capoeira
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Reportagem sobre os principais mestres de capoeira de SalvadorTRANSCRIPT
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22 SALVADOR DOMINGO 10/5/2009
Umarodado tamanho domundo
Texto TATIANA MENDONÇA [email protected] REJANE CARNEIRO [email protected]
Grandes mestres de capoeira da Bahia, herdeiros doslendários Bimba e Pastinha, espalham-se por cerca de150 países ensinando o jogo-arte
Capoeiristas na Fundação Mestre Bimba, no
Pelourinho, sob o comando do mestre Nenel
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Grandes mestres de capoeira da Bahia, herdeiros doslendários Bimba e Pastinha, espalham-se por cerca de150 países ensinando o jogo-arte
Capoeiristas na Fundação Mestre Bimba, no
Pelourinho, sob o comando do mestre Nenel
24 SALVADOR DOMINGO 10/5/2009
Os joões brincam de ca-
poeira como quem dan-
ça em câmera lenta. Esti-
veram assim por muitas
rodas, vez por outra vi-
nhaalguémregistrar.Ve-
ja Capoeira Angola do Mundo, de 1986, a
cena está lá. Nessa época, já eram grandes
mestres, hoje são lendas do jogo que es-
palha a Bahia pelo mundo. Um é João Pe-
queno, o outro é João Grande. Um vive em
Fazenda Coutos; o outro, em Nova York.
Na laje de casa, no subúrbio de Salva-
dor, João Pequeno corre a memória para
lembrar a idade que tem – “78”, afirma ca-
tegórico. “Que 78? É 91, seu João”, a neta
apressa-se a consertar. “Tenho tudo isso
não”, ele rebate, rindo.
O problema, diz, é que sua cabeça está
dividida em duas. “Tem a parte que eu me
lembro e a parte que não lembro mais.
Mas da capoeira lembro”. Pergunto se ain-
dajogaeelelevantaparagingar.Ficacomo
resposta.“Fuipedreiro,pintor,masfoiaca-
poeira quem me apelidou de doutor”, con-
ta, em referência aos três títulos que ga-
nhou–em2003, tornou-sedoutorhonoris
causa pela Universidade Federal de Uber-
lândia, mesmo título que ganhou no ano
passado pela Ufba, ele que também é co-
mendador de cultura da República.
É sábado de manhã quando trinta e
duas crianças (ou quase, a depender das
que ficam dormindo) vão até sua casa par-
ticipar do projeto Pequenos do João, man-
tidoporobraegraçadosquevivemali.Elas
vãoatémestreJoãotomara‘bença’.ÉCris-
tiane Santos Miranda, 26, sua neta, quem
dá a aula. Mas João, sentado num banqui-
nho para fazer as fotografias (como ele
gosta de uma câmera! , não perde de opi-
nar. “Ele não vê os outros fazer, por isso er-
ra”, “o rabo-de-arraia é daqui pra lá”, “es-
tira a perna”, “olha por debaixo do braço”, Mestre Curió começou a treinar com mestre Pastinha: “A capoeira me deu tudo”
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“troca aí”, “vem, vem” e, já meio irritado,
“se não sabe, vai embora”. Nani, como é
chamada, manda os alunos, de 3 a 13
anos, ouvirem o mestre João, ao mesmo
tempo em que vai dizendo para o avô ter
paciência, que elas são pequenas.
Sua cabeça ainda guarda a técnica, o
corpo é que não dá mais para tanto. Por
falta de um carro que o leve ao Forte da Ca-
poeira, em Santo Antônio, raramente vai à
academia, que nem mais lembra que tem.
Por causa da idade avançada, não viaja
mais para dar aula de capoeira no estran-
geiro. “Para a Europa, era frequente ele ir.
EtambémiamuitoparaosEstadosUnidos,
com o mestre João Grande”, conta Nani.
Foi de lá, mais especificamente de Nova
York, onde está desde 1990 fazendo a
América, que João Grande, 75, conversou
com a Muito. “Foi Deus quem me mandou
pra cá”. A primeira vez que viajou foi para o
Senegal, em 1966, com mestre Pastinha.
Depois foi para a Europa com o grupo Viva
Bahia, que apresentava shows folclóricos.
