carlos monteiro junior filosofia, retórica e educação no ... · obtenção do título de doutor...
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Carlos Monteiro Junior
Filosofia, Retrica e Educao no Pensamento
de Iscrates
Tese de Doutorado
Tese apresentada ao Programa de Ps-graduao em Filosofia da PUC-Rio como requisito parcial para obteno do ttulo de Doutor em Filosofia.
Orientador: Prof. Irley Franco
Rio de Janeiro
Setembro de 2016
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1212441/CA
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Carlos Monteiro Junior
Filosofia, Retrica e Educao no Pensamento
de Iscrates
Tese apresentada como requisito parcial para obteno do grau de Doutor pelo Programa de Ps-graduao em Filosofia do Departamento de Filosofia do Centro de Teologia e Cincas Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comisso Examinadora abaixo assinada.
Prof. Irley Franco
Orientadora Departamento de Filosofia - PUC-Rio
Prof. Luisa Severo Buarque de Holanda
Departamento de Filosofia - PUC-Rio
Prof. Maria Ins Senra Anachoretta Departamento de Filosofia - PUC-Rio
Prof. Aldo Lopes Dinucci
Universidade Federal de Sergipe-UFS
Prof. Luis Felipe Bellintani Ribeiro Universidade Federal Fluminense-UFF
Prof. Monah Winograd Coordenadora Setorial do Centro de Teologia
e Cincias de Humanas PUC-Rio
Rio de Janeiro, 12 de setembro de 2016
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1212441/CA
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Todos os direitos reservados. proibida a reproduo total ou
parcial do trabalho sem autorizao da universidade, do autor
e do orientador.
Carlos Monteiro Junior
Possui graduao em Filosofia pela Universidade Federal do
Rio de Janeiro (2008) e mestrado na mesma rea pela
Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro (2011).
Atua pesquisando principalmente nos seguintes temas:
Filosofia Grega, Linguagem, Retrica, Sofstica, Plato e
Educao. Desde 2009, exerce atividades junto ao Ncleo de
Estudos de Filosofia Antiga (NUFA) da PUC-Rio. Atua
tambm como professor de Filosofia no Ensino Mdio.
Ficha Catalogrfica
CDD: 100
Monteiro Junior, Carlos Filosofia, Retrica e Educao no Pensamento de Iscrates / Carlos Monteiro Junior ; orientador: Irley Franco. 2016. 176 f. ; 30 cm Tese (doutorado)Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro, Departamento de Filosofia, 2016. Inclui bibliografia 1. Filosofia Teses. 2. Iscrates. 3. Retrica. 4. Sofstica. I. Franco, Irley. II. Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro. Departamento de Filosofia. III. Ttulo.
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Agradecimentos
CAPES e ao Departamento de Filosofia da Puc-Rio, pelos auxlios concedidos,
sem os quais este trabalho no poderia ter sido realizado.
Aos meus pais, familiares, amigos e Amanda pelo apoio, amor, companheirismo
e carinho.
professora Irley Franco, pela orientao e pelas aulas, que contriburam bastante
no desenvolvimento deste trabalho.
Aos professores Aldo Dinucci e Luis Felipe Bellintani, pela participao na
defesa, e s professoras Luisa Severo Buarque de Holanda e Maria Ins
Anachoretta, pelo apoio, incentivo e comentrios desde o exame de qualificao.
A todos os professores e alunos do NUFA, pelas discusses, trocas de
informaes e colaboraes.
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Resumo
Junior, Carlos Monteiro; Franco, Irley. Filosofia, Retrica e Educao no
Pensamento de Iscrates. Rio de Janeiro, 2016. 176p. Tese de Doutorado
Departamento de Filosofia, Pontifcia Universidade Catlica do Rio de
Janeiro.
A presente tese pretende analisar o modo como a educao filosfica era
identificada, pensada e discutida na Atenas do sculo IV a.C., especificamente em
sua interseo com a retrica. Para isso, optamos por utilizar os textos e o
pensamento de Iscrates como principal referncia, destacando neles os
movimentos existentes de identificao da filosofia e de sua educao. Um dos
objetivos centrais desta tese destacar a importncia de Iscrates nesse processo
de formao da filosofia grega, ressaltando o grande valor dos textos desse
autor na anlise arqueolgica da educao filosfica. A partir desse tema,
chegaremos a uma discusso sobre o papel do filsofo na formao dos cidados,
tema que se tornou bastante frequente nas universidades brasileiras nas ltimas
dcadas aps a obrigao legal que inseriu a disciplina filosofia na Educao
Bsica em todo o pas. Acreditamos que analisar esse perodo embrionrio da
filosofia, no qual ela foi pensada como um instrumento imprescindvel para a
formao cvica dos cidados, pode estimular reflexes e inquietaes acerca do
papel dado ao pensamento filosfico na formao dos jovens atualmente, mesmo
que sejam outros os valores propostos e o contexto cultural em questo.
Palavras-chave
Iscrates; Retrica; Sofstica.
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Abstract
Junior, Carlos Monteiro; Franco, Irley (advisor). Philosophy, Rhetoric
and Education in Isocrates. Rio de Janeiro, 2016. 176p. Doctoral Thesis
Departamento de Filosofia, Pontifcia Universidade Catlica do Rio de
Janeiro.
This thesis aims to analyze how the philosophical education was
identified, considered and discussed in IV century BC Athens, specifically at its
intersection with the rhetoric. For this, we chose to use the texts and the thought
of Isocrates as the main reference, highlighting the flows identification of
philosophy and their education. A central objective of this thesis is to underline
the importance of Isocrates in this formation process of Greek philosophy,
emphasizing the great value of the texts of this author in the archaeological
analysis of philosophical education. From this issue, we will come to a discussion
of the philosopher's role in the education of citizens, an issue that has become
quite common in Brazilian universities in recent decades after the legal obligation
that entered the philosophy discipline in basic education throughout the country.
We believe that analyzing this embryonic period of philosophy, in which it was
conceived as an essential tool for civic education of citizens, can stimulate
reflections and concerns about the role given to philosophical thought in the
formation of young people today, even if the values and cultural context in
question are others.
Keywords
Isocrates; Rhetoric; Sophistic.
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Sumrio
1. Introduo 8
2 . Por que Iscrates? 19
3 . A filodoxia de Iscrates 37
4 . Retrica, tcnica e escrita no pensamento isocrtico 66
5 . A educao filosfica em Iscrates 108
6 . Consideraes finais 143
7 . Referncias bibliogrficas 153
8 . Apndice Contra os sofistas de Iscrates - Traduo 165
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Introduo
Polis andra didaskei1
Quando aos dois de junho de 2008 e at mesmo antes dessa data foi
aprovada a alterao do artigo 36 da Lei de Diretrizes e Bases da Educao
Nacional (LDB) que tornou obrigatrio o ensino de filosofia e sociologia nas
escolas pblicas e privadas em todo o Brasil, muitos debates foram promovidos
para se pensar sobre as bases e consequncias dessa obrigatoriedade2. Dentre estes
debates, possvel citar, por exemplo, a necessidade de reviso do currculo das
universidades e a intensificao da valorizao das licenciaturas3, a fim de suprir
essa nova demanda de profissionais capazes de incentivar a reflexo filosfica
principalmente nos adolescentes, mas tambm na educao de jovens e adultos4.
Alm disso, se fez necessria tambm a discusso sobre a seleo dos contedos
filosficos, a metodologia de ensino, as prticas pedaggicas e os materiais
didticos coerentes com esta etapa da educao, levando em conta, igualmente, a
heterogeneidade dos aspectos sociais, cognitivos, emocionais e culturais presentes
no ambiente escolar. Assim como, por fim, uma discusso mais abrangente sobre
o papel do filsofo na formao dos cidados, e ainda, debates sobre o que
entendemos por filosofia no sculo XXI e como ela pode contribuir para o
1 A cidade educa o cidado Frag. 23 Simnides.
2 Como a rea de concentrao desta tese se limita filosofia, a discusso se desenvolver,
exclusivamente, em torno do ensino da filosofia. No dia 23 de Setembro de 2016 o Governo
Federal publicou no Dirio Oficial da Unio uma polmica Medida Provisria (476) que altera a
organizao do Ensino Mdio, com a proposta de tornar seu currculo obrigatrio mais flexvel e
atrativo, sendo apenas as disciplinas portugus e matemtica obrigatrias nos trs anos dessa etapa
final da Educao Bsica. Com isso, foi alterado o artigo que estabelecia a filosofia e a sociologia
como disciplinas obrigatrias em todo Brasil nas trs sries do Ensino Mdio, cabendo s
instituies de ensino decidir quando e como ofertar essas disciplinas. 3 Que ainda vista por alguns acadmicos como algo menos importante, ou at mesmo,
menos filosfico. 4 Denominado de EJA, dedicada aos que no completaram o ensino regular na idade
apropriada. E ainda mais, com essa obrigao legal abriu-se espao para aulas de filosofia, na
educao formal, em escolas indgenas, no sistema prisional, escolas tcnicas, entre outros.
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desenvolvimento dos valores tidos como imprescindveis para o mundo
contemporneo.
No o principal interesse desta tese investigar as recentes questes sobre o
ensino de filosofia na Educao Bsica no Brasil5. Se as citamos porque
percebemos um dilogo possvel entre esse tpico e a reflexo sobre a construo
identitria da filosofia (o que ela ? Quem o filsofo? E o que o filosofar?) em
seu momento originrio. Nosso objetivo investigar o modo como a prtica
filosfica era identificada, pensada e discutida na Atenas do sculo IV a.C., mais
especificamente em sua interseo com a retrica. bastante comentada a relao
entre a filosofia e a retrica nesse perodo, comumente supondo a existncia de
dois modelos educacionais conflitantes, um filosfico, possuindo pretenses de
alcanar a verdade e o fundamento da realidade, e outro puramente retrico, com
pretenses exclusivamente instrumentais, isto , sem nenhum tipo de pretenso
verdade, cada qual reivindicando para si o lugar de melhor educador, de gerador
da vida feliz. Contudo, nossa opinio que, embora houvesse sim um ambiente
conflituoso ou agonstico entre diferentes vertentes educacionais da poca,
prticas filosficas que pretendiam direcionar as aes e os pensamentos de seus
seguidores, reduzir esse ambiente complexo a apenas duas grandes disciplinas ou
perspectivas educacionais parece-nos ser uma maneira meramente didtica
(artificial) de compreenso do contexto em questo. Ora, tal simplificao pode
ser benfica quando queremos ter do pensamento filosfico um panorama geral.
