiva do sincretismo religioso e do ideal de pureza. Entre os aspectos analisados encontram-se: a observação do espaço que revela a passagem da umbanda para o candomblé além da acomodação de novos ritos que foram absorvidos por um dos terreiros pesquisados; a formação do parentesco que se estrutura conforme a proibição do incesto e também como as características da família moderna são encontradas atualmente na família de santo inclusive o transito de seu filhos; a Lavagem do adro da Catedral Metropolitana de Campinas que se constitui em uma festa de rua, apesar de se revelar como uma manifestação de uma linhagem, não deixa de proporcionar visibilidade para o candomblé campineiro independente da nação a que pertence. Além disso, torna o negro visível numa sociedade racista, pois atrai para a praça ativistas e as mais diversas manifestações culturais afro-brasileiras. Abstract This research is about candomblés of the Angola Nation from Campinas, and analyze them under the perspective of religious syncretism and the ideal of purity. Among the analyzed aspects are: the observation of space that reveals the transition from umbanda to candomblé besides the accommodation of new rites that were absorbed by one of the studied terreiros; the constitution of relashionships that are structured according to the forbiddance of incest and also how the characteristics of the modern family are currently found in the família de santo including the transit of its followers; the Lavagem of Campinas Metropolitan Cathedral´s steps, which is a street festivity and even though it reveals itself as a lineage´s manisfestation, it still provides visibility for the candomblé of Campinas independent of the nation to which it belongs. Besides, it makes the black people stand out in a racist society, because it atracts to the public eye activists and the most diverse afro-brazilian cultural manifestations.
Sumário
INTRODUÇÃO 1
CAPÍTULO I:
Nascimento e estabelecimento dos terreiros 20
Campinas 21
CAPÍTULO II:
Da umbanda para o candomblé: o espaço conta a história 34
As casas de angola 41
Três Oguns: uma só terra 42 Outros usos do espaço 64
As Casas de Santo e a Casa de Egungum. 66
O Recanto da Umbanda. 73
O Arranjo Entre As Diversas Nações. 75
CAPÍTULO III:
Elaboração do Parentesco – Formação e Organização das Famílias-de-santo 81
A aliança 105
CAPÍTULO IV:
A Festa 112
Vencendo A Intolerância: Murmúrio de uma festa afro-brasileira 118
Lavagem: festa na praça - Uma etnografia 123
A Lavagem e o Ideal de pureza 129
CONSIDERAÇÕES FINAIS 135 ÍNDICE E CRÉDITOS DAS ILUSTRAÇÕES 145
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 148
INTRODUÇÃO
Esta dissertação trata do candomblé angola circunscrito na cidade de Campinas.
Neste trabalho, proponho analisar alguns aspectos do candomblé angola de
Campinas, mostrando a sua formação, a elaboração do espaço, a constituição das
principais famílias de santo, o trânsito de filhos de santo, as rivalidades e alianças e a
lavagem do adro da Catedral Metropolitana, sob a perspectiva do sincretismo religioso e
do ideal de pureza.
Embora não existam dados quantitativos a respeito de quantos terreiros de
candomblé há na região de Campinas nem a que nações pertencem, pude perceber que
são os terreiros de nação angola os que têm mais visibilidade, os que são mais
numerosos e os mais influentes nessa cidade.
O candomblé de nação angola é valorizado em Campinas por seus adeptos, não
só por pessoas anônimas, mas também por ativistas do movimento negro e por políticos
que participam dos congressos sobre religiões de matrizes africanas1, dos encontros de
valorização da cultura banta e de atos públicos, como o que ocorre nos sábados de
aleluia, desde 1985, isto é, a lavagem das escadarias da igreja Nossa Senhora da
Conceição, catedral Metropolitana de Campinas. Nota-se, assim, que este tipo de
candomblé goza de prestígio na cidade.
1 Entre as religiões de matrizes africanas encontram-se as diversas nações de candomblé, os batuques, os tambores de mina, os xangôs, a umbanda, o candomblé de caboclo, e todas as manifestações religiosas que têm em sua composição teológica elementos advindos de religiões que os diversos grupos africanos trouxeram para o Brasil.
1
O meu interesse por essa expressão religiosa data de algum tempo, mais
precisamente, sobrevém do meu envolvimento com o candomblé angola e também do
meu estudo sobre as religiões afro-brasileiras. Ao pesquisar sobre o candomblé,
observei que a maior parte da literatura se referia, diretamente, ao candomblé queto,
enquanto quase não havia informações sobre o “angola”.
O candomblé se organizou em torno de “nações” que se originaram
principalmente dos grupos de negros bantos e dos sudaneses que chegaram ao Brasil,
através da diáspora africana. Edson Carneiro escreve que os escravos que vieram para o
Brasil provinham de muitas tribos e que cada uma delas tinha sua religião em particular.
A diversidade era tanta que, segundo Carneiro, “O conde dos Arcos achava prudente
manter as diferenças tribais entre os negros, permitindo os seus batuques, porque
“proibir o único ato de desunião entre os negros vem a ser o mesmo que promover o
governo, indiretamente, a união entre eles””. (1991, p.16,17)
Porém, parece que o Conde se equivocou, uma vez que da união de todas essas
religiões surgiram diversas expressões religiosas afro-brasileiras de norte a sul do
Brasil, que se assemelham “ao menos pelas suas características essenciais.” (Carneiro;
1991)
O Tráfico trouxe escravos de Guiné, Angola e da Costa da Mina e o
denominador comum nesse tipo de escravidão foi a preocupação em “anular as
peculiaridades nacionais das tribos africanas.” Assim, um número considerável de
culturas africanas foram trazidas para o Brasil e ressignificadas. Além disso, vale
lembrar o tráfico interno, após 1850, que trouxe escravos de todas as regiões do país
que, por sua vez, pertenciam às várias etnias.2
2 Edson Carneiro escreveu que “a mineração absorveu, indistintamente, todo braço escravo ocioso nas antigas plantações de açúcar do litoral; muitos negros da Costa da Mina, quando a corrida do ouro arrefeceu, ficaram na Bahia, outros foram vendidos para Pernambuco e para o Maranhão; a maioria dos
2
Do intercâmbio cultural dos escravos e ex-escravos surgiram as diversas
modalidades de religiões afro-brasileiras, dentre elas, o candomblé, o batuque, o
tambor de mina, o xangô, entre outras.
As nações de candomblé surgiram dos antigos terreiros baianos, fundados por
sacerdotes africanos – angolas, congos, jejes, nagôs, - iniciados em suas religiões
tradicionais, que ensinaram a norma dos ritos e o corpo doutrinário para as comunidades
que se formavam em torno da religiosidade que conservava “certos traços da cultura,
particularidades de dança, música, de canto, de organização de festas, que os
identificavam com a região de origem) .” (Carneiro, Antologia do Negro Brasileiro; p.
263). Conforme Vivaldo da Costa Lima, as nações foram “aos poucos perdendo sua
conotação política para se transformar num conceito quase exclusivamente teológico.
Nação passou a ser, desse modo, o padrão ideológico e ritual...” ( 2003; p. 29) dos
antigos terreiros de candomblé da Bahia fundados por africanos.
As primeiras obras referentes a um estudo mais criterioso sobre a cultura dos
africanos no Brasil surgem na primeira metade do século XX. Em 1906, Nina Rodrigues
escreveu “Os Africanos no Brasil”, publicado em 1933. Mais tarde, Artur Ramos e
Edson Carneiro também se voltaram para os estudos das manifestações culturais afro-
brasileiras, dentre elas as diversas nações de candomblé, gerando obras que até hoje são
indicadas para quem se interessa pelo tema.
Nota-se, porém, que, quando havia alguma referência sobre o angola, era sempre
alguma observação pejorativa e, ainda hoje, essa expressão religiosa, quando comparada
ao queto, se situa em uma categoria inferior.
escravos antes empregados na minas serviu às culturas de café e do algodão ou aos novos empreendimentos pecuários do Sul; as cidades reuniram elementos de todas as tribos, quer agregados à camuflagem do senhor, quer alugados a particulares, quer trabalhando por conta própria, quer engajados em explorações de tipo industrial.” (1991, p.18)
3
Tais estudos posicionavam as manifestações religiosas oriundas dos bantos
como as mais pobres de todas as nações de candomblé. Concebiam-se os negros de
angola como ignorantes adoradores de lascas de pedra, imitadores da estrutura religiosa
nagô, além de serem sincréticos, pois misturavam às suas crenças qualquer elemento
religioso que conhecessem. 3
Posteriormente, Roger Bastide, nos anos 50, escreveu sobre o candomblé,
contudo, sem dar maior atenção ao de origem banta, prestigiando mais os candomblés
queto.
Desta forma, os autores pioneiros que se ocuparam dos estudos sobre o
candomblé, fizeram apenas algumas observações sobre os de nação banta e, por causa
3 Falando sobre os cambindas, Luciano Gallet escreve que: “considerados pelos outros, inferiores, imitadores e ignorantes. Desconhecem até o próprio idioma, complicado e difícil, e o misturam com termos portugueses. Adoram as pedras, os paralelepípedos e as lascas de pedra.” (Gallet, Luciano. Estudos de Folclore. Edt. Carlos Wehrs & Ltda. Rio de Janeiro, R.J. 1934. p.58). Ainda sobre os negros bantos, Nina Rodrigues afirma que: “decorrido meio século após a total extinção do tráfico, o fetichismo africano constituído em culto apenas se reduz ao da mitologia jeje-iorubana. Angolas, guruncis, minas, haussás, etc., que conservam suas divindades africanas, da mesma sorte que os negros crioulos, mulatos e caboclos fetichistas, possuem todos, à moda dos nagôs, terreiros e candomblés em que as suas divindades ou fetiches particulares recebem, ao lado dos orixás iorubanos e dos santos católicos, um culto externo mais ou menos copiado das práticas nagôs.”( Rodrigues, Nina. Os africanos no Brasil. Edita. UnB ,Brasília, D.F. 7a edição, 1988, p. 216).
Por outro lado, Arthur Ramos embora considerasse também que as “sobrevivências religiosas e mágicas de origens bantu existiam deturpadas e transformadas” (1961: p. 361), escreveu um capítulo intitulado:“sobre as culturas bantu”, no 1o volume da coleção de sua obra chamada “Introdução à antropologia brasileira”. Nesse capítulo faz uma ressalva à afirmação de Nina Rodrigues quanto à quantidade de negros bantos existentes na Bahia, que para Nina não passavam de “uns três Congos e alguns angolas”. Já para Ramos os bantos eram encontrados em grande número, mesmo na Bahia (1961: p. 357).
Outro autor, Edson Carneiro, refere-se aos candomblés angola e congo tanto no livro Candomblés da Bahia, quanto no Religiões Negras. Carneiro escreveu que: “Pode-se dizer que, na Bahia, os negros bantos esqueceram os seus próprios orixás.” (1991, p,134). E quando escreve sobre a formação dos candomblés de caboclo, diz que : “foi a mítica pobríssima dos negros bantos que, fusionando-se com a mítica igualmente pobre do selvagem ameríndio, produziu os chamados candomblés de caboclo na Bahia.” ( 1991, p. 62).
Carneiro, Edson. Religiões Negras. Negros Bantos. Edita . Civilização Brasileira , 3a edição. Rio de Janeiro, R.J. 1991. Candomblés da Bahia. Edita. Civilização Brasileira, 8a edição. Rio de Janeiro, R.J. 1991.
Ver ainda: Carneiro Édison. Cartas de Édson Carneiro a Artur Ramos. Edita . Corrupio, São Paulo. S.P. 1987.
Querino, Manoel. Costumes Africanos no Brasil.Edita Massangana, 2a edição. Recife. Pernambuco. 1988.
4
da baixa qualificação dada a esta cultura, os trabalhos posteriores trataram dos
candomblés queto, deixando de lado os de nação angola.
Prandi, em 1992, escreveu que “o candomblé nagô4 pode contar, além do
prestígio, com muitas fontes escritas brasileiras, além de uma etnografia produzida
sobre o culto dos orixás da Nigéria e do Benin. Nada semelhante existe para o
candomblé angola, a não ser o ensino do quicongo oferecido pela Universidade
Federal da Bahia”. (Prandi, 1991; p. 20). O mesmo autor comenta o discurso feito por
Esmeraldo Emérito de Santana, representante da nação angola no Encontro de Nações
de Candomblé, promovido em Salvador pelo Centro de Estudos Afro-Asiáticos da
Universidade Federal da Bahia em 1981...: “Aqui faço um apelo, já que existe um
centro de estudos, para que pesquisem o angola. Não há livros sobre o angola. E tem
mais terreiros de angola na Bahia do que de queto, de jeje, de qualquer nação” (Lima
et al., 1984:41, In Prandi, 1991; p.20).
Portanto, o principal argumento que pode justificar esta dissertação é a falta de
pesquisa sistemática sobre o candomblé angola. É importante ressaltar, ainda, que,
mesmo havendo preconceito sobre o candomblé de origem banta, o candomblé angola
de Campinas é majoritário e vem se fortificando perante seus adeptos, o movimento
negro e outras instituições.
A produção etnográfica sobre o candomblé elegeu para seus estudos antigas
casas de candomblé queto da Bahia, que foram preferidas por preencherem os critérios
necessários de pureza que as tornavam melhores que as outras ditas mais miscigenadas
e, portanto, impuras. Segundo Beatriz Góis Dantas “a ideologia da pureza pressupõe a
existência de um estado original, uma espécie de reduto cultural preservado das
influências perturbadoras de elementos estranhos”... (Dantas, 1988; p. 145)
4 Prandi quando fala de candomblé nagô se refere à nação queto.
5
A pureza, nesse sentido, presume que haja um estoque original de bens
simbólicos, uma continuidade da tradição e fidelidade à África, requisitos para a “marca
dos puros”. É lógico que as origens existem, porém numa África distante no tempo e,
portanto mítica. O candomblé foi composto por diversos povos, por isso, não tem uma
origem única, embora preserve mais traços de uma ou outra cultura originária.
Desta forma, mesmo que esses terreiros baianos tenham nascido de mães
africanas ou de seus descendentes, não foi somente este fator que os caracterizou como
os mais puros e que os colocou em evidência.
Embora a pureza fosse uma categoria nativa utilizada para expressar as
rivalidades entre as diversas nações, na disputa pelo mercado de bens simbólicos, a
influência nos meios religiosos afro-brasileiros dos antropólogos apegados aos
africanismos, segundo Dantas, “transformou esta categoria nativa em categoria
analítica, prática” que cristalizou traços culturais que passaram a ser representações
da “expressão máxima da africanidade” (Dantas, 1998; p.148)
Prandi, estudando os candomblés de São Paulo, entende que: “A produção
etnográfica sobre estes candomblés prestigiados por sua publicidade passou também,
em anos recentes, a oferecer modelos legitimamente puros da religião dos orixás para
aquelas casas de criação mais recente, ou de origem de memória perdida”. (Prandi,
1991,17)
O candomblé de São Paulo somente se torna expressivo a partir dos anos 60
(Prandi; 1991. Wagner; 1995) e, por isso, muitas casas se servem dos modelos baianos
para se espelharem.
Ao participar do projeto “Religião da diáspora negra: Continuidades e rupturas”
de autoria da Dra Teresinha Bernardo, para o qual realizei a coleta de histórias de vida
6
das mães-de-santo mais velhas de São Paulo, percebi, ainda em uma observação
preliminar, que o candomblé paulista procura uma legitimidade que vai ser encontrada
por meio da descendência a uma destas casas antigas de queto ou pela proximidade
com a África, obtida através da viagem à Nigéria.
Por outro lado, em Campinas, os terreiros angolas são fortes representantes das
religiões afro-brasileiras, mesmo conhecendo a existência de um preconceito banto, que
ainda hoje tem muito peso entre os adeptos do candomblé; ao contrário do que se
poderia esperar ao observar o candomblé paulistano, o candomblé campineiro de nação
angola elaborou uma reação à soberania nagô, que começou com a delimitação das
fronteiras da nação angola. 5
À primeira instância, o que parece é que a mesma categoria analítica utilizada
para definir a pureza nagô, definida por Beatriz Góis Dantas, é a que o candomblé
angola de Campinas está utilizando, a fim de marcar suas diferenças e de firmar sua
identidade.
No entanto, com um olhar mais cauteloso, percebi que, num primeiro
movimento, as casas paulistas procuravam uma tendência homogeneizante em direção à
nação queto, em decorrência do ideal de pureza que se lhe atribuía. Atualmente em
Campinas, e numa observação preliminar, pude averiguar que, também em São Paulo,
5 Isso pode ser percebido em algumas casas de candomblé angola de Campinas pela preocupação em,
por exemplo, repercutir os atabaques apenas em toques que são reconhecidos da nação angola, em
somente cantar nas festas em alguma língua banta, em separar os inquices (divindades bantas) dos orixás
(divindades queto)., mediante também dos vocabulários em banto colados nos murais dos terreiros e que
servem para o aprendizado dos filhos-de-santo, os nomes das casas que foram transformados de nomes
em língua ioruba para nomes bantos, entre outras evidências que têm o sentido de delimitar as fronteiras e
o fortalecimento da identidade.
7
surge um segundo movimento que se caracteriza, utilizando as palavras de Hall, como
uma” proliferação subalterna da diferença”. (Hall; 2003)
O candomblé paulista, tanto em Prandi quanto na pesquisa que realizei para o
trabalho de Bernardo com as mães-de-santo mais antigas de São Paulo, parecia
“quetetizar-se”, porém, paradoxalmente, notei, por intermédio da presença em
congressos de cultura banta e reuniões com a comunidade de candomblé campineira,
que a nação angola está interessada em firmar as diferenças. Porém não se trata de uma
diferença binária em que existe o absolutamente eu e o absolutamente outro, seria
conforme o pensamento de Hall “uma ‘onda’ de similaridades e diferenças, que recusa a
divisão em oposições binárias fixas.” (2003; p. 60)
Neste caso, o candomblé de nação angola procura retornar ao particular, ao
específico, que o torna diferente, mas não pode deixar intactas as formas antigas
tradicionais. Então, ao mesmo tempo em que se torna um sítio de resistência também
traduz e se ressignifica, tornando evidente que a tradição não precisa necessariamente
ser algo fixo, mas que busca um diálogo com o passado e a comunidade e este diálogo
conduz à afirmação da identidade. Contudo, isto não se dará sem conflitos e acordos,
sem disputas e consensos.
Para designar este tipo de diferença, Hall utiliza o termo Derrida “ différance
que tanto pode ser “marcar diferença” [to differ], quanto “diferir” [ to defer]. O
conceito se funda em estratégias de protelação, suspensão, referência, elisão, desvio,
adiamento e reserva.” ( 2003; p.92)
Conforme observei, há nos quatro terreiros que fizeram parte de minha pesquisa
uma preocupação em valorizar a nação angola para si e perante a sociedade religiosa
afro-brasileira. Para que isso ocorra, os pais e mães-de-santo têm se empenhado em
8
recuperar as marcas autênticas do angola e, em alguns casos, retirar elementos estranhos
à nação.
Para que seja possível a "recuperação" do angola, acreditam os adeptos que
existe um estoque original de bens simbólicos, que hoje está numa África mítica, uma
vez que a diáspora transformou os elementos africanos constitutivos desta nação. Desta
forma, dicionários de língua banta são muito comuns a estas comunidades, sugerindo
conforme as palavras de Hall, “que a cultura não é apenas uma viagem de
redescoberta, uma viagem de retorno. Não é uma ‘arqueologia’. A cultura é uma
produção.” (2003; p.44).
Neste contexto, a procura da valorização da cultura banta surge como
instrumento que mobiliza e justifica a nação angola, podendo ainda agregar, no sentido
da afirmação identitária da população afro-descendente campineira, outros movimentos
culturais e políticos afro-brasileiros. Neste caso estão inseridos os grupos de capoeira,
de jongo, de tambor de crioula, que acompanham, no sábado de aleluia, a lavagem das
escadarias da Catedral Metropolitana de Campinas, realizada pelo candomblé angola.
Para a realização da pesquisa, acho relevante expor as dificuldades e facilidades
que minha condição de iniciada gerou para a de pesquisadora. Ao mesmo tempo em que
a minha posição de adepta possibilitou ao trabalho uma perspectiva interna do
candomblé, causou-me algumas dificuldades, quando tive que olhar de fora para essa
expressão religiosa da qual faço parte. A questão foi tornar estranho aquilo que já há
muito tempo me era familiar.
Vagner Gonçalves, no livro “O antropólogo e sua magia”, diz que:
“Para alguns antropólogos que têm experiências de
aproximação e familiaridade com as religiões afro-brasileiras
9
(como simpatizantes, freqüentadores ocasionais ou adeptos) em
períodos anteriores à realização da pesquisa etnográfica, a
observação participante pode assumir outros significados, pois
para eles, a imersão no campo não tem a função, propriamente,
de proporcionar a familiaridade com o universo dos seus
observados, mas tornar aquilo que aparentemente lhes é
“familiar” em “estranho”. Se por um lado o antropólogo pode
contar com maior segurança em estabelecer contato e conviver
no ambiente da pesquisa, pois parte do código de comportamento
do grupo ele conhece, por outro, seu esforço será redobrado para
não restringir a pesquisa a relações e posições mais
contingenciais à sua própria experiência de vida na religião".
(2000; p. 69)6
Desta forma, o fato de eu ser iniciada, por um lado, facilitou a realização da
observação etnográfica, posto que eu conheço a expressão religiosa e, por conseguinte
suas regras, por outro lado, dificultou a observação mais atenta de detalhes que
pudessem ser importantes para uma descrição minuciosa e interpretativa. Além disso,
tive que tomar cuidado com o “jeito de olhar”, já que o olhar curioso de observador
etnográfico poderia ser tomado por bisbilhotice a fim de conhecer os “segredos da
casa”. Destarte, procurei voltar diversas vezes em cada casa, para que pudesse observar
com os olhos da curiosidade de pesquisadora aquilo que me era familiar, ao mesmo
tempo em que o ato de repisar me permitia olhar sem ser inconveniente.
Na verdade, eu estava ali desempenhando outro papel, ou seja, eu era a aprendiz
de antropóloga e procurava mostrar isso indo às visitas com roupas ocidentais e sem
6 Silva, Vagner Gonçalves da. O antropólogo e sua magia. Edusp, São Paulo, SP. 2000,
10
utilizar símbolos que pudessem me associar ao candomblé. Deixei claro para os pais e
mães-de-santo que, no momento das entrevistas, eu estava realizando uma pesquisa
sobre o candomblé de Campinas, proposta aceita por todos. Apesar disso, jamais
deixaram de me tratar como uma “de dentro”, ora chamando-me pela “dijina" 7, ora
expondo-me segredos, pedindo sigilo, dizendo que confiavam em mim, em virtude de
minha posição religiosa.
O distanciamento entre a adepta e a pesquisadora que, nas entrevistas, se deu
tão-somente pelo abandono dos símbolos religiosos afro-brasileiros, não foi assim tão
simples, quando das idas às festas. Em tais ocasiões, não foi possível participar sem a
vestimenta típica de baiana, o que me causou alguns constrangimentos para tirar fotos,
porque eu era vista ali, antes de tudo, como sacerdotisa vestida com roupas incômodas
que tolhiam meus movimentos; ao mesmo tempo, era estranho estar paramentada com a
máquina fotográfica à mão.
Para a realização do trabalho de campo, programei uma observação sistemática,
durante um ano, que começou no sábado de aleluia de 2004 com a “lavagem” da
Catedral e terminou com o mesmo evento, em 2005. Durante esse período, fui às
principais festas, saídas de muzenza8, de makotas9, de tatas10, festa de caboclo,
confirmação de kota11, kudiá mutue12 e, como já disse, à lavagem da Catedral. Além
disso, participei de encontros com a comunidade de candomblé de Campinas que
promoveu discussões sobre legalização e visualização dos terreiros, sobre os problemas
com a polícia e com outras religiões, principalmente, com as neopentecostais.
7 Nome religioso recebido por aquele que é iniciado no candomblé angola 8 No candomblé de rito angola-congo, filha-de-santo. 9 Cargo feminino correspondente ao cargo de equeji no candomblé queto. Acolita dos orixás, quando descem nas filhas-de-santo. 10 Cargo masculino no candomblé de rito angola correspondente ao ogã no candomblé queto. 11 Irmã mais velha, com mais de sete anos de feita. 12 Cerimônia de dar de comer à cabeça.
11
A minha pesquisa se concentrou em quatro terreiros que foram selecionados,
levando-se em conta os seguintes critérios: pertencer à nação angola, antiguidade, ter
expressividade para o povo de santo e ter reconhecimento na cidade.
Terreiro 1
Nome do terreiro: Inzo dia Roxe Mokumbo ni Dandalunda
Data de fundação: dezembro de 1981
Pai-de-santo: Antonio Carlos Rodrigues da Silva
Dijina: Tateto dia Nkisi Ubiacyle
Data da iniciação: ano - 1971
Terreiro 2
Nome do terreiro: Inzo Musambo dia Hongolo
Data de fundação: abril de 1974
Mãe-de-santo: Eunice de Souza
Dijina: Mameto dya Nkisi Edangoroméia
Data de iniciação: 18 de janeiro 1984
Terreiro 3
Nome do terreiro: Inzo dia Musambu Kaiango n’boti Ofulá
Data de fundação: 20 de Janeiro de 1983
Mãe-de-santo: Antônia Lima Duarte
Dijina: Mameto dya Nkisi Corajacy
Data da iniciação: 15 de fevereiro de 1981
12
Terreiro 4
Nome do terreiro: Ile Axé Arolê
Data de fundação: 8 de dezembro de1986
Pai-de-santo: José Estrivo
Dijina: Tateto dya Nkisi Odé Gitalanguangi
Data de iniciação: 13 de maio de 1980
A teoria escolhida para interpretar os dados selecionados das histórias de vida dos
pais e mães-de-santo foi a da memória. De acordo com Pierre Nora, diferentemente da
história que é uma representação do passado, “a memória é um fenômeno sempre atual,
um elo vivido no eterno presente... Porque é afetiva e mágica...” (Nora, 1993, p. 9)
Para a memória é fundamental o envolvimento com o grupo afetivo, pois segundo
Halbwachs:
“Outros homens tiveram essas lembranças comigo. Muito
mais, eles me ajudaram a lembrá-las: para melhor me recordar,
eu me volto para eles, adoto momentaneamente seu ponto de
vista, entro em seu grupo, do qual continuo a fazer parte, pois
sofro ainda seu impulso e encontro em mim muito das idéias e
modos de pensar a que não teria chegado sozinho, e através dos
quais permaneço em contato com eles.” (1990, p.27)
Seguramente, ao trabalhar com a memória, se tem a lembrança que é, ainda
segundo Halbwachs,
“em larga medida uma reconstrução do passado com ajuda
de dados emprestados do presente e, além disso, preparada por
13
outras reconstruções feitas em épocas anteriores e de onde a
imagem de outrora manifestou-se já bem alterada. Certamente,
que se através da memória éramos colocados em contato
diretamente com algumas de nossas antigas impressões, a
lembrança se distinguiria, por definição, dessas idéias mais ou
menos precisas que nossa reflexão, ajudada pelos relatos, os
depoimentos e as confidências dos outros, permite-nos fazer uma
idéia do que foi nosso passado.” (Halbwachs.1990; p.71)
Neste sentido, a memória é viva, uma vez que o ato de lembrar dispõe de um
movimento que sai do presente, vai para o passado, retornando novamente para o
presente. Deste modo, trabalhar com a memória é trabalhar com reconstrução que se
efetiva mediante este movimento de ir e vir tal qual uma lançadeira, isto é, tem-se
elementos do presente incorporados aos do passado.
Embora lembrar seja o ato mais importante no estudo da memória, quando
lidamos com grupos discriminados, como é o caso do candomblé, o esquecimento
também tem que ser considerado, visto que por meio dele podemos identificar a
presença de conflitos. Tais conflitos são muitas vezes revelados por intermédio de
lacunas nas histórias de vida que surgem como esquecimentos de algumas situações ou
de épocas da vida.
A memória das minorias tem tanto continuidades quanto rupturas. A estas últimas,
Pollak vai chamá-las de memórias subterrâneas, porque é uma memória que não pode
ser revelada, por causa do preconceito e das perseguições; fica, pois, restrita à
comunidade afetiva.
14
Uma característica da memória subterrânea é que ela somente vem à tona
quando surge uma brecha nas relações sociais, especialmente as políticas, e por ela ser
assim, podemos outorgar-lhe um caráter de resistência.
Segundo Pollak,
“o longo silêncio sobre o passado, longe de conduzir ao
esquecimento, é a resistência que uma sociedade civil impotente
opõe ao excesso de discursos oficiais. Ao mesmo tempo ela
transmite cuidadosamente as lembranças dissidentes nas redes
familiares e de amizades, esperando a hora da verdade e da
redistribuição das cartas políticas e ideológicas.” (Pollak,1989,
p.5).
No caso do candomblé, é muito comum a presença deste tipo de memória, já que
a origem dessa manifestação religiosa está vinculada à população afro-descendente, e o
racismo que se impinge contra esta população também se estende aos elementos de sua
cultura.
Uma das formas de localizar a memória subterrânea é por meio da história oral.
Michael Pollak, ao se ocupar da memória de grupos “segregados, excluídos e
minorias” diz que “para poder relatar seus sofrimentos, uma pessoa precisa antes de
mais nada encontrar uma escuta.” (Pollak, 1989; p. 6). Desta forma, a história oral
revela-se uma importante técnica de pesquisa com minorias sociais.
Na história de vida há um núcleo forte que vai dar consistência ao discurso e ao
qual o sujeito vai sempre retornar. Nas de longa duração, conforme Pollak:
“a despeito de variações importantes, encontra-se um núcleo
resistente, um fio condutor, uma espécie de leitmotiv em cada
15
história de vida. Essas características de todas as histórias de
vida sugerem que estas últimas devem ser consideradas como
instrumentos de reconstruções da identidade, e não apenas como
relatos factuais.” (Pollak, 1989; p. 12).
Esta reconstrução da identidade do grupo é um ponto bastante importante para o
candomblé angola campineiro que hoje luta contra o preconceito que o próprio povo do
santo, aliado a alguns intelectuais, possui em relação a este tipo de expressão religiosa.
Neste sentido, a história de vida transforma-se numa técnica excelente para realização
deste trabalho.
O critério assumido para determinar quantas histórias de vida deveriam ser
coletadas foi aquele conhecido como “bola de neve”, isto é, foram os entrevistados do
primeiro grupo que indicaram os outros que os sucederam até que se repetiram as
indicações, terminando assim as entrevistas. Além disso, muitos dados foram frutos da
convivência com os sacerdotes, por causa de minha condição de iniciada do candomblé.
