cartemas de aloisio magalhães
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Um ponto de encontro entre a arte e o designTRANSCRIPT
JOÃO CARLOS DE MORAIS ALT
CARTEMAS DE ALOÍSIO MAGALHÃES:UM PONTO DE ENCONTRO ENTRE A ARTE E O DESIGN
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Arte do Institutode Arte e Comunicação Social, UniversidadeFederal Fluminense, para obtenção do graude Mestre em Ciência da Arte. Área deconcentração: Estudos Poéticos.
Niterói2005
Orientador: Prof. Dr. JOSÉ MAURÍCIO SALDANHA ALVAREZ
Co-orientador: Prof. Dr. ANTONIO CARLOS AMANCIO DA SILVA
Ao Luís Sérgio de Oliveira, vai meu primeiro agradecimento; seu incentivo,nos primórdios deste projeto, foi imprescindível para que eu transformasseem ação o que antes era um vago propósito.
Agradeço ao José Maurício Saldanha Alvarez, meu orientador, pelopaciente estímulo e por todos os conhecimentos transmitidos, bem como aosprofessores Wallace de Deus Barbosa e Luiz Antonio Luzio Coelho, pelasvaliosas críticas e sugestões apresentadas no exame de qualificação.
Agradeço muito especialmente ao Tunico Amancio, amigo e co-orientador,por colocar sua competência, entusiasmo e bom-humor a serviço destetrabalho.
Aos amigos Zé Luiz Sanz e Cristina Cavallo, minha gratidão pelo apoiogeneroso e a infalível disponibilidade.
Finalmente, sou grato à Denise -minha mulher- e aos meus filhos Ana,Nina e Rafael, por compreenderem e apoiarem um projeto pessoal cujarealização exigiu tanto tempo e devotamento. A eles dedico esta dissertação.
AGRADECIMENTOS
LISTA DE FIGURAS 5
RESUMO 9
ABSTRACT 10
1. INTRODUÇÃO 11
2. ARTE E DESIGN: A FRÁGIL (MAS PERSISTENTE) DISTINÇÃO 18
3. ALOÍSIO MAGALHÃES 34
3.1. ALOÍSIO, POLÍTICO 39
3.2. ALOÍSIO, PINTOR 47
3.2.1. O desencanto com a pintura 58
3.3. ALOÍSIO, DESIGNER 60
4. O CARTEMA 73
4.1. A GÊNESE 73
4.1.1. Expressão e risco: os “anos de chumbo” 77
4.2. ANALOGIAS VISUAIS E INFLUÊNCIAS 82
4.2.1. Livres associações à margem da arte 94
4.3. PRINCÍPIOS ESTRUTURAIS E CONFIGURAÇÃO 99
4.4. CARTEMAS DE ALOÍSIO MAGALHÃES - REPRODUÇÕES 111
5. CONCLUSÃO 113
REFERÊNCIAS 121
ANEXO 125
SUMÁRIO
5
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 .............................................................................................................................. p. 12[1.3] Rodovia Castelo Branco, São Paulo, cartema da Série Brasileira, de Aloísio Magalhães (FUNARTE, 1982); [1.1] e [1.2]Imagens produzidas pelo autor, a partir de fotografia do cartema.
Figura 2 ............................................................................................................................... p. 14Calendário UFF 2000, impresso, 14 páginas, formato 42 x 34 cm, relização da Universidade Federal Fluminense. Fotografiaproduzida pelo autor.
Figura 3 ............................................................................................................................... p. 19[3.1] As sabinas que interrompem o combate entre romanos e sabinos, de Jacques-Louis David (ARGAN, 1992, p. 21); [3.2] ¡Note escaparás!, de Francisco Goya (idem, p. 43); O ancião dos dias, de William Blake (GOMBRICH, 1977, p. 387).
Figura 4 ............................................................................................................................... p. 22[4.1] Página do Evangelho de Lindsfarne, autor não identificado (GOMBRICH, 1977, p. 116); [4.2] Detalhe de página de livroholandês do século XIV (RIBEIRO, 1987, p. 44).
Figura 5 ................................................................................................................................ p. 23[5.1] Página do livro Poems by the Way, de William Morris (HOLLIS, 2001, p. 20); [5.2] Colófão da Kelmscott Press, de WilliamMorris (<http://www.lib.umich.edu/spec-coll/morris/> ; acesso em 06.08.2003).
Figura 6 ................................................................................................................................ p. 24[6.1] Jane Avril, de Henri Toulouse-Lautrec (MULLER, 1966, vol. 68, p. 18); [6.2] France-Champagne, de Pierre Bonnard(SELZ, 1971, prancha 4).
Figura 7 ................................................................................................................................ p. 24Loïe Fuller, de Jules Chéret (SELZ, 1971, prancha 5).
Figura 8 ................................................................................................................................ p. 26[8.1] Medéia, de Alphonse Mucha (ARGAN, 1992, p. 205); [8.2] I Exposição da Secessão Vienense, de Gustav Klimt (idem, p.173); [8.3] Tropon, de Henri Van de Velde (id., p. 184).
Figura 9 ................................................................................................................................ p. 27[9.1] Papier Collé, de Pablo Picasso (MULLER, 1966, vol. 70, p. 9); [9.2] Les formes musicales, de Georges Braque (<http://k_kenar.webpark.pl/galeria.htm>; acesso em 07.08.2003); [9.3] Syphon, verre et journal, de Juan Gris (<http://www.postershop.com/Gris-Juan/>; acesso em 07.08.2003).
Figura 10 .............................................................................................................................. p. 27[10.1] Small Dada, de Kurt Schwitters e Theo van Doesburg (<http://personal.cityu.edu.hk/~entim/Professional/Courses/EN3524/Modernism/Small_dada_1922.jpg>; acesso em 12.08.2004); [10.2] Das Kotsbild, de Kurt Schwitters (<http://faculty.washington.edu/dillon/rhethtml/dadamaps/dadam287.jpg>; acesso em 12.08.2004); [10.3] Eclipse parcial com Monalisa, deKasimir Malevitch (<http://www.museoscienza.it/leonardo/light/images/malev.jpg>; acesso em 21.10.2004).
Figura 11 .............................................................................................................................. p. 48Aloísio em seu atelier da Rua da Aurora, no Recife (LEITE, 2003, p. 39).
Figura 12 .............................................................................................................................. p. 52Sem Título, de Aloísio Magalhães (idem, 2003, p. 56).
Figura 13 .............................................................................................................................. p. 53Sem Título, de Aloísio Magalhães (id., p. 53).
Figura 14 .............................................................................................................................. p. 53Sem Título, de Aloísio Magalhães (id., p. 53).
Figura 15 .............................................................................................................................. p. 53Sem Título, de Aloísio Magalhães (id., p. 53).
Figura 16 .............................................................................................................................. p. 55Monotipia, de Aloísio Magalhães (id., p. 46); tipográfica sobre papel, de Aloísio Magalhães (id., p. 57); aquarela, de AloísioMagalhães (id., p. 47); cartema, de Aloísio Magalhães (REDIG, 1989, p. 105).
Figura 17 .............................................................................................................................. p. 57Símbolo d’O Gráfico Amador, de Aloísio Magalhães (ESCOREL, 2000, p. 106).
Figura 18 .............................................................................................................................. p. 62Adaptações do símbolo do IV centenário da cidade do Rio de Janeiro -de Aloísio Magalhães- em pipa, vestuário e fantasia decarnaval (REDIG, 1989, p. 107) e em piso de calçada e carrinho de ambulante (LEITE, 2003, p. 173).
6
Figura 19 ............................................................................................................................. p. 63Símbolo original do IV centenário, de Aloísio Magalhães (LEITE, 2003, p. 170); esquemas construtivo e associativo do símbolopreparados pelo autor.
Figura 20 ............................................................................................................................. p. 63Diferentes versões do símbolo da Light, de Aloísio Magalhães (ESCOREL, 2000, p. 116).
Figura 21 ............................................................................................................................. p. 63Símbolos criados por Aloísio Magalhães: para a Itaipu Binacional (REDIG, 1989, p. 105); para o Banco Boavista (LEITE, 2003,p. 216) e a Metalúrgica Icomi (idem, p. 164).
Figura 22 ............................................................................................................................. p. 63Símbolos criados por Aloísio Magalhães: para o Banco Nacional (REDIG, 1989, p. 105); para o Banco Aliança (LEITE, 2003, p.186); para a Companhia Souza Cruz (REDIG, 1989, p. 105).
Figura 23 ............................................................................................................................. p. 64Símbolos criados por Aloísio Magalhães: para o Banco de Crédito Mercantil (LEITE, 2003, p. 165); para o Unibanco e para oBanespa (REDIG, 1989, p. 105).
Figura 24 ............................................................................................................................. p. 64Capas dos exemplares nº 4 -de Hermelindo Fiaminghi- e nº 1 -de Décio Pignatari- da revista Noigandres (<http://www.obraprima.net/materias/html693/html693.html>; acesso em 17.04.2004).
Figura 25 ............................................................................................................................. p. 65Poesia “Eis os amantes”, de Augusto de Campos, do ano de 1953 (<http://www2.uol.com.br/augustodecampos/poemas.htm>;acesso em 17.04.2004).
Figura 26 ............................................................................................................................. p. 65Poesia concreta “Beba coca cola”, de Décio Pignatari, do ano de 1957 (<http://www.tanto.com.br/luizedmundo-concret.htm>;acesso em 17.04.2004).
Figura 27 ............................................................................................................................. p. 66Pinturas [27.1] Movimento Contra Movimento (LEITE, 1982, p. 922) e [27.2] Função Diagonal (ZANINI, 1983, p. 662), deGeraldo de Barros; [27.3] símbolo para a Cofap (BORGES, 1992, p. 86), de Alexandre Wollner.
Figura 28 ............................................................................................................................. p. 66[28.1] Logotipo para Cotonifício Capibaribe (LIMA, 1997, p. 39) e [28.2] aplicação de logotipo em veículo (LEITE, 2003, p.198), criações da PVDI, escritório de Aloísio Magalhães; [28.3] peças publicitárias diversas (LEON, 1992, p. 80), [28.4] sacolade compras para Casa Almeida (idem, p. 81) e composição/logotipo para Balas Belavista (id., p. 80), de Ruben Martins.
Figura 29 ............................................................................................................................. p. 67Símbolos: [29.1] criação de Alexandre Wollner (BORGES, 1992, p. 86); [29.2] criação de Ruben Martins (LEON, 1992, p. 77);e [29.3] criação de Aloísio Magalhães (LEITE, 2003, p. 169).
Figura 30 ............................................................................................................................. p. 67Símbolo do Hotel Tropical, de Ruben Martins (LEON, 1992, p. 81); símbolo do Clube Hípico da Bahia, de Aloísio Magalhães(LEITE, 2003, p. 217).
Figura 31 ............................................................................................................................. p. 68Associação conceitual do símbolo para o Hotel Tropical, de Ruben Martins (LEON, 1992, p. 81) e estudo tridimensional dosímbolo do Clube Hípico da Bahia, de Aloísio Magalhães (LEITE, p. 217).
Figura 32 ............................................................................................................................. p. 69Símbolos -de Aloísio Magalhães- para: [32.1] Banco Mercantil de Pernambuco (REDIG, 1989, p. 105); [32.2] LaboratórioMaurício Vilella (LEITE, 2003, p. 154); e [32.3] Banco Comercial Brasul (idem, p. 186).
Figura 33 ............................................................................................................................. p. 69Símbolos -de Aloísio Magalhães- para: [33a] o Sesquicentenário da Independência do Brasil (LEITE, 2003, p. 206) e para [33b]o Banco Central do Brasil (idem, p. 155).
Figura 34 ............................................................................................................................. p. 69Design -de Aloísio Magalhães- para Produtos Guri, com aplicação em itens diversos (LEITE, 2003, p. 188).
Figura 35 ............................................................................................................................. p. 70Projeto de identidade visual para a Petrobrás, de Aloísio Magalhães: aplicação em letreiros [35.1] suspenso (REDIG, 1989, p.108) e [35.2] de solo (LEITE, 2003, p. 205), em [35.3] veículos (REDIG, 1989, p. 108) e em [35.4] bombas de combustíveis(LEITE, 2003, p. 204).
7
Figura 36 ............................................................................................................................. p. 70Anverso e verso de cédula de NCr$ 1,00 -um cruzeiro novo- (<http://www.bcb.gov.br/htms/museu-espacos/cedulas/>; acesso em20.05.2004), design de Aloísio Magalhães, impressa no Brasil e lançada no ano de 1967.
Figura 37 ............................................................................................................................. p. 71Anverso e verso de cédula de Cr$ 500,00 -quinhentos cruzeiros- (LEITE, 2003, p. 211), lançada em 1972; design de Aloísio Magalhães.
Figura 38 ............................................................................................................................. p. 71Anverso e verso das cédulas de Cr$ 1.000,00 -mil cruzeiros- (<http://www.bcb.gov.br/htms/museu-espacos/cedulas/>; acessoem 20.05.2004) emitidas em 1977; design de Aloísio Magalhães.
Figura 39 ............................................................................................................................. p. 74Impressora offset da Casa da Moeda do Brasil (<http://www.casadamoeda.com.br/produtos/prodcedu.htm>; acesso em 21.05.2004).
Figura 40 ............................................................................................................................. p. 80Inserções em Circuitos Ideológicos, de Cildo Meireles (Enciclopédia de artes visuais, em <http://www.itaucultural.org.br>;acesso em 09.10.2004).
Figura 41 ............................................................................................................................. p. 83[41.1] Moça Afogada, de Roy Liechtenstein (ARGAN, 1992, p. 582); [41.2] O Bandido da Luz Vermelha, de Cláudio Tozzi(ZANINI, 1983, p. 751).
Figura 42 ............................................................................................................................. p. 84[42.1] Berço Esplêndido, de Carlos Vergara (ZANINI, 1983, p. 744); [42.2] Cama, de Robert Rauschenberg (ARGAN, 1992, p. 576);[42.3] Três Bandeiras, de Jasper Johns (<http://artwork.barewalls.com/product/framer.exe?ARTWORKID=13136&ITEMID=13136>;acesso em 11.10.2004).
Figura 43 ............................................................................................................................. p. 86Fruteira e copo, de Georges Braque (<http://www.artchive.com/artchive/B/braque/papcol1.jpg.html>; acesso em 30.05.2004).
Figura 44 ............................................................................................................................. p. 87[44.1] Rodovia Castelo Branco, São Paulo, cartema da Série Brasileira, de Aloísio Magalhães (FUNARTE, 1982); [44.2a a 44.2d]Simulações preparadas pelo autor para esta dissertação.
Figura 45 ............................................................................................................................. p. 88[45.1] Símbolo do Unibanco, de Aloísio Magalhães (REDIG, 1989, p. 105); [45.2a] Moebius strip e [45.2b] Knots, de M. C.Escher (ERNST, 1986, p. 99 e 101).
Figura 46 ............................................................................................................................. p. 89[46.1] Litogravura, de Aloísio Magalhães (LEITE, 2003, p. 78); [46.2] Belvedere (e detalhe), de M. C. Escher (ESCHER, 1994,prancha 74).
Figura 47 ............................................................................................................................. p. 89[47.1] Imagem produzida pelo autor, a partir de fotografia do cartema; [47.2] Plane-filling motif with crabs, de M. C. Escher(<http://www.mcescher.com/Gallery/symmetry-bmp/E40.jpg>; acesso em 12.11.2004).
Figura 48 ............................................................................................................................. p. 90[48.1] Um outro mundo II, de M. C. Escher (ESCHER, 1994, prancha 60); [48.2] Em cima e embaixo, de M. C. Escher (ESCHER,1994, prancha 61).
Figura 49 ............................................................................................................................. p. 91Oito cabeças, de M. C. Escher (ESCHER, 1994, p. 4).
Figura 50 ............................................................................................................................. p. 91[50.1] Detalhe de nota de NCr$ 1,00, preparado pelo autor a partir da imagem mostrada na figura 36; [50.2] Símbolo do Banespa,de Aloísio Magalhães (REDIG, 1989, p. 05).
Figura 51 ............................................................................................................................. p. 95[51.1] Carta de baralho digitalizada pelo autor; [51.2] (V. figura 1.2); [51.3] (V. figura 38).
Figura 52 ............................................................................................................................. p. 96Imagens caleidoscópicas: [52.1] (<http://www.geocities.com/zuliram_es/images/palmerasdecasa_caleidoscopio.jpg>; acesso em01.12.2004); [52.2] (<http://www.brewstersociety.com/images.html>; acesso em 01.12.2004); [52.3] (<http://www.kaleidoscopecollector.com/ade.html>; acesso em 01.12.2004).
Figura 53 ............................................................................................................................. p. 97Três representações do oroboro: [53.1] (<http://www.terra.com.br/planetanaweb/341/fotos/reconectando_b.jpg>; acesso em01.12.2004); [53.2] (<http://members.tripod.com/smittyjr_11/ouroboros.html>; acesso em 01.12.2004); [53.3] (<http://abacus.best.vwh.net/oro/oro2.gif>; acesso em 01.12.2004).
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Figura 54 ........................................................................................................................... p. 100Conjunto de ilustrações preparadas pelo autor para esta dissertação.
Figura 55 ............................................................................................................................ p. 101Praia de Copacabana - Rio, cartema de Aloísio Magalhães (FUNARTE, 1982, prancha 5).
Figura 56 ........................................................................................................................... p. 102Conjunto de ilustrações preparadas pelo autor para esta dissertação.
Figuras 57 e 58 ................................................................................................................... p. 103Idem.
Figura 59 ........................................................................................................................... p. 104Idem.
Figura 60 ........................................................................................................................... p. 105Idem.
Figuras 61, 62 e 63 .............................................................................................................. p. 106Idem.
Figura 64 ........................................................................................................................... p. 108Cartema da Série Barroca, de Aloísio Magalhães (LEITE, 2003, p. 73).
Figura 65 ........................................................................................................................... p. 108Cartema da Série em Preto e Branco, de Aloísio Magalhães (FUNARTE, 1982, prancha 24).
Figura 66 ........................................................................................................................... p. 109Ilustração preparada pelo autor para esta dissertação.
Figura 67 ........................................................................................................................... p. 111Cartema São Paulo, Largo do Paissandu, de Aloísio Magalhães, c. 1973, acervo Banco Itaú S.A. (<http://www.itaucultural.org.br/bcodeimagens/imagens_publico/005408001013.jpg>; acesso em 22.10.2004)
Figura 68 ........................................................................................................................... p. 112Cartema da Série em Preto e Branco, de Aloísio Magalhães, 1974 (LEITE, 2003, p. 69).
Figura 69 ........................................................................................................................... p. 112Cartema da Série Brasileira, de Aloísio Magalhães, 1972 (LEITE, 2003, p. 71).
Figura 70 ........................................................................................................................... p. 113Cartema da Série Brasileira, de Aloísio Magalhães, 1973 (REDIG, 1989, p. 105).
Figura 71 ........................................................................................................................... p. 113 Cartema da Série Brasileira, de Aloísio Magalhães (FUNARTE, 1982, capa).
Figura 72 ........................................................................................................................... p. 114Índio Uaika, Amazonas, de Aloísio Magalhães, cartema da Série Brasileira (FUNARTE, 1982, prancha 2).
Figura 73 ........................................................................................................................... p. 114Grutas do Mar Morto, Israel, de Aloísio Magalhães, cartema da Série Internacional, 1974 (FUNARTE, 1982, prancha 10).
Figuras 74 e 75 .................................................................................................................... p. 115Cartemas da Série em Preto e Branco, de Aloísio Magalhães, 1974 (FUNARTE, 1982, pranchas 13 e 21).
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RESUMO
No ano de 1972, o artista plástico e designer brasileiro Aloísio Magalhães (1927-1982)apresentava ao público, em exposição realizada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro,os cartemas -o produto então mais recente de suas investigações no campo das artes visuais.Consagrada pelos espectadores nesta e em outras mostras que se seguiram a ela no Brasil e noexterior, a criação cartemática não foi recebida com semelhante entusiasmo por uma ala da críticae da classe artística da época. Se isto já expõe, à primeira vista, um conflito de expectativas entrearte e público, revela também, num exame mais aprofundado da questão, que fatores exterioresao fato artístico em si contribuíram para dificultar a inserção dos cartemas -e mesmo do nome deseu criador- nos registros da história oficial da arte no Brasil. Esta dissertação, ao mesmo tempoque analisa a intrincada rede de acontecimentos, influências e motivações adjacentes à trajetóriae à produção artística de Aloísio Magalhães, constitui um esforço no sentido de recuperar, divulgare preservar, na memória da arte nacional, essa criação artística que, resistindo à açãodesvanecedora de mais de três décadas, segue vigorosa, surpreendendo olhares e animandosensibilidades.
Aloísio Magalhães. Brasil: artes visuais. Cartões-postais. Cartema. Colagem. Design.
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ABSTRACT
In 1972, Brazilian artist and designer Aloísio Magalhães (1927-1982) exhibited, in Riode Janeiro Museum of Modern Arts, the cartemas, then his newest production in visual arts.Praised by audiences at this and following exhibitions in Brazil and abroad, his creation wasn’treceived with the same enthusiasm by many artists and art critics at the time. If this alone shows anexpectation conflict between art and public, further analysis will also show that elements otherthan artistic have made their contribution to make cartema introduction – as well as its authorname – in official Brazilian art history harder. The present thesis, along with analysing the intricatenet of events, influences and motivations amid the trajectory and artistic production of AloísioMagalhães, aims to reclaim, spread and keep alive, in national art registers, this work that,withstanding any fading effect three decades could have inflicted, goes on powerfully, amazing theeye and cheering the sensibility.
Aloísio Magalhães. Brazil: visual arts. Cartema. Collage. Design. Postcards.
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1. INTRODUÇÃO
Em fins da década de 1980, ao adquirir um exemplar do catálogo da exposição de
cartemas de Aloísio Magalhães realizada em 1982 pela FUNARTE -uma homenagem póstuma
ao artista que falecera naquele mesmo ano-, pude experimentar sensações ambivalentes a
oscilarem entre um profundo encantamento e a mais trivial das invejas. Os cartemas, que
até então desconhecia, eram a materialização de uma idéia artística que poderia ou deveria,
como pretensiosamente me sugeriam tais sentimentos, ter ocorrido a mim. A comparação -
previsível pela recorrência em relatos semelhantes-, com alguns versos da composição Certas
Canções1 , de Tunai e Milton Nascimento, torna-se então inevitável. Certamente, minha
formação em arquitetura, a incursão pelo território da ilustração e o cartum e a opção final
pelo design gráfico, são aspectos que facilitaram o processo de identificação pessoal com a
obra. E se declaro aqui minhas impressões, faço-o com o estrito objetivo de registrar o que
teria sido, à época, seu desdobramento natural: o desejo -e provável gérmen desta
dissertação- de aprofundar conhecimentos sobre a origem do cartema, ou mesmo de tentar
compreender a natureza do poder arrebatador daquela simples e inventiva exploração
estética.
Para minha surpresa, constatei que os cartemas não eram um tema a respeito do
qual se pudesse obter referências com facilidade. Também não era (e continua sendo)
pequeno o número de pessoas que, mesmo familiarizadas com a produção recente da arte
brasileira, ignoravam por completo a existência desse trabalho artístico. Levando em conta
essa realidade, e em respeito a eventuais dúvidas, considero a conveniência de abrir aqui
um parêntese para falar brevemente sobre o que vem a ser o cartema.
Começando pela etimologia, já que curiosamente os dicionários da língua portuguesa
não negaram registro ao termo como o fizeram alguns dicionários nacionais de arte, a palavra
cartema -um neologismo proposto pelo filólogo Antônio Houaiss para denominar a obra
ainda em seu nascedouro-, resulta da associação do radical cart- (de cartão-postal) com o
sufixo -ema (na acepção de “unidade mínima estrutural”), conforme destaca a edição do
ano de 2001 do Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa.
Como proposição estética, o cartema é um tipo particular de composição visual
modular, definida pela colagem sistematizada, sobre prancha rígida de papelão, de um
1 “Certas canções que ouço / Cabem tão dentro de mim / Que perguntar carece: / ‘Como não fui eu que fiz?!’ / ...”. CertasCanções, de Tunai e Milton Nascimento, gravada originalmente no disco Anima (38min32seg), Ariola, Estéreo, Estúdio, 33 rpm,12 pol, 3ª faixa, lado B, 3min39seg, 1982.
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conjunto de cartões-postais visualmente idênticos e justapostos de modo a explorar
concordâncias formais singulares e efeitos ópticos ambíguos (fig. 1).
Criação artística do pernambucano Aloísio Magalhães (1926 - 1982) na década de
1970, o cartema revelou-se uma solução que, já na origem, abalava convicções persistentes
acerca da dicotomia técnica/estética (aqui manifesta no confronto design/arte) e da crença,
herdada das vanguardas modernistas, de impossibilidade de diálogo entre obra de arte e
público.
Movido mesmo pelo inconformismo com as tendências soliloquistas da produção
artística brasileira de então, a conflitarem com o interesse que sempre nutriu pelas
manifestações da cultura popular e com o seu desejo de interação com o coletivo, Aloísio
Figura 1 - Da associação planejada do módulo -o cartão-postal (1)- chega-se ao super-módulo(2), a partir do qual constrói-se o cartema (3)
1 2
3
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abandonou a pintura -que exercera desde a primeira metade dos anos 1950- para dedicar-
se, no início da década de 1960, à comunicação visual. O exercício do design, profissão
que ele ajudara a implantar em nosso país e que desempenharia com brilhantismo pelos
aproximados quinze anos seguintes, foi o caminho que, em última análise, o levou à invenção
dos cartemas em 1972. Por fim, assumindo de vez a “causa” da identidade nacional, Aloísio
voltou-se para o campo da política governamental brasileira para o patrimônio e a cultura,
onde atuou -aí também com reconhecida competência- até o fim da vida, em 1982.
Se a passagem pelo campo do design -essa área do saber que tem na comunicação
um de seus pressupostos fundamentais- foi a grande oportunidade de Aloísio para atingir
sua meta de interação com o grande público, a invenção dos cartemas foi, agora no território
da criação sem fins de consumo, o coroamento dessa conquista. Se por este motivo, ou se
pelos surpreendentes efeitos visuais da obra, o fato é que os cartemas atraíram sempre
quantidades expressivas de espectadores às diversas ocasiões em que foram exibidos em
museus e galerias do Brasil e do exterior.
Contudo, o período transcorrido desde a última mostra expressiva dos cartemas -
uma homenagem póstuma que em 1983 percorreu dez grandes capitais no país- até os dias
atuais, parece ter feito volatilizar-se quase por completo aquele entusiasmo com que foi
recebida e celebrada essa criação do artista, suscitando algumas reflexões a respeito do
grau de importância conferido à obra de Aloísio Magalhães no âmbito da história da arte
brasileira.
Feitos os esclarecimentos, fecho o parêntese para retomar a narrativa do ponto em
que foi interrompida, quando então os cartemas despertaram meu interesse e admiração.
Interesse e admiração que, lá por meados dos anos 1990, por obra do tempo e da rotina,
começavam a se acomodar em algum compartimento pouco solicitado da memória, enquanto
o catálogo dos cartemas espremia-se entre outras publicações numa prateleira pouco visitada
da biblioteca.
Foi preciso que alguns anos se passassem até que, em 1998, uma intenção acadêmica
objetiva me levasse a resgatar os cartemas da memória e da estante de livros. Decidi incorporá-los
aos exercícios aplicados regularmente na disciplina Técnicas de Visualização, que então lecionava
no curso de Publicidade e Propaganda, da Universidade Federal Fluminense. Estava ali meu primeiro
campo coletivo de observação. As reações invariavelmente admiradas dos alunos diante dos cartemas
ali produzidos, converteram-se logo em estímulo para ações de maior amplitude. Assim, no advento
do ano 2000, contagiados por aquela euforia generalizada que atropelava posições mais ortodoxas
14
e antecipava em um ano o início do novo século, oferecíamos à administração da universidade,
como peça comemorativa e de divulgação institucional, o projeto gráfico (desta vez um trabalho da
disciplina Planejamento Visual e Produção Gráfica) de um calendário de parede ilustrado com imagens
“cartemizadas” do ambiente e cotidiano universitários. Passados quase trinta anos do aparecimento
do cartema, o mundo da tecnologia nos emprestava suas facilidades para a construção de cartemas
digitais, com programas gráficos e periféricos a substituir esquadros, réguas e colas Phênix,
indispensáveis aos cartemas artesanais. Vantagens e prejuízos à parte, o fato é que a invenção
estética de Aloísio Magalhães, estendida, como era seu propósito, a qualquer indivíduo disposto a
reproduzi-la - e aqui posso me incluir -, continuava a surpreender olhares e a confirmar o que seu
idealizador já constatara à época: ninguém fica indiferente ao cartema. Sentíamo-nos, assim, os
alunos e eu, bastante à vontade para veicular as propostas cartemáticas produzidas em sala de aula,
na medida em que a isso nos autorizava aquele desejo de compartilhamento manifestado por seu
idealizador. Naturalmente, dedicamos um espaço do calendário a informações relativas a Aloísio
Magalhães e seus cartemas, ao mesmo tempo uma homenagem a esse brasileiro de tantos fazeres2
e uma tentativa de resgate daquela (literalmente) admirável técnica de expressão artística.
Contudo, à medida que o projeto evoluía, íamos nos dando conta -com algum
estranhamento, vale dizer- da dificuldade na obtenção de informações textuais sobre os cartemas;
situação que o prazo curto e as precárias condições operacionais de que dispúnhamos se
encarregavam de não facilitar. Trabalhamos, então, dentro dos limites impostos por essa realidade.
O Reitor, que aceitara nosso convite para comparecer à classe e ser apresentado
pelos alunos à proposta, acolheu o projeto
com entusiasmo, nos autorizando a produzi-lo.
O calendário (fig. 2) foi produzido e, ao
final, o gabinete do Reitor que se encarregara da
distribuição, controlada e dirigida a setores
internos e externos à Universidade, viu esgotar-
se com surpreendente velocidade a tiragem de
três mil exemplares. As muitas manifestações
de apoio à iniciativa, levadas ao nosso
conhecimento pelos funcionários envolvidos
no processo, foram o meio através do qualFigura 2 - O calendário da UFF, comemorativo do ano 2000, com
imagens cartemizadas do ambiente universitário.
2 Aloísio Magalhães foi titereiro, cenógrafo, gravador, pintor, gráfico, designer e, por fim, homem público engajado na políticacultural governamental.
15
pude aferir e confirmar, mais uma vez e agora num universo de análise bastante ampliado e
heterogêneo, o poder de sedução visual do cartema.
Todavia, ao passo que crescia meu interesse pelo assunto, igualmente ganhavam
intensidade as dúvidas e estranhamentos decorrentes do aparente descaso com que a
literatura especializada trata os cartemas (ao contrário do que ocorre, por exemplo e sem
comparações apressadas, com seus quase contemporâneos, os objetos relacionais de Lygia
Clark ou os penetráveis e os parangolés de Hélio Oiticica) e, mesmo, a passagem de
Aloísio Magalhães pelas pertenças da arte. Mas, se de um lado a perspectiva insinuada pelo
quadro descrito conduzia ao desalento, por outro o ineditismo3 do tema tornava-o
particularmente instigante. Decidi-me pela segunda via, cujo trilhamento, orientado pelos
fundamentos da ciência e da arte e entremeado dos prazeres e angústias próprios à
empreitada, desembocou nesta dissertação.
Em linhas gerais, essas foram as circunstâncias que conformaram o arcabouço desta
pesquisa, cujo subtítulo parece denotar uma demarcação estanque dos domínios da arte e
do design. Aqui, no entanto, valho-me da comparação não como reforço de uma suposta
dicotomia, mas tão-somente como artifício metodológico, pensado para ajudar a limpar o
terreno de concepções equivocadas acerca das particularidades que distinguem estes dois
universos da produção humana. E nessa distinção apóia-se, de certo modo, a questão central
deste trabalho, qual seja: os cartemas de Aloísio Magalhães, ao conjugar fundamentos
conceituais da arte a pressupostos comunicacionais do design, não se revelam igualmente
obra de arte e design, um ponto de encontro entre estas duas atividades?
Se observado sob o prisma da multidisciplinaridade, o problema que aí se coloca
aponta para desdobramentos nos campos específicos da Arte, da Comunicação, da Política,
da História, da Sociologia, da Cultura e da Ideologia, mas se apóia, fundamentalmente, na
combinação dos vários aspectos que, numa certa conjuntura espaço-temporal, forjaram o
ambiente social no qual atuou Aloísio Magalhães.
Dessa forma, considerada a complexa teia dos acontecimentos ocorridos no Brasil
nas décadas de 1960 e 1970, questões subsidiárias -gerais e específicas- se desprendem
daquela, central, suscitando reflexão.
3 Quando já havia trilhado metade do caminho, recolhido informações relevantes para o trabalho e constatado que a contribuiçãode Aloísio para a cultura brasileira tal como ela se configura atualmente ia bem mais além do que pude supor de início, fuisurpreendido pelo mercado editorial com a publicação do livro “A herança do olhar: o design de Aloisio Magalhães” (LEITE,João de Souza (org.). A herança do olhar: o design de Aloisio Magalhães. Rio de Janeiro: Artviva / Senac Rio, 2003.). Afrustração com a perda do ineditismo, que ameaçou trocar de posição o instigante e o desalento, não impediu que a obra viesse ase tornar, ao fim e ao cabo, um valioso instrumento de consulta.
16
Em resumo, estes são alguns dos aspectos que concorreram para a formatação deste
trabalho nos moldes que passo a descrever.