Porm, quando se trata de compreender o sentido originrio desse pensamento, o
modo como se formaram os sentidos dos termos philosophia (filosofia),
philosophos (filsofo) e philosophein (filosofar), muitas vezes em oposio ou em
comparao a termos tais como paideutes (educador), politikos (poltico), sophos
5 Sobre isso, crescente o nmero de publicaes, simpsios e grupos de pesquisa que
discutem esse tema. Poderamos citar, por exemplo, o Instituto de Filosofia e Educao para o
Pensar (IFEP), o Grupo Paideia, o Ncleo de Estudos Filosficos da Infncia da Uerj, a Filosofia
na sala de Aula da UNIRIO, o Encontro Nacional Prodocncia de Filosofia da UFRJ e a recente
programao da ANPOF-Ensino Mdio sobre o ensino de filosofia, que ir neste ano de 2016 para
a sua terceira edio. Importante citar tambm a recente criao do mestrado profissional em
ensino de filosofia que visa estreitar relaes entre o ambiente acadmico e a prtica do ensino de
filosofia. Vale tambm ressaltar a importncia e relevncia de projetos como o Pibid (Programa
Institucional de Bolsa de Iniciao Docncia) que pretende criar um vnculo maior entre as
universidades e as escolas.
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(sbio), sophistes (sofista), retor (orador), etc., nos damos conta de que, ainda em
estado de crislida, toda essa terminologia est interligada e por isso no
encontramos identidades fixas e prticas j estabelecidas. s vezes, at mesmo em
um nico autor encontramos variaes sobre a identificao da natureza da
filosofia.
Por todas essas razes, no temos, nem poderamos ter, a pretenso de com
nossas reflexes alcanar uma interpretao verdadeira. Ao contrrio,
pretendemos, a partir da anlise de textos da poca, reviver as discusses que se
travaram acerca dos diferentes modos como a filosofia e a retrica foram
apresentadas ou identificadas em sua origem. A grande dificuldade que
enfrentamos a escassez de textos preservados e a forte influncia das verses
platnica e aristotlica, que opem retrica e filosofia, e que foram amplamente
aceitas pela posteridade. comum encontrarmos, tambm, uma oposio entre
filsofos e sofistas, ou entre uma educao filosfica e outra sofstica. Todavia,
como j foi apresentado por alguns comentadores6, falar em movimento sofstico
ou em sofistas problemtico, porque fazendo isso, passamos a impresso de que
houve uma uniformidade ou unidade entre os diferentes sofistas de pocas
distintas, o que realmente no existia. Alm disso, possvel perceber diferentes
critrios que foram utilizados na delimitao do territrio da filosofia e da
sofstica.
Nesse contexto, os dilogos de Plato tm obviamente um papel de destaque
e entendemos que um dos principais objetivos dos escritos platnicos seja
6 Como diz Marie-Pierre Nol em seu artigo Lectures, relectures et mlectures des
sophistes: "Num sentido inverso, os estudos sobre a sofstica sempre examinam os 'sofistas
individuais ', que expem teorias, em geral, muito diferentes, para no dizer inconciliveis. O
elemento unificador , ento, a palavra "sofista", que apenas ela parece garantir uma unidade
que se esvai" (En sens inverse, les tudes sur la sophistique examinent toujours les sophistes
individuels, dont elles exposent les thories, en general trs diffrentes pour ne ps dire
difficilement conciliables. Llment fdrateur est alors le terme sophiste qui, lui Seul, semble
garantir une unit qui se drobe., p.21). Segundo essa autora, Plato formou a distino entre o
filsofo e o sofista a partir de uma perspectiva filosfica e no histrica, assim a separao entre
filsofos e sofistas no se sustenta historicamente (p.35). E essa separao platnica serviu de base
para quase todos os comentrios realizados pelos filsofos posteriores acerca desses pensadores,
inclusive para aqueles, como Aristteles, que tiveram acesso aos textos e pensamentos dos autores
classificados como sofistas. Esse tema tambm abordado por Didier Bigou no artigo 'Diversit
des sophistes, unit de la sophiste' que trata da dificuldade, j apontada por outros comentadores
como Grote, de dar unidade sofstica e dos critrios utilizados para pensar essa unidade.
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exatamente delimitar a fronteira entre o filsofo e o sofista. Como o prprio
Plato percebeu, essa no era uma tarefa fcil. A morte de Scrates levou Plato,
assim como outros socrticos, a construir uma imagem positiva do seu mestre.
Mais do que isso, Plato quis construir a imortalidade da imagem de Scrates. E
esse Scrates heri de Plato colocado como o verdadeiro paradigma de
filsofo, que se preocupava em utilizar um mtodo de argumentao e
pensamento rigorosos a fim de encontrar as verdadeiras definies e as verdades
sobre as coisas do mundo. Seguindo o carter competitivo ou agonstico da
cultura grega, esse heri platnico precisou de um inimigo ou antagonista. Da
aparece a figura do sofista, presente em quase todos os dilogos platnicos e
capaz de ganhar diversas formas ou aparncias, mas na maioria das situaes visto
como professor que cobra para ensinar a argumentar ou discursar de maneira
persuasiva e vencedora. O prprio Plato destacou a diversidade de identidades
que os sofistas podem ter e como difcil encontrar uma unidade nessa ampla teia
de possibilidades. A morte de Scrates e outros processos contra os
sofistas/filsofos, e tambm, a mais antiga fonte dos ensinamentos socrticos (e
sofsticos) que temos, As nuvens de Aristfanes, revelam no s que a fronteira
entre o filsofo e o sofista no era to ntida, como tambm que havia no senso
comum da poca um mal-estar com relao a esse personagem ou mesmo com
relao prpria filosofia. A ideia divulgada por entre os conservadores da poca
era de que as constantes conversas filosficas estavam desvirtuando a juventude
ateniense e levando essa cidade degradao.
A fim de analisar esse contexto de construo identitria da filosofia e sua
educao, pareceu-nos que Iscrates seria a figura ideal, pois os textos dele e de
Plato no s compartilhavam de um mesmo ambiente, como podemos perceber
em ambos pensadores o movimento de construo de uma imagem positiva para a
filosofia, destacando sua importncia para a educao da cidade. A ideia realizar
uma arqueologia nos textos isocrticos com o objetivo de reconstituir o ambiente
intelectual ateniense do sculo IV a.C, destacando a importncia de Iscrates
nesse processo de formao da filosofia grega. Dito de outro modo, analisaremos,
a partir dos textos de Iscrates, os movimentos existentes de identificao da
filosofia e do filosofar, ressaltando a diversidade de caracterizaes presentes no
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corpus isocrtico e a complexidade de suas interaes com outras prticas.
Entendemos, como j foi dito, que na poca de Plato e Iscrates ocorreram, como
em vrios outros momentos da histria da filosofia, movimentos diversos de
construo da identidade da filosofia, onde foram construdas diferentes imagens
para ela. Empregamos essa palavra porque acreditamos que ela pode expressar
melhor esse ambiente diverso e heterogneo de demarcaes da atividade
filosfica. O conceito de imagem no significa aqui simulacro ou falsa percepo
de algo, pelo contrrio, damos a essa palavra um valor positivo, ao ser capaz
destacar as diferenas entre os modos de apresentao da filosofia, no havendo
uma imagem (ou modelo) mais verdadeira do que outra. Colocando, assim, em
evidncia a dificuldade de apresentar a filosofia de maneira unitria ou binria,
reconhecendo diferentes perspectivas ou modos de ser da filosofia, e no apenas
um modelo ou padro.
A partir do que foi dito at agora, uma pergunta deve ser formulada: por que
iniciar uma tese sobre um contexto to longnquo da histria da filosofia
relacionando-a s atuais discusses sobre o ensino de filosofia no Brasil?
Pensamos que essa aproximao pode ser proveitosa e isto que pretendemos
esclarecer a seguir.
Podemos afirmar que o que levou Iscrates a formular uma prtica
educacional foi a necessidade de pensar um novo tipo de formao (paideia) para
os cidados, que fosse coerente com as nascentes necessidades surgidas na polis
grega da poca. Isto , notamos em Iscrates, como igualmente em outros
pensadores de sua gerao, como Plato, e tambm da gerao anterior (Scrates,
Protgoras e Grgias), a formulao de uma nova paideia que teria como base um
original cdigo de valores, distante das virtudes propagadas pela cultura arcaica
atravs da poesia pica e da religio, e que poderia livrar Atenas de um futuro
decadente. H aqui a compreenso de que a educao uma tcnica coletiva onde
ocorre o processo de iniciao da juventude nos valores e prticas que identificam
o modo de ser e de pensar de cada civilizao e cultura. Esse foi o motivo que
levou Iscrates e Plato a competirem pelo papel de destaque na formao dos
cidados e, por conta disso, nota-se uma primeira aproximao entre os dois
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pensadores: ambos propuseram mudanas e reformas na educao grega,
entendendo que assim poderiam produzir um porvir melhor para a sociedade
ateniense. Mais ainda, esses dois pensadores entenderam que a filosofia, mesmo
com ideias distintas do que ela seja, um agente fundamental para que mudanas
polticas e sociais possam ser realizadas. Acreditamos, ento, que analisar esse
perodo embrionrio da filosofia, no qual ela foi pensada como um instrumento
imprescindvel para a formao poltica dos cidados, mesmo que sejam outros os
valores propostos e o contexto cultural em questo, pode estimular a reflexo e
desenvolver o entendimento acerca do papel dado ao pensamento filosfico na
formao dos estudantes atualmente. Assim como hoje encontramos argumentos
contrrios insero da filosofia7 no currculo escolar obrigatrio, pautados
principalmente na sua inutilidade e em seu uso poltico, tambm no sculo IV a.C
havia um certo descrdito com relao ao pensamento filosfico. Muitas vezes
tratada de maneira cmica8, ressaltando-se na filosofia a sua inutilidade para
solucionar problemas prticos. E o que tanto Plato quanto Iscrates fizeram foi
exatamente destacar a importncia e relevncia da filosofia, do filsofo e da
atividade do filosofar na educao. Alm disso, acreditamos que as temticas
presentes nos textos isocrticos, assim como as compreenses da atividade
filosfica existentes na cultura grega, podem servir de inspirao para a
elaborao de prticas didtico-pedaggicas de filosofia para o Ensino Mdio,
principalmente em discusses sobre linguagem, retrica, poltica e democracia.
