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Zésouza.
CARANCHO
2009
Sete horas e quarenta e cinco minutos o trem P 33 procedente de Bagé partiu da
pequena estação de Três Estradas. O agente da estação com seu quepe vermelho. Viu
os dois passageiros, que desceram da segunda classe, cada um com um amarrado de
arreios nas costas. Viu, mas, fez que não enxergasse.
Os dois homens passaram diante da venda o dono da venda, com um palito no
canto da boca, cuspiu, deu um tapa numa mosca, enxergou, mas fez que não visse.
O magro do bigode fino, cara de idiota, o dito cujo Zebedeu, que se dizia
domador e que na verdade era um malvado que judiava dos animais. Domava, não;
humilhava o cavalo. Pois o dito cujo viu e enxergou.
Nuvens revoltosas anunciam procela na política do Rio Grande; era o que
estava escrito num dos jornais de Pelotas. Chimangos e maragatos se preparavam
para o entrevero.
Três Estradas a cinqüenta e três quilômetros de Bagé, no distrito de São
Sebastião e a dezesseis da sede do distrito. A fazendola do Reduzino Malaquias, com
cinqüenta hectares; quarenta cabeças de gado um pequeno rebanho de ovelhas, um
galo e meia dúzia de galinhas. Reduzino, magro alto, nariz grande e adunco,
apelidado de Carancho. O motivo do apelido? Alguns diziam por ter o nariz parecido
com o bico do carancho, ave de rapina, também chamado de caracará, outros diziam
por que ele comia muita carne, outros que ele comia qualquer mulher; magra, gorda,
feia, suja, nova velha. Esta a versão que ele gostava. No fundo do campo um capão
de mato e no capão o acampamento. Gente um pouco escondida. Poucos, cerca de
trinta. Se aprontando para entrar no entrevero.
O dito cujo Zebedeu, andou disfarçado, bombeando, no sul bombear é cuidar, é
vigiar, espiar. Pois espiou e metido a puxa saco de chimangos, montou no cavalo
magro e feio e foi até a estação de São Sebastião para passar um telegrama ao chefe
chimango de São Gabriel: Piquete Carancho de Três Estradas pronto. Ora, passou o
telegrama de São Sebastião porque não confiava nem no agente da estação de Três
Estradas e nem no telegrafista os quais realmente eram amigos do Carancho. Pura
bobagem, pois os aparelhos telegráficos eram interligados; o agente de Três Estradas
escutou a transmissão.
Sim a noticia que foi pelos fios do telegrafo, voltou por cima dos trilhos num
jornal chimango de São Gabriel: maragatos não aceitam derrota nas urnas
democráticas e se preparam para criar problemas ao progresso de nosso Rio Grande,
no povoado das Três Estradas o Piquete do Carancho. A esposa do agente de Três
Estradas gostou e como sabia pintar e bordar. Pintou e bordou uma bandeira que
mandou o Limpa Trilhos entregar a seu Reduzino Malaquias.
Limpa Trilhos, sujeito meio maluco que andava por cima dos trilhos no trecho
de Bagé até Santa Maria e às vezes andava até na linha do Cacequi a Santa Ana,
passava um tempo numa estação outro tempo em outra, era conhecido e bem tratado
pelo pessoal da beira dos trilhos, levou a bandeira e o comandante gostou.
Carancho com seus trinta e três anos, comandante de piquete, por idealismo.
Idealismo de aumentar a fazendola. Filho de um carreteiro que foi assassinado numa
cancha de jogo de osso em São Sebastião. A mãe viúva lavando roupa, e ele com
quatorze anos entrou numa comparsa de tropeiros. Tropeou para as charqueadas de
Pelotas, para as charqueadas de Bagé. Sol forte, vento frio noites de chuva, gado
xucro. Estouro de tropa, bois extraviados. Vida dura; aprendeu a manejar o laço; laçar
no pescoço, laçar na guampa, pealar: aprendeu a obedecer, aprendeu a comandar. Na
entre safra das tropas boleava emas para tirar as plumas e ai pegou a pratica do
manejo das boleadeiras. Era lanceiro, sim, bom de lança, não, não esteve em lutas
militares, foi na luta pela vida em charqueadas pequenas onde a matança era feita na
dita cancha de matança; Um terreno de um ou dois hectares onde o gado era morto.
Uma dupla de jarreteiros ou cortadores de jarrete; um laçava a rês, o outro, o lanceiro,
com uma lança com a ponta uma lamina em forma de meia lua, cortava o tendão do
jarrete da rês, o tal do tendão do Aquiles, tendão cortado o animal perdia o equilíbrio,
caia e já o matador de faca em punho corria para fazer a sangria. Aprendeu a manejar
arma de fogo, tanto fuzil como revolver que aconteceu de o roubo de gado na região
da fronteira abrangendo Bagé, Don Pedrito, Santana do Livramento e São Gabriel, ter
se tornado muito intenso. Entrou numa guarda paisana e provisória a comando do
delegado de Bagé e participou de correrias e tiroteios contra bandos de bandidos,
correndo junto com a polícia, depois passou a correr da policia, já que entrou para
uma comparsa de contrabandistas. Ganhou muito mais dinheiro como contrabandista
que quando perseguia os ladrões. Nestas lidas e andanças guardou algum dinheirinho
para comprar o campo nas Três Estradas. Casou com a mulata mais bonita de São
Sebastião. Mulata pampiana criada de pés no chão com apojo de leite gordo, carne
gorda, pele queimada no sol de dezembro e conservada no frio do minuano. Dois
filhos pequenos.
Churrasco na campanha é tradicional cuja tradição é se renovar
constantemente, sim porque churrasco é um ritual em que cada um tem o seu estilo e
seu tempero. Tempero? Mas, não é sal grosso? Tem gente que usa salmoura, tem
gente que bota vinho branco na salmoura, e tem gente que bota outros temperos.
Claro tem a carne e os achegos, na minha terra o churrasco era carne de rês, carne de
ovelha e sarrabulho. Na estância do coronel Salustiano em São Sebastião município
de Bagé o churrasco tinha a cachaça composta com butiá, os butiazeiros atrás do
galpão eram muito bem cuidados e era função das cozinheiras cuidar os cachos e
botar várias garrafas de cachaça na infusão, a farofa temperada, o pirão de matambre
e o churrasco servido em gamelas.
Churrasco em São Sebastião, reunião de alguns líderes do município, lenço
vermelho, sim que o lenço era a bandeira política; chimango lenço branco, maragato
lenço vermelho. Uns chegaram a cavalo, poucos de faeton. Um trem, (locomotiva e
um vagão), trouxe o pessoal da cidade. Entre a turma miúda poucos para ajudar e
muitos para comer. Entre a turma graúda muitos para escutar, poucos para opinar e
dois ou três para decidir. Os dois ou três afastados, o copo de cachaça de mão em
mão, de boca em boca, depois do gole, muita troca de olhares e poucas palavras.
Interesse e ideal, ideal e interesse e ficou acertado que organizariam um piquete de
guerrilhas para revolucionar a região: o triangulo formado puxando uma reta de Bagé
a Santana do Livramento, uma reta de Santana do Livramento até o Cacequi,
fechando; a reta do Cacequi a Bagé. Quantos homens? Quem comanda? Quem não
comanda? Coronel Salustiano, líder no distrito de São Sebastião que os adversários
apelidaram de o “Sorro de São Sebastião” e os companheiros concordavam. Sorro no
pampa é o graxaim um cachorro selvagem, muito esperto e matreiro. Sim, o coronel
Salustiano; o Sorro de São Sebastião disse que tinha o comandante certo para o tal
piquete.
Cavalo bem encilhado, lombilho com a cabeçada feita de prata, rebenque cabo
de prata, coronel Salustiano andava passeando no distrito que era tempo de ver os
rebanhos e os currais eleitorais e coisas que tais. Foi costeando a estrada de ferro,
chegou ao povoado do Saibro conversou com o encarregado da estaçãozinha, andou
na venda e foi conversar com os trabalhadores da pedreira. Pedras para a ferrovia,
pedras no caminho. Seguiu no rumo das Três Estradas, nem foi no rumo e nem no
prumo, fez a grande curva dos trilhos. Chegou primeiro na venda e depois foi na
estação e depois foi fazer uma visitinha rápida ao seu Reduzino Malaquias.
Reduzino estava ajeitando uma vassoura de guanxumas para varrer o galpão e
cismando, sozinho, que naquele dia já tinha brigado com a mulher só porque ele
andava matutando e uma vontade de comprar um campo ali perto do Saibro; é querer
é poder, mas e o tal de dinheiro? Boi barato, campo barato e serviço escasso e
empréstimo só para rico que pobre é pobre, o cachorro latiu. Quem vem lá? O coronel
Salustiano; Sorro do São Sebastião, por aqui. Ai tem coisa! Debaixo deste angu tem
caroço.
Dois predadores: ave de rapina e um mamífero. Carancho e Sorro. Buenas.
Buenas coronel, apeie no más. Qual o quê a visita é rápida que tou de cruzada dando
uma olhadita no distrito. Mas apeie e chegue pro ranco; rancho de pobre é verdade. O
coronel apeou amarrou a rédea no rebenque e jogou o rebenque no chão. O aperto de
mãos, aquele da campanha: aperta a mão, solta, dá um tapa no ombro e volta a apertar
a mão. Passe pro rancho. No costado do galpão deitado e junto à parede um tronco de
cinamomo, um cinamomo velho que o último temporal derrubou. Mas nem é hora de
visita, sentemos aqui no tronco. Então tá bueno. O grito pra dentro da casa: prepara o
mate.
A casa, que seu Reduzino Malaquias chamava de rancho, afastada do galpão
uns quarenta passos. Na cozinha a mulata bonita, dona da casa agachou, soprou as
brasas, botou um acha de lenha na fornalha do fogão, mais outra acha, levantou e foi
trocar a água da chaleira, despejou a água quente na bacia, foi até a talha de barro,
destampou, pegou a guampa de tirar a água da talha. Chaleira cheia voltou pra cima
do fogão. Foi trocar a erva da cuia, espiou e viu o coronel conversando com o marido,
fez o sinal da cruz. Deus me perdoe, mas o Sorro velho por aqui, boa coisa não é.
E os dois sentados no tronco. E a conversa ia meio mole e coisa e tal e tal e
coisa. O homem que caiu do trem na estação do Rodeio Colorado. A briga no baile
dos negros em São Sebastião. A mulher que matou o marido em Bagé, mas aquele
merecia porque era um safado de marca maior. Mais um turco abriu loja em Bagé,
bueno; com o tempo os turcos vão ser os donos de Bagé. O guri maiorzinho chegou
trazendo a cuia e a chaleira. Tímido disse boa tarde a visita, entregou os avios de
mate pro pai e voltou correndo pra trás de rancho onde tava brincando. Água na cuia,
a cuia para a visita. A conversa passou para o tempo, do tempo para o vento, do vento
para os campos dos campos para o boi e do boi para o preço do boi. Tá muito baixo,
aliás, a coisa vai mal. Mal pros ricos que pra gente que é pobre a coisa sempre foi
feia. Não, seu Reduzino Malaquias; estes chimangos tão arrasando o Rio Grande, é
tempo de lutar por novos ideais. Ideais têm em cabeça de rico, que na cabeça de
pobre tem é piolho. Não seu Reduzino Malaquias, não é bem assim. Desculpe
coronel, que até eu tenho a minha idéia, que é de criar meus dois filhos. Sim, seu
Reduzino, aí é o ideal de todos nós, mas criar num Rio Grande onde tenha paz e
justiça. Mas, coronel quem tá acabando com a paz são os maragatos. Tá certo, mas
infelizmente é assim, é deste jeito; primeiro tem que ter a luta para depois ter a paz. E
é nesta luta que todos nós temos que nos engajar. E o partido maragato conta com a
ajuda do amigo. Ora coronel Salustiano, dinheiro eu ando sempre pelado, mais pelado
que sovaco de santo, gado pra ajudar na munição de bóia pra encher a barriga dos
soldados... Não, seu Reduzino, a gente conta com o amigo lutando na tropa... Eu?
Coronel já tou com a idade de Cristo, tenho trinta e três anos, uma mulher e dois
filhos pra sustentar, não posso me meter a ser soldado. Desculpe coronel Salustiano,
mas o finado meu avo, que Deus o tenha, lutou por esta tal de Republica, foi ferido
em combate, ele que era um homem de lida de campo, acabou ficando paralitico e o
quê que ganhou? Ganhou uma porqueira duma tal de medalha. Ora medalha. Tem
calma seu Reduzino Malaquias o partido maragato não lhe quer para soldado, a gente
confia no amigo para um posto de comando. Eu? Coronel até servi o exército, servi
na cavalaria de Bagé, mas nem cabo eu fui. Soldado raso e até nem gostava muito
daquela vida de um, dois, um, dois, esquerdo, direito, ombro armas, direita volver...
Seu Reduzino Malaquias bamos deixar de fazer muitas voltas na conversa e bamos
enveredar por um atalho pra chegar direto no assunto: O que o partido maragato tá
querendo é organizar um piquete: trinta a quarenta homens, pra o tal piquete fazer
umas escaramuças, revolucionar e incomodar o governo neste pedaço de chão que vai
daqui até Santana, de Santana a vila do Cacequi e do Cacequi, costeando a estrada de
ferro até aqui, coisa simples. Sim coronel; simples, mas não é simplória que nestes
causos eles vão botar a Brigada na nossa cola, a Brigada Militar e mais estes tais de
provisórios, que o povo ta chamando de patas no chão. Sim seu Reduzino, mas é isso
que se quer, a gente quer que eles movimentem tropas, que a opinião publica se atine
e que os jornais botem fogo na coisa; é revolução meu amigo. Coronel bamos iniciar
do começo pra chegar ao finalmente: Os trinta homens pra formar o tal de piquete...
Já lhe adianto; na fronteira, dentro do Uruguai lá perto da Serrilhada já temos cerca
de vinte homens e ai em Bagé já tem um grupo acertado. Mas, coronel Salustiano até
lhe pergunto: nestes ditos que tais que tão no Uruguai tem algum estrangeiro? Sim,
tem uns castelhanos. Mas tá bueno que uruguaio não é estrangeiro, mas tem uma
coisa coronel; se tiver argentino o senhor mande capar e mande embora que com esta
raça eu não lido. E outra pergunta coronel: eu vou em que posto? La maula! Seu
Reduzino Malaquias até nem pensei, mas assim até pode dizer que quem comanda o
piquete é um capitão, e fica bom: capitão Reduzino Malaquias. Que os chimangos
vão me chamar de capitão Carancho, e eu nem ligo pra isso. E coronel Salustiano;
nesses grupos que já tão arranjados, tem alguém com posto? Não senhor. Pois assim
tá bom, que eu já tou aqui pensando com a cabeça, um pensamento de dividir o
piquete em três pelotões, e nesses causos vai precisar três tenentes, e neste causo é
gente de minha confiança, que eu vou procurar que o senhor sabe coronel, é
revolução, tem espião, tem traição. Fico contente de ver que o amigo tá pensando
estes pensamentos, que agora tenho certeza que não me enganei quando pensei no
amigo pra comandar o piquete, aliás, seu Reduzino Malaquias, dizem que o meu gado
é bom porque eu sei escolher os touros. Outra coisa coronel Reduzino; o soldo pro
pessoal de confiança tem que ser bom. Mas, é claro seu Reduzino o soldo de vocês
será muito bom. Desculpe coronel, mas no meu causo tem o tal de ideal... Sim seu
Reduzino todos nos movimentaremos movidos pelo ideal do partido maragato... Tá
certo coronel; tem o ideal do partido maragato, mas tem também um idealzinho,
assim coisa pequena, meu. Como é que eu vou dizer? O senhor sabe, eu pra sair pra
luta arriscando a vida tenho que deixar esta mulher, que tem dois filhos pra criar, com
uma garantia garantida... Na reunião do partido até posso... Desculpe coronel, mas eu
já to aqui pensando. Então diga o seu pensamento. Ai no Saibro, ali perto dos trilhos,
tem um campinho que é dum herdeiro, que esse tal trabalha em Bagé de guarda-livros
na charqueada. Ele lida com penas e tinta, letras e números, palavras e quatro
operações e nem quer voltar mais pra lida bruta de campo e ta vendendo o tal dito
campinho; e aí é que digo a minha proposta: o partido maragato compra o tal
campinho e me dá de presente. Mas me diga seu Reduzino Malaquias, qual é o
tamanho do campinho? Olha coronel da pouco mais de cem hectares. La maula! Cem
hectares é uma estância meu amigo. Estância é a do coronel que tem três mil hectares.
Opa! Dois mil e oitocentos seu Reduzino. E tem mais seu Reduzino; o partido tá com
pouco dinheiro, pois tá até rifando cabeça de porco assada e enfeitada com rodelas de
limão e rodelas de tomate pra bem de conseguir uns trocadinhos. Mas coronel tem
muito fazendeiro grande, tem dono de charqueada, tem os donos dos comércios
grandes de Pelotas que tão ajudando. La maula! Até que pra quem mora nas Três
Estradas o amigo tá bem informado... Coronel; Três Estradas é estação de trem e a
noticia, coronel, anda de trem. Macanudo seu Reduzino, me deixa apartar o principal
da nossa conversa: três homens de sua confiança com um bom soldo e no fim da luta
o senhor ganha um campo. Opa tchê! Desculpa coronel Rebustiano, antes de sair pra
ariscar a vida na luta temos que deixar o campo com a proposta de compra e os
papéis em andamento, que ai eu saio com a minha gente, pintando e bordando nos
rumos de Santa Ana, cruzando por Dom Pedrito, rumando pro Cacequi fazendo
rebuliço no Rosário e cortando do Cacequi pra cá varando São Gabriel e até fazendo
barulho em Lavras do Sul. Exatamente é isso que se quer seu Reduzino. Eu vou à
reunião do partido, que tem amanhã em Bagé e vou dizer o seu plano e o seu pedido,
que eu não decido. Mas tem muita influência e muita força coronel Salustiano. Nem
tanto seu Reduzino. E, coronel tem uma última pergunta: armas, munição e cavalos o
partido tem, pra esta gente? Sim, é uma boa pergunta; pra inicio do começo tem, mas
depois o senhor vai ter que requisitar o gado e alguma bóia, sabendo que tem que
requisitar nas fazendas e comércios dos adversários, é bom lembrar; sempre
respeitando fazendas e comércios dos companheiros de partido. Tá certo coronel.
Então eu apresento sua proposta na reunião do partido e se ela for aceita eu mando
um telegrama, que é para o amigo dar o jeito de ir buscar os três homens de
confiança. Mando o telegrama; tem a carreira. Entendeu?
Limpa Trilhos tirou o boné vermelho da cabeça, pegou o papel do telegrama
que o agente da estação de Três Estradas o entregou, correu até a fazendola de seu
Reduzino Malaquias que com sacrifício, usando o que aprendeu no exercito nas tais
aulas de alfabetização, aos poucos foi acolherando as letras, formando as silabas,
depois as palavras: te e o e mais o eme é tem...
Tem a carreira e ligeiro começou a pensar e agir. Primeira visita ao velho Zé
das Três Estradas. Seu Zé das Três Estradas com cinqüenta e sete anos, viúvo, filhos
criados e todos vivendo em Bagé, fez mate, serviu cachaça; cachaça amarela
composta com flores de macela. Escutou a conversa do vizinho, escutou a proposta,
riu, pensou. Digo gracias pela confiança do meu amigo, mas já estou velho pra ta me
metendo em encrencas de políticas. Pro vizinho, amigo e companheiro eu me
prontifico e digo com satisfação que ajudo a cuidar sua propriedade e também a
vizinha e os guris. Bah! Fico contente e aceito e até por sinal amanhã bem cedo eu
vou sair pra visitar uns amigos e até peço para o seu Zé dá uma olhada nos
movimentos, e me cuide as atitudes do guampudo do Zebedeu. Bah! Nem lhe conto
seu Reduzino; me contaram, ontem na venda, até o Limpa Trilhos comeu a mulher do
sujeito.
Rosa Maria, flor de mulata, aliás, o namoro começou num baile em Rodeio
Colorado e o convite que Reduzino fez: a flor do pago dá a honra da dança? Naquela
manhã a flor do pago estava murcha. Muito cedo Reduzino Malaquias deu jeito de
encilhar o cavalo, a Estrela Dalva, que no interior do Rio Grande do Sul era
conhecida como “Estrela Boieira”, que quando ela nascia os carreteiros davam o jeito
de prender os bois nas carretas. O Rio Grande foi colonizado a pata de boi.
Reduzino Malaquias montou e seguiu no rumo norte, rumo da vila do Ibaré. Rosa
Maria fungou fez o sinal da cruz e foi acender uma vela diante da imagem de São
Sebastião o santo da sua fé. No pensamento dela alguma coisa o marido andava
aprontando, isto depois da visita do coronel Salustiano.
De Três Estradas ao Ibaré, vinte quilômetros. Seguiu pela beira dos trilhos. No
meio do caminho a estaçãozinha de João Câncio, conversou com o encarregado,
passou a vilinha beira trilho, dez casas de madeira cobertas com telhas de zinco, dos
tucos, pessoal da conservação da via. A vila do Ibaré, a maior vila do trecho,
protegida por Santo Antônio e logo procurou o amigo Tordilho, ora quem sabia quem
era ali no Ibaré o Alberto Roberto? Poucos, mas quem era o Tordilho; muitos.
Ganhou o apelido muito jovem quando o cabelo branqueou coisa que nunca o
preocupou, regulava de idade com Reduzino Malaquias, foram companheiros nos
tempos de tropeadas e empreitadas nas charqueadas. O cachorro latiu e o vulto na
porta dando risadas e gritando: quem é vivo sempre aparece. Mas bah! Tchê! Quanto
tempo? É verdade. Apeia e vamos tomar um mate. A demora até é pouca. Ué! Que
demora pouca coisa nenhuma, agora vou matar uma ovelha pra gente comer.
Fogo no centro do galpão a ovelha nos espetos, o cachorro tentando pegar as
moscas dando bocadas, o copo com a cachaça, o chimarrão e Reduzino Malaquias
contou o motivo da visita. Ando reculutando. É assim mesmo que se dizia no interior
do Rio Grande. Pois ando reculutando gente pra um piquete maragato. A risada
grande que ecoou no Ibaré. O gesto largo, o gole grande de cachaça, Tordilho avisou:
tchê, vivente! Até a gente vai ser inimigo, já ando comprometido com o chimango,
tão fazendo um corpo provisório em São Gabriel e o meu padrinho, tu sabes; quem
tem padrinho não morre pagão, mas como eu tava te dizendo o meu padrinho já
ajeitou tudo; eu vou engajar como cabo e depois eu vou pra briosa Brigada Militar.
Que tu vês uma coisa: já ando com trinta e quatro anos, duas filhas fêmeas para criar,
não vou passar o resto da vida como peão de fazenda. Vida de peão é bonita só no
palavreado dos poetas, mas poeta é gente de miolo mole. Vida bruta de sol a sol
ganhando uma ninharia.
Reduzino Malaquias pegou a faca chegou perto dum espeto para cortar um
pedaço de carne. Bueno, Tordilho, já que somos inimigos, que Deus nos livre, bamos
dá jeito de comer este churrasco, que ainda vou em frente. Será que encontro o
Terêncio ai no Suspiro? Encontra sim, outro dia ele passou ai no trem, até conversei
com ele. Tu sabes que ele tá casado? Casou com a filha dum tuco da estrada de ferro,
nem te conto, o negrão comeu a namorada e embarrigou, o tal tuco que é o pai da
moça, dizem que é muito brabo, pegou o Terêncio e disse: casa ou vira comida de
urubu.
Depois de muita conversa, muito churrasco e um pires de doce da abobora,
Reduzino Malaquias se despediu do amigo e tocou pela beira dos trilhos que da vila
do Ibaré ao povoado do Suspiro são vinte quilômetros. No Suspiro encontrou outro
velho companheiro dos tempos de tropas: Terêncio, negro alto, um metro e noventa e
sete, forte, alegre. Peão na fazenda de um médico de São Gabriel. Soltou o cavalo,
aceitou o convite para pernoitar ali.
A pé os dois foram até a venda comprar cachaça e lingüiça. Foi nesta
caminhada que Reduzino Malaquias convidou o amigo para ser tenente no piquete.
Báh! Tenho que pensar, casado filho pequeno, a mulher vai incomodar e a minha
sogra, que velha morrinha! A minha sogra vai me encher a paciência. Mas a gente
janta, que a minha negrinha faz um quebra-bico que é uma coisa especial de boa. De
noite eu até penso com a cabeça e amanhã te dou a resposta.
De manhã bem cedo, depois do chimarrão, depois de Terêncio ter confirmado,
Reduzino Malaquias continuou a viagem rumo ao norte, já estava perto de São
Gabriel. O piquete já tinha o tenente Terêncio e rumou, pela beira dos trilhos para
vencer os vinte e dois quilômetros até a estação Vacacai.
Antes do Vacacai a parada Estância do Céu e lugar de parada obrigatória de seu
Reduzino Malaquias a casa de velha Sinhá. Casinha pequena na beira dos trilhos. O
licor de butiá o mate na beira do fogão e antes de sair o pedido. Dona Sinhá eu quero
que a senhora me benza contra inveja, olho grosso, pragas... Depois da benzedura já
na despedida a promessa: na volta vou passar aqui pra comer um feijão da Estância
do Céu. Feijão feito com carne com osso.
Vacacai da velha charqueada, junto ao rio do mesmo nome. E chegou ao
Vacacai no rancho do Chico; quarenta anos, gordo, baixo, bigode grande, sempre
sério o que lhe valeu o apelido de Capincho. Tratavam-se pelos apelidos: Carancho
que milagre. Capincho cada vez mais gordo. Milagre tu andares aqui no Vacacai.
Ando procurando um tenente. Tenente? É para um piquete revolucionário. O que?
Carancho tu tás metido em politica? Mas apeia, vamos tomar mate. E tomaram mate
e conversaram. Mate vai conversa vem. Mate vem conversa vai, Capincho botou
condição: vou de sargento, tenente é um posto que não me sirva. Reduzino Malaquias
sorveu o gole de mate, sacudiu a cuia no ar, deu risada: é tanto faz como tanto fez, tá
bueno; sargento Capincho. Eu vou a São Gabriel. Correr chinas? Agora sou homem
sério, to casado com dois filhos para criar. É, mas, cavalo amarrado também pasta. Eu
vou é conversar com o mulato Ananias, mas na volta eu passo aqui e a gente vai junto
pras Três Estradas. Tá certo? Combinado.
São Gabriel alegria em chegar. São Gabriel a Atenas do pampa. Um boteco
perto dos trilhos. O sempre alegre, aliás, a alegria em pessoa: mulato Ananias, sorriso
franco, gestos largos. Ananias o mais guapo dos tropeiros, bom no laço, melhor com
as boleadeiras. Ananias bom no revolver muito melhor com a adaga. Uma vez num
cabaré de Bagé, bom isto já faz muito tempo. Recebeu o amigo gritando: mas é o
Carancho velho de guerra, andava mais sumido que dinheiro em bolso de pobre. Vem
de lá um quebra costela. O abraço forte, o aperto de mão e o convite: amarra o cavalo
e vem tomar um trago para limpar a goela. Tchê, Ananias, eu ando meio com presa.
Mas qual o quê! Não adianta correr que a morte é certa, vamos bater uma boa prosa.
Pelo sim, pelo não, pela alegria do encontro Reduzino Malaquias amarrou o cavalo e
entrou no boteco e ficaram jogando conversa. Foi o Ananias quem perguntou. Mas, e
afinal, o que tu fazes aqui? Tchê! A pergunta veio na hora; ando procurando gente pra
uma empreitada. Ananias riu, olhou de canto de olhos e perguntou: tropa? Reduzino
pegou o copo, bebeu e respondeu: coisa mais importante, peleia. Ananias deu um tapa
no balcão: não, nem acredito que o Carancho tá se metendo em política. Não é bem
política, só um piquete para fazer umas arruaças. Ananias foi curto e franco: mas que
Deus me livre que eu vou me meter em peleias de maragatos e chimangos. Aqui no
meu boteco eu vendo canha tanto pra maragato como para chimango e que Deus nem
me castigue, que tenha que andar a cavalo. Fiz calo na bunda andando a cavalo e só
ganhei chuva, vento e poeira na cara. Reduzino Malaquias respeitou a opinião do
amigo e perguntou: tchê! E o Cabeleira? Donde eu encontro ele? Olha Carancho é
difícil, ele sumiu, foi embora de São Gabriel, andou passando necessidades. Andou
roubando ovelha. Reduzino Malaquias ficou sentido pela pouca sorte do velho
companheiro e depois perguntou: e o Tiaraju? Ananias riu e respondeu: continua o
mesmo, sempre aluado, anda ai pela Bela Vista.
Doze quilômetros além de São Gabriel a estação Bela Vista; um trem
encostado no brete carregando gado, gritos dos tropeiros, atropelos do gado.
Reduzino saudou os tropeiros e seguiu até a venda aonde chegou perguntando
noticias do velho companheiro. Um peão de estância sabia e disse: anda lá pelo
Inhatium fazendo cercas.
Sol forte, calor, o quero-quero gritando, Reduzino desmontado segurando o
cavalo pelas rédeas. O sujeito, baixo, ruivo, forte, cara de brabo cavando um buraco
com uma pá de corte, suando as bicas. Cinco minutos, silêncio, dez minutos, silêncio,
quinze minutos e os dois calados. O quero-quero gritando. Buraco feito o sujeito que
na verdade era o Tiaraju caminhou até uma carreta, que estava afastado cerca de cem
metros, carregada de madeira. Com esforço pegou um moerão e botou no ombro e
levou para colocar no buraco. Reduzino Malaquias, quieto, olhando. Tiaraju aprumou
o moerão no buraco e sério perguntou: Piquete pra revolução? Sim. Continuaram
calados. Tiaraju botou terra no buraco, pegou o socador e começou a bater a terra
para afirmar bem o moerão. Longe o apito de um trem. O quero-quero gritou. Tiaraju
disse: não, eu não vou. Reduzino Malaquias ficou calado e olhando ele socar a terra.
Tiaraju soltou o socador deu de mão na pá e seguiu para ir abrir outro buraco. O
barulho do trem se aproximando. Reduzino Malaquias ajeitou os arreios, montou,
ficou montado olhando o amigo cavar, perguntou: Tu gostas de fazer cercas? Não
respondeu e continuou cavando. Reduzino Malaquias deu rédeas ao cavalo e
começou a se afastar. Tiaraju cravou a pá e perguntou: tem cavalo? Tem lá em Três
Estradas. Pegou a pá, cravou, soltou, passou a mão no rosto e disse: passa na estação
e deixa uma passagem paga, depois da manhã eu vou pra Três Estradas.
Capitão Carancho, tenente Terêncio, sargento Capincho e tenente Tiaraju, tava
formado o comando do piquete de guerrilhas; Piquete Carancho das Três Estradas.
Rosa Maria; bonita, alegre, mulher de respeito e boa cozinheira; mostrou cara
alegre e fez a janta. Comida simples, mas do gosto do capitão Carancho; pirão feito
com abobora carne e farinha de mandioca. Tão bom que o sargento Capincho estalava
a língua. Ela foi deitar, antes acendeu uma vela diante da imagem de São Sebastião, o
santo da sua fé. Garrafão de vinho, panelão de pirão e os quatro conversaram até a
madrugada, trocando idéias, discutindo planos. Já que é para começar é bom dar o tal
de inicio. E dizia o tenente Terêncio: com a palavra de bamos já se fumo.
De longe andando pela beira do corredor o Zebedeu espiava e via a luz na
janela da casa de seu Reduzino Malaquias, vontade de chegar perto e tentar escutar a
conversa, mas os cachorros latiram, mas enquanto ele andava estudando o jeito de
espionar os movimentos o guarda-chaves da estação estava lá na casa dele de
amoricos com dona Maroca. Dona Maroca, mulher de Zebedeu tinha fogo na cola.
Noite de azar, pois se pechou com um zorrilho que lhe deu uma farta mijada. E o
mijo de zorrilho é fedorento.
Capitão Carancho junto com o sargento Capincho rumou até a Serrilhada, na
fronteira com o Uruguai, viagem a cavalo numa distancia de mais de cem
quilômetros. Foram conhecer o ponto de apoio na fazenda de um maragato, dita
fazenda bem em cima da linha de fronteira, ou seja, parte no Uruguai, parte no Brasil.
Conhecer o ponto de apoio e buscar os homens para formar o piquete. Na verdade
um grupo que outro grupo estava sendo reculutado em Bagé.
Nas Três Estradas ficaram o tenente Terêncio e o tenente Tiaraju para
receberem os do grupo de Bagé.
Rápido, ligeiro e rasteiro, formou um acampamento no capão de mato no fundo
do campo e logo estava todo o grupo junto. Da fronteira vieram dezesseis e de Bagé
doze. Vinte e oito soldados e quatro comandantes.
Quatro eram castelhanos, um era estrangeiro. Sim, estrangeiro, porém bem
abrasileirado; tal Charles que nasceu na França, mas veio criança para morar na
colônia do município de Pelotas, região bonita na Serra dos Tapes, e o tal Charles
deixou de plantar pessegueiros e fazer doces para ir se meter em aventuras. Outro que
andava procurando aventuras era o tal de Andrezito mais conhecido pelo apelido de
Mergulhão que o dito cujo vinha bem da ponta sul do Brasil, lá de Santa Vitória do
Palmar de Lemos, esta gente de Santa Vitória é conhecida pelo apelido de mergulhão.
Até o dito cujo Andrezito era de família rica, mas gostava de andar aventurando a
vida. Bandidos, tinham alguns entre eles o Cara Cortada; cinco cicatrizes no rosto,
mais de dez mortes nas costas. Outro era o tal de Sobra do Cati. Cati na divisa entre
os municípios de Santana do Livramento e Quarai, foi sede do Segundo Regimento
de Cavalaria Provisório, pois o tal de Sobra do Cati andou fazendo banditismos na
fronteira e acabou preso no Cati e foi lá que apanhou tanto que acabou com um braço
torto, quebrado em quatro lugares e uma perna mais curta que a outra. Tinha um que
não regulava bem das idéias; o Louco do Rodeio Colorado, falava sozinho, dava
risadas. Tinha um que ainda era guri, quatorze anos e já metido em encrencas, tinha o
apelido de Mijão. Tinha o Marcolinão, este era ali do povoado João Câncio. Velho
Manduca era o mais velho do grupo; setenta e dois anos. E tinha o Come Égua: é tá
bom! É só eu que como égua. Ta bem é ta bem, só eu que como égua.
Quinze dias nas Três Estradas e vamos em frente que atrás vem gente. É para
revolucionar, vamos revolucionar e mesmo o capitão Carancho não queria
movimentos de guerrilhas na sua fazendola, nem perto das casas e nem nas Três
Estradas. E saíram, de manhã, o sol de verão já estava alto. Zebedeu, deitado no meio
do campo, enquanto isto a filho do dono da venda estava deitado com a mulher dele.
Zebedeu tentou contar quantos eram não conseguiu, mas calculou cerca de cinqüenta.
Passaram em São Sebastião aonde chegaram bem esparramados e uns
troteavam para um lado e outro, e fizeram bastante movimento para dificultar que os
bombeadores contassem. Quando saíram de São Sebastião já corriam os primeiros
telegramas e se formavam as primeiras conjecturas. Será que vão agir sozinhos? O
mais provável é que vão se juntar a tropa da fronteira oeste, ou a tropa da zona sul.
Quem sabe vão invadir Bagé. Ora, maragato invadindo Bagé, lá tá cheio deles; é o
ninho deles. De cada dez bajeenses, onze são maragatos.
O piquete se deslocou devagar, abandonou a estrada, cortou atalho. Na estação
Rodeio Colorado situado a dezoito quilômetros de Bagé na fazenda de um líder do
partido ficou a metade do grupo ao comando dos tenentes Terêncio e Tiaraju. A outra
metade ao comando do capitão e do sargento Capincho, contornou a cidade e de
noite, conforme o combinado chegou à estaçãozinha do Quebracho a quinze
quilômetros ao sul da sede do município. Costearam o Arroio Quebracho até a
fazenda que era o segundo ponto de apoio. O fazendeiro, homem velho, cabeleira
branca, barba grande e bem branca, caminhando com dificuldade, apoiado numa
bengala, líder do partido, aliás, uma das eminências pardas, amigo e protetor de
Reduzino Malaquias; os dois lutaram juntos quando da perseguição aos ladrões de
gado da região. Depois da janta a tropa dormiu num galpão grande enquanto o
capitão e o líder ficaram na casa grande tomando o mate, trocando idéias e fazendo
planos até a madrugada. Antes de clarear o dia para fugir dos olhares de curiosos e de
espiões seguiram a marcha. Do Quebracho o Piquete Carancho das Três Estradas saiu
com o trem de guerra; quinze mulas carregadas: munição, charque, farinha de
mandioca, feijão, barracas, um panelão, uma lata para aquecer água, pratos e
colheres. Duas mulheres se apresentaram voluntárias para acompanharem o piquete
como cozinheiras. Capitão Carancho dispensou: pouca china no meio de muito
homem. Nomeou cozinheiro o Velho Manduca e seu ajudante o Mijão.
Conforme o combinado na mesma hora que o capitão Carancho saia do
Quebracho o resto da turma saiu de Rodeio Colorado. Antes de sair do povoado, os
dois tenentes; Terêncio e Tiaraju foram até a estação, onde o agente já estava
acordado e tomando o mate no escritório; deixaram um telegrama. Telegrama para tal
coronel Simplício na estação Biboca. Biboca era uma estação ao sul de Bagé na linha
Bagé a Pelotas e o coronel Simplício era uma invenção do capitão Carancho. O
telegrama dizia: recebi reforço, vou buscar ouro. O telegrama foi escutado pelos
espiões. Na estação de Bagé tinha dois telegrafistas encarregados de controlar o
movimento dos telegramas.
Buscar ouro? E surgiram as duvidas e desconfianças. Iriam invadir Lavras do
Sul? Verdade ou mentira? Talvez estivessem enredando o rastro. Mais telegramas
foram transmitidos; alerta a Lavras. Se o bandoleiro maragato estivesse enredando o
rastro e atacasse o outro lado; Don Pedrito, alerta a Don Pedrito.
Dentro do combinado o Piquete Carancho se encontrou a oeste de Bagé. Bagé
Rainha da Fronteira, da igreja de São Sebastião, do sotaque carregado principalmente
na vogal “e”; dÊ, vÊ, lÊ. E seguiram ao trote rumando a oeste. Só o capitão Carancho
sabia o plano; ia com intenções de invadir a cidade de Don Pedrito. A primeira
missão. Daria certo? Dizem que quem bota a cara ao vento arrisca a se encontrar com
a sorte. O Louco do Rodeio Colorado que ia de batedor, voltou a todo o galope
contando: uma patrulha da Brigada Militar. Tenha calma. Capitão Carancho e
sargento Capincho avançaram ao galope para espiar o movimento. Não era patrulha,
não era da Brigada Militar, era um pequeno comboio de carroças; quatro carroças das
de quatro rodas, cada carroça puxada por quatro cavalos. O comboio ia guarnecido
por dez homens de um corpo de provisórios. Foi depois da eleição, a tal eleição foi
fraudulenta, fraude para garantir que o partido chimango continuasse governando o
Rio Grande do Sul, pois depois da tal eleição o governo resolveu aumentar os corpos
de provisórios para auxiliar a Brigada Militar. Tal comboio levava armas, munições e
comida para o destacamento de provisórios na vila do Aceguá, na linha de fronteira
com o Uruguai. Capitão Carancho reuniu os comandantes, estudou o terreno,
planejou, trocou idéia e botaram o plano em execução. A maioria do piquete ficou
escondida num mato afastado da estrada enquanto o tenente Terêncio e cinco homens
contornaram o mato, correram até a frente do comboio e afastados cerca de cem
metros, provocaram a guarda. O sargento provisório, comandante da tal guarda,
aceitou a provocação e deu ordem de atacar. Tenente Terêncio fez menção de dar
combate. Poucos tiros de ambos os lados e o grupo de Terêncio iniciou a retirada em
disparada, no momento em que o sargento Capincho acompanhado de outros cinco
soldados saiu do mato em correria, atirando e desviando a atenção dos provisórios.