O próximo capítulo [cap. 2 – Arte e design: a frágil (mas persistente) distinção] abre
a discussão sobre a delimitação das fronteiras entre a arte e o design, como decorrência da
antiga questão estética-técnica cuja origem, por sua vez, antecede mesmo ao surgimento do
desenho industrial como atividade socialmente reconhecida. Aqui, através da recuperação
de passagens da história dessas duas áreas da produção humana, procuro demonstrar que
esse convívio, nem sempre tranqüilo, foi sempre profícuo. Para tanto e como reforço de
argumentação, recorri às análises críticas da questão a que procederam Giulio Carlo Argan
(sob a ótica da finalidade) e Pierre Francastel (a origem na filosofia); além deles, amparei-
me também no referencial histórico-sociológico de Arnold Hauser. De Ernest H. Gombrich
vieram os imprescindíveis fundamentos histórico-analíticos da arte mundial.
A seguir [cap. 3 - Aloísio Magalhães], procurei desenvolver uma biografia comentada
de Aloísio Magalhães, restrita ao período em que ele se dedicou à pintura, às artes gráficas,
ao design e à política, no intuito de localizar um fio condutor, um traço comum em suas
realizações, capaz de fazer entender os caminhos que o levaram à invenção do cartema.
Procedendo, então, à revisão de literatura sobre a relevância da obra e a trajetória desse
artista pernambucano no âmbito da produção de arte brasileira, constatei um sintomático
desequilíbrio de registros; se por um lado é grande o número de referências documentais
que tratam de sua passagem pelos organismos oficiais de gestão da cultura, ou acerca do
período em que se envolvera na criação da Escola Superior de Desenho Industrial (ESDI),
no Rio de Janeiro, ou ainda, que assinalam seu papel pioneiro na implementação e no
desenvolvimento do design no Brasil relacionando premiações e trabalhos realizados na
área da comunicação visual, por outro é escassa a literatura específica sobre os cartemas.
Desse modo, foi necessário recorrer a consultas diretas, via telefone ou correio
eletrônico, a pessoas de algum modo ligadas ao artista, bem como a pesquisas documentais
no setor de Documentação e Pesquisa do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e no
acervo de correspondências pessoais de Aloísio Magalhães, doado por sua viúva à Fundação
Joaquim Nabuco, de Recife. Dentre os inúmeros títulos da bibliografia, três publicações,
relativamente recentes, foram particularmente valiosas na elaboração deste capítulo: A
herança do olhar: o design de Aloísio Magalhães (2003), organizado por João de Souza
Leite; O Gráfico Amador (1997), de Guilherme Cunha Lima; e A retórica da perda (2000),
de José Reginaldo dos Santos Gonçalves.
17
O capítulo seguinte [cap. 4 - O cartema] é dedicado à análise dos cartemas: sua
origem, o contexto social e político brasileiro nos anos 1970, seu discurso, suas
particularidades estético-compositivas e analogias visuais possíveis. Nele, sempre a partir
de uma perspectiva histórica, busco comparar as reações dos artistas brasileiros diante da
ação da censura imposta pelo governo militar; analiso atributos supostamente capazes de
conferir valor a uma produção em arte; e, num exercício de quase fenomenologia, devaneio
pelo território das coincidências à cata de associações (im?)prováveis.
Aqui, vali-me novamente de G. C. Argan e de sua profunda análise das teorias,
tendências e procedimentos da arte moderna mundial, e de E. H. Gombrich, um reforço de
base para estudos comparativos entre a configuração cartemática e produções artísticas de
diferentes culturas e períodos.
Quanto à conclusão, o que posso afirmar com clareza é que este não será -e nem
seria possível ser- um trabalho definitivo, no sentido de esgotamento do tema pesquisado
ou de comprovação de todas as questões havidas -ingenuamente- como comprováveis ao
início da jornada. Será, disto estou certo, uma contribuição para o estudo e difusão dessa
surpreendente e generosa invenção de Aloísio Magalhães. Será, ainda, uma oportunidade
de colaborar para o entendimento das intrincadas relações que cercam um processo de
criação e que, muitas vezes, enformam o resultado do trabalho criativo. Será, também, uma
ajuda à reflexão sobre o que seriam as fronteiras entre arte e design, ou mais precisamente
entre as artes ditas visuais e o design gráfico, para que se possa entender, por fim, que os
cartemas de Aloísio Magalhães inscrevem-se exatamente aí, nesse espaço de interpenetração
de campos, configurando-se um ponto de encontro entre a arte e o design. E será, espero,
uma idéia-semente à espera de uma vontade criadora qualquer, capaz de acolhê-la, plantá-
la e, quem sabe, fazê-la germinar e frutificar em belos cartemas.
18
2. ARTE E DESIGN: A FRÁGIL (MAS PERSISTENTE) DISTINÇÃO
O recurso a expressões que antagonizam técnica e estética não é incomum. Na
verdade, a cada vez que nos utilizamos do vocábulo artes, dadas as possibilidades de
interpretação que o plural lhe acrescenta, poderemos estar, inadvertidamente, contribuindo
para consolidar essa idéia de oposição geralmente assente no pressuposto de que técnica
significa habilidade e que estética é um atributo indissociável e exclusivo da arte. Nesse
sentido limitado -se se restringe a discussão à arte e ao design-, à arte não caberia senão
uma destinação (um fim) espiritual, enquanto que o design, entendido como forma de arte
aplicada, engendrado e conduzido por interesses fundamentalmente comerciais, estaria
associado, desde sempre, a uma função utilitária, material.
Neste capítulo, pretendo refletir não a respeito da origem, mas sobre alguns dos
momentos ou eventos no curso da história moderna em que a produção em Arte -numa
ampla significação- deu sinais claros do desgaste dessa discussão, e buscar, através da
ótica da finalidade do trabalho criativo e da confrontação de ocorrências na literatura recente,
demonstrar que o tema ainda faz por merecer a atenção de diferentes autores, como é
possível verificar no que avalia E. H. Gombrich (1977, p. 474):
Após os balbucios e hesitações do século XIX, os modernos arquitetosencontraram seu rumo [...]. Quanto à pintura e escultura, a crise aindanão saiu do ponto de perigo. Apesar de algumas experiênciaspromissoras, ainda subsiste uma lamentável brecha entre o que équalificado de arte “aplicada” ou “comercial”, que nos rodeia na vidacotidiana, e a arte “pura” de exposições e galerias, que muitos têmdificuldade em entender.
Mas esta opção do artista pela arte “pura”, ou l’art pour l’art , é antes uma atitude
reativa que o resultado de ações legítimas na perseguição de novas formas de expressão, e
remonta aos efeitos das profundas mudanças nas estruturas sociais da Europa, ocorridas
por obra da filosofia das Luzes no decurso do século dezoito.
De fato, desde que os ideais iluministas forçaram a reorganização dessas sociedades
e, ato contínuo, deslocaram os artistas de sua inserção social tradicional -deixando-lhes por
conseqüência a oportunidade de romper com os cânones então vigentes da realização
artística-, a Arte remodelou seu perfil, expurgando de sua (re)nascente conformação toda e
qualquer atividade a ela historicamente associada, passível de ser considerada um ofício, o
exercício puro e simples de uma habilidade técnica.
19
Essa “alforria” da imaginação criadora -contemporânea da Revolução Francesa-
não fora, é certo, assimilada da mesma forma pelo meio artístico que se dividia, na passagem
do século XVIII, entre aqueles que talvez tocados pela pedagogia das Luzes defendiam
uma finalidade social para a arte, e os que, protegidos pelo patrocínio oficial, contestavam
veementemente essa possibilidade abrigando-se nas hostes das academias; cisão que, por
desdobramento, se confirmaria também no plano representacional, entre os que em sua
obra privilegiariam temas clássicos ou heróicos -como o fizera Jacques Louis David-, e
aqueles que explorariam a representação poética dos devaneios e visões pessoais, como no
caso de Francisco Goya e William Blake (fig.3). Porém, ainda que tivesse havido essa
“ruptura da tradição” (nos dizeres de Gombrich) a significar conflitos no âmbito das artes,
isto não implicou em mudanças imediatas e expressivas no domínio das culturas regionais,
preservadas em suas bases historicistas e utilizadas pelas classes dominantes como poderoso
instrumento ideológico1 .
Um efeito direto desse processo de convulsão interna por que passou a arte, foi
que os artesãos -colaboradores tradicionais das artes- viram-se desligados, já no século
XVIII, da comunidade dos artistas e, conseqüentemente, privados de sua participação
criadora nas realizações da alta cultura. Por força dos interesses corporativos da classe
artística -que encontraria na questão da técnica e da estética um de seus argumentos-, seria
então reservada ao artesanato a condição de atividade estritamente técnica, segundo aquela
concepção de técnica como simples prática ou habilidade de execução de um trabalho ou
tarefa. Inevitavelmente, o mercado de trabalho dos artesãos retrair-se-ia por impacto dessa
investida expurgatória.
1 2 3
Figura 3 - Diferentes caminhos na representação: o academicismo de J.-L. David (1), contemporâneo de Francisco Goya (2) e William Blake (3).
1 Cf. MAYER, Arno. Culturas oficiais e vanguardas. In: A força da tradição: a persistência do antigo regime. SãoPaulo: Cia. das Letras, 1987.
20
Embora a produção de objetos de uso e de arte popular, estimulada desde o século XVI
pela revolução comercial, significasse ainda -e agora em seu apogeu- oportunidade de trabalho
para os artesãos, “à medida que crescia o mercado exportador, a especialização regional em
certos ofícios artesanais tornou-se ainda mais acentuada do que antes” (BURKE, 1999, p. 269),
propiciando o surgimento de centros de artesanato especializados capazes de suprir demandas
não apenas locais, como também nacionais ou internacionais; estes centros, ofertando produtos a
preços mais acessíveis do que poderia fazê-lo a produção artesanal usualmente voltada ao
atendimento de exigências pessoais, logo recorreriam a processos mecânicos de produção e à
estandardização dos objetos. A esse respeito, relata Burke (1999, p. 269)que, entre outras,
[...] A indústria de azulejos de Leeuwarden, Haarlem, Amsterdam,Dordrecht e outros centros dos Países Baixos atingiu seu auge entre1600 e 1800; os azulejos, pintados com barcos, moinhos de vento,tulipas, soldados e muitos outros motivos, eram populares não só anível nacional, mas também na Inglaterra e Alemanha. [...] Ao longodo século XVIII, os desenhos dos azulejos holandeses foram sesimplificando até umas poucas pinceladas rápidas, e passou-se a usarmétodos semimecânicos, como o emprego de matrizes. Era questãode apenas uma ou duas gerações antes que o objeto artesanal, feito amão, começasse a ceder ao objeto padronizado, feito a máquina eproduzido em massa.
Dessa forma, a revolução comercial, que impulsionara a produção artesanal de
objetos, contribuía igualmente para o seu fim, na medida em que, em associação com outra
revolução, a industrial, transformava o objeto único em produto em série e o artesão
independente, se tanto, em operário assalariado. Porém, se esse amargo desfecho não
confirmava para os artesãos os pressupostos iluministas da felicidade e prosperidade humanas
como decorrência do progresso e da razão, também teriam custado caro aos artistas aquelas
conquistas resultantes da insurreição contra os valores políticos, sociais e culturais
historicistas; pois até ali,
[...] sua posição na vida estava mais ou menos assegurada. Foijustamente esse sentimento de segurança que os artistas perderam noséculo XIX. A ruptura na tradição abrira-lhes um campo ilimitado deopções. [...] Mas, quanto mais ampla se tornava a gama de opções,menos provável era que o gosto do artista coincidisse com o do público.[...] Assim, desenvolveu-se uma profunda brecha no século XIX entreaqueles artistas cujo temperamento ou convicções lhes permitiamobedecer às convenções e satisfazer a demanda do público e aquelesque se orgulhavam de seu isolamento autodeterminado. (GOMBRICH,1977, p. 397).
21
Todavia, o que o estado da arte na modernidade sugere é que, naquelas circunstâncias
espaço-temporais, prevaleceu o pensamento desse segundo grupo e cavou-se mais fundo o
fosso - simultânea e conseqüentemente- entre a arte e o público e entre a arte e a indústria.
É certo que a incorporação de atributos estéticos aos produtos industrializados -ou
seja, a integração do artista no sistema de produção- não constituía, a priori, uma
preocupação da primeira revolução industrial; assim é que:
Na segunda metade do século XIX, os produtos de massa de uso diário,que haviam escapado ao molde estilístico do artesanato tradicional,são percebidos pela primeira vez como um problema estético. JohnRuskin e William Morris querem superar, por meio de uma reforma dasartes aplicadas, o abismo que separou utilidade e beleza no cotidianoindustrial (industrielle Lebenswelt). (HABERMAS, 1992, p. 134)2
No entanto, a luta empreendida por Ruskin e Morris extrapolava, como se sabe, o
âmbito puramente estético da produção industrial; para além desse aspecto, sua crítica
apontava para os efeitos perniciosos da prática capitalista à construção de uma sociedade
moralmente saudável, condição que consideravam indispensável à produção de uma arte
elevada. Na esteira do pensamento crítico de Thomas Carlyle, Ruskin foi:
[...] o primeiro a interpretar o declínio da arte e do gosto como indíciode uma crise geral da cultura e a exprimir o princípio fundamental, eainda hoje não devidamente apreciado, de que, se se quer despertarnos homens o seu sentido de beleza e a sua compreensão da arte, há,antes de mais nada, que modificar as condições em que eles vivem.[...]William Morris, o terceiro na série dos críticos sociais representativosda era vitoriana, pensa muito mais coerentemente e vai muito maislonge do que Ruskin no campo da prática. Deste modo, é efetivamenteo maior, isto é, o mais audacioso, o mais intransigente dos vitorianos,apesar de, mesmo ele, não ser completamente l ivre das suascontradições e concessões. [...] Apesar da sua sã concepção darealidade social e da função da arte na vida da sociedade, ele é umromântico enamorado da Idade Média e do ideal medieval da beleza.Prega a necessidade de uma arte criada pelo povo e dirigida a ele, mascontinua a ser um diletante hedonista, que produz coisas que só estãoao alcance dos ricos e só os cultos podem gozar. Faz notar que a arteprovém do trabalho, da habilidade prática do artífice, mas é incapaz dereconhecer o significado do moderno meio de produção mais importantee mais prático – a máquina. (HAUSER, 1972, p. 994-996).
2 A expressão “artes aplicadas” de que faz uso Habermas numa referência às críticas de Ruskin e Morris, acaba porencerrar uma irônica inadequação, visto que Ruskin, na condição de porta-voz do grupo pré-rafaelista, insistia que: “Aarte é una, e qualquer separação entre belas-artes e artes aplicadas é destrutiva e artificial”. (Cf. DONDIS, Donis A.Sintaxe da linguagem visual. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 10.)
22
Em Morris, no entanto -ressalva Hauser-, essa restrição
à produção mecânica teria sido menos rigorosa que em Ruskin,
e isto lhe permitira reconhecer que, em certas circunstâncias, as
invenções técnicas podiam vir a ser um bem para a humanidade.
De qualquer modo, é desse estado de confl i tos
deflagrado pela industrialização européia que “surge o projeto
industrial, ou seja, o meio através do qual um novo especialista,
o designer, passa a controlar o processo que vai da concepção
do produto a seu uso” (ESCOREL, 2000, p. 35). Mas se é no
contexto dessa revolução que se situa a origem da ramificação
do design hoje denominada desenho industrial, sua outra
vertente, o design gráfico, também decorre, dentro de certos
limites, de um tipo particular de “revolução” desencadeada no
século XV com a invenção ou aperfeiçoamento3 da impressão
tipográfica por Gutenberg -a da expansão do alfabetismo e da
democratização do conhecimento.
Embora a invenção do tipo móvel tenha substituído a tarefa manual da cópia de
livros -não sem antes enfrentar “séria oposição dos copistas, calígrafos e miniaturistas”4 -,
não seria difícil constatar que algum tratamento visual próprio do design gráfico (por mais
que esta expressão esteja vinculada à produção em série) já existia antes mesmo de
Gutenberg; as iluminuras, as molduras, os padrões e geometrismos -como os do Evangelho
de Lindisfarne, de cerca de 700 d.C. (fig. 4.1)-, as letras capitulares (fig. 4.2), são exemplos
de recursos estéticos dos quais se valeram copistas e gravadores e que antecederam, ou
mesmo inspiraram, algumas das soluções visuais utilizadas na famosa Bíblia de 42 linhas -
uma versão da Bíblia Sagrada impressa por Gutenberg na primeira metade daquele século.
Ao menos em parte, isto pode explicar o empenho de William Morris em resgatar
e reintroduzir nos produtos editoriais de sua época, por meio da então recente técnica da
fotografia, o desenho da tipografia clássica e o uso de alguns atrativos gráfico-visuais
(fig. 5) característicos da Idade Média.
Figura 4 - Página do Evangelho deLindisfarne (1) e letra capitular em livroholandês do início do séc. XIV (2).
1
2
3 Alguns autores atribuem a Gutenberg (c. 1400 - 1468) não a invenção, mas o aprimoramento da técnica de impressão apartir dos tipos móveis -blocos originalmente feitos de madeira contendo em relevo letras isoladas do alfabeto. Seuinventor, segundo defendem, teria sido o holandês Lourenço Coster (1370 - 1440) que se utilizara desse recurso na ediçãodo “Horarium”, o primeiro livro impresso do Ocidente.
4 Cf. RIBEIRO, Milton. Planejamento visual gráfico. 2. ed. Brasília: Linha, 1987. p.43.
23
Nesta linha,
em 1891 foi impresso o primeiro livro na Kelmscott Press, de Morris.Entre essa época e o ano de 1896, no qual o designer faleceu, foramproduzidos mais de cinqüenta títulos dos mais variados formatos. [...]Esses livros, e aqueles produzidos por outras editoras privadas da Grã-Bretanha, estavam entre os trabalhos gráficos britânicos mais admiradosno resto da Europa. (HOLLIS, 2001, p. 20)
Não obstante o ref inamento estét ico que essas
intervenções promoveram, o processo tipográfico continuava a
exigir -como bem o desejara Morris, aliás- o envolvimento e a
participação de diferentes artífices na produção de impressos,
fossem eles tipógrafos, ilustradores ou gravadores. No entanto,
se este foi o caminho percorrido até aquele momento pelas artes
gráficas na Grã-Bretanha, é necessário que se recue um pouco
no tempo para compreender as razões do diferente rumo tomado
por essa atividade na França.
Em 1798, na Áustria, a litografia5 foi inventada por Alois
Senefelder. Essa técnica revolucionária não apenas representou
um salto de qualidade para os produtos realizados através dos
mecanismos tradicionais de impressão, como também contribuiu
para dar forma mais aproximada ao perfil do profissional das
artes gráficas hoje conhecido como designer gráfico.
Realmente, o processo litográfico significou para o artista gráfico da segunda metade do
século XIX -sintomaticamente designado “artista comercial”- uma grande liberdade de expressão
e criação gráficas. A possibilidade de desenhar diretamente sobre a pedra litográfica permitiu ao
artista criar e executar, ele próprio, todos os componentes gráficos de suas obras, além de propiciar
um maior controle e domínio do processo e do resultado final de seu trabalho -um ganho
considerável, se comparado com limitações típicas do sistema tipográfico, tais como o rígido
alinhamento de textos e a necessidade do uso de matrizes xilográficas ou de metal para a reprodução
de ilustrações.
Figura 5 - Página de livro de Morris(1897) e colofão da Kelmscott Press.
5 Litografia (de líthos = pedra): processo de impressão que utiliza como matriz blocos planos de pedra calcárea, sobre aqual se aplica, por meio de lápis apropriado ou outro instrumento de desenho de base oleosa, a imagem que se querreproduzir, e cuja técnica fundamenta-se no princípio da imiscibilidade entre água e óleo. Utilizada nos dias atuais apenascomo técnica voltada à produção de gravuras artísticas, o processo litográfico evoluiu para a fotolitografia -que incorporouprincípios fotográficos na transferência de imagens para a pedra- e propiciou, ainda, o surgimento do processo offset deimpressão.
24
Os pioneiros affiches6 franceses de cunho publicitário, surgidos por volta de 18707 ,
foram seguramente o meio que mais se beneficiou dessa tecnologia e que também, em
contrapartida, mais contribuiu para o seu aperfeiçoamento; afinal, a exploração capitalista
das formas de diversão de massa -uma alternativa de
lucro que se beneficiou da “passagem gradual das
formas mais espontâneas e part ic ipat ivas de
entretenimento para espetáculos mais formalmente
organizados e comercializados para espectadores”
(BURKE, 1999, p. 271)- exigia novos meios de
divulgação condizentes com a efervescência da vida
cultural daquela Paris recém-reformada pelo barão
Haussmann, por determinação de Napoleão III.
Naquele contexto, os car tazes - forma
emergente de arte que se incorporou definitivamente à
fe ição das c idades e que tão bem ref le t iu
comportamentos e hábitos das sociedades fin de siècle
européias- consistiram em importante meio de
comunicação (e de expressão) do qual se valeram
artistas do porte de Henri Toulouse-Lautrec e Pierre
Bonnard (fig. 6), Alphonse Mucha e vários outros de
seus contemporâneos. Todavia, em que pese a sua
valiosa contribuição, não foram os artistas (numa
acepção bem moderna da palavra) os responsáveis
primeiros pela renovação da linguagem e da técnica de execução que fizeram do cartaz essa
forma simultânea de arte e comunicação; nisto, foram precedidos por um litógrafo
pesquisador e talentoso desenhista, o artista gráfico francês Jules Chéret (1836-1933), cujas
composições visuais (fig. 7), ainda que fortemente marcadas pelo cruzamento das influências
da pintura mural de Giovanni Tiepolo (1696-1770) com as das xilogravuras japonesas
exibidas nas feiras mundiais de Paris em 1867 e 1878 8 revelaram, desde cedo, uma liberdade
de representação gráfica incomum em sua época.
Figura 6 - Cartazes de Toulouse-Lautrec (1) e Bonnard (2)
Figura 7 - Cartaz em litografia do precursor Jules Chéret.
1
2
6 Affiches: designação francesa para os cartazes de publicidade afixados em painéis de rua.
7 Cf. BARNICOAT, John. Los carteles: su historia y su lenguaje. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 1972. p. 7.
8 Cf. HOLLIS, Richard. Design gráfico: uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 6.
25
Ao lançar mão de formas simples definidas por contornos ligeiros e cores chapadas
em sua obra, Chéret pode ter dado importante contribuição às discussões dos pintores
modernos acerca da planaridade da superfície -essa condição “única e exclusiva da arte
pictórica” da qual nos fala Greenberg9 -, como exemplifica Barnicoat (1972, p. 20-24):
El llamativo uso del negro en sus primeras obras y el entrelazamientode las formas l isas entrañaba una ruptura con la interpretacióntradicional de los cuerpos sólidos y el hábito de crear una ilusión derelieve, ruptura que artistas más jóvenes como Toulouse-Lautrec yBonnard llevarían aún más lejos. Henri van de Velde, uno de losgrandes portavoces del Art Nouveau, mencionaba a Chéret como unode los precursores más importantes de este movimiento de las artesdecorativas.[...]El elemento caricaturesco, irónico y satírico, las formas sencillas ylisas, la línea decorativa, eran artificios que Lautrec podía emplearen un cartel, pero que no hubiera podido expresar tan sencilla ydirectamente dentro de las convenciones de la pintura de su tiempo.Sus carteles tienen un carácter de bosquejo que es mucho menospatente en los cuadros y dibujos que realizó sobre los mismos temas;volveremos a encontrar esta formulación simplificada en la obra demuchos pintores de la primera mitad del siglo XX.
Depreende-se desse “encontro” de Chéret e Lautrec, a partir das afinidades
temáticas e representacionais expressas em seus affiches que, ao entretecer fundamentos
da cultura oficial com o idioma da cultura popular de sua época, esses artistas não apenas
reaproximaram arte e público como lograram demonstrar na prática, já àquela altura, a
inocuidade dos esforços de indivíduos ou grupos interessados em reservar territórios
distintos para a grande arte e para o que classificavam de artes menores.
O desdobramento natural dessa sintonia de linguagens foi que, perfeitamente
assimilados como forma de expressão artística em fins do século XIX, os cartazes
asseguraram um grau de reconhecimento social até então inédito para o artista-designer
francês, situação esta que não tardaria a se estender, também, a outras partes do Ocidente.
Ocorria que:
[...] os artistas que moravam fora da França, e que consideravam Parisa capital artística do mundo, olhavam para os pôsteres parisiensescheios de admiração. Todavia, Amsterdam, Bruxelas, Berlim, Munique,
9 Cf. GREENBERG, Clement. Pintura Modernista. In: FERREIRA, Glória e COTRIM, Cecília (org.): Clement Greenberge o debate crítico. Rio de Janeiro: Funarte/Jorge Zahar, 1997.
26
Budapeste, Viena, Praga, Barcelona, Madri, Milão e Nova York tambéminvestiam em suas próprias escolas de artistas de pôsteres, gerandotalentos individuais brilhantes. (HOLLIS, 2001, p. 7)
A rápida inserção do cartaz na esfera da cultura ocidental influiu no surgimento e
afirmação de um padrão de publicação editorial nas duas últimas décadas do século XIX:
as revistas ilustradas10 especializadas em temas do cotidiano e arte.
Valendo-se da expansão do mercado literário -reflexo dos benefícios legados pelos
planos de educação que alguns estados europeus implantaram por volta de 1870 com o
objetivo de afirmar o sentimento e a idéia de nação-, essas e outras publicações do gênero
colaboraram decisivamente para a divulgação mundial da produção européia de pôsteres;
nos Estados Unidos, por exemplo, “após a publicação de um livro sobre o assunto, Les affiches
illustrées, em 1886, os pôsteres adquiriram respeitabilidade cultural, tornando-se moda colecioná-
los” (HOLLIS, 2001, p. 9).
Essas revistas consistiam num vantajoso veículo de divulgação do trabalho dos
artistas-designers, na medida em que representavam, ao mesmo tempo, um meio de difusão
e o objeto de aplicação das suas teorias,
técnicas e habilidades.
Quando enfim desponta o século
XX, os resultados da confluência dos
esforços de Morris com as pesquisas
gráficas de Chéret já teriam promovido
o reencontro dos pintores com os
artistas gráficos, e o movimento Art
Nouveau, desde sua origem, afiança
essa afirmação. Alphonse Mucha (fig.
8.1), Gustav Klimt (fig. 8.2), Henry van
de Velde (fig. 8.3), Charles Rennie
Mackintosh, Eugène Grasset, Aubrey
Beardsley, Maurice Denis e os já citados
Toulouse-Lautrec e Bonnard, são alguns
dos artistas que transitaram no campoFigura 8 - Cartazes de autoria de A. Mucha (1), G. Klimt (2) e H. Van de Velde (3).
1 2
3
10 Destacam-se, entre as publicações da década de 1890, os periódicos ingleses The Studio e The Poster (1898), as revistasalemãs Die Jugend (1896), Simplicissimus (1896) e Pan (1895), a vienense Ver Sacrum (veículo do movimento Secessão,liderado por Gustav Klimt) e as norte-americanas The Chap-Book, Lippincott’s e Harper’s Magazine.
27
das artes gráficas durante o período em que o chamado estilo moderno dominou o cenário
artístico ocidental.
Daí em diante, não foram poucas as ocasiões em que a pintura exerceu influências
sobre as artes gráficas ou foi por elas influenciada. Georges Braque, Juan Gris e Pablo
Picasso estamparam letras ou palavras e colaram fragmentos de jornais e outros impressos
em suas telas cubistas (fig. 9), recursos que propiciariam experiências estéticas singulares
como aquelas a que procederam Roman Opalka e Emilio Isgrò. Filippo T. Marinetti ampliou
o sentido das palavras de seus poemas ao imprimi-las com direções, pesos, dimensões e
tipos diferenciados que subverteram a estrutura convencional das composições tipográficas
(ainda que antes dele e dos demais futuristas e de maneira menos radical Mallarmé já o
tivesse feito em 1897, com seu poema Un coup de dés) e abriu nova alternativa estética
para os artistas gráficos, italianos e não, nas duas primeiras décadas do século passado.
Caminho semelhante trilharam os dadaístas (figuras 10.1 e 10.2), e Kurt Schwitters fornece
bons exemplos do efeito dessa incorporação de produtos gráficos (como bilhetes de ônibus,
fotografias e recortes de jornais) às suas “pinturas”. Daí para a frente, design e pintura
seguiriam trocando influências, como se pode observar com o movimento de stjil de Théo
van Doesburg e Piet Mondrian, com o suprematismo de Kasimir Malevitch (fig. 10.3) e o
Figura 9 - Nos quadros de Picasso (1), Braque (2) e Gris (3), a inserção de elementos semânticos, com a constante do tema �jornal�.
Figura 10 - O cartaz dadaísta de Schwitters e van Doesburg (1) aproxima-se, na linguagem, das telas de Schwitters (2) e Malevitch (3).
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construtivismo russo, até que os pressupostos filosóficos, a interdisciplinaridade e a
produção da Bauhaus (que seriam retomados mais tarde, em meados da década de 1950 e
em outras bases, pela Escola da Forma de Ulm) viessem confirmar a tese da indissociabilidade
entre a técnica e a estética.
Todavia, por mais consistência que comporte, o legado dos mestres da escola de
Weimar (e de Ulm) parece não ter sido convincente o bastante para pôr fim a essa herança
discriminatória que, ao final, é o alimento de que se nutre a tendência classificatória das
diferentes formas de expressão artística. Ora como tema de discussão levantado por críticos,
designers e historiadores da arte contemporâneos, ora como fato aparentemente assimilado
por certos autores, o problema da referida diferenciação tem persistido e, ainda que possam
causar surpresa pelo contexto no qual soem ocorrer, não são raras as construções verbais
suscitando prevalência de um sobre outro tipo de manifestação artística. A título de ilustração
transcrevo, a seguir, algumas dessas ocorrências.
A publicação Arte no Brasil, por exemplo, que trata da produção de arte no país
desde o descobrimento até a data de sua edição -o ano de 1982-, registra no capítulo
intitulado (Século XVIII) Artes Menores:
O problema da existência de uma arte brasileira, com característicasnacionais, talvez não deva ser colocado em função das manifestaçõesartísticas puras, como a escultura ou a pintura, e sim em relação àschamadas artes aplicadas, decorativas ou menores, que incluemmobiliário, ourivesaria, cerâmica, imaginária, têxteis etc. Nessasmanifestações artísticas, tidas como inferiores, a alma nacional soubeexpressar-se melhor do que nas artes “superiores”; se se quiser localizara marca da mão do povo brasileiro, é nessas produções modestasque se irá descobri-la, pois nelas o artesão ou o artífice soube externar-se com uma l iberdade e uma invenção que nem sempre lhepossibi l i taram as manifestações art íst icas mais sof ist icadas.(LEITE, 1982, p. 337, grifos meus)
O exemplo acima não representa, no entanto, um caso isolado. Ao contrário, com
relativa freqüência deparamo-nos com formulações semelhantes àquela, como as que
reproduzo a seguir. A primeira, do autor inglês John Barnicoat, num registro em sua obra já
citada:
El Art Nouveau fue el estilo moderno más característico del cambio desiglo. El diseño de carteles formó parte de este movimiento artísticoque afectó tanto a las ar tes mayores como a las menores.(BARNICOAT, 1977, p. 29, grifos meus)
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Outra, talvez mais surpreendente, é a que nos oferece em seu livro Layout: o design
da página impressa, o designer gráfico Allen Hurlburt:
[...] Neste século [o século XX], mais do que em qualquer outro, asmúltiplas disciplinas do design são entrelaçadas para formar o tecidodo estilo contemporâneo. O movimento cubista estava relacionadoapenas com a pintura e a escultura, mas, em composição com oDadaísmo e o Futurismo, os esti los e influências começaram adisseminar-se das artes mais nobres para outras áreas do design.(HURLBURT, 1986, p. 14-15, grifos meus)
É bem pouco provável que tais citações -por mais carregadas que sejam de atributos
de valor- pretendam intencionalmente reforçar essa idéia de hierarquização entre as
alternativas de realização artística; a desatenção, todavia, acaba por fazê-lo. Só que aceitar
aí qualquer condição de supremacia é, em última análise, acatar a tese de que as formas
“superiores” de arte rejeitam toda e qualquer finalidade prática; ou que seriam, segundo
Kant, uma "finalidade sem fim". Quanto a isto, tendo a concordar com Pierre Francastel
(1973, p. 57), quando observa:
Hoje, tanto quanto em qualquer outra época, a arte verdadeira jamaisrevestiu um caráter de gratuidade. Os valores estéticos não são osvalores desligados de toda contingência, os valores inúteis. Seiperfeitamente que a opinião de Kant foi tomada por vários, dentre osmelhores pensadores. Se hoje, nos círculos de filósofos, existe umatendência desastrosa de identificar a arte com o supérfluo, isto sedeve em grande parte a Bergson que divulgou essa ilusão. Para ele afinalidade da arte é criar mundos imaginários; ela preenche a vocaçãofabuladora da humanidade.[...] Acresce que a arte sofre, em nossosdias, uma tentação pelo gratuito e há de se reconhecer que em grandeparte a culpa cabe aos artistas e aos filósofos se os técnicos têm umaidéia tão falsa sobre as relações da arte com a técnica.A origem dessas teorias é dupla. Filosófica por um lado. Mostrei suaorigem em Kant e não se poderia estar de acordo com sua fórmulapois se arte era verdadeiramente uma finalidade sem fim, ou se o artistanão se propunha um outro objetivo exterior a ela, seria necessário negarà arte toda significação. Ao contrário o que ocorre de fato é que aarte, servindo em todas as épocas como meio de expressão e depropaganda, é um dos veículos da ideologia de seu tempo; é tambémum fato que o arquiteto que constrói um palácio, uma ponte ou umaigreja não trabalha no absoluto, fora de toda contingência, mas, pelocontrário, para satisfazer ao mesmo tempo às necessidades práticas eàs exigências de gosto de seus contemporâneos.