Em 1989, fez a primeira turnê aos EUA e,
um ano depois, foi para ficar. Montou a
academia Capoeira Angola Center of Mes-
tre João Grande. “Me dei bem aqui. Vou à
Bahiapassear, ficoummês.Souaventurei-
ro, gosto de andar pelo mundo”.
Em junho, ele vem dar aula em Belo Ho-
rizonte, depois segue para a Europa. João
Grande desvia com destreza na hora de di-
zer se ganha bem ou ficou rico. Emenda
que por lá é tudo muito caro. “Minha vida
estáarrumadaaqui.Nãopossodizerquan-
toéqueganhoporqueonúmerodealunos
varia muito. Ontem, vieram 21; hoje vêm
15; amanhã, 10”. Mas os mestres daqui
garantem que ele é uma espécie de Ronal-
dinho da capoeira (em suas devidas pro-
porções, claro está). Não à toa dele já dis-
se: “Foi Deus quem mandou João Grande
jogar capoeira”.
Já dizer o que a capoeira lhe deu, João
Grandesabe,enaamplidãoécerteiro.“Tu-
do, tudo. Os amigos e tudo mais”. Sua
bronca é só por achar que a capoeira anda
mudada. Sente saudade de quando era jo-
gada livre nas festas de largo. “Acabaram
aquelas festas bonitas. E muita gente não
leva a sério para aprender como se deve”.
MESTRE ACORDEON DAYNa outra costa americana é onde vive,
hátrintaanos,omestreAcordeon,65.Para
celebraradata,aPrefeituradeBekerley,na
Califórnia,ondeelemontousuaacademia,
criou no ano passado o Mestre Acordeon
Day, comemorado em 18 de outubro. “Ele
perguntou se não era muito mico, e eu dis-
se que não, que era um reconhecimento.
Quem é que tem isso aqui no Brasil? Nin-
guém”, conta mestre Itapuã, que estava
nos Estados Unidos para o grande evento.
Os dois foram alunos de mestre Bimba,
que criou a capoeira regional, hoje hege-
mônica no mundo.
Mas Itapuã, 61, não havia de perder a
oportunidade de sacaneá-lo. “Quando ele
subiuparareceberahomenagem,eugritei
de cá: ‘Que mico!’”. E Acordeon retrucou
com aquele xingamento talvez mais velho
que os filhos da mais antiga profissão.
Itapuã também teve a oportunidade de
morar no exterior e viver de capoeira, mas
preferiu ficar aqui. Em 1970, mestre Cami-
sa Roxa, outro que emigrou, o chamou pa-
ra morar na Alemanha. “Mas optei por fi-
car e estudar”, conta. Itapuã acabou viran-
do dentista, profissão que, como diz, ocu-
pa “quando a capoeira deixa”.
Eleestáseaposentandocomoprofessor
universitário na Ufba, mas se mantém
mestre. Faz parte do grupo de capoeira
mais antigo em atividade na Bahia, o Gin-
ga Associação de Capoeira, criado em 13
de novembro de 1972 – memória prodi-
giosa essa de Itapuã, que conta tudo pelo
dia, mês, ano e hora. Foi em 22 de setem-
bro de 1964, às 14h, que ele foi se matri-
cular na academia de mestre Bimba. “Se
eleestivessevivo,euaindaseriaseualuno.
Fui ensinar porque não tinha mais com
quem treinar”.
Em julho, ele viaja para a Holanda e
emendacomSuíçaeFinlândia.Seucachêé
de 3 mil dólares (ou euros), em média – há
quem chegue a ganhar 5 mil euros por um
final de semana de aulas na Europa. Mas
Itapuã ressalta que esses são poucos, volta
acomparaçãocomofutebol.“Craquesque
ganham bem, você conta nos dedos”.
Itapuã, como João Grande, anda ressa-
biado com os rumos que a capoeira tomou
no mundo. “A capoeira chegou ao exterior
muito desorganizada. Gente sem compe-
tência foi dar aula. Tem um grupo na Fran-
ça que não aceita mais brasileiros. Dizem
que já aprenderam tudo. É um grupo fra-
quíssimo! Difícil não é ensinar capoeira. É
«Hoje, se você juntar 100 mestres no liquidificador, nãodá um copo. Tem de saber o que é ensinar capoeira»Mestre Curió, 72 anos
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ser mais do que papagaio de venda, com o
professor fazendo e os alunos repetindo os
movimentos sem entender o sentido”.