Hoje percebemos um movimento, por parte dos tericos do ensino da
filosofia, que pretende revelar sociedade a importncia das habilidades e
7 Por exemplo, h alguns artigos do colunista poltico da revista Veja Reinaldo Azevedo
onde ele aborda a questo, entre estes um intitulado: O Brasil precisa de menos filsofos e
socilogos e de mais engenheiros que se expressem com clareza. H ainda o Projeto de Lei (PL n
6.003/2013), de autoria do deputado federal Izalci Lucas Ferreira (PSDB-DF), que pretende
eliminar a obrigatoriedade de que filosofia e sociologia sejam tratadas como disciplinas
obrigatrias nos currculos escolares. E no atual contexto poltico-social altamente polarizado,
encontramos quem acuse principalmente os professores das Cincias Humanas de proselitismo
poltico, fazendo surgir pautas em diversas instncias do poder executivo que pretendem
normatizar as prticas e contedos escolares, do tipo Escola Sem Partido (PL n 867/2015) e com
conceitos como assdio ideolgico, principalmente em discusses sobre gnero, religio e poltica. 8 No artigo O Filsofo e o comediante, Jacyntho Lins Brando analisa a formao da
atividade do filsofo e sua relao com a comdia. Sobre as anedotas da antiguidade, e suas
repercusses na atualidade, que tinham o objetivo demonstrar a falta de utilidade prtica do
filsofo e da filosofia, ver MARCONDES, Danilo & FRANCO, Irley, A filosofia o que ? Para
que Serve?, pginas 27-29.
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competncias9 que as aulas de filosofia podem gerar em seus estudantes,
objetivando formar um pensamento mais crtico e autnomo. Paralelo a isso,
encontramos, tambm, a constante luta dos professores da disciplina, frente aos
alunos e responsveis, contra a imagem negativa da filosofia, s vezes tratada
como uma disciplina intil, repleta de divagaes delirantes e distantes da
realidade concreta. Notamos, ento, que mesmo com o distanciamento temporal e
as diferenas no contexto histrico e social, produtivo fazer uma aproximao
entre as atuais discusses sobre o ensino de filosofia e os embates entre as
educaes filosficas existentes na cultura grega clssica.
Voltando questo inicial da obrigatoriedade do ensino de filosofia. Foi
colocada em questo a necessidade de rever os currculos nas faculdades de
filosofia no Brasil, levando em considerao essa nova demanda de profissionais
aptos a trabalhar os contedos filosficos no Ensino Mdio, sem com isso perder a
profundidade e rigor inerentes a essa matria. As universidades agora tm que
estar preparadas para no apenas formar especialistas em determinados perodos
ou pensadores da histria da filosofia, que se dedicaro carreira acadmica no
Ensino Superior. preciso tambm gerar um espao de investigao sobre como
apresentar a filosofia no Ensino Mdio e cumprir os objetivos propostos para essa
disciplina. Para isso, necessrio tanto um conhecimento da estrutura educacional
de nosso pas, quanto do arcabouo terico e legal que fundamentam essa
estrutura, passando, tambm, pelos debates sobre a seleo dos contedos, as
possveis conexes interdisciplinares, atividades em sala, material didtico, entre
outras coisas. Antes da obrigatoriedade do ensino de filosofia, j existiam cursos
de licenciatura em filosofia, assim como o seu ensino em algumas escolas.
Contudo, com a obrigao se fez necessrio repensar a estrutura dos cursos j
9 Segundo as Orientaes Curriculares para o Ensino Mdio (2006), as competncias e as
habilidades previstas para a filosofia podem ser dividas em trs grupos. 1) Representao e
comunicao: ler textos filosficos de modo significativo; ler de modo filosfico textos de
diferentes estruturas e registros; elaborar por escrito o que foi apropriado de modo reflexivo;
debater, tomando uma posio, defendendo-a argumentativamente e mudando de posio em face
de argumentos mais consistentes. 2) Investigao e compreenso: articular conhecimentos
filosficos e diferentes contedos e modos discursivos nas cincias naturais e humanas, nas artes e
em outras produes culturais. 3) Contextualizao sociocultural: contextualizar conhecimentos
filosficos, tanto no plano de sua origem especfica quanto em outros planos: o pessoal-biogrfico;
o entorno scio-poltico, histrico e cultural; o horizonte da sociedade cientfico-tecnolgica.
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existentes e abrir novos cursos para suprir a demanda de professores de filosofia,
uma vez que os filsofos ganharam um importante espao de atuao em nossa
sociedade e, consequentemente, as reflexes filosofias ganharam grande
visibilidade. Para que esse espao no seja desperdiado e para revelarmos a
importncia da filosofia na formao dos estudantes, preciso a elaborao de
reflexes e debates para tornarmos as aulas de filosofia mais proveitosas,
conseguindo promover, o mximo possvel, o exerccio da cidadania10
e o
aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formao tica e
o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crtico;11
como
prev a Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional.
As outras consequncias citadas na primeira pgina desta introduo,
articulam-se diretamente com esse primeiro ponto abordado. Uma das principais
dificuldades encontradas pelos professores de filosofia est na organizao do
planejamento curricular e na seleo dos contedos que sero trabalhos em suas
aulas a fim de estimular o pensamento crtico e autnomo.12
Com a formao
especializada dos estudantes de filosofia e diante dessas dificuldades, os
professores encontraram um porto seguro nos contedos clssicos da filosofia, e
muitas vezes as aulas dessa disciplina no Ensino Mdio se tornam uma aula de
histria da filosofia, onde os alunos atuam como receptores passivos (ou
depsitos) de conceitos e ideias j pensadas. Ao ser inserida nas escolas, a
filosofia foi submetida tambm a um modelo educacional tradicionalmente
tecnicista, padronizante e massificado, dividido em disciplinas que pouco
dialogam, focado em avaliaes e contedos sem conexo com a realidade. Com
isso, na perspectiva do aluno, a filosofia seria mais uma disciplina obrigatria
(chata) que ele deve decorar algumas coisas para conseguir a aprovao. Cabe aos
filsofos questionarem isso, dentro de seus limites, e levarem os alunos tambm a
fazerem esse questionamento, apresentando as aulas de filosofia como um espao
10
LDB, artigo 36 inciso III. 11
LDB, artigo 35 inciso III. 12
A partir de debates nas faculdades de filosofia e com os professores da disciplina, foram
elaborados, no mbito nacional, os Parmetros Curriculares Nacionais e no mbito estadual, os
Currculos Mnimos, que pretendem orientar os professores no planejamento dos contedos.
Atualmente, est sendo desenvolvida, de maneira preliminar para anlises de todos agentes
envolvidos na educao, a Base Nacional Curricular Comum, que pretende nortear os currculos de
todas as disciplinas, da Educao Bsica, para todo o Brasil.
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para discusso, debate e trocas de conhecimento, ou citando a provocao do
filsofo contemporneo Jacques Rancire, um espao de transmisso de
ignorncias:
[...] a filosofia pode ser, na instituio, este lugar onde se reverta o fundamento da
autoridade do saber, onde o sentimento justo da ignorncia aparea como a
verdadeira superioridade do mestre: o mestre no aquele que sabe e transmite; ele
aquele que aprende e faz aprender, aquele que, para falar a linguagem dos tempos
humanistas, faz seu estudo e determina cada um a fazer por sua conta. A filosofia
pode ocupar este ponto de reverso porque ela o lugar de uma verdadeira
ignorncia. Todos sabem que, desde o comeo da filosofia, os filsofos no sabem
nada, no por falta de estudos ou de experincias, mas por falta de identificao.
Tambm o ensino da filosofia pode ser este lugar onde a transmisso dos
conhecimentos se autoriza a passar a algo mais srio: a transmisso do sentimento
de ignorncia.13
.
claro que inconcebvel qualquer ensino de filosofia que no passe pelas
teorias filosficas tradicionais, mas deve-se sempre contextualiz-las, fazendo
com que os alunos percorram junto com os filsofos o trajeto seguido na
elaborao de suas teorias e conceitos, tentando sempre sensibiliz-los na
apresentao dos problemas filosficos e na soluo apresentada por cada
pensador. E o mais importante, relacionar os problemas clssicos da filosofia com
o mundo contemporneo e fazer da filosofia um instrumento ou meio que
possibilite ao aluno interpretar, de maneira crtica e autnoma, o mundo atual,
tendo como base as teorias j pensadas. Ou seja, preciso encontrar um meio
termo entre a filosofia entendida como postura ou atitude e a histria do
pensamento filosfico, que de nenhuma forma pode ser eliminado das aulas de
filosofia.
Por fim, quando os filsofos, obrigatoriamente, passaram a ter espao nas
escolas pblicas e privadas, renasceu a necessidade de se responder pergunta
mais frequente nas aulas de filosofia: afinal, o que a filosofia e para que ela
serve? Mais uma vez foi necessria a discusso sobre o que entendemos por
filosofia hoje14
, em plena poca tecnolgica e ciberntica, e qual o papel do
13
In: DERRIDA et al, 1986, p. 119-120, apud GALLO, S. e GENIS, A., Filosofia da
educao, exerccios espirituais e arte de existncia, 2015, p. 109. 14
Vale citar o polmico Projeto de Lei (PL 2533/2011) do deputado Giovani Cherini (PDT-
RS) que pretende regulamentar a profisso de filsofo e suas competncias. Entre outras
justificativas para tal projeto, h a seguinte: Assim, parece-nos evidente que o Estado pode e deve
agir no sentido de regular o exerccio da profisso de Filsofo no Pas, estipulando as condies
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filsofo na sociedade contempornea. Segundo o relatrio para a UNESCO da
Comisso Internacional sobre Educao para o sculo XXI, conhecido como
Relatrio Delors15
, h quatro pilares fundamentais na educao em nosso milnio.