Coletei histórias de vida das quatro mães e pais-de-santo escolhidos e de outros
pais-de-santo, inclusive de outras nações, que se revelaram essenciais na formação do
candomblé campineiro, por intermédio da citação de seus nomes nas histórias orais já
ouvidas. Também fizeram parte da pesquisa filhos-de-santo das diversas casas.
Para registrar as histórias de vida, optei pelo uso do gravador que foi bem aceito
por uns e considerado constrangedor para outros. Muitas vezes, as revelações
interessantes aconteciam depois que eu desligava o aparelho.
Foram gravadas 40 horas de entrevistas, mas muitas revelações importantes
foram obtidas em conversas informais, nos fins das festas, nos dias de sacrifícios, nas
reuniões políticas da comunidade religiosa afro-brasileira de Campinas, em que o
16
gravador não estava presente. Estas revelações feitas pelos pais, mães-de-santo e filhos-
de-santo eram anotadas discretamente em cadernetas ou escritas assim que fosse
possível, porém em momento e local adequados.
É importante mencionar uma outra questão relevante para quem pesquisa esta
expressão religiosa: aquela relacionada aos conflitos e rivalidades. Como nem sempre
fosse possível ficar neutra, no momento da pesquisa, era importante saber a que
distância eu deveria me manter para não me envolver na “indaka de mavula" 13 e poder
realizar o meu trabalho.
Quando comuniquei aos pais e mães-de-santo selecionados para este meu estudo
que estaria nos próximos anos fazendo uma pesquisa e escrevendo sobre o candomblé
de Campinas, a notícia se espalhou como rastro de pólvora. Numa reunião com aquela
comunidade, na qual se discutiam as diversas dificuldades que os terreiros encontravam
na legalização da construção de suas casas, percebi uma conversa paralela, que não era
comigo, mas que se fazia bem ao meu lado para que eu pudesse ouvi-la. O assunto desta
conversa era: Qual era a casa mais antiga de candomblé de Campinas?
Havia diversos nomes de pais e mães-de-santo envolvidos na questão, e eu não
havia percebido o quanto era importante para a comunidade ser notada, isto é, ser
tomada como objeto de um trabalho acadêmico. Certamente, na perspectiva do
candomblé de Campinas, ser objeto de estudo lhe dava maior importância.
Na realidade, para esta expressão religiosa, seja queto, seja angola, ser o
primeiro significa ter prestígio, pois quer dizer que, no mínimo, os que vêm depois
descendem dele. Daí a relevância da questão da casa mais antiga, do primeiro
candomblé, do primeiro pai-de-santo.
13 Discussão, litígio. Confusão, barulho, tumulto. Fofoca.
17
Ouvi estas conversas paralelas sem me intrometer durante vários encontros, até
que um dia, a discussão entre alguns dos envolvidos veio à tona. Embora o recado fosse
para mim, a conversa se passou como se eu não estivesse ali. Por fim, depois de alguns
acertos, ficou resolvido, com muita habilidade, que a casa de candomblé mais antiga,
“registrada” era a de pai Toloji; a primeira mãe-de-santo com casa aberta de candomblé
angola em Campinas, porém sem registro, fora mãe Nanjerecy; o barracão mais antigo,
isto é, o primeiro que tinha sido construído, era o que pertence hoje ao pai Ubiacyle,
considerado como o pai-de-santo mais velho. Assim, a comunidade resolveu seus
problemas muito diplomaticamente, sem deixar ninguém de fora, ao mesmo tempo em
que me “passava o recado”.
Portanto, ficou evidente para mim que o que eu fosse escrever deveria estar de
acordo com o que a liderança desta expressão religiosa havia determinado.
O trabalho está dividido em quatro capítulos. No primeiro capítulo, farei uma
contextualização da cidade de Campinas, relacionada ao tipo de escravidão que foi
instituído na região, que deve ser levado em conta para se entenderem as características
do candomblé angola hoje estabelecido na cidade.
O segundo capítulo trata da etnografia do espaço mais antigo, além de mostrar
como uma das casas de candomblé pesquisada se diferencia das demais, na ocupação e
distribuição do espaço com a introdução de novos ritos.
O terceiro capítulo destina-se a mapear as famílias de santo e mostrar como se
formam os parentescos e o que resulta do trânsito de filhos-de-santo entre as famílias,
levando-se em conta as alianças e os conflitos.
Os nomes dos componentes das famílias de santo que participaram deste
trabalho foram obtidos através dos depoimentos dos entrevistados.
18
No quarto capítulo, será analisada a lavagem das escadarias da Catedral
Metropolitana de Campinas, atentando para a ausência do deslocamento de filhos entre
duas importantes casas de angola, que possivelmente tenham nessa prerrogativa a
possibilidade de realizarem juntas a única festa pública do candomblé campineiro e que
hoje está inscrita no calendário oficial deste Município e no calendário turístico e
cultural do Estado de São Paulo.
19
CAPÍTULO I Nascimento e estabelecimento dos terreiros.
1
20
Campinas
Por volta de 1767, em decorrência do caminho de Goiases, formou-se no oeste
do Estado de São Paulo o bairro de "Campinas do Mato Grosso de Jundiaí". Um
pequeno comércio se desenvolveu naquele local para suprir as necessidades das tropas
que transitavam entre Santos, Minas Gerais, Goiás e Cuiabá e atendiam à economia
mineira. (Baeninger, 1992)
Em 1774, o bairro tornou-se "Freguesia de Nossa Senhora da Conceição das
Campinas do Mato Grosso de Jundiaí"14, e, em 1797, de Freguesia passou para a
categoria de vila, "Vila de São Carlos". A cultura de cana de açúcar fora introduzida na
região e, entre 1790 e 1795, a indústria açucareira fundou a prosperidade econômica e
populacional da região. 15
O ciclo do açúcar arregimentou significativa quantidade de mão-de-obra escrava
cuja maioria era formada de negros provenientes do grupo lingüístico banto, filhos das
diversas etnias que o compõem. Conforme Slenes,
“vários grupos de bakongo, mbundu e ovimbundo (localizados
respectivamente no baixo rio Zaire, no interior de Luanda, e no
hinterland de Benguela), forneceram grandes contingentes de cativos
14 No dia 14 de julho de 1774, em uma capela de sapê e paus roliços, foi celebrada a primeira missa por Frei Antônio de Pádua, primeiro vigário da paróquia. Essa ficou sendo a data oficial da fundação da cidade, na época Freguesia de Nossa Senhora da Conceição das Campinas do Mato Grosso de Jundiaí. Nessa fase, o Governador da Capitania cumpria expressas ordens do Rei de Portugal para povoar e implantar agricultura sólida no território paulista, pois a mineração estava em queda e os preços do açúcar anunciavam alta
15. Em 1797, a freguesia foi elevada à condição de vila, mantendo até 1842 o nome de Vila São Carlos. O período do açúcar marcou a fase de construção da cidade, havendo ainda ruas com pouquíssimas casas. Site www.campinas.sp.gov.br
21
para o sudeste e (estou convencido) boa parte da matriz cultural da
senzala”. (Slenes, 1999; p.50).
Com a sangrenta revolução de Saint Dominique em 179116, que dizimou a
colônia francesa, a exportação de açúcar para o mercado europeu ficou bastante
prejudicada. O preço do produto subiu vertiginosamente e deu um impulso às
"plantation" da região de Campinas, onde a escravidão passou a caminhar junto com o
açúcar. A expansão da cultura da cana gerou uma expansão econômica que, por sua
vez, estimulou, também, o crescimento da população cativa.
Conforme Baeninger,
"o ciclo do açúcar marcou a fase de construção da cidade. A dinâmica
expressa por esse ciclo econômico contribuiu para o surgimento de
pequenos núcleos urbanos ligados ao setor agrícola e à comercialização
de escravos, introduzindo a diversificação, embora incipiente e
apontando para o surgimento de uma importante rede urbana no
Estado”.(1992; p. 23)
Com a queda do preço do açúcar no mercado internacional, a cultura da cana
entrou em decadência. Porém, o ciclo econômico do açúcar gerou capital suficiente para
a introdução da cultura cafeeira que veio como alternativa econômica para a queda do
mercado açucareiro. Embora a cultura do café tivesse surgido concomitantemente à
16 O domínio colonial (no Haiti) foi seriamente abalado pelos acontecimentos que culminaram com a Revolução Francesa. Os antigos escravos da ilha rebelaram-se contra o jugo francês em 1791 e o grande líder abolicionista Pierre-Dominique Toussaint L'Ouverture tomou o poder. Em 1794, Napoleão Bonaparte enviou uma expedição para combater os rebeldes. Após meses de resistência, Toussaint aceitou os termos de paz e foi enviado para a França onde, contra os termos da paz negociada, morreu na prisão em 1803. www.ufrs.br/cdron.
22
prosperidade da cultura açucareira, foi somente em 1835 que houve a substituição de
uma cultura pela outra. (Beaninger, 1992). 17
Prometendo consideráveis ganhos para os fazendeiros, a cultura do café se
estendeu por toda a região, o que aumentou a necessidade de mais trabalhadores,
arregimentando, desta forma, grande quantidade de mão-de-obra escrava, que com a
proibição do tráfico negreiro em 1850, foi suprida através do tráfico inter-regional.18 Os
escravos do Norte e Nordeste deixaram as regiões que manifestavam decadência
econômica e se dirigiam para as regiões que apresentavam maior desenvolvimento,
como o Sudeste.19
O primeiro registro nacional de escravos, datado de 1872, segundo Slenes,
mostrou que “Campinas tinha 14.000 cativos, ou a maior população escrava de todos
os municípios paulistas". (Slenes, 1999; p. 71). Em virtude da proibição do tráfico
externo20 a mão-de-obra escrava foi suprida pelo tráfico inter-regional. Embora a mão-
de-obra escrava, naquela ocasião, fosse proveniente principalmente do Nordeste
17 Em 1867, com capital derivado essencialmente de cafeicultores, fundou-se a Ferrovia Paulista que entra em operação em 1872. www.campinas.sp.gov.br
18 Período e economia fortemente escravagistas, entre 1854 e 1886, a população cativa estava em 50%. www.campinas.sp.gov.br
19Conforme Baeninger: A migração de escravos provenientes de regiões onde as lavouras canavieiras entravam em decadência, como as do Nordeste, contribuiu para o crescimento populacional das províncias do Sul (Prado, 1983). De fato, nos jornais da época, encontravam-se anúncios como este: "vende-se(sic) 12 bonitos escravos de 12 a 20 anos, todos do Ceará" ( gazeta de Campinas, 22-6-1878; apud Lapa, 1991) - (Baeninger. 1992; p. 21) 20 Leis Abolicionistas : * 1815 - Tratado anglo-português, na qual Portugal concorda em restringir o tráfico ao sul do Equador; * 1826 - Brasil compromete em acabar com o tráfico dentro de 3 anos * 1831 - Tentativa de proibição do tráfico no Brasil, sob pressão da Inglaterra. * 1838 - Abolição da escravidão nas colônias inglesas * 1843 - Os ingleses são proibidos de comprar e vender escravos em qualquer parte do mundo * 1845 - A Inglaterra aprova o Bill Abeerden, que dá à Inglaterra o poder de apreender os navios negreiros com destino ao Brasil. * 1850 - É aprovada sob pressão inglesa a lei Eusébio de Queirós, que proíbe o tráfico negreiro no Brasil. * 1865 - A escravidão é abolida nos Estados Unidos (13a. Emenda Constitucional) 1869 - Manifesto Liberal propõe a emancipação gradual dos escravos no Brasil. * 1871 - Lei do Ventre Livre ou Lei Rio Branco 1885 - Lei dos Sexagenários ou Lei Saraiva-Cotejipe * 1888 - Lei Áurea.
23
brasileiro, esses escravos poderiam não ser mais africanos, mas já terem nascido em
terras brasileiras, contudo observa-se que "a população cativa de Campinas na primeira
metade do século XIX era predominantemente africana.” (Slenes, 1999; p. 72).
Cabe notar que a proibição do tráfico negreiro limitava a aquisição de mão-de-
obra escrava, numa época em que o complexo cafeeiro se estruturava, se consolidava e
isso demandava uma grande quantidade de mão-de-obra.21 Ademais, a partir da metade
do século XIX, o Movimento abolicionista tomou força e incitava levantes e fugas de
escravos que desorganizavam a produção nas fazendas. Nesta mesma época, idéias
racistas importadas da Europa formavam opiniões entre alguns intelectuais que,
baseados nestas fontes, se preocupavam com um Brasil que se formava moreno e
miscigenado. A solução encontrada nesse caso, tanto para o déficit de mão-de-obra,
quanto para o branqueamento da população, foi uma política de imigração européia.
Desta forma, acreditavam, estaria “salvo” o Brasil não só economicamente, mas
também na constituição da sua identidade nacional, uma vez que com o branqueamento
poderia se configurar uma nação aos moldes europeus.
A lei Áurea, assinada pela Princesa Isabel em 13 de Maio de 1888, além de ter
libertado um décimo da população negra da época no Brasil, significou, principalmente,
a retirada de um entrave para o trabalho assalariado no país, visto que muitos dos
setores da economia já não mais utilizavam a mão-de-obra escrava.
Porém o que deveria terminar com um programa de ajustamento social
gradativo, tornou-se um desajustamento estrutural, porquanto os negros foram fadados
ao desemprego e à marginalidade. Esse contexto somente agravou o preconceito racial
21 A hipótese de que a proibição do tráfico negreiro gerara um déficit de mão-de-obra disponível para trabalhar na agricultura do café, é refutada no livro de Petrônio Domingues, Uma História Não Contada – negro racismo e branqueamento em São Paulo na pós-abolição (Editora Senac, SP) que foi resultado da dissertação de mestrado desenvolvida pelo autor na USP. Segundo Petrônio, não havia falta de mão-de-obra em São Paulo, mas uma concreta intenção da elite, do governo e dos intelectuais paulistas em branquear a cidade.
24
que justificava a degradação do liberto na nova realidade social pela superioridade do
branco sobre o negro. Além disso, os libertos tiveram que disputar no mercado de
trabalho com os imigrantes brancos europeus, mais bem aceitos.
Reafirmando essa questão, Bernardo chama a atenção para a concorrência no
mercado de trabalhadores livres, entre os ex-escravos e o imigrante europeu, afirmando
que este último era o preferido. Com isso, o ex-escravo alforriado ou aquele que mais
tarde obteria a liberdade, eram colocados inteiramente à margem da nova ordem social,
que se instaurou com o mercado de trabalho livre. (Bernardo, 1998; p. 24).
A primeira experiência com mão-de-obra formada por imigrantes europeus no
Estado de São Paulo data de 1847 e foi realizada na fazenda Ibicaba, na região de
Campinas, e atual município de Limeira (Beaninger). Esse foi um empreendimento
importante, por empregar, simultaneamente, mão-de-obra livre e escrava.
No entanto, essa primeira tentativa de imigração européia não foi bem sucedida.
Os imigrantes que chegaram ao sudeste vinham para trabalhar como meeiros, parceria
que não deu certo, por um lado, porque as condições de trabalho eram péssimas e nesse
sistema os imigrantes eram obrigados a pagar para o fazendeiro as despesas realizadas
com a imigração, ficando vinculados a ele até saudarem a dívida. Por outro lado, o
regime escravista ainda vigente também se tornou um entrave para a imigração, uma
vez que esse sistema não era bem aceito pelos governos europeus da época.
Em 1886, uma nova experiência imigratória se iniciou, mas, desta vez, com
outro sistema de trabalho que não era mais o de "parceria" como fora nas décadas
25
anteriores, mas o de "colonato". Inaugurou-se, então, o sistema de trabalho livre, em
contrapartida com a escravatura. 22
O desenvolvimento da cultura do café no sudeste do Brasil trouxe consigo o
desenvolvimento dos meios de transportes, da construção civil e uma industrialização
rude, que geraram um processo de urbanização. A região se modificou, as cidades
cresceram, as indústrias precisaram de mão-de-obra, e o comércio, de consumidores.
Conforme Baeninger,
"Com a implantação da cultura do café, que passou a ser o
principal produto cultivado, Campinas acentuou seu dinamismo
com um intenso desenvolvimento urbano e rural. O efeito
urbanizador já se fazia sentir através da expansão das vias de
comunicação para o transporte do café, como as Estradas de
Ferro Mogiana e Companhia Paulista (1872), originando núcleos
urbanos e ampliando as atividades ligadas a esse setor". (1992;
p. 29)
Em 1889, uma epidemia de febre amarela causou muitas mortes em Campinas e
provocou intensa fuga de moradores para outros municípios, além de diminuir a
imigração européia para a região. 23
Em São Paulo, a febre amarela adentrou por Santos, que era a porta de entrada
dos imigrantes que vinham trabalhar nas lavouras de café. A doença alastrou-se
22 Segundo os registros da hospedaria dos imigrantes do Estado de São Paulo, " foram enviados para as lavouras de café do Município, de 1882 a 1900, 140631 imigrantes estrangeiros, dos quais 75% eram italianos; 11,3% portugueses; 7,9% espanhóis; 3,9% alemães e 1,8% de outras nacionalidades." (Baeninger. 1992: 31, 32) 23 Segundo Baeninger,: Os historiadores locais afirmam que durante a epidemia quase 75% da população emigrou do Município (Brito, 1969; Pupo, 1969). "A cidade é abandonada; a população reduziu-se de 20 mil para 5 mil moradores; a morte rondava a cidade." (Figueira de Mello, 1991:23). Estabelecimentos comerciais, escritórios de indústrias e até algumas indústrias transferiram-se para São Paulo e Jundiaí. (Semeghini, 1988). (1992: 35)
26
primeiramente pela região portuária e, como não havia casos no interior paulista, a
medicina acreditava que era uma doença típica das regiões litorâneas. Porém, em 1889,
houve uma forte epidemia em Santos que subiu a serra através da ferrovia e chegou a
Campinas. Foram vários surtos que assolaram a região nos anos de 1889, 1890, 1892,
1896 e 1897, dizimando grande parte da população. 24
Como era desconhecido o meio de propagação da enfermidade, acreditava-se
que a febre amarela era contagiosa e, num consenso geral, originária de eflúvios
miasmáticos ou emanações pútridas. Sendo assim, os médicos higienistas, pensando na
erradicação da enfermidade, voltaram-se para os aspectos urbanísticos, já que
associavam a doença ao ar confinado, portanto a habitações coletivas, a ruas estreitas,
matadouros, cemitérios, valas, águas de fontes duvidosas e à falta de esgotos. Desta
forma, o combate da doença ficou centrado na reorganização urbana e na normatização
da vida cotidiana. Nesse sentido, foi a população mais pobre, constituída de imigrantes
e negros libertos, que arcou com a responsabilidade da disseminação da enfermidade,
acentuando desta forma o preconceito contra aqueles que se amontoavam em cortiços na
cidade. Segundo Figueira Mello “libertos e imigrantes em 1888 e1889, afluíram para a
cidade. Entupiram os cortiços” (1991; p. 23)25
Nessa perspectiva, o preconceito racial contra o negro se intensificou e gerou
fortes demandas contra suas manifestações religiosas, pois do mesmo modo que a raça
negra foi considerada inferior, sua religiosidade também foi encarada como mais
primitiva e, ao mesmo tempo, associada a bruxaria e malefícios.
Embora Slenes afirme que "a maioria dos escravos de Campinas, mesmo em
1888, estava próxima no tempo às fontes africanas de sua cultura" (Slenes, 1999; p. 24Dados obtidos na Biblioteca Virtual Adolph Lutz. http://www.bvsalutz.coc.fiocruz.br/html/pt/home.html 25 FIGUEIRA MELLO, F. Formação histórica de Campinas: Breve Panaroma. Subsídios para a Discussão do Plano Diretor. Prefeitura Municipal de Campinas, 1991.
27
72), seus cultos foram escondidos, parecendo desta forma não terem se estruturado ou
mesmo desaparecido, mas, pode ser que tenham se tornado subterrâneos por causa das
perseguições sofridas, segundo a concepção de Pollak. (Pollak, 1989). 26
Apesar de Campinas ter passado por muitos surtos de febre amarela, a cidade
aos poucos foi se recuperando e, em 1891, deu-se continuidade ao processo imigratório,
com o registro do maior "volume anual de imigrantes com destino a Campinas".
(Baeninger, 1992). Na virada do século, tanto São Paulo quanto os principais
municípios do interior apresentaram dinamismo econômico e populacional.
No entanto, com a queda do preço do café e a conseqüente crise neste setor, a
imigração subsidiada para São Paulo e a economia cafeicultora encerraram-se,
respectivamente em 1927 e 1930.
Contudo, na região houve também a vinda de imigrantes norte-americanos que
introduziram o cultivo do algodão, que trouxe consigo novas técnicas de plantio, além
de um novo pólo industrial.
Conforme Baeninger:
"O movimento migratório internacional desempenhou
urbanização, alternando em muitos casos, o comportamento 26 Um estudo realizado por Rita Amaral sobre a coleção etnográfica de cultura religiosa afro-brasileira do MAE , curiosamente revela a Coleção Registro Sertanejo que apresenta um candomblé banto datado do começo do século XX. De acordo com o artigo, Rita divulga que: “Foram encontradas 187 das 252 peças listadas, datadas do princípio do século, de cultos afro-brasileiros sediados principalmente no interior de São Paulo. Segundo informações contidas nesta listagem, algumas peças foram levadas ao Museu Paulista, em 1914. Outras, em 1938 e outras ainda, em 1943. São originárias de cultos do interior de São Paulo (Tietê, Pirapora, Araraquara, Jundiaí) e foram doadas ao Museu Paulista pela Secretaria de Segurança Pública, o que indica que devam ter sido apreendidas durante o período de repressão policial ao culto. Essa coleção é extremamente valiosa, não apenas por representar aspectos múltiplos do culto, como por seu caráter artesanal, constituindo peças únicas.”, 26 Amaral, Rita. A coleção etnográfica de cultura religiosa afro-brasileira do museu de arqueologia e etnologia da universidade de São Paulo, In Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, no. 10, 2000, p266. Isso significa que houve um candomblé anterior a este que hoje existe em Campinas e que, possivelmente, desapareceu em virtude da perseguição policial.
28
demográfico, o perfil populacional econômico e as formas de
inserção dos municípios na divisão social do trabalho no
Estado". (1992; p.48)
Campinas, no ciclo do açúcar, fora denominada a Capital da escravatura, no
período cafeeiro, recebera a alcunha de "Princesa do oeste" e, com o avanço da
industrialização, tornara-se uma "Cidade Modelo".
Na primeira metade do século XX o processo de urbanização e industrialização,
conforme Baeninger,
"representou a formação de uma nova ordem social permeando
todas as instâncias da sociedade. A mistura de raças,
nacionalidades, culturas e ideologias, dispersas no espaço
urbano, começou a caracterizar certos grupos sociais. A
constituição da classe operária, formada primeiramente pelos
trabalhadores estrangeiros foi expressão desse processo". (1992;
p.50)
Com o crescimento do número de indústrias aumentava também a migração
originária não só de outros Estados, como também do êxodo rural. (Baeninger, 1992)
Campinas era uma cidade que reforçava o papel da migração, uma vez que isto era
sinônimo de dinamismo econômico e prosperidade.
A partir dos anos 60, o fluxo migratório para a região de Campinas aumentou
consideravelmente e continuou na década de 70, ocasião em a cidade recebeu
"um total de 230.464 migrantes, dos quais, aproximadamente,
20% apresentavam como local de última residência o Estado do
Paraná, 15% vinham da região Metropolitana de São Paulo, 10%
29
do Estado de Minas Gerais e 5% da própria região de governo
da Campinas". 27 (Baeninger. 1992; p. 76)
Em Campinas, é o Estado do Paraná que nesta época aparece como a principal
área de procedência dos migrantes, porém de uma maneira geral é de Minas Gerais que
tradicionalmente vem a maioria. Ademais, se para São Paulo a migração de nordestinos
foi intensa, em Campinas ficou em torno de 12,5%, ocupando a quarta posição em
relação a outras regiões do Brasil. (Baeninger, 1992)
Além dos fluxos migratórios interestaduais, também foi significativo o
movimento migratório proveniente do oeste paulista que se direcionou para Campinas.
Na década de 70, coincidindo com o processo de urbanização, com a afluência
de indústrias que formaram o maior parque industrial regional e com a expansão
rodoviária, fatos que estimularam a vinda de um número significativo de migrantes, é
que se deu a chegada dos pais e mães-de-santo que fazem parte desta pesquisa e, por
meio deles, o surgimento dos primeiros terreiros de Umbanda em Campinas.
Por sua vez, o candomblé que já havia se estabilizado em São Paulo nos anos 60,
chega a Campinas na década de 80, confirmando o que nos afirma Boaventura de Souza
Santos ( 1996), a saber, que só permanecem ou florescem elementos da cultura que
possuem raiz. Por isso, me ative à explicação de como chegaram os escravos em
Campinas, na verdade, a raiz das expressões religiosas afro-brasileiras. .
Fundamentando-nos em Bernardo (1986) e Prandi (1991) que explicam que a Umbanda
abriu caminho para o candomblé em São Paulo, podemos assegurar que o mesmo
processo ocorreu em Campinas.
Mais reintegrada à sociedade a umbanda, como expõe Ortiz,
27 Beaninger considera como migrante o indivíduo residente há menos de dez anos no município de residência atual.
30
”aparece, pois como um solução original; ela vem
tecer um liame de continuidade entre as práticas
mágicas populares à dominância negra e à ideologia
espírita. Sua originalidade consiste em reinterpretar
os valores tradicionais, segundo o novo código
fornecido pela sociedade urbana e industrial” .(1999;
p.48)28
Sem a necessidade de processos iniciáticos mais drásticos, tais
como são exigidos pelo candomblé, na umbanda é por meio do transe
que há a manifestação do caboclo, do preto-velho, que são espíritos
ancestrais, que vão direcionar o inicio do caminho religioso a esses
sacerdotes pesquisados. Todos os entrevistados vieram de famílias de
religiões cristãs, sejam católicas ou neopentecostais, e para se chegar ao
universo mágico do candomblé, no qual os ritos de passagem e
purificação são realizados mediante o sacrifício de animais, ri to que foi
e ainda é amplamente questionado e combatido pelas diversas
modalidades de religiões cristãs no Brasil e pela sociedade mais
abrangente, a umbanda surge, então, como uma interessante solução para
a entrada ao universo afro-brasileiro. Por um lado, citando Ortiz,
“O problema das despesas encontra, pois, na religião
umbandista uma solução original; um primeiro
28 Ortiz, Renato. A morte branca do feiticeiro negro. Umbanda e sociedade brasileira. Editora Brasiliense, São Paulo. 1a reimpressão, 1999.
31
resultado é a ausência de gastos no sacrifício de
animal, uma vez que estes tendem a ser abolidos.”
(1999; p.154).
Por outro lado, ainda referindo-se à obra de Ortiz, “o problema
longe de ser uma equação funcional, parece-nos ser de cunho
ideológico. Por detrás do jogo de funcionalidades se esconde um conflito
muito mais amplo que se trava contra os valores da sociedade global”.29
(1999; p.155)
Este conflito já se mostrava desde o início da caminhada desses
sacerdotes, quando iam à procura das benzedeiras e revelavam a má
impressão deixada pelos objetos religiosos afro-brasileiros, expostos nos
altares. Neste caso, o elemento básico determinante da ação dramática é
a oposição entre os valores da população branca, cristã e de classe média
e os padrões afro-brasileiros expressos na estatuária e, muitas vezes, na
incorporação dos espíritos de pretos-velhos e caboclos.
A entrada do candomblé em São Paulo se dá, segundo Prandi:
"... por diferentes maneiras: através de pais-de-santo que vêm do
Rio e da Bahia para iniciarem filhos aqui; quando umbandistas
vão ao Rio e à Bahia para lá se iniciarem no candomblé; nos
casos em que um pai ou mãe-de-santo migra para São Paulo já
iniciado em seu Estado de origem e abre aqui terreiros de
candomblé; na situação em que o migrante já vem “feito” no
29 Ortiz, Renato. A morte branca do feiticeiro negro. Umbanda e sociedade brasileira. Editora brasiliense, São Paulo.1a reimpressão, 1999.
32
candomblé, mas começa sua carreira religiosa em São Paulo
abrindo casa de umbanda, para mais tarde vir a tocar candomblé
e abandonar a umbanda; e, finalmente, através de filhos que já
são iniciados em São Paulo por mães e pais-de-santo, também
iniciados em São Paulo... Já na etapa de expansão, é claro, esta
última forma é a mais freqüente e é também a que reforça a idéia
de estar esta religião se enraizando na metrópole.” (1991; p.93)
Em Campinas, a umbanda data da década de 70 e o candomblé se estabelece na
década de 80 do século XX, edificado por dois pais-de-santo brancos e duas mães-de-
santo negras, todos provenientes de outras cidades do Estado de São Paulo e de outros
Estados, e coincide com o fluxo migratório direcionado para este Município. 30
A iniciação destes sacerdotes no candomblé foi realizada por mães-de-santo
oriundas de São Paulo e da baixada santista31, a propósito, da mesma forma de expansão
relatada por Prandi.
Convém ainda acrescentar que o candomblé que primeiro e mais largamente se
estabeleceu em Campinas foi o de nação angola, ainda hoje o mais numeroso.
30 Pai Ubiacylê é proveniente de Limeira, pai Gitalangunage de Catanduva, mãe Corajacy da Bahia, mas já morava em Minas Gerais quando migrou para Campinas e Mãe Dangoroméia é oriunda de Minas Gerais. A expansão do pólo industrial de Campinas atraiu grande quantidade de migrantes originários do interior de São Paulo assim como de outros Estados. Estes pais e mães-de-santo vieram com esse movimento migratório que muito se intensificou depois de 1960. 31 Vagner Gonçalves nota que: A importância do candomblé litorâneo em São Paulo também pode ser atestada na relação dos mais antigos pais-de-santo em São Paulo, elaborada pela Comissão de Candomblé formada por algumas lideranças religiosas paulistas, a partir da Assessoria para Assuntos Afro-brasileiros da Secretaria do Estado da Cultura do Governo Franco Montoro, em 1983. Dos vinte e sete babalorixás e ialorixás citados, quinze se localizam na capital e doze em Santos; deste total, onze pertencem à nação angola e três à sua variável ameríndia – o xambá; do queto são seis, o mesmo número para sua variável efon. ( obs.: um dos terreiros não tem definida a nação) (Vagner, 1995: p.82)
33
CAPÍTULO II Da umbanda para o candomblé: o espaço conta a história.
2
34
É no espaço que encontramos todas as marcas das épocas em que um
determinado grupo viveu..