Enquanto isso o capitão Carancho e o resto do grupo atacaram as quatro carroças.
Ação rápida e se apoderaram das carroças. Enquanto Terêncio e Capincho
entretinham o grupo de provisórios, conseguiram fugir com as carroças e se
esconderam nos matos do Arroio Quebracho. Bom lucro, boa sorte, na carga
cinqüenta fuzis Mauser e muita munição.
Relatórios foram escritos e telegramas transmitidos. Em Porto Alegre, no
Palácio Piratini, dedos tamborilaram sobre a mesa enquanto o secretário magro
careca com óculos de lentes grossas procurou se mostrar calmo: excelência foi um
lance de azar. Tal Piquete Carancho, tem cerca de cinqüenta homens, é quase com
certeza que vai se unir ou as tropas da região sul do estado ou com as tropas do
Alegrete.
Os jornais espalharam a noticia: telegramas procedentes de Bagé dão conta de
combate próximo à cidade onde um trem de guerra do corpo provisório de Aceguá foi
atacado...
Capitão Carancho viajou até a Serrilhada com muito cuidado. De dia se
escondiam e viajavam a noite. Talvez se tivesse tocado de marcha batida logo que
tomaram as carroças, a viagem teria sido mais tranqüila. O comando da Brigada em
Bagé distribuiu patrulhas na região. O corpo provisório do Aceguá também espalhou
pelotões em busca da carga perdida.
Na Serrilhada armaram acampamento para descansar e treinar com o novo
armamento. O fuzil Mauser maior, mais pesado, alavanca de manejo ao lado,
diferente do Winchester que era menor, mais leve e alavanca de manejo em baixo.
Depois de três semanas e antes de seguir a marcha o capitão ordenou ao tenente
Terêncio sair com um grupo e requisitar nas estâncias dos contrários, gado e cavalos
para deixar ali na estância de reserva.
Saíram da Serrilhada costeando a linha de fronteira, de dia descansavam e
viajavam a noite. Depois de uma semana contornaram Santa Ana do Livramento e
amanheceram na estação de Palomas. Palomas a vinte quilômetros de Santa Ana do
Livramento na linha férrea de Santa Ana ao Cacequi. Moradores da vila ficaram
assustados, mas ninguém foi molestado.
Chapéu jogado para a nuca, arrastando esporas o capitão Carancho bateu na
porta do escritório da estação. Ditou um telegrama ao telegrafista: é para o coronel
Simplício na estação Biboca; voltei, vou rezar um terço e seguir para tomar a sopa.
Esperou o telegrafista transmitir o telegrama para sair da estação, passou na venda
onde requisitou em nome do comando revolucionário o estoque de erva mate
deixando o vendeiro espumando de raiva, seguiram pela beira dos trilhos no rumo de
Cacequi. Entre as estações de Palomas e Porteirinha, arrancaram os grampos que
prendem os trilhos aos dormentes, passaram o laço nos trilhos e arrastaram,
danificaram a linha em quatro lugares, tomaram o cuidado de empilhar dormentes
sobre os trilhos para alertar o maquinista que a finalidade era provocar transtorno e
não acidente e muito menos vitimas. Cortaram os fios do telegrafo e se afastaram da
linha férrea.
Trem de passageiros atrasado na estação de Santa Ana do Livramento
aguardando concerto da linha. Telegramas e mais telegramas. O telegrafo era o meio
rápido de comunicação. O código Morse com barras e pontos. A barra uma batida ou
apito firme, o ponto uma batida ou apito tremido: barra; taaac, ponto; tac. Ponto barra
é o “a”, barra e três pontos o “b”, duas barras e dois pontos o “z”. Telegrafista tinha
que ter sensibilidade na ponta dos dedos para transmitir e ouvido muito bom para
receber. Um bom telegrafista recebia ou transmitia uma média de trinta palavras por
minuto, um ótimo telegrafista transmitia ou recebia quarenta palavras por minuto e
um excepcional telegrafista além de transmitir e receber as quarenta palavras por
minuto ele recebia sem fazer rascunho, ou seja; não precisava passar a limpo a
mensagem recebida, ao tempo que estava recebendo ia escrevendo de maneira a ser o
texto bem apresentado e legível. E foram telegramas e voltaram telegramas até
telegrama para o Rio de Janeiro, capital da republica, pedindo intervenção federal no
Rio Grande. E o telegrama do capitão Carancho para o tal coronel Simplício? Rezar
um terço; seria invadir a cidade de Rosário do Sul, que fica na metade do caminho
entre Santa Ana do Livramento e o Cacequi? E tomar sopa; iria invadir o Cacequi?
Entre os viajantes corria a lenda que no restaurante da estação de Cacequi serviam
uma sopa muito quente para que o viajante tomasse devagar e quando terminasse a
sopa nem podia comer o complemento da refeição porque o trem já estava
reiniciando a vigem. E na troca de opiniões e de telegramas as forças vivas de
Rosário ficaram apreensivas e passaram telegrama solicitando um corpo provisório
na cidade. De Porto Alegre veio à resposta; organize vocês um corpo provisório.
Rosário do Sul passou uma semana aguardando a visita do Piquete do
Carancho, mas nada aconteceu. Fazia uma semana que os trilhos tinham sido
danificados entre as estações de Palomas e Porteirinha e tudo foi feito novamente, só
que desta vez foi à tarde e com isto atrapalhando o trem de passageiros de prefixo
P33 que tinha saído de Cacequi às treze horas e trinta minutos e que chegou a
Porteirinha as dezessete e vinte e cinco. Enquanto estava o trem parado em
Porteirinha já que não havia comunicação telegráfica com a estação de Palomas. Os
maragatos também cortaram os fios do telegrafo entre Porteirinha e Santa Rita e
mais; neste trecho também danificaram os trilhos. Trem cheio de passageiros
encostado a estação, chefe de trem, agente e o maquinista nervosos. Sem
comunicação para lado nenhum. O guarda-freio avisou; trilhos cortados logo adiante.
Os boatos começaram a andar dentro do trem da primeira para a segunda classe, da
segunda para a primeira classe. Hora da Ave-Maria, a coruja piou. O segundo aviso;
também tinham arrancado os trilhos no trecho para Santa Rita. Não avança pra frente
e nem recua para trás. Estamos no mato sem cachorros. Passageiros que de Santa Ana
do Livramento seguiriam no trem noturno para Montevidéu. Reclamações, palpites,
ordens: chama o pessoal da conservação, bota os tucos para ajeitar os trilhos. A
conservação vai ser demorada. O trem vai passar a noite aqui. Perigo é esse bandido
atacar o trem. Meia noite, gritos, correrias, choro de crianças, uma mulher desmaiou.
Um grupo de guerrilheiros chegou perto do trem e deu muitos tiros para o alto. Gente
nervosa pedindo calma, gente calma pedindo ação. Na primeira classe o senhor
doutor em direito dizia que iria telegrafar aos poderes da republica.
De Santa Ana do Livramento a Rosário do Sul pela linha férrea cento e dez
quilômetros, durante uma semana uma patrulha de cavalaria do Regimento da
Brigada Militar percorreu o trecho. De longe era cuidada pelos bombeadores do
piquete revolucionário. No mesmo dia que a tal patrulha voltou para o quartel o
Piquete Carancho voltou a Palomas, o comandante foi à estação pediu para
transmitirem um telegrama: Coronel Simplício em estação Biboca; Vou me juntar aos
do oeste. O telegrama correu pelos fios. Uma cópia; o secretario careca com óculos
de grossas lentes a colocou em cima da mesa no palácio Piratini: eu sabia que o
capitãozinho não ia agir sozinho.
Em Palomas, antes de sair da vila, o capitãozinho foi até a venda onde em
nome de tal comando revolucionário requisitou todo o estoque de erva e o estoque de
fumo o que dobrou a raiva do dono da venda. Fazia dois meses que o piquete tinha
saído de Três Estradas.
Manhã tranqüila de outono e a pacata Rosário do Sul recebeu a visita dos
guerrilheiros, nem desmontaram, passaram pelo centro da cidade, contornaram a
praça, pararam na frente da intendência municipal e por um guarda nervoso, o capitão
Carancho mandou o recado ao senhor intendente: cuide mais da sua cidade.
Cacequi o segundo em importância dos entroncamentos ferroviários do Rio
Grande do Sul, ficando atrás de Santa Maria da Boca do Monte. Vila do Cacequi
pertencente ao município de São Gabriel, distante oitenta quilômetros da sede do
município. Quando muitos imaginavam que o Piquete Carancho das Três Estradas
tinha ido se unir as forças maragatas da fronteira oeste. O Piquete chega ao Cacequi,
perto da hora do almoço e em nome de tal comando revolucionário leva a comida do
restaurante da estação e sai da vila. Meio dia quatro trens de passageiros chegam ao
Cacequi, passageiros com fome e o restaurante não tem comida. Enquanto corriam os
boatos e reclamações o piquete guerrilheiro se dividiu em três grupos a danificou as
três saídas ferroviárias da vila e também cortaram os fios do telegrafo. Revolução é
revolução. Aumentaram as reclamações na plataforma e dentro dos vagões. O senhor
intendente do Alegrete, era passageiro de um dos trens, rascunhou telegramas ao
Ministro da Guerra ao Presidente do Estado. O agente da estação junto com o mestre
de linhas, nervosos, traçava plano. Os camareiros tentavam ajudar a os passageiros. O
chefe do restaurante providenciava novos gêneros e as cozinheiras trabalhavam a
quatro mãos. Quando foram restabelecidas as linhas telegráficas pipocaram os
telegramas. Cópia de um telegrama foi parar em cima da mesa no palácio Piratini,
mesa que levou um soco, soco que fez tremer o secretário careca que usava óculos
com lentes grosas; tremeu, virou as costas, desceu as escadas correndo, atravessou a
Praça da Matriz, tropeçou num trilho de bonde, ia passar um telegrama para Cruz
Alta.
Cruz Alta de Cima da Serra; Major Cruzaltino da Brigada Militar, sentado a
mesa, na cabeceira a Coronela, almoçando apressado, que às treze horas e quarenta e
cinco minutos partia o trem de prefixo P22 com destino a Santa Maria. Viajaria neste
trem. Em cima da mesa, já manchado de gordura e de molho de tomate o telegrama;
motivo da viagem. Numa mão um pedaço de polenta frita, na outra uma coxa de
galinha assada, a Coronela ora olhava para o marido ora olhava para o telegrama. O
telegrama: compareça Porto Alegre urgente. Qual o motivo? Tempo bom era o tempo
das cartas: estou pegando na pena para solicitar sua presença em Porto Alegre para
tratar disso, daquilo, daquele outro e etc. e tal. Telegrama tinha que ser curto que nem
patada de porco, ora bolas! Compareça Porto Alegre urgente. Pra quê? O major
nervoso e curioso a Coronela acreditando que era a promoção a coronel e mais; a
transferência para Porto Alegre, que ela tinha três filhos para criar e não ia criar
naquela Cruz Alta do meio do mundo, ia criar em Porto Alegre e eles estudariam no
Colégio Militar; e ela tinha certeza pois não era a toa que morava na mais chimanga
das cidades do Rio Grande, isto ela é que dizia, e ela tinha amizades e ela sabia mexer
com os pauzinhos e lá em Porto Alegre aquele secretário careca que usava óculos de
lentes grossas era seu primo. Major Cruzaltino pegou o telegrama, despejou um
pouco de farinha de mandioca em cima para secar os respingos de gordura e de
molho, sacudiu, dobrou e botou no bolso. Já estava na plataforma da estação a
Coronela chegou esbaforida com um buque de flores, admirado perguntou: que é
isso? São flores. Pra que? Para tu levares... Eu?! É para botares no tumulo da “Santa
Maria Degolada”. Mas ela não atende pedido de brigadiano. Cruzaltino o pedido não
é teu o pedido é meu, toma pega as flores. Mala numa mão buque de flores na outra
embarcou chamando a atenção dos mais curiosos. O major vai visitar a namorada. Ele
que arrume outra; a Coronela capa ele.
E o trem desceu a serra batendo rodas nos trilhos e no vagão uma velha
batendo trela. À tardinha a chegada em Santa Maria da Boca do Monte, plataforma
cheia, gente apressada, gente querendo pegar lugar no Noturno. De Santa Maria
Coração do Rio Grande até Porto Alegre trezentos e quarenta e três quilômetros e o
“Noturno de Santa Maria” cortando o estado no sentido oeste leste e o major
Cruzaltino caindo de sono e preocupado. Qual seria o motivo da viagem? Madrugada;
pararam na histórica Rio Pardo, um café com sonho para tirar o pesadelo da viagem.
O sol vindo de leste e o trem vindo do oeste se encontraram na capital dos pampas.
Porto Alegre a estação na Rua da Conceição bem no centro da cidade. O Noturno
despejou a carga. Major saiu tropeçando nas pedras do calçamento, ansioso para ter o
encontro com o secretario careca que usava óculos com lentes grossas. Encontro só
no outro dia, que a revolução era em todo o estado e Palmeira das Missões tinha sido
invadida por uma tropa de maragatos o que motivou muita correria ao secretário.
O encontro nem foi no outro dia, que a revolução estava queimando pólvora lá
pelos lados da Palmeira e no Passo Fundo. Quatro dias em Porto Alegre e a Coronela
mandando telegramas cheios de perguntas e de ordens. Caminhando a toa na Rua da
Praia olhando as gurias que não olhavam para ele. E o jornaleiro gritando: extra;
grande degola em Palmeira... Grande degola. Pronto, era só o que faltava. Degolas
outra vez? Depois de uma semana em Porto Alegre foi recebido pelo secretario, isto
graças a um telegrama enviado pela Coronela. Em cima da mesa grande o mapa,
alguns recortes de jornais e muitos telegramas. O secretario careca que usava óculos
com lentes grossas passando o dedo no mapa: Bagé, Don Pedrito, Santa Ana... É aqui
que ele age... Até pensei que ele ia fazer a ligação entre os revoltosos da zona sul com
os da fronteira oeste... Eles não estão muito organizados. O secretario interrompeu a
explicação porque bateram na porta; um estafeta entregando um telegrama. Leu o
telegrama, jogou sobre a mesa, nervoso: merda! Mais um foco revolucionário, desta
vez é em Lagoa Vermelha e o comandante, deles, é bom. Mas, deixando Lagoa
Vermelha e voltando o nosso assunto; precisamos do major em São Gabriel para
coordenar os corpos provisórios. Uma coisa; não são os Corpos Provisórios da
Brigada Militar, são corpos independentes organizados por gente do partido. Eu sei
caudilhos. Major! Desculpe. O senhor vai coordenar e dar combate ao tal de capitão
Carancho...
Major Cruzaltino voltou a Cruz Alta de Cima da Serra onde teve que dar
muitas explicações a Coronela e poucas ao comandante do quartel. Quatro dias para
se arrumar, passar o posto no quartel e seguir para São Gabriel. Hora da partida, na
porta da frente os dois baús com roupas e bugigangas, atrás da porta do quarto a mala
de madeira e andando na volta dele, dando ordens a Coronela. Chegaram os dois
mensageiros para levar a bagagem até a estação e a Coronela na volta dele. Queria
mandar a mala de madeira, mas não queria que a Coronela o visse tirando a mala de
madeira de trás da porta. Um gato ajudou; o gato preto da vizinha, vizinha esta que
era inimiga da Coronela, aliás, a Coronela também era inimiga da vizinha, pois o gato
preto da vizinha subiu na mesa que estava posta para o almoço; enquanto a Coronela
correu o gato o major correu ao quarto pegou a mala de madeira e entregou aos
mensageiros.
Santa Maria da Boca do Monte, uma manhã esperando para falar com o agente
da estação. Um vagão especial. O agente não sabia de nada. Manda telegrama para
Porto Alegre, não vem à resposta, manda outro telegrama. Não veio a resposta, mas
veio a ordem; preparem um vagão para servir de escritório e dormitório para o major.
Ora as mercadorias apodrecendo nos armazéns a espera de vagões e ainda iam tirar
um vagão de circulação. O chefe das oficinas alegou muito serviço: é, mas é ordem
eu vou fazer. O major Cruzaltino batendo botinas na plataforma, um dia, dois dias,
três dias, no quarto dia chegou a noticia; problemas no Sodré.
Manhã fria de outono, a geada branqueando os campos o Piquete Carancho das
Três Estradas chegou a vila de Azevedo Sodré, primeiro foram a venda do lugar
requisitar, erva mate, fumo e cachaça em nome de um tal de comando revolucionário,
depois foram a estação do trem onde o capitão ditou um telegrama para ser
transmitido a estação da Biboca e ser entregue ao coronel Simplício: vou buscar o
ouro. Seguiram costeando os trilhos rumo ao sul. Na estaçãozinha das Três Divisas
acamparam, para o descanso do almoço. Às onze horas e quinze minutos o trem de
passageiros que ligava Bagé a Santa Ana do Livramento, fazendo a volta pelo
Cacequi; o P33 chegou a Três Divisas. O piquete ficou em forma para ver o trem,
enquanto o capitão embarcou e foi ao vagão bufe tomar um cafezinho. Muitos
passageiros saudaram os revolucionários, outros ficaram indiferentes e na primeira
classe o homem arrogante, com o lenço branco no pescoço, símbolo dos chimangos,
reclamou em voz alta: cambada! Ora capitão! Um tropeirozinho de merda daí das
Três Estradas. O trem foi embora e os revolucionários passaram o resto do dia em
Três Divisas, à tardinha requisitaram dois bois numa estância perto da estaçãozinha,
requisitaram em nome de tal de comando revolucionário. Fizeram um grande
churrasco e no outro dia cedo levantaram o acampamento, mas antes de saírem do
povoado o capitão foi a estaçãozinha e ditou o telegrama a ser transmitido para a
estação de Biboca: confirmo viagem para trazer ouro.
Em Biboca o telegrama ficou empilhado, junto com os anteriores esperando
que algum coronel Simplício viesse buscar. Cópias do telegrama andaram em mãos
de espiões e estrategistas. Buscar ouro, o safado vai a Lavras do Sul. Isto mesmo
passa a mensagem, urgente, para o comando provisório em Lavras.
Lavras do Sul, a lenda dizia que debaixo da igreja de Santo Antônio havia um
filão de ouro. O corpo provisório era particular era formado e comandado por
iniciativa do coronel Tiburcinho. Tiburcinho? Um homem alto, um metro e noventa e
dois de altura, forte. Fazendeiro e chimango. Fazendeiro porque casou com filha
única de rico fazendeiro, como dizia o povo de Lavras; deu o braguetaço. Se foi com
a ferramenta da bragueta que ele conquistou a Lucinha, foi por causa dela que ele a
perdeu. Lucinha criada presa no meio de um mundo de tias solteironas e carolas
naquela Lavras longe do mundo. Tinha que viajar de diligência até a estação de São
Sebastião e ali pegar o trem pra Bagé. Bagé; primeiro foi em Bagé que a Lucinha
conheceu as alegrias da vida, depois contaram para ela que em Porto Alegre a vida
era melhor; deixou o Tiburcinho cuidando os campos e as guampas e se foi para a
capital. Tinburcinho era chimango, não que gostasse de política, mas tinha feito uns
negócios e precisava de empréstimos do banco do governo. Pra agradar aos grandes
organizou um corpo provisório: trinta e poucos pés rapados, metade voluntários a
força, peões cedidos por fazendeiros simpáticos às idéias do chimango, a outra
metade gente desocupada que entrou na tropa em busca de aventura e de churrascos.
Coronel Tiburcinho quando recebeu a mensagem deu risada e roncou grosso: mas
deixa vir este capitãozinho de meia pataca. Nervosismo em Lavras, as mercadorias
faltando no comércio, um grupo de senhoras rezando o terço na matriz, Tiburcinho
sentado na praça tomando mate e contando vantagens: Mas vou atacar eles lá fora da
cidade, lá no Tabuleiro.
Cinco dias depois que passou o telegrama em Três Divisas o capitão Carancho
e seu piquete foram vistos na Sanga Funda; o piquete desmontado formado em
coluna, chapéu na mão e o capitão agachado acendendo uma vela para o “Negrinho
da Sanga Funda”. Naquele local um menino negro foi assassinado por um desertor.
Quem os viu avisou; já estão perto de Lavras e o coronel Tiburcinho botou o corpo
provisório em marcha, passou por dentro da cidade; quinze lanceiros, dezoito
atiradores e o trem de guerra. Sim, levava o trem de guerra; oito carretas de boi.
Quatro enfermeiras, cinco cozinheiras e duas benzedeiras. Contornou a praça, ele na
frente da tropa, montado num bonito cavalo tordilho; dando e vendendo arrogância.
Metade da população de Lavras não gostava dele e a outra metade detestava. Nas
janelas das casas, nas esquinas, na praça os comentários: é um bobalhão. Eu conheço
o tal capitão Carancho; é seu Reduzino Malaquias lá da estação das Três Estradas, se
ele vier aqui é só pra dá um passeio, não vai fazer mal a ninguém. Eu também digo o
mesmo, olha seu: eu tenho mais medo deste Tiburcinho. E estas mulheres que ele
leva? Diz que são enfermeiras e cozinheiras; não são nada, é tudo china rampeira,
putas que ele trouxe de Bagé pras putarias dele.
Tiburcinho ajeitou acampamento a vinte e quatro quilômetros da cidade, perto
do Tabuleiro, lugar onde a estrada de Lavras encontra a estrada de Bagé a São
Gabriel.
O Louco de Rodeio Colorado que era o vanguardeiro do capitão Carancho,
aliás, o Louco de Rodeio Colorado conhecia a região do Tabuleiro como a palma da
sua mão, pois o Louco viu a fumaça do acampamento, chegou se escondendo bem
perto, olhou bem os movimentos e voltou ao encontro do piquete para informar ao
capitão. Capitão Carancho mandou o piquete parar; junto com os dois tenentes e o
sargento, estudou o terreno, escolheram onde acampar: bueno, se ele tá nos
esperando, que espere. Guerra de nervos também é guerra. Passou um, passou dois,
passou três dias e o coronel Tiburcinho já estava impaciente. Neste período tanto de
dia como de noite o capitão Carancho mandou espiões estudarem o acampamento do
inimigo. Na quarta noite botaram o plano em execução, cercaram o acampamento,
dominaram as duas sentinelas do curral improvisado onde estavam os cavalos,
soltaram todos os cavalos. E iniciaram o ataque com um forte tiroteio. E tiros e gritos
e o coronel Tiburcinho só de cuecas corria de um lado para o outro e gritava ordens.
Mulheres gritando e homens fugindo. Mais da metade do corpo provisório desertou e
outra parte se escondeu nos matos. Coronel Tiburcinho e mais sete foram presos;
passaram a noite amarrados ao tronco de uma grande figueira. Capitão Carancho e
seu piquete tomaram conta do acampamento, mataram dois bois, fizeram churrasco e
de madrugada um baile com as chinas. A o clarear do dia foram embora e nem foram
a Lavras. Lavras que gostou do que aconteceu. Só quem não gostou foi a Lucinha,
que ali estava à grande oportunidade de ela ter ficado viúva e não ficou. O
acontecimento rendeu telegramas, rendeu noticia, gritos socos em mesas, mentiras e
muito mais.
Enquanto tudo acontecia, o major Cruzaltino estava em Santa Maria da Boca
do Monte, perdido no tempo e no vento. Aprontaram o vagão; um vagão de carga que
dividiram em três compartimentos; cozinha, banheiro e escritório. No escritório uma
mesa e dois bancos, na cozinha uma mesa, um banco e uma bacia. E cama? Major
cama o senhor consegue no quartel. E lá foi o major Cruzaltino conversar com o
comandante: Cama? O quartel não tem cama, mas fale com capitão do almoxarifado.
Não, cama não; tem colchão. Tá bem, colchão serve; dois. Volta o major Cruzaltino a
estação ferroviária de Santa Maria; o coração do Rio Grande, conversa com o agente,
o agente chama o chefe da oficina, o chefe da oficina chama o carpinteiro: faz duas
camas. O carpinteiro quer saber se faz as camas na cozinha ou no escritório: uma na
cozinha, outra no escritório. Ta pronta as camas. Bah! Falta o cozinheiro. O major
Cruzaltino conversa com o comandante: Major o senhor vai trabalhar com
provisórios independentes, arranje um cozinheiro no corpo provisório. La foi o major
ao acampamento do corpo provisório. Sim, tem cozinheiro, todo o mundo quer ser
cozinheiro; é a melhor coisa servir no rancho, come bastante e não tira serviço de
guarda. Tudo pronto; tem cama e tem cozinheiro. É, tem cozinheiro, mas não tem o
fogão. O fogão? O major fala com o agente, o agente fala com o chefe da oficina e o
chefe da oficina fala com o soldador. Pronto o fogão. Tem cozinheiro, tem fogão,
falta à bóia. A bóia! Major Cruzaltino fala com o comandante do corpo provisório:
bóia e bala tá faltando. O major vai falar com o comandante do Quartel da Brigada:
bóia? Major o senhor vai nadar? Não é bóia de boiar é comida pra encher o bucho.
Major, o senhor tem que mandar requisição à superintendência em Porto Alegre... Tá
bem major para ajudar o senhor, que esta com pressa de seguir para São Gabriel, vou
conseguir alguma coisa. Conseguiu; feijão abichado, charque rançoso e farinha de
mandioca mofada. E o major foi ao quartel onde estava alojado buscar os dois baús e
a mala de madeira. Botou a mala de madeira debaixo da cama e foi conversar com o
agente da estação: estou pronto para seguir viagem para São Gabriel, tem uma
locomotiva? Não, faltam locomotivas e sobram trens. Major o senhor vai atrás de um
trem de cargas. E foi atrás de um trem de cargas até o Cacequi. Passaram um dia no
recinto de Cacequi, o vagão pra um lado e outro, atrapalhando os serviços de
manobras. Do Cacequi a São Gabriel atrás de um trem de bois.
São Gabriel dos Marechais, a mala de madeira debaixo da cama, o major
Cruzaltino, charuto fedorento andando de um lado a outro no pequeno escritório do
vagão. Baforada de fumo fedorento. Tinha que começar as providências. Em cima da
mesa dois telegramas do secretário careca que usava óculos de lentes grossas e quatro
telegramas da Coronela. Primeira coisa convocar o comandante do corpo provisório
independente de São Gabriel para uma reunião. Enquanto o major pensava o
cozinheiro agia, saiu a bater nas casas próximas a estação e requisitar lenha em nome
da legalidade.
O comandante do corpo provisório independente de São Gabriel, advogado,
fazendeiro, membro da diretoria do partido chimango; um soldado a serviço do
partido e da lei, os adversários o chamavam de o Bugio do Batovi. O comandante
sentado o major Cruzaltino de pé fumando o charuto fedorento: comandante nós
precisamos redobrar nossos esforços para botar a ordem e a lei na região. O Estado
além dos seus quatro mil brigadianos já convocou quase dez mil provisórios e os
revolucionários continuam incomodando. O Bugio do Batovi olhou o major pensou;
não conheço este major vou falar pouco, que o calado vence. O major insistiu: temos
dez mil provisórios. Tá certo major; são dez mil homens mal alimentados, mal
armados e mal vestidos, o major sabe qual o apelido dos provisórios? Sim, sei; os pés
descalços. Sim major; pés descalços dizem nos gabinetes, que os pasquins da
oposição dizem; pés no chão. O povo já diz; patas no chão. E o major soltou
baforadas e caminhou na volta e elogiou o corpo provisório independente de São
Gabriel. O comandante sorriu, sacudiu a cabeça nada disse, mas pensou; tá mal
armado e nem esta completo. O major Cruzaltino continuou: eu vou convocar os
comandantes dos corpos provisórios independentes de Rosário do Sul e de Don
Pedrito que juntos com o seu, vamos perseguir e destruir o piquete do capitão
Carancho. O comandante sorriu sacudiu a cabeça nada disse, mas pensou; se ele
pensa que eu vou sair campo fora enfrentando chuva, vento e frio atrás de maragato,
ele está enganado. O comandante apertou a mão do major e se retirou. Major
Cruzaltino, pensou, andou na volta, soltou fumaça do charuto fedorento, agachou e
tirou a mala de madeira debaixo da cama.
O comandante do corpo provisório independente de Rosário; homem rude,
sobra da outra revolução, pobre criador de cavalos em campo arrendado, coronel
Santelino, membro do partido: seu major a coisa é difícil, ninguém quer lutar pelos
ideais. Tá difícil de conseguir gente, quem aceita entrar pra tropa quer promessa de
emprego. O governo não tem emprego pra todo o mundo. O major soprou fumaça,
sacudiu a cabeça: eu sei que não é fácil, mas a gente tem que insistir, temos que
combater este capitão Carancho. Concordo com o senhor, seu major, temos que
atropelar... Atropelar? O coronel Santelino ainda era do tempo de atropelar. Depois de
muitas baforadas e muita conversa o coronel se despediu do major dizendo: vou
aproveitar que ando em São Gabriel pra ir pagar uma promessa na Capelinha dos
Afuzilados e depois vou visitar uma prima minha. Depois que o comandante saiu o
major andou na volta soltando fumaça do charuto fedorento, agachou e tirou a mala
de madeira debaixo da cama.
Comandante do corpo provisório independente de Don Pedrito, coronel
Ludovico, embarcou às cinco horas da manhã em Don Pedrito. De Dom Pedrito a São
Sebastião, cinqüenta e cinco quilômetros, às sete horas desceu em São Sebastião e
embarcou no trem que vinha de Bagé, era o P33 que na verdade ligava Bagé a Santa
Ana do Livramento. Às dez horas e cinco minutos, chegou no horário, estava em São
Gabriel dos Afuzilados para se encontrar com o tal major Cruzaltino. Coronel
Ludovico era do partido do governo porque o partido era do governo, ou seja; era a
favor de quem estava no poder, até era pobre, vivia de comprar e vender gado e de
contrabandos e ai a vantagem em ser a favor de quem mandava na lei. O major
Cruziltino e seu charuto fedorento e o comandante até explicou: pois seu major, lá em
Dom Pedrito tem mais maragato que gente. Até já vou falar pro senhor o nosso corpo
independente é pequeno. Major soltou fumaça fedorenta, achou o comandante com
pouco entusiasmo, mas conversaram, discutiram idéias. Depois que o comandante se
retirou o major não pegou a mala de madeira debaixo da cama, pegou papel, pena e
tinta e começou a escrever relatórios.
Enquanto isso em Lavras do Sul a diligência que chegou da estação de São
Sebastião descarregou a sua carga na volta da praça e entre os viajantes estava um
guarda-livros do Banco Pelotense, que logo procurou o coronel Tiburcinho que tinha
promissórias vencidas. Promissórias vencidas, contas a pagar; nada a receber, pouco a
vender, muito que pensar. Lucinha reclamando, querendo a separação, ou o pior;
querendo ficar viúva. Fracassou na defesa da cidade no tão temido ataque do capitão
Carancho; o que seria um ato heróico acabou servindo de chacota.
A revolução, acidentes na ferrovia, trens requisitados para o transporte de
tropas. A diretoria de trafego emitindo circulares e enviando telegramas: prioridade
para trens de passageiros; prioridade para os transportes de material para o exercito,
prioridade para trens com tropas. Um agente de estação reclamou: tem mais
prioridade que trem. As cargas apodrecendo nos depósitos. Lavras do Sul começou a
ficar sem mercadorias no comércio. Vinte carretas na estação de São Sebastião
aguardando os trens. E a cabeça do coronel Tiburcinho trabalhando e ele precisava
prestar um serviço ao governo. Com dois puxa sacos e safados soltou o boato na
cidade e mandou avisar aos carreteiros lá em São Sebastião: um grupo de bandidos,
provavelmente maragatos ia atacar o comboio de carretas e o aviso chegou a São
Sebastião no dia que as mercadorias tinham chegado e estavam sendo transferidas
dos vagões para as carretas. Naquele dia andava perambulando na volta da estação o
louco Limpa Trilhos. Entre os vinte carreteiros correu um diz que diz e um diz que
não diz. Reunião de carreteiros e discute o que fazer e discute o que não fazer, e tá
decidido: passa um telegrama ao intendente de Lavras e ele que arrume gente pra nos
acompanhar na viagem fazendo a segurança. Coronel Tiburcinho sentado num banco
da praça olhando um grupo de guris jogarem o pião e esperando que o telegrama
chegasse e que o intendente apelasse para ele. O telegrafista da estação de São
Sebastião acabou de passar o telegrama e quem chegou à plataforma da estação: seu
Reduzino Malaquias; o capitão Carancho acompanhado do Limpa Trilhos. Primeiro
conversou com os carreteiros, depois passou um telegrama para o coronel Simplício
na estação de Biboca: vou guarnecer comboio de carretas até Lavras. Mandou
telegrama ao intendente de Lavras: povo lavrense fique calmo que carretas têm
segurança. O Piquete Carancho das Três Estradas, seguido das vinte carretas entrou
em Lavras, fizeram a volta da praça l onde foram saudados pelo povo. Telegramas
foram e telegramas voltaram. Um jornal maragato de Bagé estampava na primeira
página: Em vôo de alto civismo o “Condor dos Pampas” conduziu comboio de
carretas.
Ao meio dia chegavam quatro trens de passageiros em Cacequi; Uruguaiana -
Santa Maria, Santa Maria-Uruguaiana, Bagé- Santa Ana, Santa Ana- Bagé. Muito
movimento. Em Bagé tinha um jornal famoso cujo diretor escrevia muito bem e o
jornaleiro do trem que chegava de Bagé já saltava na plataforma gritando o nome do
jornal e dizendo que tinha o escrito do dito cujo, e corriam para comprar o jornal. As
baldeações e confusões e os camareiros orientando e sempre tinha um passageiro que
não entendia. Quem vai para Santa Maria é naquele. Bagé e São Gabriel são neste
aqui. E troca de trem e corre para conseguir lugar e corre passa por um túnel debaixo
da rua e vai ao restaurante em busca de mesa desocupada. Passageiro que não almoça
no restaurante, come no trem o fiambre, famosa a galinha de trem. Garçom do bufe
vende gasosa e cerveja. E tem vendedor de pastel. São quatro trens importantes na
campanha. Quatro maquinistas. Um maquinista pega uma almotolia e vai botar graxa
nos cubos das bracearias, outro com uma estopa limpa os metais da locomotiva, o
outro sabe que o fim da viagem será de noite e limpa o vidro do farol e o quarto olha
o relógio e manda o foguista aumentar o fogo. Quatro tampas de fornalhas abertas,
quatro foguistas; enfia a pá no carvão faz um giro de cento e oitenta graus e atira o
carvão na fornalha e o fogo troveja e a chaminé larga a nuvem escura. Passageiros
ocupam os seus lugares, vão para perto, vão para longe, o trem que sobe para Santa
Maria leva carga humana que em Santa Maria pega o rumo de Porto Alegre no
“Noturno de Santa Maria” ou o rumo norte; Tupanciretã, Cruz Alta, Passo Fundo,
Erechim da bota amarela, Marcelino Ramos. Santa Catarina adentro; com Joaçaba,
Caçador e Porto União da Vitória que Paraná é; Ponta Grossa, Castro e Itararé que já
é no estado de São Paulo e passa Sorocaba e a capital bandeirante. E o trem que vai
para o oeste e corre paralelo ao Rio Ibicuiu e sai do Cacequi junto com o sol: dois que
vão à mesma direção e quando o sol chega ao horizonte ele chega às barrancas do Rio
Uruguai e na Santana Velha que é Uruguaiana larga a carga e alguns se bandeiam
para o outro lado e se vão a Buenos Aires. Carga para Montevidéu segue no que vai
para Santa Ana do Livramento e o outro vai rumo ao Sul, gente que dorme nos hotéis
de Bagé e no outro dia rumam a Pelotas e Rio Grande. E o agente de Cacequi com o
uniforme alinhado, vai para perto do sino e os chefes de trem se preparam para trilar
seus apitos. Batida do sino, sino de bronze brilhando de tão limpo, e o chefe de trem
trila o apito e a locomotiva apita e os cilindros chiam e o trem avança e sai batendo o
sino saudando o Cacequi.
Cacequi chegou um trem especial conduzindo um batalhão provisório de
infantaria. Toque de corneta, gritos de ordens: em forma! Batalhão! Sentido! Sargento
fazendo continência para tenente, tenente fazendo continência para capitão. Tambor
rufando. Ordem: batalhão! Ordinário! Marche! Um, dois. Botinas batendo na
plataforma da estação. Curiosos olhando. Tambor rufando a tropa marchando. A
gurizada,deixou de jogar bola de gude e correu ao lado da tropa, muitos sonhando em
ser grande pra ser soldado. Moças nas janelas. Comerciantes contentes acreditando
que os soldados movimentariam o comércio. Muita moça com a esperança de
conseguir namorado. O presidente do Clube Ferroviário já programando um baile.
Chuva chovendo, chuva mansa, sem tormenta, sem vento, chuva fria. Piquete
Carancho das Três Estradas acampado no mato a margem do Rio Vacacai. Cinco
barracas; três para os soldados, uma para os comandantes e a outra onde
acomodavam a cozinha e o corpo da guarda. Tardinha, naquele dia chuvoso nem a
coruja piou no mato, só se escutava o coaxar dos sapos agradecendo a chuva. Da
barraca da cozinha o cheiro bom de feijão cozido com muito charque, perto do fogo o
Mijão agachado tirava de junto das brasas as batatas-doces que já estavam assadas.
Velho Manduca que era o cozinheiro, mexeu o caldeirão do feijão, deixou destapado
foi buscar o saco da farinha de mandioca enquanto o Mijão pegou o balaio com os
pratos e levou para perto do fogo. Velho Manduca foi até a barraca dos comandantes
e avisou que a bóia tava pronta. É cedo, mas eles enchem o bucho e vão dormir. Tá
certo toca o rancho. Sargento Capincho era o oficial de dia, combinou: tá chovendo
eles ficam em forma dentro das barracas e a gente grita. Combinado e na barraca da
cozinha ficaram o Velho Manduca junto à panela do feijão, Mijão junto ao balaio com
os pratos. Tirou um prato do balaio, olhou o numero escrito em baixo: doze. Na
entrada da barraca o sargento Capincho gritou: vem o doze, vem o doze. Cara
Cortada chegou correndo esfregando as mãos: sou eu. Mijão entregou o prato, ele
parou perto do caldeirão do feijão, Velho Manduca serviu e disse: agacha e pega uma
batata. Pegou a batata doce assada, tirou a colher do bolso e foi ao saco de farinha de
mandioca botar farinha no prato. Depois da janta, depois que cada um trouxe seu
prato já limpo e colocou dentro do balaio, o sargento Capincho passou o cargo de
oficial de dia ao capitão Carancho, sim o comandante também participava da escala.
