capoeira

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10/5/2009 45 SALVADOR DOMINGO DOMINGO, 10 DE MAIO DE 2009 #58 REVISTA SEMANAL DO GRUPO A TARDE GRANDES MESTRES João Pequeno, 91, discípulo de Pastinha e lenda viva da capoeira Cláudia Mascarenhas e a mãe contemporânea

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Reportagem sobre os principais mestres de capoeira de Salvador

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Page 1: Capoeira

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Page 2: Capoeira

22 SALVADOR DOMINGO 10/5/2009

Umarodado tamanho domundo

Texto TATIANA MENDONÇA [email protected] REJANE CARNEIRO [email protected]

Grandes mestres de capoeira da Bahia, herdeiros doslendários Bimba e Pastinha, espalham-se por cerca de150 países ensinando o jogo-arte

Capoeiristas na Fundação Mestre Bimba, no

Pelourinho, sob o comando do mestre Nenel

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Grandes mestres de capoeira da Bahia, herdeiros doslendários Bimba e Pastinha, espalham-se por cerca de150 países ensinando o jogo-arte

Capoeiristas na Fundação Mestre Bimba, no

Pelourinho, sob o comando do mestre Nenel

Page 4: Capoeira

24 SALVADOR DOMINGO 10/5/2009

Os joões brincam de ca-

poeira como quem dan-

ça em câmera lenta. Esti-

veram assim por muitas

rodas, vez por outra vi-

nhaalguémregistrar.Ve-

ja Capoeira Angola do Mundo, de 1986, a

cena está lá. Nessa época, já eram grandes

mestres, hoje são lendas do jogo que es-

palha a Bahia pelo mundo. Um é João Pe-

queno, o outro é João Grande. Um vive em

Fazenda Coutos; o outro, em Nova York.

Na laje de casa, no subúrbio de Salva-

dor, João Pequeno corre a memória para

lembrar a idade que tem – “78”, afirma ca-

tegórico. “Que 78? É 91, seu João”, a neta

apressa-se a consertar. “Tenho tudo isso

não”, ele rebate, rindo.

O problema, diz, é que sua cabeça está

dividida em duas. “Tem a parte que eu me

lembro e a parte que não lembro mais.

Mas da capoeira lembro”. Pergunto se ain-

dajogaeelelevantaparagingar.Ficacomo

resposta.“Fuipedreiro,pintor,masfoiaca-

poeira quem me apelidou de doutor”, con-

ta, em referência aos três títulos que ga-

nhou–em2003, tornou-sedoutorhonoris

causa pela Universidade Federal de Uber-

lândia, mesmo título que ganhou no ano

passado pela Ufba, ele que também é co-

mendador de cultura da República.

É sábado de manhã quando trinta e

duas crianças (ou quase, a depender das

que ficam dormindo) vão até sua casa par-

ticipar do projeto Pequenos do João, man-

tidoporobraegraçadosquevivemali.Elas

vãoatémestreJoãotomara‘bença’.ÉCris-

tiane Santos Miranda, 26, sua neta, quem

dá a aula. Mas João, sentado num banqui-

nho para fazer as fotografias (como ele

gosta de uma câmera! , não perde de opi-

nar. “Ele não vê os outros fazer, por isso er-

ra”, “o rabo-de-arraia é daqui pra lá”, “es-

tira a perna”, “olha por debaixo do braço”, Mestre Curió começou a treinar com mestre Pastinha: “A capoeira me deu tudo”

Page 5: Capoeira

10/5/2009 25SALVADOR DOMINGO

“troca aí”, “vem, vem” e, já meio irritado,

“se não sabe, vai embora”. Nani, como é

chamada, manda os alunos, de 3 a 13

anos, ouvirem o mestre João, ao mesmo

tempo em que vai dizendo para o avô ter

paciência, que elas são pequenas.

Sua cabeça ainda guarda a técnica, o

corpo é que não dá mais para tanto. Por

falta de um carro que o leve ao Forte da Ca-

poeira, em Santo Antônio, raramente vai à

academia, que nem mais lembra que tem.

Por causa da idade avançada, não viaja

mais para dar aula de capoeira no estran-

geiro. “Para a Europa, era frequente ele ir.

EtambémiamuitoparaosEstadosUnidos,

com o mestre João Grande”, conta Nani.