Maurice Halbwachs afirma que as religiões
“estão solidamente afixadas sobre o solo, não somente porque se
trata de uma condição que se impõe a todos os homens e a todos
os grupos; mas uma sociedade de fiéis é conduzida a distribuir
entre diversos pontos do espaço o maior número de idéias e
imagens que são por ela defendidas.” (1990; p. 143). 32
Nos terreiros pesquisados, isso é visível nas novas edificações, nas imagens dos
inquices pintadas nas paredes, nas imagens de gesso dos santos católicos colocados em
suportes, nos assentamentos distribuídos pelos canteiros, nos odus assentados nos
cantos da casa, nos símbolos da umbanda que se encontram distribuídos pela casa ou
reunidos num só recanto, nos centros dos salões, enfim, todo espaço é provido de
símbolos cujos significados estão ali mostrando as relações com os deuses e como o
fiel deve se comportar.
Os terreiros aqui estudados, assim como a maioria dos terreiros paulistas,33 se
tornaram de candomblé num movimento posterior à umbanda.
Ao observarmos as permanências e modificações no espaço, podemos tentar
desvendar a história da comunidade e o conjunto de símbolos e atributos pertinentes
àquele grupo.
32 Halbwachs, Maurice. A Memória Coletiva. Vértice, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo. 1990 33 Sobre o trânsito dos terreiros paulistas da umbanda para o candomblé existe vasta bibliografia a respeito. Ver: Bernardo, S. Teresinha. A mulher no candomblé e na umbanda. Dissertação de mestrado apresentada ao programa de Estudos Pós-graduados em Ciências Sociais – PUCSP, 1986. Prandi, Reginaldo.Os candomblés de São Paulo. Editora da Universidade de São Paulo, São Paulo,1991. Silva, Wagner Gonçalves da. Orixás da Metrópole. Editora Vozes Ltda. Petrópolis, R.J. 1995.
35
Situados em bairros periféricos de Campinas, os terreiros de candomblé podem
ser identificados, externamente, pela presença de alguns elementos simbólicos que são
comuns às religiões afro-brasileiras, os quais geralmente ficam dispostos sobre os
portões e muros frontais. Sempre circundados por muros altos que não permitem a visão
interior do pátio das casas, a fachada revela, por seu recato, a inquietação perante o
preconceito que ainda hoje persiste contra as religiões de matrizes africanas. Desta
forma a busca da segurança avança em direção a uma comunidade de interesses e
identidade comuns, e os muros altos a protegem dos “olhos” dos diferentes.
Das quatro casas escolhidas, apenas a de mameto Dangoroméia que está
localizada num bairro de Hortolândia34, cidade próxima a Campinas, apresenta uma
indicação mais contundente sobre a razão daquela construção. Num muro lateral que dá
para a rua de maior movimento pode-se ler o nome “Inzo Muzambo dia
Hongolomenha,” escrito em grandes letras azuis sobre a parede branca, que significa
“Casa do Dono do Arco-Íris”.
A localização dos terreiros nas periferias da cidade denota a capacidade
aquisitiva do grupo, uma vez que os terrenos nessas regiões possuem um valor mais
baixo do que outros em localidades nobres. Além disso, encontrar-se num bairro
retirado significa estar num nicho da sociedade onde as regras da vida social são mais
maleáveis, possibilitando o toque de atabaques, a criação e sacrifício de animais e os
despachos de ebós, já que as encruzilhadas e matas na época da fundação dessas casas
34 Até 1953, com o nome de Jacuba, a atual Hortolândia pertencia ao município de Campinas. A partir desta data, o povoado de Jacuba foi elevado a Distrito de Jacuba do município de Sumaré emancipado nesta mesma época . Em 1958, Jacuba passa a ser conhecida como Hortolândia, distrito de Sumaré. Trinta e três anos depois, em 19 de maio de 1991, Hortolândia se emancipa de Sumaré, passando a ter uma identidade própria no processo de desenvolvimento da região. www.hortolandia.sp.gv.br
36
estavam mais presentes. Vale notar, ainda, que ali estão os mais pobres e a maioria dos
afrodescendentes.
A justificativa para os estudos dos terreiros que estão localizados,
respectivamente em Hortolândia e em Monte Mor, é que o crescimento da Região de
Governo de Campinas (ver fonte IBGE, censo demográfico de 1980) teve como eixo
dois processos, segundo Beaninger:
“A expulsão da população de baixa renda para áreas
cada vez mais distantes - com menor valor de solo urbano em
relação às áreas mais centrais e precários sistemas de infra-
estrutura e equipamentos sociais - a industrialização de grande
parte dos municípios da Região, além de Campinas, com
importante peso no emprego industrial do Estado (FUNDAÇÃO
SEADE, 1990b) (1992; p 134)35.
Fonte IBGE, Censo Demográfico de 1980 3
35 Fonte IBGE, Censo Demográfico de 1980
37
O terreiro de mameto Corajacy é o que fica num bairro mais afastado e de mais
difícil acesso. Anteriormente, esta mãe-de-santo havia construído um barracão nos
fundos de sua casa que ficava num bairro de casas populares em Campinas. Hoje, o
terreiro está localizado num bairro periférico de Monte Mor, com ruas sem
pavimentação, constituído de pequenas chácaras.
Por ocasião da entrevista, tive dificuldade para encontrá-lo, uma vez que as
informações que haviam me passado para chegar ao terreiro eram um emaranhado de
direitas e esquerdas, e apesar de terem me dado algumas referências, a dificuldade
persistiu uma vez que a rua não tinha placa sinalizadora.
Depois de errar diversas vezes e vagar por muitas ruas do bairro, eu pude chegar
ao terreiro, ainda assim mameto Corajacy precisou me enviar um de seus filhos para
que me guiasse até lá. Essa procura me fez recordar as histórias míticas contadas nos
candomblés, em que os caminhos eram indicados aos que saiam em jornada na terra,
por transeuntes ou moradores encontrados pelos caminhos. Foi exatamente assim que
consegui chegar até o terreiro de mameto Corajacy, pedindo informação para
transeuntes. Somente depois de tantos erros, de diversos ir e vir que atinei ao mito de
como os caminhos podem ser facilmente encontrados, ou seja, quando anteriormente à
partida faziam-se ofertas votivas a Exu, o orixá dos caminhos e das encruzilhadas, que
ajudava os viajantes a chegarem a seus destinos; eu não as havia feito.
Nas minhas voltas pelo bairro à procura do terreiro da mameto Corajacy, olhava
para os portais das chácaras na esperança de ver uma quartinha, um alguidar e por
intermédio destes objetos tão comuns nas entradas dos terreiros, encontrar a chácara
certa. Se minha busca tivesse dependido destes símbolos para identificar o terreiro, eu
não o teria achado, uma vez que seus assentamentos de portão estavam cuidadosamente
camuflados entre as folhagens que eram abundantes sobre o portal. Apenas ao longe, a
38
bandeira branca do Tempo, atada a um alto mastro, surgia por sobre a vegetação e a
cerca viva.
Os demais terreiros aqui pesquisados ficam em bairros residenciais de ruas
asfaltadas e com uma disponibilidade de espaço muito menor que a chácara onde está
localizado o terreiro da mameto Corajacy, além de estarem cercados de vizinhos muito
próximos as suas instalações.
Todos esses terreiros foram construídos na formação desses bairros, e por isso,
esses pais e mães-de-santo foram os primeiros moradores a se estabilizarem nessas
localidades. Essa referência tem sido constantemente utilizada como atributo legalizador
das atividades do candomblé nos dias de hoje, pois que, com o crescimento da cidade,
acabaram ficando cercados de casas. A constante presença de animais, como cabritos e
galinhas, ou ainda o barulho dos atabaques nos dias de festa, além da convivência com
as diferenças religiosas, fazem com que os terreiros sejam muitas vezes espezinhados
pela vizinhança. Embora esses candomblés possam declarar que estão ali há mais tempo
que os seus vizinhos, acabam alterando os costumes, a fim de se adaptarem à nova
realidade. As festas passaram a começar e a terminar mais cedo, os ebós são
despachados cada vez mais longe, e as criações de animais destinados ao sacrifício estão
cada vez menos presentes. Na nova realidade espacial, decorrente do crescimento da
cidade, esses terreiros acabaram ficando circundados de residências, exigindo por isso
uma nova organização das atividades, a fim de facilitar a convivência com o outro.
Esses candomblés mudaram seus horários e maneiras de fazer as oferendas,
porque esperam ser aceitos na vizinhança. Embora o intuito das mudanças seja obter a
reciprocidade e a generosidade daqueles com que essas comunidades são obrigadas a
interagir socialmente, nem sempre é isso que acontece. É bastante comum os terreiros
terem que lidar com atos de rejeição, como apedrejamentos, realizados por
39
fundamentalistas de outras religiões, principalmente neopentecostais, ou por crianças e
adolescentes que certamente têm alguma referência de discriminação em relação às
religiões afro-brasileiras.
Campinas tem uma história em que a ação repressora sempre esteve presente na
vida dos negros. Desta forma, o preconceito contra o candomblé, que é uma religião
afro-brasileira, também é muito forte. A dificuldade de o candomblé conviver com suas
indumentárias ritualísticas e a sociedade mais abrangente campineira, é expresso no
depoimento de mameto Dangoroméia:
“Aqui em Campinas não tinha... com todo o respeito aos meu
irmão que são mais velhos na religião, mas tudo era muito
escondido, porque o preconceito era muito grande. Então eu não
via as pessoas de cabeça raspada, porque punham peruca. Era
muito difícil ver uma pessoa com “tobosso”36. (mameto
Dangoroméia)
A opressão sobre as atividades culturais do negro, mesmo depois
da abolição da escravatura, continuou muito forte. Se a escravidão
legitimava a opressão, com a abolição, esta relação passou a ser um caso
de polícia que freqüentemente invadia bailes e proibiam as capoeiras.
Além disso, a idéia do branqueamento, a partir do período da República
Velha, reforçou ainda mais o racismo que já era instituído.
Essas são marcas que a história das relações raciais em Campinas
também deixou como herança para o candomblé, tanto que os terreiros de
hoje são datados dos anos 70, do século XX, foram fundados por pais e
mães-de-santo migrantes de outros estados e cidades. Embora Campinas
36 Pano enrolado cobre a cabeça das mulheres do candomblé angola.
40
tenha recebido um grande contingente de negros escravos, seus
descendentes não estão presentes na formação destes candomblés.
Diferente dos antigos terreiros de Salvador, onde há uma comunidade que vive
tanto nas imediações quanto dentro da própria “roça” 37, os terreiros em Campinas são
menores e são poucos os adeptos que residem nas proximidades, de forma que a maioria
dos filhos-de-santo vem de outros bairros e outras cidades.
As casas de angola
O primeiro terreiro campineiro de angola de que se tem notícia, data do final dos
anos 70 e era dirigido por uma mãe-de-santo chamada Nanjerecy. Hoje não existe mais,
porém foi nesta casa que se iniciou tateto Gitalanguange, um dos pais-de-santo que faz
parte deste trabalho.
Assim, o terreiro mais antigo de candomblé angola em Campinas que continua
ativo, atualmente, é o Inzo dia Roxe Mokumbo ni Dandalunda, fundado em dezembro
de 1981, dirigido por pai Ubiacylê.
Localizado na rua João Sulinski, nº 390, no Jardim São Pedro, este terreiro tem
uma história peculiar, pois o barracão havia pertencido, originalmente, a uma mãe de 37 Bernardo descreve um terreiro baiano dizendo que: “A “roça” surpreende, desde o início, pela sua construção. Parece um pequeno bairro, todo cercado de grades brancas com um portão central. Ao atravessá-lo, entra-se em uma pequena praça que dá origem a curtas e estreitas ruas asfaltadas e arborizadas com casas antigas e bem cuidadas. Em uma das vielas, vê-se um armazém e, em outra, uma capela toda branca.As crianças brincam despreocupadas dispondo daquele espaço como verdadeiros ‘donos’, diferentemente das brincadeiras infantis que se vêem nas ruas de São Paulo e da própria Bahia”. Bernardo, Teresinha. A mulher no candomblé e na umbanda. Dissertação de mestrado apresentada ao programa de Estudos Pós Graduados em Ciências Sociais da PUCsp- 1986. São Paulo.
41
umbanda, depois foi vendido a um sacerdote de nação queto que, posteriormente, o
vendeu ao tateto Ubiacylê. Além disso, é o espaço mais antigo dentre todos os outros,
considerado o lugar onde “nasceu” o candomblé de Campinas.
Três Oguns: uma só terra.
“Ogum Rompe Mato” foi o primeiro nome que esse barracão recebeu de uma
sacerdotisa de umbanda chamada Antonieta. Curiosamente, esta senhora vendeu o
barracão juntamente com o corpo de médiuns e o peji38 para um babalorixá de São
Paulo que estava se estabelecendo em Campinas, chamado baba Toloji. Ele conta:
“Era uma casa de Umbanda. Ela se chamava “Ogum Rompe
Mato”. Essa casa foi de Ogum. Eu comprei. Sou de Ogum. Era de
uma pessoa de Ogum, comprei e sou de Ogum, vendi para o Bia
que é uma pessoa de Ogum. Você está entendendo? Ela nasceu
para ser uma casa de Ogum”. (baba Tologi)39
Pela narrativa do baba Tologi podemos observar que, na concepção dos adeptos
do candomblé, Ogum fundou seu chão sem se importar se era inicialmente um terreiro
de umbanda e depois de candomblé queto, ou como é agora, de nação angola. O que
interessa é que foi o mesmo “santo” que tomou aquele lugar para si, não se importando
de ser São Jorge, como é sincretizado na umbanda paulista, ou o Ogum Rompe Mato da
38Altar onde são colocadas imagens de santos católicos, orixás, velas, nos terreiros de umbanda. 39 Pai Tologi é um sacerdote da nação queto que começou em Campinas batendo para caboclo, no barracão onde hoje funciona a casa de pai Ubiacylê.
42
umbanda, ou simplesmente Ogum como é no queto, ou finalmente como Roxi
Mukumbo, o inquice, no angola.
A casa sempre foi de Ogum, independentemente se ele foi rezado em português,
ioruba ou banto. Nesse momento, Ogum deixa de ser santo, orixá, inquice ou vodum
para ser uma “única” divindade que tem ali uma terra que tomou para si e a sacralizou.
Inicialmente, este terreiro dispunha de uma infra-estrutura precária, pois havia
ali apenas um barracão, sem banheiro e sem luz elétrica, construído no fundo do terreno
e utilizado somente para a realização das sessões de umbanda.
Aos poucos, à medida que se introduziam os ritos do candomblé, as
modificações foram sendo feitas, conforme nos conta este sacerdote:
“Eu acrescentei uma porta no centro, fiz uma porta lateral, fiz um
roncózinho, do lado fiz os banheiros. Agora está modificado um
pouquinho. Fiz uma casinha de Exu na frente que parece que o
Bia desmanchou ou fez alguma outra coisa. E fiz no espaço vazio
do outro lado, fiz uma moradia. Ali eu fiz um banheiro e dois
espaços, um para a cozinha e um para dormir e um jardinzinho
de inverno”. (baba Tologi)
Além do banheiro e da moradia para suprir as necessidades dos consulentes e do
pai-de-santo, já o roncó faz parte do espaço sagrado do candomblé. É ali naquele
quartinho que são colocados os assentamentos de santo e também onde vão ser
realizados os recolhimentos dos neófitos para as cerimônias de bori e feitura de santo.
A casinha de Exu disposta na entrada do terreiro também foi modificada,
tornando-se maior. De um modo geral, na umbanda, a casa de Exu é pequena, porque
43
ela não exige sacrifícios e assentamentos, portanto, para o culto bastam uma imagem e
velas. No candomblé, ao contrário, os assentamentos são grandes e a presença do
sacrifício é constante; exige, pois, a construção de um espaço maior.
Do barracão simples no fundo do terreno, baba Tologi também fez uma cozinha
para preparar as comidas do orixá e para assar os cabritos, os porcos, os carneiros e as
aves, que foram sacrificados.
O candomblé campineiro foi se compondo aos poucos. O aprendizado se fazia
mediante a relação com outras casas, com amigos, com os livros e com os próprios
sacerdotes que iniciaram os pais e mães-de-santo. No começo, ritos de umbanda e
candomblé foram se mesclando.
Com o decorrer do tempo, acrescentaram-se mais um quarto, uma cozinha, um
quarto de santo, uma dispensa, o roncó, banheiros, quartos de vestir e, aqui e ali, nos
canteiros do quintal, colocaram-se alguns assentamentos.
Apenas quando houve a “feitura” do primeiro filho-de-santo é que o terreiro se
concretizou como sendo de candomblé. Neste contexto, baba nos conta:
“Bonidê, foi feita lá. Então ela foi feita lá... Foi a rombona da
casa. Olhe, eu comprei lá em 77 porque eu registrei em 78. Em
77 por aí assim... um ano depois eu estava registrando a casa.
Alguns anos depois, Bonidê já era feita...”. ( baba Tologi)
44
4 5
O primeiro barracão - 1980- foto cedida por Baba Tologi
6 7
Interior do salão- 1980 Lembrança da abertura
Fotos cedidas por Baba Tologi
Em 1980, tateto Ubiacylê que já tinha filhos iniciados em Limeira e em outra
casa em Campinas, comprou este barracão e está nele até hoje. As reformas que já
tinham começado com baba Toloji, continuaram, a fim de suprirem as necessidades do
sacerdote e do candomblé que, de uma vez por todas, se estabilizaram naquele local.
45
As primeiras construções foram conservadas com pequenas alterações e no
restante do terreno foram construídos novos compartimentos.
Esta casa, assim como a maioria dos terreiros de candomblé de Campinas, são
construções muito discretas. Porém, se não há nomes que os identifiquem, a bandeira
branca do Tempo pode ser vista ao longe, atada ao mastro de bambu, tal qual pequena
chama que aponta para o candomblé angola filho de Zara Ktembo40 .
Exceto esse marco, um vaso com folhas de peregum41 e uma quartinha branca,
tradicionais símbolos religiosos afro-brasileiros, indicam exteriormente que se trata de
uma casa de candomblé. Fora isso, um muro alto e um grande portão de ferro pintado de
azul não permitem que nada mais seja revelado.
Do lado de dentro, à esquerda, num canteiro beirando o muro, uma pequena
telha de amianto margeada por uma folha de palmeira desfiada protege um tufo de
ferros que “plantado” num vaso, foi colocado estrategicamente à entrada.
É um assentamento de Incossi42 que, de modo semelhante ao de Ogum43das
casas de queto, também comporta o facão, a espada, as chaves, as setas e outras
40 Zara Ktembo , como também é conhecido o inquice Tempo 41 Dracaena fragans Gawl, AGAVACEAE,. Fonte: Barros, José F. Pessoa de. O segredo das folhas .Sistema de classificação de vegetais no Candomblé jêje-nagô do Brasil. Pallas; UERJ, Rio de Janeiro, R.J. 1993. 42 Corresponde ao orixá nagô Ogum. Também conhecido nos candomblés angola como: Incossimucumbe,Iincossi, Mungongo. Roximucumbe, Sumbo, Cangira, Nkossi- Mukumbe, (Roxi-mucumbe, Nkossi, Tabalajo, Roxi-marinho); Mucumbe (rossi Biolê, Incossi, Rossi Mocumbo, Kitaguaze, Minicimgo, congo mocongo, Naguê, Mugomessá, Jambá, Ngo, Mavalutango, Katembo, Rucongo, Alunda, Dagolonan, Kitongo); Roxo Mucumbe, Incôssi Mucumbe, Ncôsse; Kossimburé, Roximucumbi, Inkossi, Sumbo, Mugongo e Nkosi, Hoji Mukumbi .- Giroto, Ismael. Universo Mágico-religioso negro-africano e afro-brasileiro: Bantu e Nagô. Tese apresentada ao9 departamento de Antropologia da FFCH da USP. São Paulo. 1999. p. 278/279 43 Giroto na sua tese de doutorado expõe: “Considerando os terreiros Nagô e Bantu de maneira genérica, é quase homogênea a representação, material dos orixás e inquices, isto é, dos seus assentamentos, elementos simbólicos depositários de energias. As variações consistem, no geral, em enfeitar mais ou menos. Nos terreiros Bantu, Roximucumbe, Mutacalambo e Katende, via de regra, são cimentados, enquanto Ògún, Òsóòsì e Òsanyìn não o são... Wunje tem seus elementos simbólicos sobre a areia que cobre o alguidar, Ìbejì os tem soltos e dificilmente é representado por esculturas de crianças, como na África. Ambos se aproximam muito do conceito de erê, espíritos infantis.
46
ferramentas feitas de ferro. Posso deduzir, pelo estado em que se encontram os ferros, a
quantidade de sacrifícios que foram ali realizados. Ao seu lado, um porrão44 de barro
que contém água, cuja finalidade é descarregar as energias negativas e esfriar os
caminhos daquele que ali chega por ocasião das obrigações.
À direita, há uma casinhola que está sempre fechada, que é a casa das almas;
mais atrás, há um viveiro, com pombos, galinhas de angola e frangos caipiras. É muito
comum encontrar criação de bichos nos candomblés em Campinas, pois esse tipo de
criação, além de facilitar a aquisição de animais para realização de ebós, também ajuda
a gerar alguma renda para o criador, que geralmente está ligado à casa.
Dividindo este espaço frontal, ainda há um pequeno quarto onde está o
assentamento do Exu de rua45. Deixando-se ver através de um portão de ferro, este Exu
é representado por um vaso encimado por um arranjo em ferro, onde se vêem tridentes,
facas e chifres de animais, parafernália que significa seu próprio corpo. Neste local, são
feitos os pedidos e colocadas as oferendas. É o Exu que tem como objetivo cuidar da
porta, segurar as demandas e é a divindade a que o público tem maior acesso.
Nos candomblés angola de Campinas, Exu assume dois diferentes papéis: O
primeiro é aquele que representa o papel de guardião, que fica na entrada dos terreiros a
fim de proteger a casa de candomblé das demandas, além de atender aos caprichos dos
homens que vão ao seu encontro para que ele os ajude a resolver os mais diversos
problemas do dia-a-dia. Isso pode se dar através de oferendas que muitas vezes são
depositadas diretamente aos pés de seu assentamento. Este Exu é concebido pelos
Assentamentos de Bombonjira e Èsù, sempre os vi fixos (cimentados ou com tabatinga), enquanto para os Nàgó, em África, segundo depoimento verbal de Síkírù Sàlámì, são soltos. As representações dos demais Orixás/inquices se assemelham no Brasil e se distanciam ora mais ora menos das africanas.” Giroto, Ismael. Universo Mágico-religioso negro-africano e afro-brasileiro: Bantu e Nagô.Tese apresentada ao departamento de Antropologia da FFCH da USP. São Paulo. 1999. p.288. 44Pote ou vasilha de barro, comumente bojuda e de boca e fundo estreitos: 45 Exu que guarda a casa de candomblé.
47
adeptos tal qual o Exu de umbanda cujas casas são construídas a frente dos terreiros e
que Liana Trindade nos fala que servem
“para guardá-lo dos perigos do exterior e atender às
necessidades de seus fiéis que lhe depositam alimento. Conservar
esta entidade presa, amarrada, significa uma forma de apropriar-
se e deter a sua força mágica a serviço dos interesses daqueles
que o conservam. Ter Exu assentado consiste em deter, através
dele, o poder mágico.” (1985; p. 69).
Conhecido também como Exu pagão, Companheiro, Exu de ronda, entre outras
denominações, que têm sempre certo grau de intimidade, carinho e respeito por essa
“entidade”, representa o espírito de pessoas que viveram à margem da moral social e
que agora vêm auxiliar os homens a resolverem seus conflitos e a superarem as
dificuldades da vida, tanto por meio de pedidos que podem ser realizados ao pé de seus
assentamentos quanto diretamente confessos ao próprio Exu, através da possessão em
“trabalhos” especiais.
Giroto, refletindo sobre a perspectiva reelaborada de Exu no Brasil, uma vez que
ele foge à concepção Nagô original que o tem como orixá, escreve:
“... os Bantu que não têm na África um correspondente para Èsù
( Nkadi Mpemba é um espírito malévolo que foi assimilado à
concepção cristã do diabo) mas têm nos Nkisi a subordinação de
um morto (Nkita = homem que teve morte violenta ou os Mpungu,
protetores das vilas) cuja elaboração muito se assemelha ao
assentamento de Exu...” ( p. 289) Desta forma Exu nos terreiros
48
de angola é assimilado ao espírito de um morto que sofreu morte
violenta e ou foi pessoa má, em vida.1999: .289)
Em algumas interpretações, Exu está relacionado a espíritos de pessoas que
foram más em vida, como podemos verificar em texto de Liana Trindade:
“Os adeptos consideram Exu como uma entidade boa, uma vez
que através de seus poderes mágicos ele auxilia os homens a
empreenderem e superarem seus conflitos.... As necessidades
coletivas, culturais e psicológicas que a ele cabe resolver
decorrem das relações estabelecidas entre os homens em uma
dada estrutura da sociedade. Por esse motivo Exu é identificado
com os homens, o seu universo é a Terra e, como os seres
humanos, ele é ao mesmo tempo bom e mau. Assim, apenas Exu
será capaz de resolver s conflitos sociais. (1985; p. 80)
Muitos terreiros de candomblé em Campinas realizam festas muito concorridas
em homenagem a Exu. Nestas ocasiões, os Exus que incorporam são aqueles que, nas
casas, estão assentados perto da porta dos terreiros. Eles vêm receber as homenagens,
comem, bebem, fumam, dançam e, muitas vezes, dão consultas. Segundo Liana
Trindade ele “fornece não somente a proteção diante do sentimento de insegurança dos
indivíduos, mas também permite – através do processo de demanda – uma forma dos
homens atuarem e modificarem sua vida social.“ (1985; p. 43)
O segundo papel, também muito importante é aquele em que Exu é um inquice
denominado no angola como Aluvaiá, Bombogira, Carococi, Pangira, Jiramavambo,
49
Mavambo, conhecido também como Exu do santo, Exu escravo do orixá, porque,
embora seja um inquice, é considerado um escravo de outro inquice. Exus escravos-do-
santo se manifestam nos rituais de candomblé realizados nos terreiros, porém somente
em adeptos iniciados para ele, embora não seja muito comum esse tipo de iniciação. Ele
vem como inquice, vestido com roupas de festa e seus filhos passam pelo mesmo
processo de iniciação dos demais inquices
Ambas as categorias de Exus são forças individualizadas ligadas a um adepto
e/ou a um inquice, podendo ser, como no último caso, o próprio inquice.
O Exu do santo normalmente fica em uma casa mais reservada e o acesso não é
permitido a qualquer pessoa. Ele “trabalha” somente para o inquice e a única pessoa que
tem acesso a seu assentamento para obter benefícios é o próprio iniciado.
Participando de uma festa na casa do Tateto Ubiacyle, a respeito desse Exu-do-
santo, também chamado de Bombonjira, o ouvi explicar que o ouvi explicar que:
“Bombonjira não é Exu mulher e que não tem nada a ver com ”Pomba-Gira” que é
entidade de umbanda. Liana Trindade escreve que a “identificação de Exu com o
demônio se faz principalmente ao nível da magia. Pomba-Gira, enquanto Exu mulher
adquire os significados fornecidos pela macumba e mantidos na umbanda. “(1985; p.
67)
Ambos, tanto o Exu de rua quanto o Exu-do-santo têm nomes particulares.
Esmeraldo Emérito de Santana, representante da nação angola, no “Encontro de nações-
de-candomblé” realizado em Salvador, em 1981, se refere a essa individualização de
Exu da seguinte maneira: “... a eles dão os nomes que querem, ou eles já trazem os
nomes... Fulano é de Ogum, o Exu é tal. O outro é também de Ogum, e o Exu é outro. É
difícil dizer para “santo” tal, tal, porque ele se apresenta lá como quer.” (1984; p. 41).
50
Embora os assentamentos tanto do Exu de rua quanto do Exu do santo sejam
externamente muito parecidos, ambos cimentados ou constituídos na tabatinga46, os
elementos utilizados para assentar os Exus de rua são diferentes dos utilizados nos
assentamentos do inquice. As substâncias incorporadas tanto num quanto noutro têm a
ver com o mundo em que vivem os homens e alguns elementos representam a proteção,
outros a defesa, ou mesmo um potencial de ataque, que resultam por meio da magia
simpática nas respectivas forças emanadas. O que os diferencia são os elementos
incorporados nos assentamentos do Exu de rua que tem a ver com a característica
psicológica deste e os elementos constitutivos da identidade no assentamento do Exu-
do-santo que são aqueles relacionados com o inquice com o qual este Exu estabelece
ligação.
Os Exus são muito importantes nos candomblés, qualquer que seja a nação,
porque são eles que dão proteção aos terreiros contra qualquer tipo de malefício, ao
mesmo tempo em que, se tratados de maneira adequada, serão muito benevolentes com
a casa e seus adeptos, trazendo bênção e prosperidade. Além do mais são os primeiros a
receber as oferendas, são eles que transportam o moyo que é a força vital47 e nada se
realiza sem a sua participação. (Giroto; 1999)
46 Argila sedimentar, mole, untuosa, e com certo teor de matéria orgânica. 47 Segundo Temples : “Pour les bantous, tous les êtres de l'univers possèdent leur force vitale propre; humaine, animale, végétative ou inanimée. Chaque être a été doté par Dieu d'une certaine force, susceptible de renforcer l'énergie vitale de l'être le plus fort de la création: l'homme. La félicité suprême, la seule forme du bonheur est pour le bantou la possession de la plus grande puissance vitale; la pire adversité et en vérité le seul aspect du malheur est pour lui la diminution de cette puissance. Toute maladie, plaie ou contrariété, toute souffrance, dépression ou fatigue, toute injustice ou tout échec, cela est considéré et désigné par le bantou comme diminution de force vitale’’. Placide Tempels - La Philoshophie Bantoue 1945 Lovania -Placide Tempels« LA PHILOSOPHIE BANTOUE. Traduit du néerlandais par A. Rubbens » Lovania (Elisabethville) 1945 .Texte intégral digitalisé et présenté par le Centre Aequatoria. Full text digitalised and presented by the Centre Aequatoria http://www.aequatoria.be/tempels/Melang2.html Esta foça vital que é chamada de moyo tem conforme o texto acima uma concepção muito parecida com a concepção de axé dos iorubá ou dos candomblés de nação queto.