Também trocaram os dois guardas. Os guardas andavam na volta das barracas,
fiscalizavam o curral, improvisado, onde estavam os cavalos. Capitão Carancho
sentou no chão perto do fogo e o Velho Manduca sentou num pequeno tronco. Velho
Manduca tirou o pedaço de fumo do bolso, a faca da cintura e começou a picar o
fumo. Sapo coaxando, o barulho da água do Vacacai correndo, o grito de um sorro,
chuva chovendo muito devagar, um pingo aqui, outro pingo lá. Capitão Carancho
tomando o mate, Velho Manduca pitando um cigarro de palha e contando passagens
da sua vida; viúvo, três filhos machos, os três casados, dois morando em Santa Maria
e o outro tinha um comércio; uma pulperia na vila de Dilermando de Aguiar. O
senhor é de onde, seu Manduca? Capitão eu nasci e me criei ali no São Lucas, o
capitão conhece? Não, pra que lado fica? Fica pra diante do Cacequi, no caminho pra
Santa Maria, é ali adonde os trilhos serpenteiam perto do Rio Ibicui. Seu Manduca, o
senhor acredita que eu nunca passei do Cacequi pra frente. Mas o capitão tem que
conhecer o caminho de Cacequi até Santa Maria da Boca do Monte, e olhe capitão ali
no São Lucas tem uns lugares bons pra se num acauso a gente tiver a precisão de se
amoitar. Que no caso acima o acauso esta no lugar de acaso, mas no pampa se diz
assim.
Chuva chovendo e uma locomotiva de manobras fazendo barulho no recinto
ferroviário de São Gabriel dos Marechais. Major Cruzaltino escreveu no livro diário,
depois rabiscou alguns telegramas, acendeu o charuto fedorento, esfregou as mãos,
andou na volta, foi até perto da cama, agachou e pegou a mala de madeira, botou a
mala de madeira encima da mesa, deu uma baforada, esfregou as mãos, abriu a mala
e começou a tirar os soldadinhos de chumbo, muitos soldadinhos de chumbo;
começou a brincar de guerra.
Circulares e telegramas recebidos nas estações, nos depósitos de locomotivas,
nas oficinas e nas turmas de conservação da via férrea; solicitavam que os
ferroviários que vissem movimentos de tropas de anarquistas e revoltosos maragatos
que imediatamente avisassem a diretoria. Reações de todo o tipo e de todo o jeito: eu
sou ferroviário, não sou espião. Eu vou me meter em lambanças de maragatos e
chimangos? Já que é pra avisar, eu aviso.
Vento ventando, vento minuano, vento frio, sacudindo as árvores e arrepiando
os passarinhos. O casal de forneiras, sim; forneira no pampa é o passarinho que em
outros cantos chamam de joão-de-barro. Por que forneira? O ninho é estilo os velhos
fornos de barro, aliás, o ninho é feito de barro. O casal de forneiras pousado, triste,
um na porta do ninho o outro encima. No acampamento nos matos do Rio Vacacai,
parado na entrada da barraca o capitão Carancho olhava o movimento; tenente
Terêncio aparava os cascos do seu cavalo, tenente Tiaraju aparava as crinas do seu.
No pampa se diz “quilinas”. Come Égua estendendo um poncho, Mijão ajudando o
Velho Manduca a carregar uma lata com água. Parados perto da barraca da cozinha,
Charles e Andrezito conversavam sobre política, alias, naquele grupo eram eles os
dois os únicos que entendiam alguma coisa de política, isto é: se alguém pode
entender de política. El Paisano de Vichadero, este era o homem de maior presença
no grupo, tinha uma boa estampa, era caprichoso e vestia muito bem, usava dois
revolveres, naquele momento estava limpando um dos revolveres. Vichadero cidade
no Uruguai perto da fronteira. Marcolinão muito desajeitado tentava remendar um
pelego. Marcolinão a cavalo era uma estampa, mas a pé era todo desajeitado.
Marcolinão de João Câncio que muito novo casou com a Maria e na noite do
casamento deu uma tunda nela e disse: pra aprender que aqui quem manda é eu. E a
Maria aprendeu, tanto aprendeu que no outro dia bem cedo fugiu com um guarda-
freio na garupa de um trem de carga e foi morar em Bagé onde o guarda-freio lhe deu
casa, filhos e uma vida boa. O Marcolinão nem se abateu: mulher, bolacha e cachaça
em qualquer lugar se acha. Mudou-se de João Câncio para São Sebastião e lá casou
com a Santinha, esta tal Santinha era muito religiosa, usava mais de vinte
correntinhas no pescoço com medalhinhas de santos e a casa dela era cheia de
imagens de santos colados nas paredes e ela seguia a risca principalmente o: “crescei-
vos e multiplicai-vos”, que mesmo quando o Marcolinão andava viajando tocando
tropas de gado ela tava praticando; São Sebastião teve um telegrafista loiro de olho
azul e a Santinha ganhou um filho loiro de olho azul e teve um telegrafista preto de
olho castanho e ela ganhou um filho preto de olho castanho, quatro telegrafistas,
quatro filhos, quatro pelos. Parecida com o Macolinão só a mais velha; coitadinha.
Capitão Carancho olhando os movimentos e preocupado; precisava inventar alguma
coisa para movimentar o grupo: muito homem junto, longe de fêmeas e parado não é
bom. O Louco do Rodeio Colorado passou diante da barraca da cozinha e gritou: faz
uma carbonada e seguiu resmungando. Tenente Terêncio, que estava agachado
limando o casco da mão direita do cavalo, riu alto e gritou: tá certo o Louco; Velho
Manduca faz uma carbonada. Rindo, limpando as mãos num trapo o Velho Manduca
saiu da barraca pedindo: tenente consiga as verduras. Verduras? Onde que eu vi uma
horta grande. Foi lá no Sodré. O Louco do Rodeio Colorado, que conhecia aqueles
cantos e que era bom observador, disse: horta boa tem na beira dos trilhos, lá nas Três
Divisas. Silêncio e vários olhos se voltaram para o capitão Carancho que riu, pensou
e disse: logo a gente levanta o acampamento e daqui uns três ou quatro dias a gente tá
no Azevedo Sodré comendo carbonada.
Movimento grande no Cacequi. O clarim tocando a alvorada no acampamento
do corpo de infantaria. O sino da estação dando duas badala e avisando aos guarda-
chaves e manobreiros que um trem se aproximava na linha sul. No trem chegado do
porto do Rio Grande, quatro vagões gradeados; vagão gradeado era para o transporte
de gado. Quatro vagões gradeados com sessenta touros de uma raça européia. Ia para
o frigorifico de Santa Ana distribuir para os estancieiros iniciarem a melhoria
genética no seu gado. Correria para desimpedir a linha principal a fim de dar
passagem a um trem especial. Trem militar: esse é verde. Verde porque era do
Exercito. Um esquadrão de cavalaria com destino a estação São Simão. São Simão a
trinta e um quilômetros de Cacequi na linha Cacequi- Rosário- Santa Ana, era onde o
Ministério da Guerra mantinha uma grande área para criar cavalos para os regimentos
de cavalaria; os campos da Remonta Nacional. O Exercito não participava de
revoluções, brigas políticas, o Governo Federal exigia das partes em briga o respeito
às instituições federais. Como prevenir é melhor que remediar, colocou uma
guarnição em São Simão e outra em Saicã. Já que era tempo de movimentar soldados,
no meio da manhã chegou outro trem militar, este com um regimento de infantaria da
Brigada Militar; toque de corneta, gritos de ordens, continências. Na plataforma da
estação a banda em forma; tambores, metais e instrumentos de sopro. Outro trem
chegando com o chamado trem de guerra; pessoal de comando e serviço, cozinheiros,
enfermeiros, estafetas, guarda-livros. Banda tocando, oficiais gritando ordens,
sargentos repetindo as ordens. O agente da estação preocupado que se aproximava à
hora da chegada dos quatro trens de passageiros e aquela milicada atravancando a
plataforma. Uma, duas, três, dez. O coronel estudou a plataforma e ordenou: cinco
em cada ponta. A o lado de fora da estação à gurizada escutava o barulho e tremia de
curiosidade. Um guri burlou a guarda e entrou na plataforma de onde um guarda o
tirou puxando pela orelha. A orelha doeu, mas ele teve a glória e honra de ver e
contar: dez metralhadoras. Ao som e compasso da banda o regimento saiu da
plataforma. As metralhadoras ficaram para os passageiros de quatro trens as verem e
espalharem pelo estado a novidade.
Nem tudo eram banda e música, no trem de Uruguaiana desceu uma mulher
chorando aos prantos; dois filhos mortos num combate no Ibirapuitã. Toda vestida de
preto uma mulher, ainda jovem, perdeu o marido no mesmo combate. Naquele
mesmo trem um vagão especial com três camas com feridos que iam para o hospital
de Santa Maria. No trem procedente de Bagé uma mulher e dois filhos que vinham
da cidade do Rio Grande e ia para Passo Fundo ver o marido e pai que sofria no
hospital devido a ferimentos em combate: sai do Rio Grande ontem de manhã cedo e
só chego a Passo Fundo amanhã ao anoitecer.
Aquele era o dia. No meio da tarde outro trem militar; um batalhão de
infantaria de provisórios: esse é de patas no chão. Vem das colônias lá de perto de
Porto Alegre. Para os oficiais um vagão de passageiros, para os soldados vagões
gradeados; aqueles de carregar gado. Formado no município de Montenegro na
estação Cafundó o Corpo Cafundó de Infantaria. Mais cornetas, mais ordens, mais
continências. Para a alegria dos comerciantes e das gurias mais rapazes na terra.
Nestas alturas nem se olha para os moços do lugar.
Pelos dois flancos a artilharia, formada em linha cavalaria e logo atrás também
em linha, baionetas caladas, a infantaria. A artilharia abre fogo, fogo de barragem, a
cavalaria avança e logo atrás... Não; a infantaria forma na frente... Não... A infantaria
forma em quadrados; quadrados compactos como a infantaria de Napoleão; duas
colunas para formar os lados? Não, uma coluna; as armas são de cartucho... Era o
major Cruzaltino fumando tranqüilamente o seu charuto fedorento e distribuindo os
seus soldadinhos de chumbo. Havia calma e sossego.
Noite fria de lua cheia, o quero-quero gritou, um zorrilho correu e mijou; mijo
fedorento. Em cima de um poste do telegrafo o corujão de orelhas. Ao longe o apito
de uma locomotiva, a plataforma da estação de Azevedo Sodré iluminada por um
fraco lampião a querosene. No céu correu uma estrela e na terra um galo cantou.
Madrugada o Piquete Carancho das Três Estradas contornou o povoado e orientado
pelo vanguardeiro Louco do Rodeio Colorado procurou um lugar no mato do arroio
para fazer o acampamento. Estavam no Sodré para comer carbonada. O sol nasceu o
acampamento já feito, cavalos encerrados, guardas a postos e a grande maioria
deitando para dormir. Dormir, que ninguém é de ferro, tinha viajado toda a noite.
Andavam que nem os gambás e raposas; dormiam de dia e agiam de noite. No outro
dia muito cedo quando o Andrezito e o Louco do Rodeio Colorado tinham recebido a
ordem do capitão para irem até a Três Divisas buscar as verduras foi que o Velho
Manduca avisou: carbonada é com carne fresca, nós só temos charque. Ah é!
Suspende a busca das verduras. Tenente Terêncio junte cinco homens e requisite
gado. Ah isto é fácil! Fácil? Em tempos de revolução! O gado anda escondido e
sempre tem alguém bombeando. Não foi fácil. Para não dar explicações e mesmo
revelar onde andavam requisitaram de noite. De dia andaram bastante até encontrar
gado e estudando qual o lugar melhor de requisitar. Requisitar? Roubar; conseguiram
dois bois e uma vaca velha e descobriram um rebanho bom de ovelhas. Se precisar
ovelha? De madrugada carnearam um boi. O Velho Manduca separou as carnes e o
capitão Carancho mandou que Andrezito e o Louco do Rodeio Colorado levassem
carne para trocar pelas verduras. Que verduras precisam? Ué! Carbonada é arroz com
carne guisada, abobora e couve, repolho e vagem verde. Vagem verde nesta época
não tem. Tá bom vai sem a vagem. Arroz manda comprar ai na pulperia do Sodré. Do
Sodré a Três Divisas nove quilômetros, os dois foram ao tranco, se cuidando e
cuidando os movimentos, o quero-quero sempre anunciando a passagem deles. Horta
bonita, feita junto aos trilhos, bem cercada para as galinhas não invadirem, que
galinha gosta de esgravatar em canteiro e come as folhas das verduras. Era do guarda-
chaves. As estações pequenas tinham três funcionários; agente, telegrafista e o
guarda-chaves, este é que mantinha o recinto limpo e manobrava com as chaves de
mudança de via. Na verdade a horta era do guarda-chaves, mas quem mandava era a
mulher do guarda-chaves. Os dois foram bem recebidos, Andrezito fez a proposta de
troca, a mulher gostou. Carne na região era fartura, mas fartura de muita fartura
mesmo, porém carne viva, que naquela época conservar a carne era difícil; embora os
cientistas já tivessem descoberto que ao se expandirem os gases baixam a
temperatura e, aliás, até já usavam este principio nas grandes câmeras frigorificas a
coisa ainda não era usada em aparelho de uso domestico apelidado de geladeira. Para
conservar a carne fresca por dois três dias botavam numa gaiola e penduravam num
galho alto ou num poste alto. Botavam na gaiola para o gato, os passarinhos, os
gambás, os ratos e até mosca varejeira não pegar. Sim, conservavam muito com o sal;
ou salgada dentro de caixas ou gamelas, ou em forma de charque, o charque é a carne
em mantas; salgada e colocada no sol e vento para secar de forma a formar uma
camada externa mais dura e bem vedada e internamente ficar macia. O charque era
parte da culinária do pampa. A dona da horta conseguiu abobora, couve, repolho,
salsa e ofereceu até alface. O Louco do Rodeio Colorado olhou o canteiro das alfaces
e saiu resmungando: quem gosta de verde é cavalo, quem gosta de verde é cavalo.
Andrezito até foi a estaçãozinha, conversou com telegrafista, conseguiu alguns
jornais e um livro. O livro muito judiado, sem a capa e uma folha rasgada era um
exemplar de “O Vaqueano” escrito por “Apolinário Porto Alegre”.
Caldeirão de carbonada, até o sabiá cantou e o cardeal assobiou, capitão
Carancho deu a missão ao sargento Capincho: vai à pulperia e traz arroz, sal e vinho.
Vinho? Ué! O capitão tá falando sério? Tô sim, e trás uns potes de melado, que a
gente precisa adoçar a boca. Sargento Capincho foi e junto o Marcolinão; pulperia
cheia, na frente algumas carretas e cavalos amarrados no varal, no lado a cancha de
jogo do osso. Os dois falaram pouco e muito escutaram. Vontade de tomar uma
cachaça e tentar a sorte no jogo do osso, só à vontade. Ajeitaram as compras na
cangalha da mula de carga e sabe como é? Touro em campo alheio é vaca. Por aqui
que não tem espinhos, vamos embora. Andando na volta da estação, quem? Boné
vermelho, uma trouxa nas costas: Limpa Trilhos.
No Azevedo Sodré uma estrada que liga Rosário a Santa Maria atravessa os
trilhos. Um faeton puxado por quatro cavalos tordilhos, o banco forrado com um
pelego vermelho, farto de lã, passou a toda, o Juquinha do Banco Pelotense e
encontraram o turco Elias montado numa mula manca e puxando seis mulas de carga;
trocando o “p” pelo “b”: a batricio brecisa de rouba? Sargento Capincho conversou
com velho e amigo mascate, conversa rápida que tempo é dinheiro e seguiu
acompanhado do Limpa Trilhos. Limpa Trilhos era de confiança, chegou fazendo
continência para o capitão com a mão esquerda. Enquanto descarregavam as
encomendas do lombo da mula o sargento contou ao capitão: encontrei o turco Elias e
ele me disse que o Cacequi virou um quartel; tá cheio de milicos de infantaria,
brigadianos e provisórios.
Batida de sino, apito de locomotiva, toque de corneta, barulho de engates
batendo em engates, Cacequi se movia. Crianças com aventais brancos correndo para
a escola. Grupo de soldados fazendo ordem unida. Batida de tambor. A viúva, com
cinco filhos pequenos, fritando pastel. O comércio de pastel estava ajudando a manter
a casa. Viúva de foguista.
Locomotiva, maravilha do engenho humano, rompendo caminhos e
encurtando distancias. Cilindro a vapor; o homem levou séculos para descobrir.
Numa ponta do cilindro uma entrada de vapor, na outra ponta a saída de vapor. O
cilindro empurra um vai-e-vem, o vai-e-vem desliza na horizontal e tem fixa nele
uma alavanca vertical, esta alavanca tem um eixo no meio e na outra ponta uma haste
que abre e fecha a entrada de vapor. O vapor empurra o cilindro para trás este
empurra o vai-e-vem, enquanto o vai-e-vem vai pra trás a haste vai para frente
fechando a entrada de vapor, quando o vai-e-vem começa a voltar para frente à haste
começa a voltar para trás e a abrir a entrada de vapor. Dois cilindros desencontrados
em relação ao vai-e-vem é o mecanismo da locomotiva. Simples, maravilha; uma
locomotiva traciona centenas de pessoas bem acomodadas, uma locomotiva traciona
centenas de toneladas de carga, uma locomotiva traciona o progresso. O maquinista
abre ou fecha o regulador de vapor. Vapor sai da caldeira aquecida pela fornalha e a
fornalha é alimentada por esforço humano. Sim, o foguista; quebrando carvão,
jogando o carvão na fornalha, acionando a alavanca do cinzeiro. A ponte entre o
tender carvoeiro e a caldeira, aberta ao tempo e o vento. Calor no verão frio no
inverno. Ao abrir a tampa da fornalha para botar carvão o calor insuportável, homem
suando, homem adoecendo, gripe, pulmão. Quantos pulmões as fornalhas destruíram?
Muitos.
Pastéis no Cacequi; enquanto tivessem soldados as vendas seriam altas, depois
só o pessoal dos trens.
E chegaram telegramas e chegaram ordens e teve reuniões de oficiais e teve
toque de corneta. Ordens chegadas; o regimento da Brigada Militar seguir para
Uruguaiana, o batalhão provisório de infantaria seguir para Pedras Altas. Não tem
vagões para fazer dois trens. Prioridade para o transporte de tropas. Então mandem
fazer vagões. Não é hora de discutir, o causo é achar a solução. Prioridade para a
Brigada Militar, o trem leva a tropa para Uruguaiana, volta vazio e leva a tropa para
Pedras Altas. De Cacequi a Uruguaiana duzentos e sessenta quilômetros; de oito a
nove horas de viagem: um dia. Volta vazio de noite. Amanhã vai pra Uruguaiana e
depois de amanhã vai para Pedras Altas.
O Cara Cortada sentado no chão limando um osso de garrão de boi o osso de
jogar, Andrezito sentado nos pelegos lendo o livro sem capa e com uma folha
rasgada. Capitão Carancho chamou: Andrezito. Soltou o livro, levantou ligeiro e foi:
pronto capitão. Tchê! Andrezito convida o Louco do Rodeio Colorado e vão lá na
Três Divisas e procura ver se na tal horta da mulher do guarda-chaves tem erva de
chá. Sim senhor; chá pra que doença? O capitão sacudiu a mão: qualquer doença;
estomago, é pode ser, o causo que eu quero que tu batas uma prosa com o teu amigo
telegrafista, o tal que te deu os jornais e o livro e descobre com ele alguma coisa
sobre esta história que o turco Elias contou que no Cacequi tá cheio de milico. Sim
senhor. E o Andrezito foi e voltou com um saco de ervas de chá; chá para estomago,
chá para o fígado, chá para caganeira. E a noticia: os milicos se vão embora do
Cacequi, hoje foi um trem levar um regimento em Uruguaiana e amanhã vai passar
um trem deles aqui levando um regimento pra tal lugar chamado Passo das Pedras
Altas. Opa! Este lugar não existe; tem Pedras Altas e tem o Passo das Pedras, que este
é lá perto de Pelotas. Ah! É pra um desse ai. Com certeza é Pedras Altas, mas isto não
importa. Me procura o Limpa Trilhos.
Cedo à corneta tocou formatura. Moças com os olhos vermelhos da noite mal
dormida. O batalhão provisório de infantaria pronto para seguir viagem. E o trem?
Ainda não chegou; ta voltando de Uruguaiana. Batalhão!Alto. Descansar. E o trem?
Olha tá pra lá de não sei donde. Será que vem vindo? Ou tá parado? Os guris loucos
para vender pastéis às moças loucas para conversar com os soldados e os soldados em
forma. Atenção batalhão: eu vou comandar a vontade, mas vocês não se afastem
daqui, fiquem alerta; batalhão! À vontade. Olha o pastel que tá quentinho. A gordinha
baixinha cabeça inclinada olhando os olhos azuis do magro alto: tu não vai esquecer
de mim. Hora de despedida, hora de juras e promessas. E o trem? Quanto tempo leva
daqui até Pedras Altas? Não tenho idéia. E o comandante conversa com o agente e
trocam informações: de Cacequi a Bagé são duzentos e sete quilômetros e de Bagé a
Pedras Altas são oitenta e seis. É, vai chegar lá de noite. Dependendo da hora que sair
daqui. E o trem vazio chegou a Cacequi à uma hora da tarde. Abastece locomotiva de
água e carvão. Carrega o trem e prepara para o embarque. Trem pronto para sair, mas
tem que aguardar a chegada de um trem de cargas que esta viajando no trecho.
Controle de movimento; é Cacequi, chegou o trezentos e cinco vamos mandar o
especial militar até a estação de Retiro? Sim; confirmada a chegada do trezentos e
cinco, esta liberada a linha até Retiro. Pronto, estação Retiro. Retiro, aqui é o
Cacequi, chegou o trezentos e cinco completo eu peço licença para mandar o especial
militar. Confirmada a licença. Quatro horas da tarde saiu de Cacequi. Maquinista olho
na linha, mão no regulador de vapor, olho no manômetro. Cilindros chiando e pistões
tinindo, o vai-e-vem empurrando a bracearia e a bracearia empurrando a roda motriz.
O foguista no clarão da fornalha, a tampa aberta, joga carvão no fogo que troveja e a
chaminé solta tuchos de fumaça preta. O trem avança e passa em Retiro às quatro
horas e quarenta minutos. O trem corre para o sul e o sol descamba para o oeste.
Passou em Sodré às cinco horas e vinte minutos. Às cinco horas e quarenta minutos
aproximava-se de Três Divisas e o maquinista puxando a corda do apito pedindo
passagem. O telegrafista de Três Divisas solicitou ao controle a licença para o
especial militar avançar até Bela União. Sentado no banco da plataforma da estação
de Bela União o louco Limpa Trilhos, olhos fechados e ouvidos atentos escutou o
agente de Bela União: positivo; pode avançar até Bela União o especial militar.
Limpa Trilhos saiu ligeiro da plataforma pegou uma vara bem grande que já havia
deixado na beira dos trilhos, botou o boné vermelho na ponta e começou a sacudir.
Coisa de maluco. Longe no alto da coxilha, o Sobra do Cati, de pé em cima da anca
do cavalo, mão espalmada acima dos olhos, viu e sacudiu o chapéu. Hora da Ave-
Maria, a coruja piando, pousada em cima do poste do telegrafo. O sol se escondendo
na linha do horizonte, a branca e solitária garça encolhida perto dos trilhos, um bando
de maçaricos voando, o especial militar passou em Bela União nas várgeas do
Inhatium. Maquinista olhos na linha, olhos no manômetro. A sacudidela, o barulho, o
maquinista fechou o regulador de vapor e se equilibrando puxou a alavanca de freio.
O foguista caiu dentro do tender carvoeiro. Mil toneladas de ferro, água e fogo
quebrando dormentes e rasgando a terra. Dezenas de soldados saltaram dos bancos
enquanto os vagões sacudiam. Barulho, gritos, susto.
Tremia maquinista, tremia foguista, tremia chefe de trem, tremia capitão,
tremia tenente. Descarrilou. Abafa o fogo, abre a válvula e libera o vapor. Puxa a
corda do apito e apita pedindo socorro. O guarda-freio vai avisar a estação mais
próxima. Estamos na metade do caminho entre Bela Vista e a Bela União. O
maquinista conhecia o trecho: a gente esta uns quatro quilômetros mais perto de Bela
União. Certo avisa em Bela União. O guarda-freio, com medo, acende o lampião que
já esta ficando noite. Medo da noite? Não; dos maragatos. Enquanto isto ordens são
dadas, um pelotão se posiciona na retaguarda, outro na dianteira. Guarneçam as
laterais do trem. Pelotão a postos.
A cento e cinqüenta quilômetros, dali, no piso superior da bonita estação de
Bagé, na sala dos controladores de movimento, o controlador da linha Bagé a
Cacequi tentava entrar em contato com a estação de Bela Vista. Em Bela Vista o
agente da estação já estava prevendo o pior, combinou com o telegrafista e o guarda -
chaves: é noite de serão. Mandou o guarda - chaves a venda buscar lingüiça: vamos
fazer um arroz de china pobre. O agente de Bela União já notara que estava isolado
do mundo, mandou matar uma galinha: vamos fazer um arroz com galinha e passar a
noite em claro. Cortaram os fios de telegrafo entre São Gabriel e Bela Vista, entre
Bela Vista e Bela União, entre Bela União e Três Divisas e entre Três Divisas e
Azevedo Sodré: filhas das putas. O agente de São Gabriel começou a tomar
providencias: chama o mestre de linhas, prepara uma locomotiva.
De dia os trilhos devido o calor dilatam, à noite quando a temperatura baixa os
trilhos encolhem e encolhem fazendo barulho. Quem caminha sozinho em beira de
trilho, de noite, leva susto, agora imagina quem caminha com medo. Sacudindo o
lampião o guarda-freio seguia até Bela União com medo até da própria sombra: ai
meu Deus! Tremeu e sentiu vontade de urinar. Um zorrilho pulou na frente dele e
correu pela beira dos trilhos. Pousado no poste do telegrafo o corujão de orelhas piou:
o bicho agourento vai agourar a tua avó. Opa! Um vulto: Jesus Cristo me ajude. O
vulto esta no meio dos trilhos. É um maragato. O maragato dá um grito, o guarda -
freio faz meia volta, tropeça na ponta do dormente, cai, quebra o lampião, levanta
suando frio e dispara. Limpa Trilhos solta a trouxa em cima dos trilhos e fica
espiando o medo do guarda freio.
Em São Gabriel o manobreiro bateu no vagão escritório do major Cruzaltino e
avisou: provavelmente aconteceu alguma coisa com o trem militar. Acendeu o
charuto fedorento, correu a estação, voltou afobado ao vagão escritório, mandou o
cozinheiro ir chamar o comandante do corpo provisório independente. O cozinheiro
saiu resmungando: merda! Sou cozinheiro, não sou estafeta e nem ordenança. É, boa
noite senhora, o comandante... Tá no clube jogando, se não tiver no cabaré da Guapa.
Tava no clube jogando gamão. A fumaça fedorenta do charuto o major, barriga para
dentro, peito para fora: comandante um trem militar esta desaparecido. O quê?!
Afobado o guarda - freio chegou ao local do acidente e contou: um maragato
no meio dos trilhos... Gritou ordem pra eu parar... Disparei... Acho que escutei um
tiro. Afobação entre os provisórios: alerta! Tropa inimiga avança pela retaguarda,
vamos posicionar pelotões. Soldado com fome e frio, tropeçando em trilhos e
dormentes. Um tenente tateava no escuro e tentava ver ao longo da linha, nada viu,
pegou o binóculo e ai sim não viu coisa nenhuma, deixou o binóculo cair e perdeu.
Binóculo que depois o Limpa Trilhos teve a alegria de achar; mais uma bugiganga
para a trouxa onde carregava sua riqueza de pobrezas. Olha lá disse o chefe de trem e
apontou para o campo. Afastado do trem acidentado cerca de quinhentos metros
tenente Terêncio e dois soldados cravaram muitas varas com a altura de um ou dois
metros com tuchos de pasto ou pedaços de pano na ponta e acenderam fogo. Deram
dois ou três tiros para o alto e se afastaram ao galope. Na beira do trem um capitão
ordenou que o pelotão abrisse fogo. Os quatro ferroviários subiram para a locomotiva
e se agacharam dentro do tender carvoeiro.
Afastados da linha férrea um rancho de barro, coberto de palha, um curral feito
de varas e um galpão também feito de barro e coberto de palha. No curral os cavalos,
no racho uma negra gorda e risonha fazendo rodas de carreta enquanto uma loira
sardenta e magra fritava as rodas de carreta, dentro do galpão, sentados nos pelegos,
recostados na parede os homens de Piquete Carancho das Três Estradas tomavam
café com leite e comiam rodas de carreta fritas. O que é roda de carreta? Massa de
pão aperta bem, afina e corta um circulo do tamanho de um prato; frita.
Trem socorro vindo do Cacequi, locomotiva de manobra levando tucos e o
mestre de linhas de São Gabriel. Macacos, alavancas e bimbarras. Lampiões e tochas.
O mestre de linha analisou a causa: soltaram os trilhos; tiraram os grampos que
prendem o trilho no dormente. Trilhos no lugar; trem nos trilhos, fogo na fornalha e
vamos desentupir as linhas.
Empurrando um trole com uma escada e um rolo de fios o guarda-fio de olho
na linha telegráfica e olho bem aberto. Cortavam o fio junto ao poste e faziam um
ganchinho na ponta para fixar no poste, dificultando encontrar o defeito. Maragatos
guampudos; filhos da puta. Linhas concertadas e lá vai telegrama e lá vem telegrama.
Um soco na mesa no Palácio Piratini, um ponta pé numa cadeira no gabinete do
secretário e coices e mais coices na parede do vagão-escritório.
Ordens e contra ordens, circulares e boletins internos e ficou decidido que o
corpo provisório de infantaria que estava em Cacequi fosse dividido em pelotões e
estes pelotões distribuídos nas estações do trecho de Cacequi a Bagé. Gente da linha
de Cacequi a Santa Ana do Livramento e gente do ramal de São Sebastião a Don
Pedrito reclamou; também queriam guardas nas estações. Ora bolas! Se for botar
guarda em todas as estações, tem que pedir gente, emprestada, em Santa Catarina.
Tira o corpo provisório do Cacequi, tem que organizar outro: mas nem precisa fazer
seu major, estamos aqui para servir a lei, sou soldado do partido. Corpo de
cavalarianos formado na frente da estação de São Gabriel e o comandante; coronel
Tiburcinho, chapéu de abas bem largas jogado para a nuca, poncho jogado para as
costas, barriga encolhida, peito para frente, uma continência de gesto largo e soltando
o verbo a pleno pulmão, dentro do vagão escritório se apresentando ao major
Cruzaltino: Corpo de Cavalaria Independente Guapos de Lavras, pronto para assumir
a guarda do Cacequi, um importantíssimo entroncamento ferroviário do Rio Grande.
Lhe garanto seu major que lá este capitãozinho Carancho não bota as patas. Mando
enterrar vivo pra não gastar bala e nem sujar fio de faca.
Coronel Tiburcinho comandando a guarda do Cacequi. Pelotões distribuídos
nas estações do trecho Cacequi a Bagé. A coisa andava até calma. Ninguém sabia
noticias do capitão Carancho e por sorte ele não andava incomodando. Depois que
descarrilou o trem, ficou mais de dez dias no Inhatium , descansando e tomando café
com roda de carreta frita. Depois foi lá pra perto de Cacequi, acampou nos matos do
Rio Cacequi e de longe foi informado da colocação de guardas nas estações e da
gloriosa chegada do coronel Tiburcinho no Cacequi.
Saindo de Cacequi para Santa Ana do Livramento a dez quilômetros a estação
Entroncamento, daí sai à linha para Uruguaiana, já na linha de Uruguaiana a três
quilômetros de Entroncamento a estação Saicã. E foi em Saicã que degolaram um
casal de velhos. E alguém espalhou o boato que a degola tinha sido serviço do
Carancho. O jornalzinho chimango da vila do Cacequi e o pasquim chimango de
Rosário espalharam a noticia; maragato degola velhos no Saicã. O bandoleiro
Carancho faz uma sangrenta degola. Mexeram com quem estava quieto; cutucaram a
onça com vara curta.
Seu Reduzino Malaquias não gostou, no Entroncamento com o agente da
estação conseguiu os jornais, leu, bufou de brabo e tocou até a estação São Simão e
ali acampou. Ali era área do Exercito e ninguém iria mexer com ele. De São Simão
mandou telegramas atrevidos para o delegado de Rosário e para o subdelegado de
Cacequi: resolvam o causo com urgência. Não sou homem de derramar sangue
inocente. Para a estação Biboca mandou um telegrama ao coronel Simplício: estão
fazendo calunia comigo, vou reagir. E os delegados agiram rápidos e o verdadeiro
assassino foi descoberto. E o pasquim maragato de Rosário saiu com a notícia:
tentam deter o vôo do Condor das Três Estradas com mentiras.
Caso resolvido era o momento de deixar São Simão que não era bom abusar e
nem ficar dando sopa na crista da coxilha. Esse dar sopa na crista da coxilha significa
o inimigo saber onde a gente anda. Levantou o acampamento e seguiu costeando os
trilhos no rumo de Rosário e a vinte quilômetros de São Simão chegou à estação
Côrte ai até foi a pulperia do lugar e nem requisitou mercadorias em nome do tal
comando revolucionário, tinha alguns couros dos animais que carneava para
consumo, negociou os couros por fumo e erva mate para uso do piquete. Aquele dia
acampou em Corte e foi de noite na barraca do comando, jogando o truco com o
tenente Terêncio, tenente Tiaraju e sargento Capincho. Truco! Retruco. Tenho flor.
Invido. Flor e truco. Capitão Carancho teve a idéia: A gente nos bamos para o Campo
Seco. Se fica no meio de São Gabriel, Rosário e Don Pedrito. O que o capitão quis
dizer foi que o Campo Seco fica mais ou menos no centro do triangulo formado por
Rosário, Don Pedrito e São Gabriel: bueno, lá do Campo Seco se provoca esta gente,
com certeza os três corpos provisórios destes lugares vão sair pra nos caçar e ai
quando eles estiverem perto a gente se mete nos matos do Rio Santa Maria e
gambeteia pra sumir no mundo. Terêncio achou arriscado, Tiaraju ficou calado e
Capincho: eu não sei de nada, mas quem ta na chuva é pra se molhar. Terêncio disse
que achava arriscado: mas eu tou aqui pra cumprir ordem. Opa a gente é do comando
a gente pode trocar idéia. Idéia veio, idéia foi, pelo sim, pelo não, com a palavra de
bamos já se fumo. No outro dia bem cedo o capitão foi à estação de Côrte e ditou o
telegrama: coronel Simplício, estação Biboca; sigo para o Campo Seco.
Em Biboca não apareceu nenhum coronel Simplício para buscar o telegrama,
mas uma cópia do telegrama caiu nas mãos do major Cruzaltino. Baforadas do
charuto e ele andando na volta dentro do vagão escritório. Era bom de mais para ser
verdade; o Carancho revelando para onde ia, pelo sim, pelo não; tinha que acreditar
ou verificar. Chamou o comandante do corpo provisório independente de São Gabriel
para discutir como proceder. Mapa da região estendido encima da mesa o major
apontando com o charuto: Campo Seco, aqui se bifurcam três estradas, uma pra Don
Pedrito, outra para Rosário e uma para São Gabriel; os três corpos de cavalarianos
convergem para lá, cercam o Carancho e a gente depena o bicho. Bugio do Batovi,
comandante do corpo provisório independente de São Gabriel, passou a mão no
queixo, pensou: eu ir brigar lá no Campo Seco? Seu major desculpe, mas eu acho
melhor eu ficar com os meus homens guarnecendo aqui. Pode ser uma artimanha do
Carancho; eu desguarneço São Gabriel e ele invade a cidade. É, tem esse detalhe, mas
eu vou botar os coronéis Ludovico e Santelino em alerta e se for o caso eu boto os
dois na caça ao Carancho. O senhor é quem sabe. Baforadas e mais baforadas de
fumaça do charuto fedorento: comandante eu preciso que o senhor me consiga dois
mensageiros de confiança, vou mandar mensagens para Don Pedrito e para o Rosário,
vou tratar o assunto com mensagens que é mais seguro que telegramas. Pode deixar
que eu consigo, e tem mais; com a permissão do major eu vou mandar uns dois ou
três homens ao Campo Seco para verificar se de fato o safado do Carancho anda lá.
Positivo comandante, vamos manter vigilância na área e mensageiros trazendo as
informações que daqui nós vamos orientar o combate. Tá certo major. Vou conseguir
os mensageiros, vou conseguir os espiões e vou organizar pontos de guarda em torno
de São Gabriel, que bem pode a gente tá esperando o Carancho lá no Campo Seco e
ele nos pega aqui de calças na mão. Combinado. O comandante Bugio do Batovi
pediu licença e se retirou. Major deu de mão em pena, papel e tinteiro e começou a
rabiscar mensagens.
Campo Seco e os campos estavam secos, fartura de pastos, mas amarelos
castigados da geada e do vento sul. Pulperia grande, bem abastecida; na frente cinco
grandes carretas, cada uma com seis juntas de bois, muitos cavalos amarrados nos
varais, alguns cachorros e gente dentro e gente junto à cancha do jogo de osso. Ali a
estrada, vindo de sul para o norte, formava um “Y”, o braço da direita, logo adiante,
atravessando o Rio Santa Maria e rumando a nordeste até São Gabriel; o braço da
esquerda abrindo para o noroeste até Rosário. Os cachorros levantaram as cabeças,
estenderam às orelhas, os cavalos levantaram os focinhos, os cachorros latiram. Três
ou quatro saíram de dentro da pulperia, do lado da cancha de jogar o osso alguém
disse: força maragata.
Duas colunas, na frente o Louco do Rodeio Colorado empunhado a bandeira, o
Piquete Carancho das Três Estradas se aproximava vindo dos lados de Rosário, parou
no ponto de bifurcação ou como se dizia lá no Campo Seco, parou na encruzilhada e
depois seguiu no rumo de São Gabriel. Na pulperia os palpites e comentários: mas é
pouca gente, eu pensava que ele andava com mais de mil homens. Nunca se sabe,
pode já ter gente escondida ai no mato. Pelo jeito ele vai atacar São Gabriel. Ué! Mas
tá louco tchê! Com esta meia dúzia de gatos pingados e leva uma tunda de pau.
Enquanto discutiam e davam palpites o piquete acampou junto à estrada e perto do
Rio Santa Maria. Três cavaleiros saíram da pulperia a todo o galope, cada um para
um rumo.
No vagão escritório o cozinheiro através de um furo na parede escutava o
major Cruzaltino traçar planos com o Bugio do Batovi: Em dois dias o corpo de
cavalaria independente e provisório de Don Pedrito já vai tá no Campo Seco. O corpo
de Rosário já esta em marcha e logo a noite já acampa perto do Campo Seco. É desta
vez que vamos despenar o Carancho.
No Campo Seco, no acampamento, sentados nos pelegos, dentro da barraca de
comando, jogando o truco com as bravatas de sempre: e eu truco! Ah é? Pois eu
retruco! O Sobra do Cati chegou ao trote parou na frente da barraca, desmontou ficou
segurando o cavalo pela rédea e avisou: capitão, a tropa do lado do Rosário tá vindo,
tão acampando na Fazenda do Curral. Parou o jogo do truco, os quatro levantaram ao
mesmo tempo e cercaram o Sobra do Cati com muitas perguntas: quantos são? Ah é
brabo de se saber, mas não é mais que quarenta. Acamparam na beira da estrada?
Não, se arrancharam no galpão da fazenda e a cavalhada eles botaram na mangueira.
Tem lanceiros? Não vi lança, acho que não. O capitão coçou a cabeça, andou na volta
pensou e disse: tu voltas para lá, leva junto o Mijão e fiquem cuidando os
movimentos deles. E nós vamos reforçar a vigilância, deixar os cavalos embuçalados
e amarrados. E amanhã cedo à gente desmancha as barracas e apronta a carga das
mulas.
O cavalo com o buçal fica com a boca livre para pastar e amarrado com o laço
tem a liberdade de pastar dentro de um circulo com o raio de doze braças.