Foi de lá, mais especificamente de Nova

York, onde está desde 1990 fazendo a

América, que João Grande, 75, conversou

com a Muito. “Foi Deus quem me mandou

pra cá”. A primeira vez que viajou foi para o

Senegal, em 1966, com mestre Pastinha.

Depois foi para a Europa com o grupo Viva

Bahia, que apresentava shows folclóricos.

Em 1989, fez a primeira turnê aos EUA e,

um ano depois, foi para ficar. Montou a

academia Capoeira Angola Center of Mes-

tre João Grande. “Me dei bem aqui. Vou à

Bahiapassear, ficoummês.Souaventurei-

ro, gosto de andar pelo mundo”.

Em junho, ele vem dar aula em Belo Ho-

rizonte, depois segue para a Europa. João

Grande desvia com destreza na hora de di-

zer se ganha bem ou ficou rico. Emenda

que por lá é tudo muito caro. “Minha vida

estáarrumadaaqui.Nãopossodizerquan-

toéqueganhoporqueonúmerodealunos

varia muito. Ontem, vieram 21; hoje vêm

15; amanhã, 10”. Mas os mestres daqui

garantem que ele é uma espécie de Ronal-

dinho da capoeira (em suas devidas pro-

porções, claro está). Não à toa dele já dis-

se: “Foi Deus quem mandou João Grande

jogar capoeira”.

Já dizer o que a capoeira lhe deu, João

Grandesabe,enaamplidãoécerteiro.“Tu-

do, tudo. Os amigos e tudo mais”. Sua

bronca é só por achar que a capoeira anda

mudada. Sente saudade de quando era jo-

gada livre nas festas de largo. “Acabaram

aquelas festas bonitas. E muita gente não

leva a sério para aprender como se deve”.

MESTRE ACORDEON DAYNa outra costa americana é onde vive,

hátrintaanos,omestreAcordeon,65.Para

celebraradata,aPrefeituradeBekerley,na

Califórnia,ondeelemontousuaacademia,

criou no ano passado o Mestre Acordeon

Day, comemorado em 18 de outubro. “Ele

perguntou se não era muito mico, e eu dis-

se que não, que era um reconhecimento.

Quem é que tem isso aqui no Brasil? Nin-

guém”, conta mestre Itapuã, que estava

nos Estados Unidos para o grande evento.

Os dois foram alunos de mestre Bimba,

que criou a capoeira regional, hoje hege-

mônica no mundo.

Mas Itapuã, 61, não havia de perder a

oportunidade de sacaneá-lo. “Quando ele

subiuparareceberahomenagem,eugritei

de cá: ‘Que mico!’”. E Acordeon retrucou

com aquele xingamento talvez mais velho

que os filhos da mais antiga profissão.

Itapuã também teve a oportunidade de

morar no exterior e viver de capoeira, mas

preferiu ficar aqui. Em 1970, mestre Cami-

sa Roxa, outro que emigrou, o chamou pa-

ra morar na Alemanha. “Mas optei por fi-

car e estudar”, conta. Itapuã acabou viran-

do dentista, profissão que, como diz, ocu-

pa “quando a capoeira deixa”.

Eleestáseaposentandocomoprofessor

universitário na Ufba, mas se mantém

mestre. Faz parte do grupo de capoeira

mais antigo em atividade na Bahia, o Gin-

ga Associação de Capoeira, criado em 13

de novembro de 1972 – memória prodi-

giosa essa de Itapuã, que conta tudo pelo

dia, mês, ano e hora. Foi em 22 de setem-

bro de 1964, às 14h, que ele foi se matri-

cular na academia de mestre Bimba. “Se

eleestivessevivo,euaindaseriaseualuno.

Fui ensinar porque não tinha mais com

quem treinar”.

Em julho, ele viaja para a Holanda e

emendacomSuíçaeFinlândia.Seucachêé

de 3 mil dólares (ou euros), em média – há

quem chegue a ganhar 5 mil euros por um

final de semana de aulas na Europa. Mas

Itapuã ressalta que esses são poucos, volta

acomparaçãocomofutebol.“Craquesque

ganham bem, você conta nos dedos”.