So eles: aprender a conhecer (estimular a organizao de pensamentos e
conhecimentos), aprender a fazer (estimular a competncia de enfrentar diversas
situaes e a trabalhar em equipe), aprender a ser (estimular o senso crtico, a
capacidade de deciso, autonomia e responsabilidade social) e aprender a viver
(estimular as capacidades de argumentao e escolha, lidar com risco e a
incerteza). No h apenas interesse nos processos cognitivos, mas sim tambm no
desenvolvimento psicossocial, e a filosofia, com seus questionamentos e
reflexes, tem muito a contribuir no estabelecimento e desenvolvimento desses
pilares a fim de promover uma educao que v alm do treinamento e da
instruo, possibilitando aos estudantes o desenvolvimento de aptides para a
tomada de decises e para o pensamento crtico. Com tudo isso, surgiu a
necessidade de colocar, ou at mesmo resgatar, o tema da educao filosfica
como uma questo filosfica, isto , como um tema que merece ateno ou
investigao dos filsofos acadmicos. O que muitas vezes no acontece pois se
entende que a experincia filosfica no Ensino Mdio algo menor, menos
filosfica. Acreditamos que um caminho possvel para o desenvolvimento de
prticas efetivas, sem um exagero iluminista ou positivista, no ensino de filosofia
o incremento de pesquisas acadmicas que investiguem o lugar e atuao da
filosofia na Educao Bsica. Algo que est em curso nos ltimos anos, pois
atualmente encontramos diversos grupos ou ncleos de pesquisa, espalhados em
vrios departamentos pelo Brasil, que realizam atividades centradas no ensino de
filosofia, tanto no nvel da graduao como na ps-graduao, promovendo assim
seminrios, palestras, cursos, entre outros.
Para concluir, nos prximos captulos centraremos nossa anlise e
investigao no pensamento de Iscrates e nas discusses suscitadas por esse
de habilitao e as exigncias legais para o regular exerccio da mesma, alm de seu mbito de
competncia. Tal medida de suma importncia, pois se de um lado retirar do mercado de
trabalho as pessoas no habilitadas, de outro presta justo reconhecimento do Estado a esta
milenar profisso; em benefcio de toda a sociedade brasileira.. 15
Educao: um tesouro a descobrir. Relatrio para a UNESCO da Comisso
Internacional sobre educao para o sculo XXI. Jacques Delors. 1996.
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autor. No primeiro captulo, faremos algumas consideraes acerca do
pensamento e dos textos de Iscrates, a fim revelar o papel deles na histria do
pensamento. Ainda no primeiro captulo, apresentaremos o discurso Contra os
sofistas que ser o texto que orientar esta investigao sobre a filosofia
isocrtica. A diviso temtica extrada desse discurso servir de base tanto para a
excurso no corpus isocrtico como para a organizao dos captulos desta tese.
Dividiremos o Contra os sofistas em duas partes, uma negativa ou crtica (1-14 e
19-20) onde Iscrates revela os seus adversrios, aqueles que tambm se
dedicam a educar os jovens, mas que fracassam, seja por exagerar na divulgao
das capacidades de sua tcnica seja por ensinar algo que no til para alcanar a
virtude e a felicidade. Nessa parte negativa, Iscrates nos oferece um panorama do
cenrio educacional na Atenas do sculo IV a.C, dos tipos de prticas existentes e
suas falhas. Depois de criticar, Iscrates apresenta a sua filosofia, dando incio a
parte positiva ou propositiva do texto (14-18 e 21-22) onde ele expe os limites
e objetivos de sua educao, na tentativa de melhorar a imagem dos novos
educadores e exortar os jovens filosofia. Analisaremos cada um desses dois
momentos e deles extrairemos as temticas discutidas nos prximos captulos, a
partir da seguinte diviso: iniciando pela crtica aos ersticos, realizaremos
comentrios sobre a presena da oposio entre os conceitos de doxa e episteme
no pensamento isocrtico, apresentando a sua filodoxia (Captulo 2 A filodoxia
de Iscrates). J a partir da crtica aos professores de discursos polticos e aos
escritores de manuais retricos, analisaremos a compreenso que Iscrates tem do
que hoje chamamos de retrica e sua possibilidade tcnica (Captulo 3 Retrica,
tcnica e escrita no pensamento de Iscrates). Por fim, percorrendo a parte
positiva do Contra os sofistas, apresentaremos a composio da imagem da
filosofia isocrtica que podemos extrair da leitura dos seus discursos e cartas
(Captulo 4 A educao filosfica em Iscrates).
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2
Por que Iscrates?
Seja marginal, seja heri. 16
A pergunta que serve de ttulo para este captulo foi alvo de inmeras
reflexes ao longo da pesquisa sobre esse pensador. Dito de outra forma: Iscrates
realmente merece ateno dentro de uma investigao sobre a filosofia grega? Ou
mais diretamente, Iscrates um filsofo? E como o pensamento dele pode
contribuir nesta arqueologia da identidade do filsofo e da filosofia na Grcia
antiga? Estas so algumas das questes e temas que abordaremos neste captulo.
Com o objetivo de analisar as interaes entre a filosofia e a retrica,
buscamos fontes para alm dos dilogos platnicos a fim de perceber como outros
autores desse perodo traaram as identidades desses dois personagens. Ou seja,
investigamos se possvel perceber e como ela se d a distino entre o
filsofo e o sofista fora dos dilogos platnicos. Em Iscrates, encontramos uma
possibilidade de diversificao dessa questo, principalmente por dois motivos:
tradicionalmente, Iscrates foi classificado como sendo um representante do
movimento sofstico, de uma gerao posterior dos grandes sofistas como
Grgias, Protgoras e Hpias. Alm disso, vrios textos isocrticos foram
preservados, sendo ento uma rica fonte de acesso s discusses e problemticas
da poca. Teramos, ento, em Iscrates um possvel terico e herdeiro do
movimento sofstico, alm de um defensor da educao retrica. O outro motivo
o tradicional agon17
entre Iscrates e Plato. bastante relatada a rivalidade entre
esses autores, entre suas escolas e perspectivas filosficas, uma vez que os dois
pensadores atenienses viveram em um mesmo perodo histrico e compartilharam
16
Obra (1968) de Hlio Oiticica que marcou o movimento artstico conhecido como
marginlia ou cultura marginal. 17
Em seu artigo Philosophy, rhetoric, and cultural memory, Ekaterina V. Haskins trata da
rivalidade entre Plato e Iscrates ao longo da histria da filosofia. Esta rivalidade foi tratada,
entre outros, por Jaeger e Marrou.
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as discusses, temas e conflitos em voga na poca. Haveria, portanto, entre eles
uma disputa pelo ttulo de grande educador ateniense, sendo Plato e Iscrates
rivais em relao paideia grega.
Sobre o primeiro ponto, a classificao de um pensador como sofista
artificial e pode ter vrias motivaes. Pode ser feita para menosprezar o seu
pensamento, aplicando o carter pejorativo do termo. Ou pode acontecer para
delimitar o campo de atuao desse pensador, como, por exemplo, orador ou
professor de retrica. Ou mais, faz-se essa classificao vinculando um autor
determinada figura tradicionalmente identificada como sofista, nesse caso est em
questo a filiao de um determinado pensador. E foi isto que aconteceu com
Iscrates, apesar de em diversos momentos se identificar como filsofo e entender
a sua ocupao como uma atividade filosfica, a tradio o classificou como
sofista. E por que isso aconteceu? Talvez porque Iscrates, como
problematizaremos ao longo da tese, apresenta a sua filosofia como uma atividade
ou educao centrada na criao e anlises de discursos, ressaltando a necessidade
de entender a prtica filosfica como um exerccio deliberativo. Sendo a sua
educao uma preparao para a vida pblica, a como pensar, agir e deliberar
bem, a fim de realizar aes virtuosas no mbito particular e, principalmente, no
mbito pblico. H nos textos de Iscrates uma preocupao com a prxis poltica
e tica, e certo menosprezo em relao s questes metafsicas ou ontolgicas.
Como essas questes foram tradicionalmente definidas como sendo as verdadeiras
e genunas questes filosficas, por influncia do pensamento platnico-
aristotlico, Iscrates e seus textos em diversos momentos foram vistos como
possuindo pouco contedo filosfico, classificados como exerccios retricos ou
exibies de suas habilidades oratrias. Consequentemente, os seus textos
passaram a ter pouca importncia na anlise do desenvolvimento da filosofia e sua
atuao na cultura grega. E o fato de Iscrates ter denominado a sua atividade de
filosofia no foi o suficiente para a tradio identific-lo como filsofo, revelando,
assim, que a classificao de Iscrates como sofista usou conceitos de filosofia e
sofstica exteriores ao seu prprio pensamento, uma vez que essa distino no
feita pelo autor. Ressaltando, mais uma vez, a artificialidade dessas
denominaes.
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Em muitos momentos, Iscrates foi identificado como sofista pelo fato de
ter sido discpulo de Grgias e ter frequentado outros ambientes sofsticos.
Contudo, as notcias que temos sobre isto vm de uma tradio posterior ao
contexto grego clssico, presente no perodo romano e mais de trs sculos depois
da existncia dos autores em questo, o que torna a fonte pouco confivel. 18
Alm
disso, temos indicaes tambm que Iscrates foi fortemente influenciado por
crculo socrtico19
. Revela-se assim a pouca segurana que temos para classificar
Iscrates como um sofista a partir da vinculao ou filiao aos grandes sofistas
da gerao anterior.
