casa de pensão -...
TRANSCRIPT
Título: Uma solução local para formas importadas em Casa de pensão
“Houve uma época, como na Idade Média, em que não se trocava senão o supérfluo, o excedente da produção sobre o consumo. Houve uma época em que não somente o supérfluo, mas todos os produtos, toda a existência industrial, passaram ao comércio, em que a produção inteira dependia da troca. Veio, enfim, uma época que tudo o que os homens haviam encarado como inalienável tornou-se objeto de troca, de tráfico, e pôde alienar-se. É o tempo em que as próprias coisas até então entregues, mas jamais compradas- virtude, amor, opinião, ciência, consciência etc-, em que tudo, enfim, passou ao comércio. É o tempo da corrupção geral, da venalidade universal ou, para falar em termos de economia política, o tempo em que toda coisa, moral ou física, é levada ao mercado para ser apreciada em seu mais justo valor.” Karl Marx 1
A leitura do romance Casa de pensão2 do escritor Aluísio Azevedo nos leva a
perceber claramente que o romance se faz a partir sobretudo da hibridização tanto do
código romântico como do código realista e que os conteúdos sociais ali formalizados
esteticamente mantêm vínculos com vários valores e práticas da sociedade brasileira
oitocentista. Procuraremos averiguar como a forma literária romanesca enforma esse
conteúdo social. Essa interação entre o estético e o social é bastante complexa em si e se
aprofunda em relação à Literatura Brasileira, especialmente no século XIX quando, em
virtude da independência política brasileira, os escritores tomam para si a tarefa de
construir uma identidade nacional via literatura. O domínio da metrópole portuguesa
desmorona, mas a dependência econômica e cultural em relação à cultura européia
continua. É da Europa que nos vêm, majoritariamente, as estéticas e o universo cultural em
geral. Essa importação de idéias, códigos estéticos e práticas sociais e sua adaptação feliz
ou não quanto à realidade cultural brasileira é vista neste ensaio a partir de uma abordagem
sociológica que vê a esfera da cultura em sua autonomia participante.3
1 SODRÉ, Nelson Werneck. Literatura e história no Brasil contemporâneo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987, p. 64 2 AZEVEDO, Aluisio. Casa de pensão. 6. ed. São Paulo: Ática, 1991. As citações posteriores dessa obra se referem a esta edição. 3 BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e estética. São Paulo: Unesp-Hucitec, 1988. Tomamos esse termo emprestado a Mikhail Bakhtin que destaca o caráter fundamentalmente dialógico do discurso romanesco, ou seja, o romancista, ao se aproximar de seu objeto ( o mundo dos homens e seus momentos) encontra esse objeto já dito, avaliado e polemizado por outros discursos. O romancista gerencia essa pluralidade de discursos em torno do objeto, construindo-o a partir de sua visão social de mundo que disputa
1
Desse modo, procuraremos ver como ocorre o enquadramento de um certo discurso
literário- a escrita romântica e a escrita naturalista que correspondem a etapas históricas e
econômicas específicas ( contexto europeu)- ao romance de Aluísio Azevedo. A discussão
sobre como esse universo cultural exterior ao Brasil é filtrado ou não pelos intelectuais
brasileiros é bastante antiga e sempre esteve em pauta, sendo discutida à época de Aluísio
por Silvio Romero4, José Veríssimo5, Machado de Assis6 e Araripe Junior7, citando apenas
alguns. Essa interação polêmica entre o importado e o local tem sido colocada e recolocada
na historiografia literária brasileira, sobretudo, a partir de três perspectivas: uma corrente
nacionalista-romântica que prega uma autonomia meio isolacionista da cultura brasileira;
outra que enxerga esta somente enquanto cópia e outra, enfim, que entende a produção
literária de modo dinâmico, vendo-a como processo resultante do movimento das tensões
entre o local e o importado; da contradição entre o centro e o periférico. Esta visão procura
investigar como ocorre a adaptação, a filtragem8, o enquadramento da voz do outro9 em
território nacional.