Itapuã, como João Grande, anda ressa-

biado com os rumos que a capoeira tomou

no mundo. “A capoeira chegou ao exterior

muito desorganizada. Gente sem compe-

tência foi dar aula. Tem um grupo na Fran-

ça que não aceita mais brasileiros. Dizem

que já aprenderam tudo. É um grupo fra-

quíssimo! Difícil não é ensinar capoeira. É

«Hoje, se você juntar 100 mestres no liquidificador, nãodá um copo. Tem de saber o que é ensinar capoeira»Mestre Curió, 72 anos

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26 SALVADOR DOMINGO 10/5/2009

ser mais do que papagaio de venda, com o

professor fazendo e os alunos repetindo os

movimentos sem entender o sentido”.

NÃO VALE TUDOMasopior,diz Itapuã,équandoquerem

à força fazer da capoeira uma luta violenta.

“Nãogostodessainvençãodelevarcapoei-

ra para o vale-tudo. Não tem nada a ver. A

história sempre foi de o capoeirista bater

em otário, não em outro capoeira”.

Fora do Brasil, a Ginga tem filiais em No-

vaYorkePortugal.Maisescolas temaAba-

dá Capoeira, dos mestres Camisa Roxa e

mestre Camisa, 54, que vive no Rio há 17

anos. Que ele sabe, são “50 e poucas” fi-

liais. “É que muitos alunos viajam, dão au-

las em outros países, e a gente só vem sa-

ber depois”, diz Camisa.

Quer saber seu roteiro para esses me-

ses? Vai aos Estados Unidos, Áustria, Por-

tugaleestápensandoseconfirmaounãoa

ida ao México, com medo da gripe suína.

“Nos países ricos, se ganha melhor do que

no Brasil. Dá para viver com dignidade”.

Camisa começou a estudar com Bimba

aos 12 anos, numa época em que poucas

crianças aprendiam o jogo. Para ele, Bim-

ba, além de professor, foi pai. “Perdi meu

pai muito cedo, então ele ficou sendo essa

figura”. Itapuã, também órfão de pai,

guarda a mesma memória. Há os legíti-

mos (sem prejuízo para os ‘adotivos’), co-

mo mestre Nenel, 48. O senhor é filho de

Bimba? “Desde pequeno”, ele responde.

Nenel diz que com o pai aprendeu a ter

dignidade e equilíbrio e acredita que um

bom mestre não se faz sem isso. “Hoje, a

figura do mestre está banal. O cara ganha

um diploma e vira mestre. Antes, ele era

consagrado pela comunidade, pelo seu ca-

ráter de educador e conselheiro”.

O que Nenel também não gosta muito é

do uso de cordões que viraram símbolo da

graduação dos alunos, como as faixas de

judô. “Até tentei usar, mas acabou indo

contraosprincípiosqueeutinhadacapoei-

ra, de quem sabe mais ajudar quem sabe

menos. Muita gente se sentia superior”.

Ele estudou até a oitava série, há 25

anos vive de capoeira. Aos 30, viajou para

ensinar em Londres e, desde então, acu-

mula milhas aéreas. São Paulo, Canadá,

Alemanha, Itália, Colômbia e Bélgica são

as viagens programadas para este ano.

No comando de uma roda na Fundação

Mestre Bimba, no Pelourinho, rebatizou

um japonês de Coco (“para não confun-

dir”) por Licuri, desejou boa viagem de vol-

taàumaalemã(“vocêmeentende?”“Sim,

teentendo”),encorajouumaalunaqueiria

dar aula no Líbano (“vá fazer o seu traba-

lho, mas aqui é sua família, não tenha ver-

gonha de voltar”). Para terminar, recla-

mou do “porão” em que funciona a Fun-

dação (é um dos quatro imóveis cedidos

Mestre Janja criou o Instituto Nzinga de Capoeira Angola, que atua em seis países, com “mulheres em situação de liderança“ Mestre Sabiá joga o que chama de capoeira contemporânea. Seu cachê para ensinar no exterior é de 1.500 euros

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10/5/2009 27SALVADOR DOMINGO

pelo Ipac para academias no Centro Histó-

rico): “Não é o local que nós merecemos. A

capoeira virou patrimônio cultural, mas a

gente não vê o retorno disso”.

FredericoMendonça,diretordoIpac,re-

bate. “Os grupos estão mal acostumados

com uma posição paternalista do Estado.

As associações precisam estar melhor or-

ganizadas e montar seus projetos”, avisa.

MESTRE TAM E MESTRE VARIGAli perto, em Santo Antônio, está a Es-

cola de Capoeira Angola Irmãos Gêmeos

de Mestre Curió. Não vá, avisado que já es-

tá, chamá-la de academia. “Isso é coisa de

barão,decapitalista.Osistemasómeusa”.