E cedo desmancharam barracas e aprontaram as cargas e ficaram perto do
mato. Depois do meio dia é que o Paisano de Vichadero chegou avisando: los de Dan
Pedrito estan chegando. E chegaram e acamparam uns dois quilômetros antes da
encruzilhada, na beira da estrada. Capitão Carancho esfregou as mãos: pensei que
eles iam acampar mais lá pra trás, mas ta bueno, tá especial de bueno.
Pouca gente andando na estrada e de longe os bombeadores bombeando os
movimentos dos contrários. O comandante pedritense foi ao encontro do rosariense,
se apresentaram se conheceram se olharam se calaram e pensaram: é. É. Esfregaram
as mãos, olharam para os lados: é. É, pois é. O maragato tá lá perto do rio, ta na beira
do mato. É. É, pois é. Eu nunca lutei no mato. E eu nunca lutei em lugar nenhum! E o
pessoal de São Gabriel não vem. Ora o Bugio do Batovi é macaco velho e não bota a
mão em cumbuca. E quantos homens o senhor tem? Eu tenho trinta e cinco; e o
amigo? Eu estou com trinta e um; total de sessenta e seis. O Carancho deve ter uns
trinta; ai é dois por um. O senhor chegou de Don Pedrito hoje, deixa a sua gente
descansar e amanhã a gente traça um plano de guerra.
Andrezito e Velho Manduca voltaram da estrada para São Gabriel trazendo a
informação: na estrada de São Gabriel não vem tropa nenhuma. Vêm dois carreteiros
e a gente perguntou se eles viram algum movimento e eles responderam que não.
Capitão Carancho reuniu com os três; Terêncio, Capincho e Tiaraju. Esta noite
podemos fazer três coisas; tocar retirada que estes dois, que estão aí, não vão nos
incomodar. Outra coisa; esta noite a gente até pode assustar este acampamento do
pedritense. Outra coisa; esta noite a gente pode preparar o campo de luta e amanhã
chamar este dois pra uma briga. Qual a opinião de vocês?
E toda a noite soprou um vento fraco, mas vento sul, ou seja, o vento secador,
secando mais os pastos secos. Antes de clarear o dia o Velho Manduca e Mijão saíram
a trote com as mulas de carga; o chamado trem de guerra, rumo ao sul pela estrada de
Don Pedrito.
E ao sair do sol as sentinelas do acampamento pedritense deram o alerta e deu
o corre - corre o diz que diz e a ordem de desmanchar acampamento. O comandante
Ludovico com a mão espalmada acima dos olhos, olhando para o sul; cerca de
trezentos metros do acampamento, entre a estrada e o mato do rio o piquete inimigo
estava pronto para alguma ação. Os trinta homens do Piquete Carancho das Três
Estradas estavam em linha, cada homem posicionado dez metros um do outro, ou
seja, uma linha de trezentos metros. Alguns sentados no chão, alguns fumando, os
cavalos encilhados com as rédeas frouxas para pastarem tranqüilos. O comandante
Ludovico até tremeu as pernas; não de medo, mas de insegurança: o quê que eu faço?
Quem tem amigos não morre pagão, botou a tropa em forma, passou o comando a o
subcomandante, montou a cavalo e correu ao acampamento do corpo de Rosário.
Os quero-queros nervosos, de vez enquanto um gritava. Os urubus voando em
círculos, pousados numa arvore seca um casal de caranchos. Uma lebre correu, um
bem-te-vi cantou no mato. Três carretas, grandes, de duas rodas, cada carreta puxada
por cinco juntas de bois. A carreta usada no pampa era a de duas rodas; a de quatro
rodas era usada nas colônias. Aguilhada no ombro, pés descalços, bombachita
remangada o carreteiro bombeou pra diante, e disse: oche boi, para boi. Três carretas
paradas e três carreteiros olhando uma cena diferente no Campo Seco: é vai dá pau;
maragatos e chimangos. Tiraram as carretas da estrada, desprenderam os bois e foram
juntar lenha para o fogo; hora de parar que ninguém é maluco pra entrar em meio de
briga.
Os dois comandantes olhando o inimigo; a gente é o dobro deles e eles estão
nos desafiando, ou é coragem dele ou ele acha que a gente é muito maturrango. É,
pois é! E os dois comandantes enxergaram e não viram e viram e não enxergaram e
botaram os dois corpos em formação. Formação em linha. O coronel Lodovico,
afirmou: Ele não vai nos esperar, quando a gente avançar ele dispara para o mato. O
coronel Santelino, coçou o queixo: bueno, mas de qualquer jeito atropelemos. Sim a
gente ataca, se eles forem para o mato a gente para. Sim, mas atropelar, nós vamos
atropelar. Combinado eu vou pela ponta virada para o mato e o senhor vai para a
ponta virada para a estrada, o senhor dá a ordem. Tá bem, eu levanto a espada e baixo
ela gritando a ordem. Combinado.
De longe os carreteiros olhavam. Como os soldadinhos de chumbo do major
Cruzaltino estavam frente a frente; os homens do capitão Carancho desmontados e
formados numa linha na qual cada um estava separado dez metros do outro. Os dois
corpos de cavalaria também formados em linha, montados, os dois comandantes,
cada um numa ponta da linha.
Capitão Carancho viu o movimento do inimigo e gritou: É JÁ. E os homens
acenderam tochas e começaram a botar fogo no pasto seco. E Neste momento o
comandante rosariense, pegou a espada, vacilou, olhou as primeiras fumaças, puxou a
espada da bainha, pensou, vacilou, a fumaça aumentava, levantou a espada: ataco ou
não ataco? Tremeu o braço, olhou para os lados. E os outros; lá tocando fogo no
campo. Baixou a espada gritando: ATACAR.
Os mais afoitos avançaram a toda corrida, outros meio que vacilaram, um
deixou cair o fuzil. Ligeiro aumentava a cortina de fumaça.
Os homens do Carancho montaram rápidos e saíram dando tiros para cima ou
para o meio da fumaça e rumaram em fila para a estrada.
O comandante pedritense puxou a rédea a parou o cavalo. Os dois corpos de
cavalaria entraram no meio da fumaça, alguns atirando.
Capitão Carancho e seu grupo pegaram a estrada viraram rumo sul e: adeus tia
Chica Marculina que eu vou embora, eu não sou daqui, sou lá de fora. Enquanto os
dois corpos atravessavam à fumaça, cavalos refugando, olhos lacrimejando e o pior
logo depois da fumaça os mundéus ou cama de gatos; estacas com cerca de oitenta
centímetros de altura, cravadas, e amarradas entre elas, tiras de couro, quatro a cinco
linhas e perto umas das outras. Cavalo refugou e parou de golpe e ginete caiu, cavalo
refugou e parou e ginete se manteve montado e cavalo não conseguiu parar e saltou
por cima das tiras, e cavalo enfiou as patas nas tiras de couro e rebentou e cavalo se
enredou e caiu, ou como se diz no pampa: rodou e o ginete caiu e se machucou.
Ninguém morreu, dois quebraram o braço, cinco quebraram costelas e um
quebrou a perna e até teve muita sorte por que o cavalo caiu e levantou e disparou
com ele arrastado por ter ficado com um pé preso no estribo.
O combate do Campo Seco foi uma escaramuça, não rendeu socos na mesa,
ponta pés em cadeira e coices na parede. As noticias foram poucas e mais baseadas
nas versões dos comandantes. O major Cruzaltino fumou o charuto fedorento,
resmungou o; minha culpa, minha maior culpa. Tinha que ter convencido o Bugio do
Batovi a participar do combate, com os três corpos tinham depenado o Carancho.
Minha culpa, minha maior culpa; eu devia ter ido ao local e organizado e comandado
o ataque. O fato rendeu poucos telegramas e menos cartas, mas o major recebeu uma
carta importante, a qual o senhor secretário pedia o máximo de atenção, o máximo de
dedicação e o máximo de empenho. Convocou o Bugio do Batovi. O comandante
levou dois dias a aparecer, pois andava resolvendo negócios particulares; andava
tratando do arrendamento de terras. Estava arrendando uma terceira fazenda,
contando com a fazenda de sua propriedade a qual ganhou de herança, já estava
administrando quatro fazendas, ou seja; mais de seis mil hectares de terras. Entrou no
vagão escritório pedindo desculpas, o major Cruzaltino apenas sorriu: sente
comandante que temos algo importante a conversar. Pois comandante o governo tem
gastado muito com esta revolução e temos muitas bocas para manter, o governo pede
compreensão e ajuda de seus correligionários; precisamos de gado e cavalos. O Bugio
do Batovi sacudiu os braços: major gado a gente requisita nas fazendas dos
contrários, esta é a lei da guerra; se é que guerra tem lei. Eu compreendo senhor
comandante, mas os inimigos estão escondendo o gado. Olha major; manter guerra a
churrascos isto era no tempo da Guerra dos Farrapos e este tempo já se perdeu na
curva do tempo, mas vamos ver o que fazer. O Bugio do Batovi se despediu do major
e foi dar jeito no que fazer e tinha que agir rápido. Ora fornecer gado pra alimentar os
provisórios! Entrou em casa, afobado, trocou de roupa, botou algumas roupas numa
mala e anunciou que iria viajar. A cozinheira perguntou se queria uma galinha de
trem. Galinha de trem? É galinha frita e passada na farinha de mandioca crua e boa
viagem e bom apetite. Não, não quero, eu almoço no Cacequi. Dez horas da manhã
estava na bilheteria da estação de São Gabriel: uma passagem ida e volta de primeira
classe a Santa Ana do Livramento. Dez horas e cinco minutos já estava dentro de um
vagão de primeira classe no trem “P33”. A o meio dia já no restaurante da estação de
Cacequi manteve os primeiros contatos. Às sete horas da noite desembarcou em
Livramento já com os endereços que precisava no bolso. Passou dois dias na fronteira
e acertou o negocio de arrendar campo no Uruguai, com esta medida tirava o gado do
Rio Grande e não corria o risco de ter o gado confiscado nem por maragatos e nem
por chimangos e também aliviava os campos para se recuperarem e depois de
terminada a tal revolução ele ia se dedicar a melhorar o seu rebanho. De volta a São
Gabriel a primeira coisa a fazer foi ir a um boteco na beira dos trilhos para conversar
com o dono; o mulato Ananias. Ananias; o melhor dos tropeiros, bom no laço, bom
nas boleadeiras, bom no revolver, melhor na adaga, amigo dos amigos, inimigo dos
inimigos. O coronel em boteco de pobre; até periga chover canivete. Ananias, eu não
sou coronel e nem sou milico; eu sou um lutador. Tá certo coronel, vai uma cachaça?
Fica pra outro dia. Ananias, eu preciso de um favor do amigo. Se tiver no meu
alcance... Pois, Ananias, eu preciso conversar com o Carancho. Ananias franziu a
testa recuou dois passos, olhou para os lados: com o meu amigo Carancho? Sim, é
com ele mesmo. Epa coronel, devagar com o andor que o santo é de barro; o senhor é
chimango e o meu amigo tá com os maragatos. Ananias no causo o assunto nada tem
que ver com a política, pode ter confiança em mim, vê se consegues um encontro
meu com o teu amigo.
O encontro foi num rancho de torrão, coberto de palha no Inhatium, os dois
sentados a uma mesa rústica, sentados em bancos toscos; tomando café com leite e
comendo roda de carreta frita. Comeram bastante e pouco conversara. Carancho
desconfiado e curioso, mas se mantendo distante. O Bugio do Carovi, fazendeiro e
advogado, partiu para o assunto sem muitos rodeios: capitão preciso da sua ajuda, ou
melhor, da sua compreensão; eu vou mandar o meu gado para o Uruguai e vou cruzar
a fronteira lá na Serrilhada e como esta é a região que o senhor age e comanda... O
que isso doutor? Desculpe; eu não comando região nenhuma. Comanda sim. E eu
estou pedindo licença para meu gado atravessar o seu território. Reduzino Malaquias
pediu mais café à cozinheira. Entendeu o pedido de licença; ou seja, não atrapalhe a
minha tropa de gado e nem me roube nenhum boi. Negócios são negócios: bueno!
Coronel o senhor manda em São Gabriel e eu preciso entrar em seu chão. Epa!
Capitão o seu preço é alto, o senhor quer invadir São Gabriel. Oh coronel! E alguém
comandando trinta gatos pingados invade algum lugar? Eu quero é levar os meus
soldados para visitarem as casas de chinas; dançar, beber, rir, sentir o cheiro de fêmea
que afinal das contas eles já tão bem crescidos para tarem comendo égua. Tá certo
capitão, mas os jornais maragatos vão alardear que o senhor invadiu São Gabriel.
Bueno! Isto não prejudica em nada de nada a cidade e pra mim é bueno porque
mostra pros meus chefes que eu estou trabalhando. É... Esta bem, não é difícil de a
gente entrar num acordo.
Quero - quero gritou, a coruja em cima do tacuru vira e revira a cabeça, um tatu
atravessa a estrada correndo, urubus voam em círculos. O gado caminha lento, o
tropeiro da ponta não para de gritar chamando a tropa: veeeem boooiiii. Mais de três
mil cabeças de gado. Tem de um tudo; touro, boi, vaca, novilho, terneiro. O boi velho
das guampas grandes caminha com dificuldade, a vaca mãe do terneiro pequeno para
a todo instante e se vira para olhar a cria. O relho estala o tropeiro grita. Um lote de
pampas colorados muito bonito. No pampa, gado pampa é o que tem a cara branca.
Um lote de caracus, refinado, gado muito feio mais guampa que corpo, gado gordo,
gado magro. Dois quero-queros voam atrás de um carancho tentando acertá-lo com os
esporões da assas, com certeza o carancho estava rondando o ninho deles. Na figueira
solitária a beira do caminho o sabiá cantando e o bando de caturritas que voa em
algazarra. E a tropa se arrasta levantando poeira rumo à fronteira. E o caminho
atravessa a várzea do Rio Upacarai, e encontra um açude onde a traíra dá rabanadas, e
o gado mata a sede e o ratão do banhado dispara para o meio dos aguapés. O casal de
tarrãs bate assas e o pesado corpo alça vôo. Lá adiante o mato que indica que tem um
arroio a frente. E no mato do arroio um grupo de bugios faz sua algazarra. E a tropa
atravessa o mato e no mato tem aroeira e é de manhã e o tropeiro que tem alergia a
aroeira, cumprimenta: boa tarde aroeira. Que a simpatia para se livrar das alergias
provocadas pela aroeira é a cumprimentar com o cumprimento invertido; de manhã é
boa tarde, de tarde é bom dia. A tropa atravessa o arroio e o gado bebe água e o
tropeiro tira a guampa cantil que carrega a meia espalda, destampa e bebe um gole de
cachaça. O relho estala, o gado bate guampas, o boi pampa colorado dá um pulo e
atropela o cavalo do tropeiro. Pousado num tronco seco a beira da água o Martim-
pescador cuida o movimento dos lambaris. A tropa de gado avança. Longe a zoada
dos bugios, pousado encima da casa, feita na forquilha do salso-chorão, a forneira
bate as assas com bastante energia e canta. No meio do mato o assobio, bonito, do
cardeal. A água fica turva e a tropa vai passando. O terneiro cai dentro da água e o
gado redemoinha. Estala o relho, assobia o tropeiro. A estrada é um risco no meio do
tapete verde amarelado, sobe suavemente o ondulado da coxilha. A estrada se espicha
no plano, longe sobe a coxilha e some aparecendo bem mais adiante, lá onde se move
um vulto. Carreta? Não; vem muito ligeiro. Titico sabe: é a diligência que vem de
Vichadero e vai pra Bagé. A perdiz levanta vôo assustando o boi preto. Muitos quero-
queros voam tentando atingir um carancho que voa em retirada. A diligência vem
perto e o velho Juca Perneta atropela o cavalo, faz meia volta e vai abrindo a tropa
para dar passagem. E a tropa segue e o boi velho cansado sacode a cabeça e baba. E o
gaviãozinho que no pampa é chamado de chimango, voa alto e de repente bica para
baixo e desce em alta velocidade, perto do chão espicha as patas, inclina o corpo com
agilidade e começa a subida levando presa nas unhas uma cobra que desesperada
sacode cola e cabeça. Que olho! Lá das alturas ele viu a cobra. Ele é safado, ele ronda
as casas pra pegar pinto. No campo tem cobra? Tem; tem a cobra verde, tem a
parelheira que também é chamada de papa-pinto, tem a jararaca. E vem um á cavalo,
e se afasta para fora da estrada, dando passagem ao gado, e fica montado, corpo
inclinado pra frente e o chapéu caído sobre os olhos: vem fugindo da policia. Eta
língua! E o capataz levanta o braço e grita: bueno, bamos parar pra bóia. E para a
tropa e os tropeiros apeiam e os tropeiros mijam e os tropeiros afrouxam os arreios
para aliviar os cavalos. São dezoito tropeiros e se reúnem para o almoço e o capataz
da tropa abre uma maleta feita de pano e distribui uma lata de sardinha para cada um
e meia dúzia de gajetas. Gajeta é bolacha. Cada um puxa a faca da cintura e vai à luta
de abrir a lata de sardinha. Todo o pampiano tem sua faca, e cada faca é de um tipo, e
cada faca é mui buena e cada faca tem um causo. Os mais prevenidos carregavam
uma colher, diziam cuié e pegavam a cuié com a mão fechada, todos os dedos
abraçando a colher e quando ia até a boca ia sacudindo e espalhando migalhas. O
Mané do Azevedo Sodré era relaxado até pra cuidar uma colher, se tivesse uma moita
de gravatás por perto ele improvisava uma colher com a folha do gravatá.
De longe o capitão Carancho e seu piquete acompanhavam a tropa. Já que ele
tinha um acerto com o Bugio do Batovi que era o dono do gado era bom olhar a
viagem, antes que alguém fizesse algum mal a tropa e botasse a culpa nele. Não
disseram que ele degolou os velhos no Saicã? Cria fama e deita na cama; cria fama e
a inveja te joga na lama
O gado entrou no Uruguai e o Piquete Carancho das Três Estradas foi a
Serrilhada no ponto de apoio onde o tesoureiro do partido, pagou o soldo da tropa.
Com dinheiro na guaiaca. Guaiaca é um cinto pampiano, cinto largo, geralmente com
uma fivela bonita e cheio de bolsinhas; para carregar o dinheiro, o isqueiro, o fumo,
documento. Então, com dinheiro na guaiaca, o grupo rumou a São Gabriel. Como as
estações da linha Bagé a Cacequi estavam guarnecidas, o capitão parou na estação de
Leões, no ramal de São Sebastião a Don Pedrito e passou um telegrama ao coronel
Simplício na estação Biboca: Sigo terra dos marechais. Este telegrama como os
outros não foi procurado pelo coronel Simplício, mas um inteligente do serviço de
inteligência mandou um funcionário a Biboca procurar o coronel Simplício; não
encontrou o coronel, mas encontrou o casamento com a filha do agente da estação.
Tarde de chuva fina na Biboca, jogo de vispora e café preto com bolo frito e na
solidão da Biboca o inicio do namoro.
Major Cruzaltino não acreditou no telegrama: é blefe, aqui ele não vem. Dois
dias depois o Bugio do Batovi reuniu a tropa e no meio da tarde saiu para caçar o
capitão Carancho, pois um espião tinha visto o piquete do Carancho nos matos do Rio
Vacacai. Naquele dia, no inicio da noite o capitão e seu piquete entrou contente em
São Gabriel e invadiram um cabaré: hoje o Come Égua vai conhecer mulher. A tua
mãe nunca te contou? Respeito é bom e eu gosto. Calma pessoal. O capitão, os dois
tenentes e o sargento foram para o cabaré da Guapa, que ainda tocava gaita e ainda
não era santa. No outro dia, cedo, fizeram a volta na praça, passaram na frente da
Igreja do Galo e foram embora. Bugio do Batovi e seus homens só voltaram a São
Gabriel depois do meio dia. Depois de muita procura no mato só encontraram o lugar
onde o capitão estivera acampado. A coisa até poderia ter passado quase que
despercebida, mas um jornal que se intitulava imparcial botou lenha na fogueira: um
governo que se diz econômico, um governo que alardeia ser econômico. Economiza
na conservação das estradas, economiza na construção de pontes, economiza na
construção de escolas e gasta com tropas, e gasta com oficiais, e gasta com soldados,
e gasta com provisórios. E tem guarda nas estações, e tem guarda nas estradas, e tem
guardas nas praças. E meia dúzia de inimigos, mal montados, mal armados, entra em
São Gabriel e passeiam e mostram que podem entrar quando querem.
Major Cruzaltino nem esperou os telegramas, correu a estação, ditou um
telegrama ao telegrafista: capitão José em Umbu; favor me aguarde, conversaremos.
Depois de ditar o telegrama ao telegrafista foi à sala do agente e pediu: uma
locomotiva, preciso ir à estação Umbu. Uma locomotiva? Sobram cargas e faltam
trens. Senhor agente é problema de segurança nacional. Segurança nacional? É,
preciso seguir para o Umbu o mais rápido possível. De São Gabriel a estação Umbu,
esta já na linha Cacequi a Santa Maria, cem quilômetros, para puxar apenas um
vagão; locomotiva pequena; usada nas manobras de recinto, serve. E saiu o especial
trem, soltando fumaça e correndo e os cilindros ritmados na batida que os guris de
beira trilho repetiam: botafogoseufoguista, vaiamerdamaquinista,
botafogoseufoguista, vaiamerdamaquinista. O recinto de Cacequi, cheio de vagões e
locomotivas de manobras formando composições, passagem com cuidado. Na
plataforma da estação o coronel Tiburcinho saudou o major com uma teatral
continência. Chegou a Umbu, apitando e batendo o sino, na plataforma o capitão
José; quarenta e cinco anos, cabelos grisalhos, forte, gestos enérgicos, ex militar da
Brigada Militar. O cozinheiro apareceu na porta do improvisado vagão escritório, o
capitão José sorriu: Bituca. Esse era o apelido do cozinheiro que saltou do vagão e foi
apertar a mão do capitão. Já se conheciam de outras paragens e andanças; tinham
trabalhado junto. O major desceu do improvisado vagão escritório, saudou o capitão e
foi ao escritório da estação avisar ao agente: devo ficar mais de duas horas. O
maquinista abriu a válvula de escape e o foguista baixou o fogo. Major e capitão o
forte abraço: vamos lá para casa, a gente come um churrasquinho. Agradeço, fica
para outra vez. E no vamos não vamos entraram para o vagão e o major pediu ao
cozinheiro para fazer o chimarrão. Major e capitão tinham servido juntos como
tenentes da Brigada Militar em Santiago do Boqueirão; Santiago do Boqueirão, quem
não é bandido é ladrão. Terra de gente boa. E relembraram aqueles tempos, os antigos
companheiros, as missões, as trapalhadas, os acertos. Foi um tempo de muito roubo
de gado, foi um tempo de correr atrás de muito ladrão, até lá na Bossoroca onde a
galinha não canta e o tatu não sai da toca. O cozinheiro trouxe o chimarrão. E a
família? Tudo bem e a tua? E conversa e ri e toma o cimarrão. Um trem de cargas
passa, apitando, pelo Umbu. Conversa vai, conversa vem e o ponteiro dos minutos
correndo na volta. E como cresceu o Umbu. É verdade, tá ficando uma vila grande. A
conversa descambou no momento, ou seja, na revolução e da revolução para o
capitão Carancho e do capitão Carancho para a missão do major: tirar de ação este
dito cujo capitão. E estou precisando de gente que entende do riscado, preciso de sua
ajuda capitão José. Ah! E agora José?! Sai desta José. Pensa José. Bá! Major; política
eu ando querendo distancia, aliás, sempre fiquei longe. Mas, capitão José eu quero
um combatente pra depenar esse dito cujo Carancho. É eu já deixei de ser guerreiro e
agora luto para ser fazendeiro. A conversa ficou mais nas reticências e nos pontos de
interrogação, enquanto o capitão José tentava pensar e analisar a oferta. Deixou de ser
oficial da Brigada para ser fazendeiro influenciado pela esposa. Casado com filha de
pequeno fazendeiro; fazenda com seiscentos hectares. Pequena fazenda?! Sim; no
pampa. O sogro tinha quatro filhas e as quatro casadas. Morreu o sogro e a viúva
morando em Santa Maria onde tinha dez casas cujos aluguéis a mantinham e
mantinham muito bem, obrigado. Pois a sogra decidiu entregar a fazenda para as
quatro filhas. Uma casada com um telegrafista da Viação Férrea e nem queria saber
de fazenda; minha parte eu vou vender, a segunda casada com um oficial da cavalaria
do exercito também; minha parte eu vou vender, a terceira; casada com um médico, a
mesma idéia e a quarta filha casada com o capitão José, apaixonada pelo Umbu e pela
Fazenda Cosme e Damião; a casa grande, o galpão, o curral, as figueiras, o gado, as
ovelhas, os cavalos: a fazenda foi do meu avo, a fazenda foi do meu pai, minha parte
eu não vendo. E agora José? Deixa a Brigada e vai ser fazendeiro, compra as partes
das outras herdeiras. E dinheiro? Ai surge o Juquinha do Banco Pelotense: o banco
empresta e em dez anos o capitão paga o empréstimo, o gado é negocio do momento.
E tem a possibilidade de renegociar? Sim. Não. Sim, se outros conseguem; eu
também consigo. Empréstimo feito, compra da fazenda concretizada e o gado
valendo. E tinha uma guerra na Europa e o gado valia. E a guerra acabou e o gado
começou a valer menos. E a crise do café em São Paulo e Minas e o consumo do
charque diminuiu muito e o gado valendo menos e o Uruguai avança na tecnologia e
montam frigoríficos e a carne frigorificada desbanca o charque e olha o gado valendo
mais menos. O banco renegocia a divida? Renegociava; o governo do estado não tem
reservas para dar apoio aos bancos, o dinheiro foi aplicado na encampação da Viação
Férrea e na abertura e regularização da Barra do Rio Grande, que não é barra de rio; é
o encontro da lagoa com o mar. E por isto ai esta a revolução. Ué! A revolução não é
por mais escolas, por melhores estradas e melhores salários para os funcionários da
indústria? É, pois é! Major Cruzaltino acendeu um charuto. Capitão José pensou;
quando o gaúcho tá a pé o cavalo passa encilhado na sua frente só uma vez. É, pelo
sim, pelo não. Olha major se eu trabalhar para o seu partido, o preço é alto. Nem é
meu partido, eu apenas estou ajudando o partido a pedido do secretário e posso
apresentar ao partido a sua proposta. Bem antes da proposta as condições do serviço;
quantos homens têm o Carancho? Armas? Cavalos? E a minha tropa? Armamento?
Cavalos? Ora, capitão, o senhor dimensiona a sua equipe e o armamento o partido
fornece. Eu dimensiono; é mais ou menos do tamanho da tropa do inimigo. E a
proposta? Tenho uma divida com o banco, se eu botar o Carancho fora de ação; o
partido quita minha divida...
Major Cruzaltino se despediu do capitão José e foi ao escritório do agente da
estação: preciso continuar a viagem até Porto Alegre. Porto Alegre? É. Mas, essa
locomotiva é do pátio de manobras de São Gabriel. Senhor agente, necessidades
bélicas...
O foguista avivou o fogo e o maquinista botou graxa nos cubos das braceiras.
Do Embu a Porto Alegre quatrocentos e trinta e cinco quilômetros, passando pelo
grande recinto de Santa Maria da Boca do Monte. Madrugada, lua cheia, vento, o
trem correndo e passando na estação Bexiga; o cozinheiro na porta do vagão mijando
no vento e no tempo. Amanheceram em Porto Alegre e o major saiu tropeçando no
calçamento subida a cima rumo a Praça da Matriz para o encontro com o secretario
careca de óculos com grossas lentes. Na parede o mapa do Rio Grande do Sul, cheio
de marcas coloridas, lugares de lutas e escaramuças. Sobre a mesa, recortes de
jornais, telegramas e cartas. O encontro iniciou áspero, o secretário reclamando: O
Carancho continua agindo; cortam fios de telegrafo, descarrila trem, anda por onde
quer e o pior de tudo é que ele avisa onde vai passar. O major concordou, sacudiu os
braços e desabafou: é eu tenho a minha disposição corpos independentes;
independente, o nome diz tudo. Pra ser curto e grosso; preciso de um corpo de
mercenários. O quê?!Um corpo de mercenários, afinal... Major; calma, paredes têm
ouvidos e o mato tem olhos. O major sacudiu a cabeça: desculpe. O secretário
esfregou as mãos, pegou um maço de envelopes de cima da mesa, abriu a porta,
chamou um estafeta: leva na estação. Ficaram os dois calados, o secretario pegou um
papel de cima da mesa, leu, soltou o papel: major nós já temos mais de dez mil
homens a serviço da ordem e da lei, temos cinco brigadas de corpos provisórios,
temos o efetivo da Brigada Militar e os dois regimentos da Guarda Republicana, um
aqui em Porto Alegre e o outro em Pelotas e temos os corpos provisórios
independentes que são organizados e mantidos por membros do partido. E o senhor
ainda me pede mais um corpo de mercenários. O major ficou na posição de
descansar; pernas afastadas, mãos as costas, corpo ereto, cabeça erguida e falou com
calma: senhor secretário; botar um batalhão da Brigada Militar para dar combate ao
Carancho é demais e mesmo, senhor secretario, entre os oficiais da Brigada Militar
tem alguma coisa que diz que a Brigada é para manter a ordem no estado e não para
ser envolvida em lutas partidárias. O secretario deu um tapa na mesa e interrompeu:
as escaramuças dos maragatos são um atentado a ordem. O major continuou em
posição de descansar: senhor secretário os chimangos também andam fazendo das
suas, mas vamos deixar isto para lá. O senhor pegar um corpo provisório; trezentos
homens para caçar os trinta do Carancho é uma coisa fora de lógica. O secretario
interrompeu: nenhum comandante de brigada de corpos provisórios vai ceder um
corpo para o senhor. O major sempre na mesma posição disse: senhor secretário eu já
tenho um homem que se dispõe a comandar um corpo de mercenários. O secretario
andou na volta da mesa, pegou um telegrama, leu, soltou, perguntou: e qual o preço
do mercenário? O major tirou um papel do bolso e botou encima da mesa. O
secretario não pegou o papel, inclinou o corpo, ajeitou os óculos, apontou o papel,
perguntando: o governo vai pagar isto?! O major em posição de descansar,
respondeu: o senhor disse que eu estou a serviço do partido; o partido paga. O
secretario pegou o papel sacudiu a cabeça e sacudiu o papel e perguntou: isto aí é o
preço de todo o corpo; armas, munições e soldos? O major sorriu e continuou em
posição de descansar: senhor secretário; isto aí é só o preço dos serviços do
comandante. E a conversa continuou com perguntas e respostas tais; e este homem é
de confiança? E ele entende da arte da guerrilha? E mais isto? E menos aquilo? Até
que o secretário, calou, pensou, botou o papel no bolso, andou de sul para norte, de
oeste para leste, sacudiu a cabeça, sacudiu os braços: é senhor major, já que o senhor
me apresentou esta proposta e vou apresentar ao partido, o senhor sabe que este
assunto eu não decido; quem decide é o partido. O major continuou em posição de
descansar e disse: Porto Alegre tudo decide.
Porto Alegre tudo decide, mas Pelotas também decide. Pelotas da Rua XV,
onde as moças passeiam para olhar os rapazes antes de irem confeitaria se
empanturrar de doces. Pelotas onde um jornal em cada calçada da mesma rua
incendeia a revolução, um maragato e o outro chimango. Pelotas onde a revolução é
dentro dos cafés. E discutem, e troca farpas: Os fazendeiros estão falidos e querem
ajuda do governo, logo eles que não ajudam nem os seus próprios peões. E o teu
governo que gasta dinheiro ajudando fabricante de banha. E tá certo, tem que ajudar
quem trabalha para produzir, ora vai ajudar gigolô de vaca. Ora adotar o
“positivismo” de Comte. Vocês alegam isto, mas na verdade vocês estão preocupados
é com o preço do charque. E tu achas isto errado? O governo federal tá ajudando os
cafeicultores de São Paulo comprando estoques reguladores. Queres que o governo
compre estoque de charque? O líder de vocês diz que o charque tem gosto de estopa.
E na Pelotas dos doces é que chegou o telegrama do secretario careca que usa
óculos de lentes grossas. E Pelotas tinha interesse; que a paz voltasse à fronteira, pois
o gado estava sendo levado para o Uruguai; matéria prima para o concorrente. E o
telegrama foi parar na mesa do homem velho, que tirou o título de barão, já velho e
mofado, de dentro do guarda-roupa, e de dentro deste guarda-roupa mandou as
empregadas tirar algumas roupas e botar nas malas. Foi na agencia de navegação
marcar passagem no próximo vapor para a capital federal; Rio de Janeiro. Daqui do
porto de Pelotas só na próxima semana. Epa! O porto de Pelotas funcionava? Claro,
naquele tempo Pelotas ainda não tinha virado as costas para o São Gonçalo; que
primeiro foi Sangradouro da Mirim, depois foi Rio de São Gonçalo e finalmente
Canal São Gonçalo, sim e naquele tempo ainda não tinha o abandonado, mas já
estava enchendo ele de merda. Sim, mas barão, amanhã de manhã zarpa um vapor do
porto do Rio Grande. Ora, pois, confirma um camarote para mim. Passagem
confirmada o barão passou no café, tomou um café, mandou um recado para o
Juquinha do banco; pega o livro de apontamentos da conta da Fazenda Cosme e
Damião na estação Umbu na linha de Santa Maria ao Cacequi e vai a minha casa, o
mais depressa possível que eu embarco hoje no trem das cinco. Para o guarda-livros
tesoureiro do comitê de ajuda ao partido mandou dizer: vai a minha casa, ligeiro, pois
eu vou viajar e logo eu pego o trem das cinco. Ora um chamado do barão, os dois, foi
um pé lá e outro cá e já estavam na bonita e grande casa na Praça da Republica. O
barão mandou os dois entrarem para a biblioteca, mandou sentarem junto à mesa
grande, botou o telegrama diante deles e disse: leiam, pensem, conversem e digam o
que podemos fazer neste caso. Deixou os dois e saiu gritando uma empregada para
preparar o banho e mandou um guri de recados: vai ao Mercado, compra uma caixa
de pessegada, vou levar para o Presidente da República. E o barão tomou banho e o
barão se arrumou e o barrão mandou as malas para a estação e o Juquinha e o
tesoureiro não chegaram a uma solução. O barão sacudiu a bengala com cabo de prata
e disse: tá na hora do trem. Vamos a Rio Grande e lá se pensa no caso, que amanhã
antes de sair barra a fora eu tenho que mandar um telegrama ao secretário.
O trem saiu da plataforma de Pelotas às cinco horas da tarde, logo passou a
ponte sobre o São Gonçalo e o barão bateu no ombro do Juquinha: o banco tem que
incentivar a cultura do arroz, Juquinha o charque acabou. O trem parou no velho
Povo Novo, onde se faziam grandes festas para a padroeira Nossa Senhora das
Necessidades, compraram araçás. Em Rio Grande a cidade Noiva do Mar, no cabaré
de luxo, mulheres vindas da França; as cinco da madrugada o barão fez o rascunho do
telegrama ao secretario.
O major Cruzaltino passou uma semana em Porto Alegre, todas as manhãs o
encontro com o secretário, de tarde ia para a Rua da Praia, olhar as gurias que não
olhavam para ele. Aproveitou convocou mais soldados para os seus exércitos de
soldadinhos de chumbo. Ah! Se a Coronela soubesse que ele andava gastando
dinheiro comprando soldadinhos. Enquanto isso o cozinheiro aproveitava para
namorar a chinas da Rua Riachuelo. Finalmente estamos liberados. Bota fogo seu
foguista. Passa um telegrama para o capitão José no Umbu para me esperar na
estação. Os galos cantando, tapado de nevoeiro, madrugada, o trem chegou ao Umbu,
capitão José, esfregando as mãos embarcou. O cozinheiro escutando e espiando o
encontro dos dois: bom dia. É, bom dia para o senhor. E ficaram ali discutindo o
tempo; chove, não chove. O capitão José convidou: vamos lá para casa tomar um
café. Não; obrigado, outro dia; estou com presa. E ficou silencio um olhando pra lá,
outro olhando pra cá e o major Cruzaltino já foi dizendo: o secretário, digo; o partido
concede o premio se o senhor tirar o Carancho de ação. As despesas da revolta estão
altas e nós temos pressa. Conseguimos dez homens emprestados com o corpo
independente de Santa Maria, o comandante deste corpo dá a liberdade do senhor ir a
Santa Maria e escolher os dez. E vêm dez homens do corpo independente de Santiago
do Boqueirão, o comandante deste corpo diz que é seu amigo. O capitão interrompeu:
é meu primo. O major continuou: então ele só espera um telegrama do senhor e
imediatamente ele manda os homens, e de confiança quantos o senhor quer? O
capitão coçou o queixo, pensou, resmungou: é eu descobri que o Carancho tem cerca
de trinta homens e eu ganho dez e mais dez; são vinte. Pra inicio dá. Eu já pensei no
causo; eu quero um tenente, um sargento e um cabo, estes eu escolho. O major andou
na volta, acendeu o charuto fedorento e concordou. O capitão continuou: eu vou
ajeitar um pessoal de apoio; cozinheira e enfermeira. O major andou daqui pra ali, de
ali pra aqui, sacudiu o charuto, chegou perto da mesa, abriu um grosso livro de
apontamentos: seu livro diário; já escrevi a ata de fundação. Abriu o livro na primeira
página: nesta data fica organizado o Corpo de Guerrilha do Umbu, etc. e tal e coisa e
lousa ou Souza. Sacudiu o charuto no ar enchendo o vagão de fumaça e disse: capitão
o senhor tem vinte e um dias para iniciar a caça ao Carancho. O capitão coçou a
cabeça e nada disse, o major andou de norte para o sul, de leste para o oeste, olhou
atravessado para o capitão, um brilho molhado no olho e disse: do inimigo nada se
poupa; nem os bens e nem a família. O capitão bateu pé contra pé e o salto da bota no
assoalho do vagão, posição de sentido um brilho seco no olho. Este era o lema da
outra revolta; não, não e não: desculpe major; inocentes não! Para agir desta maneira
eu desisto, eu sou contra a esta sujeira. Os dois ficaram em silêncio, tensão. O capitão
em posição de sentidos, o major sacudiu a mão apontou o livro sobre a mesa: tá bem
capitão; organize seu corpo de guerrilhas. O capitão descontraiu e convidou: almoça
comigo hoje. Fica para outro dia que eu estou com pressa; tenho que entregar esta
locomotiva. Então enquanto o foguista levanta a pressão o Bituca vai comigo ali na
fazenda, vou lhe mandar uma paleta de ovelha. Sacode o cinzeiro abre a fornalha e
joga carvão no fogo. Capitão José e o cozinheiro, apelidado de Bituca, saem da
estação apressados até a fazenda; afastada da estação cerca de quinhentos metros.
Nessa caminhada rápida o capitão, elogiou o cozinheiro, e disse isso e perguntou
aquilo e: Bituca tu vais cuidar os movimentos deste Major, qualquer coisa que ele
estiver me aprontando tu me avisas. Os dois em silencio. Revoluções têm traições,
mentiras aos montões e espiões. Até que o cozinheiro concordou: tendo como avisar
eu aviso. Os cachorros latiram, o capitão entrou pela porta dos fundos, voltou com
um saco onde estava meia ovelha e um papel: qualquer novidade tu manda um
telegrama para o tio Juca no Umbu; vai ter o baile. Não te esquece; vai ter o baile,
que aí eu te procuro. Sim senhor!