NÃO VALE TUDOMasopior,diz Itapuã,équandoquerem
à força fazer da capoeira uma luta violenta.
“Nãogostodessainvençãodelevarcapoei-
ra para o vale-tudo. Não tem nada a ver. A
história sempre foi de o capoeirista bater
em otário, não em outro capoeira”.
Fora do Brasil, a Ginga tem filiais em No-
vaYorkePortugal.Maisescolas temaAba-
dá Capoeira, dos mestres Camisa Roxa e
mestre Camisa, 54, que vive no Rio há 17
anos. Que ele sabe, são “50 e poucas” fi-
liais. “É que muitos alunos viajam, dão au-
las em outros países, e a gente só vem sa-
ber depois”, diz Camisa.
Quer saber seu roteiro para esses me-
ses? Vai aos Estados Unidos, Áustria, Por-
tugaleestápensandoseconfirmaounãoa
ida ao México, com medo da gripe suína.
“Nos países ricos, se ganha melhor do que
no Brasil. Dá para viver com dignidade”.
Camisa começou a estudar com Bimba
aos 12 anos, numa época em que poucas
crianças aprendiam o jogo. Para ele, Bim-
ba, além de professor, foi pai. “Perdi meu
pai muito cedo, então ele ficou sendo essa
figura”. Itapuã, também órfão de pai,
guarda a mesma memória. Há os legíti-
mos (sem prejuízo para os ‘adotivos’), co-
mo mestre Nenel, 48. O senhor é filho de
Bimba? “Desde pequeno”, ele responde.
Nenel diz que com o pai aprendeu a ter
dignidade e equilíbrio e acredita que um
bom mestre não se faz sem isso. “Hoje, a
figura do mestre está banal. O cara ganha
um diploma e vira mestre. Antes, ele era
consagrado pela comunidade, pelo seu ca-
ráter de educador e conselheiro”.
O que Nenel também não gosta muito é
do uso de cordões que viraram símbolo da
graduação dos alunos, como as faixas de
judô. “Até tentei usar, mas acabou indo
contraosprincípiosqueeutinhadacapoei-
ra, de quem sabe mais ajudar quem sabe
menos. Muita gente se sentia superior”.
Ele estudou até a oitava série, há 25
anos vive de capoeira. Aos 30, viajou para
ensinar em Londres e, desde então, acu-
mula milhas aéreas. São Paulo, Canadá,
Alemanha, Itália, Colômbia e Bélgica são
as viagens programadas para este ano.
No comando de uma roda na Fundação
Mestre Bimba, no Pelourinho, rebatizou
um japonês de Coco (“para não confun-
dir”) por Licuri, desejou boa viagem de vol-
taàumaalemã(“vocêmeentende?”“Sim,
teentendo”),encorajouumaalunaqueiria
dar aula no Líbano (“vá fazer o seu traba-
lho, mas aqui é sua família, não tenha ver-
gonha de voltar”). Para terminar, recla-
mou do “porão” em que funciona a Fun-
dação (é um dos quatro imóveis cedidos
Mestre Janja criou o Instituto Nzinga de Capoeira Angola, que atua em seis países, com “mulheres em situação de liderança“ Mestre Sabiá joga o que chama de capoeira contemporânea. Seu cachê para ensinar no exterior é de 1.500 euros
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pelo Ipac para academias no Centro Histó-
rico): “Não é o local que nós merecemos. A
capoeira virou patrimônio cultural, mas a
gente não vê o retorno disso”.
FredericoMendonça,diretordoIpac,re-
bate. “Os grupos estão mal acostumados
com uma posição paternalista do Estado.
As associações precisam estar melhor or-
ganizadas e montar seus projetos”, avisa.
MESTRE TAM E MESTRE VARIGAli perto, em Santo Antônio, está a Es-
cola de Capoeira Angola Irmãos Gêmeos
de Mestre Curió. Não vá, avisado que já es-
tá, chamá-la de academia. “Isso é coisa de
barão,decapitalista.Osistemasómeusa”.