espaço com as outras visões sociais presentes na pluralidade discursiva. Desse modo, não há nunca a possibilidade de haver uma reprodução ipsis literis, isto é, o discurso novo se faz a partir do já dado, recontextualizando-o e o reacentuando. Assim, podemos pensar que as estéticas importadas e incorporadas por nossos escritores não se constituem enquanto meras cópias, pois o novo contexto as desloca, reacentuando-as. 4 Silvio Romero opõe-se à estética naturalista. Critica-a por vê-la como um arremedo de Zola, escritor a quem condena principalmente pelo viés moralista, classificando-lhe a linguagem de realismo de bandalheira. Além disso, Romero vê na estética naturalista um impasse: pinta somente parte da realidade, sobretudo os vícios e as torpezas, deixando de reproduzir o todo. Essa visão holística faz parte de seu ideário, ou seja, a literatura deve reproduzir o meio nacional como um todo, auxiliando a defini-lo culturalmente. 5 José Veríssimo, mais pela via estética, critica a linguagem popular usada pelos naturalistas. Além disso, também critica o caráter de cópia e falta de senso local nos produtos dessa estética. Em oposição, destaca a obra machadiana que não é mera reprodução da prosa de Zola e cuja linguagem e forma são superiores. 6 Machado de Assis vai fazer a critica ao naturalismo, especialmente, em relação à obra de Eça de Queiroz, atacando-a pelo viés moralista (a descrição da sexualidade degradada) e pela estética do inventário. O objeto se autonomiza, desligando-se da narrativa. Nossos escritores naturalistas serão, por extensão, criticados por essa mesma perspectiva. 7 Araripe Junior é um apaixonado por Aluísio Azevedo, vendo nesse escritor a influência benéfica de Zola, mas, reforça-lhe, sobretudo, a autonomia e especificidade. Também vê o escritor como um pintor dinâmico e competente da realidade brasileira, inclusive da língua portuguesa diferenciada de Portugal. Para Araripe, a Europa, já decadente, produzia um naturalismo pessimista, sem saída; já, o Brasil, em virtude de ser uma nação jovem, produzia um naturalismo viçoso, forte e comprometido com a vida e não com a morte. 8 BOSI, Alfredo. A escravidão entre dois liberalismos. In:___________. Dialética da colonização. 3 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.O Nesse ensaio, A escravidão entre dois liberalismos, o crítico apresenta como as idéias e práticas liberais ( democracia representativa, estado de direito, trabalho formal livre, livre comércio, economia de mercado) são recebidas, filtradas, adaptadas, criticadas e negadas pela elite dos senhores de escravos e pelos intelectuais no século XIX. A incompatibilidade entre escravismo e liberalismo é resolvida pelos senhores de escravos à medida que o escravo é visto como propriedade privada e, portanto, inalienável. Somente parte das idéias liberais são adotadas na prática econômico-política porque o regime escravocrata é seu limite. Desse modo, Bosi destaca a competência da elite em filtrar os valores importados a
2
Esta última perspectiva também se encontra no ensaio De cortiço a cortiço10 de
Antonio Candido que destaca claramente as modificações que a escritura de Zola sofre nas
mãos de Aluísio. A sexualidade mais destacada, a animalização mediada pelo trabalho
brutal, a natureza americana como amolecedora do espírito racional burguês, a descrição de
uma sociedade não tão estratificada socialmente e, sobretudo, o empenho do intelectual
brasileiro em pintar a sociedade local( característica constitutiva de nossa literatura) são
fatores que fazem a diferença entre o projeto estético de Aluísio e o de Zola (este não
atrelado a um projeto nacionalista. Essa postura de Candido em enfatizar as diferenças e as
filtragens na prosa naturalista de Aluísio se constitui como um contraponto em relação ao
seu posicionamento sobre o naturalismo em sua obra anterior, Formação da Literatura
Brasileira. Aí, Candido, para além das especificidades formais e axiológicas tanto do
Arcadismo quanto do Romantismo, vê uma continuidade entre esses dois códigos na
literatura brasileira. O Arcadismo se constitui como momento decisivo para a cultura local,
pois aí a produção cultural e literária já se concretiza enquanto um sistema orgânico
formado por autores, obras e público. A esfera cultural é já uma instituição social,
sustentada por esse sistema tripartite. Os poetas árcades, ligados a uma visão ilustrada
universalista, contribuíram para ocidentalizar a cultura local. O Arcadismo, nesse sentido,
civiliza a cultura local. O sentimento nativista presente nos árcades passa por este filtro
universalista, auxiliando, desse modo, a integração civilizada da cultura local à universal.