51
Mais adiante da casa de Exu há duas construções, uma à direita e outra à
esquerda, separadas por um estreito corredor coberto por telhas de amianto. Este
corredor, além de fazer a ligação entre a parte da frente do terreiro e o domínio interno,
também serve de área de descanso e sociabilidade Há, neste espaço, um banco de
alvenaria de ponta a ponta beirando a construção da direita que, nos dias de festa e no
dia-a-dia, serve para os momentos de pausa e de ponto de conversa para os filhos,
clientes e amigos da casa.
A construção da direita é composta por um quarto de santo, onde ficam os
assentamentos do tateto dia inquice e dos filhos da casa, uma dispensa, um banheiro e o
vestiário que é um quarto amplo, com inúmeras roupas de baianas penduradas num ferro
que vai de um lado a outro deste cômodo. No fundo, à esquerda, um estreito corredor
conduz para uma pequena área de circulação. Uma porta permite o acesso para a área
interna.. Do lado esquerdo fica a cozinha, na qual há várias prateleiras nas quais se
acondicionam muitas panelas reluzentes, louças diversas, talheres, brancas bacias de
ágata e inúmeros utensílios de plástico. Além disso, há um pequeno armário de parede,
uma mesinha sobre a qual se colocam garrafas térmicas de café.
Encostadas ao fundo da cozinha, há duas geladeiras, um forno e um fogão
industrial bem amplo e, apoiado à parede lateral, ainda há um outro fogão, pouco
menor.
Próximo à entrada, há uma pia sob a qual se encontram alguidares48 de diversos
tamanhos e, ao seu lado, um fogão à lenha.
Os fogões são muitos e grandes, porque no candomblé se preparam muitas
comidas para alimentar os inquices e os homens. Nos dias de festa quando são
48 Vaso de barro ou de metal, baixo, em forma de tronco de cone invertido, e com diversos usos domésticos; oberó, alquidar
52
sacrificados muitos bichos, são os filhos da casa que se encarregam de limpar as carnes
e cozinhá-las. A cozinha, em cujo centro há uma grande mesa ladeada por cadeiras, tem
um papel muito representativo na cosmologia do candomblé, pois é ali que são
transformados os alimentos que são servidos aos inquices e ali também são preparadas
as refeições que fortalecem os homens para que eles possam continuar a cultuar seus
deuses.
A luminosidade entra por três janelas que estão assim dispostas: uma para o
corredor lateral, outra, para a área interna que fica ao lado da porta de entrada e uma
mais alta que dá para a área da frente.
Toda essa parte do complexo do terreiro foi construída pelo sacerdote atual.
Na área interna há um pequeno pátio ocupado por dois canteiros separados por
uma escada que conduz a uma varanda, que precede o barracão de festas. Esses
canteiros são circundados por caminhos cimentados que dão acesso, de um lado, à
cozinha e a dois tanques, que estão dispostos lado a lado e encostados ao muro lateral, e
de outro lado, à dispensa, à área contígua do vestiário e à moradia do pai-de-santo.
As moradias anexas aos terreiros procuram ter uma entrada lateral ou serem
construídas sobre algumas alas do terreiro, preocupando-se sempre em não estar sobre
as “casas dos inquices”, a fim de que não se “pisem” sobre os assentamentos. Certa
reserva com a entrada da casa do sacerdote está relacionada com a possibilidade de eles
terem alguma privacidade, mesmo morando no complexo do terreiro.
Os canteiros de plantas sagradas são partes importantes das casas de candomblé
em Campinas, uma vez que as matas estão cada vez mais longe e cada vez mais
privadas, dificultando a colheita das plantas sagradas utilizadas para preparo de banhos
53
e, em diversas ocasiões, nos ritos de iniciação49. Todos os tatetos e mametos
entrevistados orgulham-se muito das espécies que possuem em suas próprias casas,
inclusive porque muitas delas são difíceis de se achar nas matas da região e só é
possível obtê-las através de cuidadoso cultivo.
Inseridos neste esboço de mata estão colocados alguns assentamentos.
À esquerda, no pepelê50, que para os de fora se assemelha a um banco de
alvenaria, ficam os assentamentos de Tempo51 e o de Angorô. O inquice Tempo é muito
cultuado nos candomblés de angola e, invariavelmente, traz, em sua representação feita
em ferro, uma grelha, mesa, cadeiras, garrafinhas de bebidas, uma mão com o indicador
apontando para cima, escadas, algumas miniaturas de ferros representantes de outros
inquices, além de outros objetos que fazem parte do dia-a-dia das pessoas.
Seu Angorô, como é carinhosamente chamado este inquice, é representado por
duas cobras entrelaçadas que se erguem para o céu e seu assentamento repousa sobre
uma coluna que sai de uma pequena poça d‘água coberta por alfaces d’água52.
Ocupando o canto esquerdo do jardim, uma pequena cobertura de telhas
translúcidas protege as quartinhas dos caboclos, as quais são rodeadas por pequenos
vasos de plantas, que as agasalham, reproduzindo um espaço “domesticado” da mata.
49 Série de processos de natureza ritual, que efetivam e marcam a promoção de indivíduos ao acesso a determinadas funções religiosas no candomblé. 50 Pepelê é uma construção de alvenaria onde são colocados os assentamentos dos inquices. O pepelê tem a função de colocar o inquice num pedestal demonstrando sua soberania e sobre os homens, sugerindo respeito e reverência dos adeptos. 51 Segundo Giroto: “Tempo Possui mastro e bandeira branca e seus símbolos ligam-no mais ao elemento terra, aproximando-a de Obalúayé enquanto [com quem muitas vezes é sincretizado( grifado por mim)] Ìrókò está relacionado mais ao fogo, cultuando como Sàngó próximo a gameleira.” Giroto, Ismael. Universo Mágico-religioso negro-africano e afro-brasileiro: Bantu e Nagô. Tese apresentada ao departamento de Antropologia da FFCH da USP. São Paulo. 1999. p.288. 52 Erva aquática, ornamental, da família das aráceas (Pistia stratiotes), acaule, estolonífera, com inúmeras raízes imersas, folhas emergentes, esponjosas, sésseis e polimorfas, flores pequenas, amarelo-pálidas, dispostas em espádice e protegidas por espata pequena e alvacenta, e cujo fruto é baga ovóide, com pericarpo fino; alface-d'água, erva-de-santa-luzia. Dicionário Aurélio Século XXI
54
Esses caboclos são os representantes do Brasil e, segundo os adeptos, a “boca
dos santos”.
Subindo a escada, podemos encontrar, no canteiro da direita, o assentamento de
Catendê, o inquice das ervas mágicas e das plantas medicinais. São sete hastes de ferro
enrodilhadas por pequena trepadeira de folhas metálicas encimadas por um pássaro.
Tudo isso sai de um vaso camuflado pelas plantas do canteiro.
Ao final dessa escada, está o barracão de festa, em cuja entrada há uma varanda,
tendo ao lado direito uma pia e ao esquerdo um corredor, que separa a construção
principal de uma outra menor e mais estreita que está encostada ao muro lateral onde
estão uma casa de Aluvaiá que é, segundo os adeptos, o Exu-do-santo, uma pequena
lavanderia e um banheiro, onde são feitos os banhos de ervas .
No fundo do corredor, há um portão de ferro que separa uma pequena área que é
usada nos dias de oferendas para guardar os bichos de quatro patas que serão usados nos
sacrifícios.
Planta do Terreiro: Inzo dia Roxe Mokumbo ni Dandanlunda
1. Pepelê 2. Casa das almas 3. Viveiro. 4. Casa de santo 5. Exu de rua 6. Cozinha. 7. Vestiário 8. Dispensa 9. Banheiro·. 10. Caboclo 11. Casa do pai-de-santo 12.Casa de Aluvaiá 13. Área coberta 14. Salão de festa. 15. Lavanderia. 16. Banho. 17. Banho 18. Roncó
8
55
Privilegiando esta área, ao centro, está o barracão que para a leitura dos
estudiosos, antropólogos, sociólogos, etc., talvez seja a peça mais importante do
terreiro. Isto porque sua especificidade é ser um lugar público onde ocorrem as festas
nas quais dançam os homens e os inquices, reproduzindo os mitos, além de que certas
danças e músicas revelam as diversas etapas de um processo iniciático. Também é no
barracão que o sacerdote recebe as visitas, portanto onde as pessoas compartilham as
experiências pessoais, propalam as suas conquistas e é onde a hierarquia se torna mais
transparente aos olhos dos de fora, pois é ali que os lugares estão bem definidos, a fim
de mostrar quem é quem na ordem do candomblé.
A idéia de senioridade associada à sabedoria e respeito é fator
preponderante para a organização hierárquica do candomblé, embora nem
sempre signifique idade física, mas iniciática.
Numa festa, a disposição dos adeptos no cortejo que entra no salão
para dançar o candomblé, revela a hierarquia daquele terreiro. As
pessoas que estão na frente, com roupas mais luxuosas, colares de contas
mais abundantes e vistosos, são as que têm mais tempo de iniciação
(cotas), ou então se trata de uma macota ou um tata , que já “nascem”
para o candomblé com um alto grau hierárquico. Tanto os mais velhos
quanto as macotas e tatas têm privilégios em relação aos filhos mais
novos da casa.
As melhores cadeiras são reservadas para os sacerdotes visitantes
mais antigos e mais chegados ao tateto ou à mameto da casa.
56
Ter muitos amigos "mais velhos" no candomblé significa
compartilhar com eles do moyo53, e ter o próprio moyo reconhecido.
Sendo assim, as melhores cadeiras e os lugares mais próximos destas são
sempre disputados, pois é como se a convivência com os iniciados, com
os mais experientes, impregnasse os mais novos no santo ou os de fora
de força espiritual e de vida (moyo).
Quando cessam as danças coletivas em virtude da apresentação da
dança de um inquice, os mais novos ficam sentados no chão, numa
postura diferente dos tatas , macotas e cotas que permanecem em pé. O
olhar de baixo para cima revela, além da posição hierárquica inferior, o
respeito pelos inquices e pelos parentes mais velhos, pois o sacerdote ou
a sacerdotisa comumente são chamados de pai e mãe como os ancestrais
biológicos, transformando-se, portanto, naquele que é ou será seu
ancestral religioso.
Os mais velhos, embora possam permanecer em pé, devem curvar-
se reverenciando o inquice ou o que tem mais tempo de iniciado, pois se
acredita que senioridade, devido à tradição oral, significa sabedoria e,
conseqüentemente, poder.
Esta ação social se expressa na conduta do “povo do santo” como
uma norma, com poucas variações dentro das casas de candomblé, sejam
eles de nação angola, queto, ou jeje.
O barracão pode ser dividido em duas partes, segundo os espaços que são
designados para os de dentro e para os de fora. Alguns são de fora porque, embora
sejam iguais na crença aos mesmos deuses, não passaram pela feitura do santo ou por
53 Força vital. Axé
57
qualquer outro processo que anteceda à iniciação, mas que introduza o sujeito na família
de santo. A primeira parte do barracão, que fica próxima à entrada, mais perto do lado
externo, é onde ficam os bancos da assistência. Essa parte corresponde a um terço do
salão, mesmo que fique abarrotada de gente nos dias de festa.
Todo o resto do salão, que é a sua maior parte, é destinado aos atabaques, aos
visitantes mais ilustres e à dança da roda de candomblé.
É nessa segunda parte que fica o centro do barracão, marcado por um ladrilho
diferente dos demais e que nos dias comuns está sempre enfeitado com flores, acaçás e
uma quartinha de água, entre outras coisas.
Podemos ver do lado esquerdo deste salão uma outra porta que dá passagem para
o corredor lateral, já descrito anteriormente, e que acolhe a casa de Aluvaiá54, uma
pequena lavanderia e um banheiro.
No fundo do barracão estão três atabaques; ao lado direito, a cadeira do tateto
dia inquice e uma velha cadeira de encosto de couro, já corroído pelo tempo, que é a
cadeira de Roxi, o inquice dono desta casa.
Por causa do modo como foram sendo ampliados, esses terreiros nem sempre
comportam uma camarinha55 grande o suficiente para acolher mais de um filho-de-santo
para uma iniciação ou para as diversas obrigações no decorrer da vida religiosa. Assim,
o barracão, por ser maior que as outras acomodações das casas de candomblé de
Campinas, muitas vezes é utilizado para a realização dos atos propiciatórios nas
cerimônias fechadas, ou quando a casa está ainda em mudança da umbanda para o
candomblé, antes que seja construída a camarinha. Nesta condição, o barracão vai servir
54 Corresponde ao orixá nagô Exu 55 Lugar reservado nos candomblés onde os iniciandos passam dias recebendo lições de culto e praticando sacrifícios para merecerem a confiança do orixá a que se dedicam; camarinha; ronco.
58
de espaço privado onde serão recolhidos os “filhos-de-santo” que, porventura, estejam
de “obrigação”.
Em toda lateral direita estão encostados bancos, que acolherão os convidados
mais ilustres, nas ocasiões festivas. Mais próximo da cadeira de Roxi há uma outra
cadeira de braços, para que em dias de festa se assente um convidado mais velho dentro
da hierarquia do candomblé ou mais importante para a comunidade.
Do lado esquerdo, uma porta vai dar ao roncó, que também é a sala de jogo de
búzios em épocas em que não há obrigações ou feituras de muzenza. Conjugado a esse
quarto, há um banheiro com uma janela que dá para o corredor lateral.
Nas paredes, havia pinturas de Lembaranganga56, de Incossi57, de Caviungo58,
de Caiá59 que são semelhantes às imagens dos orixás que correspondem a esses
inquices. Atualmente, as paredes estão pintadas de branco e não há mais as imagens dos
inquices, pois já estavam bem desgastadas pelo tempo. A parede dos fundos foi
revestida por uma cerâmica que dá a ilusão de ser um muro de pedras. No centro da
sala, pendurado no teto, há uma quartinha e uma tigela branca, rodeadas por folhas de
palmeira desfiadas.
56 Corresponde ao orixá nagô Oxalufã. Este inquice também é denominado Gangarumbanda, Gangaunfaramá, Lembafurama, Jafurama e Lembafulama. Giroto, Ismael. Universo Mágico-religioso negro-africano e afro-brasileiro: Bantu e Nagô. Tese apresentada ao departamento de Antropologia da FFCH da USP. São Paulo. 1999.p. 283. Esmeraldo Emérito de Santana fala que “... Oxaguiã no angola, que chamamos Cassuté [também denominado de Lemba-dilê ( observação acrescentada por mim)]; o Oxalufã que é Gangarumbanda, Gangaumnfaramã; o Oxalá mais velho é o Caocô... Xicaramgomo,” Esmeraldo Emetério de Santana. Encontro de nações-de-candomblé. Centro de Estudos Afro-Orientais 1984. Salvador, Bahia; p. 41. 57 Corresponde ao orixá nagô Ogum. Também denominado no angola como: Incossimucumbe, Mungongo, Roximucumbe, Sumbo, Munganga, Roximucumbe, Sumbo, Cangira, Tabalanjo, Roxi-Marinho Kitaguaze, Minicongo, Mucongo, Naguê, Mugomessá, Jamba,Ngo, Mavalutango, Katembo, Rucongo, Alunda, Dagolonan, Kitongo. Giroto, Ismael. Universo Mágico-religioso negro-africano e afro-brasileiro: Bantu e Nagô. Tese apresentada ao departamento de Antropologia da FFCH da USP. São Paulo. 1999.p.279 58 Corresponde ao orixá nagô Omolu. Também denominado no angola Quingongo, Camafunge, Cafunge. Kaviungo. 59 Corresponde ao Orixá nagô Iemanjá. Também denominado no angola como: Quissimbe, Caiala, Micaia, Aiocá, Inaê, Calunga, Janaina, Mameto Caiatumbá.
59
Alguns ventiladores estão distribuídos nas paredes, para dar um pouco de
ventilação quando a casa está cheia, porque o teto não é muito alto e há apenas duas
janelas e duas portas que dão para o exterior. Nas prateleiras vêem-se santos católicos,
a exemplo de São Jorge e São Benedito. Nas paredes do barracão, se espalham laços de
tecidos coloridos.
Fotos Inzo dia Roxe Mokumbo ni Dandalunda- 2005
Frente atual. Foto: Ivete M . Previtalli 9
Corredor de entrada. Vê-se ao fundo a entrada do salão. 10
Foto: Ivete M. Previtalli
60
Entrada do barracão. Foto Ivete M. Previtalli 11
12 13
Parte interna do barracão. Foto: Ivete M. Previtalli
14
Casa de caboclo. Foto Ivete M. Previtalli
61
15
Assentamento do Inquice Tempo e inquice Angorô. Foto Ivete M.P.
Embora o candomblé exija locais onde haja matas, cachoeiras, rios,
encruzilhadas, os terreiros hoje estão cada vez mais enfronhados nos espaços urbanos.
Por isso, os terrenos não são muito grandes e a construção do complexo religioso, em
sua maioria, ocupa quase toda a área disponível. Os sacerdotes procuram comprar os
terrenos adjacentes a fim de aumentar a área e incorporar novas construções. As ervas
são plantadas em canteiros, uma vez que as matas estão cada vez mais distantes e
privadas. As encruzilhadas vão sendo asfaltadas e Exu que antes só recebia ebó em rua
de terra, hoje vai se acostumando com o asfalto representante da modernidade.
Esta casa revela a vitória de alguns candomblés de Campinas, porque a maioria
deles não possui seu próprio "chão". Embora esses espaços sejam conseguidos com o
sacrifício dos pais e mães-de-santo, tateto Ubiacylê fala com satisfação sobre sua
conquista:
“Olha, graças a Deus que eu tenho um pedaço de chão. Porque
não é para mim, é para o meu santo... Eu acho que isso é muito
bom, muito bom mesmo. Graças a Deus, a todos os inquices, aos
orixás, sei lá, a Exu. Porque muitas pessoas queriam ter o que eu
62
tenho, porque tem muita gente que toca candomblé em casa de
aluguel. Então eu não posso reclamar. A gente fala, reclama do
aperto, mas... dá graças a Deus.".
O segundo terreiro mais antigo que realiza atividades ainda hoje no município de
Campinas é o Inzo Muzambo dia Hongolo, situado na Rua Sérgio Sidney de Souza, no
Município de Hortolândia, e data de abril de 1974. O terceiro terreiro de que se tem
notícia é Inzo dia Musambu Kaingo n´boti Ofulá, situado à Rua 6, nº 1783, no
município de Monte Mor e data de janeiro de 1983. O quarto terreiro, segundo a data
de fundação, é o Ile Axé Arolê, situado à Rua Joaquim da Silva Arieiro, nº 374, em
Campinas e data de 1986.
Percebe-se que as denominações bantas que receberam estes terreiros, com
exceção do Ile Axé Arolê que tem seu nome em nagô, foram introduzidas recentemente
devido à procura da afirmação da identidade da nação angola, perante todas as outras.
Diria mesmo que este fato é de importância inconteste para estes terreiros. Em outras
palavras, o nome é um dos fatores fundamentais da identidade.
Olhando com atenção cada um dos quatro terreiros selecionados, pude perceber
que o deslocamento dos terreiros de umbanda em direção ao candomblé se deu,
fisicamente, de maneira muito semelhante em todos eles. Entretanto, o terreiro Ilê Axé
Arolê revela uma nova faceta, pois as permanências e rupturas aconteceram com a
agregação de novos ritos.
63
OUTROS USOS DO ESPAÇO
O espaço do terreiro Ilê Axé Arolê que passou por mudanças em conseqüência da
introdução do candomblé, hoje processa uma nova fase de alterações determinadas pela
construção de novos nichos, exigidos pelo acréscimo de ritos da nação queto e de culto
ao egungun.60 Agregando ritos afro-brasileiros diversos, tateto Gitalanguange separa
cada expressão religiosa, meticulosamente, por categorias que designam os limites de
cada uma delas, definidas por ele mesmo. Quanto ao espaço, são estabelecidos lugares
para a umbanda, para o candomblé de nação angola, para o de nação queto e outro ainda
para o culto de egungun. Se observarmos cuidadosamente o salão onde são realizadas as
festas públicas, podemos perceber como sutilmente se revelam as novas utilizações do
espaço.
No salão, o chão revestido com uma moderna cerâmica branca acompanha a
decoração das paredes de um tom verde muito claro, que é dado pelo efeito de uma
textura que lhe foi aplicada, revelando uma estética moderna diferente dos outros
terreiros que são mais rústicos. No centro, tateto Gitalanguange mostra Onilê61, que é a
divindade da terra cultuada pelos candomblés queto. Embora esse espaço central seja
semelhante aos outros terreiros, o que o diferencia dos demais é o significado que lhe é
atribuído, ou seja, a morada do orixá Onilê, uma divindade que não pertence ao panteão
angola.
60 Em alguns candomblés iorubas, espírito de antepassado que recebe oferendas e é invocado em certas cerimônias especiais [p. ex., no axexé (q. v.)] ; egungum. 61 Orixá dono da terra, ou a própria terra. Giroto fala em sua tese de Doutorado que o inquice correspondente a Onilê é Tateto Kisanga Ria – Incungo, porém em Campinas não ouvi falar sobre esse inquice apesar de todos os terreiros angola possuírem um marco central no chão do barracão que também pode receber sacrifício em tempos propícios.
64
Uma grande coluna circular branca de paredes frisadas em alto relevo, que
lembra as colunas dos antigos templos gregos, marca o centro do salão. Sobre a parte
superior desta coluna descansam uma quartinha e uma alguidar, ambas de barro,
rodeadas por folhas de palmeira desfiadas, o assentamento da cumeeira.
Em um dos cantos deste salão, há três atabaques, ao lado de um trono de madeira
e, nas paredes, exibem-se algumas máscaras e esculturas de madeira em estilo africano.
Observa-se que o centro do salão, o orixá Onilê, a coluna grega, os
assentamentos que há sobre ela, as máscaras e esculturas em estilo africano e a própria
decoração das paredes, revelam as infinitas possibilidades que esse pai-de-santo permite
que se elaborem em seu terreiro.
Fotos do terreiro Ilê Axé Arolê – 2005
Frente do barracão. Foto: Ivete M.P. 16
Coluna central. Foto: Ivete M. P. 17 Coluna central. Foto: Ivete M. P. 18
65
As Casas de Santo e a Casa de Egungum.
Num terreno, recentemente incorporado ao Ilê Axé Arolê foram construídas
casas de santo que estão divididas conforme a nação a que pertencem. O pai-de-santo
separa os orixás dos inquices, mas possui ambos em seu candomblé e justifica essa
separação: : “A minha rumbona é de Ewá, então não tem como fazer em angola, então
a gente faz em queto e toca em queto as coisas de Ewá, de Obá, de Logum.” ( tateto
Gitalanguange)
Pensando desta forma, o pai-de-santo distribuiu inquices e orixás nos diversos
quartos em que estão divididas as duas construções que se localizam uma de cada lado
do terreno.
Na primeira visita ao terreiro, o egungum62 que foi assentado por pessoas de
Itaparica, estava colocado no último quarto da construção à direita. Um ano depois, a
casa já estava construída num terreno ao lado.
62 O culto de egungum é o culto de ancestral ligado à cultura nagô. 62 Em alguns candomblés iorubas, espírito de antepassado que recebe oferendas e é invocado em certas cerimônias especiais [p. ex., no axexé (q. v.)] ; egungum.Segundo Juana Elbien, “ O objeto primordial do culto de Égúngún consiste em tornar visíveis os espíritos ancestrais, em manipular o poder que emana deles e em atuar como veículo entre os vivos e os mortos. Ao mesmo tempo que mantém a continuidade entre os vida e morte, o culto de Egúngún também mantém estrito controle das relações entre vivos e mortos, estabelecendo uma distinção muito clara entre os dois mundos: o dos vivos e o dos mortos (os dois níveis de existência). Com efeito, os Baba trazem para seus descendentes e fiéis o benefício de sua bênção e de seus conselhos, mas eles não podem ser tocados e ficam sempre isolados dos vivos. Sua presença é rigorosamente controlada pelos Òjè e ninguém pode aproximar-se dos Egúngún. Os Egúngún, Baba Égún, ou simplesmente Baba, espíritos daqueles mortos do sexo masculino especialmente preparados para ser invocados, aparecem de maneira característica, inteiramente recobertos de panos coloridos, que permitem aos espectadores perceber vagamente formas humanas de diferentes alturas e corpo. Acredita-se que sob as tiras de pano que cobrem essas formas encontra-se o Égún de um morto, um ancestre conhecido ou, se a forma não é reconhecível, qualquer aspecto associado à morte. Esses ancestres coletivos são os mais respeitados e temidos entre todos os Egúngún, guardiães que são da ética e da disciplina moral do grupo “( 1993; p. 120)
66
O pai-de-santo justifica a introdução do culto de egungum em decorrência de
problemas de saúde que só poderiam ser sanados mediante o culto de ancestrais.
Embora ele afirme isto, convém lembrar que nos terreiros de angola já existe a casa das
almas, e o culto de ancestrais é marca preponderante das religiões bantas das quais se
originou a nação angola.
Afirmar que os bantus cultuavam ancestrais pode simplificar muito sua filosofia.
Conforme os estudos de Tempels, a filosofia banta é complexa e se fundamenta na
preservação da força vital chamada pelo autor de ‘’dom de Deus’’. Acreditando que a
força vital do homem pode, por um lado, se enfraquecer ontologicamente e, por outro,
ser reforçada, o negro banto não media esforços para preservá-la e recompô-la, sempre
que fosse necessário. Isto envolvia o comprometimento com comportamentos morais
condizentes com suas normas sociais, tais como o respeito à hierarquia que organizava
todos os níveis de seres viventes e também após a morte. O principal intuito era jamais
KUFWA (morrer). Segundo Temples, o motivo principal do modo de agir banto é
preocupar-se, principalmente, com a vida, muito mais do que com a existência de tal
modo que temiam acima de tudo a morte, o enfraquecimento ou a anulação da vida.
Uma das maneiras da energia vital ser fortificada era pela relação com certos
espíritos de mortos, sobretudo dos antepassados dos clãs que salvaguardavam os
viventes, e de espíritos de pessoas que tinham sido boas em vida, apesar de pessoas
comuns.
Temples nos informa a maneira como os bantos acreditavam que a energia da
vida podia ser fortificada por meio de certos espíritos:
« Existem termos positivos utilizados pelos bantos como a
67
expressão Kukomesya Bumi que significa « fortalecer a vida » 63.
Também existem os Bauidye que são os mortos sobretudo dos
pais de clãs espiritualizados e os Bauidye, que « protegem,
salvaguardam » os viventes que são os Dafu Betunama. »
(tradução livre)
Além disso, também Deus era considerado pelos bantos, conforme Temples,
como um morto ou um ancestral igual a outro qualquer, além de que outras qualidade
de espíritos ancestrais podiam trazer inúmeros benefícios aos viventes:
« Referiam-se a Deus como um Vidye ou um morto comum vidye
bampe, mfumwami ampe, que em banto significa : Deus ou
nosso espírito, nosso morto me dá isto ou aquilo, me concede uma
ou outra alegria... Há também os Manga que propiciam dyese,
maese..., isto é a fecundidade, a caça, etc. » (tradução livre)
Desta forma, uma preocupação essencial entre os bantos era cuidar bem de seus
ancestrais, a fim de que a vida pudesse andar positivamente. Sobre isto Temples escreve
que
«A negligência, o abandono dos mortos, dos ancestrais,
dos espíritos trazem forçosamente a infelicidade. Se os viventes
não causam nenhum obstáculo (ontológico, moral, jurídico), os
63 Tempels escreve :« Il existe des termes positifs qui signifient: "raffermir la vie" kukomesya bumi. On dit des défunts, surtout des pères de clan spiritualisés, des bavidye, qu'ils "protègent, sauvegardent" les vivants bafu betunama. On dit de Dieu, d'un vidye ou d'un défunt ordinaire vidye bampe, mfumwami ampe, Dieu, ou notre esprit, mon défunt, me donnait ceci ou cela, m'accordait positivement l'un ou l'autre bonheur... Il y a des manga pour avoir de la chance, dyese, maese..., pour la fécondité, pour la chasse, etc. La négligence, l'abandon des défunts, des ancêtres, des esprits, apporte nécessairement du malheur. Si les vivants ne posent pas d'obstacle (ontologique, moral, juridique), les êtres invisibles sont, per se, des aides, des protecteurs et soutiens de la force de vie des vivants(...). La Philosophie bantu (capitulo II : 6. La force de la vie peut-elle être raffermie?) .
68
seres invisíveis são por si só ajudas, protetores, e sustentam a
força vital dos viventes. »( tradução livre)
Desta forma os bantos acreditam, segundo Tempels, que, se a pessoa andar
positivamente, respeitar seus ancestrais, cuidar deles e se mantiver longe de influências
nefastas, se não tiverem o hábito de maldizer, ela será vigorosa e passará esse vigor aos
seus filhos.
No Brasil, os antigos valores bantos reinterpretados sob novo contexto, e hoje
com o candomblé inserido numa sociedade pós-moderna em que a relação do ser
vivente e da morte foram modificadas, o culto aos ancestrais foi consideravelmente
reestruturado e reintrepretado.
Inzo Yombeta, Cruzuê das almas, Casa das almas ou Cruzeiro da almas, são
alguns dos nomes que recebe a moradia dos ‘’ancestrais’’ nos candomblés angola.
Com o afastamento dos valores africanos, os ritos aos mortos tornaram-se
bastante simplificados, esvaziando-se a concepção de antepassado e ancestral para
adquirir uma função mais mágica (Giroto ; 1985)
As almas que são consideradas nefastas (Kiumbas) afastam-se por intermédio de
ebós ; as almas que realizam benefícios são cultuadas na Casa das almas, além de
espíritos de filhos da casa que já faleceram e, em alguns casos, de clientes também já
falecidos. Embora não tenham a categoria de "ancestrais,’’ essa almas, crêem os
adeptos, podem beneficiar a comunidade do terreiro.
Velas, sacrifícios de animais e oferendas de alimentos diversos, são ofertados a
estas almas para que elas estejam presentes e tenham relações amistosas com o
sacerdote, no momento em que forem necessários seus préstimos.
69
Ademais, o culto de egungum, que tem ligação com os candomblés de origem
nagô, desenvolveu-se , no Brasil, sobretudo na Ilha de Itaparica.