Curió, que herdou o apelido do avô – nas-
cido que foi numa roda de capoeira, como
gosta de dizer –, começou a treinar com
mestre Pastinha ainda pequeno e só parou
quando ele faleceu. “Mas, para mim, ele
não morreu, não”. Já foi de tudo um pou-
co: motorista, cobrador, chefe de cozinha.
Hoje vive só da ginga.
Tem72anos,65decapoeira.Suaescola
está também no México, já há 13 anos
(“falo espanhol um pouquito”). Há outras
na Martinica, França, Israel, Bélgica e
Equador.JáfoiatéparaaONUdarpalestra,
do que se gaba, mas como quem não está
dizendo nada. “No exterior, se ganha ra-
zoável. Aqui, a gente faz o trabalho social,
mas as pessoas não valorizam”.
Ele faz questão de deixar claro que não
quer criar uma fábrica de conhecimento.
“Hoje, se você juntar 100 mestres no liqui-
dificador, não dá um copo. Tem de saber o
que é se ensinar capoeira”. Curió é tão ele-
gante quanto desconfiado, vai jogar com a
repórter. “Nesses anos todos de capoeira,
digaquantosmestreseuformei?”,pergun-
ta. Assumo que absurdamente chutei trin-
ta (não dá para pensar direito com a ex-
pressão que ele faz te olhando). “Pois con-
sagreisótrês.Hoje,temummontedemes-
tre TAM, mestre Varig. É o avião que está
formando o mestre”.
O historiador Carlos Eugênio Líbano,
professordaUfba,contaqueacapoeiraco-
meçou a sair da Bahia nos anos 60, parti-
cipando de shows folclóricos. “Mas foi nos
anos 80 que houve essa explosão de ca-
poeiristas indo para o exterior”.
Curió mora em Castelo Branco, em se-
tembro vai para Paris. “Tinha tudo para ser
um marginal, comia pão do lixo. Foi a ca-
poeiraquemedeutudo,quemefezchegar
ao homem que sou hoje”.
Também foi a capoeira quem botou os
dentes de ouro em mestre Boca Rica, 73,
tambémalunodePastinha(maseletirouo
ouro, que não aguentava mais as piadas
em profusão). Estudou pouco (“nem até a
quarta série”), era feirante e pedreiro an-
tes de virar mestre. Mas vamos deixar que
ele mesmo conte: Andei o Brasil inteiro/
Mestre Janja criou o Instituto Nzinga de Capoeira Angola, que atua em seis países, com “mulheres em situação de liderança“ Mestre Sabiá joga o que chama de capoeira contemporânea. Seu cachê para ensinar no exterior é de 1.500 euros
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«Nos países ricos,se ganha melhordo que no Brasil.Dá para viver comdignidade»Mestre Camisa, 54
«A capoeira virou patrimôniocultural, mas a gente não vêo retorno disso»Mestre Nenel, 48
«Hoje, o que se busca é um atleta de capoeira»Mestre Moraes, 59
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Passei na televisão/ Hoje sou um grande
mestre/ Um grande cidadão. A música está
em um dos quatro CDs que lançou.
Mas não andou só o Brasil, não. Tem a
conta certa de a quantos países viajou para
dar aula, fazer “workshops”, palestrar. “Já
fuipara26paísesdoprimeiromundo.Saio
aíparadarunsrolés.Desde1986nãoando
de ônibus, só de avião. Não falo inglês, sei
umas palavras de japonês... Mas nunca
quis ficar morando lá fora. É muito frio”.
ALUNOS DOS ALUNOSForam-se Bimba e Pastinha, ficaram os
alunos que aprenderam com eles, muitos
dos quais tornaram-se mestres. Vieram os
alunos dos alunos (dos alunos), que tam-
bém passaram a dar aulas. Veja mestre
Moraes, 59, do Grupo de Capoeira Angola
Pelourinho.Aprendeucom“ograndeJoão
Grande”. Quando teve de ir para o Rio, on-
de foi servir como fuzileiro naval, não en-
controu lá a capoeira angola, ficou sem ter
com quem treinar. “Fui tornado mestre e
assumi isso de uma forma apaixonada”.
Hoje, não vive só da capoeira, é profes-
sor de inglês em escolas públicas. Mas sem
deixar de ser pop. Também lançou quatro
CDscomcomposiçõespróprias–umdeles,
Brincando na roda, de 2004, foi indicado
ao Grammy.