Esse sentimento nativista ilustrado vai ser retomado pelos românticos, emancipados a partir
da independência, transformando-se em verdadeiro empenho nacionalista. Essa retomada
comprova que há uma tradição interna, uma continuidade sistêmica. Com o Romantismo,
aquele sistema se alarga, aprofunda-se e se consolida, formando a literatura brasileira. Não
há ruptura entre Arcadismo e Romantismo, mas uma linha de base, ligando-os, dada “pela
fim de se perpetuar no poder e manter o modo de produção escravista. Essa interpretação demonstra que o contexto sócio-econômico brasileiro é ativo e sabe gerenciar os valores importados de modo a se beneficiar. Essa teoria da filtragem vai ser por nós utilizada para avaliar se Aluísio Azevedo também dela se beneficiou em relação à escrita naturalista brasileira. 9 Esse termo migra para nosso ensaio da obra de Mikhail Bakhtin que vê todo fenômeno cultural de modo dialógico, ou seja, tendo, pelo mínimo, duas orientações sociais. Nesse sentido, a cultura importada seria incorporada pelo contexto brasileiro e não seria apenas refletida, mas também refratada. Não existe possibilidade de reprodução ipsis literis como já enfatizamos anteriormente. Todo enquadramento é dialógico e marca em seu interior esse caráter dual. O contexto enquadrante age sobre o enquadrado: a própria tentativa de reprodução traz em seu interior duas acentuações, dois contextos. 10 CANDIDO, Antonio. De cortiço a cortiço. In: _____________. O discurso e a cidade. São Paulo: Duas Cidades, 1993.
3
mesma disposição profunda de dotar o Brasil de uma literatura equivalente às européias,
que exprimisse de maneira adequada a sua realidade própria, ou, como então se dizia,
uma ‘literatura nacional’11. Candido destaca esse continuum também na obra de Machado
de Assis cuja produção não é vista como, não raras vezes, inclassificável, sem tradição
interna. Machado só foi possível porque há uma formação literária anterior a ele da qual ele
se utiliza ( Macedo, Alencar, Manoel Antônio de Almeida) porém, ultrapassando-a. Já, a
escritura naturalista marca um ponto zero para a literatura brasileira, rompendo essa
tradição, pois se vincularia direta e exclusivamente ao centro europeu ( Eça e Zola). Assim,
em Formação da Literatura Brasileira, o sentido de cópia do naturalismo brasileiro é
enfatizado. Esse posicionamento é rompido no ensaio citado em que Candido vê em O
cortiço uma ligação orgânica e social com o meio brasileiro, retomando-se o movimento
entre o local e o importado como processo formativo de nossas letras. Aí, Candido destaca
que Aluísio incorpora Zola, mas deste se diferencia em virtude, sobretudo, desse empenho
do intelectual brasileiro em criar, dizer e documentar a pátria. Esse caráter interessado do
romancista que o faz tomar para si a tarefa de sociólogo e historiador da realidade, segundo
Candido, é o que perpassa a nossa literatura:
“O desenvolvimento do romance brasileiro, de Macedo a Jorge Amado, mostra quanto a nossa literatura tem sido consciente da sua aplicação social e responsabilidade na construção de uma cultura. Os românticos, em especial, se achavam possuídos, quase todos de um senso de missão, um intuito de exprimir a realidade específica da sociedade brasileira. E o fato de não terem produzido grande literatura ( longe disso) mostra como são imprescindíveis a consciência propriamente artística e a simpatia clarividente do leitor- coisas que não encontramos senão excepcionalmente no Brasil oitocentista. A vocação pública, o senso de dever literário não bastam, de vez que o próprio alcance social de uma obra é decidido pela sua densidade artística e a receptividade que desperta em certos meios.