Podemos discutir sobre as vantagens e desvantagens de classificar Iscrates
como sofista ou filsofo, e isto depende obviamente dos sentidos que dermos a
essas palavras. Classific-lo como sofista, com uma conotao pejorativa, como
no sentido platnico, parece-nos desvantajoso se quisermos com isso
simplesmente dizer que a nica preocupao de Iscrates era enriquecer a partir
do ensino de estratgias de persuaso e controle do logos. Porm, pode ser
vantajoso se dermos um valor mais positivo ao termo e com isso quisermos
relacion-lo ao movimento sofstico e suas reflexes filosficas, pedaggicas,
ticas e polticas. Por sua vez, classific-lo como filsofo tem a vantagem de se
colocar o pensamento isocrtico entre os grandes pensadores gregos e dar uma
boa repercusso aos seus textos, e a nica desvantagem que conseguimos pensar
ao classificar Iscrates como filsofo poderia ser o risco de com isso identificar o
seu pensamento com a tradio metafsica da filosofia, da qual ele pretendia se
afastar. Mas percebemos, obviamente, que a filosofia no se resume a isso, ainda
mais nesse contexto grego onde a filosofia era entendida como um modo de vida,
um cuidado da alma ou exerccio espiritual.20
No nos parece muito produtivo
18
No apndice 1 do seu livro The rhetoric of identity in Isocrates text, power, pedagogy,
Yun Lee Too trata da relao entre Iscrates e Grgias. 19
O professor Marcos Sidnei Pagotto-Euzebio (FE- USP) em seu artigo Iscrates, Retor
Socrtico trata dessa influncia do socratismo na formulao da filosofia isocrtica. Na nota 1
desse artigo, ele cita autores da antiguidade que indicaram essa influncia. 20
Como notaram Hadot e Foucault em suas investigaes sobre a filosofia grega. Em
Hadot: A verdadeira filosofia , ento, na Antiguidade, exerccio espiritual. As teorias filosficas
so, ou postas explicitamente ao servio da prtica espiritual, como o caso do estoicismo e do
epicurismo, ou ento tomadas como objetos de exerccios espirituais, isto , uma prtica da vida
contemplativa que no ela mesma, ao final, outra coisa que um exerccio espiritual. No , pois,
possvel compreender as teorias filosficas da Antiguidade sem ter em conta esta perspectiva
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continuar nesse tipo de questionamento e tentar definir qual seria a verdadeira
classificao de Iscrates, filsofo ou sofista, talvez os seus textos e ideias estejam
para alm dessas denominaes. O que nos interessa aqui que ele produziu um
pensamento e uma prtica, denominada de filosofia por ele, que estava atrelada ao
contexto intelectual da poca e que teve bastante influncia na histria do
pensamento ocidental. Percebemos, enfim, que poderamos realizar escavaes
nos textos de Iscrates nesta arqueologia acerca da formao da identidade do
filsofo e suas interaes com a retrica.
A figura de Iscrates se fez importante nesta pesquisa tambm porque ele
viveu, como j foi destacado, em um momento marcante da cidade de Atenas,
frequentou e teve acesso, assim como Plato, aos importantes pensadores da
gerao anterior como Scrates e Grgias, participando ativamente da vida da
cidade, de seus momentos de crise e mudana. H muita discusso, como j
apontamos brevemente acima, sobre quem foi realmente o mestre de Iscrates e
esses debates ocorrem principalmente porque Iscrates, em nenhuma de suas
obras, trata do assunto, e porque tambm no sabemos muito bem como essa
questo de filiao acontecia nessa poca. O que importa que, tendo sido ou no
discpulo de Scrates ou Grgias, Iscrates no s teve acesso aos pensamentos e
prticas desses e outros autores, como tambm viveu a repercusso de tais
pensamentos no ambiente intelectual ateniense. Dizendo de outra forma, o que
interessa aqui que tanto Iscrates quanto Plato compartilharam de um mesmo
ambiente intelectual, social e poltico. E mais ainda, apesar de percebermos
diferenas entre as teorias desses pensadores, possvel visualizar uma importante
semelhana ou uma mesma motivao: a descrena frente ao modelo poltico
ateniense da poca e a necessidade de reformulaes, que tem como base
principal, uma mudana pedaggica ou educacional.
Apesar de ser pouco lembrado nas histrias da filosofia, quando lanamos
um olhar para as histrias da educao e da retrica, Iscrates passa a ganhar
concreta que lhes d sua verdadeira significao.. apud GALLO, S. e GENIS, A., Filosofia da
educao, exerccios espirituais e arte de existncia, 2015, p. 101.
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bastante destaque, sendo conhecido, inclusive como o Fdias da retrica.21
As
obras do autor foram bastante lidas durante toda a antiguidade e renascimento,
sendo destacadas por grandes nomes como Ccero, por exemplo. Porm, durante a
modernidade a presena do pensamento isocrtico no foi muito marcante,
principalmente porque nessa poca os interesses de Iscrates foram vistos como
sendo unicamente de ordem estilstica e no como uma teoria filosfica ou
pedaggica. Dizendo de outro modo, no pensamento isocrtico encontraramos
mais forma do que contedo, sendo ele mais retrico do que filsofo. E isto se
deve tambm desvalorizao da retrica ao longo da histria do pensamento,
principalmente na modernidade. Como recentemente houve um movimento de se
repensar a retrica e suas funes na sociedade22
, estando a linguagem e a
argumentao no centro temtico da filosofia contempornea, consequentemente
houve um aumento do interesse por Iscrates. Isso pode ser percebido no nmero
de livros, artigos e pesquisas sobre ele hoje em dia, com o objetivo de no s
recuperar23
a imagem desse pensador e o valor de seu pensamento para a histria
da filosofia e da pedagogia, como, tambm, us-lo como referncia para estimular
reflexes acerca das atuais discusses sobre a educao e os valores que a
sociedade quer transmitir a partir dela.
Um fato que ainda pode ser destacado para ressaltar a boa repercusso do
pensamento isocrtico na histria do pensamento a preservao de diversos
textos desse pensador, demonstrando o grande interesse que teve em vrios
momentos. Basicamente podemos dividir24
o corpus isocrtico em dois grupos:
so vinte e um discursos e nove cartas. Principalmente com relao aos discursos,
h vrios modos de agrup-los, seja cronologicamente ou tematicamente. Pelas
informaes que temos, Iscrates teria, em um primeiro momento, se dedicado
elaborao de discursos ou defesas para serem proferidos por outras pessoas, ou
21
Jaeger, p.1073. 22
Podemos citar as reflexes de Nietzsche em seus cursos sobre retrica, Roland Barthes,
Foucault, Perelman e Ricouer. 23
Podemos citar, por exemplo, o artigo Is our history of educational philosophy mostly
wrong? The case of Isocrates, onde James R. Muir trata do que ele entende como engano dos
pensadores e filsofos da educao (historiadores e classicistas) em relao influncia do
pensamento educacional de Iscrates na histria da educao. 24
Entre as pginas 13 e 18 de seu livro, Yun Lee Too apresenta diferentes organizaes que
corpus isocrtico recebeu ao longo da histria.
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24
seja, num primeiro momento Iscrates teria sido um loggrafo. Depois, Iscrates
deu incio a sua carreira de educador, abrindo a sua escola em 390 a.C e
elaborando discursos que serviram de modelo para os seus discpulos, no s
formalmente, mas sim tambm pelo carter deliberativo e o vis poltico de seus
textos. Sabe-se, a partir dos dados biogrficos fornecidos pelo prprio pensador,
que Iscrates no teve nenhum cargo pblico de general ou poltico, como tiveram
alguns dos chamados sofistas. Tradicionalmente se diz que o motivo disso seria
uma voz fraca (mikrophonia) ou timidez perante o pblico, citada pelo prprio em
alguns textos para justificar a sua ausncia nos servios pblicos, porm,
acreditamos que isso se deve a j aludida descrena que Iscrates sentia em
relao ao modelo poltico vigente.25
Essa postura de Iscrates lembra tambm a
postura socrtica com relao s questes polticas de sua poca e, mais uma vez,
seria possvel perceber a influncia da postura socrtica em Iscrates.
Entre os textos mais conhecidos est o Contra os sofistas, que datado entre
os primeiros discursos isocrticos, logo aps a abertura de sua escola, onde ele
critica a postura de alguns educadores e lana as bases de seu pensamento
pedaggico. J o Antdosis ou Troca de riquezas uma das ltimas obras de
Iscrates, escrito em uma idade j avanada e funcionando como uma prestao
de contas do pensador sociedade ateniense com relao aos anos dedicados ao
magistrio e formao dos jovens. O discurso considerado26
uma das primeiras
autobiografias (filosfica) da literatura ocidental e nele Iscrates transcreve partes
de seus principais textos, explicando o contexto e as motivaes para sua
elaborao. Esse ltimo discurso tem como ponto de partida uma acusao fictcia
de que a educao isocrtica corromperia a juventude, tal qual o processo de
Scrates, mas o processo real foi motivado pela reivindicao de um cidado de
que Iscrates, e no ele, deveria ficar responsvel pelo pagamento do imposto
para despesas na manuteno de barcos de guerra, uma vez que o educador tinha
uma renda maior. Concretamente, Iscrates no Antdosis queria esclarecer que sua
25
Como diz Yun Lee Too: "Ele (Iscrates) constri sua identidade contra o destacado
contexto da agressividade verbal e poltica dos novos polticos do sculo V a.C. (He
constructs his identity against the alleged background of the verbal and political aggressiveness of
the new politicians of the fifth century. p.112) Tambm possvel perceber nos textos
isocrticos uma agorafobia comum na poca. 26
Jaeger, Paideia, p.1179.
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25
riqueza foi conquistada de modo ntegro e honesto, devido a sua dedicao
filosofia, percebendo por trs desse processo uma crtica velada sua educao.