Além de mestre de capoeira, ele se tor-
nou mestre pela Ufba em 2007, com a dis-
sertação A Nação Angola na Bahia 1811 –
1850. Incorporou a fala acadêmica, mas
sem perder as metáforas popularescas. “O
mestre hoje é como mulher bonita. Quan-
do cai, vai sendo deixado de lado. Vou pas-
sarpor issotambém...Hoje,oquesebusca
é um atleta de capoeira. A vertente filosó-
fica não interessa mais”.
Para ele, a capoeira vive “seu pior mo-
mentonaBahia”(repete,comênfase).“Os
mestres que questionam ainda são perse-
guidos”. Moraes diz que o Forte da Capoei-
ra, espaço que lutou para ser revitalizado e
onde funciona sua academia (e mais qua-
tro espaços, entre eles o de João Pequeno,
CurióeBocaRica)está“parado”.“Nãotem
programação, não tem visitação. E se quei-
mar uma lâmpada aqui na academia,
quem tem de trocar sou eu”, reclama.
Frederico Mendonça, do Ipac, diz que a
manutenção das academias é de respon-
sabilidade do governo estadual e que ain-
da há um “grande desafio de encontrar
uma maneira para gerir o forte”, reativado
em 2006. “O secretário (Márcio Meirelles)
já se comprometeu a implantar uma ges-
tão compartilhada, como a que existe na
Feira de São Joaquim”. A escassez de turis-
tas, diz, é por conta da falta de transporte
regular até o local. “É uma das razões de o
forte não funcionar adequadamente. Esta-
mos conversando com a prefeitura para
tentar resolver isso”.
Terminado esse parêntese (não menos
importante),voltemosaoquesetratava.O
queosnovostempostambémtrouxeramà
capoeira foram as mulheres virarem mes-
tras. Como Janja, 49, aluna de mestre Mo-
raes. Primeiro, estudou educação física,
depois foi para história. Resolveu fazer
mestradoedoutoradoemeducação.Acar-
reira acadêmica a levou a São Paulo e, por
não ter onde treinar lá (de novo!), foi dar
aula. Fundou o Instituto Nzinga de Capoei-
ra Angola, que também tem uma linha de
estudos e de pesquisa. “Nunca recebi e até
resisti a esse título de mestre de capoeira.
Mas tenho orgulho de ter sido reconhecida
assim pela capoeiragem, principalmente
pelos meus alunos”.
Eles sofrem um pouquinho com o rigor
da mestra, mas na roda de Janja não há de
faltar alegria. “Tem de ter as duas coisas”.
Graças à capoeira, que ela diz ser o começo
de tudo que pensa, orgulha-se de ter ga-
nhado o corpo que tem. “Hoje, posso di-
zer: Este corpo me pertence!”
Em2006,voltouparaSalvadorehojedá
aulas na Faculdade de Educação da Ufba.
Em maio, Janja vai para a Bolívia; em ju-
nho, para os Estados Unidos; em novem-
bro, para a Austrália. “Aí é capoeira full ti-
me, das 8 da manhã às 11 da noite”. O ca-
chê, diz, é “absolutamente pró-labore”.
Seu grupo está no México, Espanha, Ale-
manha, Moçambique e Inglaterra, com
mulheres “em situação de liderança”.
Opesquisador,educador(etambémca-
poeirista) Pedro Abib conta que esse mo-
vimento da mulher à frente da roda é re-
cente, de poucas décadas para cá. “A mu-
lher veio trazer mais equilíbrio e tolerância
nas rodas de capoeira. E elas têm se orga-
nizado cada vez mais, reivindicando seus
espaços e o fim dos preconceitos, que ain-
da são comuns nesse universo”.
Eis que para terminar chega mestre Sa-
biá, 37, formado por mestre Camisa. Sabiá
é um legítimo representante da afirmação
da capoeira como profissão. Era muito agi-
tadonaescola,amãeopôsparalutar.Num
pulo, foi para a capoeira, onde está até ho-
je. “A pulso” terminou o segundo grau,
com 18 anos foi para a Alemanha, onde
passou dois anos dando aula de capoeira.