Conforme Júlio Braga, o culto de babá egum é organizado em volta de um
ancestral comum que tenha fundado o culto e se constitui através de seus descendentes,
"e de tantos quantos estão vinculados àquela família por um
complexo sistema de parentesco, seja por consangüinidade,
afinidade, adoção ou compadrio. Acrescente-se ainda, os que se
associam a essa família por laços de parentesco religioso, que se
intercruzam com os de parentesco prevalecente, para garantir-
lhes quase o mesno nível de aceitação no grupo familiar
extenso.’’ ( 1995 ; p.25)
Pertencentes a categorias diferentes dos orixás, que são associados a estruturas
da natureza, os eguns estão associados à estrutura da sociedade (Elbbein: 1993)
Desta forma são duas práticas diferenciadas e segundo Juana Elbien, constituem
dois tipos de organizações e de instituições, dois sacerdócios: “o culto dos òrìsà e o
culto dos égún; os “terreiros” lésè-égún64 e os “terreiros” lésè-òrìsà65. Os axé de
fundação são totalmente diferentes, assim como os “assentos” de égún são diferentes
dos de òrìsà.” (1993: 103)
No terreiro onde se cultua orixá, pode haver uma casa dedicada aos eguns que se
chama ilé-ibo-aku, local onde os mortos (adósù66 falecidas) serão cultuados e que,
segundo Elbien, nunca deve ser confundida com o Ilé-ìgbàlè que é a casa do culto de
ègún .Ainda segundo a autora, no Ilé-ibo , são venerados os espíritos das adósù,
64 Expressão usada para designar terreiros que trabalham somente com egungum ; pisar no culto de egungum 65 Expressão usada para designar terreiros que trabalham somente com orixá; pisar no culto aos Orixás. 66 Pessoas iniciados no candomblé nagô, queto.
70
sacerdotisas iniciadas no culto dos òrìsà. No Ilé-`gbàlè, são adorados os ará-òrun, em
geral, os espíritos daqueles iniciados nos mistérios dos égún.”(1993; p. 104)
O que podemos perceber é que, embora tateto Gitalanguange tenha construído uma
casa para egum, seu terreiro não traduz o que Julio Braga descreve como um terreiro
dedicado ao de culto de baba egum.67
Afastada das demais dependências, a casa de Egun é chamada pelo sacerdote de Ilé-
ibo, porém, na pesquisa de campo, ele me revelou o desejo de vestir baba egum que
fora, segundo o sacerdote, assentado nesta casa por sacerdotes de culto de baba-egum
de Itaparica.
Conforme Juana Elbien:
“ Além dos “assentos” e dos símbolos coletivos, a adoração dos
ancestres masculinos toma toda a significação pelo fato de os
espíritos de alguns mortos do sexo masculino, especialmente
preparados, poderem tomar uma forma corporal e serem
invocados em circunstâncias determinadas através de ritos bem
definidos. São os Égún ou Egùngún, antepassados conhecidos,
que levam nomes próprios, estão vestidos de maneira que os
singulariza e são cultuados pelos membros de sua família e seus
descendentes. (1993; p. 106)
O culto de egum na casa de Tateto Gitalanguange é totalmente importado, conforme
nos conta o próprio sacerdote:
“Agora o mês que vem eu vou fazer cinco anos de Baba
egum assentado. Então vem o pessoal de Itaparica da
67 Ver; Braga Júlio. Ancestralidade Afro-brasileira. O culto de babá egum. Centro de estudos Afro- Orientais da Universidade Federal da Bahia e Edições Iananmá. Salvador Bahia.1992
71
casa de Budjó, lá da ilha... das amoreiras.. O que eu
conheço... aqui ninguém tem ilê ibo... egum plantado.
Pelas referências até do pessoal de Itaparica essa é a
primeira casa que tem. Então a gente cultua Babá Okê.
Tem os ancestrais que a gente cultua também. Então, lá
ele já tem posto, ele já tem roupa. Mais para frente, vou
tomar posto dentro da casa de Egum. Então não adianta a
gente ter na casa da gente, porque tem “lá dentro”68
também. Então é aí que eu vou para lá também e depois
disso a gente combina dele vir para cá fazer este ritual de
vestir babá egun. É por isso que eu estou fazendo
separado, fora para não ter envolvimento com o axé do
orixá.” ( Tateto Gitalanguange)
Na maioria das vezes, nos terreiros de angola pesquisados, os adeptos se referem
à casa das almas como a casa de egungum. Neste caso, o pai-de-santo optou por chamar
sacerdotes do culto de egungun da Bahia para fazer um assentamento em seu terreiro.
Isso separa as almas do candomblé angola dos eguns do candomblé queto de tal forma
que parece, segundo a concepção do pai-de-santo, que o culto ao egungum possui um
status superior ao culto das almas, embora hoje acolha “almas” e “eguns” sob o mesmo
teto.
68 Provavelmente, o sacerdote esteja se referindo aos segredos do culto de Egungum . Júlio Braga explica que os segredos do culto são muito bem guardados: “ Os ojés são auxiliados pelos Amuixãs, que passaram à condição de Ojé após o primeiro estágio de iniciação. Formam eles um grupo de extrema importância para a permanência da comunidade sagrada, além de exercerem diferentes serviços durante a cerimônia. Embora situados no primeiro grau de iniciação, já conhecem os elementos essenciais dos rituais sem, contudo, terem acesso ao Ilê auô e aos segredos da seita.” (1995: p.43)
72
Num outro terreno vizinho, um ano após minha primeira visita, foi construída
uma casa, local em que o pai-de-santo instalou as almas do candomblé angola e os
egunguns do culto nagô, a fim de separar tais ritos dos demais. Além disso, conta com
orgulho que plantou, naquele espaço recentemente adquirido, duas árvores de Iroco69, a
árvore sagrada do candomblé queto.
Ilê Axé Arolê
Casas de santo. 20 Casa de Egungum e das almas 21
Foto: Ivete M. Previtalli
O Recanto da Umbanda.
Além da delimitação de espaços para os inquices, os orixás e os eguns, também
a umbanda ganha no Ilê Axé Arolê um lugar específico.
O cantinho da umbanda é um nicho repleto de objetos que simbolizam as
entidades de umbanda, principalmente os caboclos, os pretos-velhos e as crianças.
Coberto por telhas de barro e circundado por meias paredes, se localiza do lado direito
do pátio que fica em frente do terreiro, próximo ao salão de festas.
69 Orixá nagô cuja morada e epifania é a gameleira-branca, árvore que se costuma adornar com laços de pano e, em cujas raízes, recebe oferendas de alimentos.
73
Neste pequeno espaço, há um altar de santos católicos, imagens de pretos-velhos
e de caboclos, cuités, cabaças, rosários de lágrima de nossa senhora, arco e flechas,
ferros de caboclo e um banquinho. É neste local que o preto-velho dá atendimento para
as pessoas, conforme nos informou o sacerdote.
Esse mesmo sacerdote nos revelou por ocasião da entrevista que, além do
candomblé, realiza trabalhos de umbanda todas as segundas-feiras, nesta seqüência:
Exu, preto-velho, caboclo e baiano. Disse, ainda, que "bate” umbanda, mas, quando faz
festa de caboclo, "bate" em angola.
Cantinho da umbanda. Foto Ivete M. P. 22
Detalhe do cantinho da umbanda. Foto Ivete M. P. 23
74
O Arranjo Entre As Diversas Nações.
Para poder organizar todas essas expressões religiosas, o pai-de-santo separa
espacialmente a umbanda do candomblé angola, do candomblé de queto e do culto de
egungum.
Ritos de umbanda e de candomblé podem ser realizados no salão, mas o de
egungum é fora da casa.
Quando a umbanda ocupa a sala, o candomblé fica afastado, para que os orixás e
inquices fiquem longe das almas dos pretos-velhos, dos caboclos, dos baianos e exus
pagãos. Nas festas do candomblé, esta casa celebra tanto queto quanto angola no mesmo
dia.
O pai-de-santo diz que: "Exu, Ogum Oxossi, Bombojira70, Catendê71, Angorô72,
Zaze73, Matamba74, Dandalunda75, Iemanjá, Nanã e Oxalá, pertencem à nação angola",
e por outro lado, pertencem à nação queto: Logum, Oxumarê, Omolu, Ewa e Obá.”
(Tateto Gitalanguange)
Embora haja esse leque de possibilidades religiosas afro-brasileiras, realizadas
neste terreiro, o pai-de-santo afirma que pertence à nação angola.
70 Inquice correspondente ao orixá nagô Exu - Aluvaiá 71 Corresponde ao orixá nagô Ossaim 72 Corresponde ao orixá nagô Oxumarê 73 Inquice da justiça, que gera o poder da política/ Loango corresponde ao orixá nagô Xangô 74 Corresponde ao orixá nagô Iansã 75 Inquice correspondente ao orixá nagô Oxum
75
A comunidade campineira do candomblé angola não aceita de bom grado
algumas inovações, dentre as quais podemos mencionar os atabaques tocados por
baquetas, zuelas76 e orins77 cantados numa mesma quizomba78.
O pai-de-santo conta como a comunidade reage a respeito de suas novas
elaborações:
“Ah você virou sua casa para queto (dizem os outros)! Eu não
virei minha casa para queto. Na minha obrigação de 21 anos, dei
todos meus ebós79 e meu bori80, toda a situação foi feita dentro de
odu81, dentro de caminhos de odu, e o meu orixá como sempre,
ele só comeu dentro de angola, eu não mudei nada. A minha mãe
veio exclusivamente para minha obrigação. Ficou aqui o período
todo acompanhando tudo que estavam fazendo, mesmo no bori
com o pessoal lá de Salvador, que também são da família de
Tumbajunssara82.” (tateto Gitalanguange)
As festas continuam sendo freqüentadas por pais e mães-de-santo da
comunidade religiosa afro-brasileira, independentemente da nação a que pertença,
embora já tenha acontecido de uma mãe-de-santo de angola se retirar com toda a família
de uma delas, porque uma parte da festa foi cantada em queto.
76 Cada um dos cânticos com que se chamam a descer os inquices. Estes cânticos são realizados nas festas do candomblé angola e os inquices dançam conforme são realizados pelos adeptos. 77 Cada um dos cânticos com que se chamam a descer os orixás; são os cânticos realizados nas festas públicas quando os orixás vêm e dançam ao som dessas músicas-orações. 78 Dança movimentada. Festa pública no candomblé de nação angola. 79 Oferenda ou sacrifício de animal votivo a um orixá realizado para receber um benefício, para melhorar a energia vital, para purificar o ser antes de entrar nas obrigações iniciáticas. 80 No candomblé e em outros cultos afins, rito penitencial e purificatório ao fim do qual se banha a cabeça do crente com sangue do animal sacrificado. 81 No opelé-ifá, o valor de cada uma das metades de sementes ou de búzios. 82 Antigo terreiro de origem banta da Bahia
76
O que parece uma arbitrariedade do pai-de-santo, ao juntar diversas nações de
candomblé, umbanda e o culto de egungun, pode ser interpretado como uma disputa no
mercado de bens simbólicos.
Assentamento de Iyámi83. 23 Assentamento para prosperidade 24
25
Assentamento do inquice Tempo. Foto: Ivete M. P
83 As ìyàmi Osòròngà também denominada de eleye ( dona dos pássaros) representam o poder místico da mulher em seu aspecto mais perigoso e destrutivo. Verger expõe que embora as àjé ( como também são conhecidas) sejam feiticeiras, “as àjé não são execradas pela sociedade, da qual ... constituem um dos pilares essenciais” (16). Porém deve-se ser prudente ao falar delas e, se falar bem pode trazer transtornos, falar mal é atrair para si sua força destrutiva, portanto, “uma atitude de prudente reserva diante de uma potência estabelecida, malevolente e atuante... o que acarreta, em relação a elas, uma discrição que não facilita a tarefa dos pesquisadores.” Verger, Pierre. A grandeza e Decadência do Culto de Ìyàmi òsòròngà ( minha mãe feiticeira) entre os Yorùbá. In: As Senhoras do Pássaro da Noite. Org. Carlos Eugênio de Moura. Edusp. São Paulo. S.P. 1993; p. 16.
77
Na realidade, o sacerdote tem conhecimento de que nem sempre o candomblé angola
“agrada” o cliente; desta forma, na disputa pelo mercado de bens simbólicos, ele incorpora
outros ritos, a fim de conquistar novos adeptos e clientes.O discurso do Tateto
Gitalanguange, com o objetivo de justificar a existência dessa variedade de ritos em sua casa,
ainda que esteja sempre voltado para suas necessidades espirituais, revela outra realidade,
quando fala:
"Hoje com a dificuldade material que a gente tem, de axé, de
coisas de orixá... A gente tem que ter alguns conhecimentos fora
do arroz e feijão, para você poder atender não só filhos-de-santo,
mas cliente e tudo mais. Porque hoje a dificuldade é o cliente,
que é na realidade quem sustenta uma casa. Ou a gente vai
trabalhar fora para poder pôr o dinheiro dentro de casa, ou se
você vive disso, como eu, a gente tem que se adequar dentro de
certas situações. Então, mesmo quando eu estou fora para fazer
obrigação, eu faço angola se for de angola e faço queto, se for de
queto. E tem algumas coisinhas que a gente fazia dentro de jeje84
também. Então a gente tem isso aí, para poder atender essas
pessoas.” (Tateto Gitalangiange)
Ao mesmo tempo em que a incorporação de novos ritos pode trazer uma
instabilidade para essa casa de candomblé por meio das rupturas que eles possam
causar, ao se contrastarem uns com os outros, a permanência dos ritos mais antigos de
umbanda e do candomblé angola permitem uma referência simbólica que mantém o
equilíbrio do grupo.
84 Uma das nações do candomblé.
78
Esse arranjo é elaborado de tal forma que um adepto pode escolher entre as
diversas modalidades religiosas afro-brasileiras a que prefira freqüentar, sem que seja
obrigado a participar das outras. Isto quer dizer que, se por acaso o filho quiser
freqüentar somente os trabalhos de umbanda, não será obrigado a estar presente nos dias
em que são cultuados os inquices ou orixás com ritos de candomblé. Se por um lado,
essa atitude exclui, por outro lado, ela inclui todos no contexto mais amplo do grupo,
que se mantém na relação de unidade/diversidade. Neste mesmo sentido, o pai-de-santo
torna possível este jogo de relações, muitas vezes antagônicas, quando universaliza a
idéia de Deus: “Não tem diferença. Deus é igual, só muda o nome". (Tateto
Gitalanguange)
Apesar desse terreiro realizar tantos rituais, de possuir espaços específicos para
cada um, parece que o pai-de-santo carrega consigo a idéia monoteísta cristã de ver um
só Deus.
A separação espacial de cada expressão religiosa revela a organização do
sistema de símbolos religiosos de maneira que, segundo Halbwachs,
“o lugar recebe a marca do grupo, e vice-versa. Então, todas as
ações do grupo podem se traduzir em termos espaciais, e o lugar
ocupado por ele é somente a reunião de todos os termos. Cada
aspecto, cada detalhe desse lugar em si mesmo tem um sentido
que é inteligível apenas para os membros do grupo, porque todas
as partes do espaço que ele ocupou correspondem a outro tanto
de aspectos diferentes da estrutura e da vida de sua sociedade, ao
menos, naquilo que havia nela de mais estável”.85(1990:133)
85Halbwachs, Maurice. A Memória coletiva. Editora Vértice, Revista dos Tribunais, São Paulo, SP. 1990; p.133.
79
Desta maneira, o espaço deste terreiro revela como esse pai-de-santo se
relaciona com a religião, o que ele e sua comunidade valorizam como sagrado, e os
espaços que são cedidos separadamente a cada rito denota uma preocupação em
mostrar que o candomblé de nação angola, o de nação queto, o culto de egungum e a
umbanda têm sua própria identidade e, portanto, se diferenciam entre si.
Apesar de o candomblé angola de Campinas se dizer resistente às mudanças,
nesta casa ele se modernizou, adquiriu novas formas e não perdeu sua beleza e
harmonia. Ele sobrevive.
80
CAPÍTULO III
Elaboração do Parentesco – Formação e Organização das
Famílias-de-santo
26
81
O candomblé, conforme Vivaldo da Costa Lima, “é um grupo pequeno, na
medida em que sua estrutura, e não sua extensão, é que define e o situa como tal”.
(2003; p.58)
Sendo assim, o grupo de candomblé funda sua estrutura organizacional na figura
do pai ou mãe-de-santo, respectivamente, tateto dia inquice ou mameto dia inquice, nos
candomblés de angola.
O nome mais difundido e utilizado nas casas de candomblé para designar os
sacerdotes ou sacerdotisas é pai ou mãe-de-santo e conforme Édison Carneiro:
“O título de mãe vem do fato de o chefe do candomblé
aceitar iniciadas (filhas, no futuro) para criar a devoção
aos deuses. Depois de efetivamente admitidas na
comunidade, estas iniciadas se consideram filhas
espirituais do chefe do candomblé – e nesse sentido é que
se emprega a palavra mãe. Desde que toda gente, dentro ou
fora do candomblé, tem um espírito protetor, que deve
habitar o seu corpo, e desde que o chefe do candomblé
precisa preparar a iniciada para receber, em si mesma, a
visita mais ou menos freqüente da divindade, - um processo
que exige tempo, convivência diária, prática de um
conjunto de cerimônias secretas no interior do candomblé,
com a orquestra especial de tambores e de instrumentos
musicais africanos, - fazer o santo vale por uma segunda
educação, que confere ao chefe da seita a ascendência de
mãe em relação à filha.” (1991; p.103)
82
Desta forma, com base na relação dos líderes dos terreiros com seus filhos
espirituais, e dos filhos entre si, é que se organiza a família-de-santo, de modo que,
segundo Vivaldo da Costa Lima,
“o conceito de família biológica cede sempre lugar ao
outro, de família de santo. Mãe de santo é assim entendida
no seu valor semântico atual – como a autoridade máxima
do grupo de candomblé, o chefe da família-de-santo.”
(2003; p. 60)
Embora o conceito de família-de-santo esteja associado ao conceito de família
ainda muito discutida nas Ciências Sociais, Vivaldo da Costa Lima explica que “a
família-de-santo, corrente nos candomblés, necessita, mais de uma explanação do que
de uma definição.” (2003; p. 24)
A estrutura familiar no candomblé se constrói mediante a relação do sacerdote
com seus filhos, resultando daí os diversos níveis de parentescos que vão sendo
elaborados, conforme se sucedem as iniciações. Esta constituição familiar se revela
muito parecida com a estrutura familiar ocidental contemporânea, porém não
corresponde ao conceito de família nuclear que é formada por pai, mãe e filhos. No
candomblé, apenas a presença de um pai ou de uma mãe-de-santo (não dos dois ao
mesmo tempo) e seus filhos, é suficiente para fundar uma família-de-santo. Também a
família religiosa não estanca no núcleo familiar, mas se expande envolvendo irmãos,
tios, primos de diversos graus, avós, bisavós, inclusive todos os ancestrais conhecidos,
além de padrinhos e madrinhas, configurando-se, desta forma, uma família extensa.
Essa rede de relações não se esgota nas unidades-terreiros, mas se amplia a todos
os terreiros que se envolvem na rede de relações sociais que é tecida, principalmente,
pelo parentesco entre seus membros. Pode também se dar por agregação mediante
83
compromissos sociais assumidos publicamente, como no caso de padrinho e madrinha
que podem ser pessoas de família e até de nações diferentes, mas que apadrinham algum
filho de uma casa no momento dos ritos religiosos públicos, dentre os quais, a tirada do
nome e o recebimento do decá.86 O pertencimento a uma família de santo pode ainda ser
uma força efetiva de socialização, de prestígio e de mobilidade dentro da classe e da
sociedade mais abrangente. Pertencer a uma família-de-santo de prestígio pode
assegurar ao adepto do candomblé, além do amparo religioso, o pertencimento a um
grupo familiar socialmente reconhecido que lhe confere algum status. (Vivaldo da Costa
Lima: 2003)
Por isso, o conhecimento da ancestralidade se torna muito importante para o
"povo do santo", porque, uma vez que o candomblé tem uma tradição oral, conhecer e
recitar sua ancestralidade significa saber sua origem, a que linhagem pertence, onde é
seu lugar na rede de relações familiares e desta forma, ser ao mesmo tempo detentor e
divulgador da história do grupo e de sua própria. 87
Os ancestrais, assim como os parentes mais próximos, no candomblé angola
campineiro, sempre são saudados pelos adeptos ao iniciarem um jogo de búzios, nos
pedidos de bênção ao chegarem aos terreiros, antes e depois das refeições, assim como
no princípio e finalização das grandes cerimônias propiciatórias.
86 As cerimônias de tirada do nome consistem numa fase da festa de saída de muzenza (iniciação no candomblé angola) em que um sacerdote visitante é convidado pelo tateto ou mameto protagonista da festa para perguntar a dijina ( nome de iniciação) ao novo inquice que está saindo na sala. O sacerdote que apadrinhará o iniciado dá algumas voltas na sala de braços dados com o inquice. Num determinado momento ambos param e o padrinho pergunta ao inquice qual é a dijina do recém iniciado. O inquice responde baixo, porém o padrinho insiste no questionamento a fim de que todos possam ouvir o nome do novo membro da família. Neste instante o inquice gira em volta de si mesmo, dá um salto e grita o nome pelo qual a muzenza será conhecida a partir de sua iniciação. 87 O novo nome recebido após a iniciação do candomblé tem a ver com a perda dos laços familiares na diáspora. Quando o escravo descia do navio negreiro, deixava para traz a sua família, os seus ancestrais, até o próprio nome, porque muitas vezes era batizado ainda com o pé entre a água do mar e a areia. No candomblé quando se passa efetivamente a fazer parte da família de santo e torna-se uma muzenza, recebe um nome africano que tem significado para o grupo.
84
O grupo familiar se organiza fundamentado numa regra de obediência geral
relacionada ao parentesco, que é a proibição do incesto88. Isto significa que não se pode
fazer o que se quer, quando o que está em pauta é a vida sexual. Deste modo, a
interdição consiste em dar início à organização familiar sobrepondo-se ao acaso ditado
pela natureza. Assim, essa interdição determina um jogo de trocas que, conforme Levi-
Strauss, são operações complexas, conscientes ou inconscientes e que pressupõem a
reciprocidade que se converte na regra fundamental mantenedora do grupo (L-Strauss:
1976).
Neste sentido, no candomblé em geral e, em especial na nação angola aqui
estudada, os sacerdotes não podem iniciar indiscriminadamente qualquer pessoa. O
marido não pode iniciar sua esposa ou companheira e vice-versa, tampouco o pai-de-
santo de uma filha pode ser ao mesmo tempo pai de seu parceiro(a) sexual. Os filhos
biológicos também não devem ser iniciados por seus pais biológicos, embora neste caso
não haja uma norma muito rígida. Nesta última circunstância, pode acontecer uma
iniciação que é chamada de meia cabeça, isto é tanto o pai ou mãe biológica, desde que
sejam sacerdotes, dividem a raspagem da cabeça do filho com outro sacerdote que se
tornará seu pai ou mãe espiritual.
Ainda levando-se em conta a proibição do incesto, nas iniciações ou obrigações
de tempo de “feitura” não é permitida a presença do parceiro na casa de candomblé e
tampouco a participação deste em qualquer uma das fases dos ritos, mesmo que seja
apenas na preparação das comidas sagradas, a fim de que o casal não sofra, futuramente,
88 Vivaldo da Costa Lima escreve que nos terreiros baianos há o interdito de casamento para aqueles que são filhos de um mesmo orixá, porque se tornam, desta forma, irmãos. Melhor dizendo, se um homem e uma mulher são ambos filhos de Ogum , esta seria uma união proibida porque por serem de um mesmo orixá tornam-se irmãos. Em Campinas, não encontrei esta proibição. Ao perguntar sobre este tipo de interdito, ouvi de um sacerdote: “Nunca ouvi falar disso”. Ouvi também de uma filha de santo: “Já ouvi minha mãe falar disso uma vez, mas ela disse que é bobagem.” Na verdade, Vivaldo explica que essa interdição não é muito respeitada também nos terreiros pesquisados por ele na Bahia.
85
com desavenças ou a repulsa sexual, que poderá resultar numa separação. Neste caso, o
parceiro sexual daquele que está "recolhido" permanece, na maioria das vezes, afastado
das cerimônias e do terreiro. Forma-se um verdadeiro bloqueio de informações tanto de
dentro da casa para fora, quanto de fora para dentro da "camarinha”,89 de maneira que
não haja nenhuma ligação entre os cônjuges.
A regra determina, ainda, que parceiros sexuais não podem ser irmãos de santo,
nem filho-de-santo um do outro, mas podem ser primos, tios, sobrinhos, assim por
diante.
A proibição de um sacerdote ser pai-de-santo (ou mãe) a um só tempo de
parceiros sexuais o obriga a dar um dos cônjuges a outro sacerdote; além disso, cria um
direito sobre outro parceiro sexual de algum filho ou filha de santo que pertença à outra
família e que lhe será dado (a) em troca. A proibição do incesto, ao fundar a troca, vai
além da interdição, uma vez que se converte numa regra de reciprocidade e por meio
desta, se cria a aliança.
Nos quadros abaixo, podemos observar como é elaborado o sábio jogo de trocas
que, segundo Levi-Strauss, garante e previne contra os riscos no duplo sentido das
alianças e rivalidades. (Levi-Strauss: 1996)
89Lugar reservado nos candomblés onde os iniciandos passam meses, recebendo lições de culto e praticando sacrifícios para merecerem a confiança do orixá a que se dedicam; Roncó.
86
Grupos aparentados de A (Iniciado no candomblé)
Avô ou avó-de-santo
27
Possibilidades de parentesco com “A” em que não há proibição do
incesto.
28
Tio ou tia-de-santo Pai ou mãe-de-santo
Primo ou prima-de-santo
Irmão ou irmã de santo “ A” parceiro sexual de “B” * Filho-de-santo *
Sobrinho- sobrinha-de-santo
Avô ou avó-de-santo
Pai ou mãe-de-santo Tio ou tia-de-santo “B” Parceiro sexual de “A”
(Torna-se tio de A)
“B” parceiro sexual de A“A” parceiro sexual de “”B” *filho-de-santo
(torna-se primo de A)Irmão ou irmã-de -santo
“B” Parceiro sexual de “A” Filho-de-santo de “A” (torna-se sobrinho de “A”
87
Em vermelho estão relacionados os casos em que a proibição do incesto
não permite que “B” esteja localizado na organização familiar por causa
de seu parceiro sexual “A”
Avô ou avó-de-santo
29
É importante notar que o parceiro sexual “B” será introduzido no grupo por meio de
filiação a algum parente de “A”. Neste caso, o pai ou a mãe de “A” não pode tomá-lo
como filho, a fim de que “B” não se torne irmão de “A”, além de que o próprio “A”
também não poderá ser pai ou mãe-de-santo de “B” a fim de que “B” não se torne filho
de “A”, que tornaria um interdito o relacionamento sexual entre eles. Outra questão
importante é que, embora haja a regra da proibição do incesto entre irmãos de santo e
entre pais e filhos, “B” não é excluído totalmente do grupo familiar de “A”.
Respeitando o interdito, serão elaborados arranjos para que “B” permaneça na mesma
linhagem, de preferência no grupo de parentes mais próximos de “A”, reforçando desta
forma, o núcleo parental com mais uma nova aliança. Assim, há uma preferência para
Tio ou tia-de-santo Pai ou mãe-de-santo
Irmão ou irmã de santo
Primo ou prima-de-santo
“A” parceiro sexual de “B”
Sobrinho- sobrinha-de-santo
88
que a filiação de “B” se dê entre os irmãos de “A”, não excluindo as outras
possibilidades.90
Contudo, no limite, o interdito do incesto traz para as famílias do candomblé a
reciprocidade e, com isso, a possibilidade da aliança entre as casas. Segundo Levi-
Strauss:
“Para nos assegurarmos de que as famílias não se tornem
fechadas e não venham a constituir progressivamente outras
tantas unidades auto-suficientes, contentamo-nos em proibir o
casamento entre parentes próximos." 91(1976; p.226)
Certamente não é difícil acontecer que filhos de um mesmo sacerdote se
envolvam sexualmente. Neste caso, se concretizaria o incesto entre irmãos de santo.
Para que a relação dos parceiros sexuais não resulte numa “quizila”92 entre eles, um dos
dois, através de ebós93 ou de um “Mutue kudiá”94 acompanhado ou não de sacrifício
ao inquice, passará para uma nova filiação para desfazer a relação incestuosa e,
portanto, o interdito.
Por ser o candomblé de Campinas bastante jovem, comparado aos terreiros mais
antigos da Bahia e do Rio de Janeiro, ainda hoje procura fincar suas raízes e criar
tradição em solo do interior paulista. Assim, diferente do candomblé baiano cujos laços
90 A respeito do tabu do incesto na organização do parentesco no candomblé, Vivalado da Costa Lima fala que nos candomblés da Bahia há além da proibição de pais e irmãos–de-santo serem parceiros sexuais também há o interdito para filhos de um mesmo orixá. Não encontrei este interdito nos candomblés angolas de Campinas, permanecendo a proibição do incesto somente para os casos de pais com filhos e entre irmãos. 91 Claude Lévi-Strauss. As Estruturas Elementares Do Parentesco, tradução Mariano Ferreria. Editora Vozes, São Paulo, 1976. 92 Repugnância, antipatia, aborrecimento, chateação, desavença, zanga, inimizade, desinteligência, rixa, briga. 93 Alimentos considerados sagrados que são passados pelo corpo da pessoa, com o intuito de cura ou retirada do mal acompanhados de rezas e que podem vir ou não seguidos de sacrifício animal. 94 Literalmente “dar de comer à cabeça”. Cerimônia em que muitas comidas sagradas são ofertadas à cabeceira do ofertante seguidas de rezas e sacrifício de galinhas e pombos.
89
consangüíneos designam, muitas vezes, a herança de casas e cargos, apenas muito
recentemente, o candomblé campineiro começou a formar um grupo de iniciados, que
são parentes biológicos dos primeiros “feitos no santo”.
Uma nova geração de filhos, sobrinhos e netos consangüíneos começou a ser
iniciada nos candomblés angola de Campinas, o que aponta para uma continuidade
desta expressão religiosa no interior de São Paulo.
Estes novos filhos-de-santo que pertencem tanto à família religiosa quanto à
família biológica serão, ou pelo menos se espera que sejam, os herdeiros do axé.
Observando as famílias biológicas dos sacerdotes pesquisados e as novas
ordenações que o candomblé lhes dá, podemos perceber tanto essa nova geração sendo
introduzida nessa expressão religiosa, quanto distinguir as alianças formadas por
intermédio das trocas determinadas pela interdição.
Por exemplo, mameto Dangoroméia tem um filho de nome Kassumbê que foi
iniciado por Ogogê (filho-de-santo de Munukaya que é mãe-de-santo de Dangoroméia),
além de outras duas filhas, Omindewá e Kauselê, “raspadas” por mãe Munukaya, e tem
também duas netas: Imbomazaletambo e Kiximugombê, a primeira feita por Kauselê (tia
biológica) e a segunda iniciada por Omindewá (tia biológica).95
Família biológica de mameto Dangoroméia
Dangoroméia Mãe biológica
Kassumbê Omindewá Kauselê (filho biológico) (filha biológica) (filha biológica)
Kiximugombê Imbomazaletambo (neta biológica) (neta biológica)
95 Os parentescos relacionados neste trabalho foram obtidos através da memória dos entrevistados, uma vez que não existem documentos que comprovem as filiações.