Recuando no tempo até o ano de 1923, encontraremos também no pensamento de
Leon Trotski a seguinte abordagem sobre a relação entre arte e técnica, sob a ótica da finalidade:
30
Tomemos o canivete como um exemplo. A combinação de arte e técnicapode desenvolver-se dentro de duas linhas fundamentais: ou a arte embelezao canivete e retrata em sua lâmina um elefante de suprema beleza, ou aTorre Eiffel; ou a arte ajuda a técnica a encontrar uma forma "ideal" parao canivete, ou seja, uma forma que corresponda mais adequadamente aomaterial de um canivete e ao seu uso. Pensar que essa tarefa pode serresolvida por meios puramente técnicos é incorreto, porque finalidade ematerial permitem numerosas... variações. Para fazer um canivete "ideal"precisamos, além do conhecimento das propriedades do material e dosmétodos de sua utilização, também de imaginação e gosto. Segundo toda atendência da cultura industrial, podemos pensar que a imaginação artísticana criação de objetos materiais será dirigida para a elaboração da formaideal de uma coisa como coisa, e não para o seu embelezamento como umafinalidade estética em si. (SELZ, 1999. p. 471-472)
As palavras de Francastel e de Trotski irão encontrar consonância na esclarecedora
parábola d'O busto e o elmo, em que o autor, Giulio Carlo Argan, estabelece comparações
de objetivos entre os trabalhos do artista -um escultor- e do artesão de um mesmo período
histórico, empenhados em produzir, o primeiro, um busto de bronze, e o segundo, o elmo de
um guerreiro. Salientando que ambos têm por referencial comum de criação a cabeça do
homem, Argan (1992, p. 115-116) considera:
O artista que modelou o busto pensou que a cabeça do homem é belaporque é a parte mais nobre do corpo humano, aquela que em mais altograu reflete e revela a perfeição ideal de Deus. O artesão que lavrou ocapacete pensou que a cabeça é a parte mais importante, vital e delicadado corpo humano, aquela que merece em mais alto grau ser protegida, econdicionou a forma do objeto a esse seu conceito de valor: aumentou aespessura do metal onde piores podem ser os efeitos dos golpes, estudou ainclinação ou a curvatura da superfície de modo a fazer derrapar osfendentes, buscou obter o máximo de segurança com o mínimo de peso.Para o artista que modelou o busto, o valor de uma cabeça é estreitamenteligado à semelhança, para o artesão que forjou o capacete ele é praticamenteindependente desta.
Porém, enfatiza o autor, a semelhança interessa ao artista enquanto parâmetro de
transposição para o universal -o espaço, no qual se instalará como imagem-, aquilo que
antes é individual: os traços exteriores de um rosto determinado. Assim, o busto é fruto da
contemplação e destina-se, em última análise, à contemplação. Quanto ao artesão, interessa-
lhe resolver o elmo como agente mediador entre a cabeça e o espaço em que atua o guerreiro;
sua obra está, pois, em relação direta com a idéia de ação. E mais:
O escultor concebeu a sua forma como uma "coisa" que apenasocasionalmente é tal, mas na realidade tende a separar-se da contingência
31
e temporalidade da coisa para atingir a universalidade ou a imóvelespacialidade da imagem. O artesão quis, ao contrário, criar uma formaque fosse antes de tudo e de pleno direito uma coisa, um objeto, e quecomo tal se referisse a uma contingência específica, a uma dada condiçãotemporal: a do homem que vai à guerra. A forma do busto é naturalistaporque nasce da consideração da figura humana como um aspecto, o maisalto aspecto, da Criação. A forma do capacete, embora aparentementeabstrata, é de fato realista porque considera o homem na sua realidade, notempo e no lugar de uma circunstância bem precisa. Para o autor do busto,tudo é já criado, já está no espaço, e ao artista não se permite senão imitarou repetir, mesmo que individualizando o momento eterno da beleza sob assemelhanças mutáveis do contingente. Para o autor do elmo, a série dosobjetos é i l imitada como a das ações humanas; al iás, há umacorrespondência tão estreita entre as ações e os objetos que são as primeirasque determinam ou criam os segundos.A própria objeção comum sobre a pura esteticidade do busto e a purapraticidade do elmo se revela inconsistente: todos estamos de acordo emreconhecer que a forma do elmo é bela, e o é porque responde de modopreciso e exaustivo a uma função. [...] Portanto, a idéia de função nosserve de unidade de medida da qualidade estética da forma do elmo, domesmo modo como a idéia da observação ou da contemplação nos servede unidade de medida da qualidade estética do busto: só que a idéia defunção implica a de ação, enquanto a idéia de contemplação implica a deimobilidade.
Num desdobramento desse raciocínio Argan pontua que, para cumprir com êxito a
função a que se destina, é preciso que ao objeto esteja associada a noção de projeto -a
base do trabalho do designer (e também do arquiteto)-, em lugar daquela de esboço com a
qual trabalha, geralmente, a maioria dos artistas. Projetar, por sua vez, requer conhecimentos
dos meios de operação e das etapas da produção de determinado objeto em escala industrial;
igualmente, implica na consciência da possibilidade de atendimento às exigências de uma
certa coletividade e não mais de demandas individuais. E conclui:
É portanto o "projeto" ou o "desenho industrial" que determina a priori,e sempre em relação à função, a qualidade do produto, que é semprequalidade estética; e não pode, na atual condição da cultura, haver umbom projeto que não nasça de um processo de intuição ou de invenção,isto é, de um processo tradicionalmente considerado de caráter estéticoe próprio dos artistas.
Naturalmente, não se concebe hoje uma escala de produção de objetos destinados
ao atendimento às necessidades materiais das sociedades que ocorra fora da indústria, e
o designer é o profissional que pode conferir distinção de qualidade -funcional e estética-
a esses produtos. A relação entre o design (gráfico ou de produto) e a indústria é, pois,
inextricável; mas essa condição atual de interdependência não implica, necessariamente,
32
em que todo produto industrial seja esteticamente bem resolvido ou mesmo socialmente
necessário; só que neste caso, a resposta da coletividade se dá de maneira clara e precisa,
através de seu direito de escolha. Afinal, há boas e más soluções em design como há, na
arte em geral, obras de maior ou menor significação, e a medida do êxito ou fracasso para
essas atividades pode ser dada pelo grau em que cada uma delas opera e modifica a
realidade.
Sabemos que a noção de finalidade que conduz o processo de criação em design
não recomenda ao designer atitudes hedonistas, algo equivalente a um design pelo design;
a arte, por seu lado, ainda as admite, e os mecanismos sutis -mesmo denunciados e
combatidos pelos artistas mais conscientes- de parte do mecenato contemporâneo, não
raro as alimentam e exploram. Um livro recente, intitulado Livre-troca: diálogos entre
ciência e arte -trabalho conjunto do sociólogo francês Pierre Bourdieu com o artista alemão
Hans Haacke-, é um importante sinal de alerta que desvela, também, alguns dos princípios
norteadores das estratégias de patrocínio da arte contemporânea. É o próprio Haacke (1995,
p. 28-29) quem esclarece:
Creio que é importante distinguir a idéia tradicional do mecenato dasmanobras de relações públicas que se apoderam desse termo. Invocandoo nome de Mecenas, as empresas de hoje se dão uma aura de altruísmo.O termo americano de sponsoring explica melhor que existe, narealidade, uma troca de bens, de bens f inanceiros da parte dopatrocinador e de bens simbólicos da parte do patrocinado. A maioriados homens de negócio é mais direta quando fala a seus pares. Alain-Dominique Perrin, presidente da Cartier, por exemplo, diz claramenteque ele gasta o dinheiro da Cartier visando metas que nada têm a vercom o amor à arte.[...] Segundo suas próprias palavras: "O mecenato não é apenas umformidável instrumento de comunicação; muito mais do que isto, ele éum instrumento de sedução da opinião". Os contribuintes pagam aquiloque as empresas recuperam através de isenções fiscais pelas suas"doações", e somos nós quem verdadeiramente subvencionamos apropaganda. Estes custos da sedução não servem apenas para omarketing dos produtos, como os relógios e as jóias no caso da Cartier.É mais importante para os patrocinadores criar um clima políticofavorável a seus interesses no que diz respeito, por exemplo, aosimpostos, à regulamentação do trabalho ou da saúde, às coaçõesecológicas ou à exportação de seus produtos.11
11 Destaquei aqui o caso da Cartier -empresa multinacional de origem francesa que atua no mercado de jóias- por doismotivos que me parecem relevantes. O primeiro, expresso no texto, por revelar as verdadeiras intenções do mecenatoda troca e da cooptação; o segundo porque, atento às manobras da empresa, Hans Haacke produziu, em 1986, umainstalação denominada O must de Rembrandt em que desmistifica a “aura de altruísmo” da empresa que explora epreserva, através do trust Rembrandt, condições subumanas de trabalho nas minas de metais preciosos na África doSul. (id., 1995, p. 40-43)
33
Produzir arte sob tais circunstâncias difere pouco daquela atitude submissa e acrítica
dos artistas que trabalharam, até por volta do século XIX, a serviço da alta cultura e das
ideologias da aristocracia, da igreja e do estado; e isso, por mais que se possa pretender, não
confere a qualquer dos segmentos da arte as supostas qualidades superiores; e não seria de
se estranhar que fossem os beneficiários desse tipo de mecenato -que tanto os afasta de seu
importante papel de transformadores sociais-, os mesmos a defender com veemência uma
condição especialmente pura para a Arte. Em situações como esta, o pacto firmado entre o
capital e a arte é seguramente mais nocivo à sociedade (e à própria arte, naturalmente) do que
poderia sê-lo a "polêmica" (porém clara) relação da indústria com a arte, estabelecida através
do design -essa "forma de expressão que se projeta para o futuro, sempre em busca de
articulações e significados novos e cujo pressuposto nuclear é atender às demandas de bem-
estar físico, intelectual e emocional do ser humano" (ESCOREL, 2000, p. 69).
Na controversa obra literária Desconstruir Duchamp: arte na hora da revisão, Affonso
Romano de Sant'Anna (2003, p. 185), ao discorrer sobre a função da arte, assinala que:
[...] quando um congolês fazia uma colher de madeira que admiramoshoje, ele a fazia, primeiramente, movido pela necessidade, mas tambémpor um desejo de funcionalidade e harmonia com seu universo. É amesma coisa com a arte plumária de nossos índios ou desenhos eesculturas astecas. [...] O processo de sedução estética e artísticaque pode acontecer pelo avesso, até pelo exercício do horror e dogrotesco, tem uma função na relação entre as criaturas. Não existecultura sem símbolo e sem o mínimo de estética. E uma das maneirasde medir o grau de desenvolvimento dos indivíduos e coletividades,deve (ou deveria) ser a capacidade de se expressarem simbolicamente,pelos rituais, pelos jogos, pela política e pela arte.
Desconectada do público e de uma função, a arte não serve sequer a si mesma.
Compreendendo muito bem isso, não são poucos os artistas que têm buscado reafirmar seu
papel na sociedade através de ações capazes de reatar os laços da arte com a coletividade.
Aloísio Magalhães, como será mostrado a seguir, foi um deles. Para lograr êxito nesta tarefa
precisou experienciar o "isolamento do artista", rever criticamente seus próprios objetivos,
mudar a direção de sua produção, transitar por áreas de criação e realização específicas. A
soma de todas essas ações desembocou nos cartemas, trabalho artístico que confirmou a
tese de que, juntos, arte e design têm mais em comum do que se pode ser levado a deduzir
pela habitual (e já desgastada) pretensão de conferir graus diferenciados de valor às variadas
formas de expressão artística.
34
3. ALOÍSIO MAGALHÃES
A trajetória de vida do brasileiro Aloísio Barbosa Magalhães foi marcada por intensa
atuação nos campos da pintura, das artes gráficas, do design e da política cultural.
Nascido na cidade do Recife, em 1927, Aloísio descende de família rica e influente
no cenário político pernambucano e nacional. Seu pai, o médico e professor Aggeu Sérgio
de Godoy Magalhães, foi diretor da Faculdade de Medicina do Recife em meados da década
de 1930 e mais tarde secretário de Saúde e Educação de Pernambuco; seu tio, Agamenon
Magalhães, foi deputado estadual (1918), deputado constituinte eleito em 1932, ministro
do Trabalho do governo Getúlio Vargas, interventor do Estado de Pernambuco -sob o Estado
Novo- de 1937 a 1945, ministro da Justiça de Vargas, novamente deputado constituinte em
1946 e governador de Pernambuco, agora eleito, em 1950. Sérgio Magalhães, outro irmão
de seu pai, também foi deputado federal com base eleitoral no Rio de Janeiro, em princípio
da década de 1960.
Aos dezoito anos de idade, Aloísio ingressava no curso de Direito da Universidade
Federal de Pernambuco, profissão que nunca viria a exercer e, sobre as razões que o levaram
a escolhê-la, pronunciaria mais tarde: “quem é que não fazia direito na época? Era o primeiro
sinal de bom senso, quer dizer, bom senso de desejo de uma projeção política, intelectual”
(LEITE, 2003, p. 27).
Sua vida acadêmica foi conciliada desde o início em 1946, e até o final do curso em
1950, com as funções de cenógrafo e figurinista do Teatro do Estudante de Pernambuco -
TEP, cuja “proposta de trabalho estava sintonizada com os movimentos estudantis do Recife
que no período do Estado Novo tinham se engajado nas lutas antifascistas e em 1946
participavam intensamente do processo de redemocratização política do país”, segundo
registra em texto1 o amigo -e ex-integrante do TEP- José Laurenio de Melo. Ali também,
Aloísio respondeu temporariamente pelo Setor de Teatro de Bonecos e participou da criação
das Edições TEP, destinadas a divulgar a “produção de uma literatura dramática embebida
na realidade brasileira”.
Em janeiro do ano em que se graduaria em Direito, Aloísio ocupa seu primeiro cargo
público, como redator da Diretoria de Documentação e Cultura da Prefeitura do Recife.
Uma bolsa de estudos obtida do governo francês por indicação de seu amigo, o
diplomata Wladimir Murtinho, leva-o a Paris entre 1951 e 1953, onde cursa museologia na
1 MELO, José Laurenio de. Aloísio e o TEP. In: LEITE, João de Souza. A herança do olhar: o design de Aloisio Magalhães. Riode Janeiro: Artviva, 2003.
35
Escola do Museu do Louvre, além de freqüentar aulas de gravura no Atelier 17 com o
gravador inglês Stanley William Hayter.
Em seu retorno ao Brasil, Aloísio apresenta ao público, ainda em 1953, sua produção
como pintor através de mostras das aquarelas, guaches e óleos realizados em Paris. Expõe
em sua cidade natal e participa com duas obras da 2ª Bienal Internacional de São Paulo.
No ano seguinte integrava o grupo de intelectuais responsável pela criação, no
Recife, d’O Gráfico Amador, uma espécie de oficina-atelier dedicada a pesquisas e
realizações no campo das artes gráficas e a edições visualmente elaboradas de textos
literários. Dessa época até o final da década, Aloísio participa de várias exposições de
pinturas -individuais e coletivas- no Brasil (Recife, Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo)
e no exterior (Washington, Nova Iorque, Cincinnati, Filadélfia e São Francisco); viaja
para os Estados Unidos com bolsa de estudos concedida pelo Departamento de Estado
americano onde se aprimora na técnica de impressão offset na oficina The Falcon Press
(na Filadélfia), de propriedade do artista gráfico Eugene Feldman, com quem publicaria o
livro Doorway to Portuguese. Já no Brasil, publica os livros Aniki Bóbó -que une desenhos
seus a textos de João Cabral de Melo Neto-, Improvisação Gráfica, uma experiência
gráfica sobre textos de vários autores -ambos pelo Gráfico Amador-, e um segundo livro
em parceria com Eugene Feldman, Doorway to Brasília; leciona por duas vezes no
Philadelphia Museum College of Art, a convite do diretor, e integra a comitiva brasileira
na XXX Bienal de Veneza.
Quando ao final de 1961 O Gráfico Amador encerrava suas atividades, Aloísio já
se havia estabelecido como designer na cidade do Rio de Janeiro. Em 1960 montara com o
arquiteto Artur Lício Pontual, numa casa do bairro de Botafogo, um escritório de design -
seu primeiro passo em direção a uma atividade que desempenharia com reconhecido
brilhantismo e que tomaria como prioridade nos quinze anos seguintes. Esta iniciativa, de
bem-sucedido pioneirismo, logo se converteu em alavanca para a implantação e
desenvolvimento da profissão de designer no país. Em 1962, convidado pelo então governador
do Estado da Guanabara, Carlos Lacerda, Aloísio integrava o grupo responsável pela criação
da ESDI – Escola Superior de Desenho Industrial, a primeira instituição latino-americana de
ensino superior em design, de cujo corpo docente participaria por cerca de oito anos.
Sua intensa dedicação a esta atividade só seria relegada a um segundo plano por
volta de 1975, quando, com o interesse direcionado para questões referentes à preservação
da cultura brasileira, iniciava uma nova jornada com a criação do CNRC – Centro Nacional
de Referência Cultural. Daí por diante, Aloísio enveredaria pelos caminhos da política oficial
36
para a cultura -sobretudo em sua vertente patrimonial- trazendo consigo críticas e propostas
de reformulação à política tradicional do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
- SPHAN - que, a seu ver, negligenciava aspectos significativos da cultura brasileira.
Em sua passagem pelo serviço público federal, ao final do governo militar nas gestões
de Geisel e de Figueiredo, exerceu os cargos de diretor do IPHAN - Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (1979), presidente da Fundação Nacional Pró-Memória
(1980) e secretário de Cultura do Ministério da Educação e Cultura (1981).
No dia 13 de junho do ano de 1982 Aloísio Magalhães viria a falecer em Pádua, na
Itália, quando, na condição de representante do ministro da Educação e Cultura do Brasil -
Rubem Ludwig-, participava de um encontro de ministros da Cultura de países de língua
latina realizado na cidade de Veneza.
Assim relatada, a biografia de Aloísio pode induzir à suposição de que ruptura seja
o termo que melhor traduza sua trajetória profissional, mas este é um erro a que se pode ser
levado por uma análise pouco profunda de sua diversificada atuação. Na verdade, cada
guinada significou, sempre, uma atitude lastreada na experiência anterior, uma escolha
amadurecida e consciente, um processo de soma contínua em busca de um campo de ação
de maior alcance social. É como descreve o ex-assistente e parceiro de equipe de Aloísio,
o pesquisador João de Souza Leite:
Sempre próximo ao exercício do poder, fosse nas lides políticas ou frutodo exercício intelectual, Aloisio se formou com naturalidade. Semrupturas. Certamente isso se refletiu nas vezes em que se referia àsegurança das coisas contínuas, tema constantemente reiterado em seudiscurso de político. Para Aloisio, a preservação da continuidade, daevolução das coisas por uma contínua experimentação, computando oerro como possibilidade de correção dos rumos, era fundamental.(LEITE, 2003, p. 27)
Sob um outro prisma, mas na mesma direção, o designer e professor Joaquim Redig
de Campos (LEITE, 2003, p. 141) aponta, no curso da vida profissional de Aloísio Magalhães
(ao lado de quem se iniciou na profissão em 1966), dois momentos, que classifica como:
[...] dois grandes estágios –que poderiam ser chamados, o primeiro, deplástico, e o segundo, de político- havendo em cada estágio dois temposdefinidos: as experiências iniciais em pintura e gráfica (no Recife até1960) e o escritório de design (no Rio, de 1960 a 1975-1980)correspondem ao primeiro estágio; o Centro Nacional de ReferênciaCultural (em Brasília, de 1975 a 1977-1980) e a política cultural noMEC, ao segundo.
37
E, prosseguindo, esclarece:
Ao mesmo tempo os dois estágios -plástico e político- estão interligadosem um mesmo ciclo, já que o CNRC foi uma conseqüência do escritóriode design, na medida em que representou uma exacerbação e um novoestágio na busca da natureza do produto brasileiro. Seu trabalho plásticosempre teve um lado político, no sentido da conscientização e da açãopública, e seu trabalho político sempre teve um lado plástico, naidealização, na formalização, e na própria matéria do trabalho. Naverdade, era tudo uma só coisa, em sua visão abrangente dos fenômenosapenas as ênfases variavam, em cada momento e em cada contexto.
O que se pode observar então, em cada um desses momentos e em cada um desses
contextos da vida relativamente breve de Aloísio Magalhães, é que nenhum deles foi
explorado de forma superficial. É bem verdade que os registros que ajudam a tecer a história
desse brasileiro levam à ilusão de que seu papel como designer sobrepuja sua atuação como
homem público da política cultural, e que um e outro, combinados ou isoladamente, ofuscam
seu ofício de artista plástico. Acredito, porém, que um olhar de maior amplitude -e se possível
despojado da habitual (e até mesmo compreensível) objeção aos privilégios das classes
dominantes- lançado sobre os vários fazeres de Aloísio revelará sempre a seriedade e
competência com que ele se dedicou a cada uma dessas empreitadas, ao mesmo tempo que
fará transparecer aquele fio de coerência que as alinhavou.
E é bom lembrar, os privilégios de que teria usufruído, reconheceu-os Aloísio em
mais de uma oportunidade, quando exortava seus pares a retribuir ao país (ou ao mundo,
como em seu derradeiro discurso no encontro de ministros da Cultura) as conquistas e
experiências pessoais obtidas por conta desse e outros tipos de benefícios. E como
privilegiados entendia todos os que
não morremos na primeira infância. [...] [E que] tivemos acesso à escola,não fomos discriminados e mantidos na ignorância e no desconhecimentoe na tristeza. Tivemos a nossa alfabetização garantida. E mais ainda: onosso privilégio vai ter acesso ao conhecimento de nível superior, àsuniversidades, a um conhecimento específico, a escolhas, a opções emque a nossa personalidade pôde encontrar pouso e auxílio. E ainda mais.O nosso privilégio vai ainda muito adiante. Viajamos para o estrangeiro,conhecemos o mundo, temos acesso a outras culturas, informaçõesenriquecedoras no cotejo dialético entre formas e preferências deculturas diversas. Podemos voltar aos nossos países com o privilégioimenso de termos visto outros países, como eles operam, como elesresolvem seus problemas, como enriqueceram, eventualmente comoadensaram a sua cultura. (LEITE, 2003, p. 262-263)
38
Seria o caso de proceder, então, ao estudo em separado do desempenho de Aloísio
em cada uma dessas experiências, com o propósito de relacioná-las umas às outras, e todas,
tanto quanto possível, ao cartema, o objeto desta pesquisa.
Por razões puramente metodológicas, recorrerei aqui a uma inversão da cronologia,
iniciando pela carreira pública -a que aparentemente menos se aproxima dos cartemas-,
para abordar em seguida a pintura e o design de Aloísio Magalhães.
39
3.1. ALOÍSIO, POLÍTICO
Um ponto de convergência nas descrições que fazem os contemporâneos de Aloísio
Magalhães sobre suas qualidades de “homem público” ressalta a habilidade, pertinácia e
competência com que eram habitualmente conduzidos e implementados suas idéias e projetos.
Estes predicados, aliados ao trânsito que seguramente as relações familiares e sociais facilitaram
e ao acurado senso de oportunidade (e de responsabilidade), certamente explicam sua rápida
ascensão na esfera da política governamental brasileira para a cultura, no período compreendido
entre os anos de 1975 e 1982. Poder-se-ia somar a isso ainda -se colhidas e acolhidas algumas
impressões de pessoas próximas ou parceiras de equipe- um reconhecido carisma, um grande
poder aglutinador, uma segura e suave liderança, ou mesmo a particular aptidão em traduzir
idéias em palavras e palavras em ação. Mas estes são, em boa parte, depoimentos emocionados;
e, como declarações póstumas, talvez devam ser considerados com reservas.
Divagando um pouco, acrescentarei ao texto algumas linhas com o relato de uma
ocorrência insólita.
Num sonho recente, apareceu-me Aloísio Magalhães; falava-me então de seu projeto
interrompido rumo à presidência da república (!?). Não raro os sonhos carregam absurdos,
e não raro os absurdos aparentes revelam sentidos plausíveis. Aloísio, que desde os
primórdios de sua vida estivera cercado de políticos (alguns poderosos) estaria
procedendo agora, na maturidade, a um retorno aos registros da infância? Buscava
fechar o círculo, cumprindo uma missão para a qual fora predestinado?... Tais eram,
em sonho, meus pensamentos. Ao despertar, ocorriam-me à lembrança fragmentos de seu
derradeiro discurso no encontro de ministros de Cultura dos países de língua latina, em
Veneza, horas antes de sua morte, quando parecia tomar para si responsabilidades próprias
de um governante firmemente comprometido com a construção da identidade de sua nação.
Também me vinha à memória uma declaração dada por ele em mais de uma ocasião, quando,
já inserido no meio político e completamente dedicado à causa do patrimônio cultural
brasileiro, prognosticava: “Agora não há mais tensão, porque não há outra possibilidade.
Esta é a minha experiência por toda a vida adiante”.
Mas isso aconteceu num sonho, e sonhos carregam absurdos; se prováveis ou
improváveis, melhor será deixar que os registros da história, de um período ainda recente,
orientem as conclusões.
(...)
40
O processo de “abertura política” empreendido no regime militar pelo presidente
Ernesto Geisel (1974-1978) passava pela revisão, entre outras, das relações entre o estado
e a cultura; em 1975 era lançada pelo governo federal a Política Nacional de Cultura -
PNC-, que destinou significativo montante de recursos para os setores culturais do MEC,
então sob o comando de Ney Braga, um ex-governador do Paraná que “marcou sua gestão
à testa do executivo paranaense por inúmeras iniciativas na área cultural (Fundação
Educacional do Paraná, Teatro Guaíra, Companhia Oficial de Teatro).” (MICELI, 1984, p.
65).
Miceli (1984, p. 65) assinala que:
O simples fato de o governo Geisel ter escolhido para ministro daEducação e Cultura um militar reformado cuja carreira política seconsolidara através de sucessivas vitórias eleitorais e que se beneficiavaainda da imagem de prócer simpático ao patrocínio das artes evidenciao cálculo de lograr dividendos em função do apoio concedido aos meiosintelectuais e artísticos. Somente um ministro forte teria condições paraassegurar o montante de recursos necessário ao trabalho de “construçãoinst i tuc ional ” nas d imensões aprec iáve is em que acabou sedesenvolvendo, ou então, para guindar aos postos executivos deconfiança nas instituições culturais porta-vozes legítimos da “classeintelectual e artística”, sobejamente à esquerda dos administradoresculturais típicos até então recrutados pelo regime de 64.
Na condição de designer, Aloísio Magalhães já havia se aproximado dos círculos
governamentais em 1966, quando, ao vencer um concurso promovido pelo Banco Central
para reformulação visual do padrão monetário brasileiro, foi contratado como consultor
desta instituição e da Casa da Moeda do Brasil. Agora, em virtude deste quadro que estreitou
as relações do governo militar com intelectuais e artistas, abria-se para ele a oportunidade
decisiva de atuação no campo da política oficial de cultura, com a criação do Centro Nacional
de Referência Cultural, o CNRC, um
grupo de trabalho criado no âmbito do Ministério da Indústria e doComércio, em 1975, em convênio com o Governo do Distrito Federal,em espaço cedido pela Universidade de Brasília. O objetivo maior destegrupo, composto por pessoas de formação diversa, como físicos,matemáticos, literatos e arquitetos, entre outras, era levantar questõesreferentes não só ao processo de desenvolvimento econômico comotambém à preservação dos valores da nossa formação cultural, passandopelo papel do desenho industrial na definição de uma fisionomia dosprodutos brasileiros. Os resultados alcançados pelo trabalho no primeiroano do projeto levaram à adesão da Secretaria de Planejamento daPresidência da República, do Ministério da Educação e Cultura, do
41
Ministério do Interior, do Ministério das Relações Exteriores, da CaixaEconômica Federal, além do Ministério da Indústria e do Comércio,Universidade de Brasília e Governo do Distrito Federal (através desua Fundação Cultural).Chama a atenção, neste caso, a rapidez com que se conseguiu reunirtantas áreas governamentais em torno de um só projeto, evidenciandoa capacidade política de Aloísio Magalhães em ‘saber vender o seupeixe’ e saber agregar. (BOTELHO, 2000, p.94)
Até o momento em que Aloísio ingressara efetivamente nos organismos oficiais
voltados para a identificação e defesa dos bens culturais brasileiros, eram dois os nomes de
maior expressão associados diretamente a essa questão no país: Mário de Andrade e Rodrigo
Melo Franco de Andrade.
Ao primeiro coube uma ação pioneira quando, juntamente com alguns integrantes
do movimento modernista, empreendeu viagens pelo país nos anos 1920 -a que eles
próprios chamaram “redescoberta” do Brasil-, em busca de identificar os elementos
culturais genuinamente brasileiros capazes de conduzir, conforme pretendiam, à produção
de uma autêntica arte nacional. Destas ações resultou que, em 1936, Mário de Andrade
fosse convidado a elaborar, com a ajuda de Paulo Duarte2 , um anteprojeto para criação
de um organismo federal de proteção ao patrimônio cultural nacional. No ano seguinte, já
sob o Estado Novo, um decreto presidencial fundado nas proposições de Mário de
Andrade dava origem ao Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional3 – SPHAN,
subordinado ao Ministério da Educação e Saúde então comandado pelo ministro Gustavo
Capanema.
Rodrigo Melo Franco de Andrade, por sua vez, foi o intelectual designado por
Capanema para exercer o cargo de diretor do SPHAN, aí permanecendo desde 1937 até
1969 - ano de sua morte-, quando então a instituição passou a ser dirigida pelo arquiteto
Renato Soeiro, um arquiteto integrante da equipe de Rodrigo desde 1938. Por cerca de
dez anos Soeiro permaneceu à frente do IPHAN, numa administração cuja orientação
assemelhava-se à de seu antecessor, porém “desamparada, frente à prepotência de
autoritarismo e do falso milagre econômico, aos gastos e desmandos da EMBRATUR e de
2 Paulo Alfeu Junqueira Monteiro Duarte (1889-1984). Advogado, jornalista, memorialista, ensaísta e tradutor. Fundador em1935, também com Mário de Andrade, do Departamento Cultural da cidade de São Paulo. Exerceu função política, foi professor,dirigiu diversos jornais e revistas.
3 “A instituição veio a ser posteriormente Departamento, Instituto, Secretaria e, de novo, Instituto do Patrimônio Histórico eArtístico Nacional (IPHAN), como se chama atualmente”. Conforme registrado na página da internet (http://www.cpdoc.fgv.br/nav_historia/htm/anos37-45/ev_ecp_sphan.htm). Acesso em 11/02/2004.
42
outras estatais, aliadas à cobiça imobiliária sem limites, e à especulação financeira, já sem
a máscara do desenvolvimentismo dos anos 50 e 60” (CAMPOFIORITO, 1985, p. 37).
Em 27 de março de 1979, nomeado pelo ministro Eduardo Portella4 , da Educação e
Cultura do governo João Figueiredo, Aloísio Magalhães substituía Renato Soeiro no
comando daquela instituição.
A inserção efetiva de Aloísio nos círculos da política cultural governamental dera-
se, como já dito, a partir da implantação do Centro Nacional de Referência Cultural. O
processo de idealização do CNRC aproximou Aloísio do ministro da Indústria e Comércio,
Severo Gomes -um entusiasta do projeto-, e também do ministro Golbery do Couto e Silva
que, a seguir, tanto daria apoio à implantação do projeto quanto influiria na indicação de
seu nome para a direção do IPHAN5 . Aí, seja por conta de sua concepção mais abrangente
dos aspectos que definem a cultura nacional, seja por sua capacidade de sistematizar e
operacionalizar institucionalmente seus projetos, a presença de Aloísio assinala uma nova
era na história da instituição. Se até aquele momento a política conduzida pelo SPHAN para
preservação do patrimônio histórico e artístico refletia uma noção elitista de patrimônio
cultural -que identificava no barroco colonial, sobretudo o de Minas Gerais, a expressão
da cultura nacional-, com Aloísio essa noção se modifica no sentido de contemplar a
diversidade e a complexidade que caracterizariam, em sua opinião, o patrimônio cultural do
Brasil.
O que Aloísio fazia era retomar, em novas bases, o caminho indicado por Mário de
Andrade no projeto formulado em 1936, onde a idéia de patrimônio cultural “estava muito
mais próxima de uma concepção democrática e pluralista do que a que veio a inspirar a
política implementada por Rodrigo” (GONÇALVES, 2002, p.71) e continuada por Ricardo
Soeiro ao longo de sua gestão no IPHAN. O fato de discordar da orientação doutrinária de
seus antecessores, no entanto, não impedia Aloísio de reconhecer que
o período de Rodrigo M. F. de Andrade à frente do Sphan foifundamental para a consolidação de políticas públicas referentes aopatrimônio no Brasil, mas o desafio será estabelecer uma políticade preservação “democratizada, no sentido de que seja efetivamente
4 Eduardo Portella é citado por Isaura Botelho (p. 103) como amigo e contemporâneo de faculdade de Aloísio, no Recife. Suaindicação para a pasta da Educação e Cultura do governo Figueiredo, segundo Sérgio Miceli (p. 67), é atribuída ao escritor eteatrólogo Guilherme Figueiredo, irmão do presidente.
