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CAPÍTULO I TEORIA GERAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS SUMÁRIO • 1. Introdução – 2. Características: 2.1. Inalienabilidade; 2.2. Irrenunciabilidade: os direitos fundamentais não admitem renúncia, vale dizer, não se pode abdicar deles. Na pior das hipóteses, seu titular não exercerá esse direito, mas jamais poderá dele abrir mão; 2.3. Indisponibi- lidade; 2.4. Historicidade; 2.5. Não-taxatividade; 2.6. Imprescritibilidade; 2.7. Relatividade – 3. Colisão ou tensão entre direitos fundamentais – 4. Gerações de direitos fundamentais: 4.1. Direitos de 1ª Geração; 4.2. Di- reitos de 2ª Geração; 4.3. Direitos de 3ª Geração; 4.4. Direitos de 4ª Gera- ção; 4.5. Direitos de 5ª Geração; 4.6. Terminologia – 5. Cláusulas Pétreas – 6. Sujeito Ativo e Passivo dos direitos fundamentais – 7. Aplicabilidade das Normas Constitucionais: 7.1 Normas de eficácia plena; 7.2 Normas de eficácia contida; 7.3 Normas de eficácia limitada. 1. INTRODUÇÃO É possível afirmar que o tema “direitos fundamentais” corresponde ao epicentro do Direito Constitucional contemporâneo, dada a sua impor- tância. Como se sabe, toda Constituição revela três funções básicas: organizar o Estado, organizar os Poderes e enunciar direitos funda- mentais. Mas o que são direitos fundamentais? Aliás, existem direitos não fundamentais? Pois bem. Segundo Uadi Lammêgo Bulos, sem os direitos fundamentais, o ho- mem não vive, não convive, e, em alguns casos, não sobrevive. Trata-se de uma ótima conceituação para um primeiro contato, ou seja, para iniciar a apreensão do conhecimento. No entanto, com todo respeito ao eminente constitucionalista, o conceito aludido não é suficiente para que o leitor possa identificar quando está diante de um direito fundamental ou não. Exemplificando: o direito à propriedade intelectual e o direito à herança são fundamentais? Bom, valendo-se do conceito acima, não é possível

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CAPÍTULO ITEORIA GERAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

SUMÁRIO • 1. Introdução – 2. Características: 2.1. Inalienabilidade; 2.2. Irrenunciabilidade: os direitos fundamentais não admitem renúncia, vale dizer, não se pode abdicar deles. Na pior das hipóteses, seu titular não exercerá esse direito, mas jamais poderá dele abrir mão; 2.3. Indisponibi-lidade; 2.4. Historicidade; 2.5. Não-taxatividade; 2.6. Imprescritibilidade; 2.7. Relatividade – 3. Colisão ou tensão entre direitos fundamentais – 4. Gerações de direitos fundamentais: 4.1. Direitos de 1ª Geração; 4.2. Di-reitos de 2ª Geração; 4.3. Direitos de 3ª Geração; 4.4. Direitos de 4ª Gera-ção; 4.5. Direitos de 5ª Geração; 4.6. Terminologia – 5. Cláusulas Pétreas – 6. Sujeito Ativo e Passivo dos direitos fundamentais – 7. Aplicabilidade das Normas Constitucionais: 7.1 Normas de eficácia plena; 7.2 Normas de eficácia contida; 7.3 Normas de eficácia limitada.

1. INTRODUÇÃO É possível afirmar que o tema “direitos fundamentais” corresponde ao

epicentro do Direito Constitucional contemporâneo, dada a sua impor-tância. Como se sabe, toda Constituição revela três funções básicas: organizar o Estado, organizar os Poderes e enunciar direitos funda-mentais. Mas o que são direitos fundamentais? Aliás, existem direitos não fundamentais?

Pois bem.