Capitão Carancho passou pelo município de Lavras e na estância do coronel
Tiburcinho, com muita calma escolheu trinta bois e requisitou em nome de tal de
comando revolucionário. Tocou para os matos do Rio Vacacai onde acampou e ficou
pensando e matutando o que fazer para incomodar os chimangos. Estava matutando
em provocar os guardas da estação do Ibaré. A turma limpando,escovando, aparando
cola e crinas dos cavalos. O Louco do Rodeio Colorado passou diante da barraca da
cozinha e gritou para o Velho Manduca: faz um puchero, faz um puchero. E se foi
resmungando e repetindo. O Velho Manduca deu uma risada e gritou: consegue as
verduras. Tenente Terêncio gritou; quem consegue verduras é o Andrezito. Andrezito
levantou as mãos: só se eu vou lá às Três Divisas. Charles gritou: o Andrezito quer
ver a filha do agente. Louco do Rodeio Colorado contrariou: é a irmã do telegrafista.
Capitão Carancho, escutou, entrou na barraca do comando, coçou a cabeça: vou
provocar os guardas da estação do Sodré, lá é melhor de escapar; tem bastante
caminho pra escolher.
O trem P31 saia de Santa Maria da Boca do Monte às oito horas e quarenta
minutos e chegava a Uruguaiana às vinte horas e cinqüenta minutos depois de
percorrer trezentos e setenta e quatros quilômetros. Chegava ao Cacequi ás onze
horas e quarenta e cinco minutos. É Cacequi, a chegar ao Cacequi; ponto de almoço e
baldeação. Ao meio dia passavam quatro trens no Cacequi e passava muita gente
importante e o coronel Tiburcinho sempre ali na plataforma; peito para frente e
barriga para dentro, cabeça inclinada; mostrando que estava sempre alerta e pronto a
servir o partido. O senhor intendente do Alegrete, membro importante do partido,
saltou na plataforma e o comandante Tiburcinho fez um gesto muito grande e uma
teatral continência. A gargalhada ecoou pelo Cacequi. De quem? Lucinha, cheia de
anéis nos dedos, grandes brincos nas orelhas, faces tapadas no pó rouge e lábios
pintados de vermelho. Fumando, a piteira cor de rosa com trinta centímetros. Coronel
Tiburcinho nem se abateu, muito pelo contrário, como um bom galã se aproximou da
esposa: minha querida e amada Lucinha que alegria em te ver. Lucinha que há muito
tempo já se considerava a ex-esposa e até se arrependia de um dia ter sido, soltou
uma baforada de fumaça, riu e comentou: Tiburcinho, a sopa quente do Cacequi tá te
queimando os miolos.
Capitão o senhor tem vinte e um dias. O primeiro dia foi em casa. A esposa
batendo panela e batendo trela, reclamando: que loucura! Eu nem acredito que tu
aceitaste isso. Loucura! Mulher eu tenho que pagar o banco. A discussão aumentava
os dois falando alto os cachorros latindo na volta da casa e os peões no galpão, olhos
bem abertos e ouvidos atentos. O segundo dia em Santa Maria e lá veio mais bronca;
desta vez foi da sogra. Terceiro dia dar jeito em arrumar o equipamento. Guarda com
fuzil cruzado no peito: falar com quem? É e coisa e lousa, com o comandante da
guarda. Já vem. Espera, espera e espera e vem o comandante da guarda. E explica e
explica e explica e conta a que anda e o que quer. Espere um momento. Espera,
espera e espera. Chega um jovem tenente, cheio de pose, e cheio de arrogância e
pergunta. E o senhor? Entre e sente. E eu preciso de munição. Tá difícil, quantos
tiros? Duzentos tiros por homem. Não, nem tem tanto maragato para matar. Tem
gente usando munição pra matar capincho. Tenente eu não vou matar capincho. E
resolvido o assunto munição faltam outras coisas. Para os corpos provisórios é no
almoxarifado, lá atrás da estação. La vai o capitão descendo ladeira. Cuidava o tal de
almoxarifado um sargento, gordo, baixo, mal encarado, de má vontade e que mal
sabia escrever. Depois de meia hora de perguntas e respostas entraram no galpão das
bugigangas: capitão o senhor vai levar quantas lanças? Epa! Sargento lança já caiu de
moda. Entre o estoque de lanças, algumas da ponta em forma de meia lua e afiada;
eram usadas para cortar o jarrete da rês, jarrete é o garrão, é o calcanhar do bicho.
Jarretear, desgarronar era tudo a mesma coisa, corta o garrão e o bicho cai e tendo
caído o resto se faz com a faca. Sargento eu vou levar duas destas; serve para carnear
em campo. É ,eu sei, vão pra guerra pra comer carne. O capitão escolheu duas lanças
e o sargento foi até uma mesa onde estava o livro de anotações o tinteiro, o mata-
borrão e a pena; abriu o livro, molhou a ponta da pena na tinta, pingou tinta no livro,
outro pingo e com muito esforço começou a desenhar as letras numa folha que tinha
mais borrões que letras, ele escreveu: DUZA LAMZA. O capitão foi ver as barracas:
mas, tá tudo furado, rasgadas, faltando pedaços. Capitão aqui é a sobra da sobra da
guerra. Tempo e paciência para escolher as barracas. Material de cozinha: pratos?
Capitão pro senhor conseguir prato é melhor requisitar num comércio e de
preferência que seja de maragato. Panelão? Olha, tem umas aí, tão furadas, mas leva
na oficina da estrada de ferro que eles ajeitam. Num recanto do pátio, várias carroças
e carretas. Capitão José viu, pensou e perguntou: e as carroças? O sargento fez uma
pose e respondeu: capitão; são viaturas hipo. Vou escolher duas para conduzir a
cozinha. Depois de escolher as bugigangas; E a bóia? Gêneros? Isto é lá na cantina,
fica passando as oficinas da estrada de ferro; um galpão grande, mas só amanhã que
agora já ta tarde. No outro dia uma manhã dentro da cantina que cheirava a charque
para conseguir farinha de mandioca mofada, feijão abichado e charque rançoso. E o
tempo é ouro e de tarde no acampamento do corpo provisório independente. E boa
tarde, e chove, e não chove e isto e aquilo e finalmente: capitão o senhor sabe que
aqui é um corpo independente, o pessoal é o mais inferior, que os bons ou já tão na
Brigada ou nos corpos provisórios da Brigada, como eu tenho que lhe mandar dez, eu
até vou escolher os melhores. Ta bem, e eu fico agradecido e confio no amigo. São
dez homens, montados e armados. Sim senhor. Eu pergunto; tem um lugar aqui que
eu posso deixar as traquitanas do trem de guerra? Claro que tem. Então amanhã o
senhor me empresta uns homens e eu vou recolher tudo, deixo aqui, vou ao Umbu,
ajeito o local do acampamento, mando um telegrama e o amigo me manda os dez
homens e o material; ta bem assim? Tá especial de bueno. Dia de corre-corre em
Santa Maria da Boca do Monte e pronto a voltar ao Umbu. Sábado; trem só na
segunda-feira: estou a serviço do governo, vou a estação tentar carona num trem de
cargas. Inicio da noite um trem de cargas pronto a sair para o Cacequi, fala com o
conferente, diz, rediz, explica, mostra documentos. O conferente pensa e nada diz,
pensa mais, pensa menos. Esta gente que escreve gosta de inventar o que escrever: o
senhor assina um requerimento e escreve um depoimento. O chefe – de - trem era
mais prático, já conhecia o capitão, lá do Umbu, chamou ele e disse baixinho: o
senhor sobe lá no ultimo vagão que eu lhe deixo no Umbu. Vagão de carga, vazio,
cheiro forte de algum resto de carga que fermentou, entrou no escuro e sentou no
chão. Noite escura, mais de meia noite, a vila do Umbu dormia, o trem de cargas
passou apitando, saltou do último vagão. Cansado, com fome e preocupado entrou na
casa vazia acendeu o lampião e vestido jogou-se atravessado na cama. O galo cantou,
outro respondeu lá pelos lados da estação e mais outro e mais e começou a sinfonia
dos galos na vila do Umbu. Madrugada de domingo, hora e dia que o capitão José se
dedicava ao seu vicio três “C”; cigarro, cachaça e chimarrão. Só fumava um cigarro
por semana e só tomava um copinho de cachaça. Cigarro de palha, fumo em corda,
que ele picava com calma, sentado perto do fogão enquanto esquentava a água do
chimarrão, o copinho de cachaça onde pingava umas gotas de limão. Era o dia de
pensar e naquele tinha muito que pensar.
Vindo dos lados do Cacequi um trem com vagões de carregar gado, vazios,
passou no Umbu, ia buscar bois lá em Tupanciretã. Por uma das portas, laterais,
atiraram um fardo de arreios e logo o sujeito meteu o corpo para fora e pulou.
Os cachorros latiram e um vulto chegou à porta da cozinha que estava aberta;
alto, corpulento, risonho, fardo de arreios no ombro. O capitão José deu uma risada: o
Nortense, mas quem eu vejo! Rapaz tu caiu do céu. Soltou os arreios no chão, riu:
não capitão, eu cai dum trem. É tá certo, se tu estas aqui é por que o diabo esqueceu a
porta aberta. E tudo bem? E vai chover? E tem algum serviço? Tenho sim, vai lá no
galpão toma uns mates com os peões e daqui a pouco mais eu já vou conversar
contigo, temos muito o que fazer. Nortense pegou os arreios e se foi ao galpão. O
capitão tomou um gole de cachaça; já tinha o cabo, faltava o tenente e o sargento.
Tenente; vou mandar uma carta ao Zequinha lá em São Sepé. Sargento; vou mandar
uma carta ao comandante do corpo independente de Santiago do Boqueirão pra ele
me conseguir um e mandar junto aos dez homens. E o capitão deu jeito em pegar
papel, tinta e pena para escrever as cartas. E o sol nasceu lá para os lados de São Sepé
e logo já estava iluminando o Pau Fincado. Um trem cargueiro, descendo de Santa
Maria passou rumo ao Cacequi. Capitão José foi ao galpão onde os dois peões e mais
o Nortense estavam tomando o chimarrão, chamou tal Maneco e disse: tchê, trás os
cavalos para o curral. Os outros dois levantaram e esperaram a ordem. O capitão
esfregou as mãos e disse: se preparem que vocês vão viajar; um vai ao Santiago do
Boqueirão e o outro vai ao São Sepé.
Capitão mandou o tal Maneco encilhar o seu pingo de confiança e foi se trocar
de roupas: eu vou às pencas em São Vicente. Penca? È uma corrida de cavalos. Gente
que usa o cavalo para trabalhar, para viajar, para lutar na guerra; gente que gosta do
cavalo, gente que gosta de desafiar: meu cavalo corre mais que o teu. E pode ser um
desafio no campo aberto como pode ser numa cancha. A tal cancha reta, num
descampado plano ajeita três trilhos com até quatrocentos metros de comprimento,
separados um do outro uns dois metros. Pra fazer o trilho arrasta um tronco ou uma
pedra. Carreira de mano são dois cavalos, penca é de quatro até nove. Penca
completa, nove cavalos; três ternos e o desempate, ou seja, no fim os três ganhadores
de cada terno disputam entre - si. Penca na cidade de São Vicente, em tempos de lutas
entre chimangos e maragatos, até uma coisa arriscada. O caminho que liga o Umbu a
São Vicente cerca de trinta quilômetros, o capitão ao trote, que ia a serviço.
Bastante gente, muitos cavalos, muitas carretas e carroças. Barraca de jogo de
cartas; jogo da primeira. Cancha para o jogo do osso; nove passos, raia riscada no
chão com o bico da bota. Barraca grande onde tinha o pastel, cachaça, gasosa,
cerveja, lingüiça assada e enrolada na farinha. Penca completa; nove cavalos, um da
vila de São Pedro, um da vila Dilermando de Aguiar, um do Cacequi, um da vila da
Mata, um de São Lucas, um do Umbu e três de São Vicente. Tudo pingo bom de
corrida. Os grupinhos e o diz que diz e o fala que fala e o assunto era o crime que
aconteceu na vila de São Pedro; certa moça que casou com um velho cego e dito cujo
velho foi assassinado e dizem que foi a moça pra ficar com a herança. Tem herança;
tem lambança. Quando o capitão José chegou, olha que mil olhos se voltaram para
ele e escuta o diz que diz e o lero-lero e o fala - fala: ta se metendo na revolução.
Levou a família pra Santa Maria, diz que a mulher tava chorando na estação na hora
do trem. Andou um graúdo na política, que até por sinal veio num trem especial e
conversou com ele. Tão dizendo que ele vai dá combate a tal de Carancho. Mas deste
tal Carancho eu já escutei falar, diz que ele é um bandido de marca maior, lá pelos
lados de São Gabriel e Bagé ele tem feito horrores. Enquanto seguia o diz que diz, o
capitão chegou meio desconfiado, bem quieto e cumprimenta um, aperta a mão de
outro, faz um aceno para aquele, olhos bem abertos procura alguém; Josefina Risoleta
lá da vila de Dilermando de Aguiar. Encontrou e alegria dele e dela e conversa e
pergunta e responde e ele disse: preciso de uma cozinheira de coragem. E eu não
cozinho bem. Claro que cozinha. Coragem eu até tenho. Arruma uma ajudante. Isto
até que é fácil; a Ritinha anda loca por homem, e agora o melhor lugar pra encontrar
homem e nos acampamentos de provisórios. E outra coisa; preciso de enfermeira.
Josefina Risoleta deu uma risada: capitão, enfermeira é difícil, carniceira até se
consegue, sabe a maluca da Luiza?Ela tá parando lá em Dilermando, o senhor deixa
que eu falo com ela e eu levo ela.
Acampados perto do Azevedo Sodré. Andrezito foi até as Três Divisas ver se
conseguia verduras para o puchero. Chegou meio desconfiado. Perto da estaçãozinha,
duas barracas, dos guardas. Ajeitando a túnica, cara de sono um cabo saiu da barraca
e fez sinal e fez perguntas: quem é o senhor? Eu sou eu. Onde mora? Moro lá. Que
anda fazendo? Vim na estação buscar carta. E o cabo sacudiu a mão e voltou para
dormir. Andrezito não conseguiu verduras para o puchero, até conseguiu alguma
coisa para uma carbonada, mas o telegrafista emprestou dois livros que há muito ele
queria ler: “Martin Fierro escrito por José Hernandes e Contos Gauchescos escrito
por Simões Lopes” e uma noticia: está organizando um corpo provisório especial só
pra nos dar combate, o quartel deles é numa tal estação Umbu. Adonde é isso? Nunca
vi falar. Terêncio, adonde fica a estação Umbu? Ué, fica na beira dos trilhos. Larga de
brincadeira, to falando sério. Quem pode saber é o Louco do Rodeio Colorado. E ia o
Louco repetindo: Umbu do Velho Manduca, Umbu do Velho Manduca, e apontava
para o norte com a mão direita e puxando para a direita; fica nesta direção. Chama o
Velho Manduca: Conhece o Umbu? Sim capitão. Me criei naquela volta, até casei no
Umbu, é passando o Cacequi. Capitão Carancho, estudou a posição onde estava e se
admirou: ué! O Cacequi é aqui pendendo pra esquerda e o Louco apontou pra direita.
Velho Manduca riu e concordou: capitão é que no Cacequi a linha do trem faz a curva
pra direita e se vai rumo do nascer do sol.
Andrezito contente lendo os versos do Martin Fierro em voz alta, Velho
Manduca e Mijão foram dar jeito em preparar a carbonada pra esse bando de mortos
de fome. Capitão Carancho pensando e pensando: preciso saber deste tal corpo deste
tal Umbu. Bueno; quem sabe, sabe e se não sabe, sabe como saber, o Ananias em São
Gabriel. Amanhã, bem cedo, mando o Andrezito e o Charles a São Gabriel, que esses
dois não têm vícios de jogo de osso ou cachaça então não tem perigo de cair em
tentação e se forem correr chinas é certo que não vão comprar brigas, porque os
outros podem entrar no cabaré e querer beijar as chinas e dá pau nos machos.
Vão a São Gabriel, falem com o Ananias, é um boteco na beira dos trilhos, diz;
o capitão manda dizer o cabo de prata da faca tá feito. E os dois foram e o mulato
Ananias mais desconfiado que porco atolado: o cabo da faca? É... Ta bem. Os dois
contaram a que foram e ele: Olha; saber eu não sei, mas eu sei como saber. Eu vou
dar uma volta na cidade e enquanto isso, se vocês querem ir nalgum lugar bom, ali
adiante tem uma casa de moças que sesteiam pra fora.
Os dois voltaram ao acampamento, no Sodré, com as informações que depois
o capitão conferiu com o Velho Manduca: sei, conheço o capitão José, a sede da
estância é bem perto da vila do Umbu. Umbu fica perto do Rio Ibicui. São Lucas é na
beirinha do rio. Do Umbu até São Lucas é vinte e três quilômetros. Pra ir daqui a São
Lucas se pega esta estrada que vai pra Santa Maria e lá no Pau Fincado vira pra
esquerda é ali é perto. Foi noite que o capitão pouco dormiu e muito pensou e tomou
a decisão: vou pros matos do Ibicui, lá neste tal de São Lucas.
Chegou o grupo de Santa Maria, trazendo junto às tralhas para armar o
acampamento e já era à tarde de terça-feira, e o tempo passando, já tinha gastado oito
dias, mas não adiantava ficar nervoso. Mandou um empregado levar o grupo a um
capão lá no fundo da fazenda e iniciar o acampamento enquanto ele foi à estação
passar um telegrama para a Josefina Risoleta se apresentar trazendo a enfermeira.
Foi na quinta-feira que saltaram do trem P31, às onze horas e quinze minutos
Josefina Risoleta, Luiza e mais duas mulheres, uma para auxiliar na cozinha e outra a
enfermeira. E nesta quinta-feira a hora da Ave-Maria chegou o grupo de Santiago do
Boqueirão. Na frente da fazenda formou o grupo em coluna de um, todos voltados
para o capitão que os analisava: o primeiro; baixinho, um metro e sessenta, gordo,
cara redonda, bigode grande, bombachas largas, chapéu de abas bem grandes o
sargento Petiço, o segundo; magro, alto, um metro e noventa e quatro, o chapéu de
abas curtas, botas de cano alto acima do joelho, o terceiro era uma figura; uma faixa
de pano vermelha enrolada na cabeça passando pela testa, túnica azul com punhos e
gola vermelha, vestindo um chiripá listado de azul e vermelho, pés descalços e
empunhando um lança. Rapaz, tu não tens fuzil? Regalou os olhos e respondeu
gritando: não, seu capitão, eu sou lanceiro; o Lanceiro do Carovi. Tá bem, este me
mandaram de presente, presente de grego. E ali estava um sargento e dez soldados e o
capitão deu as boas vindas e as boas explicações e as boas regras e tal e coisa e coisa
e tal. Sargento leve o pessoal para o acampamento e volte aqui para a gente
conversar.
O último a chegar foi o Zequinha, chegou junto com o Nortense que o foi
buscar em São Sepé, viagem longe, que do Umbu a São Sepé é caminho cheio de
voltas. Amigos de muito tempo o capitão e o Zequinha conversaram bastante e o
capitão fez o convite: queres ser o meu tenente? Olha querer até que não quero, mas
no causo, para não deixar o amigo na falta até que aceito. Capitão José nomeou o
Nortense cabo e estava formado o grupo de comando: capitão José, tenente Zequinha,
sargento Petiço e cabo Nortense. O nome do Nortense era o mesmo do sargento
Petiço; José, então os quatro comandantes tinham o mesmo nome e eram de cidades
santas. Santas? É; o capitão era de Santa Maria da Boca do Monte. O sargento Petiço
era de São Francisco de Borja, lá no canto na beira do Rio Uruguai onde campanha e
missões de encontram. Cabo Nortense era de São José do Norte, que fica no sul do
estado, lá do outro lado da Lagoa dos Patos na frente de Rio Grande que, aliás, não
tem rio, na verdade, São José do Norte é a ponta sul do Estreito. O tal de Estreito é a
faixa de terra entre a Lagoa dos Patos e o Oceano Atlântico. Tenente Zequinha era de
São Sepé. E São Sepé é santo? Claro que sim. E os padres sabem? Olha padre na
campanha até nem sei; eu sei que quem gosta de padre é o pessoal das colônias.
Colônias lá na serra acima de Porto Alegre. Como dizia o velho Rufino, tropeiro
muito antigo, nascido e criado lá perto do Alegrete, no Passo Novo, tropeiro de
atravessar o Rio Grande tocando boi, levava gado lá de São Luiz de Gonzaga para as
charqueadas de Pelotas, dos campos do Itaroquem; melhores que aqueles não têm.
Pois o velho Rufino dizia que padre é vigário e vigário faz... O velho Rufino era
analfabeto de não saber escrever a letra “I”, mas fazia conta de cabeça mais melhor
que muito doutor, e tinha uma conversa que quando chegava num ajuntamento fosse
em boliche ou galpão, todos calavam para escutar os causos dele. Dizia: em padre eu
não acredito, mas acredito em Deus e em Jesus, que o seu Jesus era bom, olha que
quando fazia as rodas de mate com os companheiros dele, os apostos, ele só dizia
ensinamento bom, não falava mal de ninguém, até dizia que quem falava mal dos
outros tinha uma acha de lenha dentro do olho, ele fazia benzedura ele curava o povo
e olha; os milicos do tal Herodes e mais a milicada do tal Pôncio Pilatos pegaram ele
naquele churrasco de páscoa porque deixou, veja como ele era bom, era buenacho,
que pra não dá uma baita de uma guerra que ia morrer muito inocente, ele não reagiu,
porque se ele quisesse tinha convocado muita gente, ainda mais sendo filho de quem.
E os padres e os gringos comemoram a morte dele com festa de vinho e peixe frito.
Capitão Carancho mandou o Andrezito na estaçãozinha de Três Divisas e
passar um telegrama para o Coronel Simplício na estação Biboca: aguardo ordens no
Inhatium. Andrezito foi e o pessoal da guarda da estaçãozinha nem se preocupou com
ele.
E levantaram o acampamento do Sodré rumo ao São Lucas, seguiram pela
estrada que de Rosário, cortando os trilhos no Sodré leva a Santa Maria. Movimento
de gente a pé, gente a cavalo, carretas, não foi uma viagem tranqüila, bem que o
Louco do Rodeio Colorado disse: bamos pela beira do rio, bamos pela beira do rio.
Atravessaram os trilhos, bem perto o rio e o mato. Mato fechado. Armaram
acampamento com muito cuidado; estavam em terra estranha e perto do inimigo.
Primeiro o reconhecimento da região, depois estudar a maneira de espionar os
movimentos do inimigo no aquartelamento do Umbu. O capitão Carancho começou a
ter incertezas. Entre os homens do piquete começaram a surgir duvidas e perguntas:
aqui é perigoso? Qual é a idéia do capitão? E se nos atacam de noite? Depois de cinco
dias acampados o tenente Terêncio e o Velho Manduca que era nascido e criado ali
naquele chão e claro, conhecia os atalhos, pois os dois com muito cuidado foram pelo
meio do mato costeando o rio até o Umbu e de longe espiaram os movimentos,
voltaram com muito pouca informação. Certa intranqüilidade havendo no
acampamento, o capitão mandou o Louco do Rodeio Colorado ir ao Umbu e espiar o
acampamento do inimigo. E o Louco do Rodeio Colorado montou a cavalo e foi pela
beira dos trilhos, andou na vila, foi no boliche, tomou um gole de canha, que ninguém
é de ferro, encontrou na vila o Limpa Trilhos, conversaram e foi lá perto do
acampamento. Voltou para São Lucas e fez um bom relato ao capitão.
E idéia: vou atacar o acampamento do chimango. Reunião dos quatro; capitão
Carancho, tenente Terêncio, tenente Tiaraju e sargento Capincho. Reunião tensa:
atacar? Sim, qual é problema? Quem tem que nos atacar é ele, o nosso causo é fugir.
É eu também acho que atacar eles no acampamento deles é difícil, eles vão tá
entrincheirados e nós de peito aberto. Mas também não é assim, ora peito aberto. Eu
nem sei se sei, mas o que eu sei é que nosso causo é fazer escaramuça e correr no
mundo. Vocês estão com medo? Medo não, mas fazer bobagem também não. Amanhã
eu e o Terêncio vamos lá espiar e depois eu resolvo.
O capitão e Terêncio guiados pelo Louco do Rodeio Colorado foram espiar o
acampamento do capitão José.
O capitão José, o tenente Zequinha, o sargento Petiço e o cabo Nortense, com
vinte homens, duas cozinheiras e duas enfermeiras formavam o Corpo Independente
de Guerrilhas do Umbu. O capitão custando a organizar a coisa. Comida ruim,
pessoal de má vontade. Vamos ao sacrifício, mandou carnear dois bois da própria
fazenda. Cabo Nortense disse: Capitão tem que requisitar boi dos maragatos.
O tenente com um grupo de cinco homens, ensinando a atirar: tchê, pega este
fuzil com vontade, hei! Tu aí! Levanta o cano do fuzil. Sargento Petiço com um
grupo de dez treinando ataque a cavalo em formação de coluna de um e logo o
sargento começou a gritar. O tenente Zequinha parou a instrução de tiro e voltou-se
para onde estava o sargento. Capitão José, que estava na barraca da cozinha trocando
idéias com as cozinheiras saiu e foi ver o motivo dos gritos. Um grupo de guris estava
bem no lugar onde os homens estavam fazendo o exercício. O tenente aproveitou e
foi a o encontro do capitão. Zequinha de São Sepé que serviu na Brigada Militar
junto com o capitão José como soldado e que sonhava ser promovido a cabo, aliás,
muito se esforçou muito se dedicou, mas na hora das promoções, os apadrinhados é
que foram lembrados e o soldado Zequinha pediu sua baixa. O tenente disse ao
capitão: aqui tá ruim capitão, aqui tem muito movimento, hoje na hora da bóia tinha
dez guris na cozinha. Capitão José sacudiu a cabeça ficou calado pensando. Estavam
muito perto da vila. Nos últimos dias tinha aumentado o movimento na vila, muita
gente estranha, até o louco Limpa Trilhos apareceu, há tempos que ele não aparecia,
até diziam que um trem tinha matado ele lá pelos lados de Bagé. Veio gente de São
Vicente bisbilhotar os movimentos. Andam dizendo que de noite tem gente saindo do
acampamento e indo beberem canha nos botecos da vila. Acampamento perto do
caminho, difícil de manter vigilância e fácil de ser atacado. Tenente Zequinha deu a
idéia: capitão o bom era a gente trocar de acampamento, o senhor sabe um lugar que
é bom? La no Pau Fincado, na curva grande da sanga, ali no baixo. Capitão José
sacudiu a cabeça e tomou a decisão: é para lá que nós vamos e vamos mudar
acampamento esta noite.
O branco ferreiro com seu canto que mais parece uma batida de ferro na
bigorna, o dia amanhecendo o capitão Carancho, chamou o Louco do Rodeio
Colorado e o Velho Manduca: Vão lá e fiquem bombeando o acampamento do
chimango e me esperem lá, logo à tardinha vou ao Umbu, fazer uma escaramuça. No
meio da tarde na hora em que ia dar a ordem para encilharem os cavalos, chegaram os
dois bombeadores; Louco do Rodeio Colorado e Velho Manduca: capitão os
chimangos se foram do Umbu, alevantaram o acampamento de noite e se foram lá
para o Pau Fincado, quem nos contou foi o Limpa Trilhos, que ele espiou tudo.
Capitão Carancho coçou a cabeça andou na volta. O que fazer? Levantar o
acampamento? Me diga Velho Manduca; indo aqui pelo caminho de São Lucas ao
Pau Fincado, que distancia? Dá uns trinta quilômetros. Então tu junto com o
Andrezito vais até lá bombear onde é o acampamento deles. Voltaram tarde da noite e
o Velho Manduca explicou: o acampamento esta afastado do caminho, e eles tem a
barranca da sanga como trincheiras. Se a gente atacar eles? Bá capitão vai se um
combate feio. Bamos dormir e amanhã eu decido.
Amanheceu em São Lucas as margens do Rio Ibicui, no mato o grito da
saracura, o canto metálico do ferreiro e a algazarra dos bugios. No acampamento cada
olhar era um ponto de interrogação. No meio da manhã o capitão Carancho chamou o
Velho Manduca e Andrezito e disse: quero dois homens de coragem. Os dois se
olharam, sacudiram os ombros, o Velho Manduca disse: é, dependendo. O capitão
coçou a cabeça: daqui ao Cacequi são quarenta e cinco quilômetros, indo pela beira
dos trilhos em três horas de marcha chega lá; agora são dez horas, chega lá passado
da uma da tarde aí é que vocês têm que ter a coragem, se apresente ao coronel
Tiburcinho e dizem que desertaram do meu piquete e diz que sabe onde eu tou
acampado. Velho Manduca tu que és um homem vaqueano orienta ele para atacar o
meu acampamento, amanhã bem cedo, lá no Pau Fincado. O Velho Manduca tirou o
chapéu passou a mão na cabeça, pensou: Do Cacequi ao Pau Fincado, cortando
atalho, dá quase oito horas de marcha, a cavalo. O Tiburcinho vai ter que andar a
noite toda, eu conheço os atalhos. Capitão sacudiu a mão: por isso eu te escolhi. Olha
se der certo, vocês fiquem de olho vivo e pé ligeiro, joga o Tiburcinho na encrenca e
cai fora.
Noite no acampamento do corpo provisório independente de guerrilhas, no Pau
Fincado, chefe da guarda o cabo Nortense, colocou os dois guardas nos postos; um
junto ao improvisado curral onde estavam os cavalos e o outro andando na frente das
barracas e foi para barraca do comando. Os quatro; capitão José, tenente Zequinha,
sargento Petiço e cabo Nortense, jogando o solo, um jogo de baralho muito usada na
época. Capitão contente fazendo planos: a gente fica aqui uns quatro a cinco dias,
treina bem, requisita alguns bois para ter carne e ai vamos para o Azevedo Sodré e de
lá descobrir o rastro do tal Carancho e sair com tudo atrás dele. Capitão; onde será
que ele tá? A última noticia que se teve ele andava lá pelo Inhatium. Onde fica esse
lugar? É perto de São Gabriel. Quem conhece esses cantos por aí é o Nortense. Tu
eras tropeiro? Nortense dá uma gargalhada e responde: tchê eu vendia homeopatias,
lá andava eu com umas malas cheias de vidrinhos. O bem mais calado era o sargento,
dele pouco era sabido; nasceu em São Borja, se criou em São Borja, foi capataz de
tropa e nada mais. Terminado o jogo o cabo pegou o fuzil e foi para a barraca do
corpo da guarda, adotava o sistema de “quarto”, ou seja, o homem fica a disposição
da guarda vinte e quatro horas tirando sentinela duas horas, descansa quatro no corpo
da guarda e volta a tirar mais duas, como tinha dois postos de sentinelas; o pelotão da
guarda se compunha de um comandante e seis soldados. A quietude da Campanha o
céu estrelado.
Debaixo daquelas estrelas o perigo viajava ao trote, Velho Manduca, desertor
do Piquete Carancho das Três Estradas, guiava o ansioso coronel Tibucinho e seu
corpo de cavalaria independente. Por volta de quatro horas da madrugada estavam
perto do acampamento, fez alto, mandou desmontar e descansarem até começar a
clarear: pego esta cambada de maturrango dormindo e faço o meu nome.
Seis da manhã ainda escuro, a barra do dia mal aparecendo, Estrela Boieira
subindo de leste, cabo Nortense trocou os guardas. Quero- quero gritou longe o cabo
escutou parou, olhou o escuro, a sentinela também escutou. Quero- quero gritou de
novo, sentinela escutou, o cabo também: isto tá me roncando o diabo nas tripas.
As silhuetas das barracas, coronel Tiburcinho mandou seus trinta homens
formar em coluna, bala na agulha. Velho Manduca e Andrezito ficaram um pouco
retirados. Tiburcinho andou de ponta a ponta da formação: vamos entrar atirando e
derrubando barracas. E gritou a ordem de atacar.
Cabo Nortense e as duas sentinelas começaram a gritar o alerta. Os vultos
avançando a todo galope. Velho Manduca e Andrezito se mandaram no lusco fusco.
Do corpo da guarda saíram os outros quatro e abriram fogo. Começou o tiroteio e a
loucura. Capitão José só de cuecas, correu para se entrincheirar atrás de uma das
carroças. Tiros, gritos, relincho de cavalos, choro de mulheres. Não durou mais que
quinze minutos aquilo. Todos com lenço branco no pescoço e o Coronel Tiburcinho
pediu para que o chão se abrisse nos seus pés. Cabo Nortense abriu o peito e gritou:
tu és louco, seu filho da puta? Capitão José sem nada entender saiu da barraca
vestindo as bombachas. Um cavalo caído por cima de uma barraca esperneava
tentando se desenredar das cordas. No escuro um ferido gemia. Tiburcinho tremia
como vara verde. Tenente Zequinha começou a organizar a bagunça e comandando o
recolhimento dos feridos. As duas enfermeiras ainda tontas, tentando fazer alguma
coisa. Capitão José gritou para o seu Tiburcinho: que merda é essa que o senhor fez?
Uns tonteando, outros nervosos. Cinco mortos; quatro eram do Tiburcinho, onze
feridos; sete do Tiburcinho. O sol apareceu, um quero-quero cantou, a confusão
continuava. Coronel Tiburcinho já sabia que tinha sido enganado e lembrou: aqueles
dois filhos da puta. E enérgico começou a dar ordens: hei! Montem vamos caçar
aqueles dois. Nova confusão; o tenente Zequinha não gostou de ver e ouvir o intruso
dando ordens e ordenou: o senhor cala a boca. Cala a boca já morreu agora quem
manda sou eu. Capitão José, que estava ajudando as cozinheiras a reorganizarem a
barraca da cozinha, interveio no bate boca e já foi interrogando ao coronel
Tiburcinho. E afinal porque o senhor nos atacou, aliás, quem é o senhor? Sou coronel
Tiburcinho. Coronel da reserva? Coronel da Guarda Nacional? Coronel de patente
comprada? Sou um coronel a serviço do meu partido. E de onde o senhor esta vindo?
Estava a serviço em Cacequi. Conta daqui, explica dali, diz, rediz, desdiz, contradiz.
Capitão José mandou o Tiburcinho esperar e foi se preocupar com os feridos. Braço
quebrado, perna quebrada, tiro nas costas, tiro no ombro, tiro na barriga, dois muito
graves. As enfermeiras que preparem os feridos para transporte. Bota os cavalos nas
duas carroças. Dá um jeito de botar onze feridos em duas carroças. Daqui a estação
mais perto é São Lucas, o trem para Santa Maria passa em São Lucas as dez para as
três.
Em São Lucas e no Umbu ao meio dia chegaram as primeiras noticias de um
entrevero no Pau Fincado. Entrevero? Combate com mortos e feridos. A tarde a
noticia chegou a Santa Maria, o comandante da Brigada chamou o capitão ajudante
de ordens. Continência e posição de sentidos e o capitão escuta: capitão; vamos
averiguar o que houve no Pau Fincado; dois corpos provisórios. Quero punição ao
comandante que errou. Dá licença comandante; são corpos provisórios
independentes, foras da lei a serviço da lei. CAPITÃO! Desculpe senhor comandante.
Outra coisa comandante; tem um major cedido ao partido cuidando desta gente e
desta região: é o major Cruzaltino e está sediado em São Gabriel.
Em São Gabriel o major Cruzaltino deu dezenas de coices nas paredes. As
coisas ainda não estavam bem claras, poucos telegramas e com menos detalhes; uma
coisa era certa aconteceu o combate entre dois corpos provisórios. Já era noite
quando ele ficou sabendo o que realmente houve. Noite de ficar nervoso, noite de
perder a fome, noite de não dormir e fazer o quê? Bom; amanhã é outro dia. Tirou a
mala de madeira debaixo da cama e foi brincar com os soldadinhos de chumbo.
No acampamento do capitão Carancho aquele foi um dia nervoso. Só o capitão
sabia a missão dos dois: Andrezito e Velho Manduca, aliás, foi uma noite que ele
pouco dormiu, noite morna, vontade de levantar, sentar perto do fogo tomando
chimarrão e até um golezito de canha, porém a liturgia do cargo o impediu. Claro não
podia se mostrar nervoso ou indeciso diante de seus comandados. A ladainha dos
sapos, o pio do corujão de orelhas, o canto dos grilos, os passos das sentinelas, o
apito e logo o barulho de um trem. Muitos pensamentos; pensou na sua casa, na
esposa, nos filhos, saudades vontade de vê-los, muitas vezes passou perto de Três
Estradas, mas não chegou a casa com a precaução de não levar a luta para perto de
casa. Uma certeza ele tinha; Rosa a flor dos pagos estava furiosa com ele. Pensou na
sorte dos companheiros; tinha preocupações com o futuro do Terêncio; Terêncio com
mulher e filho deixou de ser peão de estância para acompanhá-lo naquela aventura.
Gostava muito do Mijão e se preocupava com ele, um guri com quatorze anos já
andando em entreveros, coisa que não precisava, foi numa noite de ronda que ele
contou para o capitão: o pai muito bem empregado na intendência de Bagé tinha boa
casa, dois irmãos estudando, mãe caprichosa e dedicada a casa e ele desde os doze
anos andando pelo mundo ao Deus dará. Outro com quem ele se preocupava era com
o Velho Manduca, aliás, era com o Velho Manduca um dos que mais ele conversava.
Velho Manduca dali do São Lucas, que casou, teve três filhos, teve campo, teve gado,
teve casa, teve família, ficou viúvo e os filhos seguiram os seus rumos e ele ficou só;
só e velho. Os filhos o abandonaram? Não; ele abandonou a família, ele botou o que
tinha fora em cabarés e carreiras de cavalos, ou seja; nas pernas de cavalos e nas
pernas de mulheres. Capitão Carancho pensava em um jeito de ajudar o velho. Não
deixavam preocupação o Andrezito e o Charles, os dois tinham bom comportamento,
boas idéias e eram de famílias ricas, andavam ali aventurando.
As saracuras deram os seus gritos; ”três potes, três potes”, nas bordas do mato,
os bugios saudaram o sol com seus gritos que ecoavam no mato. Um bem-te-vi
cantou, os sabiás iniciaram seu canto e o sol nasceu lá no Pau Fincado. Um trem
passou fazendo zoada. Andrezito e Velho Manduca não voltavam.
Chegaram cansados e com muito sono e a noticia: Tiburcinho aceitou a
informação e atacou o acampamento, o que aconteceu a gente não sabe que a gente
deu de volta fugindo. Perto do meio dia chegaram às noticias na venda e na estação
de São Lucas. Charles e o Mijão espionavam os movimentos na estação; chegaram às
carroças com os feridos. Certa euforia no acampamento. A coruja piou pousada no
galho seco. Capitão Carancho pensando. No acampamento um clima de duvidas
pairava no ar.
O sino da Igreja do Galo chamando para a missa, o major Cruzaltino levantou,
lavou o rosto e logo começou a armar seus planos; uma reunião com os comandantes.
Onde é mais fácil? O mundo ainda era grande e o tempo durava o tempo do tempo.
Reunião o mais rápido possível. Amanhã em Cacequi. Passar telegramas e falar com
o agente de São Gabriel para conseguir locomotiva.
No Pau Fincado feito o enterro dos mortos. Feitos os curativos nos feridos
leves. Conversa muito tensa entre o capitão José e o coronel Tiburcinho; o acerto de
se manterem em comunicação e o acerto de o coronel Tiburcinho fornecer homens
para auxiliar o capitão no serviço de bombeador. O grupo do coronel Tiburcinho
voltou a Cacequi. Capitão José mandou reorganizar o acampamento e mandou dois
homens ao Umbu, levar um telegrama a ser transmitido ao major Cruzaltino e um
homem permanecer na estação do Umbu, bombeando os movimentos e esperando
qualquer comunicação.