5 Cf. MICELI, Sergio. O processo de “construção institucional” na área cultural federal (anos 70). In: ___. Estado e Cultura doBrasil. São Paulo: Difel, 1984 (p. 67).
43
apropriada, enquanto produção simbólica e enquanto prática política,pelos diferentes grupos que integram a sociedade brasileira.” 6 (BO,2003, p. 29)
Assim, não obstante as divergências conceituais e pragmáticas, “Aloísio trouxe para
dentro daquela instituição a sua visão de que o conhecimento crítico do passado seria
fundamental para qualquer ação duradoura no futuro.” (BOTELHO, 2000, p. 95)
Pródigo no uso de metáforas, Aloísio ilustrava essa sua visão quanto à importância
do passado na afirmação da identidade cultural de uma nação com a imagem do bodoque
(ou do estilingue), lembrando que quanto mais atrás se leva a corda (ou o elástico), mais à
frente vai o projétil.7
O problema da identidade esteve presente no discurso de Aloísio, como também
estivera, sempre, no de Rodrigo Melo Franco de Andrade. Cada um a seu tempo, ambos
tomaram para si a tarefa de colaborar para a construção da identidade da nacional e,
A despeito de suas diferenças, tanto na narrativa de Rodrigo quantona de Aloísio a identidade nacional brasileira é considerada como algoque está ainda por ser realizado. Em ambas as narrativas a nação éobjetificada como uma “busca” pela identidade. Como toda busca,pressupõe um “centro”: uma entidade unificada, auto-idêntica e queautoriza ou legit ima aquela busca. A nação, enquanto entidadeobjetificada - ou como um “centro” -, existe mesmo na medida em queé buscada. Esse centro, no entanto, é instável, uma vez que escapacontinuamente dessa busca obsessiva. Na narrativa de Rodrigo, essecentro é a “ t rad ição” e a “c iv i l ização” ; na de Aloís io é a“heterogeneidade cultural” da nação e o seu “desenvolvimento”. Emsuas narrativas, tanto Rodrigo quanto Aloísio aparecem plenamenteidentif icados com essa busca por uma identidade nacional. Dediferentes maneiras, suas personalidades públicas são modeladas porsua profunda dedicação à causa do patrimônio. (GONÇALVES, 2002,p. 58)
A inevitabilidade de comparações entre as administrações de Rodrigo e Aloísio no
IPHAN -bastante freqüentes- pode ser explicada, em parte, pelo fato de que numa existência
de aproximados quarenta e três anos, a instituição só tenha sido dirigida por três diferentes
6 Citando FONSECA, Maria Cecília Londres da. O patrimônio em processo: trajetória da política de preservação no Brasil. Riode Janeiro: Ed. UFRJ, 1977, p. 261.
7 Noutras situações, recorreria à figura do cristal, para dar suporte à asserção de que nada há de novo no processo de formação deuma cultura: “o novo é apenas uma forma revista do passado. O novo é um ângulo de um cristal que pode ser visto através daincidência de uma nova luz. Mas o cristal é o mesmo. As faces são as mesmas e o conteúdo que ele espelha é o mesmo.” (LEITE,2003, p. 245)
44
titulares. Por conta dessa particularidade, a historiografia oficial do Patrimônio registra as
três administrações como três períodos distintos: o primeiro, a fase “heróica”, correspondente
à gestão de Rodrigo M. F. de Andrade (1937 a 1969) e caracterizada pelo trabalho de
construção e consolidação institucionais; o segundo, o período Soeiro (1969 a 1979), que
não foi marcado por qualquer alteração significativa da política do patrimônio, ou, pior que
isso, uma “fase de declínio” segundo Campofiorito (1985, p. 32); e o terceiro período,
inaugurado por Aloísio Magalhães, assinalado como uma fase de profundas mudanças de
orientação conceitual – com a introdução do conceito de “bens culturais” 8 em substituição
à idéia então corrente de “patrimônio histórico e artístico”- e, por desdobramento, de
alteração de política e estrutura institucionais.
Uma simplificação dessa mudança doutrinária é apresentada por Joaquim Falcão
(1984, p.46-47) quando, alertando para o fato de que “uma política pública [para a cultura]
é a opção por uma determinada ideologia cultural”, escreve sobre a experiência brasileira
recente na área da preservação patrimonial:
Até o final da década de setenta [...] a questão da preservação dopatrimônio histórico nacional estava reduzida à atuação solitária de umaúnica instituição federal, o IPHAN. [...] Estava reduzida à preservaçãoarquitetônica dos monumentos de pedra e cal da elite brasileira, comestreita vinculação com a religião católica. Isto no que diz respeito aosbens tombados individualmente. [...]No final dos anos setenta, ampliamos o conceito de patrimônio cultural,através do conceito de bem cultural. Admitimos o pluralismo ideológicona determinação das políticas de preservação. Logo incorporaram-sena preservação da cultura nacional os bens culturais de outras etnias,de outras religiões, de outras classes sociais e de todas as regiões dopaís. Pela primeira vez foi tombada uma região como a de Canudos,cuja marca patrimonial fundamental é o fato de ter abrigado umimportante movimento político-popular. Como pela primeira vez foitombado um território de candomblé [o Terreiro da Casa Branca, emSalvador], ampliando étnica, religiosa e arquitetonicamente a políticade preservação.
Quanto ao redesenho da estrutura governamental para o trato das questões culturais
esta resultou, num primeiro momento, da necessidade de institucionalização do CNRC;
aceitas as propostas de reformulação da política patrimonial defendidas pela equipe de
Aloísio, o CNRC foi incorporado, juntamente com o PCH (Programa de Cidades Históricas,
8 Sobre a abrangência do conceito de bens culturais proposto por Aloísio, cf. MAGALHÃES, Aloísio. Bens culturais: instru-mento para um desenvolvimento harmonioso. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico, Rio de Janeiro, n. 20, 1984.
45
da Secretaria de Planejamento da Presidência da República), ao IPHAN em 1979. Por fim,
com o apoio conquistado junto ao Executivo, à elite política e cultural e a representantes
do grupo pioneiro do SPHAN -conjunto a que Miceli (1984, p. 82-83) denomina “tríplice
aliança”9 - a “idéia da fusão se concretizou no projeto de transformação do referido instituto
em secretaria e, concomitantemente, na criação da Fundação Nacional Pró-Memória -
FNPM, respectivamente em 13 e 26 de novembro daquele mesmo ano” (BOTELHO, 2000,
p. 95).
Em janeiro de 1980, aprovados os estatutos da Fundação Nacional Pró-Memória
pelo presidente João Figueiredo, Aloísio Magalhães foi nomeado também para a
presidência da Fundação, mas o exercício dessa dupla função seria temporário; em
dezembro do mesmo ano o ministro Rubem Ludwig, da Educação e Cultura, entregou-lhe
o comando da Secretaria de Assuntos Culturais - SEAC, com o objetivo de que fosse
promovida a fusão desta com a SPHAN, que ele já dirigia. Desta fusão, ocorrida em abril
de 1981, resultou a Secretaria de Cultura - SEC, uma supersecretaria subordinada
diretamente ao ministro e composta de duas subsecretarias: a do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (SPHAN) e a de Assuntos Culturais (SEAC). Até a data de seu
falecimento, em junho de 1982, Aloísio exerceu o cargo de secretário de Cultura (do
MEC), cercado de especulações quanto à perspectiva de criação de um Ministério da
Cultura -possibilidade que ele achava prematura, mas que não descartava- e a possível
indicação de seu nome para a pasta.
Há que se ressaltar, no entanto, uma particularidade que perpassou a política cultural
levada a efeito por Aloísio Magalhães ao longo desse trajeto, que se traduz na nítida opção
pela vertente patrimonial, em detrimento de toda produção artística da época que não
refletisse o “fazer das comunidades”. Inclusive na Secretaria de Cultura,
[...] a política de Aloísio Magalhães relegou o desafio da produçãoart ís t ica a um espaço secundár io. A questão patr imonia l fo iassumidamente mais elaborada por ele, em que pese a sua trajetóriade art ista plástico e designer. A questão da produção culturalcontemporânea e os inúmeros problemas que vão se associando à cadeia‘produção, circulação e consumo’ pouca atenção tiveram em suasinúmeras intervenções ou entrevistas. Embora ele, por princípio ouformação (ou ambos), devesse não ter os preconceitos detectados nagestão anterior em relação às artes, esse silêncio torna-se indicadorde algo mais.
9 A configuração da “tríplice aliança” institucional envolvia, entre outros: os ministros Golbery do Couto e Silva e EduardoPortella, pela Presidência da República; como representante da elite intelectual e política, Afonso Arinos de Melo Franco; e oarquiteto Lúcio Costa, do grupo original do Sphan.
46
A escolha do universo do sócio-cultural como prioridade amplia seusignificado se extrapolarmos o universo especificamente cultural econsiderarmos a conjuntura política do período. (BOTELHO, 2000, p.107)
De fato, essa opção consistia, antes de uma peculiaridade administrativa, numa diretriz
dos dois últimos governos militares que apostavam nas ações culturais voltadas para as
“populações menos favorecidas” e “regiões carentes”, como meio de salvaguardar sua
doutrina e ideologia quando da devolução do poder aos civis. Some-se ainda a isso, a
confluência de interesses dessa política governamental com as recomendações expressas
nos diversos encontros realizados pela UNESCO -como a Conferência de Bogotá em 1978-,
que preconizavam ser a dimensão cultural -ao lado dos aspectos econômicos- fator
imprescindível para a consolidação do desenvolvimento das nações. Aliás, colocar em dúvida
a consistência de um processo de desenvolvimento conduzido tão-somente por parâmetros
econômicos era um aspecto recorrente no discurso de Aloísio. Da mesma forma com que
ele buscara legitimar suas críticas à política do IPHAN recorrendo ao projeto original de
Mário de Andrade, agora parecia autenticar a implementação de sua política cultural, com
rigorosa consonância com as recomendações da UNESCO. Porém, mais do que uma estratégia
de ação bem articulada num regime ainda autoritário, há que se reconhecer em Aloísio uma
clara identificação com as manifestações e produções culturais populares, revelada já nos
tempos do Teatro do Estudante de Pernambuco. Daí, que não seria absurdo supor uma
correlação entre as conseqüências dessa sua “predileção” pela arte e cultura populares no
comando da política cultural e uma possível re(tali)ação corporativa dos artistas da época,
traduzida pela (suposta) recusa de reconhecimento a Aloísio Magalhães como pintor.
47
3.2. ALOÍSIO, PINTOR
Parece haver, por parte da crítica especializada em arte e mesmo de alguns artistas,
certa resistência em incluir Aloísio Magalhães no rol dos artistas pintores brasileiros. Antes
uma sensação que uma hipótese, essa impressão torna-se mais acentuada quanto mais nos
aprofundamos nas pesquisas dos registros da passagem de Aloísio pelo campo da produção
artística nacional. Daí que chega a surpreender, por exemplo, a segurança na afirmação que
faz Sérgio Miceli ao discorrer (mesmo que sucintamente) sobre o início da trajetória
profissional de Aloísio; escreve ele: “Tendo firmado primeiro sua reputação como artista
plástico, Aloísio Magalhães consegue se profissionalizar através de um escritório de desenho
industrial no Rio de Janeiro, onde também participa ativamente da fundação da ESDI* .”
(1984, p. 81, grifo meu).
Em contraste com essa afirmação, encontraremos na publicação Arte no Brasil10
(v. 2, p. 947) não mais que quatro linhas de texto de uma magra coluna, em referência à
produção artística de Aloísio; e isso num capítulo dedicado à comunicação visual no Brasil,
essa atividade tão reconhecidamente associada ao nome de Aloísio Magalhães. Ali, como
por mal dissimulada concessão, Aloísio é mencionado como “o designer das cédulas de
Cruzeiro (...) que projetou marcas e diagramou livros”, em flagrante conflito de informação
com o respectivo verbete, ao final da mesma publicação, no qual se lê: “Pintor , artista
gráfico e desenhista industrial, é considerado pioneiro no campo da comunicação visual
no Brasil” (v. 2, p. 1050, grifo meu).
Tomo essas duas citações como demarcadoras do terreno de contradições em que
se coloca o problema do reconhecimento de valor reservado a Aloísio Magalhães. De um
lado, o texto de um cientista social de assegurada competência; de outro, o registro
presumidamente abalizado de críticos de arte bem conceituados. Entre ambos, depoimentos
contraditórios, matérias jornalísticas elogiosas, um número expressivo de exposições
realizadas individual e coletivamente, aquisições relevantes...
Ainda que consideremos o fato de que ninguém é uma unanimidade, quando aplicada
ao caso de Aloísio, pintor, essa regra parece adquirir uma peculiar magnitude.
A incursão de Aloísio Magalhães pelo território da pintura acontece na virada da
década de 1940, no Recife. Nesta cidade, na Rua da Aurora, ele exercitava sua autodidaxia
* Escola Superior de Desenho Industrial, vinculada à atual Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
10 LEITE et alii, José Roberto Teixeira. Arte no Brasil, 2 v., São Paulo: Abril Cultural, 1979.
48
num atelier (fig. 11) partilhado com o pintor Reynaldo Fonseca, também pernambucano e
co-fundador da Sociedade de Arte Moderna do Recife.
Criada em 1948, esta entidade favoreceu o surgimento, quatro anos depois e na
mesma capital, do Ateliê Coletivo,
um espaço aberto à realização de cursos de desenho, pintura e esculturavoltados ao aperfeiçoamento técnico dos artistas. [...] Em oposição aouniverso acadêmico, os integrantes do Ateliê buscavam a valorizaçãode uma expressão brasileira na arte, defendiam a democratização doensino artístico e a integração entre o trabalho do artista e a culturapopular. [Identificavam-se com o] Realismo Social cujas influênciasse f izeram sentir na escolha de temáticas que privi legiavam arepresentação de camponeses, retirantes e trabalhadores.11
Da data da criação até o ano de
1957, em que foi dissolvido, o Ateliê
Coletivo contou com a colaboração de
importantes nomes das artes plásticas
brasileiras. Freqüentaram-no, entre outros,
os artistas Abelardo da Hora, Gilvan Samico,
Reynaldo Fonseca, Ionaldo Cavalcanti,
Wellington Virgolino, João Câmara e José
Cláudio. Pintor, gravador, escultor, crítico de
arte e escritor, José Cláudio ingressou no Ateliê Coletivo da Sociedade de Arte Moderna
do Recife após interromper o curso de direito na Universidade Federal de Pernambuco,
iniciado por volta de 1952. É de autoria dele um trabalho literário preparado em 1983, cujo
objeto de interesse é a produção artística de Aloísio Magalhães.
Dois fragmentos desse texto foram publicados recentemente no livro A Herança do
olhar: o design de Aloísio Magalhães12 -organizado por João de Souza Leite, designer,
professor e ex-parceiro de equipe de Aloísio- sob os títulos História do pintor Aloísio
Magalhães (pp. 38 a 45) e O Atelier 415 (pp. 46-47). Já no parágrafo inicial do primeiro
deles, o autor dá indícios que confirmam, em certo grau, a premissa lançada na abertura
deste subcapítulo:
Fig. 11 - Aloísio em seu atelier na Rua da Aurora, 415
11 Ateliê Coletivo. Verbete disponível em: <http://www.itaucultural.org.br/aplicExternas/enciclopedia/artesvisuais2003/index.cfm?fuseaction=Detalhe&cd_verbete=4>; acesso em 15 de março de 2004.
12 LEITE, João de Souza (org.). A Herança do olhar: o design de Aloísio Magalhães. Rio de Janeiro: Artviva Produção Cultural,2003.
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Em primeiro lugar é preciso resgatar o Aloisio pintor antes quese generalize ainda mais a concepção errada de que não o era,deixou de ser, ou isso era coisa de pouca importância na sua vida –quando de fato o ser pintor era nele a espinha dorsal e até, aumentandoa imagem se quisermos, os pés e as mãos, o coração e a cabeça. (p.38, grifo meu)
E continua, ainda na página 38:
Nenhuma atuação dele esteve afastada dessa sua qualidade primordial,embora a exercida em outros campos, na aparência, lhe tenha granjeadomais fama ou poder, luxo exterior de repercussão: era o pintor, o quetrabalha com as mãos, o designer também, que movia a outra ponta donervo que termina no cérebro.
Mas, sabe-se, só é passível de resgate aquilo que tendo possuído (e possuindo)
algum significado ou valor, encontra-se em vias de esquecimento ou desaparecimento, quando
não em ocultação propositada. No caso do pintor Aloísio, no entanto, qualquer dessas
alternativas remete o problema novamente ao seu ponto de partida: o do sentido de valor.
Mas que aspectos sustentam os indicadores de valor para uma obra de arte -e
conseqüentemente para seu criador- num determinado contexto social?
Ainda que não me pareça haver respostas plenamente satisfatórias para esta
indagação, entendo que uma referência aceitável -por ser mesmo bastante usual- seria a
que resulta da conjunção de fatores como: receptividade pública, número (e destino) de
aquisições e participação do artista em mostras individuais e coletivas. Uma outra
alternativa possível consideraria, por exemplo, a contribuição pessoal do artista ao
desenvolvimento da arte, através de sua dedicação a pesquisas de forma, linguagem etc.
Uma terceira, ainda, poderia levar em conta o papel e a influência do artista e sua obra na
configuração e preservação da cultura de uma determinada comunidade. E vários outros
critérios seriam ainda concebíveis, mas seguramente bem poucos artistas, pintores ou não,
seriam tão exemplares e completos a ponto de satisfazê-los todos. Aloísio com certeza
não estaria entre estes, mas não teria ficado tão distante que sua contribuição para a arte
brasileira fosse considerada irrelevante.
De fato, desde que iniciara sua jornada de pintor no atelier da Rua da Aurora até o
fim da vida, Aloísio jamais abandonou inteiramente a pintura e, mesmo no ano de seu
falecimento, ao preparar-se para a defesa da inclusão da cidade de Olinda (Pernambuco)
na Lista do Patrimônio Mundial da UNESCO, produziu uma série de litografias em preto e
50
branco documentando visualmente a cidade. Durante esse tempo -quase sempre conciliado
com outros fazeres- Aloísio logrou conquistar espaço e reconhecimento no campo das artes
visuais (sobretudo nos anos mais remotos, de dedicação mais intensa à atividade), e as
diversas exposições de sua obra, no Brasil e no exterior, testemunham essa realidade.
Começando por expor no 4º Salão de Arte Moderna do Recife, em 1949, as mostras
de seus trabalhos -óleos, desenhos, gravuras, aquarelas- se sucederiam:
- no Departamento de Educação e Cultura / Recife-PE (1953 - Individual);
- no Museu de Arte Moderna / São Paulo (1954 - Paisagens de Pernambuco -
Individual);
- no Museu de Arte Moderna / São Paulo (1956 - Individual);
- na Pan American Union / Washington (1956 - EUA - Individual);
- na Roland de Aenlle Gallery / Nova York (1957 - EUA - Individual);
- no Museu de Arte Moderna / Rio de Janeiro (1958 - Pintura e arte gráfica -
Individual);
- na Galeria Oxumaré / Salvador-BA (1958 - Individual);
- na Roland de Aenlle Gallery / Nova York (1959 - EUA - Individual);
- no The Print Club of Philadelphia / Filadélfia (1959 - EUA - Individual);
- na Petite Galerie / Rio de Janeiro (1961 - Individual);
- na Galeria Lotus / Recife-PE (1973 - Aquarelas e litografias - Individual);
- no Ministério da Educação e Cultura / Rio de Janeiro (1974 - Individual) e
- no Museu de Arte Moderna / São Paulo (1974 - Individual).
Em mostras coletivas, seus trabalhos estiveram presentes nas Bienais Internacionais
de São Paulo dos anos de 1953 (2ª), 1955 (3ª), 1959 (5ª) e 1961 (6ª), realizadas no
Museu de Arte Moderna /SP, e mais:
- no Salão do Estado de Pernambuco (1954 - Recife/PE);
- no 4º Salão Nacional de Arte Moderna (1955 - Rio de Janeiro/RJ);
- nos 50 Anos da Paisagem Brasileira (1956 - Museu de Arte Moderna - São
Paulo/SP);
- na 5ª Bienal Internacional de Litografia Contemporânea em Cor (1958 -
Cincinnati Art Museum – Cincinnati/EUA);
- na Recent Acquisitions of the Collection (1958 - MoMA - Nova York/EUA);
- na Arte Moderna Brasileira na Europa (1959 - Munique/Alemanha);
- na 30ª Bienal de Veneza (1960 - Veneza/Itália);
51
- na Arte Contemporânea Brasileira (1962 - Walker Art Center - Minneapolis/EUA);
- no 29º Salão Paranaense (1972 - Teatro Guaíra - Curitiba/PR);
- na Arte/Brasil/Hoje: 50 anos depois (1972 - Galeria da Collectio - São Paulo/SP);
- no 6º Panorama da Arte Atual Brasileira (1974 - Museu de Arte Moderna - São
Paulo/SP);
- no Salão do Estado de Pernambuco (1974 - Recife/PE) e
- n’O Desenho Jovem dos Anos 40 (1976 - PESP - São Paulo/SP).
A este elenco de exposições somar-se-iam ainda aquelas relacionadas estritamente
à produção em design e artes gráficas, bem como as mostras exclusivas de cartemas, o que
não é pouco, se considerado o fato de que esse interstício de cerca de 25 anos de trabalho
não foi dedicado exclusivamente à produção de quadros. Ademais, Aloísio não pintava
para seu próprio deleite, ou para formar acervo; suas obras foram adquiridas, quer seja
por particulares ou por organizações, no Brasil e no exterior, e, a menos que se suponha
que seu prestígio pessoal tivesse tamanha influência e alcance, isso denota o valor de sua
arte. Um valor que transparece, também, nos comentários e registros de alguns reconhecidos
intelectuais contemporâneos do artista.
Do acadêmico Antonio Houaiss -filólogo, lexicógrafo e ensaísta- ouviríamos:
Creio que no Brasil, ele, melhor que ninguém, deu à noção de "gráfico"a amplitude que através dos tempos lhe vem sendo atribuída.[...]Essa província gráfica da personalidade de Aloísio Magalhães nãoera o germe, senão que uma das outras faces do seu ser: a da pintura,lato sensu. Pois que, em verdade, ele foi também sempre pintor. Nessecampo, a inventividade de Aloísio teria sido ilimitada, já que seassenhoreava com extrema facilidade de diferentes técnicas, achando-as até, pois que na sua pintura há sempre o "gráfico" a que acima nosreferimos. (FUNARTE, 1982)
Walter Zanini, em sua História Geral da Arte no Brasil, situa-o no rol dos pintores
brasileiros que “se empenharam no Informalismo, seja como dedicação temporária ou como
sistemática definitiva” (Zanini, 1983, p. 697). Sobre a obra pictórica de Aloísio, Roberto
Pontual assinala que, “voltada para o mundo do possível, e não para o mundo do real, essa
pintura buscava manter-se no ponto de equilíbrio entre lirismo e construção, emotividade e
exercício racional, gesto e disciplina"13.
13 Apud. Enciclopédia Artes Visuais. Disponível em: <http://www.itaucultural.org.br/index.cfm?cd_pagina=1997&busca=Aloisiomagalhães&procura=Procurar&cd_tipo_materia=31519>. Acesso em 20.05.2004.
52
O escritor e dramaturgo Ariano Suassuna, em texto no catálogo da exposição
realizada em 1958 no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (Aloísio Magalhães:
Pintura e Arte Gráfica), ao confrontar sua opinião de que “a arte deve manter uma
comunicação de natureza profunda com o real” com a opção de Aloísio pelo abstracionismo,
ouviria deste:
[...] admito, ao lado desta e mais conforme com minhas tendências,uma outra arte, que não se contenta em transfigurar a realidade. Umaarte que deseja cr iar, com mais l iberdade, sem se preocupardemasiadamente com o que existe. Talvez a natureza forneça mesmocertos elementos a esta arte. Mas o artista lança mão deles de maneiramais desembaraçada, ajunta-lhe outros e atinge, desse modo, umnúmero menos limitado e mais fascinante de combinações e invenções.(LEITE, 2003, p. 54)
Outro, é o crítico e historiador da arte Clarival do Prado Valladares, que vislumbra
na raiz da obra pictórica não-figurativa de Aloísio Magalhães, influências das paisagens
natural e urbana do Recife: o casario e os reflexos de objetos e do ambiente nas águas do
rio Capibaribe. Realmente, a imagem refletida marca boa parte da pintura abstrata de Aloísio.
Ostensivamente ou não, os quadros se organizam espacialmente ora segundo um eixo
horizontal (fig. 12), ora a partir de eixos ortogonais horizontal e vertical, como na obra Sem
Título (óleo sobre madeira), mostrada na figura 13 (página seguinte).
o eixo
horizontal
Fig. 12 - A imagem �refletida� segundo um eixo horizontal (Sem título. Offset manual sobre papel)
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
53
Uma outra característica também
perceptível e recorrente em seus quadros
vem do sentido de fracionamento estrutural
(influência do cubismo?), expresso na
partição do espaço pictorial em fragmentos
predominantemente retangulares e de
relativa autonomia quanto ao tratamento
plástico (fig. 14).
Não raro, essas particularidades se
conjugam numa mesma obra. Também não
raro formas figurativas parecem emergir de
sua pintura abstrata -como no caso da figura
15- pondo em curso aquele “ jogo de
cumplicidade”, que diz ao observador: - Eu
estou aí, mas só existo porque você me
quer ver. E a ambigüidade que daí se extrai,
revelava-se igualmente noutro trecho do
aludido debate com Suassuna, quando o
art ista, dist inguindo-se dos pintores
figurativistas, ponderava:
o eixovertical
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
Fig. 13 - A divisão da superfície em �quadrantes� e a �reflexão� insinuada
o eixo
horizontal○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○○ ○ ○ ○ ○ ○
Fig. 14 - O fracionamento como recurso plástico
Fig. 15 - O abstrato encontra o figurativo
54
[. . . ] Não acho i legí t ima a posição dos pintores que assim secomportam, mas quanto a mim, prefiro manter uma atitude maisindependente em face do real. Ordinariamente, meu quadro, que seresolve como quadro, é feito ao mesmo tempo em que se constrói.[...] Mas isso não me impede de experimentar uma certa satisfaçãoquando combinações e invenções nasc idas na minha p in turareencontram uma forma natural. Com isso elas recebem uma espéciede autorização, de legitimidade.
Aloísio permitiu-se trabalhar, sempre, com grande liberdade representacional,
independentemente da técnica de que se utilizasse, e não se pode mesmo afirmar que sua
produção ao longo do período compreendido entre 1949 e 1976 tenha seguido
rigorosamente os preceitos de qualquer dos movimentos de arte que se sucederam no
Brasil (ou no mundo) nesse tempo; também não se pode dizer que teria passado tão ao
largo que não sofresse deles alguma influência. Assim, como mostra a figura 16, ainda que
o figurativismo predominasse em suas gravuras e litografias, o veríamos convergir para
o abstrato-informalismo nas pinturas a óleo e tintas tipográficas, aproximar-se do
Fig. 16 - As várias técnicas e linguagens da pintura deAloísio Magalhães
Monotipia em papel Tinta tipográfica sobre papel
CartemaSérie Brasileira (detalhe)
Aquarela elápis sobre papel
55
figurativismo poético nas aquarelas e guaches, plasmar-se “pop” e “op” nos cartemas.
Afinal, as especificidades das diferentes e simultâneas frentes de trabalho abertas por
Aloísio autorizavam essa liberdade.
O aprendizado em gravura (Paris, entre 1951 e 1953) “com Stanley Hayter no Atelier
17, que, naquela altura,era um dos mais importantes centros de gravura da Europa” (LIMA,
1997, p. 87), os experimentos levados a cabo nas oficinas d’O Gráfico Amador, e depois
os conhecimentos adquiridos nos trabalhos e pesquisas desenvolvidos nos Estados Unidos
com o artista e desenhista industrial Eugene Feldmann na The Falcon Press, são fatores
que, sem dúvida, influíram bastante na feição da sua obra pictorial.
Pouco se sabe da passagem de Aloísio pelo Atelier 17 além da ocasião em que isso
aconteceu; todavia a história desse espaço de pesquisa e criação fundado em 1927 –e que
após a morte de Hayter em 1988 foi retomado pelos artistas Juan Valladares e Hector
Saunier, e sobrevive até os dias atuais com o nome de Atelier 17 Contrepoint-, que recebeu
a contribuição de nomes expressivos da arte mundial, fornece indicadores razoáveis para
avaliação de sua importância no aprimoramento profissional de seus freqüentadores.
Anton Ehrenzweig (1969, p. 59) descreve o método que Stanley William Hayter
adotava para trabalhar com os alunos:
Ele instruía seus alunos para que trabalhassem em estágios sucessivossem planejar antecipadamente a composição. Em cada estágio, apareciaalgum novo motivo ou processo técnico. Os estudantes tinham queinventar primeiro um motivo único para depois equilibrá-lo com umcontramotivo que enriquecesse o primeiro e acrescentava, a cada passo,novas idéias e técnicas. Havia uma misteriosa coesão lógica nocrescimento gradativo da composição. Cada passo tinha a mesmaimportância crítica, embora isso não se percebesse com precisão naocasião. Se o aluno fizesse a coisa certa, isso apressaria o fluxo deidéias, mas se ele tomasse o caminho errado suas idéias logo seextinguiriam e o trabalho pararia prematuramente.
Hayter, considerado o pioneiro da gravura moderna e um dos principais responsáveis
pelas inovações introduzidas no campo das artes gráficas contemporâneas,
no concebía su taller como un centro de formación de artistas gráficos,sino como un lugar de encuentro para todos aquellos artistas deseosos deexperimentar con nuevas técnicas, y que estuvieran dispuestos a compartirsus hallazgos con otros artistas plásticos. Se consideraba a él mismo comoun agente facilitador, en lugar de un maestro en sentido estricto.En 1940, debido a las dificultades generadas por la Segunda GuerraMundial, Hayter se traslada de la ciudad de París a Nueva York, yreabre el Atelier 17 como parte de los programas auspiciados por New
56
School for Social Research. Durante los próximos cinco años, desarrollósu trabajo gráfico en un ambiente de colaboración. Intercambió conteóricos como Eric Fromm, Ems Kris, Stuar Davis, Meyer Shapiro; yartistas europeos exiliados como Marc Chagall, Max Ernst, AndréMasson, Ives Tanguy; junto a un grupo de artistas de Nueva York comoRobert Motherwell, Jakson Pollock y Max Rothko, entre otros.En 1950, Hayter regresa a la ciudad de París y continua con susactividades gráficas promoviendo la técnica de impresión simultáneade tintas a color en una sola plancha.14
Nos anos imediatamente subseqüentes ao retorno do atelier a Paris Aloísio passa
a freqüentá-lo, ao mesmo tempo em que estudava museologia na escola do Museu do
Louvre. O conhecimento resultante da exploração das possibilidades que aí se abriram
está na raiz do interesse que o mobilizaria, em maio de 1954 e já no Brasil, a fundar no
Recife, com outros artistas e intelectuais, a oficina tipográfica O Gráfico Amador. Mas
chamar oficina tipográfica a’O Gráfico Amador é decerto desmerecê-lo, por omissão, de
suas outras tantas qualidades.
Escreve Guilherme Cunha Lima (1997, p. 87) que:
O Gráfico Amador foi fundado porque o grupo desejava publicarseus próprios escritos e o circuito editorial comercial não lhes eraacessível.Nesse tempo não havia editoras em Pernambuco. Quem quisessepublicar um livro teria não apenas que contactar uma gráfica, mastambém envolver-se em todos os passos relativos à distribuição dosexemplares.[...] A pretensão inicial d’O Gráfico Amador era editar exclusivamentetextos produzidos pelos membros do grupo. Apesar disso, em 1957,começaram a publicar também outros autores. Mas o preceito central,o de só publicar livros “sob cuidadosa forma gráfica”, foi mantido atéo fim.
O grupo era constituído de pessoas que se associavam por interesses variados, e
os membros, em número flutuante,
podem ser divididos em três categorias: aqueles que davam suportefinanceiro, pagando mensalidades que viabilizavam a publicação doslivros, recebendo em troca um exemplar de cada edição; os que eramescritores, poetas ou colecionadores e que assim tinham interesse naprodução de livros; e os que se envolviam diretamente no processoeditorial, entre os quais se incluem os ilustradores. Mas no jargão
14 CROS, Deledda. Arte hoy: en exposición grabados de Atelier 17. Disponível na Internet em: <http://www.radiouniversidad.org/secciones/reportajes/arte_hoy/Atelier%2017.html >; acesso em 06.04.2004.
57
interno da sociedade a divisão se fazia em apenas duas categorias:os chamados “mãos limpas”, ou seja, os que não sujavam as mãoscom tinta de impressão por não participarem diretamente da produçãodos livros, e os “mãos sujas”, que sujavam as mãos produzindo oslivros. (LIMA, 1997, p. 96)
Os “mãos sujas” eram quatro: Aloísio Magalhães, José Laurenio de Melo e
Gastão de Holanda -que trabalharam juntos no Teatro de Estudante-, e Orlando da Costa
Ferreira -convidado a juntar-se ao grupo por interessar-se e conhecer teoricamente o
assunto. Aos “mãos sujas” cabia efetuar o projeto gráfico, ilustrar, compor -algumas vezes
fabricando os tipos que iriam utilizar-, imprimir e dar acabamento às edições d’O Gráfico
Amador, tudo dentro do padrão que as caracterizou como edições de bibliófilo. E dos
“mãos limpas” fizeram parte, entre outros: Ariano Suassuna, Hermilo Borba Filho, Reynaldo
Fonseca, Francisco Brennand, Odilon Coutinho, Osman Lins, José Mindlin e Lourenço
Barbosa, o mestre Capiba.