90
30
Família de santo cruzada com família biológica de mameto Dangoroméia
Ogogê Munukaya (Irmão- de- santo
de Munukaya) Mãe-de-santo
Dangoroméia Omindewá Kauselê Kassumbê
Kiximugombê Imbomazaletambo
31
Mameto Dangoroméia se torna, na família de santo, irmã de suas filhas
biológicas e tia de suas netas, além de passar a ser prima de seu próprio filho.
Também mameto Corajacy tem uma filha, Omijewa, que foi “raspada” por
Munukaya, sua mãe de santo, tornando-se desta forma irmã de santo de sua filha.
Família de santo cruzada com família biológica de mameto Corajacy
Munukaya (Mãe de santo)
Corajacy Omijewá
32
91
Da mesma forma, tateto Ubiacylê também tem uma sobrinha biológica,
Iyalodemim, que foi raspada por ele próprio juntamente com Omolewá (uma filha-de-
santo de Ubiacylê), tornando-se desta forma sua meia-neta de santo, se levarmos em
conta a presença de Omolewá.
Família de santo cruzada com família biológica de tateto Ubiacylê
Ubiacylê(pai de santo)
Omolewá Iyalodemim (mãe de santo)
33
Por sua vez, Kafulavunjê que é filho biológico de tateto Gitalanguange foi
“feito” por Toigilá, irmão de mãe Somenegué que é avó de pai Gitalanguange. Desta
forma, Gitalanguange passa de pai biológico para primo de santo de segundo grau de
seu filho.
Família de santo cruzada com família biológica de tateto Gitalanguange
Somenegue Toigilá
Kafulavunje Nanjerecy
Gitalanguanji 34
92
Como pudemos observar, através dos esquemas, as famílias de santo reorganizam o
parentesco biológico de tal forma que, no candomblé, uma mãe pode se tornar irmã de
suas filhas, como no caso de mameto Dangoroméia e mameto Corajacy, ou ainda como
no caso de tateto Gitalanguange, se tornar primo do seu próprio filho.
Assim como os filhos e netos dessas lideranças, há atualmente muitos
descendentes de filhos-de-santo que já nasceram no candomblé e hoje formam um novo
grupo de "feitos no santo" diferente dos primeiros sacerdotes e filhos que vieram de
outras religiões e se iniciaram em idade mais avançada do que estes descendentes que
foram introduzidos no candomblé ainda crianças.
Por outro lado, o candomblé campineiro cresce também por meio de sacerdotes de
umbanda que procuram os pais e mães-de-santo a fim de se iniciarem e ganharem mais
prestígio religioso. Iniciados, tornam-se pais e mães-de-santo ao introduzirem o
candomblé angola em suas casas e, na maioria das vezes, não abandonam os “trabalhos”
de umbanda.
Em Campinas, duas linhagens dão origem às quatro famílias mais importantes do
candomblé angola. De um lado, temos tateto Ubiacylê e tateto Gitalanguange que são
provenientes, consecutivamente, de uma neta (Namboazaze) e uma bisneta (Nanjerecy)
de Miguel Grosso; de outro lado, mameto Dangoroméia e mameto Corajacy, que são
filhas de uma filha (Munukaya) de santo de Menakenã.
Os diagramas abaixo mostram as casas principais e suas descendentes.96
96 A ancestralidade e a descendência destas famílias foram coletadas nas histórias de vida dos tatetos e mametos que fizeram parte da pesquisa, uma vez que devido a tradição oral do candomblé não há documentos que registrem os parentescos. Além disso, houve nos relatos dos sacerdotes uma congruência na revelação dos dados.
93
I- Diagrama da família de santo de Tateto dya N’kisse Gitalanguange
Miguel Grosso
Obamim
Somenegué
Nanjerecy
Gitalanguange
Nitobi
35
II- Diagrama da família de santo de Tateto dya N’kisse Ubiacylê
Miguel Grosso
Obamim
Nambuazaze
Ubiacylê Mazamkaya
Alamussangi Omolewa
Dandaiworô
Onisatoju
Gebelonan
Oluanganji Lembazukala Kimulengi
36
94
III - Diagrama da família de santo de Mameto dya N’kisse Dangoroméia
Menakenã
Munukaya
Dangoroméia
Kayagodelecy
Coromimm
Kayalodomim
Kayangolaborecy
Toluãnamborecy
Kayangokecy
Diamonoya
Indakeolegi
37
IV - Diagrama da família de santo de Mameto dya N’kisse Corajacy
Menakenã
Raismarê Munukaya (queto) (angola)
Corajacy
38
95
É importante notar que, no diagrama IV, mameto Corajacy já havia sido
iniciada por uma mãe da nação queto (Raismarê) e mais tarde deu uma obrigação com
mameto Munukaya, passando assim para essa linhagem.
Prandi, na sua obra Os candomblés de São Paulo, escreveu que: “...são
raríssimos os sacerdotes chefes de terreiros de São Paulo que permaneceram filiados
ao axé de feitura (terreiro onde foram iniciados), ocorrendo seqüências de rupturas e
refiliações que já vêm desde a Bahia.” (1991, p.107) Como já havia comprovado Prandi
em São Paulo, a pesquisa de campo em Campinas também revelou um intenso trânsito
de filhos entre as casas e linhagens.
As regras que regem a família tradicional do candomblé pressupõem que o filho-de-
santo vai permanecer neste núcleo familiar até, ao menos, completar sete anos de
iniciado para tornar-se "irmão mais velho"97 mediante um ritual de confirmação,e se
for de sua vontade constituir casa própria de candomblé. A conquista deste patamar
hierárquico, na família do candomblé, deve tradicionalmente ser uma conquista
cumulativa. É ano após ano cozinhando as comidas de santo, rezando ingorossi,
participando de ebós, dançando nas festas, limpando os animais sacrificados para os
inquices, além de fazer os serviços mais rudes na faxina da casa, que a muzenza98
completa sete anos de iniciação e pode através de uma cerimônia propiciatória se tornar
uma cota99. Na família tradicional, o tempo é o recurso que o neófito tem para galgar os
patamares hierárquicos do candomblé.
97 As mulheres quando passam por esse processo tornam-se de cota, e de um modo geral, homens e mulheres serão reconhecidos, após a obrigação de sete anos, como ebômi. 98 Muzenza é a filha-de-santo que é iniciada para um inquice no candomblé angola. Depois que ela completa sete anos e faz os ritos propiciatórios e a cerimônia pública de recebimento do decá (ou cuia), no qual lhe será outorgado o direito de iniciar filhos-de-santo, ela não mais será uma muzenza e passará a ser uma “cota”. 99 Ver nota 6
96
Ele terá como seu maior objetivo dentro da religião servir a família de santo e ao seu
inquice, e contará, para resistir às adversidades do sistema, como sua maior aliada, a
autodisciplina que lhe facilitará a permanência e lhe possibilitará a conquista do
reconhecimento da sociedade religiosa.
Porém nem sempre as coisas acontecem conforme prescreve a família tradicional do
candomblé que existia antigamente na Bahia. Muitos filhos violam o lugar que lhes foi
atribuído no mito da família e embarcam numa viagem rápida, resultando no trânsito de
filhos-de-santo entre as famílias e linhagens.
Se as regras na família tradicional pressupõem um compromisso de lealdade e
reciprocidade, que significa sacrificar-se, comprometer-se socialmente com o grupo
familiar religioso do qual faz parte, com o evento da mobilidade dos filhos entre as
diversas famílias e linhagens, o compromisso em longo prazo é descartado e os laços
sociais, afrouxados, resultando daí uma nova relação mais prática na qual os valores
tradicionais são substituídos por outros mais apropriados à modernidade.
Ainda que haja, na modernidade, um afrouxamento dos laços familiares no
candomblé, reitero a importância da família-de-santo para o escravo e mesmo para
muitos de seus descendentes, pois ela legaliza a família negra matrifocal, uma vez que
há uma identidade entre este tipo de família e a família–de-santo.
O candomblé campineiro se compôs em uma sociedade na qual vigoravam
relações capitalistas que se tornaram cada vez mais de curto prazo, no decorrer da
última metade do século XX. Este capitalismo de "curto prazo”, segundo Sennet, tem a
produção movida por uma constante mudança, a fim de satisfazer a volatilidade do
consumidor, e não só modifica as relações de trabalho, como também as relações sociais
e, portanto os relacionamentos familiares.
97
Se antes num capitalismo organizado, o mercado era menos dinâmico e as relações de
trabalho assim como as sociais eram baseadas no compromisso de lealdade, no
capitalismo de curto prazo a carreira tradicional fenece, o mercado se torna muito
competitivo e dinâmico e, por isso, não há mais lealdade, nem perspectivas em longo
prazo.
Da mesma forma, também o mercado de bens simbólicos se flexibiliza a fim de
atender à demanda do "cliente" que passa cada vez mais a exigir inovações que possam
satisfazer suas expectativas. Falar em compromissos mútuos e relações em longo prazo,,
neste contexto, é falar em uma virtude abstrata, pois que ela não se encontra em nenhum
lugar. (Sennet: 2001)
Transpondo isso para a família observamos que, no sistema tradicional, havia a
valorização das virtudes que se aprimoravam em longo prazo, e a obrigação formal
entre pais e filhos desenvolvia uma confiança mútua que se enraizava lentamente. Com
a mudança para um novo padrão cultural mais adaptado às condições sociais modernas,
as relações familiares vão se traduzir em uma reação mais descomprometida entre pais e
filhos, de tal maneira que se afrouxam os laços familiares, resultando num
distanciamento, e as relações fortes de parentescos convertem-se numa cooperatividade
superficial entre os membros da família.
Observando essa mudança de comportamento nas relações de trabalho e nas
familiares, Sennet escreve:
“Como se podem buscar objetivos a longo prazo numa sociedade
de Curto prazo? Como se podem manter relações sociais
duráveis? Como pode um ser humano desenvolver uma narrativa
de identidade e história de vida numa sociedade composta de
episódios e fragmentos?” (2001; p. 27).
98
Como exposto anteriormente, desde os anos 70 do século XX, Campinas passou
por intenso processo de industrialização e crescimento urbano e foi nesta condição
socioeconômica que, nos anos 80, o candomblé se estabeleceu no Município.
Para compreendermos o trânsito de filhos dentro do candomblé campineiro,
temos que levar em conta o contexto socioeconômico em que ele foi inserido, uma vez
que, segundo Rita Amaral, "... o "povo de santo" fala a mesma linguagem que o resto
da sociedade e participa da mesma cultura." (2002; p. 21).
Quando observamos em Campinas o grande trânsito de filhos entre as casas de
candomblé, podemos pensar que isto pode corresponder a uma "liberdade" pessoal, isto
é, a um descompromisso que tem a ver com os novos padrões familiares que vigoram na
sociedade mais abrangente.
A pesquisa de campo mostrou como essa nova relação familiar se contrapõe aos
valores da família tradicional, corroendo a confiança, a lealdade e o compromisso
mútuo. Isto aparece muito claro no momento em que um pai-de-santo relata sua história
de vida e revela os conflitos que a flexibilidade dos novos relacionamentos familiares
gera:
"Eu nunca tentei segurar ninguém, muito pelo contrário. Todo
mundo é livre para fazer o que quiser. Mas eu acho gozado
porque, quando minha mãe morreu, eu estava com 29 anos de
santo. Agora veja, se eu abri minha casa e estava com 9 anos de
santo, claro que queria trazer os ibás de todos os meus santos. Eu
só estava com o ibá100 de Exu e eu tinha uma casa aberta. Agora
os meus santos nunca quiseram vir embora para minha casa. Só
no ano que ela morreu é que trouxe meus ibás; e hoje... Não sei.
100 Assentamento do "santo". Ser, ou objeto onde assenta a energia sagrada de qualquer entidade religiosa afro-brasileira; assento.
99
Tem gente que faz o santo... Depois abandona, vai para outra
casa, às vezes volta. Todos os lugares têm gente assim." (tateto
Ubiacylê)
Neste relato o pai-de-santo revela o fosso que separa a geração mais velha da mais
nova, o que nos leva a verificar que as relações de “curto prazo” nas famílias da
sociedade moderna, também aparecem na família do candomblé, promovendo novos
padrões de comportamentos, apesar de não serem rejeitados os padrões tradicionais.
Se as relações mais voláteis causam mágoas entre pais e filhos, também podem gerar
conflitos entre os sacerdotes, já que é muito comum uma mãe ou pai-de-santo dizerem
que o santo do filho que rompeu com a antiga casa, fora “feito” errado.
Um dos meus entrevistados desabafou:
"O povo do candomblé não tem ética. Quando um filho vai
procurar outro pai-de-santo, ao invés de perguntarem: Por que
vou jogar para você? Cadê sua mãe? Não... Eles vão logo
dizendo que o santo está errado, dão obrigação e ainda mudam a
dijina101. Se continuar assim, não tem candomblé certo. Trocam
uma amizade por causa de um filho-de-santo." (mãe Corajacy)
A fluidez das relações na modernidade que caminha no sentido contrário às
regras do modelo tradicional, parece corroer o caráter e concordando com Sennet,
“talvez a corrosão de caracteres seja uma conseqüência inevitável . Não há mais longo
prazo (...) desorienta a ação a longo prazo, afrouxa os laços de confiança e
compromisso e divorcia a vontade do comportamento." (2001; p. 33)
101 No candomblé angola-congo nome por que a filha-de-santo ou o filho-de-santo passa a ser ritualmente conhecido(a), ao fim de sua iniciação.
100
Uma vez que o trânsito de filhos entre as casas é comum e intenso, novos
acordos são elaborados a fim de que os recentes padrões de comportamento não venham
a desintegrar a rede de relações sociais mais amplas que é fundamental para que o
candomblé se constitua como uma comunidade. Desta forma, os sacerdotes procuram
"fazer vista grossa" ao acontecido e continuam convidando e sendo convidados para as
festas, permitindo, assim, que se dê continuidade aos intercâmbios sócio-religiosos. Por
exemplo, mesmo que um filho não queira que o antigo pai ou mãe-de-santo seja
convidado para sua festa de recebimento de decá,102 ele será convidado e muito
provavelmente comparecerá, embora as rivalidades e as mágoas não deixem de existir.
Embora o deslocamento de um filho-de-santo para outra casa de candomblé gere
constrangimentos, ele pode, por outro lado, ampliar a rede de relações porque, conforme
migra para outra família, incorpora na sua genealogia religiosa outro pai ou mãe, novos
irmãos, tios, avós, etc. sem descartar completamente a antiga família. Neste caso,
quando o filho for declarar sua ancestralidade, ele começará pelo pai ou mãe que o
iniciou, depois proclamará os outros sacerdotes que por ventura lhe deram obrigação,
até chegar ao último sacerdote ou sacerdotisa que o adotou como filho de santo e a
família a que pertence. Quando o trânsito foi intenso, a declaração da ancestralidade fica
bastante extensa. Assim, o cruzamento de diversas linhagens, num mesmo sujeito,
revela no seu mapa de parentesco as várias famílias se interligando por intermédio de
um mesmo indivíduo.
Curiosamente, quando estive falando com os sacerdotes pesquisados, todos eles,
em algum momento da entrevista, referiram-se ao parentesco que nos unia, em
102 No candomblé investidura de um ou de uma ebômi no cargo de babalorixá, ou ialorixá, quando é de sua intenção abrir uma nova casa de culto. Cerimônia que se faz por ocasião dos sete anos de feitura, em que se alcança um patamar superior na hierarquia do candomblé. O conjunto dos paramentos (filá e colar) e a bandeja com material consagrante usado nessa cerimônia.
101
decorrência de meu envolvimento com essa manifestação religiosa e ao meu trânsito
entre as famílias.
De uma maneira muito peculiar, mãe Corajacy fala sobre a rede de relações
familiares no candomblé, quando ela se refere ao meu envolvimento religioso com as
casas angolas de Campinas:
“Queira ou não queira nós somos parentes de santo dos dois
lados. De um lado você é minha parenta de santo, quer dizer,
você é neta de Dango, não é? Isso, você é bisneta. Sua mãe de
santo é minha afilhada... Olha o rolo, olha como tem rolo... Você
foi para casa de Bia e o povo queira ou não queira... foi o avô de
Bia que disse para mim quando Bia tomou obrigação de 14
anos... que eu sou parente dele. Por que... esqueci o nome dele
agora, porque eles são parentes. Meus avós são parentes dele,
então devemos ser parente, porque tem uma parentagem ali que a
gente não sabe falar como é que é. Meu tataravô é parente de não
sei lá de quem... Nós filhos-de-santo... nós somos sempre
parentes.” (mameto Corajacy)
Este caso é somente um entre muitos outros que são comuns no candomblé de
Campinas. Por exemplo, Odetalodê foi iniciado por Kitalemim que é filha de santo de
Omikassidê e que foi iniciada por uma mãe-de-santo chamada Vani, porém acabou
dando obrigação com Dangoromeia e desta forma entrou para esta família.
Dangoromeia é irmã de santo de Corajacy, porque Corajacy embora tenha sido feita
por Raismarê, deu obrigação com Munukaya, passando assim para essa linhagem. Desta
forma, torna-se tia-de-santo de Odétalodê. Como Kitalemim fechou a casa, Odétalode
deu obrigação com Gitalanguange, recebendo uma nova dijina que é "Talaboquemim".
102
Posteriormente, Kitalemim deu obrigação com Gitalanguange e passou de mãe-de-santo
para irmã-de-santo de Talaboquemim. Tateto Gitalanguange é filho de Nanjerecy que é
filha de Somenegué, que por sua vez é irmã de Namboazaze. Namboazaze é mãe-de-
santo de Ubiacylê que, desta forma, é primo de Gitalanguange, portanto tornou-se
também primo de Taloboquemim.
Para facilitar a visualização desse arranjo elaborei um diagrama que pode ser
visto a seguir.
Diagrama do candomblé de angola de Campinas.
(a interseção num filho-de-santo transforma o diagrama do candomblé angola
campineiro numa grande família).
Menakenã Miguel Grosso Raismare
Obamim Munukaya
Somenegue NambuazazeCorajacy Dangoromeia
Nanjerecy UbiacylêVani
GitalanguangeOmikassidê
Kitalemim
39
Talaboquemim (Odetalode)
103
Desta forma, se, de um lado, o jogo prudente das trocas propicia a aliança, o
trânsito dos filhos-de-santo entre as diversas casas e linhagens produz uma série de
conflitos. Tais conflitos, por sua vez, forçam os pais e mães-de-santo a serem mais
“flexíveis,” 103 administrando as relações sociais de modo a não desintegrarem o
intercâmbio sócio-religioso entre as famílias e se reconstituírem as alianças.
Na pesquisa de campo uma mãe-de-santo revela:
“Uma época eu me afastei da casa..., por causa de filho que
saiu. O filho-de-santo saiu daqui foi para casa dele, e ficou
muito... O pai-de-santo não tinha nada a ver, e hoje que sei que
filho-de-santo que faz fuzuê. A gente não tem que entrar na dele...
Nós nos afastamos por causa de filho-de-santo, mas é bobagem,
agora vou à casa dele e tudo bem, nós somos amigos mesmo e
acabou, e nós temos que entender que filho-de-santo é filho-de-
santo e nós somos nós.” (mameto Corajacy)
No entanto, se no candomblé campineiro é comum a mobilidade dos filhos-de-
santo entre as diversos terreiros, linhagens e nações, vale notar que há entre duas das
casas pesquisadas o acato à regra tradicional, uma vez que entre elas não se dá a troca
de filhos. Não quero dizer que não exista trânsito de filhos entre os seus terreiros e
outros terreiros de candomblé de Campinas, mas que, no caso de mameto Corajacy e
mameto Dangoroméia, elas recebem e perdem filhos para outros sacerdotes, porém elas
não trocam filhos entre si.
103 Flexibilidade para Sennet significa a “capacidade de ceder e recuperar-se da árvore, o teste e restauração da sua forma. Em termos ideais, o comportamento humano flexível deve ter a mesma força tênsil: ser adaptável a circunstâncias variáveis, mas não quebrado por ela.” (2001; p.53)
104
Sob esta ótica, surge a indagação: Se o trânsito de filhos-de-santo entre os
terreiros de candomblé é muito comum em Campinas, o que é que faz com que estas
duas mametos não violem as regras entre si?
A aliança
No trabalho de campo, mameto Dangoroméia revela um aspecto importante da
sua vida quando fala: “Eu já sou mulher, negra e do candomblé... Que moral se dá
para isso? A sociedade não dá moral mesmo...”
Conforme explana Helena Theodoro,
“ dentro do sistema capitalista que sobrevive à custa da
exploração do ser humano. A mulher negra é a mais explorada,
já que em termos da divisão racial e sexual do trabalho ela ocupa
os mais baixos escalões, sobretudo no setor agrícola, onde
equivale a cerca de 60%. Na medida em que a carteira
profissional assinada é uma garantia para o trabalhador,
constata-se que apenas 37% das mulheres negras trabalhadoras
possuem carteira assinada. ( 1996; p 50)104
Além de mulher negra que, socialmente, vem depois do homem branco, da
mulher branca e do homem negro, portanto, no último patamar social, mameto
Dangoroméia alia mais um atributo negativo que é pertencer ao candomblé. Neste caso,
ser do candomblé, segundo a afirmação da sacerdotisa ,não é uma característica
104 MITO E ESPIRITUALIDADE:MULHERES NEGRAS. Helena Theodoro. Editora PALLAS, Rio de Janeiro, R.J. 1996
105
positiva, pois sua declaração revela o preconceito contra a mulher, o negro e,
conseqüentemente, às religiões afro-brasileiras.
Apesar da afirmação “ser do candomblé” ter uma conotação negativa na
afirmação da sacerdotisa, pode, ao contrário, converter-se num atributo positivo,
porquanto foi por intermédio do sacerdócio que mameto Dangoroméia e mameto
Corajacy puderam melhorar seus recursos financeiros que eram bastante parcos, além
de adquirirem visibilidade e força política em Campinas.
Mameto Dangoroméia e mamteto Corajacy eram funcionárias da limpeza
pública, tinham uma família matrifocal e passaram muitas dificuldades. Conforme
explica Bernardo, a família matrifocal da mulher negra é uma
“forma alternativa de família, (e) parece fazer parte dos fluxos,
das trocas constituídas na diáspora. Tanto para a mulher
africana, quanto para a afro-descendente, a matrifocalidade,
aparentemente, não foi só uma imposição da escravidão e do pós-
abolição – com a conseqüente marginalização do homem negro
no mercado livre durante as primeiras décadas do século XX, que
lhe impossibilitava assumir a chefia familiar. ( Bernardo, 2003;
p. 44)
A família matrifocal é observada no caso das duas sacerdotisas, que não
conviveram muito tempo com seus respectivos maridos e foram responsáveis pela
criação e sustento de seus filhos. Ouvi certa feita de Mameto Dangoroméia: “Minha
filha, se não fosse o candomblé, não sei o que seria de meus filhos...”
106
O candomblé além de oferecer referência religiosa para seus filhos, também lhes
proporcionou a possibilidade de ganhos com o jogo de búzios e os ebós que supriam
suas necessidades.
Mameto Corajacy conta como foi que o sacerdócio no candomblé lhe mostrou
novas maneiras de ganhar a vida:
“Quando eu cheguei aqui, eu perdi meus dois empregos... Aí
eu fui para a cidade com Dango fazer cartão, Dango me
incentivou. Dango foi muito legal comigo, me incentivou fazer
cartão, ligar para os outros, que eu jogava búzios, que eu tinha
conhecimento que o povo não tinha porque batia umbanda.”
(mameto Corajacy)
No candomblé segundo Bernardo,
“ os trabalhos religiosos são sempre pagos, desde a “leitura de
búzios”, que tem um preço mais ou menos fixo, até outros tipos
de trabalhos que são pedidos pelos orixás, dependendo dos
problemas apresentados pelas diferentes pessoas que recorrem a
esta modalidade religiosa.” (1986; p. 49)
Desta forma, quando mameto Corajacy perdeu seu emprego foi com o saber e o
status que lhe foi conferido através da iniciação no candomblé que ela conseguiu suprir
suas necessidades financeiras.
Embora este saber tenha sido “desqualificado por outros saberes”
(Bernardo,1986; p.44) foi ele que possibilitou a ascensão social e financeira destas
mulheres. Ou dito de outra forma: foi através do papel da “mãe-de-santo” que estas
107
mulheres ascenderam socialmente. “Ser do candomblé” é muito diferente de “ser mãe-
de- santo”, uma vez que é no cargo de mãe-de-santo que está inscrito o poder.
Concordando com Helena Theodoro,
“ a fé na religião é o grande apoio da mulher negra; seu axé.
Sua atuação na comunidade se completa com sua força
espiritual, trabalha nas comunidade-terreiros que se apóiam na
concepção da tradição nagô sobre o universo e as pessoas. Os
mitos africanos a consagram e caracterizam.” ( 1996; p.61)
Porém, no caso destas sacerdotisas, principalmente de mameto Dangoroméia, o
apoio se dá na origem banta que legitima sua nação religiosa que é angola, como
podemos depreender de sua próprias palavras:
“Encontrar o candomblé de angola foi uma lição de vida, eu
tenho certeza que eu herdei essa espiritualidade dos
antepassados da minha família , porque meu pai tinha
espiritualidade, e também depois ele era...eu sou de uma
ancestralidade pura, né, de uma nação do povo banto. Papai
contava algumas coisas pra mim , de meu tataravô, da minha
tataravô que foi jogada no mato...”( mameto Dangoroméia)
Percebe-se na declaração acima a importância que tem a relação da ascendência
biológica com a nação do candomblé à qual pertence; além do mais, percebe-se que por
meio da espiritualidade ancestral, legitima-se o cargo, no caso, de mameto dia inquice
ou como são mais comumente conhecidas, “mãe-de-santo”.
Anteriormente, por serem mulheres, negras, chefes de família, eram exploradas,
uma vez que a divisão racial e sexual do trabalho as colocava nos mais baixos escalões.
108
Ademais, a mulher negra, conforme Helena Theodoro,“é vítima do machismo do
homem negro, que sofre todos os condicionamentos de uma sociedade racista e
machista, da qual ele absorve todos os valores e o comportamento do homem branco
em relação às mulheres,” (1996, p. 50)
Quando essas mulheres são iniciadas no candomblé encontram bastante apoio
na religião, porém ainda não têm status e poder que só se alcançam com o sacerdócio e
a liderança de uma casa religiosa. Isso só acontece quando elas se tornam mães-de-
santo. Daí a diferença de “ser do candomblé” e “ser mãe-de-santo”.
A figura da “mãe-de-santo,” no imaginário social, reserva-lhe uma aura de
sabedoria pelo conhecimento das tradições, pela bondade, pela simpatia, pela densidade
de sentimento materno e pelos poderes ocultos que lhe são conferidos, impondo-lhe um
lugar de respeito na sociedade mais ampla, embora com algumas reservas em
decorrência do preconceito que se origina no racismo contra o negro.
O que se percebe é que, entre as duas mametos, há diversos elementos de
identidade comuns às duas, tornando suas histórias de vida semelhantes. Essas vivências
similares foram muito importantes para o estreitamento dos laços de amizade e
compromisso entre as duas mulheres além de que as incitaram a realizar uma aliança.
Se, como mulher negra e do candomblé, as realizações eram difíceis, quando se
acrescentou a categoria “mãe–de-santo” a seus atributos pessoais, lhes foi conferido
certo poder, e no momento em que conseguiram percebê-lo, despertou nessas mulheres
o desejo de expandi-lo para fora dos muros dos terreiros.
Desta forma, para que houvesse a realização desse desejo, seria importante a
união de forças entre os semelhantes, que neste caso, significou mais do que pertencer a
109
uma mesma religião, mas também a uma mesma categoria social. Mameto Corajacy e
mameto Dangoroméia realizaram, então, um pacto não-manifesto que tornaria possível
a constituição da aliança entre as duas sacerdotisas. Desta forma, foi através do respeito
à regra que rege a família tradicional do candomblé que as mametos efetuaram o acordo,
ou seja, não trocarem filhos-de-santo entre si. Ao preservarem suas casas do trânsito de
filhos entre si, não permitem que haja “quizila” entre elas, estabelecendo-se assim a
aliança entre as duas famílias que pertencem à mesma linhagem.
Essa ética estabelecida entre as duas mães-de-santo permitiu que elas
organizassem a única festa do candomblé campineiro em praça pública que é a
“Lavagem da escadaria da Catedral Metropolitana de Campinas”. Esse evento, hoje,
está inscrito no calendário oficial de Campinas e também no calendário Cultural e
Turístico do Estado de São Paulo.
Sob o ponto de vista do parentesco, podemos perceber a “Lavagem” como o
resultado da aliança entre as duas mães-de-santo e a manifestação de uma linhagem.
Porém, a “Lavagem” não resulta apenas no manifesto destas duas mametos, pois se
converte na visibilidade de todo o candomblé, mesmo daqueles que dela não participam,
além de muitos movimentos culturais afro-brasileiros e de movimentos políticos negros.
Ao valorizar a figura da “mãe-de-santo,” não há a intenção de desmerecer os
“pais-de-santo” que também edificam a história do candomblé campineiro. Apenas que,
neste caso, não posso reduzir todos a um só. A pluralidade cultural brasileira, segundo a
reflexão de Helena Theodoro, impõe uma análise detalhada de diversos segmentos que a
formam, e com relação à mulher negra constata-se que
“ao mesmo tempo em que participa da luta e da história da
mulher brasileira, possui aspectos exclusivamente seus,
construindo sua história de mulher negra, com características
110
próprias e outras adquiridas do meio em que vive, tendo
peculiaridades que apontam para dimensões novas e distintas da
mulher em nosso país. (1996; p. 57).