Muito cedo o Capitão Carancho encilhou o cavalo, chamou o tenente Terêncio:
vou dar uma voltinha, cuida o acampamento. Convocou o Louco do Rodeio Colorado
e o Velho Manduca. Foi um dia para reconhecer a região, andar perto do Pau Fincado
e pensar, pensar bastante, projetar e calar. Vontade de atacar o acampamento do tal
capitão José. Foi de noite, tomando o chimarrão que Terêncio perguntou o que
estavam fazendo ali, afinal o inimigo esta perto e nós conhecemos muito, pouco, esta
região. Terêncio cortando do Pau Fincado, pelo caminho que a gente veio, a gente
logo tá no Azevedo Sodré e de lá a gente gambeteia e some no meio do mundo. É
mas antes de gambetear e sumir no meio do mundo, nós bamos fazer a maturrangada
de atacar um corpo inimigo que está entrincheirado e tem mais; já foi atacado, esta de
olho vivo e pé ligeiro. Terêncio; medo? Carancho bota o nome que tu queiras, mas o
causo é que quem tem que nos atacar é ele e outra coisa, eu não escondo uma
preocupação, vai morrer gente.
Cacequi dos trens, Cacequi dos ferroviários; agente, telegrafistas, guarda-
chaves, chefes - de - trem, guarda-freios, mestre de linha, feitor, imediato, tucos.
Trens de cargas, dia e noite, noite e dia, trens de passageiros ao meio dia. Ao cantar
do galo a vila começava a se preparar para os trens; quituteiras preparando a massa e
o guisado dos pastéis, assando lingüiça e enrolando na farinha de mandioca, arroz
com leite, rapaduras de amendoim. Funcionários do restaurante iniciando o preparo
do almoço. Dez da manhã chegou uma locomotiva de manobra puxando o vagão –
improvisado -escritório do major Cruzaltino, junto com ele, o comandante do corpo
independente de São Gabriel; Bugio do Batovi. O major chamou o cozinheiro que
tinha o apelido de Bituca, entregou um rascunho de telegrama: leva ali na estação e
pede para transmitir este telegrama ao agente da estação São Lucas e aguarda a
resposta, outra coisa; passa no restaurante e encomenda bifes de charque, o Cacequi é
lugar de comer bife de charque.
Desapontado, um pouco receoso o coronel Tiburcinho se apresentou e lógico
que o major quis explicações do dito combate do Pau Fincado. Tentou explicar o
inexplicável e não explicar o explicável e a conversa foi e a conversa veio e o
cozinheiro voltou da estação com a resposta do telegrama e a confirmação que os
bifes de charque estavam encomendados e a terceira noticia; os trens estavam no
horário.
Às onze horas e dez minutos o capitão José embarcou no trem P31, na estação
da vila Umbu. Onde deixou o cabo Nortense aguardando o seu retorno ou algum
telegrama. Às onze horas e quarenta e cinco minutos saltou no Cacequi e apressado,
orientado por um guarda-chaves foi ao vagão do major.
O trem P34 ligava Santa Ana do Livramento a Bagé e às dez horas e vinte
minutos na estação de Rosário do Sul o comandante do corpo independente se
despediu de seu tenente o qual deixou alerta a qualquer mensagem, embarcou neste
trem para as doze e quinze saltar na plataforma do Cacequi.
O comandante do corpo independente de Don Pedrito às cinco horas da manhã
embarcou no trem P38 do qual saltou às sete horas em São Sebastião, onde às sete
horas e quinze embarcou no P33 que às doze horas e vinte e cinco minutos encostou-
se à plataforma do Cacequi.
O próprio major ao marcar a reunião, imaginou que seria uma reunião tensa e
cheia de diz que diz e outras cocitas más, mas ele conduziu a reunião com calma e o
telegrama que recebeu do agente de São Lucas o forçou a ser rápido. Em cima da
mesa uma travessa cheia de bifes de charque. Aqueles papos de milico; unidos,
coesos pela causa, disciplina, respeito, os melhores são apenas bons. A fumaça o
cheiro do charuto fedorento invadiu o vagão e o major tirou a travessa de bifes de
cima da mesa, estendeu o mapa da área: o Carancho esta nos matos do Rio Ibicui,
perto da foz do Rio Toropi, quase defronte a estação de São Lucas. O grupo do
Rosário desce até a estação Entroncamento; são cinqüenta quilômetros. O grupo do
coronel Tiburcinho sobe do Cacequi, costeando a ferrovia até o Umbu. Capitão José o
senhor depene o bicho. De Santa Maria vão lhe mandar dois brinquedinhos até o São
Lucas, espero que o senhor os aproveite, são emprestados para a ação no São Lucas.
O corpo de São Gabriel deve manter um pequeno grupo de sentinelas no Azevedo
Sodré e outro no Campo Seco. O corpo de Don Pedrito se mantenha alerta que
qualquer coisa nós mandamos aviso. Senhores o almoço no Cacequi já acabou,
peguem os seus trens de volta.
Naquela madrugada, deu confusão no acampamento do capitão Carancho;
sargento Capincho, que era o chefe da guarda, encontrou bem tonto e cheirando a
cachaça o Sobra do Cati e o Come Égua. Os dois estavam debaixo de umas figueiras
grandes junto com o Limpa Trilhos bebendo no gargalo de uma garrafa, o sargento
passou o pito nos dois, mandou irem para a barraca e mandou o Limpa Trilhos sumir
no mundo. Limpa Trilhos pegou o rumo da estação de São Lucas. Foi um dia de
duvidas e inquietação; os homens estavam ficando preocupados. Capitão Carancho
passou a manhã dentro da barraca cismando e a tarde montou e saiu, só, a recorrer à
beira do rio.
Tiaraju encontrou o Terêncio: e ai; o que o Carancho pensa da vida? Tchê! Ele
tá com vontade de atacar o tal capitão José. Tiaraju sacudiu a cabeça: escuta bem o
que eu te digo; socados aqui dentro deste mato, eles vão nos pegar.
Tardinha o capitão voltou sério, preocupado, cara de poucos amigos. A coruja
piou; hora da Ave-Maria. Um trem apitou lá na estação de São Lucas.
Anoitecendo um grupo de cavalarianos parou perto da estação de São Lucas;
cabo Nortense e mais dez homens. Desencilharam amararam os cavalos para pastar e
ficaram por ali sentados no chão aguardando ordem. Recostado na parede da estação,
boné vermelho na cabeça, Limpa Trilhos cuidava o movimento. Nove horas da noite
um trem de carga procedente de Santa Maria chegou ao São Lucas: tem manobra,
vamos deixar um vagão. Vagão gradeado de carregar gado, dentro gente e um
lampião acesso. Primeiro vagão, o guarda-freio puxou a alavanca do engate, a
locomotiva apitou e avançou só com aquele vagão que deixou na terceira linha do
recinto. O trem se foi soltando brasas beira trilho e o cabo Nortense foi até o vagão
onde estava um sargento, dez soldados e duas metralhadoras. E no escuro Limpa
Trilhos escutou a conversa. No mesmo momento voltou e correu pela beira dos
trilhos no escuro da noite até o local de atalhar entrar no mato e chegar ao
acampamento do capitão Carancho. Chefe da guarda o Tiaraju: Limpa Trilhos, tu
andas aqui trazendo cachaça pra esta cambada? Eu não, eu vim dizer ao seu Reduzino
Malaquias que tem duas metralhadoras. O quê?! O que não que? Tchê, fala com
calma. Chama o capitão. Um piquete de cavalaria que arribou dos lados do Pau
Fincado, um vagão de boi com duas metralhadoras e uns pata no chão e vem um
piquete do Cacequi...
Um tonto, outro calçando as botas, mais um, mais outro e logo estava todo o
pessoal de pé. Quando o Carancho pensou em pensar, Terêncio deu a ordem: levantar
acampamento. O capitão tentou entender a ordem, mas já o Velho Manduca estava ao
seu lado: capitão a gente pode cruzar o rio, ir até a boca do Rio Toropi, costeia o
Toropi até a estação da Vila Clara, de lá costeia os trilhos e se mete na serra de
Jaguari. Não mesmo; bamos voltar pros lados do Vacacai ou do Santa Maria. E
Terêncio foi esperto e já gritou: Ligeiro com isto que o capitão quer voltar para o
Santa Maria. Pensou, mas não disse: não tou aí pra aparar bala de metralhadora no
peito. O Louco do Rodeio Colorado já se apresentou como vanguardeiro. Tu vais à
dianteira, de vez enquanto por dentro do rio pra não deixar rastro, o Velho Manduca
vai mais atrás do Louco, na retaguarda o sargento Capincho e mais atrás o Come
Égua. Embora; por aqui que não tem espinho. Meia noite.
Sabiá laranjeira trinando, as saracuras gritando, os bugios guinchando, no
campo o grito do quer-quero, um galo retardatário cantou. Capitão José e o resto dos
seus homens chegaram pelo caminho do Pau Fincado. O trem de guerra fica aqui;
duas carroças, duas cozinheiras, duas enfermeiras e de guarda o Lanceiro. O ferreiro
com seu canto metálico de batida de bigorna, o pica-pau batendo o bico na ponta do
poste do telegrafo. Tropa em forma; curiosos olhando. Limpa Trilhos sentado no
banco da plataforma da estação. Um soldado, sorrateiro, chegou perto da porta da
venda, disfarçado entregou a guampa de carregar água ao bolicheiro: enche de canha.
Descarrega as duas metralhadoras. E agora? Como é que leva este troço? O
telegrafista entrega a mensagem ao capitão José: coronel Tiburcinho esta no Umbu.
Ele que avance costeando o rio e mande um grupo pela beira dos trilhos. Cabo
Nortense pegue cinco homens e siga pela beira dos trilhos até o Umbu. Tenente
Zequinha avance com o pessoal da metralhadora. Outra mensagem ao capitão José:
coronel Santelino do Rosário já esta de prontidão na ponte do Santa Maria no
Entroncamento.
A metralhadora na garupa do cavalo não vai dar certo, cuidado vai cair esta
merda. Bota a metralhadora na frente, segura bem, cuidado vai cair! Olha lá os guris
mexendo na metralhadora, sai daí moleque safado.
Cabo Nortense bateu continência ao capitão e seguiu por cima dos trilhos. As
metralhadoras vão pela beira do mato e o resto do pessoal pela beira do rio. Vamos
embora. O sorro assustado correu para o meio do mato, um quero-quero gritou na
beira dos trilhos, uma perdiz levantou vôo. Os batedores cautelosos, com olho vivo,
pé ligeiro e os ouvidos abertos. Voltou um ao galope, por dentro da água, respingando
tudo: o acampamento, o acampamento capitão, eu vi a fumaça. Sai fora do mato e
avisa o tenente Zequinha, mostra o lugar e manda sentar as metralhadoras.
Nervosismo, pressa, afobação, caiu um, levanta maturrango. Bota à metralhadora.
Um bando de bugios fez barulho no mato. Uma rajada ecoou no Rio Ibicui. O capitão
empinou o cavalo, nervoso, gritou: manda estes merdas esperar. Sargento Petiço
avance com os homens que eu vou lá nas metralhadoras, todo cuidado é pouco. Sim
senhor! O sargento Petiço de São Borja avançou cauteloso, mandou fazer, alto, apear;
a frente fumaça e cheiro de lenha queimando. Muita calma, passo a passo, se
escondendo atrás das arvores. Fogo nenhum, brasas, muita cinza, muita fumaça. Os
filhos da puta já foram. E agora José? Procura o rastro, para que lado eles foram? Aí
vem gente, vem pela beira do rio, cuidado, se escondam. Coronel Tiburcinho e seus
homens. Buenos dias capitão, tudo bueno? Não, o Carancho sumiu. Vim costeando o
rio desde o Umbu e não vi rastro, mas o canoeiro do passo ali no caminho do Umbu
para São Vicente me disse que esta madrugada ele escutou movimento grande de
gente costeando o rio. Viu quem eram? Viu para que lado iam? Não viu e me disse:
eu não tenho pai na cadeia e nem mãe no cabaré pra me arriscar a botar a cara fora da
porta de madrugada. Um comandante é um comandante que comanda: Tenente
Zequinha leve estas metralhadoras para a estação e ajude a carregar e devolva estas
bugigangas para Santa Maria, passe um telegrama ao coronel Santelino na estação
Entroncamento: reforce e mantenha vigilância Rio Santa Maria. Outra coisa tenente
Zequinha, pegue o trem de guerra e siga para o Cacequi e lá aguarde telegrama ou
aviso, na estação. Coronel Tiburcinho: vamos descer o rio; o safado do Carancho ta
disparando para os matos do Rio Santa Maria.
A grande ponte metálica, sobre o Rio Santa Maria, perto da foz deste com o
Rio Ibicui entre as estações de Cacequi e Entroncamento; a maior da América do Sul,
o Louco do Rodeio Colorado, escorado numa corticeira, olhando, e atento. Voltou a
todo o galope ao encontro do piquete: tão nos esperando lá na ponte. É mais de meio
dia, é mais de doze horas de marcha, marcha difícil em beira de rio, ora dentro de
mato ora dentro da água. E agora capitão Reduzino Malaquias? Capitão o pessoal que
estava em São Lucas deve tá vindo no nosso garrão. Diga Velho Manduca. Capitão,
vamos seguir pela margem do Ibicui até a curva do Itapevi, se for o causo de pelear
com esta gente, vamos chamar eles lá pra serra do Caverá.
À tardinha, debaixo da ponte o encontro dos chimangos, cheio de perguntas e
vazio de respostas. Aqui não cruzou. Na campanha cruzar pode ser sinônimo de
passar. Não Passou? Não; e eu tenho gente espalhado na beira dos trilhos desde o
Cacequi até a estaçãozinha do Saicã. Do Cacequi a Entroncamento dez quilômetros,
do Entroncamento ao Saicã mais três quilômetros. E agora José? O balseiro no
caminho do Cacequi para São Vicente disse que eles passaram lá. Então ele seguiu
pela beira do Ibicui no rumo do Caverá. Bueno, ta ficando de noite, o senhor tem bóia
coronel Santelino? Não, senhor capitão. Mas ali perto da estaçãozinha do Saicã tem
um lote de bois. Requisita dois ou três e vamos fazer um assado. E o senhor coronel
Tiburcinho; vai para o Cacequi? Não, senhor capitão, amanhã a gente continua no
rastro do safado do Carancho. Amanhã muito cedo eu e o coronel Tiburcinho
seguimos pela margem do Ibicui e o coronel Santelino segue pela beira dos trilhos.
Onde é a primeira estação? Ala puta! Eu sei que logo ali tem o Saicã, mas depois eu
não sei, eu não conheço a linha para o Alegrete. Chama o cabo Nortense. Pronto
capitão. Qual a estação depois do Saicã? É o Itapevi e acho que fica a uns vinte
quilômetros do Saicã.
Madrugada de domingo, não armaram as barracas para não ter atrasos. Chama
o Velho Manduca: explica donde a gente tá. Capitão aqui é o Itapevi, a gente já tá
perto do Caverá, e adiante do Caverá é o Jacaquá, do Jacaquá sai uma estrada que
cruza o rio e vai até São Francisco de Assis. Se a gente vai pela beira do rio logo ai
adiante tá a foz do Rio Jaguari, subindo pelo Jaguari vai até o Rio Inhacundá. Capitão
Carancho andou de leste para o oeste, avançou para frente, recuou para trás, subiu na
barranca, desceu. O Louco do Rodeio Colorado repetia: Inhacundá, Inhacundá. O
capitão perguntou ao Velho Manduca: e pra gente da de volta lá pro Rio Santa Maria?
Capitão é fácil; subindo aqui a barranca do rio à gente passa ali na estação do trem e
do outro lado da estação tem uma estrada que vai cortando caminho até a estação de
São Simão, lá na linha de Cacequi para Santa Ana. São Simão, lá na Remonta do
Exercito? É sim, senhor. E fica longe? De quarenta a cinqüenta quilômetros. Então
bamos embora. Rápido levantaram acampamento e entraram no povoado do Itapevi,
luz na estação o capitão foi conversar com o agente, saltou do cavalo, subiu a
plataforma arrastando esporas: buenos dias seu agente, o senhor me dá licença? Bom
dia, pois não. E conversa e fala do tempo e no relógio marca quinze para as cinco, um
galo canta. Ainda esta escuro e o agente conta que esta esperando um trem de cargas
que vem da estação Saicã e conta que o agente de Saicã contou que lá tem uma tropa
de chimangos pronta para sair no rumo do Itapevi. Vem pra cá? Diz que vem. Quero
passar um telegrama: coronel Simplício, estação Biboca; sigo para São Chico por
Jacaquá, aguardo nos matos do Inhacunda. O agente contou o numero de palavras a
tarifa dos telegramas era pelo numero de palavras. Cobrou. Pagou, agradeceu e antes
de sair pediu: se perguntarem por nós diga que seguimos para o Jacaquá por cima dos
trilhos. Atravessaram os trilhos mergulharam no escuro da madrugada em busca da
estrada. Um galo cantou no Itapevi.
A tropa do coronel Santelino viajando pela beira dos trilhos chegou muito antes
no Itapevi. Obteve as informações e ficou no aguardo. Quase três horas, depois,
chegaram capitão José e Coronel Tiburcinho. E buenas. Buenos dias. E daí? É diz que
o homem cruzou por aqui esta madrugada. Ele teve na estação? Sim. Passou
telegrama? Sim. O que dizia o telegrama? Segredo; o agente não disse, eles não
podem contar o que diz nos telegramas. Que rumo tomou? Diz que seguiu por cima
dos trilhos rumo de Jacaquá. Esta tal de Jacaquá é a próxima estação? É. Então vamos
em frente que atrás vem gente e o sol tá quente. E na frente tem um cerro e dez
quilômetros depois do Itapevi um grupo de casinhas de madeira na beira dos trilhos,
uma vilinha do pessoal da manutenção da via férrea; os tucos. O Caverá, naquele
tempo ainda não tinha a estaçãozinha, apenas um ponto de parada chamado KM 155.
Meio dia, cheiro de feijão com graxa e charque. Gente desconfiada, tempo de
revolução, gente armada, gente mal encarada, tempo de medo. Passou gente aqui?
Não sei. Não vi. Eu levantei tarde. É parece que passou. Barulho eu ouvi, mas não me
levantei pra olhar. Em frente que o domingo se acaba.
Festa no Jacaquá, dia de carreiras. Carreira de mano, Jacaquá era o chão das
carreiras de mano e mesmo em tempo de revolução não era o tempo de fazer penca
grande que era perigoso muito ajuntamento. Mesmo assim tinha bastante gente, tinha
carpeta de jogo de carta; truco e primeira, cancha de jogo do osso e pastel que
carreira sem pastel não é carreira. E alguém viu e alguém gritou; por riba dos trilhos
vem um piquete da revolução. É lenço branco. É bandido legal. E a rapaziada nova
correu para se esconder no mato que tinha o perigo de serem forçados a serem
voluntários; se dizia voluntário a maneador. Uns dois ou três, mais precavidos,
abandonaram a festa e foram dar jeito em esconder cavalos e gado; antes que estes
bandidos requisitem. E chegaram e olharam e acenaram e buenas. Gente desconfiada,
gente preocupada, gente olhando e os coronéis perguntaram: aqui passaram uns
revolucionários? Nada de revolucionário. Por aqui não apareceu ninguém.
Correram a carreira e o ajuntamento foi acabando e o capitão José preocupado.
Cabo Nortense matou a charada: capitão aqui do outro lado dos trilhos tem um
caminho que passa no Itapevi e vai até o São Simão lá perto do Rio Santa Maria.
Pronto não precisa dizer mais nada...
Hoje a gente dorme aqui e amanhã a gente volta. Vocês não têm trem de
guerra, voltam um para o Cacequi e outro para o Rosário e eu vou sair na busca do
Carancho. Cabo Nortense vai ali na estação e passa mensagem para o tenente
Zequinha no Cacequi: venha para o Saicã.
Dia escuro; muita chuva, nuvens baixas tocando no topo dos morros que
circundam Santa Maria. No recinto ferroviário homens encapotados orientando
locomotivas de manobra a desmontarem e montarem composições. Um trem apitando
sai rumo à linha da serra. Relâmpago seguido de trovão, muita chuva. Vestida de
preto, a esposa do capitão José acompanhada dos três filhos sai para ir a igreja rezar o
terço. A velha mãe dela, toda enfeitada, unhas grandes pintadas com esmalte bem
vermelho, acompanhada da filha caçula. Caçula não; filha mais moça, que este
negócio de caçula nunca serviu pra ela. Sempre foi diferente das outras três irmãs,
decidida, disposta, de muito pensar, de pouco falar. Quando o pai adoeceu uma não
podia cuidar, a outra não sabia cuidar, a outra não tinha tempo. Ela não tinha tempo,
ela não sabia, ela não podia, ela nada disse e cuidou o pai doente com afinco, amor e
dedicação. Nos episódios da divisão da herança ela só escutava e sorria. O marido
telegrafista da estrada de ferro recusou uma promoção para agente a fim de poder
ficar em Santa Maria e ela poder acompanhar a mãe. A mãe, fumando, tomando mate
doce viu a filha sair debaixo de chuva e comentou: loucura desta guria, sair com esta
chuva, loucura do José se meter em revoltas, ontem falei com a velha Leopoldina,
aquela lá do Umbu, ela veio me trazer um licor de batata-doce e ela me disse que a
tropa do José tem raparigas. Mamãe, mamãe, quando ela repetia estas palavras, nada
mais dizia, mas pensava: a velha Leopoldina tem veneno na ponta da língua; o
veneno da língua humana é mais cruel que o veneno do dente da cascavel. Sabes
quem é a cozinheira deles? Aquela que andou lá no Umbu, ela é daí do Dilermando
de Aguiar, a tal de Josefina Risoleta, aquela rapariga, puta...
Josefina Risoleta, a filha mais velha, pai peão de estância. Dia de rodeio, aparte
de gado, numa paleteada junto com tal de Fininho, que era outro bom peão, o novilho
gambeteou e enfiou a guampa na paleta do cavalo, saltou, tropeçou, rodou e o peão
quebrou o pescoço; morreu. Preocupação para o fazendeiro: atrapalhou o serviço,
ainda ia ter que pagar as despesas do enterro e mais; ia precisar contratar outro peão e
aquela gente ia ficar ocupando a casa, casa não; casebre, casebre não; casebrezinho.
Mãe viúva, muito doente, cinco filhos, conseguiram um galpãozinho para morar na
vila de Dilermando de Aguiar. Josefina ajudando a cuidar os irmãos, vendendo bolo
na estação na hora dos trens, lavando roupas para os ferroviários solteiros, foi
trabalhar de doméstica na vila de São Pedro e lá o marido da patroa botou ela contra a
parede: o dá ou vai embora. Os irmãos com fome, o remédio da mãe. Deu, com nojo,
mas deu e dava e ganhava um pouquinho mais. Dava e depois se lavava, se lavava e
se lavava e depois chorava e chorava. A guria ficou maior e ficou uma moça bonita e
voltou para Dilermando e continuou trabalhado e ajudando os irmãos e a mãe. O
guarda - chaves, metido a galã, conquistou a moça e acertou uma amigação e foram
morar no Umbu e o dito cujo queria uma mulher para cama, cozinha e ainda ele
descarregar as frustrações: mulher eu bato de porrada, mulher minha eu cago a pau.
Durou pouco a coisa e ela voltou para Dilermando. A mãe morreu os irmãos
cresceram; um sargento do exercito, dois ferroviários, e um botou comercio em
Cacequi. Josefina Risoleta, trinta e cinco anos de alegrias, tristezas, derrotas, vitórias
e muita luta.
Chove nos campos de Saicã, relâmpago, trovão. Noite, silencio no
acampamento do Corpo Independente de Guerrilhas do Umbu, na barraca da cozinha,
no canto ao fundo atrás da pilha da lenha e dos sacos com farinha de mandioca, feijão
e charque, iluminados por um candeeiro de fraca luz, sentados nos pelegos, tomando
chimarrão e jogando o osso de brincadeira com um ossinho de garrão de ovelha em
cima de um pelego; Josefina Risoleta e cabo Nortense. Os passos do guarda fazendo
chape-chape no campo molhado. Cheiro de campo molhado, cheiro de chuva, cheiro
de fogo, cheiro de lenha verde, cheiro de charque, cheiro de pelego, cheiro de urina
de cavalo, cheiro de bosta de cavalo, cheiro de canela em pó. Canela em pó? É. Ela
botou canela na cuia do chimarrão. Cheiro de mel, ela botou mel no chimarrão. Os
dois rindo, alegres, bom estar perto de bom estar junto de. Andando em lutas, quanto
tempo sem tomar um banho, quanto tempo sem mudar a roupa, os corpos têm muitos
cheiros, os dois estão alegres, ele segura a mão dela. Chove, a noite é escura. O
cheiro de desejo é mais forte que os outros cheiros, ela treme, ele treme, a cama; os
pelegos a coberta é o poncho e chove nos campos de Saicã.
O Piquete Carancho das Três Estradas, acampado no mato da margem do Rio
Ibicui da Armada, defronte o povoado de Santa Rita. Santa Rita estação na linha
Cacequi a Santana. Problemas, preocupações e incertezas. Uma certeza; os tempos de
passar telegramas, correr daqui para ali de ali para aqui, descarrilar trem, cortar fios
do telegrafo já passaram. Agora tem um inimigo perseguindo. Difícil encontrar gado
para abate; nos campos da campanha não se vê um boi. Nem acendendo vela para o
Negrinho do Pastoreio não se acha um terneiro magro. Pouca comida, quase
nenhuma, ontem foi só uma ração de jacuba, hoje o Terêncio foi à estação de Santa
Rita, requisitou na venda do povoado, farinha de trigo e açúcar e a ração foi farinha
de cachorro. Farinha de cachorro, comida pobre da campanha; farinha de milho
torrada com açúcar. O dono da venda de Santa Rita foi à estação e passou telegrama
avisando ao coronel Santelino. Para complicar a situação o Cara Cortada se mandou a
lá cria; desertou. Onde foi? Passou para o lado do inimigo? Foi informar nossa
posição? Para aumentar a coisa; o Louco do Rodeio Colorado encontrou o Come
Égua comendo a égua dele na beira do rio e quase brigaram. Tiaraju foi quem
acalmou os dois. Terêncio andava calado, estranho, e até de bronca com o capitão. O
sargento Capincho o abriu os olhos: Terêncio te mantém calmo tchê. Esta fase passa,
o Carancho gosta de ti, depois que esta merda desta droga desta revolução terminar
até tu podes trabalhar com ele, ele tem sorte e sabe ganhar dinheiro.
Capitão Carancho tomou a decisão: bamos a Serrilhada, que lá tem gado de
reserva e charque e lá eu penso o que fazer.
Na estação Retiro as três barracas dos guardas, gente da infantaria. A guria,
mocinha já; dezesseis anos, sentiu enjôo, atrasou as regras, chorou assustada. O pai
uma fera a mãe braba de educar dando tundas e mais tundas: tu tem inducação ou eu
te cago de pau. Tu arrespeita ou eu te dou um tapa na fuça. E agora? Chorou e contou.
E quem foi? E Quem não foi? Chama o delegado em São Gabriel. Calma, Foi
soldado. Qual deles. Foi um, foi dois, foi três. Mostra. O sargento estabanado: não se
brinca com a honra e a moral. Fuzila. O quê? Fuzila os três; sorteia: os cinco
atiradores, eu comando. Sorteia a ordem de fuzilamento. Tristeza, tensão. Um infeliz
esperando a morte, cinco homens, uniformes limpos e bem aprumados, posição de
descansar, arma ao lado da perna: pelotão apontar. Energia a perna esquerda levanta e
junta à direita batendo os calcanhares com força e no mesmo instante a arma é
erguida na vertical e ao lado do corpo e posição de atirar. Fogoooo!
Rita era magrinha, meiga, tímida, quietinha e ajudava a mãe a fazer e
vender rapadurinhas de leite. Mãe viúva, uma única filha e as duas se viravam. Rita já
mocinha, vendia rapadurinhas de leite na estação na hora dos trens. Em Ibaré
passavam dois trens no dia; as oito e meia e a dezessete e quarenta. Outra que vendia
rapadurinhas na estação; Madalena, esta era mais refestelada, mais barulhenta. E
chega o pelotão de guardas e as moças do Ibaré ficam faceiras. E o cabo era loiro do
olho azul e até a Rita olhava para o cabo; olhava assim meio assim, meio por baixo
bem disfarçada. Madalena olhava e olhava olhando para o cabo e tem mais até
puxava conversa. O cabo era homem e homem é bicho esperto e logo atinou; se me
envolvo com esta espertalhona da Madalena eu arrumo complicação. E o cabo não
olhava para a Madalena e olhava a Rita. Madalena ficou braba com a Rita e acabaram
brigando na plataforma da estação: lambisgóia. És tu, exibida, colorida, come casca
de ferida na hora da comida. Exibida é a tua avó. É a tua que é mais perua e que anda
sem calças na rua. O cabo não ligou para a briga e continuou olhando para Rita e até
confidenciou com o Macaco: eu vou comer esta Rita. E o cabo se aproximou de
mansinho e conversa ontem e conversa hoje e conversa e de noite aconteceu atrás da
estação. Aconteceu e a Rita contou para a mãe. A mãe da Rita era a viúva do finado
Rui que morreu tuberculoso e no Ibaré diziam as velhas tomando mate doce: morreu
do pulmão por causa dela que ela não dava descanso pro homem era toma e toma, ela
é só fogo, é fogo vivo, ela vivia dando gemada com farinha de mandioca pro homem.
No Ibaré dizem que gemada com farinha de mandioca é bom para dar tesão. Pois o
cabo comeu a Rita e a Rita contou pra mãe e a mãe da Rita, pegou a Rita, pegou o
trem e foi a Santa Maria e contou para o comandante e o comandante mandou o
médico examinar a Rita e o médico confirmou: foi comida. Cabo comeu; casamento
ou cadeia? Casamento. Festa no Ibaré.
Na Estância do Céu o negro Arlindo e sua filha Ana Rosa, famosos naquele
pedaço de chão por serem bons na lida de campo. Ana Rosa a negra mais bonita que
Deus botou no mundo laçava, pialava, atirava boleadeiras e gineteava. Juntava gente
pra vê-la montar em cavalo xucro. O pelotão que estava acampado no Vacacai
também guarnecia a parada Estância do Céu. Vindo da colônia alemã o soldado
Erwwin cabelo amarelo, olhos verdes, pele muito branca se apaixonou por Ana Rosa,
paixão correspondida. Arlindo andava botando fogo pelas ventas: esse branquelo de
olho na minha guria. Erwwin também sabia que a família dele não ia aceitar o caso
dele se envolver com uma moça de cor preta. Decidida como era a Ana uma noite que
Erwwin estava de guarda, ela o roubo na garupa do cavalo e foram viver nos matos
do Rio Vacacai.
Trouxa na ponta de uma vara, vara no ombro, boné vermelho, caminhando com
calma, há tempos que não andava naquele trecho de ferrovia; o trecho Cacequi -
Rosário- Livramento. De Rosário a estação Guará vinte e dois quilômetros. Chego no
Guará vou conseguir uma bóia que as tripas tão roncando, não sei se é fome ou
vontade de comer. Só um cavalo amarrado na frente da venda, chegou desconfiado, o
dono do cavalo apareceu na porta da venda: Limpa Trilhos, tu aqui tchê. O Cara
Cortada. Compraram uma garrafa de cachaça e foram sentar perto dos trilhos,
tomando goles no gargalo. O bem-te-vi gritou: bem-te-vi te-vi vi. Um mulato, magro
alto, calçando tamancos, caminhando por cima dos trilhos, disse bom dia e perguntou
se estava longe de Porteirinha. Cara Cortada coçou a cabeça, olhou o Limpa Trilhos
como quem diz; de beira trilhos quem entende é tu. Limpa Trilhos, levantou apontou
a estação e disse: aqui é o Guará. Disse e sentou sem mais nada dizer. Cara Cortada
que conhecia um pouco aquele pedacinho de mundo disse: depois é Santa Rita,
depois cruza na Concórdia e depois é a Porteirinha. O mulato coçou a cabeça: bá, mas
ainda tem muito chão. Olhou a garrafa de canha com vontade, Cara Cortada ofereceu,
bebeu o gole com gosto, agradeceu e seguiu por cima dos trilhos batendo tamancos,
não caminhou mais que um quilômetro, olhou um capão afastado dos trilhos: vou
descansar na sombra.
Cara Cortada e Limpa Trilhos voltaram à venda onde comprou outra garrafa de
cachaça, um pacote de gajetas. Cara Cortada montou e os dois seguiram por cima dos
trilhos no rumo de Santa Rita, iam distraídos quando o cavalo murchou as orelhas,
ergueu a cabeça. Uma moita de arvores na beira dos trilhos, uma preá correu para o
meio dela e detrás da moita saiu um grupo de homens, montados, apontando armas e
o coronel Santelino gritou para os dois: parados aí. Levantem os braços. Cara
Cortada, entre surpreso e com vontade de dar meia volta no cavalo e fugir, mas o
grupo de chimangos do coronel Santelino de Rosário foram rápidos e os dois estavam
cercados. O mulato dos tamancos, que descansava debaixo de uma arvore no capão
afastado dos trilhos escutou os gritos e assustado foi para trás de uma árvore e ficou
espiando. Os chimangos amarraram as mãos, dos dois presos, ás costas e ainda os
laçaram pela cintura. O grupo seguiu para o capão.
Tremendo o mulato entrou no meio de uma moita muito fechada de espinhos e
ficou rezando.
O grupo parou na borda do capão e o arrogante coronel Santelino começou a
interrogar os presos: Donde tá o sem-vergonha do Carancho? Fala Cara Cortada filho
da puta. Cara Cortada olhou o coronel, cuspiu com nojo e ficou calado. O arrogante
caudilhote Santelino olhou para o Limpa Trilhos: e tu louco, safado, Limpa Trilhos de
merda, andas metido com os maragatos, cadê o Carancho? Limpa Trilhos olhou bem
para o coronel e disse: ontem saiu dois trens cheios de bois do brete de Bela Vista. O
coronel não gostou. Continuou interrogando a os dois. O Interrogatório durou mais de
uma hora e os dois não revelaram onde andava o capitão Carancho. Assustado o
mulato escutou tudo. O corneteiro tocou; degola.
Chegou de noitinha no povoado da Porteirinha, fazenda de confiança, ali perto
da estação, fazendeiro maragato, mandou carnear um boi e fazer o churrasco no
galpão. Não precisa armar as barracas, podem dormir dentro do galpão. Fazenda
grande, curral grande, galpão grande e casa grande com alpendre. No alpendre um
lampião, na volta do lampião, esvoaçando tontas as mariposas, sentados perto do
lampião o dono da fazenda e o capitão Carancho e perto deles um fogareiro de
carvão, brasas vivas, a chaleira e os dois tomando o chimarrão. E conversa que vai e
conversa que vem, conta de lá e conta daqui, e fala no tempo e conta: mas capitão,
agora no fim da tarde, pouco antes do senhor chegar, chegou aqui na fazenda um
mulato batendo tamancos, acredita que veio a pé por cima dos trilhos duma estação lá
perto de Santa Maria, o tal mulato chegou assustado e contando que por volta de
meio dia viu o Santelino, aquele ai de Rosário, pois viu o Santelino mandar degolar
dois homens. E o capitão Carancho ficou interessado e quis saber mais e o fazendeiro
levantou olhou para o escuro e gritou um nome. Logo um vulto no meio do escuro da
noite perguntou: qué alguma coisa patrão? É, chama o teu sogro. Logo dois vultos no
escuro. O mulato de tamancos chegou mais perto do alpendre: diga seu chefe. Seu,
conte a história da degola aqui para o capitão Carancho. A. Pois é mesmo, é boa noite
seu capitão. Nu acontecido, que foi lá naquele lugar que o nome que tá na estação é
Guará, foi o causo que até deu degola de dois que um andava de a pé e um outro que
até andava de cavalo, que cada um tinha até um apelido, que num causo um era de
apelido Cara Cortada e que o outro até era Limpa Trilhos...
E o mulato dos tamancos contou o que viu e o que ouviu. O capitão agradeceu
o mulato pediu licença e dois vultos sumiram no meio da noite.
Filha da puta degolou o Limpa Trilhos e o Cara Cortada, que desertou, mas que
não traiu. Cagar este filha da puta de pau. Este Santelino é fazendeiro? Não, capitão;
ele tropeia cavalos e burros, negocia cavalos e burros, compra e vende. Ele tem um
campo, que ele arrenda, ali em Corte e lá ele tem mais de cem cavalos e burros. Ah
então ele mora em Corte? Não, ele mora em Rosário, ali bem na beira do rio. E o
fazendeiro deu uma risada, levantou entrou na casa e voltou com a folha de um
jornal: isto aqui é um jornaleco muito a toa dos chimangos que até é feito ai em
Livramento, papel é podre e solta à tinta e vem com muita falta de letras, que ai é
burrice deles. Este aqui foi o agente ai da estação que me deu, veja esta: na
plataforma da estação de Rosário conversamos com o coronel Santelino; o Galo de
Rosário, que tem um corpo de valentes cavalarianos e independente a serviço do
partido e da lei. E aí o Santelino diz um mundo de bobagens onde diz: no causo deste
tal de Carancho que na verdade é um Tico-Tico molhado, nós já botamos ele pra
correr lá no combate do Campo Seco, fugiu que nem cusco ladrão com a cola no
meio das pernas e agora o nosso Quero-Quero do Umbu anda com ele por diante
como quem tropeia galinha magra... O fazendeiro dobrou a folha do jornal e
entregou ao capitão. Leve para o senhor ler as bobagens do Garnisé de Rosário. O
capitão pegou o jornal e disse: as coisas que ele caga boca a fora eu não me preocupo,
mas o desgraçado degolar o Limpa-Trilhos.
O Quero-Quero do Umbu mandou a tropa acampar no Jeriquá, povoado na
beira do caminho de Rosário para o Azevedo Sodré e foi a estação do Sodré para se
encontrar com o major Cruzaltino. O major entregou o mapa: aqui o mapa que o
capitão me encomendou. Abriu o mapa, olhou: é bom, mas é o mapa da estrada de
ferro, eu preciso, bem na verdade eu preciso é de um vaqueano, eu preciso é de
alguém que conheça estes cantos aqui neste mundo que vai pra Don Pedrito, São
Gabriel, Bagé a fronteira. Eu servi em Santiago do Boqueirão, conheço aquele canto
do Rio Jaguari ao Rio Piratinim, meu cabo; o cabo Nortense, foi vendedor de
homeopatias e tinha sua base no Cacequi, ele conhece aquela volta do Cacequi o
trecho Cacequi - Santana, Cacequi - Alegrete. Capitão José fique calmo, vou falar
com o Bugio do Batovi e conseguir um vaqueano. Major; se vier mais que um eu não
fico brabo. Eu agora vou vasculhar este bico da Campanha; bico feito pelas retas;
Cacequi - Santana, Santana - Bagé, Bagé – Cacequi. Vou vasculhar como quem
procura agulha em palheiro. O coronel Santelino já distribuiu gente ao longo da linha
férrea desde o Cacequi até Santana pra ficar bombeando e se informando, faz uma
semana eles passaram na Santa Rita e até roubaram mercadorias na venda e depois
passaram na estação Porteirinha, lá foi ligeiro, chegaram de noite e quando a Estrela
Boieira apareceu no horizonte eles picaram a mula e se mandaram. Capitão eu vou
solicitar uma vigilância maior deste pessoal que está guarnecendo as estações e vou
pedir a o Bugio do Batovi que mantenha o posto de vigilância no Campo Seco.