A casa da Rua Amélia, chamada Atelier 415, foi o último endereço d’O Gráfico
Amador. Além deste, funcionavam também ali o escritório de arquitetura de Glauco Campello,
Jorge Martins Júnior e Artur Lício Pontual, e o atelier-residência de Aloísio Magalhães. Ao
longo da existência da oficina foram editados vinte e sete livros, três folhetos culturais, dois
boletins (Noticiário 1 e 2), um programa de teatro para a peça A Pena e a Lei, de Ariano
Suassuna, e vários impressos efêmeros (convites, cartões, catálogos etc.).
Consta que paralelamente às publicações oficiais,
aquelas que levavam o timbre d’O Gráfico Amador (fig. 17)
e eram distribuídas entre os associados, imprimiram-se ali
algumas edições privadas; estas, ainda que tenham sido
elaboradas com o mesmo esmero dispensado às encomendas
“oficiais”, não foram consideradas produções da associação.
Aloísio Magalhães também se valeu das oficinas d’O
Gráfico Amador para levar a efeito algumas experiências
gráfico-editoriais próprias; nessa linha foram publicados três
livros seus, de tiragens não superiores a trinta unidades:
Pregão Turístico do Recife (com poema de João Cabral de Melo Neto, 1955), Aniki
Bóbó (poema de João Cabral de Melo Neto e Aloísio Magalhães, 1958) e Improvisação
Gráfica (textos selecionados pelo autor, 1958). Neles, Aloísio pôde experimentar diferentes
técnicas, tais como combinações de tipografia e desenhos feitos com barbante colado sobre
Fig. 17 - O símbolo do �Gráfico�, criaçãode Aloísio Magalhães
58
blocos de madeira (um clichê15 experimental), aplicações de áreas de cor através de moldes
vazados (técnica de pintura conhecida como pochoir) e ilustração e textos manuscritos
efetuados diretamente sobre chapas plásticas planas.
Em resumo, O Gráfico Amador foi um terreno fértil onde através de ações coletivas
e criações objetivas, Aloísio pôde cultivar e colher os frutos provenientes da sua imaginação
criadora e de seu empenho na exploração de novas formas de linguagem e expressão artísticas.
Toda essa experiência, porém, não frutificaria apenas no terreno da expressão
plástica; ela também patrocinaria uma nova inflexão na trajetória profissional de Aloísio
Magalhães.
3.2.1. O desencanto com a pintura
O futuro na atividade de pintor parecia próspero e assegurado a Aloísio Magalhães,
e assim bem provavelmente se houvesse confirmado não fosse um novo horizonte profissional
a anunciar-se, despertando o seu interesse.
Na segunda metade dos anos 1950, ao aceitar convite para uma nova e mais
prolongada estadia nos Estados Unidos -em que voltaria a trabalhar com Feldmann-, Aloísio
entrava em contato “com as novas linguagens gráficas de comunicações e com os novos
paradigmas de análise (teoria da informação, etc.)” (MICELI, 1984, p. 80).
Eugene Feldmann dirigia desde 1956 o Departamento de Design Tipográfico da
Philadelphia Museum School of Art -na qual, a convite, Aloísio fora lecionar em duas
ocasiões; Feldmann, obsessivo pesquisador das artes gráficas, era também o dono da The
Falcon Press, um híbrido de gráfica comercial e laboratório de exploração das
potencialidades da tecnologia offset16 de impressão.
É nesse contexto que Aloísio, alternando-se entre pesquisa técnica e criações gráfico-
editoriais17, informa-se sobre os fundamentos do design moderno e a noção de projeto
como direcionador da ação criadora. Os conhecimentos aí adquiridos contribuiriam para
15 Clichês são matrizes de impressão em alto relevo, geralmente gravadas em chapa de metal aplicada sobre base demadeira, e utilizadas na impressão tipográfica para reprodução de imagens fotográficas ou ilustrações.
16 A invenção da técnica de impressão designada offset é atribuída (não sem contradições) ao norte-americano Ira WashingtonRubel, ocorrida por volta do ano de 1904, e segue princípios semelhantes aos da impressão litográfica. A pedra, que neste últimoprocesso é a matriz de impressão, foi substituída no processo offset por chapas metálicas flexíveis revestidas por substânciafotossensível, para as quais são transferidas as imagens a serem impressas.
17 Dois livros foram produzidos em parceria com Feldmann: Doorway to Portuguese, em 1957 -premiado no Art DirectorsClub da Filadélfia-, e Doorway to Brasília, de 1959, uma edição dedicada à construção de Brasília e lançada no Museu deArte Moderna - RJ com a presença do presidente Juscelino Kubstichek.
59
acentuar ainda mais a frustração que já sentia com o alcance social do trabalho do pintor, na
medida em que, por comparação de objetivos, permitiam-lhe constatar a crescente
dificuldade de comunicação entre o artista e a coletividade.
Pessimista quanto à expectativa de sucesso na reconquista do interesse público pela
arte, Aloísio -que chegou nessa época a considerar que “a pintura estava morta”- sente-se
atraído pelo design:
Eu comecei a sentir uma insatisfação muito grande com a pintura,porque é um gesto muito pessoal, muito isolado. Eu vivia de pintura -evivia bem-, fazia exposições em galerias... Mas, com toda essainsatisfação, senti a necessidade de uma maior participação social,coletiva. Eu me deparei com o design, que é exatamente isso: aplicartodo o instrumental de uma linguagem advinda das formas de criatividadevisual num processo de interesse coletivo. (BEZERRA, 1987)
Convém lembrar que, àquela altura da década de 1950, o governo de Juscelino
Kubistchek propunha a modernização industrial do Brasil ao ritmo de desenvolvimento de
“cinqüenta anos em cinco” e, com isso, o país formava seu mercado consumidor urbano
com o qual as empresas tinham que se comunicar. Sendo o design um dos principais
instrumentos para realização desse propósito, é possível inferir-se daí o grau de interesse
que essa oportunidade despertou em Aloísio e o entusiasmo com que certamente ele teria se
lançado nesta empreitada.
Afinal, a natureza agregativa de Aloísio é referida com freqüência, em depoimentos
dos que conviveram com ele, como um aspecto marcante da sua personalidade. Aspecto
que ele próprio reconhecia ao explicar, alguns anos depois, as motivações que o levaram à
opção pela comunicação visual:
Achei que por meio do design, em trabalhos pragmáticos de uso coletivo,poderia encontrar uma fonte de questões muito mais viva e dinâmica.A idéia de participação do coletivo era o que mais me interessava. Aatividade do pintor demasiadamente subjetiva, isolou muito o artista dacomunidade e o que me interessava era retomar este contato de maneiradireta e participante. (AYALA, 1997, p. 18)
Começava aí um dedicado trabalho, cujos resultados projetariam seu nome para
além das fronteiras brasileiras, e a partir do qual também se construiriam as bases para o
desenvolvimento e afirmação do design no Brasil.
60
3.3. ALOÍSIO, DESIGNER
A decisão de Aloísio Magalhães de se profissionalizar em design materializou-se
com a abertura de um escritório na cidade do Rio de Janeiro, no ano de 1960. A casa de
número 130 da Rua da Passagem, no bairro de Botafogo, foi o breve palco daquela que
seria a primeira de seguidas versões de seu escritório de design. No local, onde já funcionava
o estúdio de fotografia dos irmãos Humberto e José Franchesci, Aloísio passa a desenvolver
seus projetos de design associado ao arquiteto Artur Lício Pontual (que juntamente com os
arquitetos Glauco Campelo e Jorge Martins Júnior havia compartilhado com ele e O Gráfico
Amador, no Recife, o espaço do Atelier 415). Pouco depois, já no bairro do Leme e com a
inclusão de Luiz Fernando Noronha, mudava-se a configuração do escritório, que passava
então a denominar-se Magalhães+Noronha+Pontual, o MNP. Assim constituído e com a
inclusão eventual de profissionais de outras áreas -cinema, pintura, tipografia- o escritório
atuava em diferentes frentes (projetos de arquitetura, construção de agências bancárias,
etc.), não se configurando ainda propriamente um escritório de design, como os poucos que
já conquistavam espaço em São Paulo e de que são exemplos o pioneiro Forminform, de
Alexandre Wollner e Ruben Martins (1958), e a Metro 3 (embrião da agência de publicidade
DPZ, ainda em atuação no mercado) dos espanhóis Francesc Petit e José Zaragoza.
O design, que no início dos anos 1960 despontava como profissão no Brasil, veio
tocado pela influência da escola de Ulm -a Hochschule für Gestaltung da Alemanha-, de
orientação marcadamente funcionalista. Esta escola, considerada em termos doutrinários a
sucessora da Bauhaus, e
cujos prédios foram desenhados por Max Bill, seu primeiro reitor, abriusuas portas em 1951. Ela era menos importante pelo tipo de design queproduzia do que por suas idéias, que influenciaram as escolas de designde todo o mundo. A escola se preocupava em desenvolver métodosque usassem a lógica matemática para resolver problemas de design.A importante contribuição de Ulm nessa tentativa foi descobrir umalinguagem e um sistema criterioso para o estudo da comunicação visual.Tomando emprestadas idéias lingüísticas, a escola desenvolveu oconceito de “retórica visual” e empregou a semiótica (a ciência dossignos) na análise dos anúncios. (HOLLIS, 2001, p. 180-181)
Pela Hochschule für Gestaltung passaram alguns dos pioneiros da instituição do
design no Brasil, através da prática profissional e do ensino, como é o caso de Alexandre
Wollner e do colega de Ulm trazido por ele para o Brasil, o alemão Karl Heinz Bergmiller.
61
Em entrevista a Pedro Luiz P. de Souza, Bergmiller -que chegou ao país em 1959- historia
as primeiras tentativas de implantação do ensino do desenho industrial no Brasil:
No início dos anos 60, a consciência do problema do desenho industrialcomeçava a se institucionalizar no Brasil. Já haviam ocorrido pelo menosduas iniciativas anteriores, a do professor [Pietro Maria] Bardi, com oInstituto de Arte Contemporânea do Museu de Arte de São Paulo, e aEscola Técnica de Criação do Museu de Arte Moderna do Rio deJaneiro, as duas ainda na década de 50, quando eu ainda estava emUlm. O ensino estabeleceu-se de fato um pouco depois, já no início dadécada de 60. Em 1962, o desenho industrial foi introduzido como umaseqüência disciplinar na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo daUniversidade de São Paulo, enquanto no Rio de Janeiro se fundava aEscola Superior de Desenho Industrial, a ESDI, da qual participei e atéhoje [início de 1992] faço parte. (SOUZA, 1992, p.42)
O grupo constituído pelo governador Lacerda para criação da ESDI foi formado,
relata Alexandre Wollner, “por Simeão Leal, do MEC, o arquiteto Maurício Roberto, o
crítico de arte Flávio de Aquino, o Aloísio Magalhães e eu” (BORGES, 1992, p. 85). A
escola iniciou seus trabalhos em 1963 e “até hoje é um fenômeno. Ulm existiu de 1954 a
1970, a Bauhaus durante 10 anos, mas a ESDI existe há 36 anos”18, diria ele numa entrevista
de 1999.
O quadro de professores dos primeiros anos da ESDI colocava lado a lado designers
mais e menos ortodoxos em relação aos ensinamentos da Escola da Forma de Ulm. A
presença de Aloísio Magalhães entre eles,
no primeiro período situado entre meados de 60 e início de 70,certamente ajudou a escola a dosar certos excessos funcionalistas,temperando-os com possibilidades de cunho mais lúdico, onde aambigüidade estética tinha licença para se manifestar.Embora tenha sofrido forte influência dos movimentos construtivos eadotasse uma certa racionalidade projetual, seus trabalhos exalavam ofrescor gráfico típico de quem não desprezava as livre associações daforma e seus imperativos plásticos. (ESCOREL, 2000, p.115)
Todavia, se o nome de Aloísio vinculou-se definitivamente ao design no Brasil não
foi somente graças às suas ações no campo da formação profissional; também contribuíram
para isso os projetos desenvolvidos por seu escritório, que desde cedo ratificariam seu
18 Trecho de entrevista concedida a Márcia Denser e Marcia Marani. Disponível em <http://sampa3.prodam.sp.gov.br/ccsp/linha/idart%205/dpoiment.htm>; acesso em 10.04.04.
62
talento gráfico expresso em criações de amplo acolhimento pela comunidade. O símbolo
comemorativo do Quarto Centenário da Cidade do Rio de Janeiro, de 1964, é um desses
casos. No Brasil, até os dias atuais, poucos projetos de design lograram conquistar de
forma tão entusiástica a admiração pública. Apropriado pela população, o símbolo foi
estampado em fachadas e muros, veículos, pipas, fantasias de carnaval, carrinhos de
ambulantes e vitrines, além de aplicado, com curiosa adaptação, a modelos de biquínis (fig.
18). Referindo-se a isso, Ana Luiza Escorel (2000, p. 114) lembra que “o sucesso do
símbolo foi tal que Aloisio, numa tentativa de compreender o fenômeno, acabou descobrindo
que havia, sem se dar conta, trabalhado com uma poderosa mandala”.
Uma vez mais Aloísio utilizava-se do espelhamento como recurso de criação, aspecto
que ao lado do rotacionamento do elemento gráfico básico, verificar-se-ia em muitos outros
dos trabalhos que realizou. Assim é, por exemplo, no símbolo -mais exatamente um
ideograma- projetado em 1966 para a Light, a empresa de eletricidade do Rio de Janeiro.
Na solução proposta para o símbolo do IV Centenário, o algarismo 4, eleito como
elemento modular duplamente refletido, remete concomitantemente a sentidos específicos:
Figura 18 - A livre adaptação do símbolo do IV Centenário e algumas de suas aplicações (na pipa, em roupas e fantasias de carnaval, calçadas etc.)
63
um sentido de associação numérica -o todo que reproduz o valor da parte ao mesmo tempo
em que o subverte (4 x 4 = 4)- e um sentido simbólico, de cunho histórico, dado pela
aproximação gráfica com a cruz de malta dos portugueses, fundadores da cidade (fig.19).
Já no projeto de identidade corporativa desenvolvido para a Light, Aloísio Magalhães
propunha como símbolo um ideograma (fig. 20) cujo conceito se materializa na alternância
do sentido lógico (a duplicação em simetria circular da inicial “L”) para o analógico (o raio,
representação convencional de eletricidade).
Além do freqüente recurso ao espelhamento e à rotação (fig. 21) Aloísio valeu-se
também da seriação sistematizada de um único elemento formal -um módulo- em várias de
suas criações gráficas (fig. 22), e da exploração das potencialidades tridimensionais do
Figura 20 - O símbolo da Light, e a correspondência com a convenção gráfica de eletricidade
Figura 19 - O duplo espelhamento e as associações numérica e simbólica na marca do IV Centenário do Rio de Janeiro
Figura 21 - Espelhamento e rotação nos símbolos da Hidrelétrica de Itaipu, do Banco Boavista e da Metalúrgica Icomi
Figura 22 - A seriação sistematizada nos símbolos dos bancos Nacional e Aliança, e da Companhia Souza Cruz
64
“círculo tripartido” (fig. 23), conforme destaca o designer e professor Chico Homem de
Melo em minuciosa análise19 do léxico visual aloisiano.
Estes não eram, no entanto, recursos estranhos ao movimento construtivista que
dominou o cenário artístico brasileiro desde o início da década de 1950, através de suas
vertentes concreta e, mais tarde, neoconcreta.
A formulação do ideário concretista partia da abolição de toda e qualquer conotação
lírica ou de representação da realidade na obra, e promoviam a linha, o ponto, a cor e o
plano -na medida em que estes são elementos desprovidos de quaisquer vínculos não-
pictoriais- à condição de elementos constitutivos mais concretos de uma pintura. O artista
suíço Max Bill, um dos formuladores da arte concreta e principal responsável pela introdução
do concretismo no Brasil, defendia a idéia segundo a qual “a matemática é o meio mais
eficiente para o conhecimento da realidade objetiva e uma obra plástica deve ser ordenada
pela geometria e pela clareza da forma”.
Conclui-se daí que, por operar dentro dessas possibilidades (ou seriam limitações?)
já bastante familiares às artes gráficas, a arte concreta tenha facilitado o trânsito não só dos
pintores como também dos prosélitos da poesia concreta pelo território do design.
Mas que tipo de ingerência poderiam ter os poetas concretistas na definição de
rumos e feição para o design gráfico?
O Brasil é considerado oficialmente o berço da
poesia concreta, o braço literário do movimento
concretista, iniciado em 1952 por iniciativa de Décio
Pignatari e dos irmãos Haroldo e Augusto de Campos,
integrantes do Grupo Noigandres. O manifesto da poesia
concreta, no entanto, foi publicado apenas em 1958 no
número 4 da revista Noigandres (fig. 24) -cuja capa éFigura 24 - A revista Noigandres no 4 (capa deFiaminghi) com a de no 1 (capa de Pignatari) ao fundo
Figura 23 - Nos símbolos dos bancos de Crédito Mercantil (1963), Unibanco (1965) e Banespa (1969), variações do �círculo tripartido�
19 Cf. Aloísio, designer de sinais. In: LEITE, João de Souza (org.). A Herança do olhar: o design de Aloísio Magalhães.Rio de Janeiro: Artviva Produção Cultural, 2003, pp. 50-56.
65
de autoria do pintor, desenhista e artista gráfico Hermelindo Fiaminghi-, sob a denominação de
Plano Piloto da Poesia Concreta, no qual os signatários apontam como precursores:
mallarmé (un coup de dés, 1897): o primeiro salto qualitativo:“subdivisions prismatiques de l’idée”; espaço (“blancs”) e recursostipográficos como elementos substantivos da composição. pound (thecantos): método ideogrâmico. joyce (ulysses e finnegans wake):palavra ideograma: interpenetração orgânica do tempo e espaço.cummings: atomização de palavras, tipografia fisiognômica; valorizaçãoexpressionista do espaço. apollinaire (calligrammes): como visão, maisdo que como realização. futurismo, dadaísmo: contribuições para a vidado problema. no brasi l : oswald de andrade (1890-1954; “emcomprimidos, minutos de poesia”). joão cabral de melo neto (n. 1920 -o engenheiro e a psicologia da composição mais anti-ode: linguagemdireta, economia e arquitetura funcional do verso. (CAMPOS, 1965)
O contato inicial do grande público com a poesia concreta (fig. 25 e 26) deu-se em
duas oportunidades: na primeira Exposição Nacional de Arte Concreta aberta em São Paulo
em 1956, e no Rio de Janeiro, no ano seguinte, para onde a mostra foi transferida. Após o
lançamento do Plano Piloto, a poesia concreta passa a ser conhecida internacionalmente
ganhando adeptos em diversos países (Itália, Suíça, Japão, França etc.). Desde os primeiros
momentos os proponentes do movimento empreenderam ações no sentido de ampliar a
divulgação da poesia concreta em outros meios que não apenas os livros.
Nesse tempo o B ras i l passava po r d i ve rsastransformações sociais, políticas e econômicas. Taismudanças se refletiam na área cultural. As revistase jornais começam a se tornar mais agradáveisgraficamente; poetas e pintores passam a colaborarnos suplementos culturais dos grandes jornais ondenovos recursos gráficos são utilizados.[ . . . ] A poes ia concre ta u t i l i za proced imentoss im i l a res àque les u t i l i zados pe los me ios decomunicação de massa, o que parece ter facilitadosua penetração junto ao público.As experiências tipográficas desenvolvidas pelosmov imen tos de vanguarda eu ropé ia , como oFuturismo, o Dadaísmo e o Construtivismo Russo,assim como os trabalhos desenvolvidos pela EscolaSuíça de Tipografia, constituíram claras fontes deinspiração para os poetas concretos brasi leiros.Esses poetas-des igners (Augus to de Campos,Haroldo de Campos e Décio Pignatari) deram umagrande importância ao t ipo e seus elementos decomposição, explorando a sua expressividade dentroda página. (LIMA, 1997, pp. 27-28)
Figura 26 - �beba coca cola� (1957), de Décio Pignatari
Figura 25 - Poesia concreta de Augusto de Campos
BEBA COCA COLA BABE COLA BEBA COCA BABE COLA CACO CACO C O L A C L O A C A
66
Mas se os poetas concretistas buscaram dotar sua obra de artifícios e princípios
próprios das artes gráficas e da publicidade, estas também não ficariam imunes às influências
de tal aproximação. Assim foi que
muitas das invenções sintáticas e semânticas do movimento da poesiaconcreta entraram para o repertório do design gráfico. As pesquisaspromovidas no campo da linguagem visual alcançaram um granderefinamento, vindo a influenciar especialmente os anúncios publicitáriosda segunda metade dos anos 1960, que passaram a usar a forma dostipos como elementos expressivos da mensagem escrita. Além disso,na procura de um ideograma perfeito, os concretistas seguiram as trilhasdo designer que procura a melhor síntese visual para uma marca defantasia. (LIMA, 1997, p. 29)
Formava-se assim o quadro no qual imbricavam-se as linguagens da poesia, do design
e da publicidade, todos sob o efeito dos fundamentos da arte concreta que imprimia sua
marca nas realizações dessas atividades nas décadas de 1950 e 1960.
De um lado, os elementos formais concretos da composição estabelecendo um certo
nivelamento de soluções visuais entre as obras de pintores e de designers (fig.27); de outro,
a conquista da dimensão estética, e não mais puramente semântica, para os componentes
textuais da mensagem aproximando conceitual e visualmente as produções da poesia concreta
das da comunicação visual e principalmente, conforme assinalou Guilherme C. Lima, da
publicidade (fig. 28).
Figura 27 - Duas pinturas de Geraldo de Barros do início dos anos 1950 (1 e 2) e um símbolo (3) de autoria de Alexandre Wollner
1 2
3
Figura 28 - Reflexos da poesia concreta no design do escritório de Aloísio Magalhães (1 e 2) e nas criações em design e publicidade de Ruben Martins (3, 4 e 5)
1
4
3
2
5
67
Ocorrem também situações em que as semelhanças de resultados aconteceram no
âmbito do mesmo campo de atuação, e isso é passível de constatação, no caso do design,
ao compararmos símbolos (fig. 29) criados por Aloísio Magalhães e por dois de seus
contemporâneos, os já mencionados Alexandre Wollner e Ruben Martins.
No exemplo, embora os autores tenham tomado por base figuras geométricas
diferentes (ou aparentemente diferentes, já que o formato20 da primeira equivale ao da
segunda submetida a simples rotação) -um “losango”, um quadrado e um retângulo-, a divisão
interior do espaço a que procederam segue princípios bastante semelhantes (mesmo que
para isso cada designer tenha adotado tipos específicos de “incisões” -retilínea, circular e
parabólica- transversais ao eixo vertical). Dos três, Aloísio e Ruben Martins são considerados
os de menos ortodoxia quanto à aplicação dos preceitos da escola ulmiana, na medida em
que cada um procurou, à sua maneira, conferir uma certa carga de “brasilidade” ao design
que produziu. Ainda assim, entendendo que ambos absorveram e se
expressaram segundo o “idioma” visual dominante em sua época,
iremos encontrar uma curiosa concordância formal (e talvez mesmo
de conceito) em dois símbolos (fig. 30) que produziram: o de Ruben
Martins para o Hotel Tropical e o do Clube Hípico da Bahia, de
autoria de Aloísio Magalhães.
Descartada qualquer suposição fora da coincidência, creio
ser oportuno um comentário, superficial que seja, a respeito das duas
soluções. A natureza dos serviços oferecidos pelos dois
empreendimentos por si só já estabelece os limites comuns do terreno
onde se origina o processo associativo; mas isto, desde que o designer
gráfico se permita recorrer a associações extra-pictoriais. E aí reside
... do Hotel Tropical...
... e do Clube Hípico da Bahia.
Fig. 30 - Os símbolos...
Figura 29 - Os símbolos de Wollner (1), Martins (2) e Magalhães (3): frutos de uma mesma árvore
1 2 3
20 A noção de formato aqui adotada corresponde àquela definida na obra Princípios de forma e desenho (Wong, 1998,p. 347), expressa como “as características de uma linha ou de um plano, ou a aparência de uma forma de determinadoângulo e distância”. Por extensão, “um formato plano é normalmente definido por um contorno que pode ser preenchidocom cor, padrão e/ou textura. [...] Formato e forma são às vezes usados como sinônimos; porém o formato exclui todasas referências a tamanho, cor e textura, enquanto a forma engloba todos estes elementos”.
68
a diferença -que reconduz à questão da finalidade- entre a prática
do design e a da pintura, posto que à arte é facultada a opção pela
forma “pura” (concreta, no caso), enquanto que o design, por ser
l inguagem, deve construir-se calcado em pressupostos
comunicacionais. O desafio do comunicador visual consiste, pois,
em relacionar graficamente elementos formais a elementos
conceituais. Desse modo, lazer, vegetação tropical, sol e sombra,
são “ingredientes conceituais” bastante plausíveis e eficazes na
orientação do pensamento criativo e objetivo que, por seu turno,
irá materializar-se num sinal inteligível. Em sua proposta para o Hotel
Tropical, Ruben Martins revelou ter-se referenciado na sombra
projetada sobre uma parede por uma folha de costela-de-adão (fig.
31.1). Quanto a Aloísio, a tirar pelo modelo tridimensional (fig. 31.2)
elaborado para o estudo do símbolo do Clube Hípico, a idéia
condutora pode muito bem ter tido origem na relação que o senso
comum estabelece entre lazer / coqueiros / Bahia.
Daí que uma questão se coloca: se a transposição do conceito para a representação
gráfica poderia se dar num nível mais direto de correspondência formal com os referentes (a
costela-de-adão ou o coqueiro), como entender a coincidência de resultados entre duas
soluções tendentes à configuração abstrata? A resposta passaria, naturalmente, pela
conformidade às convenções da linguagem concretista da época, suas possibilidades e
limitações; afinal, o emprego mais freqüente de formas figurativas na definição de símbolos
apenas iria ocorrer a partir da década de 1980. No entanto, antes que os designers gráficos
se permitissem adotá-las como alternativa às soluções geométricas decorrentes da
perseguição à "forma pura", houve um aspecto estético-formal que Aloísio Magalhães
explorou com desenvoltura e pioneirismo em algumas de suas criações, ainda nos anos 1960:
a simulação da tridimensionalidade.
Chico Homem de Melo pontua, no texto crítico já aludido, que:
A tridimensionalidade sempre seduziu Aloisio, manifestando-se já nosseus primeiros sinais. É tão forte essa presença a ponto de constituirtalvez o traço mais singular de sua obra como designer. É intrigantesaber que vár ios pro je tos foram resolv idos antes em peçastridimensionais, para só depois serem traduzidos para um desenho emsuas dimensões. Isso nos revela um Aloisio com talento para o raciocínioespacial tanto quanto para o bidimensional, sua faceta mais conhecida.(LEITE, 2003, p. 155)
Figura 31 - Origens dos conceitosdo símbolo para o Hotel Tropical (1) epara o Clube Hípico da Bahia (2).
1
2
69
E assim, antecipando um recurso que futuramente se instalaria com a "construção"
da linguagem publicitária televisiva, ele tiraria partido da sugestão da profundidade nos
trabalhos (bidimensionais) que realizou para o Banco Mercantil de Pernambuco, Banco
Comercial Brasul e Laboratório Maurício Villela (fig. 32), para o Banco de Crédito Mercantil,
Unibanco e Banespa (fig. 23, p. 59) -todos da década de 1960-, e nos símbolos criados
mais tarde, no curso dos anos 1970, para o Sesquicentenário da Independência do Brasil e
para o Banco Central (fig. 33).
A vasta produção de Aloísio Magalhães em design, todavia, extrapola em muito a
criação de símbolos e sinais apenas. Os projetos de seu escritório -sobretudo aqueles
desenvolvidos a partir da segunda metade dos anos 1960 quando instalado à rua Mena
Barreto 137 (novamente em Botafogo) sob o nome de Aloísio Magalhães Programação
Visual-, contribuíram também para a consolidação, no Brasil, da noção de identidade visual,
entendida como um "conjunto sistematizado de elementos gráficos que identificam visualmente
uma empresa, uma instituição, um
produto ou um evento, personalizando-
os, tais como um logotipo, um símbolo
gráfico, uma tipografia, um conjunto de
cores" (ADG, s. d., p. 59).
Nessa linha foram elaborados
programas para a L ight , para o
Laboratório Maurício Vi l lela, os
Produtos Guri (fig. 34) e, em 1970, o
revolucionário projeto de identidade
Fig. 32 - 1. Banco Mercantil de Pernambuco (1963); 2. Laboratório Maurício Vilella (1964/65); 3. Banco Comercial Brasul (1966)
1 2 3
a b
Fig. 33 - a. Sesquicentenário da Independência do Brasil (1971); b. Banco Central do Brasil (1975)
Fig. 34 - A marca Guri com aplicação ampliada a produtos, impressos e veículos
70
visual da Petrobrás que envolveu, inclusive, desenho de produtos e de equipamentos conforme
exemplificado na figura 35.
Outro fato marcante da trajetória de Aloísio, designer, resultou de sua participação
num concurso restrito instituído pelo Banco Central do Brasil em 1966, com vistas à
reformulação visual do padrão monetário nacional.
O governo militar criara o Cruzeiro Novo -ou NCr$- em substituição ao desvalorizado
Cruzeiro -Cr$- e planejava conquistar a autonomia do país na fabricação das cédulas do
dinheiro brasileiro, até então inteiramente produzidas pelas empresas estrangeiras American
Bank Note e Thomas de La Rue. Do concurso participaram:
Alexandre Wollner, Aloisio Magalhães, Goebel Weine, Ludovico Martino,Rubem Martins e dois funcionários da instituição. Aloisio ganhou acompetição com um projeto extremamente inovador [fig. 36], inspiradonum brinquedinho de criança que havia trazido da Europa, pouco antes:lâminas de acetato com impressões de círculos concêntricos, em váriasespessuras. Superpondo-as, ele criava configurações em moiré [*], queacabou por uti l izar como princípio básico de seu projeto, numprocedimento que dá bem a medida da importância que a intuiçãoocupava em seu trabalho. (ESCOREL, 2000, p. 115)
Por comportar recursos gráf icos não
convencionais no processo de produção de papéis-
moeda, a proposta de Aloísio enfrentou de início
grande resistência da parte dos dirigentes da Thomas
de La Rue - Giori, a empresa contratada pelo
governo brasileiro para desenvolver as matrizes de
impressão. Acompanhando de perto o processo na
condição de consultor do Banco Central, Aloísio
pode discutir e defender suas idéias com os europeus
e assim viabilizar o projeto das notas de Cruzeiro
Fig. 35 - No projeto de identidade visual da Petrobrás, a extensão da marca a letreiros (1 e 2), veículos (3) e equipamentos (4)
Fig. 36 - NCr$ 1,00: nota impressa no Brasil em 1967
1
2
3 4
[*] Moiré: termo que em artes gráficas designa o efeito óptico -geralmente indesejável- causado pela superposiçãoincorreta das retículas (padrões gráficos compostos de linhas ou pontos) necessárias à impressão de imagens coloridas ouem meios-tons.
71
Novo -que a partir daquele momento passavam a ser impressas no Brasil- postas em
circulação no ano de 1967.
As sucessivas desvalorizações da moeda brasileira fizeram com que, por duas outras
vezes, o governo militar recorresse a Aloísio Magalhães para dar feição às cédulas de dinheiro
nacionais resultantes de alterações na política monetária; a primeira, com o lançamento em
1972 -quando o Cruzeiro Novo já havia cedido seu lugar ao (novamente) Cruzeiro-, da
nota de quinhentos cruzeiros (Cr$ 500,00) em comemoração aos cento e cinqüenta anos da
independência do Brasil (fig. 37).
A outra oportunidade ocorreu em 1976 com a perspectiva de implementação, para
o ano seguinte, de um novo programa de emissão; desta feita, por conta de seu envolvimento
com o Centro Nacional de Referência Cultural e o conseqüente afastamento da produção
em design, Aloísio encarregou-se apenas do
projeto da nota de Cr$ 1000,00 (fig. 38),
cujos princípios formais nortearam o trabalho
dos técnicos da Casa da Moeda do Brasil,
responsáveis pelo desenvolvimento das
demais cédulas do plano. A partir daí
nacionalizava-se toda a produção do
dinheiro nacional, do design à fabricação
do papel, passando pela geração das
Fig. 38 - Um novo conceito no design da cédula de Cr$ 1.000,00, em suas duas versões
Fig. 37 - Na nota de Cr$ 500,00 Aloísio manteve ainda o efeito de moiré
72
matrizes de impressão. Se isto representou uma grande conquista para o país, igualmente
importante foi o significado dessa conquista para Aloísio Magalhães. E por que?
Já foi dito antes, a questão do auto-imposto compromisso com a construção e
afirmação de uma identidade cultural nacional -a causa, como identificada por José Reginaldo
Gonçalves (GONÇALVES, 2000)- e a inclinação para o trabalho artístico coletivo são
aspectos que marcaram claramente a trajetória profissional de Aloísio. Sua decisão de migrar
da pintura para o design foi tomada mesmo com base no propósito de concretizar tais
expectativas e, por um período de aproximados quinze anos de dedicação, o trabalho de
designer cumpriu essa função.