Segundo Uadi Lammêgo Bulos, sem os direitos fundamentais, o ho-mem não vive, não convive, e, em alguns casos, não sobrevive. Trata-se de uma ótima conceituação para um primeiro contato, ou seja, para iniciar a apreensão do conhecimento. No entanto, com todo respeito ao eminente constitucionalista, o conceito aludido não é suficiente para que o leitor possa identificar quando está diante de um direito fundamental ou não. Exemplificando: o direito à propriedade intelectual e o direito à herança são fundamentais? Bom, valendo-se do conceito acima, não é possível

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concluir com certeza, afinal, seriam tais direitos indispensáveis para a vida, a sobrevivência ou a convivência? Não me parece. Como saber, então, se um direito é fundamental? É o que vamos verificar neste momento.

Alguns direitos são indispensáveis para uma existência humana dig-na, como, por exemplo, a saúde, a liberdade, a igualdade, a moradia, a educação, a intimidade etc. A esses direitos convencionou-se denominar de direito humanos, que estão previstos em tratados internacionais. No momento em que os direitos humanos são incorporados na Constitui-ção de um país, ganham o status de direitos fundamentais. Isso porque o constituinte originário é livre para eleger, em um elenco de direitos hu-manos, aqueles que serão constitucionalizados por um Estado Nacional e, por conseguinte, serão tidos por direitos fundamentais. Observe o gráfico abaixo:

ESTADO

CONSTITUIÇÃODIREITOS HUMANOS

DIREITOS FUNDAMENTAIS

A partir dos elementos contidos no desenho acima, os direitos funda-mentais podem ser conceituados como direitos relativos a uma existên-cia humana digna, reconhecidos por uma Constituição, que impõem deveres ao Estado, salvaguardando o indivíduo ou a coletividade. Justamente porque implicam deveres jurídicos ao Estado, os direitos fun-damentais são classificados como elementos limitativos das Constituições.

► COMO ESSE ASSUNTO FOI COBRADO EM CONCURSO PÚBLICO?Na prova para Defensor Público do DF (CESPE/UnB – 2013), foi conside-rada correta a seguinte assertiva: “Consideram-se elementos limitativos da Constituição as normas constitucionais que compõem o catálogo dos direitos e garantias individuais.”.

São exemplos de direitos fundamentais: a saúde, a liberdade, a igual-dade, a moradia, a educação, a intimidade, dentre outros. Ora, perceba o

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leitor que intencionalmente foram dados os mesmos exemplos para ilus-trar os direitos humanos e para apontar direitos fundamentais.

Infere-se, portanto, que não existe diferença ontológica entre direitos humanos e direitos fundamentais. Na essência, possuem o mesmo con-teúdo. Substancialmente, não há o que diferenciar, a não ser quanto ao âmbito de previsão de cada qual: enquanto os direitos humanos estão previstos em tratados internacionais, os direitos fundamentais estão posi-tivados em uma Constituição.

Conteúdo Âmbito de previsão

Direitos Fundamentais = Interno: Constituição

Direitos Humanos = Externo: Tratados

Assim, em princípio, é a Constituição de um país o documento que alberga direitos fundamentais. Todavia, a própria Constituição Federal de 1988 inovou o tema, na medida em que previu uma cláusula de abertu-ra, asseverando que os direitos fundamentais nela previstos não excluem outros que derivem do regime democrático, dos tratados internacionais e dos princípios adotados pela República. Isso significa que, no ordenamen-to constitucional brasileiro, o rol de direitos fundamentais não é taxativo ou numerus clausus, mas sim exemplificativo ou numerus apertus. É o que estabelece o art. 5º, §2º da CF/88:

Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem ou-tros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

Após essas breves considerações, pergunta-se: o direito do consumi-dor de ser protegido pelo Estado, na forma da lei, é fundamental? O direi-to de mover uma ação judicial, buscando guarida no Judiciário, é funda-mental? Basta refletir um pouco para verificar que nenhum conceito será suficiente sem a leitura do texto constitucional, eis que o constituinte ori-ginário é livre para rotular como direito fundamental o que lhe aprouver. Em outras palavras, embora tenhamos estudado que esses direitos fun-damentais são inerentes a uma existência humana digna, a realidade é que o rótulo de direito fundamental é dado pelo autor da Constituição ao direito que achar por bem receber essa etiqueta. No Direito Penal, apenas são crimes hediondos aqueles etiquetados como tal pelo legislador (tenha o delito caráter repulsivo ou não). Do mesmo modo, direito fundamental é tudo que uma Constituição afirmar como tal, ainda que não haja

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ligação direta ou remota com a dignidade humana. Em um tom didáti-co, sugere-se a memorização da frase seguinte:

► ATENÇÃO

“Direito fundamental é tudo o que uma Constituição afirmar como tal.”