O corpo provisório de guerrilhas acampado no Jeriquá, Josefina Risoleta
alegre, faceira, contente, com sorriso nos lábios e brilho nos olhos; amando e sendo
amada. A ajudante de cozinheira; a Ritinha, magrinha, baixinha, bonitinha, nunca
teve um namorado, reclamava: guria eu já tou vesga de olhar pra esse tenente
Zequinha e o homem nem me enxerga. Luiza a enfermeira, ria com gosto das
reclamações da Ritinha. Luiza, negra, alta, bonita, olhos grandes, dentes muito
bonitos. Muito caprichosa e enfermeira por gosto e vocação, filha de mãe benzedeira
e parteira, com quatorze anos casou e foi um tempo feliz que o marido era ferroviário,
guarda-chaves na estação de Taquarichim no ramal de Dilermando a Jaguari, um
casal de filhos, casa limpa, alegria, num bonito dia de primavera um vagão saiu de
cima dos trilhos na entrada do recinto de Taquarichim e esmagou o guarda-chaves. A
quarta mulher do corpo provisório, ajudante de enfermeira; Dalva, não dizia a idade,
mas tinha mais de sessenta anos, o rosto feio, era muito séria, a pele manchada, mas
de muito bom coração. É aquela coisa; quem vê cara não vê coração, conhecida na
vila de São Pedro do Sul de onde nunca saiu, casou jovem, marido trabalhador, dono
de comércio, quatro filhos e um dia ela não controlou o fogo do desejo e se largou a
deitar com um e com outro e fez a loucura de abandonar marido e filhos.
Cabo Nortense e o Lanceiro do Carovi andavam no campo armando mundéus
para pegar perdiz. Os campos da campanha tinham fartura de perdiz. Sargento Petiço
chefe da guarda, sempre alerta. O tenente Zequinha; sentado no chão e fazendo o quê
mais gostava, trançando couro; um laço de doze braças para dar de presente a um
afilhado de São Sepé que já vai fazer quinze anos.
Já havia no corpo um maior conhecimento e um melhor entrosamento entre os
homens. A tropa esta unida e coesa em defesa da lei e a salvação da pátria. Tinha dois
primos, gente vinda da colônia de Pelotas, descendentes de pomeranos, gente que
tinha o sangue na guerra e a guerra no sangue, pra dançar dançam parecendo ordem
unida, pra comer; comem como sendo em ordem unida; o Turquinho que era muito
gozador dizia: estes ai até pra cagar, cagam em posição de sentido. Os dois loiros e
muito parecidos. Primos? Ué, mas é cara dum focinho do outro. Turquinho, baixinho,
gozador, destoou da raça ao invés de andar vendendo bugigangas e sonhando em ter
uma loja, fugiu de casa pra se meter em bochichos de política. Era a pulga na camisa
do sargento Petiço, que os dois não se olhavam com bons olhos: ainda vou botar a
Dalva em cria com esse Petiço. Zé do Taquirichim, o mais relaxado de todos; as
bombachas eram mais remendos que o pano original, a bota esquerda preta e cano
alto, a bota direita toda rasgada, amarela e cano curto, atirava muito bem, manejava
as boleadeiras com muita perícia, guapo no jogo do osso, jogo que não é de azar é
jogo de perícia.
Ali ficaram acampados quatro dias aguardando a chegada do vaqueano que o
major prometeu. Chegaram; três. Dois irmãos, tipos mais estranhos, xucros, vestindo
xiripá e botas de garrão de potro. A bota de garrão é assim; mata o cavalo, corta o
couro na volta da pata, lá embaixo no garrão e em cima perto do joelho, ou seja, na
transversal, puxa sem rasgar, mantendo o formato, deixa secar e enfia no pé, claro
que o meio do pé fica desprotegido. Gente de um lugar chamado Vacaiquá la no fim
do mundo passando Don Pedrito já nos rumos de Santa Ana. O terceiro um mulato
fedendo a cachaça e dizendo que era macho e que nele macho nenhum mandava;
presente do Bugio do Batovi ao capitão José.
O grito das saracuras na beira do mato o sol começando a crescer lá atrás
do horizonte, um casal de capinchos se jogam nas águas do Ibicui da Armada. Estão
mais calmos, pois já estão perto da Serrilhada, quer dizer, nem tão perto que ainda
tem que costear o Rio Upacarai e depois cruzar os campos do Ponche Verde. Ou
quem sabe costeamos o Rio Upamaroti. Atravessamos os banhados do Upamaroti e
costeamos a linha de fronteira. Coê-pucha! Fica mais longe, descemos costeando o
Upacarai até a metade e depois atalhamos os campos do Ponche Verde...
Bueno minha gente! Pegar os pingos, encilhar e dar jeito na vida que a vida é
boa, mas é curta. Na campanha pingo é cavalo bom. E bota o freio e ajusta a barbela,
freio sem barbela não freia e passa a mão no lombo do cavalo. E cavalo e cavaleiro se
ajeitam para a viagem. Tem o enxergão que é uma manta grossa de lã, e tem a carona
que é de couro e bota em cima do enxergão, e tem o lombilho, o lombilho é uma
espécie de sela, mas muito melhor que a sela é mais comprido, tem a parte de trás
igual à frente, permite acomodar bem os pelegos. Bota o lombilho, bota a chincha,
aperta a chincha e bota a maleta em cima do lombilho um pouco mais para trás.
Maleta? É a maleta feita de pano, duas partes iguais onde se carrega uma ou duas
bombachas, uma ou duas camisas, uma ou duas cuecas. Botam os pelegos, dois ou
três, pelegos de boa lã que ajudam no conforto da viagem e no conforto do dormir
que os arreios servem de cama e que cama boa. Nos tentos, tentos são tiras de couro
que se amarram atrás do lombilho; nos tentos a cambona de aquecer água, um saco
pequeno feito de couro com a cuia, bomba e erva-mate, o laço e a boleadeira. E atrás
do lombilho atravessado no lombo do cavalo a mala de garupa com o poncho ou a
capa e ajeitado, dobrado em cima da mala o bichará, que é uma manta de lã
geralmente de duas ou três cores. A sobrechincha para prender os pelegos. Sim e
como ninguém anda tropeando ou parando rodeio e sim em andanças de revoluções;
o fuzil.
O Paisano de Vichadero bota o freio no cavalo, tira o buçal e vai pendurar num
tento. Louco do Rodeio Colorado ajeita os quatro pelegos e por cima o bichará, que
pra ele o lombilho é trono e na campanha ele é rei. Costume do Terêncio, de manhã;
antes de montar joga o laço de todo o comprimento e depois enrola com calma. Mijão
joga os arreios de qualquer jeito em cima do cavalo e o Velho Manduca chama a
atenção dele e vai ensinar: guri tu tens que aprender. Tiaraju se agacha para apertar as
nazarenas na botas. Nazarenas são as esporas. Marculinão olha o cavalo, examina,
pega um cigarro de palha, mal feito, acende. Charles é maturrango e passa trabalho
para apertar a chincha. Sobra do Cati, passa a mão no cabelo, sujo fedendo a fumaça,
enfia os dedos e desenreda um pouco, bota o chapéu. Capitão Carancho ajeita o lenço
corolado no pescoço. Eram trinta e dois, o Cara Cortada desertou, ficaram trinta e
um. Os cavalos mais bem arrumados que os homens, aliás, muito mais. Cabeludos e
alguns com barba crescida. Roupa suja e desalinhada, arma atravessada nas costas,
faca na cintura, chapéu velho desabado, sujo e jogado na cabeça. Assustam mais pela
aparência que pelos atos.
Bamos embora. E o Come Égua tonteia pra um lado e outro e anda pra lá e
volta pra cá: cadê minha arma? Esconderam meu fuzil. E o capitão não gostou da
brincadeira e gritou: não brinquem com arma; o diabo deu um tiro na mãe dele com
um cabo de vassoura.
O diabo deu um tiro na mãe dele com um cabo de vassoura. É quem
brinca com fogo mija na cama, mas brincar com arma é pura idiotice. E no pelotão de
guardas na estação do Vacacai tinha um que era muito assustado, tinha medo de
lobisomem, de mula sem cabeça, de fantasma, e não tinha medo de dizer que tinha
medo e os outros viviam contando causos e afirmando que Vacacai é lugar mal
assombrado. Noite que o medroso ta de guarda tal de Montenegro se enrolou num
pano branco e apareceu para o guarda, que nervoso grito: vai-te embora seu fantasma.
Disse isto, soltou a arma e correu para dentro da barraca. Além da chacota dos outros
levou uma sacolejada do sargento. Passados uns dias e lá esta o medroso, que até já
tinha o apelido de Cagão, na guarda e dito cujo Montenegro repetiu a façanha de se
enrolar num pano branco e aparecer para o guarda. O Cagão tremeu, sentiu o calor no
rosto, respirou fundo levantou o fuzil e pam, pam,pam; três tiros e morreu o
fantasma.
E correu a noticia e correu o alerta e os comandantes repetiram: com arma não
se brinca. Uma semana depois foi o pelotão que estava no Ibaré. Neste pelotão tinha
um que os outros chamavam de Brocoió do Cafundó, que ele era de Cafundó uma
estação na linha Montenegro a Caxias do Sul. Até foi ao Ibaré um retratista; sim um
retratista, coisa difícil na época, com aquela traquitana toda; maquina caixão, tripé,
caixa de filmes, bateria, luminárias o escambau. E o pelotão fez pose para tirar o
retrato e tirou o retrato e o retratista foi embora e depois mandou o retrato e a turma,
curiosa, amontôo para ver e o Brocoió do Cafundó olhando e perguntando: qual é que
é eu? E um gozador mostrou o sargento: tu és esse. Até sai parecido com o sargento, e
qual é que é o sargento? E o gozador o mostrou. Admirou-se: o sargento tá mais
parecido comigo. E saiu dando risadas e falando mal do tal retrato: é uma baita
porqueira uns sai com as caras dos outros. Pois tal Macaco junto com tal de Álvaro
inventou uma brincadeira para enganar o Brocoió do Cafundó. Pegaram cinco balas
de fuzil, tiraram o projétil, botaram uma bucha de papel na ponta do cartucho, o
Macaco carregou o fuzil com estes cinco cartuchos e contou para o Brocoió do
Cafundó: o Álvaro tem o corpo fechado, bala não mata ele. E o Brocoió duvidou e
foram para o meio do mato fazer a demonstração. Álvaro sem camisa, o Macaco deu
os cinco tiros, o Brocoió olhando tudo de boca aberta. Para enfeitar mais a arte o
Álvaro agachou e juntou do chão os cinco projéteis que entregou pro Brocoió. Dois
ou três dias, depois ao cair da tarde estavam de guarda o Brocoió e Zé Mortandela:
frescura me chamar de Mortandela eu inté nem gosto de mortandela. E lá vinha o
Álvaro voltando da sanga, sem camisa, toalha no ombro e o Brocoió: Mortandela, tu
acredita que o Álvaro tem o corpo fechado, bala não entra. Inté mentiroso tu és.
Brocoió nem discutiu e nem contou até dois, levantou o fuzil mirou e dois tiros ao
Álvaro e deu no que deu.
E correu a noticia e correu o alerta e que já era repetido foi repetido. O detalhe;
dá para tirar o projétil do cartucho. Domingo muito úmido, nublado, nada para fazer
no povoado do Suspiro e duas cabeças desocupadas e prontas para serem oficinas do
diabo. Que no pelotão que estava no Suspiro tinha um que não ria, não brincava,
levava tudo a sério; o Capinchinho. Pois o Vintoito e mais o Zé Mentira, tiraram os
projéteis de cinco cartuchos, botaram as buchas de papel e numa noite que o
Capinchinho estava de guarda, deram um jeito e trocaram as balas do fuzil dele pelos
cartuchos sem projétil. Noite escura o Capinchinho é guarda do acampamento e Zé
Mentira aparece no escuro e o Capinchinho aponta o fuzil: alto lá! Quem vem lá? Diz
a senha. Zé Mentira dá uma risada e o Campinchinho dá um tiro e o outro torna a rir.
Outro tiro e outra risada e outro tiro e mais risada e o Capinchinho joga o fuzil longe
e no outro dia foi amarrado para Santa Maria; louco.
Para complicar mais os causos, no pelotão de guardas na estação de Três
Divisas um gringo, pegou toda a munição do pelotão e de manhã muito cedo se foi ao
mato do arroio e se prendeu a dar tiros em passarinhos. Passarinho? É. Pra que? Pra
dá pros gatos? Não; para comer, disse que lá na colônia eles comem passarinho com
polenta. O que é polenta? Pirão de farinha de milho. Ah! Angu. O dito gringo gastou
toda a munição e só acertou numa carochinha, demoliu. Não comeu passarinho, mas
comeu na cadeia em Santa Maria.
Uma estação por vez; um homem prevenido vale por dois, o comandante do
pelotão que estava nas Três Estradas guardou a munição a sete chaves: de hoje em
diante a guarda é sem munição.
Foi tão estranho que até quem estava envolvido não soube direito contar o que
aconteceu no acontecimento acontecido. E foi no Ponche Verde, que depois de
gambeteia pra lá, gambeteia pra cá, depois de chuva, sol, vento minuano, Estrela
Boieira, lua cheia, noite fria, Rio Santa Maria, Rio Santa Maria Chico, Rio Ibicui da
Armada, Campo Seco, fala com tropeiro, se informa de carreteiro, passa à noite em
rancho de peão posteiro, desvia de sede de fazenda, boleia emas pra comer e matar a
fome antes que a fome nos mate. Para no Vacaiquá pra comer frussuras de ovelha
engrossada com farinha de mandioca. No Piquete Carancho das Três Estradas
ninguém esquece que os bandidos chimangos degolaram o Cara Cortada e o Limpa
Trilhos. Dia claro, foi depois do meio dia, o piquete marchava despreocupado,
passaram perto de um rancho, um cachorro magro latiu ao lado do rancho, uma
mulher escabelada espiou na porta e nos fundos do rancho dois guris brigavam por
causa de uma cabeça de ovelha assada, os dois engraxados e a cabeça rola de um para
outro e rola no chão e um gato espia. De vanguardeiro o Velho Manduca, busca o
passo no arroio, a barranca é alta e a descida é em curva e a subida também. Velho
Manduca afrouxou as rédeas para o cavalo beber água, o resto do piquete chegou ao
arroio e os cavalos redemoinharam e beberam água. As mulas com a carga vinham
bem mais atrás em duas colunas; uma puxada pelo Charles e a outra o Sobra do Cati,
a perdiz voou e assustou a mula que pulou para trás e Charles deixou cair à corda do
cabresto, Sobra do Cati tentou ajudar e o Come Égua que era o cerra fila troteou para
ajudar, acalmaram as mulas, Charles apeou e pegou a ponta da corda. Come Égua
olhou o campo e viu lá atrás no meio do campo uma moita de carquejas, deu rédeas e
galopeou pra lá; aliviar as tripas. Apeou e agachou atrás da moita. Charles e Sobra do
Cati desceram a barranca do arroio, pararam para os animais beberem, os dois
desmontaram para urinar.
Cerca de trinta metros do passo, deitados na barranca do arroio e um pouco
escondidos por moitas de arbustos; o cabo Nortense, Lanceiro do Cati, Zé do
Taquarichim e mais quatro que andavam vasculhando terreno, não viram quando
passou o piquete e Lanceiro é que viu as mulas dentro da água e os dois homens
apeados. Surpresa, sorte. Espia ligeiro...
Charles e Sobra do Cati nem entenderam a coisa, quando pensaram em reagir
estavam com armas no peito e as mãos sendo amarradas enquanto o Lanceiro e o Zé
pegaram as cordas dos cabrestos e se afastaram puxando as mulas por dentro do
arroio. Quero - quero gritou.
Come Égua fez a necessidade com muita calma, olhou o grupo de urubus que
lá perto das nuvens andavam em círculos planando. Tranqüilo montou, chegou ao
arroio desceu para botar água na guampa-cantil. Montou e seguiu cantando a Canção
do Boi Barroso. O resto do piquete já ia subindo uma coxilha a mais de um
quilômetro.
O Louco do Rodeio Colorado, olhou para trás, uma perdiz voou o cavalo pulou
para o lado e ele quase caiu, voltou a olhar para frente. O Paisano de Vichadero olhou
para trás; pero que falta alguna cosa. Tornou a olhar para frente. Um bando de emas,
o rebanho de ovelhas, um carrancho pousado numa arvore seca, o bando de quero-
quero esvoaçando e fazendo alarido. O Louco de Rodeio Colorado era cavaleiro,
rápido ficou de pé em cima do lombilho e se voltou para trás, olhou, espalmou a mão
acima dos olhos, bombeou, viu o Come Égua lá no calcanhar do Judas: ué! E as
mulas? E as mulas? E as mulas? O Louco tá louco. Louco ele é desde que nasceu.
Sim; mas, cadê as mulas? A lá puta! Formou o fandango: cuidado, fica alerta, e o
bosta do Come Égua? Vem vindo lá adonde o diabo perdeu as botas. Vai lá na frente e
manda o Velho Manduca voltar. Tenente Tiaraju, junta seis homens e volta até o
passo. O resto da tropa ficar em alerta.
Tiaraju e mais seis trotearam para a retaguarda. Come Égua puxou a rédea e
esperou o grupo que voltava. Come Égua; cadê as mulas? Que mulas? As da puta que
te pariu, seu bosta. E no passo; vasculha daqui, olha dali e atrás de uma moita um
chapéu. Continua vasculhando; aqui teve gente deitado o pasto tá amassado. Olha
aqui o rastro desceram por dentro do arroio.
Capitão Carancho perdeu a calma: carajo! Miséria pouca é bobagem. Bueno a
culpa é minha, tamos no mato sem cachorro. De marcha batida até a Serrilhada.
A coruja já estava piando, hora da Ave-Maria quando o cabo Nortense
encontrou o capitão José. Pouca euforia e muito pensar. A gente tem que avisar o
tenente Zequinha. O tenente Zequinha anda com um grupo vasculhando a costa do
Rio Upacarai. O Carancho tá indo para a Serrilhada; um carreteiro me contou que ele
tem apoio por lá. Amanhã ao raiar da Boieira a gente sai na caça dele.
Um galo cantou na Serrilhada e o Piquete do Capitão Carancho chegou batendo
na marca. O dono da fazenda, ponto numero um de apoio ao piquete, ficou nervoso. E
nervoso ficou o ambiente. Ora mas perderam as mulas. Perdi as mulas, barracas,
panelas, comida, munição quatro fuzis que carregava de reserva e perdi dois homens.
Aquece água, faz chimarrão que os homens estão com sede, manda carnear um boi,
faz fogo e churrasco. Agora tem que ter calma. Que calma coisa nenhuma! Amanhã
depois do meio dia tou indo em frente. E o dono da fazenda chamou o capataz e
mandou: acomoda esta gente e faz o fogo lá no galpão grande e depois abre o galpão
das arrumações que a gente vai ver as bugigangas que tem ai de reserva. Reduzino
Malaquias, chapéu jogado nas costas, batendo com o rebenque nas botas, andando de
San Juan a Mendonça e de Mendonça a San Juan: tenente Tiaraju ajeita o
acampamento lá no galpão. O fazendeiro sacudiu os braços: o fogo e o churrasco o
meu pessoal faz. Bueno, melhor; sargento Capincho estuda a volta da fazenda e bota
cinco a seis sentinelas e olho vivo e pé ligeiro, que o diabo anda solto e de laço nos
tentos, eu e o Terêncio bamos ver o material de reserva que tem aí. Nervoso o dono
da fazenda se apressou a dizer: tem pouca coisa aí. Caramba! Mas, ficou bastante.
No galpão os homens desencilhando os cavalos, alguns cansados e calados,
outros falando, caçoando com o Come Égua: vão capar o come égua. Outros
perguntavam: e o Charles? E o Sobra do Cati? Será que mataram eles? Capaz que tão
presos. Bah! Podem até tá nas quatro estacas.
Chimarrão, churrasco e descansar que a luta continua. E o sol nasceu lá pelos
lados de Bagé. Foi no meio da manhã que os quero-queros gritaram e uma sentinela
deu o alerta; na porteira de entrada da fazenda a dois quilômetros da sede tinha um
grupo a cavalo, chimangos; o inimigo.
Capitão José olhou a fazenda, estudou o terreno, campo limpo, a sede, perto da
sede um capão de grandes figueiras. Eles estão aí, para desentocar eles é preciso
ajuda. Zequinha estuda a volta desta fazenda e vamos distribuir sentinelas, não
podemos os deixar saírem da fazenda até chegar reforço. Cabo Nortense consiga dois
mensageiros para irem imediatamente a Don Pedrito buscar reforço e passar
telegrama ao major Cruzaltino em São Gabriel...
As cozinheiras da fazenda fizeram cabo de relho; arroz cozido com pedaços de
carne que já foram assados, ou seja, a sobra do churrasco. No galpão o pessoal
comendo de boca cheia. Como comem estes animais. Na casa sede reunião tensa:
agora os chimangos me invadem a fazenda. Mas tem calma vivente! Pensa que
invadir é assim? Ali dentro do galpão tem muito índio bom de tiro, o senhor acha que
nós entrincheirados e eles vem de peito aberto? E quanto tempo eu vou ficar com a
minha fazenda cercada de chimangos? Por pouco tempo, que logo ao cair da noite eu
vou embora com a minha gente. De que jeito capitão?! Atravesso a fronteira e saio
por dentro do Uruguai. O senhor passa a fronteira com tropa armada e já tá detenido
que el comissário anda de olho na fronteira. Negociamos com el comissário. O que se
negocia? Aí tem gado e cavalos de reserva, que eu requisitei para a revolução. Sim,
tem. Então chame um peão de confiança e mande chamar el comissário...
Coisas da revolta, os dois prisioneiros: Sobra do Cati e Charles com as duas
mãos amarradas nas rodas das carroças, um embaixo de cada uma das duas. Ritinha
servindo a comida e ajudando os coitadinhos a comer e o Charles gostou da moça. E
a Ritinha: guria de Deus que homem mais lindo! Josefina Risoleta dava risadas das
coisas da amiga.
E foi pouco depois do nascer do sol que gritou quero-quero no leste e gritou
quero-quero no oeste. No leste anunciando a chegada do corpo de provisórios
independentes do coronel Ludovico, vindos de Don Pedrito; vinte e três homens para
reforçar o cerco a fazenda. No oeste anunciando a chegado do senhor comissário
acompanhado de doze lanceiros, todos os lanceiros vestindo chiripá vermelho, túnica
azul e na cabeça uma tira branca enrolada na cabeça. Branca? É, sabe que na fronteira
a coisa era vice e versa tipo assim; los Blancos de ajá apoiavam os Maragatos daqui e
los Maragatos de ajá apoiavam Los Blancos (Chimangos) daqui. Latiram os
cachorros da fazenda. Los lanceiros trotearam altaneiros. Castelhanos metidos; pra
brigar com eles até amarro um braço. Cala a boca Come Égua. Bem vindo senhor
comissário, por favor, tenha a bondade de chegar. Si muchas gracias, com su
permisso? E veio o mate e veio o copo com a canha brasileira. A mi me gusta la caña
brasileña. E finalmente foram ao finalmente. E por donde el capitan quer salir del
Uruguai? Boa pergunta, mas o capitão Carancho não quis dizer a sua intenção e
respondeu: depois de cruzar a fronteira é que eu vou decidir, tanto pode ser por
Aceguá como pode ser por Livramento. Pero que si, pero que no, mas sim, mas não.
Bois? Sim quarenta bois. O senhor Comissário tinha outra proposta e a fez em
português bem claro: dou guarda a seu piquete dentro do Uruguai, mas quero que o
senhor me entregue um de seus homens; o Paisano de Vichadero. Capitão Carancho
levantou da cadeira, sapateou como fosse iniciar a dançar a xula, estufou o peito,
ficou com a cara vermelha, bateu com o rebenque na bota e falou cuspindo: não sou
Judas e pra mim a conversa terminou. E o dono da fazenda quis ajeitar a coisa: mas,
capitão. Não tem mais e nem menos e nem meio mais e muito menos meio menos. E
a conversa acabou...
O senhor comissário se despediu, montou e em vez de seguir rumo o oeste até
a linha de fronteira, seguiu rumo leste até a linha de divisa da fazenda onde estava o
capitão José.
Don José. Senhor comissário. Buenos dias. Bom dia. Muito prazer. Mucho
gusto. E conversa sobre o tempo e sobre a vida e fala no vento e diz do vento e por
fim vamos ao finalmente. Dá se um jeitinho. Um jeitinho? Sim. Mas, todavia tem
outras cocitas. Sim. Não. Nestes causos já não é assunto para se resolver em lá
Serrilhada, nem em Riveira e Livramento; isto é coisa de Montevidéu e Porto
Alegre...
E se foi o senhor comissário protegido pelos doze lanceiros. Capitão José
mandou encilhar o cavalo. Chamou o tenente Zequinha: assuma o comando que eu
vou a Don Pedrito passar telegramas ao major. Esta noite deve chegar um reforço
vindo de São Gabriel. Outra coisa; com relação a o inimigo; tenente não aceite
provocações e nem façam provocações.
Noite estrelada, o Cruzeiro do Sul brilhando acima da campanha. Ritinha foi
para debaixo da carroça conversar com o prisioneiro Charles. E já que o causo era
deitar debaixo de carroça com prisioneiro; Dalva foi conversar com o Sobra do Cati.
Latiram os cachorros da fazenda, sentinelas alerta, no galpão homens correram
a pegar as armas. O capataz da fazenda gritou no pátio para que tivesse calma. Vindo
do lado da fronteira, uma carreta, outra carreta, mais outra; doze carretas, cada uma
com três juntas de bois; El Gran Circo Cinco Ermanos. Circo teatro de picadeiro e
touradas; grandes espetáculos teatrais como; Os Bandidos de Serra Morena, O Ébrio,
O Boi Pintado e Paixão de Cristo. O dono da fazenda foi receber a Don Carólo o
dono do circo. E o Louco do Rodeio Colorado procurou o capitão: bamos com o
circo. Bamos com o circo. Capitão Carancho conversou com o tenente Terêncio e a
decisão estava decidida. A fazenda tem duas carretas e a gente se esconde dentro das
carretas. E o fazendeiro ficou tonto e mais tonto o dono do circo. Bueno, porem,
todavia, contudo, entretanto tem que ter uma compensação. Pelo sim, pelo não fica
com as duas carretas. E a fazenda fica sem carreta? Dá se um jeito. O dono do circo
tremeu a perna, tentou contestar: eu fico aqui dois dias. Não; fica aqui poucas horas,
até à hora da Boieira sair. Pero. Até a hora da Boieira. O dono do circo tinha artistas o
capitão soldados.
O piquete saiu de Três Estradas com quatro comandantes e vinte e oito
soldados. Um desertou e dois foram presos. Vinte e cinco soldados e quatro
comandantes. Noite escura o comboio do gran circo pronto para continuar a viagem,
agora com quatorze carretas e amarrados atrás de cada carreta dois cavalos. Terêncio
com roupas de artista seguiria a cavalo na frente ao lado do dono do circo. Nas duas
ultimas carretas, sentados sobre os arreios, vinte e oito homens de arma em punho,
prontos ao que desse e viesse. Antes de sair o capitão mandou botar a bandeira do
piquete num grande mastro na frente do galpão e orientou o dono da fazenda a
mandar os empregados fazerem movimentos de maneira que os que faziam o cerco
imaginassem que o piquete continuasse escondido na fazenda.
Na porteira da fazenda a sentinela; Zé do Taquirichim fez o comboio parar e foi
a barraca da guarda chamar o cabo Nortense. Qual é o causo tchê? Um circo. E apeou
o dono do circo e ficou no escuro o Terêncio. E o cabo com sono, passando a mão na
cara. E o dono do circo que não era bobo já foi soltando o verbo e largando adjetivos
e pontos com vírgulas num portunhol culto: la gran compania de nuestro circo é
reconocida internacionalissimamente em todo el continente, desde Buenos Aires,
Montevidéu, Porto Alegre, e por lo tal tenemos permisso del governo federal . E abriu
a guaiaca e tirou um maço de papéis e continuou: todo és permisso de livre transito
por fronteiras e caminos fornecido por el governo federal de Brasil. O cabo estava
tonto e disse: bueno se tem permisso. Terêncio aproveitou e gritou vamos embora que
tem permisso e fez a primeira carreta avançar e o comboio seguiu viagem.
Poucos quilômetros adiante e ainda estava escuro e o capitão Carancho com
seus homens desceram das carretas e descarregaram os arreios, e os cavalos que
viajavam atrás das carretas ; eram os deles e foram encilhados. O grupo se despediu
do dono do circo e avançaram a todo o galope no rumo do Quebracho.
Noite no Quebracho, noite escura, ao longe para o lado oeste os relâmpagos
anunciam um temporal lá nos rumos do Arroio Candiota. Os homens no galpão
tomando chimarrão. Na cozinha a duas negras alegres e gordas preparando a janta;
socotroco, guisado de charque engrossado com farinha de mandioca. Num galpão de
arrumações, remexendo em bugigangas o Velho Manduca e Mijão procuravam um
caldeirão para servir de panela. Na sala da casa sede o capitão Carancho conversando
com o dono da fazenda, uma das eminências pardas do partido, velho, cabelos
brancos, perna direita com problema, caminhando com auxilio de bengala: então o
capitão perdeu o trem de guerra? Sim, senhor, lá no Ponche Verde. É eu sei, saiu num
jornaleco dos chimangos que no combate do Ponche Verde o Quero-Quero do Umbu
correu o Carancho das Três Estradas e fez dezenas de prisioneiros. Ora bolas!
Dezenas umas pivicas! Dois. Só dois. Capitão; o vencedor escreve a história...
E o dono da fazenda bateu com a bengala no assoalho, e andou na volta e
perguntou: e agora? E o capitão respondeu: tou esperando que o senhor nos dê a janta
e mande pagar o soldo dos homens e esta noite eu vou embora, vou a luta. Tem
algum plano? Coronel, plano até tenho, mas vou pensar bem pensado, eu vou lá pra
São Lucas e lá eu vou pensar no meu plano. São Lucas é lá passando o Cacequi? Sim
coronel. Mas, daqui lá são mais ou menos duzentos e cinqüenta quilômetros. Eu sei
coronel, quero ver se chego lá em quatro ou cinco dias, faço sessenta quilômetros por
dia, não mato os cavalos e nem canso os homens. Capitão o senhor tenha cuidado que
a Coxilha do Batovi ta cheia de guardas e movimentos de chimangos. Coronel eu vou
por fora, vou pela direita do Vacacai, vou pelo Tabuleiro, Cerro do Ouro, Margarida,
Guabiju e do Pau Fincado ao São Lucas é um pulo. O dono da fazenda foi até a janela
espiou: a tormenta correu para o sul se foi pros lados de Pedras Altas e Cacimbinhas.
Capitão sentiu o sangue quente na cara, limpou o peito, respirou, hora de acertar as
contas, coragem e disse: coronel e o meu causo? Eu já me arrisquei demais e tou
fazendo o prometido; já ta na hora do partido me entregar os papéis do campo. O
coronel bateu com a bengala no assoalho, pensou, passou a mão na branca cabeleira:
o campo, lá do Saibro, tá comprado tem é que fazer o termo de doação do partido
para o senhor em agradecimento aos bons serviços e outros trololós que tais. Pois
então! Eu quero o papel desta dita tal de doação, vá que eu morra e a minha mulher
fica aí. O capitão não confia no partido. Olha coronel confiar eu até confio e confio
muito, mas confio muito mais em mim. O coronel bateu com a bengala, nada disse,
mas sacudiu a cabeça afirmativamente. Para os lados do Seival o barulho de um
trovão.
Em cima da mesa o mapa, o major Cruzaltino soltando baforadas do charuto,
até comprou um charuto caro. Muitos telegramas e mensagens. O capitão Carancho
encurralado na Serrilhada.
Capitão José mantendo um homem em Don Pedrito para transmitir e receber
telegramas, que na Serrilhada não tem posto telegráfico, sendo o mais próximo em
Don Pedrito. Nervoso e sempre alerta cuidando as divisas da fazenda ele que saiu de
Umbu com vinte soldados. Perdeu um por morte e quatro feridos no Pau Fincado.
Ficou com quinze e depois recebeu os três de presente do Bugio do Batovi, então
tinha dezoito soldados e mais os vinte e três chegados de Don Pedrito. E de São
Gabriel o Bugio do Batovi mandou vinte homens ao comando de um tenente, tenente
provisório é verdade; tenente Chimpanzé do Vacacai, filho de fazendeiro, fazendeiro
de muito campo, muito boi, muita ovelha e muito dinheiro. O Chimpanzé do Vacacai
não regulava muito bem das idéias, usando túnica vermelha com uma estrela azul
bordada no ombro. Sessenta e um soldados mantendo o cerco a fazenda e reforços
estavam em marcha.
De Rosário o coronel Santelino com vinte e um soldados vinha costeando o
Rio Ibicui da Armada e estava acampado no Vacaiquá comendo frussura de ovelha
engrossada com farinha de mandioca.
Do Cacequi a Serrilhada cerca de trezentos quilômetros cortando a Coxilha do
Batovi, o coronel Tiburcinho com apenas doze homens que a maioria dos soldados
dele desertou; os caras não viam a cor do dinheiro, ou seja, não recebiam nada e tinha
dias que não comiam. Vinham passando no Campo Seco onde o coronel Tiburcinho
mandou irem às casas do povoado, requisitar galinhas, para a janta.
Capitão José cuidando os movimentos na sede da fazenda e louco de vontade
de invadir, mas recebeu ordem do major para aguardar.
Enquanto aguardavam e vigiavam; o cabo Nortense e a Josefina Risoleta
namoravam e planejavam, andavam os dois no campo armando mundéus para pegar
perdiz e o cabo disse: preciso de uma boa companheira para a velhice, que tem um
troço; ninguém quer morrer novo, mas a velhice a coisa braba.
Quem estava gostando daquela espera era Ritinha que continuava cuidando
muito bem do prisioneiro Charles e os dois já estavam se dando muito bem.
Chegou o ultimo reforço; coronel Tiburcinho, que depois de se apresentar ao
capitão José, olhou a fazenda, viu a bandeira no alto do mastro, riu: eu vou tirar
aquela bandeira de merda de lá, aliás, bandeira não, trapo.
Sentados no chão da barraca o capitão José e o tenente Zequinha tomando
chimarrão e planejando o ataque: eu estou com receio é deste tenente Chimpanzé do
Vacacai, este sujeito é meio maluco: capitão bote ele e o Tiburcinho na frente.
Nascendo o sol no São Lucas, o Piquete Carancho atravessou os trilhos e
entrou no meio do mato a margem esquerda do Rio Ibicui. O ferreiro batendo
bigorna, a saracura gritou e correu. Aqui estamos de novo indiada. Enquanto se arma
o acampamento o Louco do Rodeio Colorado que já dê jeito em ir até a vila do Umbu
e bombear os movimentos e o Andrezito vai ao São Lucas e bombeie bem as coisas.
Capitão manda, soldado faz. Louco rumou ao Umbu. Andrezito, cansado, rumou à
estação de São Lucas.
Sete horas no relógio da estação e o trem especial passou rumo ao Cacequi.
Trem especial a toda velocidade. Andrezito conversou com o agente, soube o que era
o trem, voltou ao acampamento e contou ao capitão. Tchê descobre que horas este
trem volta.
Às onze horas o trem especial chegou à estação de Livramento. O senhor
comissário já o aguardava na plataforma e mal o trem parou, embarcou para
conversar com o passageiro especial. Enquanto os dois conversavam os ferroviários
se apressaram para preparar o retorno que seria imediato. A conversa em portunhol
durou sessenta minutos e às doze horas aquele trem já saia de Livramento.
Doze e trinta apitando e batendo o sino passou em Palomas. Estação
Porteirinha o senhor agente com seu uniforme impecável; calças caqui, casaco azul
com botões dourados, boné vermelho, na mão o arco de vime com a licença. O arco
de vime tinha oitenta centímetros de diâmetro e nele era presa a folha de licença para
o maquinista. Às treze horas o trem passou em Porteirinha o agente parado na beira
da plataforma levantou o braço segurando o arco, o maquinista enfiou o braço no arco
e ligeiro o segurou, tirou a folha de licença e jogou o arco ao lado dos trilhos. Treze e
trinta em Santa Rita. Quatorze horas no Guará onde duas cruzes toscas a beira de um
capão mostravam o lugar onde foram degolados; Cara Cortada e Limpa Trilhos.
Quatorze e trinta passou apitando e batendo o sino na cidade de Rosário. Dezesseis
horas entraram na maior ponte metálica da América do Sul, sobre o Rio Santa Maria
com mil quatrocentos e setenta e três metros de comprimento, as treliças dançando
aos olhos dos viajantes, a zoada do trem ecoando no mato. Chegaram ao Cacequi ás
dezesseis e quinze minutos, batendo sino, apitando, soltando vapor pela válvula de
escape. Aquele trem especial que chamava a atenção; locomotiva com os metais
brilhando, vagão plataforma carregando no centro, protegida por pilhas de sacos ,uma
metralhadora, um cabo e dois soldados, recostados nos sacos e golas levantadas,
bonés cravados na cabeça, encolhidos protegendo-se do vento. O segundo vagão,
vagão de primeira classe onde viajava um pelotão de guardas; dez homens ao
comando de um sargento. E o terceiro vagão; o vagão especial, vagão-escritório para
uso de autoridades, vagão com cozinha, WC, dormitório e o escritório com grandes
janelas e mobiliado com escrivaninha e quatro poltronas.
Postado ao lado do brilhante sino da estação o senhor agente aguardou o trem
parar e deu duas badaladas. Os ferroviários se apressaram em abastecer a locomotiva
de água e carvão. Do vagão de primeira desceu o pelotão de guardas e se posicionou
na plataforma guarnecendo o trem. O viajante especial; o secretário careca usando
óculos de grossas lentes apareceu na porta traseira do vagão-escritório. Estava na
plataforma aguardando o trem um jornalista, segurando uma grande pasta de couro
marrom com feches metálicos brilhantes, aproximou do vagão saudou o senhor
secretário: com sua licença? O jornalista de Pelotas? Sim senhor. O senhor secretário
tirou do bolso do casaco uma cigarreira de prata enfeitada no meio com uma pedra
azul, tirou o cigarro, segurou com a mão esquerda enquanto com a mão direita tirou
do bolso do casaco uma bonita piteira de prata com ponteira de ouro, colocou o
cigarro na piteira, do bolso do casaco tirou o isqueiro. Cigarro acesso fez um gesto
convidando o jornalista a entrar. Por favor, sente-se. O jornalista abriu a pasta de
onde tirou o bloco de anotações e lápis. Será uma entrevista? Senhor secretário eu
pensei em ter uma conversa com senhor e depois eu penso escrever um artigo, pode
ser? Sim; é que o senhor pegou o bloco. É para anotar os principais itens;
conversamos? Já estamos conversando. O senhor é um secretário especial; digamos
sem pasta? Exatamente, eu apenas estou ajudando o governo e o partido, posso dizer
que estou sendo um elemento de ligação. Sim, senhor; o governo e o partido, o
partido e o governo, o senhor concorda que o partido esta a serviço do governo?