Curió, que herdou o apelido do avô – nas-

cido que foi numa roda de capoeira, como

gosta de dizer –, começou a treinar com

mestre Pastinha ainda pequeno e só parou

quando ele faleceu. “Mas, para mim, ele

não morreu, não”. Já foi de tudo um pou-

co: motorista, cobrador, chefe de cozinha.

Hoje vive só da ginga.

Tem72anos,65decapoeira.Suaescola

está também no México, já há 13 anos

(“falo espanhol um pouquito”). Há outras

na Martinica, França, Israel, Bélgica e

Equador.JáfoiatéparaaONUdarpalestra,

do que se gaba, mas como quem não está

dizendo nada. “No exterior, se ganha ra-

zoável. Aqui, a gente faz o trabalho social,

mas as pessoas não valorizam”.

Ele faz questão de deixar claro que não

quer criar uma fábrica de conhecimento.

“Hoje, se você juntar 100 mestres no liqui-

dificador, não dá um copo. Tem de saber o

que é se ensinar capoeira”. Curió é tão ele-

gante quanto desconfiado, vai jogar com a

repórter. “Nesses anos todos de capoeira,

digaquantosmestreseuformei?”,pergun-

ta. Assumo que absurdamente chutei trin-

ta (não dá para pensar direito com a ex-

pressão que ele faz te olhando). “Pois con-

sagreisótrês.Hoje,temummontedemes-

tre TAM, mestre Varig. É o avião que está

formando o mestre”.

O historiador Carlos Eugênio Líbano,

professordaUfba,contaqueacapoeiraco-

meçou a sair da Bahia nos anos 60, parti-

cipando de shows folclóricos. “Mas foi nos

anos 80 que houve essa explosão de ca-

poeiristas indo para o exterior”.

Curió mora em Castelo Branco, em se-

tembro vai para Paris. “Tinha tudo para ser

um marginal, comia pão do lixo. Foi a ca-

poeiraquemedeutudo,quemefezchegar

ao homem que sou hoje”.

Também foi a capoeira quem botou os

dentes de ouro em mestre Boca Rica, 73,

tambémalunodePastinha(maseletirouo

ouro, que não aguentava mais as piadas

em profusão). Estudou pouco (“nem até a

quarta série”), era feirante e pedreiro an-

tes de virar mestre. Mas vamos deixar que

ele mesmo conte: Andei o Brasil inteiro/

Mestre Janja criou o Instituto Nzinga de Capoeira Angola, que atua em seis países, com “mulheres em situação de liderança“ Mestre Sabiá joga o que chama de capoeira contemporânea. Seu cachê para ensinar no exterior é de 1.500 euros

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«Nos países ricos,se ganha melhordo que no Brasil.Dá para viver comdignidade»Mestre Camisa, 54

«A capoeira virou patrimôniocultural, mas a gente não vêo retorno disso»Mestre Nenel, 48

«Hoje, o que se busca é um atleta de capoeira»Mestre Moraes, 59

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Passei na televisão/ Hoje sou um grande

mestre/ Um grande cidadão. A música está

em um dos quatro CDs que lançou.

Mas não andou só o Brasil, não. Tem a

conta certa de a quantos países viajou para

dar aula, fazer “workshops”, palestrar. “Já

fuipara26paísesdoprimeiromundo.Saio

aíparadarunsrolés.Desde1986nãoando

de ônibus, só de avião. Não falo inglês, sei

umas palavras de japonês... Mas nunca

quis ficar morando lá fora. É muito frio”.

ALUNOS DOS ALUNOSForam-se Bimba e Pastinha, ficaram os

alunos que aprenderam com eles, muitos

dos quais tornaram-se mestres. Vieram os

alunos dos alunos (dos alunos), que tam-

bém passaram a dar aulas. Veja mestre

Moraes, 59, do Grupo de Capoeira Angola

Pelourinho.Aprendeucom“ograndeJoão

Grande”. Quando teve de ir para o Rio, on-

de foi servir como fuzileiro naval, não en-

controu lá a capoeira angola, ficou sem ter

com quem treinar. “Fui tornado mestre e

assumi isso de uma forma apaixonada”.

Hoje, não vive só da capoeira, é profes-

sor de inglês em escolas públicas. Mas sem

deixar de ser pop. Também lançou quatro

CDscomcomposiçõespróprias–umdeles,

Brincando na roda, de 2004, foi indicado

ao Grammy.