H ainda textos que expressam a perspectiva isocrtica sobre as questes politicas
da poca, dois endereados aos atenienses, o Sobre a Paz e o Panatenaico, e o
Panegrico onde Iscrates escreve para todos os gregos. Temos ainda os textos
que podem ser classificados como elogios ou encmios e que tratam de figuras
mticas, Busiris e Elogio de Helena, e os textos conhecidos como Cipriotas,
dirigidos aos governantes do Chipre, so eles: A Ncocles Ncocles e Evgoras,
onde so expostas tanto reflexes sobre as organizaes polticas quanto
conselhos aos governantes, semelhante ao estilo do Prncipe de Maquiavel. H
tambm as nove cartas que parecem endereadas a importantes figuras polticas
(reis, prncipes, legisladores e chefes militares) da poca, onde num geral
encontramos aconselhamentos polticos, elogios educao filosfica e anlises
da situao poltica grega. Por exemplo, temos a carta I dirigida a Dionsio, o
ancio, tirano de Siracusa, as cartas II e III, por sua vez, foram endereadas a
Felipe, rei da Macednia e a carta V foi escrita para o ainda jovem Alexandre, o
grande.27
Analisando, ainda, os textos de Iscrates, vemo-nos inseridos tanto na
tradio de elaborao dos discursos retricos quanto na tradio epistolar, dois
gneros discursivos ainda em formao naquele contexto. Apesar de no estarem
presentes entre os tradicionais gneros do pensamento filosfico, os discursos ou
oraes retricas foram importantes no pensamento grego, no s no campo
jurdico, mas tambm na poltica e em outros ambientes sociais. Gnero
posteriormente solidificado por conta dos grandes oradores ticos, entre eles
27
Personagens que tambm tinham envolvimento com Plato e Aristteles.
Especificamente em relao carta ao jovem Alexandre, provavelmente, como indica Larue Van
Hook (ISOCRATES, V. III, Loeb, 1945) na introduo a essa carta, a motivao de Iscrates para
escrever essa carta teria sido a escolha de Aristteles como tutor dessa importante figura poltica,
apresentando nela tanto uma crtica erstica quanto um elogio de sua prpria educao. Na
introduo do Protrptico de Aristteles, Carlos Rodrgues (Madrid: Abada Editores, 2006), cita
que essa obra aristotlica foi dirigida corte do Chipre, que por sua vez, tinha grande
envolvimento com Iscrates, criando assim um dilogo entre as obras de Aristteles e Iscrates. A
partir disso, poderamos afirmar que esse campo agonstico da educao filosfica visvel
tambm na produo epistolar da poca, onde as cartas se tornaram uma forma literria de
divulgao e expanso das ideias dos educadores. Sobre o gnero epistolar na cultura grega e seu
envolvimento com a filosofia, indicamos a leitura da introduo de Claudia Mrsico (Buenos
Aires: Miluno, 2012) s cartas de Scrates e dos socrticos.
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Demstenes e Licurgo. O modus operandi dos discursos retricos teve muita
repercusso na cultura grega, por conta principalmente dos chamados sofistas, e
acabou influenciando outros gneros literrios como a comdia e tragdia, sendo
tambm uma referncia para os dilogos platnicos.28
Do outro lado, temos as
epstolas que, por sua vez, so tradicionalmente tidas como um gnero da escrita
filosfica, aparecendo bastante ao longo da histria da filosofia29
.
Voltando um pouco na discusso sobre a classificao de Iscrates como
sofista, o fato de seu corpus ser formado por discursos e cartas pode ter sido
tambm um fator que contribuiu para no reconhec-lo como filsofo. O que seria
um equvoco, uma vez que nesse contexto, com a filosofia ainda formando suas
identidades, no h um gnero exclusivo como hoje ainda no h para o
pensamento filosfico. Muito se discute sobre as caractersticas literrias dos
dilogos platnicos, que so uma miscelnea de diversos gneros (tragdia,
comdia, pica), e sua formao como gnero propcio reflexo filosfica, ou
seja, podemos afirmar que a construo identitria da filosofia platnica est
diretamente associada ao gnero literrio escolhido para expor suas ideias. Como
veremos, em Iscrates teremos uma outra imagem da filosofia e,
consequentemente, uma outra expresso literria ser utilizada, mais coerente com
a natureza da atividade filosfica pensada por esse autor. Acreditamos, ento, que
no haja na filosofia uma aleatoriedade em relao forma e ao contedo, entre a
essncia de uma ideia filosfica e a sua expresso literria, h sim uma vinculao
direta ou uma preocupao retrica na apresentao dos contedos filosficos. Os
diferentes cursos da construo das imagens da filosofia passam necessariamente
por uma definio da identidade do texto filosfico. Cada filsofo tem uma
imagem especfica do que a filosofia, produzindo uma escrita filosfica tambm
distinta, exigindo do leitor diferentes ferramentas hermenuticas para se
aproximar do texto e analisar as ideias. Ler um dilogo de Plato e um discurso de
28
Como no Menxeno, onde se dialoga sobre as oraes fnebres, alm do Fedro e do
Banquete, s para citar alguns exemplos. 29
As cartas so fontes importantes para a histria da filosofia e tambm uma forma de
expresso de ideias filosficas, normalmente associada a uma escrita mais pessoalizada ou
biogrfica, de tom mais informal, onde as dvidas so esclarecidas e debates realizados. Na
antiguidade, podemos citar as cartas de Plato e dos socrticos menores, passando tambm por
Agostinho e, na modernidade, Descartes.
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Iscrates exigem cuidados especficos, pois em seus textos so projetas imagens
distintas do pensar e do agir filosfico.30
J sobre o possvel ambiente de confronto31
entre os ensinamentos de Plato
e de Iscrates, esse agon filosfico (educacional) nos levou a refletir sobre as
relaes, agonsticas talvez, entre a retrica e a filosofia. Encontramos em vrias
fontes relatos do antagonismo entre Plato e Iscrates, apesar de encontrarmos
poucas passagens nos textos desses pensadores onde esse tema seja tratado. Em
Plato, h no Fedro uma rpida meno ao nome de Iscrates e no final do
Eutidemo surge um personagem misterioso que muitas vezes foi identificado
como sendo Iscrates. As passagens so as seguintes:
Sobre estes tambm eu ia agora mesmo falar. Pois estes so, Crton, aqueles que
Prdico chamava de fronteira entre um filsofo e um poltico, mas que creem ser
os mais sbios de todos os homens e, alm de ser, que tambm so assim
considerados junto maioria. De modo que, a fazer-lhe obstculos para gozar de
boa reputao junto a todos, no h outros seno os homens que se ocupam de
filosofia.32
...em virtude dos seus dotes naturais, ser capaz de vir a fazer melhor do que
discursos maneira de Lsias. Por outro lado, o seu carter muito mais nobre. Por
isso, no ser de admirar que Iscrates, medida que se tornar maduro, venha a
distingui-se na arte da eloquncia em que agora se exercita, de tal maneira que
todos os que se dedicam retrica paream aprendizes ao p dele. Mas pode
acontecer que no se sinta satisfeito com isso e venha dedicar-se, por inspirao
divina, assuntos mais elevados, pois o seu esprito notavelmente propenso
filosofia! Em nome dos deuses que regem este lugar, ser esta mensagem que
transmitirei ao bem amado Iscrates, assim como tu dirs a Lsias o que h pouco
te expus!33
No primeiro fragmento, Plato apresenta uma personagem que, aps assistir
aos debates entre Scrates e os irmos ersticos, faz uma crtica postura deles e
da imagem de filosofia promovida nesses debates ersticos, preocupados apenas
30
Sobre anlise da literatua filosfica, ver o livro Elementos para a leitura dos textos
filosficos de Frdric Cossutta e Lembrar, escrever, esquecer de Jeanne Marie Gagnebin,
especialmente o ltimo captulo As formas literrias da filosofia. 31
Algumas datas da histria grega podem ser teis para melhor compreender essa relao
entre os atenienses Plato (427-347) e Iscrates (436-338): ambos pensadores so de uma gerao
posterior ao governo de Pricles (que governou Atenas entre os anos de 449 e 429), viveram o
governo dos Trinta Tiranos (404) e a restaurao de democracia em Atenas, que condenou
Scrates no ano de 399. As suas escolas foram fundadas em perodos prximos, sendo verossmil
o testemunho que Plato teria idealizado sua Academia (fundada em 387) como uma resposta
fundao da escola isocrtica, que segundo a tradio, teria sido aberta entre os anos de 392 e 390. 32
Eutidemo, 305d. 33
Fedro, 279 a-b
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com as armadilhas discursivas, no produzindo nada de til e prtico. Esse
personagem mesmo annimo comumente identificado como sendo Iscrates,
pois, como veremos, desse mesmo modo que ele encaminhar a crtica erstica
em seus discursos, identificada, tradicionalmente, como uma tcnica promovida
por alguns educadores de influncia socrtica, como Antstenes, por exemplo. Na
passagem citada, Plato apresenta a resposta de Scrates, afirmando o carter
fronteirio e enigmtico desse personagem, ficando entre o territrio da filosofia e
do poltico, numa posio de marginalidade e no pertencimento, no sendo
propriamente nem filsofo e nem poltico, mas pretendendo ser considerado como
tal. E foi desse modo que muitas vezes Iscrates foi analisado, um autor de difcil
classificao, estranho, um intermedirio entre o filsofo e o orador (poltico).
Para Plato, essa uma estratgia desse personagem, que manipula sua identidade
de acordo com as situaes, buscando fama ou reconhecimento pblico a qualquer
custo, sempre. O Eutidemo trata diretamente do ambiente agonstico da educao
filosfica e a reputao dessa frente aos cidados comuns, motes frequentes nos
textos isocrticos e que revelam o ambiente de competio ao ttulo de sbio e
verdadeiro (autntico) educador da cidade de Atenas.
J na segunda passagem, encontramos Scrates, ao final do dilogo com
Fedro acerca dos discursos de Lsias que proporcionaram reflexes sobre a
retrica, transmitindo um recado ao ento jovem e promissor Iscrates, de acordo
com a data dramtica do dilogo. Nesse aparente elogio irnico ao carter nobre
de Iscrates, Plato pretendia revelar que a retrica inferior em relao s
investigaes filosficas, afirmando que Iscrates, ao amadurecer, abandonar as
preocupaes com a eloquncia e tratar de assuntos mais srios ou filosficos.