Voltou para o Brasil, a mãe advogada
queriaqueeleestudassedireito.MasSabiá
continuou professor em academias e esco-
las particulares. Queria ensinar a crianças
pobres, mas como o clube onde dava aulas
não permitia o acesso dos meninos, mon-
tou há 10 anos o Projeto Mandinga, onde
é hoje o mestre de 100 crianças e adoles-
centes (já foram 300, mas foram-se os
apoios). Lá eles também têm oficinas para
aprenderafazerosinstrumentoseaulasde
inglês. “A gente tem 11 filiais em outros
países, os meninos são preparados para
ensinar lá fora. A maioria quer ir para o ex-
30 SALVADOR DOMINGO 10/5/2009
terior”. Lembrou do futebol? (a repetição
não é minha culpa. Quem sabe um dia hão
de ganhar tanto).
Sabiá continua viajando, por ano vai
“umas dez vezes” para o exterior. Só neste
ano já foi para quatro países. Seu cachê é
de 1.500 euros. Olha a ironia da vida, que
foi com o dinheiro do filho tocando berim-
bau e jogando capoeira que a mãe foi co-
nhecer o mundo. “Hoje ganho mais que os
meus irmãos”, ele ri.
Mestre Sabiá joga o que chama de ca-
poeira contemporânea. “Acredito na tradi-
ção, mas não me preocupo em seguir de
forma rígida nem a capoeira angola nem a
regional.Masqueroqueelasestejamsem-
pre vivas, até mesmo para eu poder ser ou-
tra coisa (risos). Jogo sem medo de errar”.
Acapoeirasereinventa,Camará.Massem-
pre há de pedir aos mestres a bênção.
«Já fui para 26países. Desde 1986não ando de ônibus,só de avião»Mestre Boca Rica, 73
ONDE JOGARAcademia de João Pequeno de Pastinha – 713323-0708. Ginga Associação de Capoeira (mestreItapuã) – 71 3249-6020. Abadá Capoeira (mestreCamisa) – 21 9611-7013. Fundação Mestre Bimba(mestre Nenel) – 71 3322-5082. Escola deCapoeira Angola Irmãos Gêmeos de Mestre Curió– 71 3321-0396. Academia de Capoeira Angola daBahia (mestre Boca Rica) – 71 3401-3019. Grupode Capoeira Angola Pelourinho (mestre Moraes) –71 3314-7778. Instituto Nzinga de CapoeiraAngola (mestre Janja) – 71 9973-8970. ProjetoMandinga (mestre Sabiá) – 71 3328-5756
Ostracismono fim da vidaBimba (1899-1974) e Pastinha (1889-
1981)deixaramacategoriademestrespa-
ra se tornarem mitos no mundo da capoei-
ra. Deram novo vigor e método ao jogo,
transformando-o de “crime a cultura“, co-
mo descomplica o historiador Carlos Eugê-
nio Líbano. Pastinha reafirmou a capoeira
angola, e Bimba criou, nos anos 30, a ca-
poeira regional, que incorporou elemen-
tos de outras lutas. A capoeira foi deixando
as festas de largo para ser praticada em
academias, atraindo a juventude clas-
se-média. Bimba abriu a sua em 1932, e
Pastinha, em 1941.
Apesar do legado inegável, Pastinha e
Bimba morreram desprestigiados. ”Pasti-
nha vivia no Abrigo D. Pedro II. Um dia, re-
cebi a ligação dizendo que ele tinha mor-
rido e que seria enterrado como indigente.
Fui fazer o enterro, não tinha um aluno de-
le lá. Hoje, não sei onde estão seus restos
mortais“, conta mestre Itapuã. Bimba fi-
cou desapontado com a falta de reconhe-
cimento e apoio na Bahia e mudou-se para
Goiás, com convite para trabalhar numa
universidade. A promessa não vingou e
Bimba morreu um ano depois.
Nani, neta de João Pequeno, reclama
uma aposentadoria para o avô: ”De que
adianta ele ter tantos títulos se não pode
ter uma boa condição de vida?“
Noanopassado,acapoeira foi reconhe-
cida como patrimônio cultural brasileiro.
DeacordocomCarlosAmorim,superinten-
dente do Instituto do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional na Bahia, deve ser cria-
do um plano de previdência especial para
osmestres.”Acreditoqueatéofinaldoano
o projeto esteja concluído“. «
Mestre Boca Rica, discípulo de Pastinha, foi feirante e pedreiro antes da capoeira