111
CAPÍTULO IV A Festa
40
112
A festa é fundamental para os grupos de candomblé. É neste momento que
deuses e homens se confraternizam, por meio da música, da dança e da comida. Como a
mais expressiva instituição dessa religião, a quizomba, que é a festa no candomblé
angola semelhante ao xirê dos candomblés queto, segundo Rita Amaral, é o resultado da
visão de mundo dessa expressão religiosa, porque nela encontramos,
concomitantemente, “a religião, a economia, a política, o prazer, o lazer, a estética, a
sociabilidade” (2002; p. 30) entre outras relações sociais. Pode ser classificada, de
acordo com o conceito de Marcel Mauss como um “fato social total”. Ainda é Amaral
quem escreve que: “A vivência da religião e da festa é tão intensa que acaba marcando
de modo profundo o gosto e a vida cotidiana do povo-de-santo. A religião passa a se
confundir com a própria festa”.(2002, p.30)
Na festa do candomblé, dá-se o que se tem de melhor, as roupas devem estar
impecavelmente brancas, a comida deve seguir os gostos do orixá homenageado, mas,
ao mesmo tempo, também precisa agradar o paladar dos humanos, os atabaques são
repercutidos conforme a nação, as vestimentas dos inquices devem ser vistosas e
proporcionar o deslumbre dos homens que assistem às danças. Assim, são muitos os
trabalhos desenvolvidos nos dias que a antecedem. A confecção dos adereços e das
roupas de cada inquice ou orixá, a colheita das ervas, a ida ao mercado, as comidas dos
deuses e dos homens, a limpeza do barracão e dos quartos sagrados, os enfeites, as
lembrançinhas105, são algumas atividades que ocupam muito tempo dos adeptos em
cada festa que, normalmente, é direcionada a algum inquice ou orixá específico. A festa
é tão importante para o candomblé que Amaral escreve: “A própria vida dentro do
terreiro pode ser pensada como a permanente produção da próxima festa, pois inclui,
através de aspectos dramatizados ou outros, sua continuidade no tempo.” (200;, p.29). 105 É interessante notar que a incorporação das lembrançinhas pelo candomblé se originou das festas dos extratos médios e que, até mesmo os candomblés queto tradicionais, como o de Olga de Alaketu, aderiram a esta novidade.
113
O imaginário e o concreto estão permanentemente presentes, propiciando
arranjos especiais para cada ocasião. Proibições e preferências de cores, de temperos, de
óleos, de sal são conhecimentos importantes nos preparos das comidas. Desta forma,
preparar a comida do inquice vai muito além de pilar o inhame, de moer o feijão, de
bater o acarajé, porque é essencial saber oferecer e respeitar o que agrada a cada um
deles, isto é, suas preferências e proibições, de maneira que não é simplesmente
preparar o alimento e comê-lo, mas transformar aquilo que é material e o que é
incorpóreo na pura essência da vida.
Além das comidas bem temperadas pelas mãos de muitas especialistas da
cozinha do candomblé e que são servidas na festa, também são mostradas as artes nas
roupas, nas danças, no som que emana das repercussões dos atabaques e das vozes das
mulheres que cantam azuelas106.
Rita Amaral explica a festa como o “momento em que a identidade dos grupos
se expressa plenamente (...) (a festa) Expressa a glória da coletividade (...) A festa
mostra o que o grupo é e o que o grupo pensa. Nesse sentido pode ser entendida como o
“proselitismo” do candomblé.” (2002; p.31, 32)
O trabalho para a preparação da festa, por ser muitas vezes realizado
concomitantemente ao emprego que garante sustento do adepto, torna–se extenuante
pelo acúmulo de tarefas, em razão de terem que conciliar o tempo que vão passar dentro
do terreiro com o tempo do emprego. Ainda que seja assim, é visível, na festa, a
satisfação da filha ou filho-de-santo, que confeccionou a coroa de Dandalunda107, vê-la
balançar o cintilante chorão enquanto dança na sala dissipando seu moyo108, ou quando
a mesa do inquice está posta com os bolinhos de inhame pilado redondinhos, todos do
mesmo tamanho, os acaçás caprichosamente enrolados em folhas de bananeiras, as 106 Cantigas que são realizadas na roda de candomblé angola 107 Inquice relativo ao orixá Oxum 108 O mesmo que axé dos candomblés de origem sudanesa
114
carnes moles e cheirosas nos molhos condimentados, segundo a preferência do inquice,
os melões, as bananas, as uvas arrumadas carinhosamente em gamelas, os acarajés fofos
e rubros, tudo arrumado de maneira a convidar os deuses a virem comer e festejar com
os homens. Desta forma, a festa também pode ser lazer, porque além do prazer que
resulta ao ver o produto do trabalho pronto exibido na sala do terreiro, também é na
festa que se conhecem pessoas, começam namoros, o povo-do-santo fica sabendo dos
acontecimentos de outras casas, é a ocasião em que se recebem os convites para outras
festas, tudo isso enquanto se come o cudiá109 que é o banquete da festa dos inquices.
Uma outra perspectiva que a festa proporciona visualizar é a hierarquia do grupo
de candomblé em questão.
Muitos papéis são representados no momento da festa. Por exemplo, as
makotas110 se manifestam ao acudirem os inquices quando eles “viram” na sala.
Desamarram os panos-da-costa das cinturas ou dos bustos das filhas-de-santo e os
arrumam segundo a natureza feminina ou masculina do inquice, secam-lhes o suor do
rosto, dançam com eles, cobrem-lhes com seus panos-da-costa para encaminhá-los de
volta à terra dos ancestrais. Também são os tatas111 que devem saber as azuelas112 e
toques para cada inquice, além daqueles especiais utilizados nas saídas de muzenza113,
nas confirmações de tata e makota e das saídas de sete anos.
A ordenação cosmológica do grupo também é representada na festa, de forma
que, nos candomblés angola, primeiro se canta para Aluvaiá e se despacha a rua com
farofa e água. A seguir, pede-se licença para começar a festa: Cubana gira ê, Cubana
gira, cuba gira de Roxe mokumbo, Cubana gira e nanguê. Depois se reza a pemba,
momento em que todos se ungem com o pó branco de um giz que misturado a ervas e
109 Comida servida nas festas e considerada sagrada. Equivalente ao ajeum dos candomblés queto. 110 Cargo equivalente a equeji dos candomblés queto. 111 No candomblé de rito angola , cargo masculino equivalente ao cargo de ogã nas casas de rito queto. 112 Rezas cantadas nas festas de candomblé angola 113No candomblé de rito angola-congo, filha-de-santo.
115
sementes torna-se uma substância sagrada chamada pemba, que os adeptos acreditam
fortificá-los e protegê-los. A seguir, canta-se para os inquices nesta ordem:
Incossimucumbe, Gongobira, Catendê, Angorô, Cafungê, Tempo, Zaze, Matamba,
Dandalunda Caiatumbá, Vunge, Zumbarandá, Lembarenganga.
Esta é uma ordem mais ou menos comum nos terreiros de angola de Campinas,
contudo pode haver algumas diferenças conforme a festa que está sendo realizada. Os
atabaques nos terreiros de angola são repercutidos com as mãos e as cantigas são feitas
em línguas bantas.
A festa, conforme Rita Amaral, é
“um momento de síntese de tudo o que o povo-do-santo pode
apresentar publicamente em termos de imagem da religião, para
a assistência à festa é não só um verdadeiro espetáculo, de
estética ímpar, mas também uma “vitrine” da alegria, do
ludismo, da sensualidade e beleza vividos pelos adeptos dessa
religião. De seu estilo de vida.”( 2002; p.56)
Por ser a festa o próprio candomblé, é através dela que o candomblé angola vai
se mostrar na praça da Catedral Metropolitana de Campinas.
Embora a lavagem de Campinas se efetive diferente da de Salvador, foi
mediante o conhecimento da dramatização realizada no Bonfim que uma das mametos
desejou realizar a Lavagem de Campinas. No seu depoimento ela conta que: “eu fui
para Salvador assistir à lavagem, porque quando eu morava lá sempre ia... quando eu
cheguei de lá queria muito fazer aquela lavagem...” (mameto Corajacy)
A Lavagem do Bonfim, em Salvador, conforme pesquisa realizada por Ordep
Serra, em virtude de hoje serem sacerdotisas do candomblé as protagonistas deste ritual
“induziu muitos a pensar que esse rito foi criado pelo povo dos terreiros. Mas trata-se
116
de uma velha tradição ibérica – que na Bahia combinou-se à lógica do culto do
candomblé, segundo a qual foi reinterpretada.” (2000, p.71)
Segundo esse autor, esse era um ritual comum em Portugal o qual se realizava
dentro da igreja a propósito de pagamento a graças concedidas pelo santo da invocação
que era o padroeiro da igreja. No Brasil, esse rito era realizado por devotos que
lavavam não só as escadarias, mas todo a chão da igreja. Conforme descrições do século
XIX sugerem, o término da lavagem resultava numa espécie de carnaval dentro do
santuário. Ordep Serra escreve que em “1889 o arcebispo dom Luiz Antonio de Sousa
proibiu a Lavagem da basílica do Bonfim.(2000, p. 71) Porém, a proibição teve
conseqüências não previstas, uma vez que cerrada a porta da igreja o candomblé surgiu
como “via disponível para o sacramento” e reinterpretou a lavagem segundo seus
mitos e agora se reduz às escadas.
De acordo com a interpretação do mesmo autor, a identificação do Senhor do
Bonfim com Oxalá se deu porque Oxalá era cultuado na África, em cima da colina, pois
ele é o orixá criador e o pai de todos os orixás. Ordep escreve que:
“segundo o seu mito, quando Oxalá fez emergir a terra do seio
das águas do primórdio, despontou primeiro uma elevação,
considerada o “umbigo do mundo”. É Oxalá o senhor do monte
sagrado, e também das águas fecundas, festejado com ritos
lustrais... ritos que se caracterizam, nos terreiros do candomblé,
por uma serena solenidade”. ( 2000; p.72).
Como a igreja do Bonfim fica em cima de uma colina, as baianas passaram então
a realizar um rito religioso que é uma “celebração do sagrado na fronteira do profano”
(2000; p.73).
117
Esta festividade tornou-se com o tempo muito popular e um paradigma para
outras iniciativas em todo o país.
Entretanto, se a Lavagem da Catedral Metropolitana de Campinas nasceu do
desejo de uma mameto de realizar um rito semelhante ao de Salvador, trilhou uma
história muito diferente da primeira.
Vencendo A Intolerância: Murmúrio de uma festa afro-brasileira
Articulada por duas mães-de-santo, a festa da Lavagem em
Campinas começou a ser pensada por causa de um sonho da mameto
Corajacy de levar o candomblé para a rua, assim como era feito em
Salvador, na Lavagem do Bonfim.
Por outro lado, um ato de preconceito ao candomblé que fora
cometido contra mameto Dangoroméia , na mesma praça onde hoje é
realizada a festa, também foi motivo de interesse dessa sacerdotisa em
realizar esse rito na praça da catedral.
Mameto Dangoroméia conta:
“Eu era conserva114, na época chamada laranjinha115.
Aí eu me iniciei. . . Eu tinha um uniforme, mas tinha
que pôr branco por baixo. Eu punha meus
114 Funcionária da limpeza pública que conserva limpas as ruas da cidade. 115 Funcionária da limpeza pública que, por vestir uniforme cor de laranja, era chamada de laranjinha.
118
mijeloguns116. . . os meus fios de contas e o ojá117 na
cabeça, porque eu estava careca e punha meu
chapeuzinho por cima, e ia trabalhar. Eu tomei seis
meses de obrigação, três meses de “migui de
muzala”118. . . porque eu sou de Angorô119, então minha
mãe me deu seis meses de obrigação. E aí eu tinha que
trabalhar.. . Eu tinha muita amizade com um engraxate
ali. Um dia eu ali varrendo, tomei um tamanho tapa no
bumbum, que eu caí em cima do engraxate. Esse
homem disse assim: Sua feiticeira, isso, aquilo e me
xingou de outros nomes. Eu caí e ele correu (. . .) Aí eu
comecei a chorar, fiquei tão nervosa e olhei assim na
igreja, e aí eu falei: Olha, minha santa Nossa Senhora
da Conceição, a senhora me viu em perigo.. . Se a
Senhora é de verdade.. . Se a Senhora representa a
Iemanjá de nossa religião.. . naquela época não
conhecia Caiá120. . . Eu vou entrar aí (referia-se a lavar
o adro da igreja). Essa é a única coisa que eu falo pra
Senhora. Porque esse mistério desse preconceito tem
que acabar. Campinas foi a última que aderiu à
abolição, entre aspas. E continuei varrendo. Tinha
que trabalhar.”(mameto Dangoroméia)
Do preconceito nasceu o pacto com a santa que tinha algo do orixá
que também era inquice. Naquele momento, a mãe-de-santo, além de
mulher, pobre, negra, era também a feiticeira aglutinando toda uma gama
de atributos pejorativos outorgados pela sociedade branca, cristã e
masculina representada pelo homem que a agredira na praça.
116 Corruptela da palavra de origem ioruba merindelogum que significa dezesseis e que no candomblé são dezesseis longos fios de contas fechados por uma pedra maior chamada firma e que tem a cor representativa do orixá ou inquice correspondente. 117 Faixa de pano usada para diversos fins litúrgicos e rituais no candomblé e em cultos a ele associados. 118 Migui,Musala: apetrechos que os recém iniciados no candomblé angola usam no pescoço. 119 Inquice correspondente ao orixá Oxumare. 120 Caiá- inquice correspondente ao orixá Iemanjá.
119
Mãe Corajacy também era “laranjinha” e tinha o sonho de trazer o
candomblé para a rua, a fim de ser reconhecida pelo poder que sua
iniciação lhe concedera como mãe-de-santo.
Note-se que sair do barracão, da periferia, tornar o candomblé
visível e ser reconhecido como religioso, é sair do âmbito da magia e ir
para o da religião, é deixar de ser feiticeiro, charlatão para se tornar
sacerdote.
Certo dia reuniram-se as duas em frente à catedral, ambas
varredoras de rua, com o objetivo de terem um reconhecimento religioso.
Planejavam fazer a Lavagem
Por intermédio de uma amiga influente, conversaram com
repórteres e comunicaram-lhes a vontade de fazer a Lavagem da catedral.
Segundo mameto Dangoroméia e mameto Corajacy , mais que uma
conversa foi um debate. Afinal, diz mameto Dangoroméia: “o jornalista
retrucava, porque.. . Cidade das andorinhas.. . é, é, como é que se fala?
invadida por feiticeiros baianos, mineiros.. . Ah menina, foi uma luta.” (
mameto Dangoroméia) .
Finalmente, com a imprensa convencida, impôs-se uma conversa
formal com a Igreja católica, ficando de um lado as duas mães-de-santo,
mulheres, negras e do candomblé e, de outro, o bispo, representando a
Igreja, pois, para que pudessem dançar candomblé em praça “pública”
teriam que pedir l icença para o bispo; afinal, a escada era da Catedral.
Foi uma conversa tensa, difícil , conta mameto Dangoroméia:
“Aí eu fui falar com Don. Gilberto, ele demorou muito
para me atender, e aí, graças aos deuses, ele me
atendeu. Eu fui falar com ele e ele me questionou
muito, falou que eu estava misturando a igreja dele
com aquela história de Santos, que todo mundo bebia,
que todo mundo quebrava garrafa. Falava da festa de
Iemanjá , né!?
Aí falei pra ele que não era nada daquilo, que a gente
não ia incorporar na frente da igreja dele. O papo
demorou mais ou menos umas duas horas até quando
120
ele disse assim: Olha, e se a Senhora for proibida de
fazer? Eu disse: Olha, vai ser difícil o senhor me
proibir, sabe por quê? Se o senhor for pôr guarda lá,
nós vamos levar uma torcida. Aí vai ter uma torcida
para o senhor e uma para mim. Porque um terço da
sua população católica vai ao meu candomblé.
Eu já sou mulher, negra e do candomblé, não vai
afetar minha moral. Que moral se dá para isso? A
sociedade não dá moral mesmo..Agora, o senhor já
pensou metade da torcida do senhor e outra metade
minha? Ai ele deu aquela risada e falou: A senhora
quer saber de uma coisa? Faça. (mameto
Dangoroméia).
A primeira Lavagem aconteceu no sábado de aleluia de 1985.
Bispo e mães de santo resolveram o dia, conta mãe Corajacy:
“Aí nós falamos para ele que nós íamos fazer em
Janeiro, porque a festa de Oxalá é em Janeiro, Não é
lavagem, é chamada de as águas de Oxalá121. Aí ele
sugeriu que nós fizéssemos na páscoa que é
renovação, que estava pertinho.. .” ( Mãe Corajacy)
Uma vez que o Oxalá na Bahia é sincretizado com Nosso Senhor
do Bonfim, então, lavar o adro desta igreja significa na reinterpretação
afro-brasileira, preitear Oxalá. Por sua vez, o orago da Catedral
Metropolitana de Campinas é Nossa Senhora da Conceição, de forma
que, se fosse seguida a mesma lógica da Lavagem do Bonfim, a Lavagem
121 Muitos dos adeptos do candomblé têm essa concepção, de que a Lavagem do Bonfim é ligado às “águas de Oxalá”. Oxalá é ligado às águas primordiais. Há um mito que fala sobre uma viagem de Oxalá ao reino se Xangô onde se sucederam diversos imprevistos. Oxalá acabou preso e esquecido na prisão do reino de Xangô. Sua tristeza foi tão intensa que causou grandes danos a esse reino, até que, através de sacerdotes de Ifá. Xangô ficou sabendo de seu amigo que havia anos estava preso em seu reino. Então, mandou que soltassem Oxalá, que lhe banhassem com águas perfumadas e que lhe oferecessem farto banquete a fim de que Oxalá aceitasse suas desculpas. Ao mesmo tempo quando a mameto denomina a Lavagem do Bonfim de “águas de Oxalá” diferenciando da Lavagem de Campinas, ela procura legitimar sua festa dando-lhe uma identidade diferenciada da festa de Salvador.
121
Campineira deveria ser realizada dia 8 de dezembro, dia votivo desta
santa. Da mesma maneira, não há nenhum mito afro-brasileiro que
justifique a lavagem tal como é o caso da do Bonfim.
Em Campinas, por meios hábeis do bispo, houve um novo arranjo
para a festa. Por que não ser no sábado de aleluia, quando a igreja está
fechada para os seus fiéis e quando é o dia de se malhar o Judas, que já é
uma festa pagã? Fica, então, de alguma forma, tudo no seu lugar, a saber,
as festas populares, os pagãos na rua, e o que é da igreja guardado sob
suas portas cerradas. Nada se mistura , estando do lado de dentro.
Devido à independência total em relação à santa padroeira e aos
ofícios da igreja, configura-se uma ruptura quase completa entre a igreja
e a rua, no sentido em que, neste caso, um espaço não se configura
complementar, do ponto de vista simbólico, em relação ao outro.
Porém o que se pode observar é que por ser no sábado de aleluia
em que a igreja traz suas portas fechadas, o singelo ato de devoção das
mametos se apropria do fechamento das portas do templo católico e lhe
dá novo sentido.
Em muitos aspectos, as duas Lavagens , a do Bonfim e a da
Catedral de Campinas, se assemelham, uma vez que existem diversos
componentes de inversão na devoção da Lavagem de santuários, antes
luso-brasileiras e hoje afro-brasileiras. Ordep Serra destaca dois aspectos
de inversão que acontecem no rito de Salvador, que a meu ver podem ser
identificados nas duas Lavagens . A primeira inversão é que, ”enquanto
nos ofícios regulares da Igreja o povo acorre ao templo para purificar-
se, numa “Lavagem” o templo é purificado pelo povo” (200, p. 75)
A segunda inversão é a que resulta do fechamento das portas da
igreja. Ordep, neste caso, aponta para a ausência dos sacerdotes
católicos e seus acólitos na realização dos ritos litúrgicos, permitindo
que se invertam os papéis. “Então seu rebanho tem toda a iniciativa, ao
contrário do uso normal” (2000; p. 75)
Ainda no sentido “anárquico” da inversão de valores, o afã do
serviço alegre realizado espontaneamente, segundo Ordep pode, “ser
qualificado como um anti-trabalho, numa cultura em que a idéia de
122
trabalho liga-se com a de obrigação penosa imposta, humilhante até.”
(2000; p. 75).
Lavagem: festa na praça - Uma etnografia
Fazia uma manhã quente, quando comecei a descer a avenida
Francisco Glicério em direção à praça da Catedral. Ainda distante umas
três quadras, podia-se ouvir entrecortada pelo vento, uma voz feminina
que cantava ao microfone. Imaginei que estivesse muito atrasada e que
talvez eu tivesse perdido já grande parte da festa. 122 Eram 11horas da
manhã e eu não sabia a que horas ela havia começado. Um pouco mais
adiante, uma rajada de vento tornou mais audível a música: Azekutála
zinge, o iá zinge, o Azekutála zinge, o iá zinge o Iá iza Kutala, Kawiza
Kurá.. . Ai ai, ai ai, ai ai. . . Cantavam para Kabila , que era um dos
primeiros inquices a ser louvado na roda de angola. Eu não havia perdido
muito da festa.
Observei as pessoas passando na calçada, indiferentes à cantoria.
Era mais um sábado comum de comércio.
Conforme fui me aproximando, percebi que a praça estava toda
circundada de grandes barracas brancas entre as quais poucas pessoas
circulavam.
Direcionei-me para a igreja onde se via um aglomerado de pessoas.
Um palanque havia sido montado em frente às escadas da Catedral de
122Após um ano, na segunda observação etnográf ica pude chegar mais cedo e ver
um alegre cor tejo do povo-do-santo chegando à praça com quar t inhões enfei tados de f lores carregados sobre as cabeças. À frente, juntos com as mametos , v inham faixas e color idos estandar tes escr i tos em l íngua banta . Os grupos de Jongo, de tambor, de capoeira, ader iram ao cor tejo . Todos trajando roupas brancas i luminaram a praça sob o sol da manhã. Quanto às demais a t iv idades , e las ocorreram de maneira muito semelhante à pr imeira observação.
123
onde vinha o som dos tambores. Entre os transeuntes, duas moças negras
com cabelos trançados com fitas coloridas conversavam alegremente com
um rapaz de longos cabelos rastafari.
Aproximei-me para ver melhor o que acontecia naquele espaço.
Sem muita dificuldade fui saindo do meio das pessoas e chegando
à frente e pude subir nos degraus do palanque. Havia uma grande roda de
baianas vestidas de branco, que dançavam num espaço anterior à
escadaria da igreja. Alguns homens também de branco se misturavam a
elas. Uma outra roda menor, ao centro, composta de homens e mulheres
trajando roupas de imaculado branco e bordadas em richelieu, dançavam
formando um centro referencial para a roda maior. Neste pequeno circulo
interior, identifiquei mameto Corajacy e mameto Dangoroméia .
No palanque, uma orquestra de tambores e seus tatas, ao microfone
tata Tawá . Esse tata viera de São Paulo para prestigiar a Lavagem
campineira. Pessoa de grande prestigio com mameto Dangoroméia, é um
articulador da recuperação lingüística banta nos candomblés angola de
São Paulo, além do desejo de valorização desta nação. Esse tata cantava
uma azuela, enquanto a roda de candomblé dançava.
Quando a música cessou, e os componentes da roda pararam de
dançar, pude identificar diversos personagens da polít ica e do
movimento afro-brasileiro. O deputado estadual Sebastião Arcanjo dos
Santos, famoso pela luta anti-racista e assumido candomblessita , somado
a outros ativistas que se misturavam com as mulheres vestidas de
baianas.
Do lado esquerdo da escadaria da igreja havia um tapume, que
escondia talvez obras na calçada lateral. A igreja fechada silenciava-se
ao movimento do candomblé do lado de fora. A grande porta fechada do
templo católico separava os “deuses”. Os santos católicos lá dentro,
protegidos sob a majestosa construção da catedral que curiosamente fora
toda construída com mão-de-obra escrava, e os deuses negros, na praça,
no tempo, na rua, na boca dos homens, na batida dos tambores.
Do alto da igreja, dois anjos pareciam esquecer suas trombetas e
observavam a festa dos inquices.
124
Talvez naquele momento, lá de cima da torre, os anjos olhassem,
atentamente, para depois contar a Nossa Senhora da Conceição o quanto
era bonita “Caiatumbá” com quem ela muitas vezes fora sincretizada.
Ali, diferente do que muitas vezes acontece nos terreiros, tudo e
todos podiam ser fotografados. Ninguém fazia cerimônia, afinal, se
estavam na praça, era para serem filmados, fotografados, porque parece
que hoje também o povo do candomblé gosta de sair na mídia. Era o
momento do candomblé se mostrar, de dizer para toda a população que
ele existe e é forte. Hoje, ao invés da polícia fechar as casas, quebrar e
apreender símbolos afro-brasileiros ou bater no lombo dos sacerdotes e
adeptos, o candomblé tem a seu favor todo o aparato dos órgãos do
governo e da segurança pública.
Mameto Corajacy contou como isso foi importante para ela, por
ocasião primeira Lavagem:
“Mas olha, eu vou te falar, quando nós
chegamos lá na catedral.. . Estava(sic) ambulância, o
prefeito na época era Magalhães Teixeira, o vice dele
em cima daquela estátua, que eu tenho uma foto dele
até hoje, no jornal. Ambulância, Corpo de bombeiro,
tudinho. Aí eu percebi que Campinas.. . (mameto
Corajacy)
A mameto não terminou a frase, porém o que ela queria mesmo
dizer era que tinha sido naquela ocasião que Campinas dera-lhe
importância e à sua crença e que, naquele momento, ela tinha se sentido,
pela primeira vez, respeitada como uma verdadeira cidadã campineira.
Atualmente, na praça, tudo parece mais fácil e a festa flui sem
resistência.
Cada um dos componentes da roda de candomblé foi pegar seu
porrão123 de água de cheiro enfeitado de flores brancas que estava junto
aos outros, nas escadarias da igreja. Organizada uma fila indiana,
encaminharam todos para a escada. As mães de vassoura em punho, com
alegre e contagiante entusiasmo, encenaram uma Lavagem .
123 Pote ou vasilha de barro, comumente bojuda e de boca e fundo estreitos.
125
Naquela hora varriam a escada com outro intuito, não eram mais as
“conservas”, não trabalhavam mais para a limpeza pública; na verdade,
varriam agora o preconceito sofrido por ser do candomblé e a dor de
terem nascido mulheres, negras e pobres.
Muitas pessoas pediam bênçãos. Outros queriam que elas lavassem
suas cabeças com água de cheiro. Todos distribuíam flores. A praça foi
se tornando movimentada, muita gente chegava para a outra festa que se
daria depois da realizada pelas mametos . As pessoas alegremente se
cumprimentavam.
Eram amigos, gente que identificava ou não o candomblé com a
lavagem, mas que, certamente, tinha algo a ver com a cultura afro-
brasileira. Gente da capoeira, do jongo, do maculelê ia chegando e se
espalhando pela praça, atrás do palanque. Muita gente de pele negra, com
roupas vistosas, com cabelos trançados e enormes boinas coloridas.
Um pai-de-santo que não se aventurara a participar, estava com
muitos filhos de sua casa, ali parado, cumprimentando amigos e se
deixando ver.
Uma negra gorda e jovem passou bem perto de mim e pude ver
marcas de escoriações em forma de cruz nas costas e braços. Esta é
independente da sua forma, a marca do “santo” que indica um filho do
candomblé.
Muita gente andava agora pela praça. Todos se confraternizavam
alegremente.
Em frente ao palanque, uma voz feminina chamava todos os
participantes para se reunirem novamente a fim de que fosse encerrada a
celebração. O adro estava cheio de gente conversando, o chão molhado
pela água de cheiro. A limpeza festiva da escadaria da igreja resultou
numa manifestação espontânea de alegre entusiasmo. Não havia mais
organização, apenas a devoção aos inquices e a vontade de conversar e
divertir-se.
Uma das filhas-de-santo me puxou pelo braço e disse que queria
que eu conversasse com uns americanos, porque ninguém ali falava
inglês.
126
Se, por um lado, o povo do santo aprecia a presença e o interesse
pelo candomblé de estrangeiros, de integrantes da academia e de
políticos, por outro lado, essas pessoas também valorizam o apreço que
se efetiva com a aproximação aos sacerdotes. Ao mesmo tempo em que o
candomblé pode conseguir maior visibilidade, e conseqüentemente
legitimidade e poder, através dessas pessoas, também os políticos e
ativistas conseguem com o candomblé visibilidade e influência, podendo
angariar novos votos em eleições futuras. Do mesmo modo, gente da
academia, ao se tornar mais íntima dos sacerdotes, pode realizar com
maior facilidade pesquisas e os estrangeiros acreditam conseguir receber
axé de uma religião que se configura exótica quando se compara a
cultura afro-brasileira com as norte-americanas ou européias das quais
descende.
A voz feminina novamente apelava para a reorganização das
pessoas. Acatado o pedido, foram entoados cânticos de despedida e o
povo do candomblé retirou-se para a parte maior da praça, que ficava
atrás do palanque, cercada de barracas.
As pessoas procuravam os banheiros e um lugar para trocarem as
roupas, uma vez que as armações e as grandes saias rodadas, certamente
incomodavam por causa do calor que era intenso e volume que
certamente restringia os movimentos.
Numa barraca aberta, muitos se escondiam do sol. Passei perto de
uma negra jovem de sorriso aberto que me deu um galhinho de alecrim,
convidando-me para o jongo. Ouviam-se berimbaus e as rodas de
capoeira foram se formando.
Nas barracas de bebidas e comidas formaram-se filas de gente
querendo comprar algo que os refrescasse do calor e que lhes saciasse a
fome. O cheiro do acarajé, frito no dendê, não deixava esconder que ali
havia comida de santo.
Um grupo de jongueiros se instalou bem à porta da catedral que
àquela hora já adquirira uma sombra acolhedora e ali começou a ensaiar.
Gente vestida de branco, e com roupas muito coloridas encheu a praça
para beber, conversar, comer e namorar.
127
É importante observar que, ao sair da sua cercania, o candomblé
levou para a praça central de Campinas seu povo e, mesmo que hoje seja
um candomblé freqüentado por muitos brancos, este rito na praça atraiu
as mais diversas manifestações de luta e de resistência do povo afro-
brasileiro.
41
42
128
A Lavagem e o Ideal de pureza.
A Lavagem das escadarias da Catedral Metropolitana de Campinas, embora
esteja inserida no calendário oficial de Campinas124 e no calendário cultural e turístico
do Estado de São Paulo125, suscita reações por parte de membros da academia e da
comunidade do candomblé por acreditarem que este tipo de evento está associado à
igreja e aos símbolos católicos, e revela desta forma uma submissão do candomblé ao
catolicismo.
Na verdade, a discussão sobre o sincretismo afro-brasileiro não é novidade.
Desde as décadas de 30 e 40 do século XX, este debate já havia tomado força entre os
adeptos do candomblé e na academia, salientando uma dimensão política que até então
não havia sido declarada.
O sincretismo era visto como imposto pelas circunstâncias da escravidão e,
hoje, ele não se faz mais necessário, uma vez que há a liberdade de culto amparada
legalmente. Desta forma, separar o candomblé do catolicismo era naquele momento
uma tomada de consciência por parte dos adeptos das religiões de matrizes africanas.