Com o design do padrão monetário e o projeto de identidade visual da Petrobrás -
tendo em vista a grande carga simbólica de ambos e a amplitude de sua implantação- Aloísio
Magalhães alcançava a condição de participante direto, num determinado momento, do
processo de transformação da cultura brasileira. E este, já o sabemos, seria seu caminho
daí por diante.
Importa, contudo, saber em que medida essas particularidades e ações influíram na
invenção dos cartemas.
73
4. O CARTEMA
4.1. A GÊNESE
A definição consta da edição de 1998 do “Aurélio” -a bem assimilada metonímia
através da qual geralmente nos referimos ao Novo Dicionário da Língua Portuguesa1 :
cartema. [De cartão (-postal).] S. m. Neol. Bras. Colagem executadacom cartões-postais com valores visuais equivalentes e que, colocadoslado a lado, dão ao todo uma nova unidade visual. [T. criado por AntônioHouaiss (1915- ), em 1974, para essa composição artística de AloísioMagalhães (1927-1982).]
Em sua versão eletrônica, o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa2 também
registra:
cartema. /ê/ s.m. (1974 cf. AF2) ART.PLÁST B colagem estruturadaa partir da colocação, lado a lado, de cartões-postais Ø ETIM rad.cart- (de cartão-postal) + 1-ema ‘unidade mínima estrutural’; palavracriada, em 1974, por Antônio Houaiss (1915-1999), para designar acriação artística de Aloísio Magalhães (1927-1983); ver cart-
Há, porém, no verbete transcrito de ambas as fontes, uma incorreção quanto à data
em que Houaiss teria criado o termo. Na verdade, pelas próprias palavras do filólogo, os
cartemas foram assim denominados durante os preparativos de sua primeira exibição ao
público, ocorrida no Rio de Janeiro em 1972.
Escreveu Antônio Houaiss:
Pelos fins de 1971 estivemos em longa conversa, provocada por umaexposição que [Aloísio] iria fazer no Museu de Arte Moderna, no Riode Janeiro. Sua alegria era contagiante e o seu prazer de fazer, deHomo faber também, era uma festa. Foi-me revelando no seu estúdiode Botafogo as peças de uma expressividade visual (e onírica!) que iapondo, uma após outra, ante meus olhos maravilhados. Pouco depois,de torna-viagem da Europa, dava-me a ver novas peças e, depois, novasoutras: três séries de usos de cartões-postais - comercialíssimos eturisticíssimos - que se transformavam em matéria-prima dos seus -como dar-lhes nome? Buscando-o, pensando naquelas unidades,naquelas cartas postais, lembrava-lhe tantas unidades em -ema, neste
1 FERREIRA, Aurélio B. de H. Novo dicionário da língua portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.
2 HOUAISS, Antônio. Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2001.
74
nosso mundo de Deus e do Diabo: fonema, semema, semantema,monema, morfema, ideologema, mitema, tonema e o que mais sequisesse: cartema era a palavra - e ele aderiu, exultante. (FUNARTE,1982)
A correção de data adquire aqui certa relevância, na medida em que o fato se relaciona
diretamente com outro mencionado ao final do capítulo anterior que, por sua vez, se vincula
à origem dos cartemas. Refiro-me ao projeto de Aloísio Magalhães para o padrão monetário
brasileiro, naquela versão que, conforme foi relatado na página 71, começou a circular no
ano de 1972.
É do conhecimento geral que a técnica de fabricação de dinheiro exige recursos
projetuais e de impressão significativamente mais complexos que os normalmente empregados
na grande maioria dos produtos impressos. No caso em questão, dadas as inovações gráficas
introduzidas pelo projeto das notas brasileiras, os testes iniciais de impressão extrapolaram
em muito a prática habitual até que se confirmassem exeqüíveis e seguros os revolucionários
artifícios. Um destes testes, realizado na Holanda em 1970, era acompanhado de perto por
Aloísio, então consultor contratado do Banco Central do Brasil. Ali, ao sair
[...] das máquinas impressoras em grandes folhas de papel-moeda, aunião de dezenas de notas iguais num mesmo espaço [fig. 39] formadesenhos que atraem o interesse de Aloisio, já voltado para odesenvolvimento de formas estruturadas a partir de imagens refletidas,como foi, entre vários outros, o caso do símbolo que desenhou para oIV Centenário da Cidade do Rio de Janeiro. (FUNARTE, 1982)
Mas é certo que alguma motivação
anterior orientava esse interesse que, sob
aquelas circunstâncias, se deixava “atrair”.
O artista, que Aloísio nunca deixara de ser,
estivera até então apenas desencantado com
os rumos tomados pela arte, e a sensação
mesma manifestada por ele de que “a arte
estava morta”, não era algo tão particular
que não tivesse sido experimentado por
(tantos) outros artistas da sua época e de antes. Giulio C. Argan, inclusive, refere-se ao
problema como uma decorrência da “dificuldade da relação entre arte e sociedade” que,
potencializada no período entre guerras, “agravara-se depois da Segunda Guerra a ponto
Fig. 39 - O processo de impressão de papel-moeda; na foto, uma impressoraoffset, da Casa da Moeda do Brasil, imprime cédulas do Real.
75
de levar a crer que a ‘morte’ da arte era inevitável, iminente e talvez já tivesse ocorrido”
(1992, p. 508). Mas a recusa de Aloísio Magalhães ao “isolamento do artista” conduzira-o
à comunicação visual, e agora, no pleno exercício desta profissão, e convencido que estava
da possibilidade de comunicação entre artista e público que a produção em design lhe
confirmara, animava-se a promovê-la também no espaço da criação puramente artística.
A materialização desse objetivo, contudo, não se deu pela via das tintas e pincéis,
mas por meio da manipulação de um signo bastante familiar à cultura popular ocidental (se
não universal): os cartões-postais.
Deslocados aí de sua condição de produto industrial acabado para o estado de
matéria-prima do trabalho artístico, os postais renasciam sob a forma de cartema, uma
solução estética que, na origem, já se revelava síntese dos fazeres múltiplos de seu criador,
pois que sendo obra do artista -a colagem-, surge da observação de um processo -a
impressão das notas- pelo gráfico, constrói-se segundo um procedimento técnico familiar
ao designer -a arte-final-, e toma por matéria constitutiva um produto trivial da cultura
popular -o cartão-postal.
Da articulação desses diferentes níveis de intenção e ação emergiu o instigante
resultado visual que inaugurava, com a primeira apresentação ao público no Museu de Arte
Moderna do Rio de Janeiro, em 1972, um ciclo de mostras sempre concorridas no país e no
exterior. No catálogo projetado por Aloísio para esta exposição, a relação com a ambigüidade
que permeia e caracteriza a sua obra (e mesmo a sua vida, em certos aspectos3 ) chega ao
paroxismo: ao concebê-lo, o autor retoma o processo cartemático pelo caminho inverso,
quando insere no impresso cartões-postais cujas imagens são reproduções dos cartemas
apresentados na mostra4 .
As exposições que se seguiram a esta aconteceram:
- no Museu do Açúcar, no Recife, em 1972;
- na Universidade Federal de Minas Gerais, em Belo Horizonte, nesse mesmo ano;
- no Museu de Arte Moderna de São Paulo, em 1973;
- na Galeria Múltipla, em São Paulo, também em 1973;
- na Galeria da Praça, Rio de Janeiro, em 1974; e
- na Fischback Gallery, de Nova Iorque, em 1977.
3 A ambigüidade aqui referida, pode ser confrontada com as palavras do próprio artista, citado por João deSouza Leite: “Eu me situo muito numa postura dialética entre o sim e o não, entre o preto e o branco; acho queo caminho está exatamente nessas situações complementares, que são situações ricas, são contrastadas.”(Leite, 2003, p. 22).
4 Cf. em FUNARTE. Cartemas: a fotografia como suporte de criação. Rio de Janeiro: Edição Funarte, 1982.
76
Há, ainda, registros que informam sobre exibições dos cartemas em “várias galerias
do Brasil e do exterior”; tais indicações, no entanto, são bastante imprecisas quanto aos
locais e datas em que isso teria acontecido.
As aquisições -outro indicador de receptividade-, igualmente não foram poucas.
Apenas na exposição da Fischback Gallery, em Nova Iorque, foram adquiridos “mais de
doze cartemas”, conforme relatado em correspondência5 enviada a Aloísio Magalhães por
Claude Mollard6 , em 1977, e disponível nos arquivos pessoais do artista cedidos por sua
viúva à Fundação Joaquim Nabuco, de Recife.
No Brasil os cartemas integram, entre outros, os acervos do Museu de Arte
Contemporânea de Niterói (RJ), da empresa Comgás, em São Paulo, do Museu de Arte
Moderna Aloísio Magalhães e da Fundação Joaquim Nabuco, ambos em Recife; no exterior,
o artista realizou um cartema mural para a sede da ATT - American Telegraph and Telephone
Company, em Nova Iorque.
Duas outras mostras públicas dos cartemas seriam ainda organizadas, a partir de
1982, como homenagem póstuma a Aloísio. Na primeira delas, realizada naquele ano pela
Galeria de Fotografia da Funarte, no Rio de Janeiro, foi incluída entre as obras uma série
inédita de quinze cartemas em preto e branco, elaborados com cartões-postais franceses da
coleção Chefs-d’oeuvre de la Photografie (editada pela galeria parisiense Agathe Gaillard).
No ano seguinte, uma segunda exposição, itinerante, foi levada às capitais de dez estados
brasileiros.
Posteriormente, os cartemas figuraram também em eventos temáticos, como ocorreu
nas mostras Imagens Seqüestradas -paralela ao 16º Salão Nacional de Artes Plásticas
(Funarte/MAM-RJ, 1998)-, Apropriações/Coleções (no Santander Cultural, Porto Alegre/
RS, 2002) e A Subversão dos Meios (no Instituto Itaú Cultural, 2004).
Todavia, se as exposições e aquisições dão indícios, ao menos na superfície, do
interesse admirado do público por esse trabalho plástico de Aloísio Magalhães, o desafio
principal aqui será o de buscar extrair e compreender, nas raízes da linguagem cartemática,
que particularidades responderam (e ainda respondem) por essa identificação, que é
síntese da interação entre os territórios da criação e o da fruição da arte. Só que a procura
por tais explicações passa, necessariamente, pela avaliação dos condicionantes históricos
5 Disponível no endereço eletrônico <www3.fundaj.gov.br/cgi-bin/isis3g-p>. Acesso em 27.04.2002
6 O francês Claude Mollard é escritor, exerceu o cargo de Secretário Geral do Centro George Pompidou, em Paris, e fundou oInstitut Supérior de Management Culturel da França.
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que agem, num dado espaço e num dado tempo, sobre os processos de criação e produção
artísticas.
Nesse sentido -e principalmente se admitirmos que a relação entre arte e público
pode ser um canal de ocorrências pedagógicas- será importante considerar, paralelamente
aos aspectos de natureza estética e comunicacional, as circunstâncias sob as quais surgiram
os cartemas; ou seja, avaliar a correlação entre a produção em arte e a ditadura militar do
Brasil nas proximidades dos anos 1970, um período da história nacional em que -para usar
uma expressão ao gosto do último general presidente- recrudesciam as medidas restritivas
às liberdades individuais e coletivas, adotadas por um regime indisfarçavelmente autoritário
e, na primeira metade daquela década, particularmente cruel.
4.1.1. Expressão e risco: os “anos de chumbo”
Em março de 1964, o golpe militar no Brasil impunha uma radical mudança de direção
na trajetória esquerdizante traçada pelo governo do presidente João Goulart.
Já no pré-golpe, mediante forte aplicação de capitais e ciênciapublicitária, a direita conseguira ativar politicamente os sentimentosarcaicos da pequena burguesia. Tesouros de bestice rural e urbanasaíram à rua, na forma das “Marchas da família, com Deus pelaLiberdade”, movimentavam petições contra divórcio, reforma agráriae comunização do clero, ou ficavam em casa mesmo, rezando o “Terçoem Família”, espécie de rosário bélico para encorajar os generais. Deusnão deixaria de atender a tamanho clamor, público e caseiro, e de fatocaiu em cima dos comunistas. (SCHWARZ, 1978, p. 70)
O apoio paranóico da classe média brasileira ao golpe legitimou, em certo grau, o
cerceamento à exteriorização de todo pensamento não alinhado com a ideologia
anticomunista do Estado, que não tardou a se institucionalizar como a Censura, oficial,
urdida para demarcar, com não rara truculência, os limites da criação, expressão e
produção artística e literária no país. A imediata e calculada investida dos militares
governantes para “enquadrar” essa área da produção humana já é um indicador, por si só,
do entendimento que tinham da arte como instrumento potente de libertação. A decretação
do Ato Institucional nº 5 -o AI-5- em 13 de dezembro de 1968, tornou ainda mais tensas
e perigosas as relações entre o poder instituído e a criação (pois esta não constitui também
uma forma de poder?). O quanto os artistas se deixaram levar pelo temor ou reagiram,
dentro das suas possibilidades, contra esse nível de interferência, isso é um fato que já
78
alimentou e ainda há de alimentar incessantes discussões, mas do qual não pretendo aqui
explorar senão um ou dois aspectos. E nessa exploração há um duplo objetivo: avaliar até
que ponto as obras produzidas pelos pintores brasileiros do período diferiam do cartema
em termos de conteúdo discursivo ou de linguagem estética e, concomitantemente, refletir
sobre o papel, a importância e desempenho, naquele contexto social e político, de diferentes
segmentos das artes visuais.
Se de início, no âmbito da produção visual, nos ativermos tão somente ao grupo dos
artistas que mesmo sob o peso dos “anos de chumbo” se valeram de suas obras para
demonstrar seu inconformismo, denunciar os mecanismos oficiais de controle e repressão e
assim cumprirem seu papel de transformadores, chegaremos a uma curiosa constatação (que
remete à discussão proposta no primeiro capítulo e põe em xeque a questão da
“hierarquização” na arte). Naquelas circunstâncias desfavoráveis ao pleno exercício da
criação artística, foi justamente um dos representantes das “artes menores”, o cartum e suas
variantes (a caricatura, a charge e a história em quadrinhos), o segmento das artes visuais
que esteve no front de uma luta de resistência que por cerca de duas décadas desafiou e
denunciou as arbitrariedades daquele regime de exceção. A pintura, habitualmente
reverenciada como a mais “nobre” das artes, ainda que não tenha ficado imune aos ataques
das forças oficiais de patrulhamento e repressão, preservou um aparente (e seguro)
distanciamento -exceção feita a alguns poucos de seus representantes7 - das causas e anseios
de boa parte da sociedade brasileira da época.
Costuma-se justificar essa posição argumentando-se que o alcance da pintura é
restrito, na medida em que lhe faltam estruturas de veiculação tão amplas e eficientes quanto
aquelas de que se serve o cartum; e isso é verdade. Há que se considerar, no entanto, que
um meio de comunicação é, antes, uma iniciativa empresarial e, como tal -já nos
acostumamos a ver-, não hesita em sacrificar seus colaboradores e relativizar princípios em
favor dos interesses financeiros da empresa.
Um episódio ocorrido com o intelectual e humorista Millôr Fernandes, responsável
pela seção Pif Paf da revista O Cruzeiro -um fenômeno editorial brasileiro surgido em
1928-, ilustra bem o que foi dito.
Em 1963, a violenta reação da ala conservadora da Igreja a um desenhode Millôr, levara O Cruzeiro a suspender esta seção de suas páginas,
7 Dentre os poucos pintores no período que fugiram à regra da alienação político-ideológica podemos destacar, porexemplo, Rubens Gerchman, Cildo Meireles, Carlos Zílio e João Câmara.
79
após dezoito anos de publicação; a resposta de seu criador foi olançamento de o Pif Paf como revista de humor, independente. O PifPaf durou apenas oito números, o último dos quais apreendido pelacensura –uma existência marcada, do princípio ao fim, pela intolerância.Mas a idéia da criação de uma revista independente, sustentada pelospróprios jornalistas que nela trabalhavam, deitou raízes. (LEITE, 1982,p. 957)
Daí que seria ingenuidade presumir que as facilidades de veiculação sejam um
proveito pelo qual não seja preciso pagar um preço. Fosse assim e o grupo de intelectuais
e artistas responsável pela criação do semanário O Pasquim -um descendente direto do
Pif Paf- não precisaria ter-se dado ao trabalho de erigir sua própria cidadela e abrir um
canal de comunicação com a sociedade submetendo-se, ao desnudar as mazelas do regime,
a perseguições e chantagens de toda ordem; ou, os cartunistas não se teriam organizado
para criar e sustentar, por exemplo, espaços de visibilidade e resistência como o Salão de
Internacional de Humor de Piracicaba8 , hoje uma instituição -não mais um evento- com
aproximados trinta anos de existência.
É evidente que engajar-se não é condição indispensável ou mesmo necessária à
produção de obras de arte de qualidade, bem como não se pode esperar dos artistas, por
indivíduos que são, reações idênticas -para o bem ou para o mal- diante das mesmas
solicitações da vida. Não é isso, e a relação da arte com as convulsões sociais ao longo
da história da humanidade revela que a agressão à sensibilidade do artista pode conduzir
ao desencanto e, por desdobramento, ao afastamento ou à negação da realidade, sem
que isso signifique, necessariamente, ausência de qualidade em suas realizações. Por outro
lado, os conflitos, as guerras, a exploração e opressão humanas não impõem também,
como única alternativa ao artista, a alienação, a resignação ou o niilismo. A criatividade
que alimenta o núcleo poético do artista não pode igualmente contribuir para a descoberta
de meios originais de comunicação com o público? Certamente que sim, e para confirmação,
podemos recorrer a uma iniciativa, de 1975, do artista Cildo Meireles.
Em outubro daquele ano os órgãos de repressão haviam prendido para
interrogatório e executado, sob tortura, o jornalista Wladimir Herzog. A versão oficial
informava que o preso suicidara-se, na cela, com o cinto de seu uniforme. O caso -que
8 Ainda que neste ponto seja tentadora a oportunidade de aprofundar-me na análise das razões do flagrante desequilíbrioentre, de um lado, o contingente de pintores, e de outro, o de cartunistas (como de resto o de compositores populares,dramaturgos, poetas, cineastas e escritores) que combateram o autoritarismo com sua arte na vigência da ditadura militar,preferirei deixar aqui apenas o registro desta possibilidade.
80
voltou recentemente aos jornais- vazou para a imprensa que, mesmo submetida ao controle
da censura, achou meios de noticiá-lo e cobrar do estado rigorosa apuração de
responsabilidades. Revoltado com as tentativas do governo para mascarar e desviar a
atenção do fato, Cildo Meireles estampou sua indignação com a frase “Quem matou
Herzog?” carimbada em notas de um cruzeiro (fig. 40) que, a seguir, repôs em circulação9 .
O protesto político, porém, era apenas parte -ainda que significativa- da motivação do
artista; complementavam-na a crítica aos padrões convencionais da “arte burguesa” e a
oportunidade da realização artística com ênfase no
conceito e no processo -como propunham na época os
grupos alternativos-, mais que no produto. Atitudes
assim não foram, no entanto, a característica que marcou
os artistas plásticos do período; em depoimento à
jornalista Maria Hirszman, na edição especial “Os 30
anos do AI-5” publicada pelo jornal O Estado de São
Paulo, o crítico Frederico de Morais pontua que, na
vigência do referido ato institucional, a “arte brasileira
viveria momentos de grande inquietação, até estabilizar-
se, negativamente, com a autocensura, numa aceitação
passiva do status-quo”10 .
Sabemos todos que a autocensura é um dos processos mais perniciosos que a
ameaça exterior à livre manifestação das idéias e opiniões costuma desencadear no
indivíduo. Sob seu efeito é comum que o artista -mas aquele que não renuncia ao seu
papel-, ao buscar exprimir-se, o faça através de linguagem hermética, apoiada em
metáforas ou alegorias por vezes ininteligíveis aos seus contemporâneos; ou, que procure
trabalhar dentro das condições permitidas pelo agente exterior; ou, que se deixe seduzir
pelas oportunidades do mercado; ou, ainda, que se concentre, por exemplo, na solução
de problemas técnicos, de forma, matéria ou fatura.
De qualquer modo, num momento histórico desfavorável à liberdade de criação, o
que se produz em arte sob ação da autocensura, soma-se ao que se produz fora dela, e
Fig. 40 - Com Inserções, Cildo Meireles criava seuespaço de atuação política.
9 Uma curiosa coincidência, especialmente para esta dissertação que aborda o encontro -agora com ironia- da arte com odesign, é o fato de Cildo Meireles ter utilizado como suporte de sua obra um produto projetado por Aloísio Magalhãese tão estreitamente vinculado à origem dos cartemas.
10 HIRSZMAN, Maria. Artes plásticas conviveram com autocensura, O Estado de São Paulo, caderno especial sobre o AI-5.São Paulo, 1998.
81
ambas as situações traçam o perfil da produção artística do período. É de se supor que a
procura e opção por caminhos tão diversos, dada a heterogeneidade de seus resultados,
tenham concorrido para caracterizar os anos setenta do século XX como a “década da
experimentação” da arte brasileira.
No caldeirão de experimentações da criação artística nacional, misturavam-se,
em torno do início daquela década, tendências, linguagens e procedimentos os mais
variados, indo da pop art à arte conceitual, dos happenings à representação hiper-realista,
das propostas desmaterializadoras da arte às preocupações com a revisão da relação
arte-público. É também um tempo em que, a exemplo do que Alexander Calder realizara
nos anos 1930 com a invenção dos móbiles, proliferaram as demarcações de “nichos”
cuja exploração estética particularizada tornava indistinguíveis obra e autor: Parangolés
- Hélio Oiticica, Polaróides - Andy Warhol, Objetos relacionais - Lygia Clark, Popcretos
- Waldemar Cordeiro, (...) e Cartemas - Aloísio Magalhães.
Feitas estas considerações, creio então ser possível afirmar que a criação dos
cartemas não foi uma solução anacrônica ou estranha à conjuntura da arte brasileira dos
anos setenta. Nem seria menos admirável porquanto priorizou a ludicidade ao engajamento,
ou o aprimoramento dos sentidos ao chamado à luta política11 . Afinal, se no outro extremo
da produção artística (quando não na origem ou no centro dela) está o espectador, é
preciso que se considere e respeite seu direito de identificar-se com o que lhe aprouver,
dentre tudo aquilo que se oferece a ele como arte (ou mesmo como antiarte), antes que se
pretenda, como propunha Rubens Gerchman ao final dos anos 1960, “pegá-lo pelo pescoço
e fazê-lo pensar” (Leite, 1982, p. 974). Reconheço que o excesso de Gerchman foi
explorado aqui também com algum excesso, mas ele reflete bem a importância que tem
para os artistas -incluídos os que propõem ignorar- algum tipo de resposta do público às
suas obras; e é óbvio que essa resposta jamais será unânime, diante da rica diversidade
de proposições, linguagens e recursos e, mais importante, de subjetividades presentes
nessa relação.
11 Aloísio não foi um artista militante, à esquerda ou à direita, e creio que a desenvoltura com que se movimentava noscírculos oficiais tenha contribuído para, provavelmente, associar seu nome ao ideário do governo militar, a despeito desua atuação em programas e instituições de esquerda (governo Miguel Arraes, em Pernambuco, e o Teatro do Estudantedo Recife), ou das relações de amizade que sempre manteve com notórios opositores à ditadura (Ariano Suassuna, JoãoCabral de Mello Neto, Antônio Houaiss, entre outros).
82
4.2. ANALOGIAS VISUAIS E INFLUÊNCIAS
Aloísio Magalhães já se consagrara como designer no Brasil e internacionalmente quando
criou o cartema. As freqüentes viagens ao exterior, causa e efeito de seu cosmopolitismo,
colocaram-no desde cedo em contato com artistas, rumos e perspectivas da arte mundial da
segunda metade do século vinte, e seria mesmo improvável que o acúmulo de tantas vivências,
informações e identificações, aliado àquela “constante da invenção”12 que o caracterizava, não
viesse a desaguar num ato de criação. Se no Brasil as artes plásticas inauguravam, num momento
de internacionalização das linguagens, a sua fase “experimentalista”, pode-se inferir que as
possibilidades aí apresentadas tenham reacendido em Aloísio o desejo de retomar as explorações
estéticas e comunicacionais das quais, uma dezena de anos antes, se havia distanciado por
desencanto com os rumos da produção artística.
É verdade que o caminho traçado por ele, nessa retomada, não perpassava o território
da arte politicamente engajada e tampouco cruzava os domínios de grupos de vanguarda cujas
atitudes e propostas fizeram estremecer os padrões aceitos da arte naquele momento histórico.
Mas seu caminho não passou completamente ao largo das questões com as quais, àquela altura,
os artistas se viam às voltas, pois a idéia da interação arte-espectador, que o movia, era um
objetivo perseguido também por vários de seus contemporâneos. Prova disso é que, ao inventar
seus cartemas lançando mão de cartões-postais comerciais, Aloísio agregava ao ato criador a
intenção de oferecer ao público um modus faciendi, um processo composicional artístico, realizável
com baixo custo e passível de execução por qualquer indivíduo interessado em realizá-lo.
O triunfo desta vontade já teria sido, por si só, motivo suficiente para fazer do cartema
uma criação bem-sucedida do ponto de vista da função social, pois, ao fazer do espectador
um (possível) agente, a obra não se constituía um instrumento de transformação da realidade?
Mas pode-se ir além na análise (e nas divagações) acerca das muitas intencionalidades
que se “desprendem” da obra. Nesse sentido, podemos tomar como ponto de partida as
próprias palavras do artista, em entrevista13 ao Jornal da Tarde, de São Paulo, quando sua
obra era exibida no Museu de Arte Moderna daquela capital:
Embora simples, o cartema não é um achado. Tem toda a vivência e otreinamento de um olho atento a tudo. O cartão-postal é importante e
12 A expressão foi usada pelo crítico Clarival do Prado Valladares, em texto publicado no folder da exposição de AloísioMagalhães realizada na Galeria da Praça, no Rio de Janeiro, em 1974.
13 KRUSE, Olney. Foi preciso criar uma palavra para esta arte. Jornal da Tarde. São Paulo, 19 de março de 1973. Para se ter umaidéia do sucesso dos cartemas junto ao público, somente a mostra do MAM/SP, com duração aproximada de três semanas, rendeucerca de trinta reportagens em grandes periódicos nacionais.
83
universal. Tão importante que ficou banal. A arte anda meio trágica,densa, sufocada. Perde diariamente o caráter lúdico e a graça. Ocartema restitui ao espectador a alegria perdida. Ninguém ficaindiferente. (FUNARTE, 1982)
Em sua concisão, este depoimento contém os ingredientes fundamentais para a análise
pretendida: a experiência, o olho treinado, o postal, a alegria contraposta ao estado “trágico”
da arte, o lúdico e a integração. Iniciemos pelas circunstâncias que conduziram à escolha do
cartão-postal como elemento primordial daquela composição.
Quando Aloísio ainda se dedicava à pintura, em meados dos anos 1950, a pop art
dava os primeiros sinais de vida nos Estados Unidos, a partir de trabalhos de Jasper Johns
e Robert Rauschenberg14. Ganhando força nos anos sessenta, com as contribuições de Andy
Warhol e Roy Lichtenstein, o movimento (que Argan prefere classificar de fenômeno e o
crítico brasileiro Mário Pedrosa15 aponta -não sem sérias críticas- como sendo o marco da
pós-modernidade na arte) conquistaria adeptos também no Brasil e, embora fosse aqui
adaptado às temáticas “tupiniquins”, alguns recursos de fatura manter-se-iam bastante
próximos dos desenvolvidos nas soluções americanas.
Lichtenstein expunha em 1961, na Galeria Leo Castelli de Nova Iorque, pinturas
baseadas na narrativa visual das histórias em quadrinhos (fig. 41.1); seis anos depois, o
paulista Cláudio Tozzi explorava recursos semelhantes em sua série de pinturas O bandido
da luz vermelha (fig. 41.2), admitidamente referenciadas na obra do primeiro. Lá ou cá, a
14 Argan, 2000, p. 575.
15 Cf. MADEIRA, Angélica. Mário Pedrosa entre duas estéticas: do abstracionismo à Arte Conceitual. Disponível em:<http://www.unb.br/ics/sol/itinerancias/pip.html>; acesso em 27.10.2004.
Fig. 41 - (1) A técnica de Lichtenstein (Moça afogada, de 1963)... ...ecoa na obra (2) de Tozzi (O bandido da luz vermelha, 1967)
1 2
84
arte pop extraía dos produtos industrializados, dos mitos e signos da cultura de massa, das
coisas emblemáticas e dos objetos do cotidiano, servíveis ou inservíveis, a seiva de sua, por
assim dizer, vitalidade. Em alguns casos foi acrescida, aqui, de conteúdo político, como nas
“bananas metafóricas” de Antônio Henrique Amaral (fins da década de 60), ou na instalação
Berço esplêndido (1969), de Carlos Vergara (fig. 42.1), esta invocando inevitáveis
associações -a um só tempo- com as obras Cama (1955), de Rauschenberg (fig. 42.2) e
Três bandeiras (1958), de Johns (fig. 42.3).
Em 1962, Warhol produziria uma tela com imagens múltiplas serigrafadas de cédulas
da moeda americana -aliás, a paródia da serialização industrial foi um recurso de linguagem
recorrente, tanto em forma quanto em essência, nas telas do artista- e neste ponto pode-se
estabelecer uma conexão com a história dos cartemas. Seria coincidência ou obra do
inconsciente criativo de Aloísio que a idéia lhe ocorresse justamente no instante em que
observava o processo industrial de impressão das notas do dinheiro brasileiro, saindo lado
a lado, nas folhas de papel moeda?
Não havendo como responder com segurança à pergunta, posso conjecturar (e visto
que estamos no território do pop, aproveito-me do que os versos da canção me sugerem:
“as idéias estão no chão / você tropeça e acha a solução.”16).
Aqueles que já tiveram a oportunidade de observar uma impressão offset em
andamento, sabem dos efeitos potencialmente hipnóticos decorrentes da associação da
16 Versos da canção A melhor forma (de Sérgio Britto, Paulo Miklos e Branco Mello), do cd musical Titãs acústico. Weamusic, 1997.
1 2
3
Fig. 42 - A obra de Vergara (1): associações formaiscom as de Rauschenberg(2) e Johns (3)?
85
cadência da máquina impressora com o movimento rítmico de acomodação das folhas,
empilhando-se, uma a uma, ao final do processo. Sendo o transe hipnótico (mesmo o semi-
hipnótico) um estado alterado de consciência e, como tal, uma condição passível de redundar
num ato de criação, não seria completamente sem sentido a suposição de que a idéia dos
cartemas tenha acontecido em circunstância semelhante. Porém, ainda que a suposição
procedesse, faltaria explicar (ou divagar sobre) a opção de Aloísio pelo cartão-postal; nesse
caso, com mais possibilidades de acerto.
A explicação pode estar no interesse que, conforme foi dito no capítulo anterior,
desde cedo Aloísio manifestou pela cultura popular. Se recorrermos aos dois extremos do
tempo de sua vida dedicado aos campos da cultura e da arte, encontrá-lo-emos, no início,
integrado ao Teatro do Estudante de Pernambuco -onde comandou o Departamento de
Bonecos- ou, no final da vida, já Secretário da Cultura do MEC, comprometido com a “causa”
da identidade nacional, que buscava afirmar através da valorização do “fazer das
comunidades”. Na função de designer, sua participação na conformação da cultura brasileira
foi direta, quando realizou projetos de alcance nacional como o das notas de cruzeiro, a
cujo processo de produção me referia parágrafos atrás e a cuja relação com a origem dos
cartemas retorno agora.
Dispor imagens de notas de dinheiro lado a lado num quadro, Andy Warhol o fizera
quase dez anos antes. Que outro ícone da cultura mundial poderia equiparar-se ao dinheiro,
em termos de abrangência e de apelo aos valores identitários? Selos? Ídolos do cinema e da
música mundialmente famosos? Garrafas de coca-cola? Tudo isso freqüentou as obras de
Warhol. Os postais, não. “O cartão-postal é importante e universal”, já ouvimos do artista;
o que era idéia, em Aloísio, começava então a tomar corpo.
Seria conveniente, nesse ponto, esclarecer que não pretendo insinuar que os cartemas
pudessem ser a pura e simples adaptação de uma intenção a um processo preexistente (uma
ocorrência, na arte, da conduta típica dos “diluidores”, conforme o escritor e crítico norte-
americano Ezra Pound, em seu “ABC da literatura” 17 , classifica os escritores que se
aproveitam de descobertas alheias em suas realizações). Realmente não foram. Seriam, isto
sim, uma referência a um trabalho artístico anterior; ou seja, tanto guardam semelhanças
quanto diferenças em relação a ele. Diferenças que, no caso, começam pela técnica -lá, a
serigrafia; aqui, a colagem-, passam pelo procedimento -citação em Warhol; apropriação
em Aloísio-, e terminam na relação com o espectador -contemplação versus interação.
17 POUND, Ezra. ABC da literatura . São Paulo: Cultrix, 1970.
86
A colagem e a apropriação não seriam, no entanto,
um aspecto inovador do cartema. A primeira é um antigo
recurso plástico cuja (re)introdução na arte moderna é
atribuída a Georges Braque, com o quadro Fruteira e copo
(fig. 43), datado de 1912. Depois dele e dos demais cubistas,
a colagem passaria a ser um procedimento relativamente
comum nas produções artísticas.
As apropriações, igualmente, não são uma prática nova
na arte e sua história está intimamente ligada à da fotografia.