A consciência social dos românticos imprime aos seus romances esse cunho realista, a que nos vimos referindo, e provém da disposição de fixar literariamente a paisagem, os costumes, os tipos humanos. Este acentuado realismo ( em nada inferior muitas vezes ao dos nossos naturalistas e modernos, tão marcados de romantismo) estabelece no romance romântico uma contradição interna, um conflito por vezes constrangedor entre a realidade e o sonho.”12
11 CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira ( Movimentos decisivos). 6. ed. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1981, p.10 12 CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira ( Movimentos decisivos). 6. ed. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1981, p.115
4
Feito esse retrospecto e revisão de certa historiografia literária, especialmente em
relação ao naturalismo, passaremos a investigar como ocorre em Casa de pensão esse
movimento entre o local e o importado quando da formalização estética da sociedade
brasileira oitocentista do Rio de Janeiro. Tentaremos demonstrar que o romance Casa de
pensão, publicado em 1884, resulta da confluência de dois códigos literários: o naturalista e
o romântico.
Casa de pensão, em suma, conta a história do moço Amâncio de Vasconcelos: sua
infância ao lado da mãe, Angela, protetora e amorosa; o pai, português, severo, austero,
autoritário e brutal. As primeiras letras são focalizadas pelo viés do autoritarismo e da
brutalidade física, causando ao herói verdadeiro repúdio e nenhum conhecimento.
Chegando à idade de enfrentar estudos superiores, sai do Maranhão rumo ao Rio de Janeiro
onde passa a freqüentar o curso de Medicina. Freqüenta-o apenas, pois seu único objetivo
são as aventuras amorosas e uma vida libertina da qual sempre fora tolhido. O seu
comportamento fragmentado por seu aspecto unidimensional(a exclusividade da busca
incessante do amor sexual) advém-lhe do ambiente autoritário, cruel e rude da casa paterna.
Essa brutalidade lhe deforma o caráter, impedindo-o de se relacionar de modo mais amplo
com o semelhante. Ao chegar ao Rio, hospeda-se em casa de amigos( Campos/Hortênsia),
mas logo passa a habitar a casa de pensão de Mme Brizard onde será manipulado e
dominado pelo trio- Coqueiro, Aurélia e Mme Brizard. O objetivo destes é casar Amâncio
com Aurélia e saírem da pobreza. Amâncio passa a pagar quase todas as contas da casa de
pensão, sendo envolvido por Aurélia. Ao final da narrativa, deixa Aurélia e sofre um
processo judicial de sedução, impetrado por Coqueiro( irmão de Aurélia). É absolvido pela
justiça, mas é assassinado por este. A fábula é inspirada na Questão Capistrano, caso
verídico que apaixonou a sociedade da época e movimentou a imprensa e a opinião pública:
tratou-se do estudante Capistrano, assassinado pelo colega Antônio Alexandre Pereira,
irmão de Júlia, a jovem supostamente seduzida por aquele.
Em Casa de pensão, vemos que Aluísio constrói aí um romance híbrido, lançando
mão de expedientes românticos: a idealização da figura da mulher-mãe; a racionalidade
como escrava da emoção( Coqueiro assassinando Amâncio para lavar a honra da irmã
seduzida, Aurélia) e o final melodramático em que Amâncio é assassinado e mãe é sua
última palavra. Aí, parece destacar-se um discurso rosseauniano em que Amâncio figura
5
como a flor do lodo( vindo da província foi degradado pelo meio urbano). Além disso,
temos ao final o expediente do reconhecimento por intermédio de cena melodramática:
Angela, a mãe, vem para o Rio de Janeiro a fim de ajudar o filho que pensa estar preso, mas
já o encontra morto e sabe de sua morte ao se deparar com o nome do filho em uma vitrine
de artigos masculinos que lhe trazem o nome ( bengalas e gravatas à Amâncio de
Vasconcelos). Somando-se a isso, confirma a identidade do morto a partir de uma foto
jornalística sensacionalista da cena do crime.