Essa discussão gerou muita polêmica quando, em 1983, a imprensa baiana
divulgou um documento resultante da II Conferência Mundial da Tradição de Orixá e
Cultura que declarava o fim do sincretismo.126
124 Lei nº 9515 de 2 de dezembro de 1997 institui, no calendário oficial da Secretaria Municipal de Cultura e Turismo, o sábado que antecede o domingo de páscoa (sábado de aleluia) como dia da lavagem das escadarias da Catedral Metropolitana de Campinas pelos candomblés. 125 Em Sessão realizada dia 13 de setembro de 2005, na assembléia Legislativa do Estado de São Paulo, foram aprovados os seguintes projetos de autoria do Deputado Estadual Sebastião Arcanjo: PROJETO DE LEI NO 1163 – Inclui a cerimônia da “Lavagem das Escadarias da Catedral de Campinas” no calendário Turístico do Estado. 126 Consorte escreve que “no dia 29 de julho de 1983, uma sexta-feira, o Jornal da Bahia, editado em Salvador, trazia em letras garrafais, como principal manchete da primeira página do seu primeiro caderno, a seguinte notícia: “candomblé rompe de vez com o sincretismo.” Ilustrada com foto de mãe Stella do Opô Afonjá e complementada em letras menores, por um resumo da matéria, de que se
129
Contudo, Consorte observa que “a ruptura do sincretismo não implicava,
porém, o abandono da fé católica, não se tratava, propriamente de um cisma.” (1999;
p.73).
Na realidade, isso significava ainda, conforme a mesma autora, que “o manifesto
deslocava, porém a dupla pertinência do plano coletivo do terreiro para o plano
individual, passando a ser assunto de foro íntimo, particular, perseverar naquela
crença.” (1999; p. 73) Isto significava que acabariam as missas de iaô e as de sétimo
dia coordenadas com os ritos do candomblé, e do mesmo modo deveriam ser revistas
datas festivas do candomblé associadas aos santos católicos, como por exemplo, a
lavagem do Bonfim. Contudo, se cada um quisesse acreditar em São Lázaro ou nossa
Senhora das Candeias, era um problema particular.
Interessada em saber o que acontecera após as tomadas de posições contra o
sincretismo de 1983, Consorte em 1992 retorna ao campo e percebe que no
“desenrolar das festas religiosas em Salvador, parecia que nada
mudara. A lavagem do Bonfim continuava entregue às baianas
com trajes rituais e suas quartinhas; o presente de Iemanjá
continuava a ser entregue no dia consagrado a Nossa Senhora
das Candeias e a Nossa Senhora da Purificação, em Santo
ocuparia mais amplamente em sua página 3, o articulista Vander Prata, seu autor: a notícia era daquelas a mexer com meio mundo na cidade que fora chamada de Roma Negra por uma das suas mais veneradas ialorixás, Mãe Aninha, a fundadora do Ilê Opô Afonjá. Estava escrito no resumo: São Jorge não é Oxossi, Santa Bárbara não é Iansã. O candomblé resolveu romper com o sincretismo religioso. Agora, nada de exploração folclórica. Nada de utilização em concursos oficiais ou propaganda turística. A II Conferência Mundial da Tradição Orixá e Cultura, que se realizou em Salvador, de 17 a 23 deste mês ( julho de 1983. Nota nossa), ajudou na decisão. Quem assina o manifesto ao público e ao povo do candomblé , merece respeito: Menininha do Gantois, Stella de Oxossi(foto), Tetê de Iansã, Olga de Alaketo e Nicinha do BogumAxé.”- Consorte, Josildeth Gomes Em torno de um manifesto de Ialorixás Baianas contra o Sincretismo, in Faces da Tradição afro-brasileira. Organizadores: Carlos Caroso & Jéferson Bacelar. Editora Pallas, Rio de Janeiro. R.J.1999.
130
Amaro; as missas das segundas-feiras na Igreja de São Lázaro,
sincretizado com Omolu, continuava a ser freqüentadas por uma
população numerosa ritualmente vestida de branco, sem falar da
presença da pipoca por todo o lugar; a festa de São Roque,
sincretizado com Obaluaiê, preservava as suas características
tradicionais; a festa da Irmandade da Boa Morte/Nossa Senhora
da Glória, não havia alterado seus rituais e a tradicional bênção
das terças-feiras no altar de Santo Antônio, sincretizado com
Ogum, depois da missa das 18 horas na Igreja de São Francisco,
parecia cada vez mais concorrida, tendo se tornado o mais novo
evento do calendário de Salvador” (1999; p.81)
Ainda em 1992, Consorte, voltando a ouvir as sacerdotisas que haviam
participado da carta em repúdio ao sincretismo, não encontrou unanimidade entre as
sacerdotisas, quanto a essa questão, tampouco entre os adeptos do candomblé. Desta
forma, deixa claro que este é um tema complexo e que as posições divergentes das
sacerdotisas “revelam uma compreensão diversa da natureza da formação das religiões
afro-brasileiras, com repercussões significativas para o debate e o encaminhamento da
(re)construção da identidade do negro no Brasil. (1999; p.88)
Chamou-se a atenção para o “abandono do sincretismo” na Bahia, porque aí é
possível perceber quão profundas são as raízes das relações entre o candomblé e o
catolicismo.
Houve uma repercussão relevante deste tema no Sudeste e dos debates que aí
ocorreram é que se originou a crítica à “Lavagem” de Campinas.
131
Por um outro lado, quando Geertz escreve que ao realizar uma etnografia não se
pode ficar somente numa “descrição superficial” ,isto é, numa primeira observação
ingênua, mas que o importante é que seja feita uma “descrição densa”, isto quer dizer
que o etnógrafo tem que procurar seu caminho nas “estruturas sobrepostas de
inferências e implicações”. (1989, p. 6) Percebe-se, desta forma, que a “Lavagem”
deve ser compreendida por aquilo que está insinuado nas suas entrelinhas e o que
importa, ainda segundo o mesmo autor, é “escolher entre as estruturas de significação
e determinar sua base social e sua importância.” (Geertz, 1989; p.7)
Assim, torna-se importante averiguar em que medida o universo religioso afro-
brasileiro goza de uma cosmovisão que possibilita realizar através do simbolismo
religioso, uma relação da sua esfera de existência com a esfera mais ampla.
Lody chama essa cosmovisão afro-brasileira de “mundovisões do povo de
santo” que estão invariavelmente vinculadas ao sagrado, e seus símbolos aludem tanto à
mítica e remota África quanto às mais recentes memórias afro-brasileiras. Conforme o
mesmo autor, “Os modelos africanos transculturados e ricamente incorporados em
cenário cristão legam forte e expressivo paralelismo entre santos da igreja e santos dos
terreiros”. (1995; p.2)
Essa correlação torna-se muito evidente na situação da diáspora em que “as
identidades se tornam múltiplas.” (Stuart Hall: 2003)
Contudo, mesmo havendo esse paralelismo, são os terreiros que preservam as
histórias dos povos africanos “aqui dinamizados e interpretados em concentrações
etnoculturais chamados Nações.” (Lody, 1995; p.2)
132
Os terreiros de nação angola em Campinas, além dos rituais, preservam um
núcleo de cultura em que se incluem as comidas, as músicas, a língua, a dança, o
artesanato, enfim “ um elenco de motivos e realizações do ser africano no Brasil, e do
ser afro-brasileiro.” (Lody, 199;, p.14)
Além disso, há numa outra questão que envolve o povo do candomblé que é a
integração em seu meio de lideranças de movimentos sociais, de forma que cresce no
seu âmago uma “afirmação racial e de busca de ocupação do poder, unindo-se a
diferentes segmentos do amplo processo de conscientização do negro.” ( Lody, 1995;
p.2). Isso é um fato que também se concretiza nas ações dessas duas mametos.
Mameto Dangoroméia e mameto Corajacy há muito se identificam com os
movimentos políticos e sociais, tornando-se ativistas da luta anti-racista, pois nelas está
inscrita a marca da mulher negra e do candomblé.
Quando o candomblé chega à praça da catedral no sábado de aleluia, junto a seu
cortejo vêm grupos de capoeira, de jongo, de tambores que trazem faixas e estandartes
escritos em línguas bantas. Esses escritos retomam a uma África mítica que fornece
histórias e referências que possibilitam reinterpretar a história oficial.
Desta forma, a Lavagem faz mais do que mostrar seus cantos, danças e vestes do
candomblé na praça. Ela tornou o invisível visível e, por isso, mostra a existência do
negro, permitindo assim um retorno para si mesmos. Essa África construída na diáspora
vem desse retorno.
Stuart Hall fala que a cultura é uma produção dinâmica. “Tem sua matéria-
prima, seus recursos, seu “trabalho produtivo”. Depende de um conhecimento da
tradição enquanto “o mesmo em mutação” e de um conjunto efetivo de genealogias.”
Porém, há os desvios, que no caso foram causados pela diáspora negra e que são, de
certa forma, ressarcidos por meio da cultura, em virtude de sua constante produção.
Essa dinâmica, possibilita uma nova elaboração desse sujeito, surgindo daí um novo ser.
Portanto, segundo Stuart Hall,
133
“não é uma questão do que as tradições fazem de nós, mas
daquilo que nós fazemos de nossas tradições. Paradoxalmente,
nossas identidades culturais, em qualquer forma acabada, estão à
nossa frente. Estamos sempre em processo de formação cultural.
A cultura não é uma questão de ontologia, de ser, mas de se
tornar.” (2003; p. 44)
Os elementos culturais, nas suas formas originais, passam pelo processo de
tradução cultural, (Hall: 2003) desta maneira, a Lavagem com os estandartes e faixas
escritas em línguas bantas, com as danças e os batuques apresentados em frente à igreja,
assume outro significado que é o de “descolonizar as mentes”.
134
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tratei nesta dissertação de alguns aspectos do candomblé angola em Campinas.
Apesar de não ser um estudo comparativo, penso ser importante fazer algumas
comparações que apresentem as semelhanças e as diferenças nos aspectos dos
candomblés angola e queto, aqui estudados.
No candomblé há uma preocupação primordial que é a manutenção, a
preservação e a ampliação da força vital, pois é através dela que a vida andará
acertadamente e as bênçãos dos inquices/orixás coroará o adepto de prosperidade. A
força vital pode ser medida e manipulada pelo moyo/axé. A palavra axé - termo oriundo
dos candomblés de origem nagô, grandemente difundido pela música popular elaborada
por compositores baianos e pela literatura, principalmente pelos romances de Jorge
Amado - é muito mais conhecida e utilizada que moyo, por todas as nações.
Prandi escreve que axé pode ter muitos significados, a saber, pode ser bênção,
poder, carisma, dádiva dos deuses, além de ser o conjunto material que representa os
deuses e sinônimo de Amém; por fim, é a “força vital, energia, princípio da vida,
força sagrada dos orixás.” ( 1999; p.103)
Da mesma maneira Elbien, interessada com a importância do axé no candomblé
queto, o define como “a força que assegura a existência dinâmica, que permite o
acontecer e o devir... É o princípio que torna possível o processo vital” (1993; p. 39).
É interessante notar que a inquietação com a força vital nos candomblés,
também é uma prerrogativa de toda a África Negra. Da mesma maneira que os nagôs,
também os bantos, conforme escreveu Tempels, tinham tal apreço pela preservação do
135
moyo - para eles a força vital- que a grande resistência que faziam em se tornarem
cristãos não era em decorrência de terem que abandonar a poligamia que praticavam,
mas, sobretudo, em virtude do “pavor” em renunciar ao culto de seus ancestrais e
perderem com isso a própria vida. Desta maneira, o culto aos ancestrais se configura
como uma questão de vida ou morte. A vida torna-se, neste caso, o bem supremo de
todos os bantos. 127
Nos candomblés de origem banta, esta força vital é chamada de moyo e é ela que
liga os ancestrais aos seus descendentes, o inquice àquele que foi iniciado, permitindo
que a dinâmica da vida se realize positivamente de maneira a proporcionar uma vida
plena ao adepto. Neste sentido, tanto o candomblé angola quanto o queto são
semelhantes em sua origem, que se efetiva na mesma procura, qual seja, a preservação e
o crescimento do moyo/ axé.
Conforme exposto, celebrar a vida como o bem mais precioso é um requisito
básico no candomblé. Por ser assim, o advento da morte causa perturbação na harmonia
do grupo e exige rituais específicos, tanto nos candomblé angola quanto nos queto
(sirrum/axexê) a fim de reabilitar a simetria entre o mundo dos vivos e o dos mortos.
127 Segundo Tempels, o conceito de vida para os Bantos tem um significado ontológico. Cada ser é uma força da vida, e cada força da vida é um ser. A noção da vida que é fundamental da ontologia banta, é uma noção universal suprema, e é aplicada a tudo que existe : Deus, os espíritos, os mortos, os homens, os animais, as plantas e todos os seres materiais. Ainda conforme Tempels, “ “ens” é para nós uma realidade estática, para os negros é a força, que é uma noção e uma realidade dinâmica”. (tradução livre ) La vie du Muluba, raffermie, sauvée par l'intervention du devin, kilumbu, le médecin magique et les défunts, court un grand risque s'il abandonne tous ces aides et moyens, pour devenir chrétien: ce n'est pas la polygamie, ni le soi; disant conservatisme et leur attachement aux coutumes anciennes qui est la grande raison pour laquelle les païens n'osent pas devenir chrétiens, mais c'est la peur de perdre leur vie. La question est pour eux une question de vie ou de mort[([47])]. La vie est donc le grand motif de tout agir essentiel des païens[([48])]. Et, chez les Bantu, ce motif est enraciné dans la connaissance ontologique des êtres, des vivants, des morts, des êtres de rang inférieur, de tout l'univers. On peut bien dire que la vie est le bien suprême de tous les hommes; que ce bumi ou cette théorie de la vie des Bantu les assimile précisément à toute l'humanité. C'est vrai dans un certain sens[([49])) PLACIDE TEMPELS - MELANGES DE PHILOSOPHIE BANTU - RECUEIL DE TEXTES PREPARES PAR A.J. SMET C.P. Première partie - L'idée fondamentale de l'ontologie bantu.
136
Os espíritos primordiais, isto é, aqueles que deram origem aos primeiros clãs,
eram cultuados pelos bantos e pelos nagôs (bakulo/egungum), porém, no Brasil, assim
como em África, o culto de egungum desenvolveu-se concomitantemente ao culto de
orixás, concebeu uma estrutura separada do candomblé queto, constituiu-se uma
comunidade própria e realiza ritos específicos com o objetivo de reintegrar os ancestrais
religiosos à comunidade dos vivos.
Desse modo, conquistou uma reputação que lhe deu mais apreço que o culto dos
bantos, embora na origem a importância dada aos egunguns e aos espíritos dos mortos
fossem semelhantes. Assim, as almas cultuadas nos Cruzambê das almas ou no Inso
Yombeta das casas angola passaram a ser comumente chamadas de egum ou como no
Ilê Axé Arolê, em que foi realizada a junção do Inso Yombeta com Ile Ibo Aku ( casa
dos culto dos mortos). As almas dos candomblés angola passaram a dividir o espaço
com o assentamento de egungum, cujo culto foi totalmente importado de casas de
egungum provenientes de Itaparica.
Uma outra categoria de seres ligados à natureza e cultuados no candomblés são
os inquices/orixás que, ao se transferirem para o Brasil através da diáspora, sofreram
ressignificações.
Os povos Bantos assim como os nagôs acreditavam em forças da natureza, isto
é, nas matas, rios cachoeiras, fogo, ar, terra, água, raios, ventos e tempestades. Os nagôs
tinham os Orixás que representavam reinados em terras iorubas, famílias reais, e seus
mitos contam a história de guerras e conquistas de seus povos. Esses reis e rainhas em
terras africanas constituíram-se em ancestrais divinizados e, com a diáspora, os orixás
passaram a ser entendidos como forças da natureza, uma vez que ficaram desprendidos
da sociedade a que pertenciam e que organizavam por meio de seus mitos.
137
Por outro lado, também os bantos, conforme escreve Girotto, “rompido os laços
com a ancestralidade,(...) reinterpretam o conceito de nkisi (inquice), alterando o foco
de importância, de culto de mortos para o de espíritos da natureza que já praticavam
em África.” ( 1999; p.276) ( grifo nosso)
Da mesma forma, também os assentamentos dos orixás eram muito parecidos
com a representação material dos inquices, isto é, enquanto símbolo e maneira de
confeccionar. (Girotto, 1999). Nas palavras do autor:
“Quando se encontram no Brasil inquices e orixás que já tinham
em África muitas coisas em comum, transformam-se, da seguinte
maneira: “nkisi (objeto confeccionado) passou, no Brasil, a
designar o ”Ser Força” que energiza a sua representação
material (assentamento), símbolo que contém elementos capazes
de captar e armazenar, através de ritos, uma minúscula parcela
de sua energia.” ( 1999; p. 276)
Como se pode verificar, inquices e orixás puderam ter uma correspondência que
se baseia principalmente no campo da natureza em que atuam. (Ver Tabela de
correspondência entre Orixás e Inquices)
No trabalho de campo, uma mameto expressou sua visão sobre Inquice/orixá da
seguinte maneira:
“Adoro ser filha-de-santo e sou muito feliz em ser filha de Iansã.
Quando eu fiz santo, fiz queto. É outro conhecimento, é outra
coisa, mas eu passei para angola e minha mãe não mudou a
dijina, a minha dijina é a mesma. Hoje a gente já sabe que não é
mais Iansã, é Matamba, mas eu não fico brigando com ninguém,
tem que ser isso ou aquilo, não tem que ser Iansã tem que ser
138
Matamba. Eu, para mim meu nome é Antônia, que minha mãe me
deu, minha mãe de santo me deu Oyá Corajacy, meus amigos me
chamam de Cora; e outros, Toninha. Eu sei que sou a mesma.
Então quando eu discutia religião... Eu não discutia religião, eu
acho que a gente não tem que discutir nação. A gente tem que
discutir orixá. Eu sei que orixá/inquice é a mesma coisa. Você
chama a pessoa do jeito que tem que ser, eu chamo da minha, e
tudo é uma coisa só. Porque se eu for ao queto cantar queto
dependendo o quê, meu santo vai responder sim, porque não vou
dizer que não vai. Se eu for ao jeje cantar, ela responde, então, eu
acho que nós não temos que ficar discutindo nação, porque nós
somos do orixá. “( mameto Corajacy)
Com suas palavras essa sacerdotisa traduz de uma maneira muito peculiar o
sincretismo entre as nações de candomblé que ora é inquice, ora é santo e ora é orixá.
Tabela de correspondência entre Orixás e Inquices.128
NÀGÓ BANTU
-------------------------------------------------------------------------------------------
• Olórun , Olódùmare Zambi, Zambiapongo
• Èsù, Bará, Elégbára Aluvaiá,Bombogira, Jiramavambo, Mavambo
• Ògún Incossimucumbe,Incossi, Mungongo
• Òsóòsì Matalambô, Tauamim
128 Dados retirados de: Giroto, Ismael. Tese de doutorado apresentada ao Departamento de Antropologia
da FFLCH da USP, sob orientação do Prof Carlos Moreira Henriques Serrano. 1999
139
• Òsanyin Katende
• Obalúayé Burungunço, Cuquete
• Omolu Cafunge, Quingongo
• Sànponná Kaviungo
• Òsùmàrè Angorô
• Nana Buruku Zumbarandan
• Òsun Dandalunda, Kissimbi
• Yemonja Kaitumbá, Micaiá
• Oyá Mtamba, Bamburucema
• Sangó Zaze, Luango
• Òbà Caramoce
• Yewa Cuiganga, Kissanga
• Ìbejì Vungé
• Írókò Kitembo
• Olóòkun Kalunga
• Òrìsànlá Gangarumbanda,
Lembarenganga
• Òsàlufón Gangarumbanda,
Lembarenganga
• Onile Tateto Kisanga Ria - Incungo
• Iku Tateto Kisanga Ria- Kalunge
Outra questão relevante na relação entre as nações angola e queto é sobre Exu.
Com expusemos no capítulo II, o Aluvaiá/Exu no angola assume duas características,
uma se assemelha ao orixá Exu da concepção nagô e outra em que ele se revela como
espírito de pessoas que tiveram uma vida de moral duvidosa e hoje trabalha incorporado
nos seus médiuns para atender aos pedidos dos clientes. Embora esta diferença entre o
angola e o queto exista nos terreiros mais tradicionais, o Exu espírito que incorpora nas
140
festas e dá consultas, não é prerrogativa apenas dos terreiros de angola, pois um grande
número de terreiros de nação queto também trabalha com estes Exus, além de possuírem
como os terreiros de angola seus assentamentos diferenciados do assentamento do Exu-
do-santo. Além do mais, muitos dos seus filhos têm assentados seus Exus de rua e
Pombajiras.
A questão do sincretismo no candomblé, não só entre os diversos elementos das
nações, mas também com os santos católicos, como vimos, é uma questão que exige
muito cuidado ao ser analisada. Percebe-se entre os sacerdotes entrevistados, seus filhos
de santo, enfim, entre os adeptos do candomblé, que todos sabem, por exemplo, que o
inquice Matamba não é Iansã e também não é Santa Bárbara, mas que em alguns
momentos podem ser uma só. Os assentamentos em muito se parecem quanto aos
elementos usados na sua composição, e as danças dos inquices e dos orixás são
diferenciadas entre as nações quanto aos movimentos de corpos, as músicas e quanto ao
ritmo e os toques dos atabaques, porém reproduzem as mesmas histórias míticas.
As duas mametos referidas nesta dissertação, por causa de uma forte aliança
entre elas, lavam, no sábado de aleluia, as escadas da Catedral de Campinas, que tem
como padroeira Nossa Senhora da Conceição. Reproduzem de certa forma a lavagem
baiana de Nosso Senhor do Bonfim, porém em nome de Kaiátumbá realizam uma
inversão de posturas e valores. Ao efetuarem os ritos religiosos do candomblé,
purificam a igreja ,invertendo e reinventando os papéis.
A festa na praça, embora seja realizada pelas duas mametos, promove o
candomblé campineiro independente de linhagens e nações. Contudo, a festa se efetiva
de maneira muito mais ampla, porque abrange diversos aspectos das questões anti-
raciais e da valorização da cultura afro-brasileira. Torna visível o negro.
141
O que percebi estudando estes candomblés campineiros de nação angola foi que
ser mais ou menos puro significa obedecer a uma medida de pureza que varia conforme
os interesses dos grupos envolvidos. Concordando com Stuart Hall: “Sabemos que o
termo ‘África’ é, em todo caso, uma construção moderna, que se refere a uma
variedade de povos, tribos, culturas e línguas cujo principal ponto de origem comum
situa-se no tráfico de escravos.” (2003; p. 31). Neste sentido, sujeitos que
anteriormente se encontravam disjuntivos geográfica e historicamente, tiveram suas
trajetórias cruzadas por intermédio da convivência espacial e temporal a que a diáspora
os obrigou. Esta “zona de contato” (Hall; 2003) proporcionou uma mistura específica
da combinação de santos católicos, orixás, inquices e vodus que é observada no Brasil,
embora possam ser encontrados sincretismos semelhantes em toda a América Latina.
Porém os grupos reorganizados em torno das nações de candomblé procuram
afirmar suas identidades. Conforme Stuart Hall, “as culturas, é claro têm seus “locais”.
Porém não é mais tão fácil dizer de onde elas se originam.” (2003; p. 36).
Mesmo assim, o candomblé angola procura nos reflexos pálidos dos antigos povos
bantos afirmar sua identidade. É uma questão que se torna importante na medida em
que a diferença “é essencial ao significado, e o significado é crucial à cultura.”
(Hall, 2003; p. 33)
No entanto, o conceito binário de diferença em que a exclusão do outro se torna
imprescindível, não se encaixa no caso das nações de candomblé, pois, embora haja um
lugar de origem, “sempre existe algo no meio” que as torna singularmente diferentes
das primordiais. A diferença aqui não pode seguir padrões rígidos de inclusão e
exclusão, mas uma relação com o outro mais fluida em que as fronteiras podem ser
construídas e descontruídas continuamente, e que mostram a posição de relação com o
outro.
142
Embora Stuart Hall escreva sobre culturas caribenhas na Europa, acredito que se
encaixe muito bem a utilização da noção derridiana de différance na questão de
afirmação da identidade do candomblé angola em Campinas. De maneira que o que faz
sentido na determinação de uma nação de candomblé é captado no processo mais fluido
do “fazer sentido na tradução”. Desta forma, todas nações são híbridas. Não obstante a
formação sincrética estabeleça entre os vários elementos inclusos relações desiguais por
causa das relações de poder, hoje em dia o candomblé angola tem uma luta cultural que
o permite fazer uma revisão e a reapropriação de seus elementos de origem banta. O
que sugere que a cultura está sempre em processo de produção.
As sociedades das quais se originaram as diversas nações do candomblé foram
muitas, suas origens não são únicas, tanto que algumas nações são oriundas de povos
bantos e outras de sudaneses, termos que englobam inúmeros grupos negros africanos.
Por conseguinte, é importante perceber que a produção diaspórica da cultura é
invariavelmente “impura”. Essa impureza, Segundo Hall “tão frequentemente
construída como carga e perda, é em si mesma uma condição necessária à sua
modernidade.” (2003, p.34)
Assim, o candomblé angola em Campinas sobrevive, resiste e se fortifica, ao
mesmo tempo em que se constitui mediante uma grande plasticidade, vai à procura de
uma África banta, mítica, que não é um ponto antropológico fixo, mas “hifenizada”,
afro-brasileira, resultado da diasporização que, segundo Hall, “foi apropriada e
transformada pelo sistema de engenho do Novo Mundo”. (2003, p.41)
Desta forma, os estandartes e as faixas escritas em banto que vêm puxando o
cortejo do candomblé até a praça da Catedral Metropolitana de Campinas retomam essa
África metafórica que torna pronunciáveis o negro e o afro-brasileiro, por uma “lógica
diferente” e permitem não-ditos virem à tona, as memórias subterrâneas serem
143
desenterradas, mostrando uma cultura afro-brasileira, que diz “não” à marginalização e
à subordinação.
A lavagem anarquiza, subverte e dá como resposta ao racismo manifestado pelo
homem que agrediu mameto Dangoroméia, na praça, uma “política de
reconhecimento”, ao lado das lutas contra o racismo e pela justiça social. (Hall, 2003;
p.46)
144
ÍNDICE E CRÉDITOS DAS ILUSTRAÇÕES
1. Desenho de Carybé incluso no livro “As sete
portas da Bahia” 2. Desenho de Carybé incluso no livro “As sete
portas da Bahia” 3. Região de governo de Campinas – distribuição
populacional. Fonte IBGE 4. Primeiro barracão de candomblé de Campinas -
1980 foto baba Tologi 5. Frente do primeiro barracão de candomblé -
1980 - foto baba Tologi 6. Interior do salão do primeiro barracão de
candomblé de Campinas, com peji, cadeira de orixá e oferendas – 1980 – foto baba Tologi
7. Lembrançinha da abertura do primeiro terreiro de candomblé de Campinas
8. Planta do terreiro : Inzo dia Roxe Mokumbo ni Dandanlunda
9. Inzo dia Roxe Mokumbo ni Dandalunda- 2005- frente atual. Foto Ivete M. Previtalli Inzo dia Roxe Mokumbo ni Dandalunda- 2005 -
Corredor de entrada 10. A o fundo a entrada do salão. Foto Ivete M.
Previtalli 11. Inzo dia Roxe Mokumbo ni Dandalunda-
2005- Entrada do barracão.Foto Ivete M. Previtalli
12. Inzo dia Roxe Mokumbo ni Dandalunda- 2005- salão de festas. Foto Ivete M. Previtalli
13. Inzo dia Roxe Mokumbo ni Dandalunda- 2005- detalhe das paredes internas do salão. Foto Ivete M. Previtalli
14. Inzo dia Roxe Mokumbo ni Dandalunda- 2005- casa de caboclo
15. Inzo dia Roxe Mokumbo ni Dandalunda- 2005- Assentamento do Inquice Tempo e inquice Angorô. Foto Ivete M. Previtalli
16. Ilê Axé Arolê. Entrada do salão Foto Ivete M.Previtalli
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37
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45
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45
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60
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61
61
61
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65
145
17. Ilê Axé Arolê. Coluna central. Foto: Ivete M. Previtalli
18. Ilê Axé Arolê. Detalhe da coluna central. Foto: Ivete M. Previtalli
19. Ilê Axé Arolê. Casas de santo Foto: Ivete M. Previtalli
20. Ilê Axé Arolê. Casa de egungum e das almas. Foto: Ivete M. Previtalli
21. Ilê Axé Arolê. Cantinho da umbanda. Foto: Ivete M. Previtalli
22. Ilê Axé Arolê.Detalhes do cantinho da umbanda. Foto: Ivete M. Previtali
23. Ilê Axé Arolê. Assentamento Iyámi. Foto: Ivete M. Previtalli
24. Ilê Axé Arolê. Assentamento da prosperidade 25. Ilê Axé Arolê. Assentamento inquice Tempo.
Foto: Ivete Miranda Preitalli 26. Desenho Carybé. In: As sete portas da Bahia 27. Gráfico: Grupos aparentados de A (Iniciado no
candomblé) 28. Gráfico :Possibilidades de parentesco com “A”
em que não há proibição do incesto 29. Gráfico: casos em que a proibição do incesto
não permite que “B” esteja localizado na organização familiar por causa de seu parceiro sexual “A”
30. Gráfico: Família biológica de mameto Dangoroméia
31. Gráfico: Família de santo cruzada com a família biológica de mameto Dangoroméia
32. Gráfico: Família de santo cruzada com família biológica de mameto Corajacy
33. Gráfico: Família de santo cruzada com família biológica de tateto Ubiacylê
34. Gráfico: Família de santo cruzada com família biológica de tateto Gitalanguange
65
65
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74
77
77 77
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91
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92
146
35. I- Diagrama da família de santo de Tateto dya N’kisse Gitalanguange
36. II- Diagrama da família de santo de Tateto dya N’kisse Ubiacylê
37. III - Diagrama da família de santo de Mameto dya N’kisse Dangoroméia
38. IV - Diagrama da família de santo de Mameto dya N’kisse Corajacy
39. Diagrama do candomblé de angola de Campinas.
40. Desenho de Carybé incluso no livro “As sete portas da Bahia”
41. I.Prospecto da Lavagem da Catedral Metropolitana de Campinas.
42. II. Prospecto da Lavagem da Catedral Metropolitana de Campinas.
43. Tabela de Correspondência entre Orixás e Inquices
94
94
95
95
103
112
128
139
147
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