E o que a Constituição de 1988 afirmou como tal?

No Título II, consagrou-se que o gênero “Direitos Fundamentais” teria cinco espécies, cada qual alocada em um capítulo próprio: direitos indi-viduais e coletivos (sobretudo, no art. 5º), direitos sociais (art. 6º ao 11), direitos de nacionalidade (arts. 12 e 13), direitos políticos (arts. 14 a 16) e partidos políticos (art. 17). Logo, todo direito social é fundamental, mas não vale a recíproca. No mesmo raciocínio, nem todo direito fundamental é de nacionalidade, mas todo direito de nacionalidade é fundamental. Cui-da-se de uma relação matemática de gênero e espécie, podendo ser vis-lumbrada em conjuntos, conforme se demonstra com os gráficos a seguir:

CONJUNTO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Direitos individuais e coletivos Direitos sociais

Direitos de nacionalidade Direitos políticos

Partidos políticos

2. CARACTERÍSTICASSe não houvesse peculiaridades que diferenciassem os direitos funda-

mentais dos demais direitos, não faria sentido estuda-los como categoria autônoma. Justamente por representarem uma categoria autônoma, os-tentam características próprias, vale dizer, marcas distintivas que a maio-ria dos direitos não carregam. Os direitos fundamentais são, em regra,

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imprescritíveis, inalienáveis, irrenunciáveis, indisponíveis, históricos, não--taxativos e relativos. Passamos, então, ao estudo das características mais apontadas pela doutrina, uma a uma. Ei-las:

2.1. InalienabilidadeOs direitos fundamentais não podem ser alienados, isto é, são intrans-

feríveis, seja a título gratuito (doação) ou oneroso (compra e venda). Não é possível, por exemplo, vender a própria liberdade, tampouco se admite seja doado o direito à vida. Não obstante, em provas de concursos públi-cos, o candidato deve lembrar que o próprio texto constitucional cuidou de excepcionar essa regra, no caso dos direitos autorais. Estes são trans-missíveis aos herdeiros pelo tempo em que a lei fixar (art. 5º, XXVII, CF/88).

Todavia, é imprescindível fazer um esclarecimento. De fato, o direito à propriedade é considerado direito fundamental. Por outro lado, em regra, um proprietário pode alienar livremente seus bens. Cumpre indagar: como é possível que o proprietário aliene seus bens, se o direito de propriedade, que é direito fundamental, é inalienável? A questão é simples, mas infeliz-mente nem todos percebem a sutileza do raciocínio. A propriedade, per si, pode ser vendida, mas jamais o proprietário poderá vender seu direito de tornar-se novamente proprietário de outros bens. Um exemplo elucidará a questão. Se um pescador está com fome e pesca alguns peixes no mar, a quem pertencem esses peixes? Ao pescador, que exerceu o seu direito de apropriar-se de uma res nullius. É perfeitamente possível que o pescador venda esses peixes, mas jamais poderá vender o seu direito de apropriar--se de novos peixes que venha a pescar no futuro. Portanto, o direito à propriedade é inalienável. A coisa sobre a qual recai a propriedade, em si mesma, pode ser alienada.

2.2. IrrenunciabilidadeOs direitos fundamentais não admitem renúncia, vale dizer, não se

pode abdicar deles. Na pior das hipóteses, seu titular não exercerá esse direito, mas jamais poderá dele abrir mão.

Imaginemos que determinada pessoa peça dinheiro emprestado e se submeta a juros extorsivos, acima da taxa legal. Imaginemos ainda que o mutuante expressamente tenha renunciado, por cláusula contratual, ao direito de discutir a dívida em juízo. Tal cláusula tem validade? Evidente-mente que não, afinal, não se pode abdicar do direito fundamental de buscar guarida no Judiciário, exercendo o direito de ação (art. 5º, XXXV, CF/88).