Aqui se acentua a topografia dessa batalha territorial da filosofia e sua fronteira
com a retrica. Iscrates faz algo parecido34
com isso quando diz que as
investigaes ersticas, pensando provavelmente em Plato e em outros socrticos,
so produtivas na juventude, servindo como preparao para uma filosofia prtica
ou deliberativa. Mas que se dedicar a essas questes ao longo de toda a vida
algo intil e pouco digno. H, no trecho acima, uma meno tambm ao dote
34
Antdosis, 266-270.
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natural (physis) de Iscrates, que um conceito importante, como veremos mais
frente, na pedagogia desse autor, unido a outros conceitos como educao
(paideia) e prtica (empeiria).35
Esses seriam alguns indcios que mostram o
quanto Plato queria polemizar com Iscrates, com suas ideias e com a imagem de
filosofia construda por esse autor. Por fim, percebemos que ambos os textos de
Plato revelam o seu esforo de demarcar o territrio da filosofia, suas fronteiras e
seus habitantes, sendo Iscrates um estrangeiro, um outro, que por vezes tenta se
passar por filsofo.
Essa possvel rivalidade entre Iscrates e Plato nos estimulou a investigar
os textos isocrticos para melhor entendermos tal contexto, compreendendo que
ao nos aproximarmos dos textos isocrticos poderamos reconstituir esse ambiente
e perceber como a filosofia e a educao retrica se relacionavam, apesar da muita
desvalorizao dada ao pensamento de Iscrates quando comparado ao
pensamento de Plato. Podemos perceber isso, por exemplo, na seguinte
passagem de um clssico livro sobre educao na antiguidade:
Tratar de Iscrates depois de se haver tratado de Plato implica, necessariamente,
em deix-lo em m situao e em sacrific-lo, at certo ponto, a seu brilhante rival.
Qualquer que seja ponto de vista em que nos situemos: poder de seduo, fulgor da
personalidade, riqueza do temperamento, profundidade de pensamento, e, mesmo,
senso artstico, Iscrates no poderia ser lanado ao mesmo plano de Plato; sua
obra parece ch e montona, sua influncia superficial e perniciosa.. 36
Compreendemos a perspectiva de Marrou, o que ele falou com relao a
Iscrates poderia ser ampliado para qualquer autor da antiguidade. Plato, sem
dvida, o grande escritor e pensador da antiguidade e qualquer um se tornaria
mera nota de rodap dentro dos textos platnicos, parafraseando a clebre
sentena de Alfred Whitehead. Analisando as obras de Iscrates, no faremos
qualquer juzo de valor com relao ao seu pensamento, a partir dele mesmo ou
comparando com outros pensadores. Entendemos que o mais importante que as
obras desse autor nos do acesso etapa originria de formao do pensamento
filosfico. Sendo assim, desconsiderar suas obras nesta investigao sobre a
identidade da filosofia seria um grande equvoco. No queremos com isso exaltar
35
No artigo Isocrates reaction to the Phaedrus (in: Mnemosyne 6, 1953: 39-45), G.J. De
Vries aborda essa relao entre os textos de Plato e Iscrates. 36
Henri I. Marrou, Histria da Educao na Antiguidade.
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a genialidade de Iscrates e sua grandeza em relao a outros pensadores,
defendemos sim que os textos desse autor so fundamentais, sendo uma leitura
obrigatria, para a anlise da formao identitria da filosofia na cultura grega.
Ainda sobre o agon entre Iscrates e Plato, h comentadores que tentam,
inclusive, criar uma sequncia entre os textos de ambos os pensadores a fim de
perceber um dilogo textual entre eles, num jogo de rplicas e trplicas. o caso,
por exemplo, de Juan Signes que em sua introduo aos discursos de Iscrates,
afirma o seguinte:
"No entanto, uma comparao entre as obras dos dois autores nos permite
reconstruir o debate entre ambos. Provou-se que em certos dilogos platnicos
encontramos rplicas de argumentos desenvolvidos por Iscrates em suas obras.
Assim, o Timeu de Plato responde ao Busiris isocrtico, o Menexno ao
Panegrico ou o Teeteto aos discursos cipriotas, para no mencionar apenas alguns
casos."37
Apesar de ser interessante e estimulante essa tentativa de vinculao ou de
comunicao entre os textos de Iscrates e Plato problemtica, artificial em
alguns casos, e de difcil realizao, principalmente por questes cronolgicas e
pelo fato de raras vezes os seus nomes e ideias serem citados de modo explcito.
Contudo, por participarem de um mesmo contexto social, poltico e histrico,
muitos dos temas tratados por esses pensadores eram os temas da poca, que
demandavam reflexes. Assim, eles compartilhavam essas temticas38
e, por
apresentarem perspectivas distintas, talvez possamos pensar nessa lgica de
rplicas, sendo at mesmo um recurso produtivo na interpretao desses
pensadores. Ainda mais se pensarmos no carter agonistico ou polemista da
cultura grega, amantes dos embates, presentes em vrios ambientes (artstico,
poltico, esportivo, jurdico) e que marcou o desenvolvimento da filosofia,
destacando uma das suas principais caractersticas: a divergncia argumentativa, o
conflito de ideias e o exerccio de se pensar sobre um mesmo tpico a partir de
37
Pese a todo, una comparacin de las obras de los dos autores permite reconstruir el
debate entre ambos. Se ha podido comprobar as cmo en determinados dilogos platnicos se da
rplica a argumentos avanzados por Iscrates en sus obras. As el Timeo platnico responde al
Busiris isocrtico, el Menxeno al Panegrico o el Teeteto a los discursos chipriotas, por no citar
ms que algunos casos. (Biblioteca Bsica Gredos, introduo p. XXVI) 38
Questes como: a virtude poder ser ensinada, a retrica ou no uma tcnica, a relao
entre doxa e episteme, se a democracia a melhor forma de organizao poltica, entre outros
tpicos.
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diferentes perspectivas. Algo importante hoje em dia, basta perceber que muitas
das habilidades e competncias previstas especificamente para a filosofia, no
Ensino Mdio, esto relacionadas ao saber lidar com a diferena, a alteridade e a
oposio de ideias, to importantes para o exerccio da cidadania nas sociedades
democrticas.39
Contudo, optamos por no reconstituir esse agon entre Iscrates e
Plato a partir de uma oposio direta de seus textos, preferimos centrar nossas
anlises nos textos de Iscrates para termos acesso a esse conflituoso ambiente
educativo e filosfico. Aceitamos que tenha ocorrido um conflito entre Plato e
Iscrates, e entre outros pensadores da poca, porm acreditamos no ser correto
afirmar que esse agon represente um embate maior entre filosofia e retrica.
Vemos sim dois movimentos distintos, por vezes opostos, de construo da
identidade da filosofia. Entendemos que entre Plato e Iscrates haja,
principalmente, um conflito sobre a natureza da filosofia e sua educao.
Contra os sofistas: o manifesto de Iscrates pela filosofia
Nesta investigao sobre o pensamento isocrtico, optamos por utilizar o
discurso Contra os sofistas como fio condutor ou eixo norteador. Os captulos que
se seguem e as discusses que faremos tero o citado texto como guia e ser a
partir dos temas apresentados nele que iremos nos debruar em outros textos e
autores. Procurando, em alguns momentos, conexes agonsticas com trechos de
dilogos platnicos, assim como de outros autores pertencentes ao mesmo
contexto cultural de Iscrates. Optamos por assim faz-lo porque nesse discurso
que Iscrates apresenta as particularidades da sua educao filosfica, lanando as
bases e os fundamentos de sua filosofia que sero desenvolvidos ou revisados ao
longo dos outros textos. Com isso, no pretendemos dar uma uniformidade ou
unicidade a todos os textos de Iscrates e afirmar que h um mesmo modo de
pensar em todo o seu corpus. Tema bastante controverso, no s em Iscrates
como tambm em Plato e em outros importantes pensadores da histria da
39
Por isso, constantemente so indicadas atividades didticas, como por exemplo jri
simulado ou roda de controvrsias, para aulas de filosofia, pois essas estimulam a capacidade
argumentativa dos alunos, exercitando a capacidade de ouvir e discordar, trabalhando com
consensos e dissensos.
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filosofia. Pelo contrrio, apresentaremos uma perspectiva do pensamento
isocrtico que est mais prxima de uma filosofia da multiplicidade, diferena ou
diversidade, do que uma perspectiva sistmica ou unitarista. Por isso mesmo,
optamos por trabalhar com o conceito de imagem para melhor express-lo,
possibilitando assim uma reflexo a partir de diferentes perspectivas na
construo identitria da filosofia. Como veremos, em Iscrates encontramos
diferentes imagens para a filosofia, com algumas constncias, mas sem a
pretenso de formular uma perspectiva sistmica.
Seguimos, alis, uma indicao dada pelo prprio Iscrates na j citada
defesa fictcia de sua filosofia, o Antdosis. Um dos mtodos utilizados40
por
Iscrates nesse discurso para se defender da acusao de que sua filosofia
corromperia a juventude, foi a anlise de trechos de seus discursos passados, a fim
de destacar a real inteno deles, vendo as conexes entre seus temas, com a ideia
de que essa anlise apresentaria a coerncia de sua maneira de pensar e agir. Uma
vez que esses discursos so as verdadeiras imagens do seu modo de ser e de sua
educao. Alm do Contra os sofistas, Iscrates cita e analisa passagens do
Panegrico, Sobre a paz e A Nicocles. Esses ltimos tm em comum o mote
poltico, a deliberao sobre a paz e a guerra, ou, a exposio de ideias de como
um poltico deve governar. Utilizaremos esse mesmo mtodo apresentado por
Iscrates e analisaremos fragmentos dos seus textos, destacando suas as
articulaes e conexes, a fim de tentar apresentar a imagem ou imagens da
filosofia por trs deles.