Essa âncora discursiva que liga o escritor ao ideário romântico não o impede de
também incorporar a escritura de orientação temática realista-naturalista, destacando o lado
mórbido das relações sociais; a sexualidade exacerbada; os males advindos da
hereditariedade; o adultério e o autoritarismo paterno no seio familiar; as relações de favor
que corrompem as instituições públicas; o universo da mercantilização que a tudo e todos
abrange. Além da temática, também ocorrem aspectos composicionais mais realistas,
havendo pouca ação; descrição detalhada; personagens típicos e narrador onisciente em
terceira pessoa.
Esse hibridismo de duas estéticas e os valores culturais que a elas se vinculam que
se cruzam no interior do romance, visto de modo distanciado pelo leitor contemporâneo,
não pode, porém, perder a real perspectiva histórica. Obviamente que o leitor de hoje já não
pode ler o romance com o referencial de quando foi escrito, mas é preciso levantar alguns
dados da sociedade e do meio cultural em que Aluísio estava inserto para melhor entender
esse hibridismo e como ele se vinculava à esfera da cultura da época. Salvaguardadas as
diferenças entre escritura romântica e naturalista o que as aproxima é um projeto estético
empenhado em fotografar a realidade brasileira, tomando-se a literatura como fundante da
nação. Com bastante competência, esse caráter interessado da literatura brasileira é
destacado por Antonio Candido como já informamos anteriormente. Desse modo, não há
uma ruptura substantiva entre uma estética e outra visto que um terceiro elemento mediador
se impõe para o intelectual brasileiro: o meio local, na sua debilidade ou grandeza é, da
primeira à última instância, o objeto de análise e de desejo do escritor. A literatura aí tem
um importante papel na construção e no entendimento da nação e de seus habitantes: é
preciso investigá-los, classificá-los, esquadrinhá-los e criá-los a fim de se definir uma
identidade nacional. A forma romanesca vinda de fora deve cobrir uma realidade a um só
6
tempo específica, mas integrada à realidade do ocidente industrial. Tanto Alencar, com seu
intuito de fazer uma literatura extensiva, cobrindo vários espaços e tempos brasileiros
quanto Aluísio, usando já uma linguagem mais cientificista, biologizante e determinista
racial, têm um mesmo horizonte- a formalização estética do meio local como tentativa de
construir e entender o caráter brasileiro. Logicamente que há diferenças entre as escrituras
haja vista que um véu idealizador se interpõe entre as palavras e as coisas na orientação
romântica e um véu cientificista entre a referência e a literatura na ficção naturalista. O que
as aproximava, no entanto, é o empenho realista na descrição dos costumes e na narração
de situações que eram entendidas como verossímeis na realidade local. Ambas as escrituras
criam uma identidade nacional cujos estereótipos até hoje perduram e fazem parte do
imaginário nacional. A idéia de beleza paradisíaca da paisagem natural do Brasil é um
legado nacionalista-romântico; a cordialidade, a preguiça, o sensualismo, o empirismo do
brasileiro em contraposição ao europeu (trabalhador, racional, frio, poupador) é uma
herança da literatura naturalista. Após mais de século, ainda esses estereótipos dominam
boa parte da cultura nacional, comprovando que a partir da literatura cria-se uma identidade
local.