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Aliás, é nesse contexto que se busca aquilatar até que ponto a arbi-tragem, meio extrajudicial de solução de conflitos, pode ser considerada constitucional, eis que as partes acabam abdicando do direito de buscar o Estado-juiz, para que a lide seja resolvida por um árbitro, cuja sentença terá efeitos de título executivo judicial (art. 584, VI, CF/88). Tem prevale-cido na doutrina que a arbitragem é constitucional, uma vez que apenas recai sobre direitos patrimoniais disponíveis, posição chancelada pelo pró-prio Supremo Tribunal Federal (homologação de sentença arbitral estran-geira n.º 5.206, competência que, após a EC n.º 45/04, passou a ser do STJ). Portanto, é o que o leitor deve assinalar em provas objetivas.

Todo cuidado é pouco com o direito fundamental à herança (art. 5º, XXX, CF/88), uma vez que admite renúncia por parte dos herdeiros. Nin-guém é obrigado a herdar. Trata-se, pois, de uma exceção a essa caracte-rística.

2.3. Indisponibilidade

Ora, considerando que, como regra, os direitos fundamentais não po-dem ser alienados e nem renunciados, conclui-se que estão fora do âmbi-to de disposição do seu titular.

2.4. HistoricidadeNão é difícil perceber que os direitos fundamentais são fruto de uma

época, assumindo, então, uma feição histórica. Uma Constituição, sobre-tudo se dogmática, fotografa os valores de uma sociedade, em um dado momento no curso da História. Assim, o direto fundamental ao patrimônio genético do indivíduo, por exemplo, não surgiria no início do Século XX, pois a sociedade estava aquém das descobertas científicas relacionadas ao biodireito. Do mesmo modo, o direito fundamental ao meio ambiente eco-logicamente equilibrado foi inaugurado pela Constituição de 1988, algo ini-maginável na Carta de 1824. A depender do momento histórico, os direitos fundamentais podem existir ou não.

2.5. Não-taxatividadeComo já afirmado alhures, os direitos fundamentais estão previstos

em uma lista aberta, havendo outros implícitos ou explícitos que derivam do regime democrático, dos princípios e dos tratados internacionais. Um bom exemplo é o direito fundamental à busca da felicidade, que, embora não esteja previsto na Constituição, foi invocado pelo STF para reconhecer

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a legitimidade da união estável homoafetiva, como corolário do princípio da dignidade humana (ADPF 132/RJ – 05/05/2011).

2.6. ImprescritibilidadeNão há prazo prescricional ou decadencial para o exercício de um

direito fundamental. Tais direitos subsistem durante toda a existência do indivíduo.

2.7. RelatividadeOs direitos fundamentais não são absolutos, uma vez que podem ser

flexibilizados a partir de uma ponderação de princípios.

Vem ganhando força uma corrente minoritária pela qual o direito de não submeter-se à tortura seria absoluto, não comportando restrições. Outros mencionam, ainda, o direito de não ser escravizado. Já é possível, inclusive, encontrar julgados nesse sentido, como, por exemplo, no Tribu-nal de Justiça do Rio Grande do Sul. É o que se pode vislumbrar no trecho da decisão transcrita a seguir (Ap. Cível Nº 70037772159, 5ª Câmara Cível, TJ/RS, Rel. Jorge Luiz Lopes do Canto, 20/04/2011):

A dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, e a tortura o mais expressivo atentado a esse pi-lar da República, de sorte que reconhecer a imprescritibilidade dessa lesão é uma das formas de dar efetividade à missão de um Estado Democrático de Direito, reparando odiosas desumanidades pratica-das na época em que o país convivia com um governo autoritário e a supressão de liberdades individuais consagradas. Constata-se a existência de um núcleo essencial de direitos fundamentais que não permite ser atingido por qualquer tipo de interpretação, e o princípio orientador desse núcleo será justamente o princípio da dignidade da pessoa humana. Desta forma, somente será possível limitar um direi-to fundamental até o ponto de o princípio da dignidade da pessoa humana não for agredido, porquanto existem direitos fundamentais considerados absolutos. A vedação a tortura deve ser considerada um direito fundamental absoluto, pois a mínima prática de sevícias já é capaz de atingir frontalmente a dignidade da pessoa humana. Nesse sentido é o proclamado no art. 2º da declaração sobre a proteção de todas as pessoas contra a tortura, que dispõe que todo ato de tortura ou outro tratamento ou pena cruel, desumano ou degradante consti-tui uma ofensa à dignidade humana e será condenado como violação dos propósitos da Carta das Nações Unidas e dos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais Proclamados na Declaração Universal de Direitos Humanos.

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A corrente pela qual o direito de não submeter-se à tortura é absoluto pode ser mencionada em uma prova subjetiva, como forma de enriquecer a resposta do candidato, devendo ser evitada em provas preambulares. Ainda prevalece a concepção de que nenhum direito é absoluto, em uma colisão de direitos, pode vir a ser restringido no caso concreto. E é exata-mente disso que vamos nos ocupar no tópico seguinte.

► COMO ESSE ASSUNTO FOI COBRADO EM CONCURSO PÚBLICO?No concurso para promotor de justiça do PR (2008), foi considerado correto o item seguinte: “Os direitos fundamentais não são absolutos. Isso posto, a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo poderão sofrer restrições em face das disposições da Constituição Federal”.

3. COLISÃO OU TENSÃO ENTRE DIREITOS FUNDAMENTAIS

Suponhamos que o direito constitucional à vida colida com o direito à liberdade de crença. Qual deles deve prevalecer? Reflita. Agora, imagine um conflito entre o direito ao meio-ambiente ecologicamente equilibrado e o direito constitucional à cultura. Qual deve preponderar? Medite a res-peito. Finalmente, indaga-se: havendo choque entre o direito à intimidade e a vedação à censura, a favor de qual deles deve decidir o magistrado?

A resposta correta é “depende do caso concreto”.

Como se pode perceber, não é possível responder a nenhum dos questionamentos acima, por uma razão singela. Não se pode afirmar, a priori, qual direito fundamental deverá prevalecer, porquanto inexiste hie-rarquia entre eles (princípio da unidade da Constituição). Hipoteticamente, estão todos no mesmo patamar.

Apenas no caso concreto será possível avaliar qual direito constitu-cional foi exercido de forma abusiva, devendo ceder em face do outro e, mesmo assim, sem que o núcleo essencial de quaisquer deles seja sacri-ficado (princípio da concordância prática). O aplicador da lei realizará um sopesamento, um juízo de ponderação acerca do conflito em questão, utilizando-se do princípio da razoabilidade ou proporcionalidade. Portan-to, o raciocínio deve ser a posteriori. Analisemos, então, algumas situações concretas.

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• Caso 1: muçulmano que, a pretexto de admoestar sua esposa, que também comunga da mesma fé no islamismo, aplica-lhe castigos físi-cos (liberdade de crença versus integridade física e dignidade humana da mulher).

• Caso 2: índio não integrado em sociedade que, ao constatar que seu filho recém-nascido é portador de deficiência física, considera que pode ser castigados pelos deuses e decide sacrificar a criança, sendo essa conduta uma prática de seus ancestrais (cultura e liberdade de crença versus direito à vida e proteção aos deficientes).

• Caso 3: testemunha de Jeová que se recusa a receber transfusão de sangue, mesmo sendo este o único meio idôneo para afastar o seu risco de morte (liberdade de crença versus direito à vida).

• Caso 4: passeata de pedófilos que, embora não exerçam a pedofilia, lutam pela elaboração de uma lei que reduza a idade mínima exigida para o válido consentimento de atos sexuais (direito de reunião e li-berdade de expressão versus dignidade humana e segurança pública).