Além de mestre de capoeira, ele se tor-

nou mestre pela Ufba em 2007, com a dis-

sertação A Nação Angola na Bahia 1811 –

1850. Incorporou a fala acadêmica, mas

sem perder as metáforas popularescas. “O

mestre hoje é como mulher bonita. Quan-

do cai, vai sendo deixado de lado. Vou pas-

sarpor issotambém...Hoje,oquesebusca

é um atleta de capoeira. A vertente filosó-

fica não interessa mais”.

Para ele, a capoeira vive “seu pior mo-

mentonaBahia”(repete,comênfase).“Os

mestres que questionam ainda são perse-

guidos”. Moraes diz que o Forte da Capoei-

ra, espaço que lutou para ser revitalizado e

onde funciona sua academia (e mais qua-

tro espaços, entre eles o de João Pequeno,

CurióeBocaRica)está“parado”.“Nãotem

programação, não tem visitação. E se quei-

mar uma lâmpada aqui na academia,

quem tem de trocar sou eu”, reclama.

Frederico Mendonça, do Ipac, diz que a

manutenção das academias é de respon-

sabilidade do governo estadual e que ain-

da há um “grande desafio de encontrar

uma maneira para gerir o forte”, reativado

em 2006. “O secretário (Márcio Meirelles)

já se comprometeu a implantar uma ges-

tão compartilhada, como a que existe na

Feira de São Joaquim”. A escassez de turis-

tas, diz, é por conta da falta de transporte

regular até o local. “É uma das razões de o

forte não funcionar adequadamente. Esta-

mos conversando com a prefeitura para

tentar resolver isso”.

Terminado esse parêntese (não menos

importante),voltemosaoquesetratava.O

queosnovostempostambémtrouxeramà

capoeira foram as mulheres virarem mes-

tras. Como Janja, 49, aluna de mestre Mo-

raes. Primeiro, estudou educação física,

depois foi para história. Resolveu fazer

mestradoedoutoradoemeducação.Acar-

reira acadêmica a levou a São Paulo e, por

não ter onde treinar lá (de novo!), foi dar

aula. Fundou o Instituto Nzinga de Capoei-

ra Angola, que também tem uma linha de

estudos e de pesquisa. “Nunca recebi e até

resisti a esse título de mestre de capoeira.

Mas tenho orgulho de ter sido reconhecida

assim pela capoeiragem, principalmente

pelos meus alunos”.

Eles sofrem um pouquinho com o rigor

da mestra, mas na roda de Janja não há de

faltar alegria. “Tem de ter as duas coisas”.

Graças à capoeira, que ela diz ser o começo

de tudo que pensa, orgulha-se de ter ga-

nhado o corpo que tem. “Hoje, posso di-

zer: Este corpo me pertence!”

Em2006,voltouparaSalvadorehojedá

aulas na Faculdade de Educação da Ufba.

Em maio, Janja vai para a Bolívia; em ju-

nho, para os Estados Unidos; em novem-

bro, para a Austrália. “Aí é capoeira full ti-

me, das 8 da manhã às 11 da noite”. O ca-

chê, diz, é “absolutamente pró-labore”.

Seu grupo está no México, Espanha, Ale-

manha, Moçambique e Inglaterra, com

mulheres “em situação de liderança”.

Opesquisador,educador(etambémca-

poeirista) Pedro Abib conta que esse mo-

vimento da mulher à frente da roda é re-

cente, de poucas décadas para cá. “A mu-

lher veio trazer mais equilíbrio e tolerância

nas rodas de capoeira. E elas têm se orga-

nizado cada vez mais, reivindicando seus

espaços e o fim dos preconceitos, que ain-

da são comuns nesse universo”.

Eis que para terminar chega mestre Sa-

biá, 37, formado por mestre Camisa. Sabiá

é um legítimo representante da afirmação

da capoeira como profissão. Era muito agi-

tadonaescola,amãeopôsparalutar.Num

pulo, foi para a capoeira, onde está até ho-

je. “A pulso” terminou o segundo grau,

com 18 anos foi para a Alemanha, onde

passou dois anos dando aula de capoeira.