O Contra os Sofistas uma das primeiras obras escritas pelo pensador,
segundo afirma o prprio Iscrates no Antdosis41
e marca o incio de sua carreira
como educador. Por essa razo, podemos dizer que o texto exerce o papel de
projeto poltico-pedaggico da sua escola, apesar ser breve e estar incompleto
para alguns.42
Nele, Iscrates no s lana as bases de seu pensamento
40
54. 41
195. 42
Na pgina 163 de seu livro sobre o pensamento de Iscrates, Yun Lee trata sobre a
possvel interrupo (ou incompletude) no Contra os sofistas e lista comentadores e interpretaes
sobre o assunto. Basicamente, h quem defenda que o texto teria como complemento um manual
retrico perdido - produzido pelo prprio pensador, e outros que defendem a existncia de uma
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pedaggico, delimitando a sua compreenso de filosofia, como tambm pretende
destacar a diferena entre sua prtica educacional e a realizada por outros
representantes da paideia grega. Por isso, o Contra os sofistas uma importante
fonte para nossa pesquisa, uma vez que, ao fazer essa distino entre vrias
prticas educacionais, Iscrates nos fornece algumas caracterizaes dos
diferentes tipos de sofistas ou educadores. E qual o valor que Iscrates d a esse
termo (sofista)? Como veremos, no parece que tenha aqui um sentido pejorativo,
mesmo ele sendo alvo de crticas. O sofista no tratado por Iscrates como o
inimigo do filsofo (ou o seu simulacro), ou melhor, diferentemente do projeto
platnico que pretendia demarcar a diferena entre o sofista e o filsofo, Iscrates
parece no se preocupar com essa distino, e a palavra sofista, ao longo do texto,
est relacionada com a atividade de educar, s vezes se confundindo com a
filosofia.
Esse texto se enquadra dentro do gnero exortativo ou protrptico43
, comum
na poca entre aqueles que se ocupavam da educao dos jovens, atuando como
um manifesto contra determinados educadores e uma tentativa de se afastar da
doutrina no-escrita, transmitida exclusivamente de forma oral, projetada tambm para o
pensamento platnico. Too, por sua vez, entende essa interrupo como um silncio pensado, ou
seja, como um recurso retrico. Tendemos a concordar com essa ltima interpretao, mas no
entendemos ser crucial determinar se o texto est completo ou no, ainda mais que no temos
acesso s fontes necessrias para ter certeza sobre isso. Acreditamos ser importante tentar extrair
do material que temos algumas indicaes sobre a compreenso de Iscrates acerca da educao
filosfica, articulando com outros textos do pensador a fim de encontrar uma unidade, um
pensamento de Iscrates. 43
O outro exemplo que temos o de Alcdamas (420-360 a.C.), igualmente classificado
como sofista. Basicamente, o que ele faz nesse texto algo que tambm encontramos no texto de
Iscrates, uma crtica queles que se dedicam a escrever discursos escritos e resumem a retrica a
um conjunto de tcnicas que podem ser memorizadas e aplicadas por qualquer pessoa.
Analisaremos algumas partes desse texto de Alcdamas no captulo 3. O Protrptico de Aristteles,
assim como alguns dilogos de Plato, podem ser igualmente classificados como textos
exortativos, onde pretende-se fazer um elogio a determinada prtica educativa, revelando, mais
uma vez, o ambiente agonstico da educao grega. Para mais informaes sobre o gnero
protrptico, ver livro Exortations to philosophy The Protreptics of Plato, Isocrates, and Aristotle
de James Henderson Collins (New York: Oxford University Press, 2015.). Na introduo, o autor
afirma o seguinte: "Defendo que os filsofos do sculo IV a.C utilizaram discurso protrptico para
comercializar prticas filosficas e para definir e legitimar uma nova instituio cultural: a
escola de ensino superior (o primeiro na histria ocidental) [...] Eles pretendiam introduzir e
promover as suas novas escolas e definir a nova disciplina profissionalizada da "filosofia". ( I argue that the fourth-century philosophers used protreptic discourse to market philosophical
practices and to define and legitimize a new cultural institution: the school of higher learning (the
first in Western history) [...] They aimed to introduce and promote their new schools and define
the new professionalized discipline of philosophy. p.1)
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imagem negativa que esses personagens tinham nesse perodo. Mais do que isso,
esse gnero literrio tinha como principal objetivo a converso, ou seja,
influenciar o leitor a aceitar e seguir o modelo educativo proposto. A invaso
desses personagens, em sua grande maioria estrangeiros, estava associada,
segundo uma perspectiva conservadora, decadncia da antiga moral e um
desvirtuamento da juventude ateniense e, como consequncia, levando runa a
cidade de Atenas. Em diversas de suas comdias, Aristfanes narra situaes onde
so destacados os perigos que esses ensinamentos divulgados pelos novos sbios
podem gerar. Isso parecia ser senso comum, e todos os educadores desse perodo
queriam se afastar desses grupos de professores, proliferando assim diversos
textos de ataque contra os chamados sofistas.
Encontramos tambm em diversos dilogos platnicos cenas que nos
apresentam o ambiente de confronto (agon) em relao educao dos jovens,
onde professores ou sbios querem revelar seus conhecimentos, divulgar sua
tcnica e angariar discpulos. Podemos citar o cenrio apresentado por Plato no
Eutidemo, Protgoras e Grgias, onde h em comum a situao de encontrarmos
sofistas expondo suas habilidades perante jovens e Scrates dialogando com eles a
fim de revelar a fraqueza da sabedoria deles. A genialidade de Plato e sua
habilidade literria revelam, com riqueza de detalhes, a admirao dos jovens
frente a esses sbios e a postura crtica de Scrates.
O primeiro pargrafo do Contra os sofistas ilustra bem o carter agressivo
desse texto de Iscrates e revela seu principal objetivo: afastar a sua escola e
concepo de educao da imagem negativa j existente da educao sofstica. Ou
melhor, Iscrates pretendia, com esse e outros textos, criar uma imagem positiva
do estudo sobre o logos, o que ele chama de filosofia. Parece que havia na poca
uma tendncia a classificar como sofista todo e qualquer professor ou
representante do novo ideal de educao que pretendia transformar os jovens em
cidados virtuosos. E o que Plato e Iscrates fizeram em seus textos foi uma
distino entre as diversas posturas e perspectivas educacionais, a fim de revelar,
aos cidados comuns, que h professores dignos de confiana e que no querem
simplesmente enriquecer ou ter fama por suas habilidades, nem tampouco
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transformar os jovens em cidados injustos. Por isso, acreditamos que os
discursos de Iscrates e os dilogos platnicos (principalmente os da chamada
fase socrtica) tinham como pblico-alvo os cidados comuns e pretendiam criar
uma imagem positiva do filsofo e revelar sua importncia para a polis,
desmascarando os pssimos educadores responsveis pela construo dessa
imagem negativa.
Por tudo que foi dito, assim como poderamos classificar vrios dos
dilogos platnicos como manifestos pela filosofia44
, acreditamos que o Contra os
sofistas de Iscrates tambm pode ser lido como um manifesto pela filosofia. do
seguinte modo que Iscrates abre seu manifesto:
Se todos os que pretendem educar quisessem falar a verdade e no fizessem
grandes promessas, as quais no conseguem cumprir, no seriam mal falados pelos
homens comuns. Porm, agora, os que tm a grande audcia de fazer impensadas
promessas, passam a impresso que os indolentes deliberam melhor do que aqueles
que se dedicam filosofia.45
No pargrafo citado acima, Iscrates nos apresenta o diagnstico da situao
da filosofia no contexto de seu pensamento e o que gerou essa situao, dando
incio parte negativa ou crtica de seu texto. O diagnstico o seguinte: aqueles
que pretendem educar esto sendo difamados pelos cidados comuns e o mais
preocupante que esses consideram que as melhores deliberaes no so feitas
pelos que se dedicam filosofia, mas sim pelos que so indolentes. J aqui se
destaca algo que expomos anteriormente, a imagem negativa da educao
desenvolvida pelos novos sbios, os filsofos e os sofistas.46
Para Iscrates, isso
se deve, principalmente, a uma falta de franqueza, poderamos dizer falta de
parrhesia, dos educadores ao venderem uma moeda falsa, quando prometem
44
Como faz Charles Kahn, em relao ao Grgias, no seu livro Plato and the Socratic
Dialogue The Philosophical Use of a Lliterary Form. 45
Como no encontramos nenhuma traduo publicada em portugus desse texto de
Iscrates, apresentaremos uma traduo prpria a partir do cotejamento das tradues em
espanhol, ingls, portugus (dissertao de Ticiano Curvelo Estrela de Lacerda, apresentada ao
departamento de letras clssicas e vernculas da USP em 2011) e italiano, assim como da anlise
do prprio grego. A ntegra da traduo encontra-se no Apndice I desta tese. Todas as outras
citaes que faremos dos textos de Iscrates sero retiradas da edio, em ingls, da Loeb de suas
obras completas. 46
Em outros momentos do corpus isocrticos, encontramos esta imagem negativa da
filosofia: Ncocles, 1; Busiris, 49; Antdosis, 170, 175-176, 195, 209, 243, 312; Contra
os sofistas, 1.
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ensinar algo que no conseguem cumprir. O que est em jogo aqui no pouca
coisa, mas sim a virtude e a felicidade, o que todos os homens almejam. O fato de
os cidados comuns terem percebido que vrios dos novos sbios no
conseguiram realizar aquilo que prometeram, transformar qualquer jovem em um
homem virtuoso e feliz, gerou um movimento de ojeriza a esses sbios.
Feito isso, Iscrates realiza um mapeamento das personagens que
frequentavam os ambientes educacionais (os representantes da paideia) e que so
os responsveis por esse descrdito da filosofia, fornecendo assim um rico terreno
para a arqueologia das identidades do filsofo e do sofista. E mais, a partir das
crticas que sero apresentadas, conseguiremos identificar as caractersticas do
pensamento isocrtico para aos poucos reconstituirmos a imagem da filosofia em
Iscrates. Podemos resumir em trs os personagens apresentados por Iscrates,
que nos do, consequentemente, trs facetas do sofista: 1) os ersticos ou aqueles
que se dedicam s disputas verbais (eridas); 2) os professores de discursos
polticos (politikous logous); e 3) os que escreveram as chamadas Artes ou
manuais retricos (technas grapsai).
Realizados estes comentrios, podemos passar para a anlise dos temas
abordados por Iscrates no Contra os sofistas e desenvolvidos em outras obras do
seu corpus.
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