Em todos os casos sobreditos, o magistrado deverá aquilatar cuidado-samente o direito que merece ser prestigiado no caso concreto. É possível que o direito fundamental, outrora afastado pelo magistrado, triunfe sobre o mesmo direito que o afastou, desde que o suporte fático não seja o mesmo. Em suma: tudo dependerá do caso concreto, não dos direitos em jogo, que devem ser compreendidos como equivalentes em termos hie-rárquicos. Por força do princípio da unidade da Constituição, não há hie-rarquia entre os dispositivos constitucionais, sendo irrelevante que se trate de normas originárias ou derivadas, que alberguem direitos fundamentais e não fundamentais, que sejam cláusulas pétreas ou não.

► COMO ESSE ASSUNTO FOI COBRADO EM CONCURSO PÚBLICO?No concurso para promotor de justiça do PR (2011), foi considerado cor-reto o item seguinte: “Quando houver conflito entre dois ou mais direitos e garantias fundamentais, o operador do direito deve interpretá-los de forma a coordenar e combinar os bens jurídicos em dissenso, evitando o sacrifício total de uns em relação aos outros, realizando uma redução proporcional do âmbito de alcance de cada qual, de forma a conseguir uma aplicação harmônica do texto constitucional”.

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► COMO ESSE ASSUNTO FOI COBRADO EM CONCURSO PÚBLICO?No concurso para defensor público do DF (CESPE/UnB – 2013), foi considerado errado o item seguinte: “Na hipótese de eventual conflito aparente de normas constitucionais decorrente da implantação de um empreendimento empresarial que possa vir a causar danos ao meio am-biente, aplica-se o princípio da unidade constitucional, pelo qual as nor-mas que consagram princípios – como o da livre inciativa, inserido no capítulo dos princípios gerais da ordem econômica – devem prevalecer sobre as que disponham sobre interesses de ordem prática, como os relacionados à defesa da fauna e da flora.”.

4. GERAÇÕES DE DIREITOS FUNDAMENTAIS

As gerações de direitos fundamentais dizem respeito à ordem histó-rico-cronológica em que passaram a ser reconhecidos nas Constituições mundiais. Assim, alguns direitos fundamentais foram consagrados antes dos outros, o que fez com que viessem a ser classificados em gerações. A construção doutrinária estudada a seguir foi desenvolvida por Karel Vasak.

4.1. Direitos de 1ª Geração

O final do século XVIII foi marcado pela presença do Estado Liberal, caracterizado pela sua postura de não intervir na economia, que seria re-gulada pela mão invisível do mercado e suas leis naturais. O que os indiví-duos desejavam? Liberdade, em todas as suas formas de expressão. Assim, as primeiras Constituições escritas previam direitos que gravitavam em torno da ideia de liberdade. Os primeiros direitos salvaguardavam o indi-víduo, impondo ao Estado um dever de abstenção (non facere). Eram as chamadas liberdades clássicas. Na chamada 1ª geração, surgiram, então, os chamados direitos civis e políticos.

4.2. Direitos de 2ª Geração

Os anos se passaram e chegamos ao início do século XX. A sociedade, após a revolução industrial, passou a não se contentar mais com essa pos-tura passiva do Estado, exigindo prestações positivas, ou seja, que o Esta-do disponibilizasse uma série de direitos que assegurassem a igualdade. Na 1ª geração, os direitos eram viabilizados por uma omissão, ao contrário da segunda, em que somente a ação do Estado poderia efetivar direitos como saúde, educação, segurança, moradia, previdência etc. Esse foi o de-nominado Estado Social ou welfare state. Passam a ganhar atenção das

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Constituições os direitos sociais, econômicos e culturais. Historicamente, as primeiras cartas a positivarem tais direitos foram a Constituição Mexica-na (1917) e a Constituição de Weimar (1919).

4.3. Direitos de 3ª Geração

A partir da segunda metade do século XX, no Estado Democrático de Direito, já era possível encontrar constituições que previam direitos fun-damentais protetores de todo o gênero humano. Deve-se perceber que os direitos de 1ª geração albergavam o indivíduo. Na 2ª geração, os des-tinatários eram determinados grupos sociais ou coletividades. Na 3ª gera-ção, a abrangência é ainda maior, pois todo o gênero humano é objeto de proteção. Tais direitos tinham como epicentro a ideia de fraternidade (ou solidariedade), como, por exemplo, o direito ao meio-ambiente ecologica-mente equilibrado, ao progresso, ao desenvolvimento sustentável, à paz, dentre outros.