Em 1919, Marcel Duchamp acrescentou bigodes à imagem
da Mona Lisa impressa num postal, numa intervenção
denominada por ele próprio L.H.O.O.Q.18 ; mas antes dele, na última década do século
XIX, não teria sido apropriação a iniciativa de William Morris de recuperar através da
fotografia, para uso em suas publicações, os caracteres e ornatos dos livros medievais?
Tornada prática comum a partir da década de 1960, a apropriação traria como
conseqüência um novo estatuto para a obra de arte e, a reboque, a reformulação da noção
de autoria. Jacques Rancière (2003, p. 10) afirma que aquela
Era a época em que os artistas pop, com seus retratos de “stars” ousuas latas de sopa em série, destruíam o privilégio da obra única. Depoisvieram: a arte das instalações em que o artista geralmente se contentaem redispor objetos de uso e imagens já existentes; a prática dos DJmixando elementos sonoros tomados de composições existentes, a pontode torná-las impossíveis de reconhecer; e por f im a revoluçãoinformática, instaurando a reprodutibilidade sem controle e ilimitadade textos, canções e imagens.Assim parece desfazer-se o que constituía o conteúdo mesmo da noçãode obra: a expressão da vontade cr iadora de um autor numamaterialidade específica trabalhada por ele, singularizada na figura daobra, erigida como original distinto de todas as suas reproduções. Aidéia de obra torna-se radicalmente independente de toda elaboraçãode uma matéria em particular.
Mas isso se aplicaria aos cartemas de Aloísio Magalhães? Até onde foi possível
saber, eles são obras únicas, geradas por um objeto do qual o artista sem dúvida se
apropriou, mas que funciona aí não mais como o objeto cartão-postal, senão como “matéria”
sujeita à vontade criadora do autor. Afinal, na etapa de seleção da “matéria” básica
18 A pronúncia em francês das iniciais L.H.O.O.Q. aproxima-se foneticamente da frase “Elle a chaud au cul” - algoequivalente, em português, a “Ela tem fogo no rabo”.
Fig. 43 - Fruteira e copo, de Braque, aintrodução da colagem na pintura.
87
const i tu t iva do car tema, o conteúdo
“narrativo” cede lugar, em importância, às
características plásticas (mais que estéticas)
do postal, e este constitui um primeiro
momento sensível do processo comandado
pela “vivência e o treinamento de um olho
atento a tudo”. A partir daí, o trabalho de
Alo ís io cons is t ia em exp lorar, na
justaposição dos módulos -através de
deslocamento, rotação ou ambos-, a melhor
forma de concordá-los para atingir seu
intento: a obtenção do supermódulo, que se
repetiria criteriosamente para dar corpo à
composição final. Por sua vez, são variadas
as maneiras de se processar a serialização
dos supermódulos, com cada uma delas
proporcionando ao conjunto uma dinâmica
visual específica (fig. 44). E aqui chega-se
ao ponto crucial da criação cartemática: a
solução final é sempre o resultado de uma
escolha pessoal do artista dentre uma
quantidade inf ini ta de possibi l idades
concretas.
Fig. 44 - A solução final de um cartema de Aloísio(1) e quatro alternativas obtidas a partir de diferentes formas de justaposição dos módulos (2a, 2b, 2c e 2d).
1
2b
2c
2d
2a
88
Ehrenzweig (1969, p. 91) afirma, a propósito do processo de criação em arte, que “em
qualquer espécie de trabalho criador chegamos a um ponto em que termina o nosso poder de
livre escolha. O trabalho assume uma vida própria que oferece ao seu criador as únicas alternativas
de aceitá-lo ou rejeitá-lo”; um pressuposto que, acredito, será tão mais axiomático quanto maior
for o grau de flexibilidade admitido para o instante de ocorrência desse “ponto limite”. Parece-me
claro que na feitura de uma pintura de ação, por exemplo, ele tenderia a acontecer mais
rapidamente do que na construção de um cartema, dado que aqui o artista opera com maior grau
de previsibilidade e até, se preciso, com mais possibilidades de correção de rumo. A explicação
para essa diferença pode estar exatamente no fato de que o princípio compositivo do cartema
resolve-se, simultaneamente, como criação artística e atividade projetual. Nele, à sensibilidade
do artista soma-se a habilidade do designer gráfico, e a composição, materializada a partir da
submissão espacial do cartão-postal à organização objetiva do campo diagramado acaba por
resultar, aí, predominantemente pop; mas não estritamente pop. Com efeito, a poética cartemática
resvala do pop para outras referências e influências. A obra de Maurits Cornelis Escher (1898-
1972) é uma delas, e, possivelmente, a mais significativa.
Aloísio era um admirador confesso deste habilidoso artista holandês. No texto Aloísio,
designer de sinais -já citado no subcapítulo 3.3- o autor, Chico Homem de Melo, chama a
atenção para o que classifica de “impressionante sincronia entre as investigações de Aloisio e as
de M. C. Escher”, tomando por exemplos o símbolo do Unibanco (fig. 45.1), criado pelo designer
brasileiro em 1964/65, e desenhos das séries Moebius Strip (1961) e Knots (1965), realizados
pelo segundo (fig. 45.2).
Pouco adiante, Melo acrescenta que “mais tarde, no início da década de 1970, quando
Escher passou a ter ampla divulgação internacional, Aloisio se entusiasmaria com sua obra, a
ponto de, em 1973, realizar uma série de litografias em sua homenagem”. Realmente, litogravuras
preparadas com esse objetivo integraram a exposição da Galeria da Praça (Rio de Janeiro, 1974);
Fig. 45 - (1) Símbolo do Unibanco, de autoria de Aloísio Magalhães, e as gravuras das sériesMoebius strip (2a) e Knots (2b), realizadas por Escher.
1 2b2a
89
numa delas (fig. 46.1), Aloísio incluiu um detalhe extraído de Belvedere (fig. 46.2), uma das
obras litográficas nas quais Escher exibe sua maestria na exploração de relações espaciais
impossíveis. Na mostra, foram também exibidos aquarelas e cartemas, e penso que, mais do que
supor que “esse recurso [as litogravuras] derivou da experiência do cartema, e se destinando,
talvez, a uma revisão de sua inventividade”, conforme as palavras de
Clarival Valladares no folder da exposição, as litografias teriam
servido ali não só para tornar pública a admiração do autor, mas
também para revelar a principal fonte de inspiração da criação
cartemática. Mesmo porque, qualquer rápida comparação entre a
maneira como normalmente os cartões-postais são manipulados no
cartema e a estruturação de algumas das gravuras realizadas por
Escher, permitirá constatar a estreita semelhança de princípio
compositivo entre as soluções (fig. 47).
Isto posto, creio que o fato de Aloísio estar justamente
na Holanda quando inventou o cartema, não deve ser visto como
(mais uma) simples coincidência; ao contrário, prefiro considerá-
lo mais como o resultado, inconsciente ou não, de um processo
de acentuada identificação19 (na acepção que a psicologia
Fig. 46 - Na litogravura (1) de Aloísio Magalhães, a inclusão do detalhe (ao centro) extraído da obra Belvedere (2), criada por M. C. Escher em 1958.
1 2
Fig. 47 - A manipulação do módulo numcartema (1) e no estudo (2) de Escher parauma divisão regular da superfície .
2
1
19 A existência de pontos comuns nas trajetórias dos dois artistas, com Escher se antecipando a Aloísio em termostemporais, coloca em dúvida para mim a questão da sincronicidade a que se refere Chico Homem de Melo. Der Zauberspiegeldes M. C. Escher, um livro de autoria de Bruno Ernst, apresenta particularidades da vida profissional do artista holandêsque, comparadas a certos momentos e realizações da carreira de Aloísio, contribuem para dar força à minha hipótese da“acentuada identificação”. Como a análise mais detida desses aspectos não só demandaria tempo como implicaria emprejuízo para a objetividade desta dissertação, preferirei transferi-la para ocasião mais oportuna.
90
empresta ao termo). E mais: uma análise da criação
cartemática que se pretenda sincera -assim entendo-, não
pode ignorar a possibilidade de Aloísio ter tomado
conhecimento da obra de Escher em época anterior àquela
que Homem de Melo aponta como tendo sido a “de ampla
divulgação internacional” desse artista20. Quanto mais seja,
porque reconhecer e revelar tal influência não reduzirá em
nada as qualidades específicas do cartema; afinal, poder-
se-ia igualmente dizer de algumas obras de Escher (como
as da fig. 48), que seriam também elas -em certa medida e
sem que isso as subtraia de originalidade e inventividade-
beneficiárias das pesquisas e conquistas estéticas dos
cubistas, conquanto aí o artista recorreu à representação
simultânea de um mesmo motivo capturado de diferentes
ângulos de observação. Mas esta seria uma discussão a ser
explorada noutra oportunidade.
De volta às semelhanças, a maior aproximação entre
a obra do artista holandês e os cartemas, em termos
conceptuais e visuais, encontra-se na conhecida série
denominada Divisão regular de uma superfície, iniciada
por Escher em 1922, sobre cujo método construtivo seu
autor alertava: “Quem quiser representar simetria numa
superfície plana, tem de tomar em linha de conta três
princípios fundamentais da cristalografia: translação, rotação
e reflexão com escorregamento” (ESCHER, 1998, p. 8).
Como já foi visto anteriormente, estes princípios,
conjugados ou isoladamente, nortearam várias das criações de Aloísio Magalhães em sua
pintura primordial e em seus projetos gráficos, sendo que o cartema pode ser considerado
a expressão exata da aplicação de dois deles: a translação (invariavelmente) e a rotação
20 A atuação profissional de Escher não se restringiu às realizações em sua terra natal; do ano de 1922, em que produziusuas primeiras gravuras, até falecer em 1972, viveu por dez anos na Itália (de onde fez inúmeras viagens de estudos àEspanha e à França), dois anos na Suíça e cinco anos na Bélgica. Nesses cinqüenta anos de dedicação às artes visuais,produziu cerca de 450 gravuras, mais de dois mil desenhos e estudos, além de trabalhos literários. Se associarmos estesfatos às várias viagens de Aloísio pelo continente europeu, inclusive o aprendizado de gravura no atelier de Hayter,teremos elementos bastantes para dar sentido a essa suposição.
Fig. 48 - Em Um outro mundo II (1) e Em cima eembaixo (2), obras de Escher do ano de 1947,recursos visuais que remetem ao cubismo.
1
2
91
(freqüentemente). As semelhanças, no entanto, não param por aí, e, na mesma linha de
desenvolvimento daquela série de desenhos de Escher, o processo cartemático:
a) inicia-se pela modulação geométrica do espaço (mesmo com possibilidades menos
amplas do que aquelas com que operava Escher);
b) constrói-se a partir da serialização da imagem (diferentemente dos cartemas, que
utilizaram um ou no máximo três tipos21 de cartões-postais na mesma obra, as divisões
regulares escherianas resolviam-se com maior grau de liberdade quanto ao número
de componentes formais aplicados, como se pode constatar na obra Oito cabeças -
a primeira da série-, mostrada na figura 49);
c) revela-se lúdico ao manipular os elementos formais justapondo-os perfeitamente
uns aos outros como num puzzle que refuta, a priori, a existência de espaços vazios na
composição; e
d) explora condições visuais ambíguas, perturbadoras da experiência sensorial primária.
Esta última particularidade esteve na essência da Op(tical) Art -“a mais
intelectualmente controlada das técnicas modernas”, na visão de Ehrenzweig (1969, p. 91)-
surgida nos anos 1960 como desdobramento das pesquisas estéticas e ópticas iniciadas
ainda no século XIX pelos impressionistas, levadas adiante pelos cubistas, por Mondrian,
pelos construt iv istas e pela Bauhaus, e
enriquecidas pelas experiências cinético-visuais
de Laszló Moholy-Nagy -artista pesquisador
que, falecido em 1946, é tido por Argan (1992,
p. 519) como o precursor desse movimento.
É importante ressaltar, no entanto, que
os artistas não foram os únicos a contribuir para
essa revolução do modo de ver que desembocou
na op art. Em Frankfurt, no início da segunda
década do século XX, os pesquisadores Max
Wertheimer, Wolfgang Köhler e Kurt Koffka
promoveram estudos no campo da psicofísica
buscando relacionar forma e percepção e
21 É o caso dos cartemas da Série Barroca, produzidos por volta de 1974, com postais que retratam detalhes de obras dearte do barroco nacional. Nesta série, a associação de diferentes cartões-postais temáticos não apenas sacrificou a idéia decontinuidade do cartema para além dos limites do quadro, como resultou em composições de simetria estática, constituindo,a meu ver, os menos instigantes de todos os cartemas criados por Aloísio Magalhães.
Fig. 49 - Em Oito cabeças, a primeira das divisões regulares dasuperfície criadas por Escher, quatro rostos femininos e quatromasculinos se alternam como figura e fundo, preenchendo toda a áreada composição.
92
lançaram os alicerces daquilo que alguns anos mais tarde seria conhecido como a Teoria
Gestalt. M. C. Escher foi contemporâneo desses cientistas, e as divisões regulares da
superfície produzidas por ele são uma demonstração da exploração criativa, em arte, dos
fundamentos gestaltistas sobre as relações perceptuais ambíguas entre figura e fundo. Um
dado curioso é que, não obstante um intervalo de quase quarenta anos separe as primeiras
divisões regulares da eclosão do movimento op art, o nome de Escher é comumente incluído
no rol dos artistas adeptos desta tendência22 . Ainda que em termos cronológicos possa ser
indevida tal classificação, as representações engenhosas e intencionalmente desarticuladoras
dos padrões “lógicos” de visualização e cognição -substância primordial de grande parte
das suas criações-, fazem com que não seja exagero considerá-lo um elo entre a psicologia
e a arte. É o que deixa transparecer Allen Hurlburt (1986, p. 143) quando, em alusão à
natureza do trabalho desse artista, afirma:
M. C. Escher, um mestre da gravura e da impressão, utilizou a ilusão ea ambigüidade mais d i re tamente que qualquer out ro ar t is tacontemporâneo. Escher criou paradoxos dimensionais compondodiversos pontos de observação numa mesma cena, edifícios que mudamde perspectiva em cada um dos andares, escadarias que tanto parecemlevar para cima como confluir para um retângulo sem saída. Seutrabalho não pode ser classificado como freudiano, mas cria seu próprioclima surrealista, tirando proveito das ambigüidades da percepção.
Quanto a Aloísio Magalhães, foi já na condição de
designer que ele testemunhou a breve permanência da op art
como tendência hegemônica no cenário artístico ocidental; a
influência desse movimento em sua produção é particularmente
perceptível nos projetos desenvolvidos para as cédulas de
cruzeiro -marcadas deliberadamente pelo efeito (óptico) moiré-
e no símbolo criado em 1969 para o Banespa (fig. 50).
Tendo ocorrido de forma mais imediata e ostensiva
sobre o design de Aloísio, os sinais da arte óptica mostrar-se-
iam também, só que pouco mais tarde, no cartema. Distintamente
porém do ocorrido com as divisões regulares de Escher, que
22 É verdade que os últimos trabalhos de Escher foram realizados por volta de 1960 (Belvedere, 1958; Ascending anddescending, 1960; Waterfall, 1961), quando a op art começava a se firmar como tendência, mas um olhar retrospectivosobre a vasta produção deste artista revela que eles terão sido mais o resultado natural de suas próprias descobertas doque fruto de eventuais influências da arte óptica ou daquelas experiências que antecederam imediatamente a ela.
Fig. 50 - Efeitos ópticos no detalhe danota de Cr$ 1,00 (1) e no símbolo doBanespa (2), criações de Aloísio Magalhães.
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ao se anteciparem àquela tendência ajudaram a pavimentar o caminho em direção a ela, o
cartema buscou referência nela; pois não é verdade que ao negar estabilidade à atenção de
quem o observa o cartema se reveste de pelo menos uma particularidade que o aproxima da
condição op? É preciso ressaltar, todavia, que aí já não se trata, como em Escher, de
surpreender condicionamentos habituais da percepção a partir da exploração habilidosa da
alternância figura-fundo, ou das situações espaciais impossíveis; tampouco se trata de tirar
partido, como o fizeram artistas expressivos da op art -entre os quais Victor Vasarely e
Bridget Riley-, da seriação meticulosamente programada de linhas, formas e cores, para
alcançar padrões rítmicos abstratos altamente instáveis e incômodos à observação superficial
e, através deles, transformar visão mecânica em olhar compreensivo (o responsive eye).
Nos cartemas, a presença da arte óptica revela-se, especificamente, através do poder -que
lhes é exclusivo- de extrair reações perceptuais e intelectivas do conflito entre abstração
simulada e figuração explícita.
Com a arte óptica, Escher, e a pop art como referências, com a apropriação, a colagem
e a diagramação como meios e a comunicação como objetivo, Aloísio Magalhães demonstrava,
em seu fazer artístico, a importância daquela visão retrospectiva que sempre defendeu como
base para o desenvolvimento de políticas culturais consistentes para o país. A receptividade e
admiração do coletivo por esse trabalho de arte confirmam, como correta, a tese sustentada
por ele, e expressa em um de seus depoimentos23, quando secretário geral da cultura no Brasil:
“Na medida em que conhecermos as nossas verdades, que têm sidoditas através do processo histórico, em que conhecermos essescomponentes, é que poderemos, realmente, pensar no tempo novo. Aimagem que eu utilizo é a do estilingue ou do bodoque. A pedra irásempre mais longe quanto mais recuarmos a borracha, e é precisoque a borracha não parta, é preciso que nessa busca da forçaenergética pretérita não ocorra ruptura, e, portanto, que se conheçanum contínuo os componentes que fazem verdadeiramente essaenergia, e aí a pedra irá mais longe”.
Em resumo, o caminho de criação que conduziu à idealização do cartema não seguiu o
mapa da ruptura ou do vanguardismo, nem se propôs objetivo maior que o de comunicar-se com
o público numa linguagem acessível e eficaz; em vez de negar, Aloísio preferiu reconhecer e
valorizar experiências e descobertas de artistas que o precederam, somou-as às suas próprias e,
ao incorporar tal herança ao cartema de modo criativo e original, contribuiu para perenizá-la.
23 Disponível em <http://www.ars.com.br/projetos/ibrasil/apresen.htm>; acesso em 19.06.03.
94
4.2.1. Livres associações à margem da arte
Pertencem à esfera da arte os movimentos e produções dos quais advêm as influências
mais perceptíveis sobre a invenção dos cartemas; no entanto, a inventividade e o ludismo
que emanam da obra evocam correlações que transbordam desse domínio exclusivo para o
território mais amplo da cultura. Uma vez que qualquer componente material ou imaterial de
uma cultura -inclusive aquele que escapa à classificação de objeto de arte-, é um fator
potencialmente capaz de influenciar ou até mesmo de formatar um processo de criação que
aconteça no seio desta mesma cultura, entendo ser cabível extrapolar as fronteiras da arte à
procura de elementos que se relacionem, por algum tipo de semelhança estrutural ou analogia
visual, com o processo construtivo, aparência e linguagem cartemáticos.
Uma dessas ocorrências já foi assinalada, parágrafos atrás, quando sugeri
comparações entre a construção cartemática e os quebra-cabeças, explicadas do ponto de
vista do processo de montagem de ambos e, principalmente, do aspecto lúdico responsável
por essa aproximação. O puzzle, no entanto, não será o único dos objetos de nossa cultura
material, no universo dos jogos e brincadeiras, no qual se percebem relações de semelhança
com particularidades dos cartemas. O baralho e o caleidoscópio são duas outras
possibilidades.
O baralho é um componente da cultura universal, cuja data e local de origem são
imprecisos, embora haja registros de sua existência na China já em meados dos anos novecentos.
Introduzido na Europa apenas entre os séculos XIII e XV, acabou ganhando o mundo por
ação dos colonizadores europeus. Em virtude da rápida disseminação do hábito do jogo de
cartas pelo continente europeu, alguns países, vendo aí a oportunidade de arrecadação de
impostos, logo adotariam medidas de controle em relação à sua produção e comercialização.
A coroa portuguesa, por exemplo, assumiu através da Gráfica Real o monopólio de fabricação
e comercialização das cartas, que vigorou de 1769 a 1832 e, de forma geral, foi somente a
partir do século XIX que as colônias -entre elas o Brasil- começaram efetivamente a produzi-
las. Nos dias atuais, estima-se em três quartos da população mundial o número de pessoas
que usam alguma dentre as muitas versões existentes de baralho24.
Com um papel tão marcante no desenho das mais diversas culturas, o baralho é hoje,
mais que nunca, um produto da indústria gráfica. Como solução visual-funcional, as versões mais
usuais adotam na configuração das imagens das cartas, particularmente aquelas que representam
24 Disponível em: <http://loja.copag.com.br/portalcopag/jsp/institucional/historia/index.jsp>. Acesso em 14. 11.2004.
95
as figuras da dama, do valete e do rei, um arranjo estrutural baseado no recurso da simetria. A
função óbvia deste inteligente artifício é facilitar o reconhecimento das cartas durante o jogo, sem
a necessidade de girá-las para adequá-las à posição de cada jogador.
Mas que relação há entre isso e o cartema?
Um começo de resposta poderia tomar como ponto comum o fato de que tanto o
cartão-postal quanto as cartas do baralho são produtos gráficos -pertencem, portanto, ao
campo de atuação do designer; são impressos de formato retangular com proporções similares
e, em cada um deles, uma das faces impressas apresenta tratamento estético privilegiado
em relação à outra. Estreitando um pouco mais, caberia ressaltar a semelhança entre o
princípio de desenho a partir do qual se ilustram as figuras desse jogo (fig. 51.1), e o modo
de estruturação aplicado com freqüência nos supermódulos das composições cartemáticas
(fig. 51.2). Todavia, o fator decisivo para confirmar o pressuposto da referida influência
vem da própria produção de Aloísio Magalhães: no projeto desenvolvido a pedido do Banco
Central do Brasil para a cédula de mil cruzeiros (fig. 51.3), o designer, observando a
correspondência de procedimento entre o ato de manuseio e troca do dinheiro e o das
cartas de baralho, não hesitou em utilizar como partido gráfico aquela solução visual-funcional
culturalmente consolidada. Ainda que o projeto seja posterior ao ano de invenção dos
cartemas, já vimos que a simetria -especular ou circular- perpassou boa parte das criações
aloisianas, fossem elas em design ou na pintura.
No que concerne ao caleidoscópio, a semelhança entre suas imagens e os cartemas
ocorre -comparativamente ao baralho- num nível mais imediato, porém menos consistente,
sendo recorrentemente mencionada nas situações de um primeiro contato com esse trabalho
artístico. A inclinação primária da percepção humana pelas formas e configurações simétricas
é uma particularidade que dá sentido a esse tipo freqüente de associação. Sabe-se que a
reflexão especular constitui o princípio básico de funcionamento do caleidoscópio. O
Fig. 51 - A solução gráfica da carta de baralho (1), que pode ter influenciado a concepção do supermódulo docartema (2), inspirou Aloísio Magalhães no design da nota de mil cruzeiros (3).
1 2 3
96
espelhamento multidirecional caleidoscópico adiciona à imagem, já simétrica, uma
estruturação radial responsável por particularizá-la, tornando-a ainda mais pregnante (fig.
52). De outro lado atuam os componentes culturais (assimilação, difusão, trocas etc.), assim
como no caso anterior, emprestando seu reforço a essa pregnância, mesmo que o tempo de
existência do caleidoscópio25 na cultura mundial não se compare ao do baralho. Por esses
motivos é que não nos intriga o fato de sermos perfeitamente compreendidos quando falamos
genericamente de imagens caleidoscópicas, mesmo sabendo que ao menos em teoria cada
forma gerada num caleidoscópio é única e irrecuperável (se desfeita). Qualquer correlação,
portanto, que se possa estabelecer entre tais formas e a configuração cartemática acontecerá,
primeiramente, por efeito dessa pregnância estética. Poder-se-ia acrescentar a isso que a
simetria caleidoscópica, por ser radial e contínua (podendo estender-se ao infinito), produz
imagens cujo processo de apreensão visual, para consumar-se, prescinde de normas e
artifícios facilitadores, igualmente ao que se verifica nos cartemas. De fato não há, nas
composições cartemáticas, um ponto ou sentido definido de entrada de “leitura”, embora a
varredura visual da obra sofra a inevitável influência do padrão ocidental de escrita/leitura
e tenda a desenvolver-se no sentido do canto superior esquerdo para o canto inferior direito
do plano observado. A rigor, algumas soluções cartemáticas, baseadas na montagem do
supermódulo a partir da rotação em 180° de um dos módulos, dispensariam até mesmo a
determinação prévia daquilo que seria a base ou o topo da composição; a simetria
estabelecida no início estende-se por todas as direções e culmina por moldar, também
simétrica, a feição final da obra.
25 A invenção do caleidoscópio, atribuída ao cientista e escritor escocês Sir David Brewster, remonta ao ano de 1816 eaconteceu como desdobramento de experimentos pioneiros realizados com a polarização da luz. A intenção inicial de queo caleidoscópio fosse tão somente um instrumento científico acabou extrapolando dessa condição para a categoria debrinquedo, dado o encantamento que a beleza e mutabilidade das imagens luminosas produzidas pelo aparelho exerceramsobre o público leigo da época.
Fig. 52 - A imagem caleidoscópica agrega particularidades que a tornam reconhecível como tal, mesmo que cada uma seja única, ou se desenvolva segundoestruturas radiais quadrangular (1), pentagonal (2), hexagonal (3), ou de qualquer outro tipo.
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97
Observadas (o quanto possível com o espírito desarmado) através destas
características, quando então princípio e fim se confundem e o sentido de leitura já não
altera o conteúdo da mensagem, as construções cartemáticas se aproximam conceitualmente
da figura do oroboro26 , símbolo místico da magia medieval (fig. 53). Advirto que não me
proponho aqui a tarefa de extrair de tal aproximação qualquer conotação esotérica, e sim
valer-me da oportunidade que a designação para a “serpente-dragão que morde a própria
cauda”, grafada daquele modo, me oferece. À parte o fato de a forma oroboro ser antes
uma adaptação gráfica e sonora a práticas místicas (que vêem sentido mágico na possibilidade
de pronunciá-la ou escrevê-la em direções opostas), ela se configura, para o que interessa
aqui, um palíndromo. Mais um desafio lúdico do que um recurso literário, os palíndromos
encontram os cartemas através exatamente da independência de ambos em relação a um
sentido preestabelecido de varredura visual. Variando de exemplos simples como ROMA
ME TEM AMOR -considerado o mais antigo na língua portuguesa- até soluções de grande
complexidade, o palíndromo é prática conhecida na linguagem escrita desde os gregos do
século III a.C., havendo registros de sua existência em pelo menos dez diferentes idiomas.
No Brasil, conquistou adeptos tais como o matemático-escritor Malba Tahan, o humorista
Millôr Fernandes e o compositor Chico Buarque de Hollanda, além do entusiasta e estudioso
dessa arte, o advogado-escritor Rômulo Marinho. Num texto27 sobre o assunto, Marinho
transcreve as impressões do poeta francês Claude Gagnière: “para os que amam as palavras,
o palíndromo representa uma espécie de felicidade em estado puro: é a frase espelho, a
perfeição na simetria, ou a serpente que morde a própria cauda, o ingresso no círculo mágico
dos vocábulos que não têm fim”. Certamente, não será por mera coincidência que ao serem
26 Apesar da preferência dos lexicógrafos pelo vocábulo nas grafias ouróboro ou uróboro, a forma oroboro, adotada aqui,é também admitida.
27 Cf. MARINHO, Rômulo. Você sabe o que é palíndromo? Disponível em <http://www.usinadeletras.com.br/exibelotexto.phtml?cod=5789&cat=Artigos>. Acesso em 11.06.04.
Fig. 53 - Três diferentes representações do oroboro: como dragão (1), como serpente marinha (2) e na forma combinada de ave e serpente (3).
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98
substituídos nessa fala do poeta os substantivos palavras, frase e vocábulos pelo termo
imagem(ns), e também palíndromo por caleidoscópio, a idéia expressa continue fazendo
sentido apesar de deslocada do campo verbal para o visual.
Em nível menos direto de correspondência, caberia ainda explorar a questão da
ambigüidade que, visual no cartema, pode se manifestar na língua falada sob a forma de
construções cacofônicas ou de duplo sentido. Certas mensagens verbais são capazes de
transportar, simultaneamente, significados absolutamente distintos, revelados conforme se
transmitam através da escrita (Porque Maria estava adiando a ida, eu e os outros não
entendemos; ou outra: Não a via naquele canto nem sem óculos escuros) ou da fala
(Porque Maria está vadiando, Aída, eu e os outros não entendemos; Não havia naquele
canto nem cem óculos escuros). Evidentemente, arranjos verbais dessa natureza só se
justificam como um jogo, intencional, com a língua; e, por se constituírem um artifício lúdico,
estreitam um pouco mais sua (cabível) conexão com o processo cartemático.
99
4.3. PRINCÍPIOS ESTRUTURAIS E CONFIGURAÇÃO
Fragmento de um continuum capturado no espaço do quadro o aspecto final do
cartema, em resumo, é isto: uma configuração abstrata, de construção geométrica e marcada
fortemente pelo ritmo, cujas condições visuais instáveis negociam permanentemente com o
observador a preferência de sua atenção, ora atraída pela pregnância das imagens “reais”
do módulo, ora pelo extraordinário da conformação não-figurativa do conjunto. O princípio
de organização estrutural das composições cartemáticas -fator determinante da aparência
geométrico-abstrata da obra-, é um processo no qual se podem reconhecer vestígios da
orientação racionalista do design suíço-alemão da Escola da Forma de Ulm, tão presente na
obra de Aloísio Magalhães. Mas se a razão informa o cartema em sua materialidade, a
emoção é que o provê de expressividade, pois é ela que dirige o olhar criador em busca de
concordâncias cromáticas ou formais que propiciam,
[...] através do múltiplo, visualizações de conjunto que fazem do todouma nova unidade visual. Os cartões-postais se juntam formandosurpreendente continuação da imagem descoberta. A nova imagem nãoé mais aquela contida no cartão-postal, do mesmo modo que o muronão lembra o tijolo. Mas é sua unidade de estrutura. E por mais desigualque possa ser o cartão do próprio cartema, ali está para sempre, comosua vértebra, suas vísceras.28
Seria o caso de se deduzir daí que quanto mais harmoniosa for a coexistência desses
desiguais -a unidade e o conjunto- mais expressivo será o cartema? Ou que, dada a relativa
independência dos predicados visuais de um em relação aos do outro, qualquer postal pode
levar a uma solução cartemática esteticamente satisfatória? Respostas a estas questões
haverão de considerar, necessariamente, alguns aspectos típicos das composições visuais
modulares; o processo de desenvolvimento, por exemplo.
Conceitualmente, a composição modular bidimensional é um padrão gráfico-visual -
assim como o são, também, certas texturas e patterns- obtido pela repetição sistematizada
de um elemento formal básico, o módulo original. Para que uma composição modular seja
percebida e assimilada como tal, faz-se necessária a aplicação seriada da unidade geradora
em mais de uma direção, com adjacência total às peças vizinhas, e em quantidade variável
conforme o grau de complexidade e de efeitos rítmicos pretendidos por seu criador. Levando-
se em conta que uma composição modular é produto do esforço conjugado de intelecção e
28 Valladares, Clarival do Prado. Aquarelas, litogravuras e cartemas de Aloisio Magalhães. In: LEITE, João de Souza. Op. cit., p. 77.
100
sensibilidade, é fácil concluir que o principal desafio do artista será então o de extrair
resultados estéticos inusitados da seriação do elemento modular escolhido, em arranjos tão
elaborados que dificultem, ao primeiro olhar, a identificação do módulo no corpo da obra.
Isto não implica, no entanto, na exigência de atributos visuais especialmente ricos ou
complexos para a unidade padrão; ao contrário, resultados estéticos surpreendentes e
diversificados podem ser alcançados, como mostra a figura 54, a partir de elementos
modulares de construção bastante singela.
É preciso ressaltar, no entanto, que o exemplo em questão, se comparado ao cartema,
beneficia-se de certas facilidades composicionais, tais como o formato quadrado do módulo
e a organização espacial assente num diagrama quadrangular regular, além do fato de que aí
Fig. 54 - A unidade modular (à esquerda) definida apenas pela alternância de branco e preto segundo a diagonal do quadrado,propicia composições modulares de configurações diversas, com diferentes graus de complexidade (abaixo).
101
o artista tem a oportunidade de criar simultaneamente o módulo e a composição. E por que
isso constitui uma facilidade? Em primeiro lugar, porque o módulo quadrado, quando girado
em ângulos de 90º sobre seu centro geométrico, mantém inalteradas tanto sua posição relativa
no espaço quanto sua adjacência às demais unidades. Esse recurso faz com que as
possibilidades de continuidade visual entre os elementos formais das peças contíguas sejam
consideravelmente ampliadas. De outro lado, a montagem sobre uma estrutura básica
quadrada29 garante o alinhamento perfeito dos módulos, na horizontal e verticalmente,
evitando a ocorrência de espaços remanescentes -os “vazios” indesejáveis- no corpo da
composição.
Aloísio Magalhães explorou esse método composicional em pelo menos um dos
cartemas que produziu. Para isso, seccionou os cartões-postais de modo a torná-los
quadrados e, mesmo tendo a alternativa de justapô-los de modo desalinhado, optou por
não fazê-lo; e o resultado, contrariando a idéia de monotonia geralmente associada ao
quadrado, foi surpreendentemente dinâmico (fig. 55). O desalinhamento a que me refiro é
Fig. 55 - Praia de Copacabana, Rio, cartema em que Aloísio utilizou postais seccionados.