Senhor jornalista; o senhor quer que o governo esteja a serviço do partido? Não,
senhor secretário; que o partido leve os anseios das bases ao governo através de
programas e planos pré - definidos. Senhor jornalista estamos em tempos de
mudanças. Senhor secretário espero que estas mudanças não transformem os partidos
políticos em instrumento do governo. Trocando de assunto; o senhor esteve na
fronteira tratando de assuntos relativos à revolução? Tratando de assuntos
importantes ao Rio Grande e a o Brasil. Um jornal de Livramento noticiou que entre
esses assuntos está o acordo de o Uruguai mandar quinhentos mercenários. Desculpe,
mas o Rio Grande não precisa de mercenários do vizinho País. O senhor secretário
sacudia a piteira no ar e a fumaça do cigarro fazendo círculos. O jornalista continuou:
a doutrina positivista de Comte prega a criação de pequenas pátrias, o seu partido tem
intenções de independer o Rio Grande? Não, nunca, jamais, isto seria um atestado de
burrice; o Rio Grande é maior sendo brasileiro e isto não é romantismo é pés no chão
e cabeça acima dos ombros, nós podemos abrir bons mercados para nossos produtos
dentro do país, e também nos abastecermos sem as complicações de fronteiras.
Senhor secretário os fazendeiros dizem que o seu governo os esqueceu, dificultando
financiamentos. Senhor jornalista nosso governo esta trabalhando para a melhoria de
pastagens, para a melhoria de rebanhos com raças mais produtivas, mas o Rio Grande
tem capacidade de produzir muito com uma agricultura forte. O senhor diz produzir
salada? Antes de responder o secretário tirou uma tragada, sorriu e respondeu com a
pergunta: O Brasil não produz sobremesa? Desculpe; sobremesa? Sim; açúcar e café,
mas o Rio Grande não só pode produzir salada, pode colher arroz, trigo, feijão,
madeiras, banha e tem que ampliar sua indústria, então não pode concentrar os
financiamentos só no boi. Senhor secretário; o senhor esteve na fronteira; pode se
dizer que o capitão Carancho, que esta encurralado na Serrilhada, já esta fora de
combate? O senhor é quem está dizendo.
Dezessete horas saiu do Cacequi o trem especial, apitando e batendo sino,
fazendo tremer as casas beira trilhos e enchendo os olhos dos guris; um trem de
guerra e com metralhadora. Na plataforma da estação Umbu o senhor agente,
uniforme alinhado, arco com a licença na mão; dezessete e trinta passou o trem
especial em Umbu. Começando a escurecer e o trem correndo. À esquerda o Rio
Ibicui. A curva o maquinista fechou o regulador de vapor, abriu a válvula de escape,
puxou a alavanca de freio e mais rápido que ligeiro torceu a manivela do inversor de
marcha; as rodas motrizes deslizaram sobre os trilhos tirando faíscas, o limpa trilhos
arrastando galhos de arvores com as folhas varrendo a beira dos trilhos e levantando
poeira. A locomotiva, fera sofreada, a barriga trovejando em brasas, a chaminé
largando grosso rolo de fumaça escura e a válvula de escape soltando o forte jorro de
vapor para o alto. O sargento comandante dos guardas dava ordens e contra ordens, o
atirador deitou ao lado da metralhadora. O senhor secretário, careca, que usava óculos
de lentes grossas, tremia dentro do vagão escritório. Mais a frente outra pilha de
galhos e adiante desta vários trilhos arrancados: maragatos filhos de uma mãe, só
para atrasar o trem. Ficar aqui no meio do mundo? Com certeza eles já arrancaram
trilhos ai pra trás. E tinham arrancado e mais; cortaram os fios do telegrafo.
Lampião da plataforma aceso, lampião do escritório acesso e agente,
telegrafista e guarda-chaves de Umbu, sentados tomando chimarrão esperando que
alguém desse noticia daquele trem que passou; o telegrafo estava mudo. Dois vultos
subindo a plataforma, o barulho das rosetas das esporas; capa preta, lenço colorado,
fuzil em bandoleira. Bandoleira é a tira de couro presa na ponta do cano e na ponta da
coronha e que serve para segurar o fuzil contra o corpo, quer dizer atravessa o fuzil
nas costas, passa a bandoleira pelo peito e tás com as mãos desocupadas. Os dois
pararam na porta do escritório; capitão Carancho e tenente Terêncio. Conversaram os
dois chefes; agente e capitão: buenas noites, com seu permisso? Pois não, boa noite,
as suas ordens. Quero passar um telegrama. No momento o telegrafo está
interrompido. Não tem problema, eu deixo o telegrama e quando a linha estiver boa o
senhor passa. O telegrafista ajeitou a cadeira junto à mesa, pegou o lápis e a brochura
para rascunho de telegrama. Capitão ditou o texto: coronel Simplício estação Biboca;
não tombei o trem para não ferir ou matar os ferroviários. Pagou o telegrama, se
despediu dos ferroviários, passou na venda comprou rapadura de palha. Rapadura de
palha? A rapadura é feita de garapa da cana de açúcar e enrolada com a palha do
milho e a palha do milho passa um gosto bom para a rapadura. Voltaram ao trote para
o acampamento em São Lucas. Capitão avisou amanhã bem cedo levantamos o
acampamento, não vou esperar que eles venham com a metralhadora. O capitão na
maioria das vezes guardava segredo de seus planos, mas naquela noite contou aos
dois tenentes e ao sargento: o plano é roubar os cavalos do tal de Santelino, o filho da
puta que degolou o Cara Cortada e o Limpa Trilhos, ele tem uma cavalhada lá no
lugar onde ele degolou os dois, é tanto lugar nessa história que eu não sei o nome da
metade; como é o nome do lugar? Terêncio olhou para o Tiaraju, que olhou para o
Campicho que disse: quem sabe é o Louco do Rodeio Colorado. Chama o Louco.
Veio o Louco. Como é o nome do lugar adonde degolaram o Limpa Trilhos. O Louco
regalou os olhos: Mas bá! Degolaram o Limpa Trilhos? E se foi repetindo a pergunta.
O Andrezito foi quem explicou: A degola foi na estação Guará que a gente indo daqui
a tal estação Guará é passando a cidade de Rosario do Sul. A fazenda do Santelino é
na estação Corte, que fica antes de Rosário...
Três horas da tarde o sol já começando a descer lá para os lados do Uruguai,
grito de quero-quero, sentinelas alertas. Uma lebre correu e a perdiz levantou vôo. Lá
vem um a todo o galope. Deve ser a ordem para atacar. Cadê o capitão? Tá dentro das
calças. Responde direito seu brocoió. Brocoió é a tua avó. Ei calma aí tchê. O que
ouve? Arroz com couve. Dá licença capitão? Apeia. Mensagem para o senhor.
Caramba! A la puta! Mas nem estou acreditando... Reunião, nervosismo, voz alta,
gritos. Fugiu e faz tempos. Já anda lá no Umbu a trezentos quilômetros daqui e nós
de boca aberta. Fugiu pelo Arroio São Luiz e subiu pelo Pirai. Epa! Calma aí tchê! Lá
a guarda era minha e por lá não saiu. E por onde? E foi e não foi, bueno; águas
passadas não movem moinhos.
Coronel Santelino tremeu acima dos pés, respirou, inspirou, imaginou: o
Carancho lá nos matos do Ibicui, perto do Rio Santa Maria e do Corte, meus cavalos!
E colocou seus homens em forma, se despediu do capitão e por aqui que não tem
espinhos. Vai pela sombra.
E agora? Caga na mão e bota fora. Bueno! Não tá morto quem peleia. Tenente
Zequinha reúne o pessoal e prepara para levantar acampamento. E os dois
prisioneiros? Os prisioneiros? Solta.
Passar noite e dia amarrado a uma roda de carroça é uma péssima coisa, mas os
dois estavam contentes naquela tarde, nem precisa dizer o motivo e mais contentes
ficaram quando o tenente avisou: bamos soltar vocês. A notícia troteou, galopeou e
correu no acampamento e a tristeza até as lágrimas no rosto da Ritinha: eu vim ao
mundo pra sofrer. Os dois pegaram os cavalos, e encilharam, isto tudo com presa que
o bom era sair dali o mais rápido possível; vá que o capitão se arrependa. Eu vou até
Bagé e lá se Deus quiser e o delegado de Bagé deixar. Vou pegar o trem e volto pra
Pelotas. Até Bagé eu vou com tu e lá eu vejo o meu rumo. Montaram acenaram e
saíram com calma. Ritinha se abraçou na Josefina Risoleta, em prantos. Gritou o
quero-quero, piou a perdiz, o cabo Nortense gritou uma ordem. Sobra do Cati olhou
para trás, olhou o Charles, tornou a olhar para trás, puxou a rédea e disse: tchê! Vai lá
e bota a china na garupa. Conselho? Ordem? Pedido? Puxou a rédea, pensou ou
pensou que pensou, olhou para trás, viu Ritinha, puxou rédea para o lado, bateu
esporas e voltou. Tem alguns instantes, aliás, pequenos, em que as mulheres são
solidárias entre si; Luiza correu a buscar a pequena trouxa com as pobres roupas da
paupérrima Ritinha, Josefina a ajudou montar na garupa. Ritinha tremeu, chorou e
riu, riu e chorou sentiu medo e alegria, alegria e duvida. E foram sumindo no alto de
uma coxilha.
Passou um dia andando em Bagé, vendeu o cavalo e os arreios, pouco dinheiro,
enrolados no mesmo poncho passaram a noite na calçada da bonita estação de Bagé.
Seis horas e vinte cinco minutos o trem P42 saiu de Bagé, na janela Ritinha parecia
que estava sonhando. De Bagé a Pelotas duzentos e trinta e oito quilômetros.
Chegaram era quatorze horas e trinta minutos. Ritinha andou de bonde, viu a praça o
Mercado, olhava a tudo maravilhada, mal sabia ela que iria conhecer muitas outras
cidades. Passaram outra noite enrolados no poncho, sentados na calçada do Mercado.
De madrugada as carroças de quatro rodas da colônia. De carroça Charles voltou para
casa. Colônia de Pelotas, lugar bonito, cerros verdes, o arroio uma cachoeira o
parreiral a plantação de pessegueiros, as hortas de verduras. Ritinha primeiro foi mais
ou menos vinda, depois bem vida e tem que casar que a mãe de Charles era católica
até a raiz do cabelo. Casou, aprendeu a fazer passas de pêssegos, pessegada, até
vinho, por um bom tempo foi ótima doceira e depois teve a outra revolução, que não
teve degolas, mas teve cavalos amarrados num obelisco e teve a maior batalha que
não aconteceu; Batalha de Itararé e nesta o Charles não foi a cavalo, foi de trem e no
Rio de Janeiro a capital da republica conseguiu um ótimo emprego, e dona Rita criou
os filhos com carinho dedicação e os viu se formarem e como esposa de funcionário
de alto escalão participou de muitos movimentos sociais em prol dos necessitados.
Coronel Tiburcinho e o tenente Chimpanzé do Vacacai que estavam na
Serrilhada, prontos para serem heróis, e os dois não batiam bem das idéias. A vontade
de comer junto com a fome. Pois tiveram uma brilhante idéia; anexar o Uruguai ao
Brasil. Tiburcinho com doze homens, Garnisé com vinte; trinta e dois. Ora, se o outro
conseguiu com trinta e três! Entraram Uruguai adentro, mas nem foram muito longe;
em la ciudad de Trinta y Tres foram detenidos e passaram a noite nas quatro estacas.
Na Campanha se sabe que macho não chora. Todos desmontados, segurando as
rédeas de seu cavalo, respeitosamente tiram os chapéus e baixam a cabeça diante das
duas cruzes. Rezar nenhum sabia, mas o silencio também é oração. Dali saiu com
calma para fazer um serviço que todos queriam fazer. Seguiram pela beira dos trilhos,
passaram por fora de Rosário e fora pra estação Corte.
Juntaram os cavalos do coronel Santelino, rebentaram a mangueira, quebraram
o portão do galpão, reviraram tudo e seguiram ao trote para se esconder nos matos do
Rio Santa Maria e deixar o dono dos cavalos sofrer um pouco e depois usando os
cavalos invadir Rosário, fazer um bafafá e sumir no mundo.
Terêncio recebeu o recado e com a devida licença galopeou até o Suspiro,
aonde já chegou levando a bronca da sogra e depois da esposa, apenas o recebeu com
cara alegre o filho. Conversa, conta o acontecido, conta o não acontecido e a noticia.
O dono da estância onde ele trabalhava: um médico de São Gabriel ia arrendar a
estância. Procurar novo emprego? Sim. Volto ao piquete, ou mando aviso ao
Carancho? Volto, vou lá converso com ele e saio a procurar serviço que eu tenho filho
para criar. Noite fria e a paz na cama com a promessa de ir falar com o Carancho e
voltar para procurar trabalho. Madrugada o galo cantando, encilhou o cavalo, quem
madruga Deus ajuda e principalmente que no Suspiro tinha um pelotão de
provisórios. O sol nascendo, contornando o Cerro do Batovi, gritou o quero-quero,
sentinela do pampa cantado em prosa e verso: cala o bico bicho desgraçado.
Na beira do cerro o Bugio do Batovi e cinco comparsas, ouviram o quero-
quero; longe o vulto a cavalo. Bugio ajeitou o binóculo nos olhos, regulou, olhou,
pensou muito rápido, olhou bem: é ele mesmo. Deu a ordem: corram lá e tragam
aquele homem.
Esta história já teve tapa, soco, ponta-pé, coice e agora cabeçadas ou como
disse o peão posteiro; guampadas. Santelino olhou a cerca da mangueira, olhou o
portão do galpão, o galpão revirado: e os cavalos? Roubaram tudo, não ficou um pra
semente. Caramba! O peão posteiro só olhando e o homem nervoso e batendo com a
cabeça na parede: e tu infeliz? O que tu fez? Peguei a família e fugi pro mato. O
infeliz ainda conta. E eu ia enfrenta aquele mundo de gente? Cala esta boca o infeliz.
E mais cabeçadas. Olhou o peão, teve um acesso de raiva e ordenou: tu pega os teus
troços e te manda a lá cria. E o pagamento? Mas que pagamento me hablas? Deixou
roubar os cavalos, pega teu rumo. Um pai, uma mãe e cinco crianças saíram pelo
caminho que une a miséria a fome passando pela arrogância e o egoísmo.
Claro que o acontecido na Serrilhada rendeu tapas na mesa, pontapé em
cadeira, coices na parede e telegramas; muitos telegramas. O major acendeu o
charuto e como guerra é guerra acertou com o agente a viagem até Boca do Monte.
Passou uma mensagem ordenando ao capitão José para acampar com sua tropa perto
da vila de São Sebastião e aguardar instruções.
Estação Boca do Monte, charqueada grande, o cheiro forte de muitos couros
estaqueados e mantas de charque nos varais. Boca do Monte a treze quilômetros de
Santa Maria; o trem especial chegou pouco depois do meio dia, um homem já o
esperava na plataforma. Homem calmo, gestos estudados, voz pausada. Sacristão?
Pregador religioso? José Divino: boas tardes senhor major; como tem passado o
senhor? É vamos indo como Deus quer e o diabo manda. E o senhor? Aqui seu major
como um servo de Deus. O cozinheiro espiando e escutando: que safado! Servo do
demônio, quem não te conhece que te compre. E a conversa deslizou suave, da saúde
para o tempo, do tempo para a revolução e ai as palavras; maragatos bandidos,
maragatos safados, vermes da sociedade. José Divino dentro do vagão recostado na
parede, canto de olhos cuidando a porta, chapéu na mão, a todo o momento o gesto
humilde de inclinar a cabeça: sim senhor. Não senhor. E o major Cruzaltino acendeu
o charuto e enveredou no finalmente: seu Divino um servicito, que o senhor sabe; do
inimigo não se poupa nada, nem os bens e nem a família. O cozinheiro se arrepiou:
aos amigos os benefícios do poder e aos indiferentes a cadeia, isto era na outra, vai
voltar isto? A fumaça do charuto o major olhou para todos os lados: preciso armar
uma isca para um grande bandido, ele terá que vir em casa para o velório da mulher e
dos dois filhos. José Divino olhou para chão, olhou para cima, segurou o chapéu com
mais força e perguntou: só estes? O major até tossiu: tem um homem que cuida a
casa; tal de Zé das Três Estradas. Por vários minutos só se escutava o barulho do
silêncio, Divino sacudiu a cabeça afirmativamente: e onde é? Em Três Estradas. Seu
major, eu não conheço este lugar; é longe? Fica perto de Bagé. Seu major eu nunca
passei do Cacequi. O major explicou: daqui lá mais ou menos uns duzentos e setenta
quilômetros, é estação de trem, o senhor até pode ir de trem. Não seu major eu só
ando de cavalo. Vou bem devagar pra estudar o caminho de volta, levo dez dias pra
ir mais quatro pra juntar os companheiros, vou eu e mais quatro. Quinze dias, daqui a
quinze dias. Combinado. Outra coisa; seu Divino do Cacequi para frente tem muitos
guardas, provisórios, na beira dos trilhos. Obrigado pelo aviso. E o major explicou a
quem o Divino deveria procurar em Três Estradas e até falaram baixo e o cozinheiro
nem ouviu. Divino ficou olhando pra nada, o major andou na volta e perguntou: já
escutou falar do capitão Carancho? Sim, seu major, o Zé ai do Umbu anda a caça
dele. Sacudiu o charuto no ar: outra coisa; se encontrar o capitão José não diga nada.
E o cozinheiro ouviu e sacudiu a mão: traição com o capitão. Remexeu nos bolsos, e
pensou e foi remexer na mala e esqueceu major e Divino que se despediram e logo o
trem começou a voltar para São Gabriel, antes de chegar ao Cacequi, lembrou, o
papel estava na guaiaca: qualquer novidade tu manda um telegrama para o tio Juca no
Umbu; vai ter o baile. Não te esquece; vai ter o baile, que aí eu te procuro. Sim
senhor! O trem parou em Cacequi para abastecer e o cozinheiro correu a passar o
telegrama.
Anoiteceu os sapos coaxando, na barraca da cozinha o Velho Manduca picando
o fumo e o capitão Carancho, cuia na mão, tomando o chimarrão e preocupado;
tenente Terêncio ficou de voltar naquele dia. Só falta os chimangos ter pegado ele.
Velho Manduca sovou bem o fumo na palma da mão, tirou a palha do bolso e com
muita calma começou a preparar o cigarro. O capitão pegou a chaleira e despejou
mais água na cuia. O Velho Manduca acendeu o cigarro tirou uma tragada: sabe
capitão, lá em São Lucas, quando eu era novo a comida de receber visita era bife de
charque a cavalo, quando a gente cruzar num povoado e conseguir ovos até vou fazer
uns pra gente. Gritos de uma sentinela, alguém respondeu. Vem gente. Outra
sentinela correu. Dois vultos; Andrezito e o Louco do Rodeio Colorado, apearam:
buenas noites . Então buenas . Andrezito entrou na barraca e contou ao capitão: o tal
coronel Santelino já esta sabendo que roubaram os cavalos, anda puto da cara, saiu a
procurar lá para os lados do Alegrete. O capitão sorriu, ofereceu um mate a Andrezito
e contou: é bom que ele sofra. Eu vou ficar mais um tempo com os cavalos dele.
Andrezito agradeceu o chimarrão e foi soltar o cavalo. Tiaraju entrou na barraca da
cozinha e o capitão disse: tou preocupado, com o Terêncio que ainda não voltou. Mas
nem te preocupa, ele volta, aquele tem sete vidas, te lembras àquela tropeada que a
gente fez pras Pelotas e um touro enfiou a guampa na barriga dele, o Terêncio ficou
azul, roxo, verde, desmaiou. Botamos ele numa carreta e até Pelotas ele urrou de dor
dois dias, todo mundo dizia, dessa ele não escapa, e ele ta ai. E neste momento o
sentinela gritou e Tiaraju riu e repetiu: e ele ta ai. Cansado chegou o Terêncio,
dizendo buenas noites, pedindo o mate e avisando ao capitão: já te conto o atraso. E
contou. Meu patrão quer arrendar a estância, são dois mil e cem hectares de campo
buenaço. Encontrei o Bugio do Batovi, por sinal no Cerro do Batovi me pegou pra
conversar, fez um mundaréu de perguntas. Ele não se dá com o doutor que é dono da
fazenda e pra ele o doutor não arrenda e como a fazenda é do lado da dele ele quer
escolher o vizinho e ele mandou tu arrendar a fazenda. Carancho bateu no peito: eu?!
Sim. E ble disse que até te ajuda e mandou dizer mais coisas para tu pensares.
A tropa acampada perto da estação do Saibro. Capitão José desembarcou do
trem em São Gabriel para surpresa do major: ué! O senhor aqui? É recebi sua ordem,
acampei e vim saber detalhes da ordem. Sim, não, é, pois é, é que o novo plano ainda
está sendo planejado, logo que tiver detalhes a gente conversa. O encontro forçou
conversarem sobre o cerco da Serrilhada. Pois os jornalecos dos maragatos dizem que
no combate da Serrilhada, o capitão Carancho com meia dúzia de homens mal
montados, mal armados, mal alimentados e mal vestidos, conseguiu em brilhante
manobra escapar do cerco imposto por centenas de chimangos. E conversaram e
tiraram duvidas e criaram duvidas e no fim do encontro o major ordenou que o
capitão permanecesse no Saibro aguardando novas ordens, mantendo a tropa unida
coesa e com o moral alto para defender a legalidade. Ao sair do vagão o capitão fez
sinal ao cozinheiro e pediu: me mostra onde fica a Capela dos Afuzilados, que eu não
conheço a cidade. Que capela coisa nenhuma, queria era saber mais sobre a
mensagem do cozinheiro. Capitão o major tá armando arapuca. Pra mim?! É, quer
dizer, para o capitão Carancho, mas é que o senhor tá nesta encrenca. Capitão eu vou
lhe contar; ele contratou um degolador pra degolar a família do Carancho. O quê?!
Um degolador lá da Boca do Monte. O desgraçado do Divino? Ele mesmo; em carne
e osso. Banditismo puro, envolver inocentes. Seguiu em silencio o capitão José
espumando de raiva, o cozinheiro continuou: o senhor também vai ser suspeito de ter
mandado e vai arrumar uma perseguição para o resto da vida. Também isso! Se eu
soubesse o paradeiro do Carancho até mandava avisar. O cozinheiro pensou, sacudiu
a cabeça: capitão o bom é o senhor avisar e até dá uma trégua para ele tirar a família
de casa. A droga é que eu não sei onde esta o Carancho. Capitão; tem um boteco aqui
perto dos trilhos; o boteco do Ananias...
Passo do Rocha ponto de parada no há pouco inaugurado ramal de São
Sebastião a Don Pedrito, manhã de forte cerração ou nevoeiro como queiram. O grito
do quero-quero, outro grito e mais outro. Dois homens caminhando um em direção a
o outro, caminham com calma, o sangue acelera nas veias. Quero-Quero e Carancho.
Aperto a mão dele? Quê que eu digo? Estranho; perseguido e perseguidor frente a
frente. Bem afastados dois grupos de homens não mais que cinco em cada grupo,
continuam montados e por entre o nevoeiro cuidam os dois vultos. Os dois apeiam:
buenas. É; então buenas. Seu Reduzino Malaquias? Sim senhor; o senhor é capitão
José? Sim. O barulho do silêncio da campanha e os dois calados. Carancho faz força
e fala: o senhor quer me dizer um troço? É, pois é; fique calmo que dá tempo para
evitar... A sua família esta correndo perigo. Noticia para deixar qualquer um nervoso,
o capitão Carancho chutou uma bosta de vaca. Capitão José continuou: o senhor pode
evitar. Mas, assim, me diga qual é este tal perigo. É que contrataram um degolador
para degolar sua família. Quem foi o filho da puta? Conto o milagre e não conto o
nome do santo, como eu sou contra a esta atitude, que eu acho um prevalecimento
muito covarde e como eu estou nesta luta, eu vim para lhe dizer que estou contratado
para perseguir o senhor e não a sua família e tem mais; posso combinar uma trégua
de dez dias para dar tempo a que o senhor afaste sua família de Três Estradas. Epa!
Afastar? Bem isto é com o senhor, mas quem pensa uma coisa ruim, pensa duas.
Momento de justificar o apelido, momento de ser carancho, voar com calma, sem
bater asas: Trégua? É. Dez dias? É assim; o degolador tá vindo lá de perto de Santa
Maria e prometeu fazer o serviço quinze dias depois do combinado, já faz cinco que
eles combinaram. Caramba! Este troço de dez dias de trégua: mas, seu capitão José,
nestes dez dias de trégua como é que fica o troço? Ora bolas, capitão Reduzino,
nestes dez dias nem eu lhe persigo e nem o senhor faz nenhuma ação contra mim ou
contra o governo. Momento de olhar para lá, olhar para cá, olhar lá, olhar ali; coisa
estranha, trégua. O senhor me dá a tal trégua pra eu salvar a minha família? Sim, que
quando eles me contrataram eu fiz o trato de aceitar desde uma vez que fosse
respeitado família e bens do adversário. Até que o senhor é um homem direito, e o
senhor foi contratado pra me matar? Isto é; eu tenho que tirar o senhor de ação,
morto, preso, exilado no Uruguai. Pronto, hora de encerrar a conversa, que o nevoeiro
esta limpando o sol já ilumina os campos. Então tá eu digo gracias. Sim seu Reduzino
a trégua esta combinada? Pois é; a tal de trégua, dez dias? Isto mesmo. Então tá, de
hoje a dez dias a gente volta a pelear. Silencio e ao longe o assobio de uma perdiz.
Inimigo aperta a mão na despedida? Os dois começam a recuar; um passo, dois
passos, três passos. Engraçado este troço, o cara quer me matar e eu fico devendo
favor a ele. Capitão José se eu fugir pro Uruguai o senhor ganha uma medalha? Se o
senhor se exilar no Uruguai eu ganho. Desculpe; uma medalha? É o apelido até pode
ser medalha, mas eu tenho um bom contrato. Um passo para frente, dois passos para
frente, três passos para a frente. Esta tal de trégua pode ser quinze dias? E agora José?
Pensa, repensa, um dia a mais, um dia a menos: Por que quinze dias? É que em
quinze dias eu resolvo o que tenho que resolver e aí eu lhe espero pro combate final e
bamos acabar com este troço, que eu já andava com pouca tesão pra este negócio de
revolução e agora com esta noticia que eu podia ver os meus filhos degolados eu até
já brochei pra isto. Como será este combate final? Eu lhe espero no Rio Santa Maria
lá pra baixo de Don Pedrito, eu fico do lado de lá o senhor ataca pelo lado de cá, se
dá uns tiros no meio do mato eu me mando a lá cria, dispenso meu pessoal e vou
cuidar da minha vida e o senhor vai receber a sua medalha...
Tiaraju, tu voltas para o acampamento e toma conta que eu Terêncio, Velho
Manduca, Mijão e o Louco do Rodeio Colorado nos bamos cortando atalho até as
Três Estradas. Três Estradas alegria em ver os filhos e Rosa. Flor dos Pagos estava
que era só espinho. Olha a bronca e que bronca: esqueceu que tem mulher e filhos?
Quanto tempo? Nem noticias. E o tom de voz cresceu e acabou em gritos. Cachorros
latiram as galinhas correram lá pra trás do galpão, até a forneira que tinha ninho na
cumeeira do galpão, bateu assas e gritou. Briga de marido e mulher não se mete a
colher e tal e coisa, e passa a tormenta e passa a raiva e a coisa melhora. E a noticia:
bamos pro Uruguai. De novo, outra vez mais lero-lero e mais lengalenga. E o capitão
foi ao galpão e deu a ordem: prendam a carroça.
Ficou cuidando a casa o Zé das Três Estradas, Velho Manduca e Mijão, com as
devidas recomendações e alertas sobre o grupo de degoladores. E ao cair da noite a
carroça com a esposa e os dois filhos e os três a cavalo, e cada um levando cavalo de
muda; Carancho, Terêncio e o Louco este era o guia, a bussola, o rumo e o prumo. E
passa na Serrilhada e para pra descansar e conversar e saber detalhes do cerco e o
dono da fazenda tem amigos do outro lado da fronteira e amanhã sigo junto e tudo se
ajeita.
Família no país hermano; como seria sem graça este canto do mundo se não
existisse o Uruguai. O causo é voltar ao trote que o tempo corre contra o próprio
tempo. Os três eram homens do lombo do cavalo e da fronteira ao Quebracho foi um
upa! Anoitecia e o velho fazendeiro mandou ajeitar um churrasco de charque. E o
capitão tinha pressa, mas nem precisou falar o velho bateu a bengala no chão e
avisou: tão prontos os seus papeis do campo no Saibro, daqui a pouco já lhe entrego.
E o fogo, e o charque assando, e um copo com cachaça que teve infusão no butiá, e o
chimarrão e a conversa. E o velho tinha muito que contar que o nome vinha de muito
longe na geografia e muito longe na história, a força de vento dos Açores para a
Laguna, da Laguna para o Povo Novo no lombo de cavalos. No Povo Novo uma
grande roça para dar apoio às tropas de mulas que vinham de Colônia do Sacramento,
do Povo Novo ali para o Rincão Bravo, do Rincão Bravo para o Rincão das Pelotas,
daí para o Passo dos Canudos, e depois para o São João do Herval e por fim os
campos de Bagé. Na história; já tinha quinze anos quando terminou a “grande”,
terminou ai no Poche Verde, andou no Paraguai, na outra estava dentro do cerco de
Bagé, naquele tempo eu era do lado deles, hoje eu sou dissidente. Fui muito longe fui
aos Canudos, Canudos não se rendeu. Canudos a história vai glorificar. Depois no
Contestado ali no Rio do Peixe em Santa Catarina; uma pobre gente. Velho, cansado,
os filhos tomaram outros rumos, só ele cuidando a fazenda. O capitão Carancho criou
coragem e contou o problema que lhe vinha tirando o sono: uma estância para
arrendar, lá perto de São Gabriel, na estação Suspiro. Já me incentivaram, coragem eu
tenho, mas la plata que és o causo . O velho tomou um gole de cachaça, entregou o
copo ao Terêncio, que tomou um gole e entregou o copo ao Louco. Na campanha é
assim, toma-se mate na mesma cuia, toma-se cachaça no mesmo copo e desse copo
até dá um pouquinho para o santo. E o velho levantou e andou e bateu com a bengala
e disse: capitão tem todo meu apoio e sou fiador, arrende lá, sente o pé abaixe a
poeira e depois arrende esta minha; o senhor cria lá, engorda aqui na porteira da
charqueada. Reduzino até ficou emocionado, controlou a emoção e é claro que tomou
outro gole e contou mais: Tem uma proposta de um fazendeiro que já é vizinho lá no
Suspiro de criar ovelhas. E o velho bateu a bengala. Criar ovelhas é bom, é futuro, até
limpa o campo, ela come o pasto até a raiz e aí vem pasto novo e a Europa precisa de
lã.
E a lã deu muito dinheiro, na campanha teve gente que teve rebanhos com mais
de vinte mil ovelhas, imagina num dia ventoso, vinte mil ovelhas espalhadas no
lombo de uma coxilha, todas de frente para o vento, pastando, que coisa bonita. E a
ovelha fez fortunas e o urubu comia os olhos dos cordeiros recém nascidos e a ovelha
olhava, berrava e batia com as mãos no chão e o urubu não se assustava e os
fazendeiros compravam veneno e botavam veneno em pedaços de carne e
espalhavam a carne com veneno no campo e os fazendeiros acabaram com os urubus
e o tecido sintético acabou com os fazendeiros.
Do Quebracho até Bagé quinze quilômetros; de madrugada depois de muita
conversa e o capitão Carancho já com os papeis do campo, hora que os galos estavam
cantando e hora de sair para pegar o trem e ir a São Gabriel ver o negocio de arrendar
a fazenda, ainda andar mais seis quilômetros além de Bagé até a estação de São
Martim. Para embarcar nas estações principais tinha que ter certa licença de viagem
fornecida pela policia, nas estações menores onde não tinha policia não havia
necessidade da tal licença. De São Martim o Louco do Rodeio Colorado seguiu a
cavalo e levando os outros cavalos. Carancho e Terêncio embarcaram com os chapéus
caídos para frente, encolhidos e espertos; que a tal trégua era só com o capitão José.
Vá que um provisório os reconhecesse e os quisesse prender, imagina prender o
bandido que sabotou o trem de sua excelência o senhor secretario? Os dois sentados
no vagão de segunda classe; tropeiros muito cansados, chapéu no rosto para poder
dormir, capa gaúcha, com a gola levantada, mão perto do cabo do revolver. Capa
gaúcha não tem mangas, duas aberturas laterais, abre na frente, tem botões, é uma
mistura de capa e poncho. Passando num trecho que os dois eram bem conhecidos, só
faltava algum conhecido embarcar e abrir a boca. Rodeio Colorado, São Sebastião,
Saibro, Três Estradas, o Mijão estava na estação todo refestelado olhando o trem.
Parada João Câncio, Ibaré e ai qualquer coisa meio estranha, o trem parou mais que o
tempo previsto e um sargento; sargento provisório inventou de recorrer o trem, mas
nada importante. Só posse, sabe como é otoridade é otoridade ou quem nunca comeu
mel quando come se lambuza. São Gabriel dos Marechais, primeiro o boliche do
Ananias e depois a prosa com o tal doutor, que até se achava mais doutor; o Bugio do
Batovi tinha razão. Conversa chata, palavreado pedante e nada de nada, ficou para o
outro dia.
Vontade de andar nas ruas de São Gabriel, vontade de sentar na praça e ver
gente passando que ultimamente só viam cavalo e campo, vontade de ir no cabaré, só
vontade que o negócio e ir se deitar numa peça lá nos fundos do boliche do Ananias
que além de cansados não valia a pena andar dando sopa na crista. No outro dia
chegou um telegrama do Quebracho e a prosa foi menos doutoral e mais campeira.
Uma vaca berrando e procurando o terneiro, a galinha choca ranzinza
reclamando com os pintos indo para o galinheiro, um cachorro latiu lá para os lados
da estação, longe o apito de um trem. Noitinha, hora da coruja piar. Zé das Três
Estradas estava parado na porta do galpão, viu o grupo vindo pela estrada, deu um
assobio, dentro de casa o Velho Manduca e Mijão acenderam o lampião, fecharam
portas e janelas. Zé contou; seis, ué! Reduzino disse que era cinco. Ora pombas!
Claro; o outro é o guampa torta do Zebedeu. É boa noite, o senhor é seu Zé, que é,
coisa e lousa e Souza. Boa noite, sim e tal e qual e que tal. Com a graça dos anjos
andamos no mundo que eu sou de Tupanciretã e compro mulas. Conhece
Tupanciretã? Não, lugar mais longe que eu fui é São Gabriel. E se tem onde passar a
noite, se não for incomodo. É podem pousar no galpão...
Depois de acomodados o Zé se despediu e foi encontrar dois companheiros
que já estavam escondidos atrás do galpão no meio de umas moitas de embira.
Passava de meia noite e o grupo sorrateiro saiu do galpão cercou a casa e muito
educadamente o Divino bateu na porta da cozinha: vizinha, desculpa incomodar, mas
não tem um remédio pra dor de cabeça? Velho Manduca abriu a porta e ligeiro
encostou o cano do revolver na cabeça de Divino: o melhor remédio seu degolador de
merda. Amanheceram os cinco degoladores e mais o Zebedeu na beira da estrada,
perto da estação, todos nas quatro estacas...
Acampado no mato do Rio Santa Maria, já a baixo de Don Pedrito, os homens
sentados na beira da água conversando e dando risadas. Capitão Carancho de longe
bombeava o grupo. Saíram de Três Estradas trinta e dois; dois foram presos, um
desertou e acabou degolado, Velho Manduca e Mijão voltaram para as Três Estradas;
estes dois eu quero ver se trabalham comigo o guri eu vou procurar ajudar o tomar
um bom rumo na vida e pro velho arrumo um bom canto no galpão, que é o mundo
dele, sempre é bom uma estância ter pelo menos um velho no galpão, e ele me ajuda
e eu ajudo ele que a família ele enxotou. Terêncio já é meu sócio nesta nova
empreitada que tou me metendo. Estes dois solteirões; Tiaraju e Capincho, já tão com
mais de quarenta e não tomam um jeito na vida. Andrezito volta pra terra dele.
Terêncio chegou e o despertou dos pensamentos: o inimigo já esta do outro lado do
rio, amanhã de madrugada é o tiroteio. Capitão Reduzino Malaquias andou na volta,
coçou a cabeça e deu ordem para juntar bastante lenha, mas bastante lenha. Quero
fogo grande e mandou matar o gado que tinham para municio. Vinte e quatro bois,
que loucura! Dá um boi pra cada um. O capitão tá louco. Te lembras lá do
acampamento de São Lucas? E mata boi e sangra boi, e joga a buchada no rio e o
couro atira pra lá e a cabeça atira pra cá e mata boi. Noite o clarão do fogo e os vinte
e sete homens na beira do fogo tomando chimarrão e vendo aquele mundo de carne
assar. Deitaram de madrugada e dormiram pouco, que mal apontou a barra do dia e
começou a estourar tiro na outra margem. Correria, levanta, atira pra cima faz
barulho, pega os cavalos, encilha, tenham calma, atira pra cima que eles não
atravessam o rio assim no mais. Bueno; já que é pra dar tiros, bamos queimar
cartucho. E os cavalos que a gente ia usar para atacar Rosário? Tiaraju tu e o
Capincho toquem a cavalhada, se mandem pra fronteira e façam o que quiserem com
os cavalos, a coisa acabou. Andrezito obrigado pela ajuda, volta pra tua terra. Um dia
vou convidar o capitão para ir a Santa Vitória comer um assado no couro. Eu vou,
mas não me convida pra tomar mate com leite. Acabou temos pouca munição. Junta o
pessoal e bamos iniciar a retirada pra fronteira. Terêncio fincou um pau com um trapo
branco na beira do rio...
De Santa Ana do Livramento o capitão Carancho passou o telegrama a o
coronel Simplício em Biboca: nos pegaram de surpresa, violento combate, estou sem
munição e o pessoal debandou.
De Don Pedrito o capitão José telegrafou ao major Cruzaltino em São Gabriel:
depois de muita luta o inimigo debandou do campo de batalha, sigo a São Gabriel
para fazer acerto. E seguiu imediatamente que tem certas coisas que devem ser
tratadas o mais rápido possível. Na viagem o cabo Nortense contou com alegria que
ia casar com a Risoleta, pretendiam botar um negócio em Cacequi. Pouco adiante na
beira do caminho uma pequena tropa, cerca de oitenta bois, pastando, capitão deu
ordem ao cabo: junta este gado e leva pra ti, vende e inicia teu negócio. Coisas de
revolução.
Tiaraju e Capincho entraram no Uruguai pela Serrilhada, com oitenta cavalos e
burros, passaram em Vichadero e cada um botou uma china na garupa, saíram do
Uruguai lá no Passo do Centurião foram para a margem da Lagoa Mirim e tendo
cavalos empreitaram serviços de lavrar, gradear a aplainar terras nas lavouras de arroz
de um grande líder chimango da região sul. Daí pra frente foi esta a lida que Deus
lhes deu, viveram com as chinas e criaram filhos.
O Louco de Rodeio Colorado foi visto num bonito cavalo tordilho, cantando a
canção do boi barroso, entrando Buenos Aires adentro.
O Come Égua, aquele dorminhoco, abobado, pois é; casou com a filha única de
uma viúva muito rica, o marido morreu na revolução. Os invejosos diziam: Deus que
me perdoe, mas mulher tem cada gosto.
Uma semana depois do combate os jornais noticiavam: o violento combate no
Rio Santa Maria em Don Pedrito, com dezenas de mortos. Um carreteiro que passou
perto do local contou que o mesmo estava cheio de urubus e soros comendo os restos
dos cadáveres e até dentro do rio se via muitos pedaços de cadáver, não chegou muito
perto do lugar por causa do fedor, mas que dava para ver que um dos acampamentos
foi incendiado...
Major Cruzaltino promovido e removido, promovido a coronel e removido
para Porto Alegre; sim, a formatura de honra e a medalha.
E assim É. FIM Pelotas 14 de julho de 2009.