Voltou para o Brasil, a mãe advogada

queriaqueeleestudassedireito.MasSabiá

continuou professor em academias e esco-

las particulares. Queria ensinar a crianças

pobres, mas como o clube onde dava aulas

não permitia o acesso dos meninos, mon-

tou há 10 anos o Projeto Mandinga, onde

é hoje o mestre de 100 crianças e adoles-

centes (já foram 300, mas foram-se os

apoios). Lá eles também têm oficinas para

aprenderafazerosinstrumentoseaulasde

inglês. “A gente tem 11 filiais em outros

países, os meninos são preparados para

ensinar lá fora. A maioria quer ir para o ex-

Page 10: Capoeira

30 SALVADOR DOMINGO 10/5/2009

terior”. Lembrou do futebol? (a repetição

não é minha culpa. Quem sabe um dia hão

de ganhar tanto).

Sabiá continua viajando, por ano vai

“umas dez vezes” para o exterior. Só neste

ano já foi para quatro países. Seu cachê é

de 1.500 euros. Olha a ironia da vida, que

foi com o dinheiro do filho tocando berim-

bau e jogando capoeira que a mãe foi co-

nhecer o mundo. “Hoje ganho mais que os

meus irmãos”, ele ri.

Mestre Sabiá joga o que chama de ca-

poeira contemporânea. “Acredito na tradi-

ção, mas não me preocupo em seguir de

forma rígida nem a capoeira angola nem a

regional.Masqueroqueelasestejamsem-

pre vivas, até mesmo para eu poder ser ou-

tra coisa (risos). Jogo sem medo de errar”.

Acapoeirasereinventa,Camará.Massem-

pre há de pedir aos mestres a bênção.

«Já fui para 26países. Desde 1986não ando de ônibus,só de avião»Mestre Boca Rica, 73

ONDE JOGARAcademia de João Pequeno de Pastinha – 713323-0708. Ginga Associação de Capoeira (mestreItapuã) – 71 3249-6020. Abadá Capoeira (mestreCamisa) – 21 9611-7013. Fundação Mestre Bimba(mestre Nenel) – 71 3322-5082. Escola deCapoeira Angola Irmãos Gêmeos de Mestre Curió– 71 3321-0396. Academia de Capoeira Angola daBahia (mestre Boca Rica) – 71 3401-3019. Grupode Capoeira Angola Pelourinho (mestre Moraes) –71 3314-7778. Instituto Nzinga de CapoeiraAngola (mestre Janja) – 71 9973-8970. ProjetoMandinga (mestre Sabiá) – 71 3328-5756

Ostracismono fim da vidaBimba (1899-1974) e Pastinha (1889-

1981)deixaramacategoriademestrespa-

ra se tornarem mitos no mundo da capoei-

ra. Deram novo vigor e método ao jogo,

transformando-o de “crime a cultura“, co-

mo descomplica o historiador Carlos Eugê-

nio Líbano. Pastinha reafirmou a capoeira

angola, e Bimba criou, nos anos 30, a ca-

poeira regional, que incorporou elemen-

tos de outras lutas. A capoeira foi deixando

as festas de largo para ser praticada em

academias, atraindo a juventude clas-

se-média. Bimba abriu a sua em 1932, e

Pastinha, em 1941.

Apesar do legado inegável, Pastinha e

Bimba morreram desprestigiados. ”Pasti-

nha vivia no Abrigo D. Pedro II. Um dia, re-

cebi a ligação dizendo que ele tinha mor-

rido e que seria enterrado como indigente.

Fui fazer o enterro, não tinha um aluno de-

le lá. Hoje, não sei onde estão seus restos

mortais“, conta mestre Itapuã. Bimba fi-

cou desapontado com a falta de reconhe-

cimento e apoio na Bahia e mudou-se para

Goiás, com convite para trabalhar numa

universidade. A promessa não vingou e

Bimba morreu um ano depois.

Nani, neta de João Pequeno, reclama

uma aposentadoria para o avô: ”De que

adianta ele ter tantos títulos se não pode

ter uma boa condição de vida?“

Noanopassado,acapoeira foi reconhe-

cida como patrimônio cultural brasileiro.

DeacordocomCarlosAmorim,superinten-

dente do Instituto do Patrimônio Histórico

e Artístico Nacional na Bahia, deve ser cria-

do um plano de previdência especial para

osmestres.”Acreditoqueatéofinaldoano

o projeto esteja concluído“. «

Mestre Boca Rica, discípulo de Pastinha, foi feirante e pedreiro antes da capoeira