Alguns autores chegam a afirmar que o lema da revolução francesa (“liberté, egalité fraternité”) profetizou as gerações de direitos fundamen-tais que viriam a surgir nas constituições vindouras. Evidentemente, os re-volucionários não possuíam dons mediúnicos. Muito mais simples é ima-ginar que ocorreu o contrário: o lema da revolução, cuja autoria se atribui a Jean-Jacques Rousseau, inspirou Karel Vasak na construção teórica das gerações de direitos.

É de se ressaltar que a classificação desenvolvida por Karel Vasak já foi utilizada em decisões do STF. Em razão da clareza e da didática do Eminente Ministro Celso de Mello, transcreve-se um trecho da decisão a seguir (STF – Pleno – MS nº 22.164/SP):

Enquanto os direitos de primeira geração (direitos civis e políticos) – que compreendem as liberdades clássicas, negativas ou formais – realçam o princípio da liberdade e os direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais) – que se identificam com as liberdades positivas, reais ou concretas – acentuam o princípio da igualdade, os direitos da terceira geração, que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos genericamente a todas as forma-ções sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem em um momento importante no processo de desenvolvimento, ex-pansão e reconhecimento dos direitos humanos, caracterizados en-quanto valores fundamentais indisponíveis, pela nota de uma essen-cial inexauribilidade.

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► COMO ESSE ASSUNTO FOI COBRADO EM CONCURSO PÚBLICO?No concurso para promotor de justiça do PR (2011), foi considerado errado o item seguinte: “De acordo com autorizada doutrina, os interesses transin-dividuais se inscrevem entre os direitos denominados de primeira geração”.

4.4. Direitos de 4ª Geração Paulo Bonavides observa que o direito à democracia (direta ou par-

ticipativa), o direito à informação e o direito ao pluralismo seriam consti-tutivos de uma 4ª geração e legitimadores do fenômeno da globalização política, como consequência do neoliberalismo (BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 16, ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 571.572). Porém, como concretizar uma democracia direta em um país continental como o Brasil? Para o mencionado doutrinador, somente os avanços da tecnologia poderiam viabilizar uma democracia participativa, que hoje ainda pode ser encontrada nos cantões suíços, devendo-se ainda assegu-rar aos cidadãos o direito à informação.

Norberto Bobbio, por sua vez, atribui a essa 4ª geração os direitos ao patrimônio genético do indivíduo, tais como pesquisas com células-tronco embrionárias, clonagem e as questões relacionadas à bioética.

4.5. Direitos de 5ª GeraçãoPouco se fala acerca da 5ª geração. Paulo Bonavides relaciona à 5ª ge-

ração o direito à paz universal. É preciso ter cuidado em provas, porque, na concepção clássica, esse direito é tido como de terceira geração. Po-rém, segundo Paulo Bonavides, o direito à paz sofreu uma “trasladação da terceira para a quinta geração de direitos fundamentais” (BONAVIDES, Pau-lo - 5ª Geração de Direitos Fundamentais. Direitos Fundamentais & Justiça n. 3, Abril/Junho - 2008).

Com o objetivo de facilitar o estudo e assimilação das gerações de direitos fundamentais, fizemos uma tabela resumo com os principais ele-mentos, ou seja, com exatamente aquilo que tem sido exigido dos candi-datos nos concursos públicos de 1ª fase (provas preambulares).

1ª geração 2ª geração 3ª geração 4ª geração 5ª geração

Final do séc. XVIII

Início do séc. XX

Final do Séc. XX Época atual Época atual

(mais recente)

Estado Liberal

Estado Social ou Estado

Providência

Estado De-mocrático de

Direito

Estado De-mocrático de

Direito

Estado De-mocrático de

Direito