29 A concepção de estrutura básica utilizada neste trabalho segue os conceitos apresentados pelo artista e designer italiano BrunoMunari, no livro: MUNARI, Bruno. Design e comunicação visual. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
102
aquele admissível nas composições modulares, ou seja,
acontece com o deslocamento sistematizado de uma linha
(ou grupo de linhas) ou de uma coluna (ou grupo de
co lunas) em re lação à pos ição anter io r de seu
correspondente, conforme demonstram os esquemas
diagramáticos da figura 56. A dinâmica visual da obra
Praia de Copacabana, patrocinada pelo movimento
circular aparente dos supermódulos, deve-se à forma de
montagem das unidades que, ao serem organizadas em
grupos de quatro, sofrem rotação seqüencial de 90º. Visto
que cada um dos módulos pode assumir em sua célula
quatro diferentes angulações (0º, 90º, 180º e 270º), deduz-
se facilmente que o artista, também aqui, dispunha da
opção de organizar o supermódulo de maneiras bastante
variadas. Se associados, deslocamento e rotação levam
estas possibilidades a um número infinitamente maior, mas
Aloísio não se ter ia deixado seduzir por isso, e,
curiosamente, adotou sempre os menos complicados
recursos de montagem na criação de seus cartemas. Em
verdade, seu propósito parecia voltar-se mais para a
descoberta e aproveitamento de pontos de continuidade
formal e cromática das imagens dos cartões-postais, do
que propriamente para o método de estruturá-los.
Todavia, é pelo fato de ser planejada que a
distribuição espacial dos supermódulos permite ao artista
prever e controlar, com razoável precisão, o resultado final
do seu trabalho. Conciliada com o fazer artístico, essa base
projetual é o fator que alça o cartema à categoria
simultânea de obra de arte e de design. A alternativa de
se pensar a estrutura organizacional ao mesmo tempo em que se resolve a obra (ou até
antecipadamente a ela) não implica, pois, em afastar o cartema das características que o
fazem tão singular; pelo contrário, reforça-lhe a dupla natureza. Além disso, ao lado das
qualidades imagéticas dos cartões-postais, a organização composicional dos cartemas -que
Fig. 56 - Os diagramas estruturais quadrados, nasversões: regular (1); com deslocamento progressivo(2) ou alternado (3) das colunas ou grupos decolunas; e deslocamento progressivo (4) oualternado (5) das linhas ou grupos de linhas.
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103
decorre sempre da forma geralmente retangular e das dimensões padronizadas deste modelo
de impresso- é o que responde pela modulação rítmica de cada solução. Conforme as
unidades se justaponham em conjuntos de dois ou quatro cartões para conformação do
supermódulo -ou módulo secundário de composição-, a aparência do conjunto se altera,
sugerindo por vezes seriações periódicas à semelhança da propagação linear de ondas, por
outras padrões visuais “estelares” como o do quadro Praia de Copacabana.
Tomo agora este quadro como exemplo, para demonstrar o quanto as variações
diagramáticas podem interferir na configuração final de uma composição modular. Para isso,
foram produzidas algumas simulações de cartemas, montadas a partir de postais igualmente
simulados, limitadas inicialmente a alternativas compatíveis com o modelo de estrutura
quadrangular. Transpondo a obra em questão para uma representação esquemática, tem-se:
a) o seccionamento do postal para adequá-lo à malha quadrada (fig. 57);
b) o supermódulo montado a partir da rotação seqüencial (em 90o) da unidade geradora,
já ajustado à malha quadrada regular (fig. 58.1); e
c) o cartema simulado (fig. 58.2), nos moldes da montagem em Praia de Copacabana.
Fig. 58 - A rotação seqüencial em 90º dá origem ao supermódulo, que se repetirá alinhadamente nas direções horizontal e vertical.
21
Fig. 57 - As proporções originais do postal P são alteradas, através de seccionamento, para o formato quadrado.
104
Admitindo-se esta simulação como correspondente àquela obra que lhe serviu de
modelo, várias soluções alternativas serão possíveis ao se processarem mudanças sutis no
princípio de construção do supermódulo, ainda que se mantenha o critério de repetição adotado
no original. Os resultados, como mostra a figura 59, terão configurações bem diversificadas.
Fig. 59 - Exemplos de composições com variação apenas da condição angular dos componentes do supermódulo.
105
Quanto mais se modificam os parâmetros de seriação e o sistema diagramático de
suporte -neste caso observados certos limites de procedimento, como foi assinalado na
página 100-, mais se amplia o campo de ação do artista em termos de possibilidades
composicionais. As simulações mostradas a seguir (fig. 60), baseiam-se nos diagramas não-
regulares da figura 56 e constituem tão-somente uns poucos exemplos retirados de um rol
significativamente extenso de opções. É preciso ainda considerar que as esquematizações lá
apresentadas não esgotam as formas de organização diagramática, que podem definir-se,
também, pela alternância de desiguais -colunas (ou linhas) duplas com colunas (ou linhas)
simples, por exemplo-, pela alteração da posição relativa de partes semelhantes (e/ou
dessemelhantes) -seqüência de colunas e/ou grupos de colunas (ou linhas e/ou grupos de
linhas) com giro alternado de 180º-, e por modelos mais complexos de serialização que
sejam compatíveis com as dimensões pretendidas para o cartema.
Mesmo que as considerações feitas até então se refiram a composições derivadas
de módulos quadrados (os postais destituídos de suas características dimensionais originais),
grande parte do que se aplica aí é válida também para o processo desenvolvido com cartões-
postais retangulares, que de fato constituem a base da maioria dos cartemas criados por
Aloísio Magalhães. Uma das diferenças reside no procedimento que emprega a rotação em
90º do cartão, que, naquele caso, não interfere no desenho da estrutura de suporte; o efeito
visual -como o de Praia de Copacabana- decorrente desse mecanismo, para acontecer no
Fig. 60 - Alternativas de composições obtidas com deslocamento progressivo (1 e 2) ou alternado (3 e 4) de linhas ou de colunas...
... e exemplos (5 a 8) de soluções em que os mesmos tipos de deslocamento são aplicados a conjuntos de linhas ou de colunas.
1 432
5 876
106
diagrama retangular, exige artifícios especiais
de justaposição das unidades. Uma das
maneiras de proceder para obtê-lo implica
em conjugar a redução da altura do cartão-
postal (através de incisão longitudinal) de
modo a forçar a proporção de 1:2 entre os
seus lados (fig. 61.1), com a montagem do
supermódulo em forma de suástica (fig.
61.2) ; estas duas condições são
interdependentes e imprescindíveis para
evitar a presença de espaços vazios no corpo
da composição.
Outra alternativa nesta mesma linha
provém da montagem, em “L”, de dois
módulos com as proporções retangulares originais e que, unidos por simetria não-especular
a outro conjunto de iguais características dimensionais, irão configurar o supermódulo. Este
artifício permite duas soluções capazes de assegurar a perfeita união de todos os elementos
formais ao longo do processo: uma, quando as formas em “L”, invertidas, são perfeitamente
adjacentes pelo seu maior lado (fig. 62), e a outra, quando há a adjacência completa dos
dois menores (fig. 63).
Foi exatamente às potencialidades do recurso estrutural que me referi, à pagina 87
do capítulo anterior, ao comentar as formas “de se processar a serialização dos supermódulos,
com cada uma delas proporcionando ao conjunto uma dinâmica visual específica”, e sua
contribuição para ampliar o universo de ação (e de escolha) do artista -um recurso que
Aloísio não chegou a explorar. Ao elaborar os exemplos 2a e 2b da figura 44, na mesma
2
3
1a 1b
Fig. 61 - O postal cortado na proporção 1:2 (1a e 1b) gera o supermódulomontado como suástica (2), que propicia a alternativa de composição (3).
Fig. 63 - Quando unidos pelo lado menor (1), os conjuntos em �L� alterama aparência do supermódulo (2) e, por extensão, a da composição(3).
1
2 3
Fig. 62 - A união dos �L� pelo lado maior (1) define o supermódulo (2) queconduz a soluções compositivas peculiares (3).
1
2 3
107
página, utilizei dois tipos de justaposição de supermódulo inéditos nas composições
produzidas por ele e, ressalvando que a intenção não é a de estabelecer qualquer comparação
estética entre o original e seus (meus) simulacros, essas proposições alternativas constituem,
a meu ver, soluções cartemáticas bastante convincentes.
Afora a eventualidade de Aloísio haver desprezado os benefícios desse artifício
composicional por uma simples questão de preferência, é oportuno assinalar a possibilidade de
que duas circunstâncias tenham concorrido para fazê-lo passar desapercebido aos olhos do artista.
Uma, é que não existindo naquele tempo as facilidades operacionais que os computadores,
os equipamentos de captura digital de imagens e os programas gráficos oferecem atualmente,
todas as experimentações anteriores ao processo final de montagem do cartema implicavam na
manipulação direta dos próprios cartões-postais. Isso equivale a dizer que, se pretendida pelo
criador, a avaliação comparativa (e simultânea) de vários estudos efetuados para uma mesma
composição demandaria um tempo de dedicação e uma quantidade de postais consideravelmente
superiores aos necessários para a produção apenas daquela que seria a solução eleita.
O outro motivo, de certo modo entrelaçado com o anterior, diz respeito à divisão de
tarefas no processo de realização do cartema, segundo o método de trabalho adotado por
Aloísio. Importado diretamente do exercício do design gráfico para o campo da criação
artística, este procedimento envolvia também a participação do arte-finalista, o profissional
cuja função consistia -como aliás costuma ser quando viabiliza tecnicamente projetos
gráficos30- em tão-somente reproduzir e dar acabamento ao que fora previamente planejado
e iniciado pelo artista. Era o arte-finalista no entanto, e não o idealizador, quem mantinha
contato mais estreito com o princípio de estruturação de cada uma das obras, muito embora
a posteriori. Não competindo a ele exercer aí senão o papel mecânico de continuador do
processo de serialização, a oportunidade de investigação de novas e mais complexas maneiras
de justapor as unidades modulares acabava por se perder ao longo do processo.
Naturalmente, tudo isso são conjecturas, e, não fosse a morte prematura do artista,
é provável que esgotados alguns recursos estéticos por força da repetição de procedimento,
uma eventual retomada da produção de cartemas conduzisse a soluções inovadoras, tanto
em forma quanto em conteúdo. Afinal, ele deu sinais claros de que havia ainda caminhos a
explorar nos domínios da criação cartemática, quando, por exemplo, buscou conjugar dois
ou mais tipos de cartões num mesmo trabalho -assim foi com as composições temáticas da
30 Talvez aqui fosse mais adequada a flexão verbal em tempo pretérito, já que a evolução dos meios tecnológicos, reduzindoetapas do trabalho em design, aproximou criador e produto e acabou por condenar à extinção a profissão do arte-finalista.
108
Série Barroca (fig. 64)-, ou quando decidiu-se pela utilização de postais contendo imagens
fotográficas de reconhecido valor artístico ou documental (e já não mais aquelas “turísticas”),
como nas obras produzidas a partir de exemplares, em preto e branco, da coleção francesa
Chefs-d’Oeuvre de la Photografie (fig. 65).
Fig. 64 - Cartema da Série Barroca, com associação de três diferentes tipos de cartões-postais.
Fig. 65 - Cartema da Série em Preto e Branco criada a partir de postais franceses.
109
Convém observar, entretanto, que muito embora a exploração da vertente temática
esboçada na primeira destas duas séries apontasse para o alargamento de horizontes do
trabalho cartemático, a combinação de diferentes tipos de postais na mesma composição
terminou por se configurar uma limitação formal, que condicionou o arranjo dos módulos a
padrões estruturais bastante elementares; o esquema diagramático (fig. 66) construído a
partir da obra mostrada na figura 64, da página anterior, corrobora essa afirmativa.
Com a Série Barroca o eixo de
equilíbrio entre processo e conteúdo, que
norteou as produções iniciais, começava a se
deslocar para uma posição que relegava a
forma a um papel secundário. Promovia, além
disso, um progressivo distanciamento daquela
condição pop do começo, na medida em que
o artista buscava “refinar” suas criações ao
pensá-las a partir dos aspectos conteudísticos
ou estéticos -e não mais exclusivamente
plásticos- dos cartões-postais.
Algo semelhante ocorreu com a Série em Preto e Branco, a última produção de
cartemas de Aloísio Magalhães, quando então o objetivo primordial do artista parecia consistir
em “produzir arte divulgando a arte”. Neste caso, o método estrutural recuou aos padrões
típicos das composições primordiais, mesmo que aí nenhum problema de ordem técnica o
impedisse de adotar soluções diagramáticas mais requintadas. Não que a simplicidade
estrutural pudesse trazer prejuízos aos cartemas produzidos nesta série, e de fato não trouxe;
na realidade, o processo composicional (entenda-se: a técnica diagramática, como dimensão
do design) teria sido aí um elemento acessório ao interesse do artista, voltado que estava
para a resolução de questões próprias de outra dimensão: a artística. É como assinala,
baseado nas idéias de Walter Benjamin, o diretor do Museu de Arte Moderna Aloísio
Magalhães, Moacir dos Anjos, em texto31 para o catálogo da exposição Apropriações/
Coleções (Porto Alegre/RS, 2002):
Ao utilizar cartões-postais de obras de fotógrafos pertencentes aocânone artístico para construir a presente série de cartemas (objetos
Fig. 66 - Versão esquemática do cartema da Série Barroca, composto de trêsdiferentes tipos de cartões-postais.
31 Texto Coleções de Sentidos, de autoria de Moacir dos Anjos, publicado no catálogo da exposição Apropriações/Coleções, realizada no Santander Cultural, Porto Alegre/RS, em setembro de 2002, na qual foram exibidas obras dediversos artistas brasileiros e, entre elas, os cartemas da Série em Preto e Branco de Aloísio Magalhães.
110
de arte singulares e valorizados como tais), Aloisio Magalhães nãosomente reitera o “valor de exibição” que essas imagens [reproduzidasem cartões-postais] possuem – por meio de seu acúmulo sobre umsuporte único – mas, paradoxalmente, as reinsere no circuito dosartefatos que possuem “valor de culto”. Também esses cartemas,porém, podem ser (e efetivamente o são) reproduzidos mecânica oueletronicamente em catálogos ou transformados eles mesmos em outroscartões-postais, novamente ganhando “valor de exibição” e ampliando,uma vez mais, a circulação de imagens originalmente destinadas àcontemplação.
É compreensível que Aloísio, animado no plano exterior pela consagração do cartema
junto ao público, e motivado internamente por sua inventividade, sentisse necessidade de
proceder a essas revisões da realização cartemática; fosse simplesmente no sentido de renová-
la em sua visualidade, fosse no intuito de torná-la um meio de difusão e educação cultural
(do que a Série Barroca seria um exemplo) e artística (Série em Preto e Branco). Todavia,
por mais que tenha havido revisão de objetivos, aquela combinação singular e indissociável
de idéia e processo que caracterizou os cartemas desde sua origem, permaneceu inalterada,
na essência, ao longo do período em que ele dedicou-se a produzi-los. Quando faleceu, a
produção de cartemas já havia ficado para trás, quem sabe descartada mesmo das
preocupações do artista, em função do devotamento às questões da cultura nacional que a
partir de certo momento ele passara a considerar como sua missão “por toda a vida adiante”.
Passados mais de trinta anos da criação dos últimos cartemas, essa invenção estética
segue surpreendendo sensibilidades e despertando interesses com o vigor próprio das obras
de arte singulares; com uma especial diferença: esta é uma obra que não se pretende única,
completa, nem autoral. Ao oferecer sua criação ao coletivo, Aloísio Magalhães deixava
também a seus pósteros a liberdade de transformá-la.
111
4.4. CARTEMAS DE ALOÍSIO MAGALHÃES - REPRODUÇÕES
A seguir, são apresentadas algumas soluções cartemáticas de autoria de Aloísio
Magalhães. São, em sua maioria, reproduções extraídas de fontes que se abastecem umas às
outras com os mesmos poucos exemplares registrados fotograficamente. Se isso já é em si
um sintoma do tão comentado descaso, é igualmente indício de que a situação foi aceita mesmo
por aqueles que, de algum modo, se dedicam a garantir-lhes uma condição mais favorável no
panorama das artes visuais brasileiras.
Como informou por correspondência o diretor do Museu de Arte Moderna Aloísio
Magalhães, Moacir dos Anjos, à exceção de todas as criações da Série em Preto e Branco,
poucos cartemas foram assinados ou datados pelo artista, o que dificulta a tentativa de organizá-
los cronologicamente. Diante disto, decidi mostrá-los, aqui, numa seqüência aleatória.
Figura 67 - Aloísio Magalhães: São Paulo, Largo do Paissandu, cartema da Série Brasileira, 87 x 62 cm, c. 1973.
112
Figura 69 - Aloísio Magalhães: Cartema, Série Brasileira, 1972.
Figura 68 - Aloísio Magalhães: Cartema, Série em Preto e Branco, 1974.
113
Figura 70 - Aloísio Magalhães: Cartema, Série Brasileira, 1973.
Figura 71 - Aloísio Magalhães: Cartema, Série Brasileira.
114
Figura 73 - Aloísio Magalhães: Grutas do Mar Morto, Israel, cartema da Série Internacional, 1974.
Figura 72 - Aloísio Magalhães: Índio Uaika, Amazonas, cartema da Série Brasileira.
115
Figura 75 - Aloísio Magalhães: Cartema, Série em Preto e Branco, 1974.
Figura 74 - Aloísio Magalhães: Cartema, Série em Preto e Branco, 1974.
116
5. CONCLUSÃO
Que não haja dúvidas: esta dissertação é fruto da admiração. Não tem, pois, as
características de um trabalho científico nos moldes daqueles que pretendem guiar-se pela análise
isenta e racional. Assim surgiu e assim se conclui (conclui?), embora não lhe tenha faltado, sempre
que recomendável, a necessária dosagem de isenção.
O estudo da poética cartemática, tomado de início como objetivo central desta pesquisa,
revelou-se uma empreitada modesta diante das tantas implicações que (des)orientam o fazer
artístico no Brasil. Assim, o que consistia a princípio numa suposição periférica -qual seja, se
houve pouca disposição da historiografia oficial da arte em reconhecer a produção artística de
Aloísio Magalhães-, adquiriu importância e contornos mais nítidos à medida que o exame dessas
relações ia sendo aprofundado. Da resposta (cuidadosa) de Jorge Coli1 à indagação que lhe
encaminhei acerca do problema, me veio o primeiro sinal de confirmação daquilo que a intuição já
percebera; dizia-me ele, pelo correio eletrônico, em 10 de setembro de 2003: “A história do
interesse ou desinteresse por certos artistas e obras - mesmo do passado - não passa
unicamente pela qualidade intrínseca deles. Há um jogo complexo na valorização e
desvalorização; a opinião geral, sempre sumária, vai atrás daqueles que são mais celebrados.
Isso tem pelo menos um ponto positivo: deixa, aos pesquisadores, a possibilidade de encontrar
terrenos virgens. Se o seu objeto não foi estudado, tanto melhor para você, que poderá
descobrir, de fato, coisas”.
A expressão “sair-se pela tangente” seria uma boa tradução para o juízo a que me fez
chegar a reação imediata às palavras de Coli (de quem eu, comodamente, esperava uma resposta
conclusiva); vencida a desconfortável precipitação, pude enfim perceber o recado: havendo um
“jogo complexo” subjacente à trajetória artística de Aloísio, minha tarefa consistia em localizá-lo
e procurar desvendar-lhe as regras. E assim foi feito. É curioso notar, no entanto, que é a partir da
recorrente defesa que fazem os amigos em favor do reconhecimento da condição de pintor para
Aloísio Magalhães, que se chega à constatação de que o oposto disso também existe, manifestado
de forma velada, através de omissão, negligência etc., como foi apontado no subcapítulo 3.2
[Aloísio, pintor]. Em suma, existem as objeções, mas nunca assumidas publicamente. Os propósitos
e os argumentos, não sendo explicitados, abrem caminho para especulações. Trabalhando então
no plano conjectural, acredito que a questão abarque motivações que vão desde razões meramente
1 Jorge Coli, escritor, professor e historiador da arte, publica regularmente suas críticas de arte na seção Ponto de Fuga do jornalFolha de São Paulo.
117
empáticas a restrições de natureza ideológica, passando por retaliações corporativistas. De fato,
a história pessoal e profissional de Aloísio Magalhães reúne particularidades que, em comparação
com a vida de milhões de brasileiros, levam a crer que poucas vezes os deuses são tão generosos
quanto teriam sido com ele. E se a vida o brindou com privilégios típicos das elites, ele soube
como aproveitá-los e a seguir transformá-los, com criatividade e competência, em benefícios
para o coletivo. Talentoso e politicamente bem relacionado, Aloísio não se furtou às oportunidades
de identificar, discutir e participar da solução de problemas institucionais brasileiros, como a
reforma monetária e a formulação de políticas para o patrimônio artístico e cultural. Midiático,
valeu-se com freqüência do apoio dos meios de comunicação para imprimir projeção nacional (e
internacional) às suas propostas e realizações. À importância do seu trabalho como designer e
gestor da cultura, juntar-se-ia a consagração do trabalho do artista, decorrente da receptividade
e admiração do público pelos cartemas.
Isto faz pensar que tantas qualidades, reunidas numa só pessoa, talvez já se configure
motivo bastante para despertar sentimentos que a decepcionada constatação do compositor Tom
Jobim -“no Brasil sucesso é ofensa pessoal”- desnuda com desconcertante ironia; mas este é um
terreno pantanoso que a cautela recomenda evitar. Além do mais, há um fato mencionado por
Elisa Botelho (e registrado nas páginas 43 e 44 desta dissertação) que, este sim, permite concluir
que a resistência de parte da classe artística em reconhecer Aloísio como artista plástico é de
natureza reativa e tem origem na pouca atenção que ele, quando administrador da cultura nacional,
dispensou às questões da arte contemporânea. A autora revela, inclusive, que a FUNARTE -
subalterna da então Secretaria de Cultura e órgão de apoio à produção cultural e artística- era
sarcasticamente definida pelo secretário como “um transatlântico ancorado na rua Araújo Porto
Alegre”. Também não deve ter soado bem aos ouvidos da classe a opinião dele, em entrevista, de
que a arte tornara-se progressivamente “densa, sufocada e destituída de graça e ludicidade”.
Assim, não havendo como negar sua capacidade criativa, seu carisma e projeção, a melhor forma
de retaliação encontrada pela parte ressentida da categoria seria (tentar) ignorá-lo.
Qualquer esforço dedicado a recuperar um lugar mais justo para os cartemas nos registros
da historiografia da arte, para lograr êxito, há que considerar esse complexo emaranhado de
motivações. É evidente que proceder à defesa e à tentativa de “resgate” de Aloísio Magalhães ao
panteão dos artistas plásticos brasileiros é, nos dias de hoje, uma tarefa bastante facilitada pelo
arrefecimento das tensões entre as ideologias; do mesmo modo que não foi difícil construir um
quadro desfavorável a ele nos anos da ditadura brasileira, já que a exacerbação do embate
ideológico, à época, não dava espaço para posicionamentos apolíticos ou isentos, determinando,
pelos mais discutíveis meios de aferição, que aquele que não comungasse o ideário de um dos
118
lados, pertencia, inelutavelmente, ao outro. E o que se viu, foi que a luta política, opondo a quase
totalidade da classe artística ao regime dos militares, culminou por estigmatizar como alienados
todos (ou quase todos) aqueles que não utilizaram sua arte como veículo de denúncia ou contestação
dos propósitos e desmandos da ditadura brasileira. Não bastasse isso, todo (ou quase todo)
ocupante de função pública expressiva era visto com a desconfiança dispensada aos cúmplices
do sistema. Daí, tendo em conta a dupla condição de Aloísio -artista não engajado e gestor oficial
da cultura-, é possível deduzir em que território o sectarismo o teria situado e, principalmente, o
quanto as conseqüências desse julgamento (ou sentença?) influíram sobre os registros, na história
da arte brasileira, de sua produção artística.
Para completar, o cartema surgia no início dos anos 1970, em meio àquelas dissensões
que marcaram a “fase do experimentalismo” na arte brasileira, como uma súbita aparição
descomprometida com as proposições então em voga (a crise do suporte, a arte efêmera, a
antiarte etc.). Entretanto, aquilo que aos olhos de parte do meio artístico foi talvez percebido
como extemporâneo, do lado do público (e da mídia) aconteceu de forma bem diferente, através
de franca e entusiasmada receptividade. O que se pode concluir desse conflito?
Em primeiro lugar, que a consagração do cartema por um contingente tão heterogêneo
de pessoas -para as quais a classificação de politicamente alienadas seria uma generalização
imprudente- é indicadora de que a arte não precisa estar necessariamente atrelada a ideologias
para estabelecer vínculos de comunicação ou ser legitimada como tal. Melhor dizendo, não
precisa ser doutrinária. A luta política é necessária e valiosa, sempre; a questão é que nem só
de luta política se nutre a alma humana, nem é a arte o único veículo através do qual seja
possível deflagrá-la. Ademais, tentar impor caminhos à realização artística não significa privar
o coletivo dos benefícios da pluralidade? Nunca é demais lembrar que, por mais que seja
facultado ao artista escolher o seu público, ao final é o público -inespecífico- quem escolhe,
pelas mais variadas razões, quais obras e artistas celebrar.
Uma outra premissa que este fato confirma é a de que a incorporação às artes visuais
de linguagens, procedimentos ou descobertas oriundos de outros campos do conhecimento,
é não apenas possível quanto também benéfica em seus resultados. Disso já deram provas a
história do cartaz nas sociedades modernas (unindo arte e comunicação social), as divisões
regulares da superfície de Escher (arte e matemática), a pedagogia da Bauhaus (artes
visuais, design, arquitetura, sociologia), as artes concreta e óptica (arte, psicologia, design),
e, mais próximos de nós, os cartemas. É importante ressaltar ainda, em todos estes casos,
que a noção de esboço foi substituída pela de projeto, sem que a racionalidade inerente à
prática projetual tenha implicado em perda de expressividade para as soluções; mesmo
119
porque, o ato de projetar não antagoniza com a manifestação da sensibilidade, e também
porque, em arte, todo projeto é precedido de uma vontade criadora, e, para corporificá-la,
é preciso que ele se processe em conformidade com os ditames dessa vontade. O cartema,
uma solução híbrida de arte e design, jamais se afastaria da condição de criação artística
por dever sua materialidade a procedimentos típicos da atividade do designer. Se o interesse
da crítica sectária, valendo-se das circunstâncias políticas dos anos 1970 e da incontestável
importância de Aloísio no campo do design, tentou talvez confundir a opinião pública
buscando enquadrar esta obra na categoria (supostamente desqualificadora) de produto de
design gráfico e assim justificar sua exclusão dos registros da produção artística brasileira,
a tentativa foi, em parte, bem sucedida. A ação do tempo, no entanto, tem se encarregado
de amenizar o estrago que esse estado de coisas acarretou, e a inclusão dos cartemas em
mostras retrospectivas recentes das realizações artísticas no Brasil (em 2002, Apropriações/
Coleções, Porto Alegre/RS, e, em 2004, Apropriações (Colagens), Niterói/RJ e A
subversão dos meios, São Paulo/SP), ao mesmo tempo que contribui para lhes restituir o
valor subtraído, demonstra que as regras que regem o tal “jogo complexo”, falado ao início,
não foram, no caso em questão, nem claras, nem limpas.
O fato de os cartemas terem sobrevivido à ação de tantos entraves, além de confirmar-
lhes a estatura de obra de arte atemporal, confirma também o poder de encantamento que possuem.
Na simplicidade dessa invenção estética (que atribuiu predicados visuais inéditos para os cartões-
postais), está também o seu requinte. A aura de ludismo que a envolve propõe ao observador um
tipo de jogo de ambigüidade e adivinhação -cujas regras são claramente expostas- que, ao ser
aceito, transforma atitude contemplativa em participação.
O convite ao jogo, no entanto, não constitui um estágio primário do processo de interação
obra-espectador. Antes dele, e surpreendentemente, age como fator de sedução do olhar a
aparência geométrico-abstrata do cartema. E o que há nisso de surpreendente?
Uma idéia corrente no senso comum -que a exploração maliciosa pelo cartum e por
programas humorísticos dos meios de comunicação muitas vezes contribui para consolidar- é a
de que composições visuais abstratas são trabalhos desprovidos de qualquer fundamento estético
consistente, de qualquer intencionalidade ou significação. E tanto mais, quanto menor for a
possibilidade de se deduzir delas alguma correspondência com formas da realidade física
observável. Seriam, assim, uma decorrência de afetações, humores ou voluntarismo do “artista”.
É possível que atitudes desse tipo -também alvo freqüente da ironia, como mostra a satírica letra
da canção O conto do pintor (Anexo A)- tenham mesmo contribuído com a origem do preconceito
que se tornou defesa ante o ininteligível ou impalatável. Não foram poucas as ocasiões em que
120
ouvi universitários -tomados como exemplo porquanto deles se espera um nível de educação
visual razoavelmente bom- manifestarem sua opinião diante de pinturas abstratas com frases do
tipo “– Ah, isso aí até eu faço...” , geralmente complementadas por algo do tipo “quero ver é
pintar como...” (aqui referindo-se ao nome de algum virtuoso figurativista). Paradoxalmente,
motivos abstratos criados com fins ornamentais são recursos artísticos bastante admirados,
manipulados e perfeitamente incorporados ao universo do mesmo público que olha com reservas
a arte abstrata. Nos padrões usuais da estamparia de tecidos, na decoração artesanal ou
industrializada de utensílios, na azulejaria, nos ornamentos tipográficos de peças editoriais, nos
arabescos e gregas das construções e objetos milenares ou mesmo nas conformações geométricas
dos quilts norte-americanos, elementos formais não-figurativos dificilmente serão julgados com o
mesmo “rigor crítico” que os que integram uma obra de arte abstrata, ou, mais especificamente,
uma pintura abstrata; um fato que talvez se explique pelo tempo de existência de cada uma dessas
produções no âmbito da cultura humana. Mas como explicar então, no caso da composição
cartemática, que o processo de sedução do observador se dê exatamente a partir da aparência
“abstrata” da obra? Acredito que a resposta esteja na semelhança visual e (principalmente) estrutural
que, à primeira vista, o cartema apresenta com padrões compositivos ornamentais como os já
citados, que têm, na seriação rítmica, sua base generativa. A modulação rítmica, por sua vez,
exerce seu poder de atração sobre o espectador, na medida em que, tanto propicia relações de
identificação com os fenômenos cíclicos da vida -dos mais imediatos (as pulsações cardíacas, a
seqüência das horas, dias etc.) aos menos perceptíveis-, quanto atende àquela tendência “natural”
da percepção humana pela disposição organizada das formas no espaço.
Na eficácia deste recurso estético reside o momento decisivo do processo de comunicação
do cartema com o público, quando então o convite ao jogo poderá ou não ser aceito; contribuirá
para isso o maior ou menor grau de inteligibilidade das imagens escolhidas pelo criador. Incentivado
à observação mais criteriosa da obra por conta de um primeiro e vago reconhecimento das formas
“realistas” que se desprendem do todo “abstrato”, o espectador adentra um segundo nível de
decodificação da linguagem cartemática, quando identifica com mais clareza o significado e a
natureza -fotográfica- das imagens multiplicadas à sua frente. Por fim, reconhecendo ali um
componente trivial de seu universo cultural -o cartão-postal-, o jogador decifra a lógica construtiva
da composição, e então encerra-se o jogo. Ou será justamente aí que começa o jogo?
121
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O CONTO DO PINTOR1
(Miguel Gustavo)
Desembarquei fantasiado de pintorNo aeroporto já encontrei o IbrahimFez um discurso e apresentou-me ao DouradoQue deu de cara um apartamento para mim.
– Moreira, vais levar um magnífico triplex. Agora preferes morar em francês, inglês, russo ouitaliano? Temos os edifícios Paul Valéry, edifícios André Breton, Igor Stravinsky, SpaguettiD’Oiro ou Hollywood Center. Você entra pelo hall, passa pelo living-room, se quiser passarpelo bathroom, vai direto ao room e, da janela, o paraíso.– Muito obrigado, muita gentileza de sua parte, eu não mereço tanto.
Fomos direto ao Museu de Arte ModernaA grande obra de Madame NiomarCondecorando-me com a Ordem do VaqueiroO Tinhorão quase que chega a me estranhar:
– Calma, calma senhor crítico, calma Zé... como bem sabe eu também sou produtor e admiradordas artes e manhas do Brasil.
Mas ali mesmo demonstrei o meu talentoPintei triângulos redondos e um quadrado todo ovalEles olhavam perturbados e diziam:– Este Moreira é um artista genial!
Mais que depressa eu vendi noventa quadrosDepois de dar uns dois ou três em benefícioEntrevistado pelo Sérgio Chapelin eu respondi:– Ora, qual nada, é meu ofício.
Pintei vassouras com feitio de espadasPintei espadas qual vassouras, retirei-me do localMas a ilustríssima platéia delirava:– Este Moreira é um artista genial!
Pintei um quadro só por fora das moldurasEu joguei tinta nas paredes, todo mundo achou legalEu comi rosas, e as madames exclamaram:– Este Moreira é um artista genial!
– Fui a Brasília, dei um quadro de presente ao maioral...Era um triângulo redondo... e ele até que achou legal.
1 Composição de autoria do jornalista, poeta, compositor e radialista Miguel Gustavo (1922-1972), de abril de 1960,interpretada por Moreira da Silva no LP Malandro em sinuca, 1ª faixa, lado A, Odeon, 1961.
ANEXO