Não podemos esquecer que ambos os códigos- romântico e naturalista- estão
também ligados, além desse solo comum em nossa nação, a diferentes momentos
históricos. O romantismo se vincula mais a uma visão aristocrática de mundo13 que,
saudosista do passado, não consegue se inteirar plenamente dos novos tempos inaugurados
pela racionalidade burguesa impessoal e universal e, por isso, é retrospectivo, nacionalista e
idealizador. A vaga nacionalista-romântica se formou em conflito e em diálogo com o 13 LÖVY, Michel. As aventuras do Barão de Münchausen contra Karl Marx: Marxismo e Positivismo na Sociologia do conhecimento. São Paulo: Busca Vida, 1987. Nessa obra, o filósofo ao destacar o positivismo, o historicismo e o marxismo como correntes filosóficas predominantes no século XIX diferencia o positivismo do historicismo nos seguintes termos: aquele, sinteticamente, prende-se a uma visão cientificista dos fatos sociais, naturalizando-os à medida que os explica pelo método das ciências naturais. Há aí uma ordem natural, objetiva e imutável na sociedade descrita pelo cientista de modo imparcial e neutro. Essa visão vincula-se à burguesia racionalista para quem a razão e a ciência são instrumentais formais de dominação da natureza e do social em prol do progresso técnico. Já o historicismo-nacionalista se vincula à aristocracia fundiária, principalmente alemã, saudosista de seus privilégios, e temente do ascenso burguês. O romantismo como fenômeno cultural seria seu correlato ( saudosista, reacionário, crítico da razão e da visão dessacralizada do mundo científico). Alfredo Bosi, em História concisa da literatura brasileira também se vincula, parcialmente, a essa interpretação citando Mannheim, para quem o romantismo é um fenômeno ligado à aristocracia: “Segundo a interpretação de Karl Mannheim, o romantismo expressa os sentimentos dos descontentes com as novas estruturas: a nobreza, que já caiu, e a pequena burguesia que ainda não subiu: de
7
discurso da Ilustração. Este é mais universal e racional, prendendo-se à utopia iluminista do
saber e da democracia universais, válidas para todo o ser humano. O romantismo é uma
configuração mais localista, nacionalista que destaca, sobretudo, a diferença entre os povos.
Já o naturalismo e o realismo, impregnados pelo espírito racional da burguesia industrial e
progressista já triunfante, vê a realidade como um objeto a ser dissecado, esquadrinhado e
dominado pela ciência. Lá há um saudosismo retrospectivo; aqui um olhar cientificista para
o presente.
No contexto brasileiro, à época da construção do romance Casa de pensão vamos
ter uma sociedade a um só tempo aristocrática e burguesa como faces da mesma moeda,
justificando o hibridismo discursivo do romance em questão. Os senhores de escravos,
aristocratas da terra, das plantagens de monoculturas para o mercado externo, a cujos
valores, os escritores românticos se vinculam, eram no século XIX, uma realidade para a
nossa economia e cultura. Essa vinculação pode ser justificada, sobretudo, pela ausência da
problematização do escravismo na literatura romântica, comprometida em não atacar a base
da produção econômica brasileira do Império. A ideologia liberal tem que ser filtrada, pois
o seu limite é o escravismo. O senhor de escravos incorpora somente valores liberais que
não impeçam a continuidade da instituição escravocrata. Assim, adotando alguns valores
liberais e descartando outros, essa elite não é totalmente progressista, tendo uma visão
tradicionalista e apegada também ao passado. Daí, o gosto pelo código romântico que
representa nesse momento uma visada para trás. Porém, a partir, sobretudo de metade do
século XIX em diante, essa sociedade escravocrata vai ser sistematicamente questionada.
Intensificam-se as pressões internas ( intelectuais e políticos abolicionistas, movimentos de
rebelião dos escravos) e externas, sobretudo da Inglaterra para a abolição da escravatura.
Além disso, avolumam-se os conflitos na ordem política ( os ideais republicanos e
positivistas) e acentua-se a discussão sobre o trabalho formal livre e a vinda dos
emigrantes. São novos valores e práticas burguesas que batem à porta com mais força,
exigindo uma mudança, sobretudo, nos meios de produção econômica. Sabemos, também,
que já estamos em uma época em que há uma intensificação do comércio nas cidades; um
aumento de uma classe intermediária nas profissões liberais ( médicos, advogados,
professores); uma incipiente industrialização ( a substituição parcial do escravo pela onde, as atitudes saudosistas ou reivindicatórias que pontuam todo o movimento.”( Bosi, s/d, 3.ed.,
8
máquina); uma classe proletária a se formar e, essa realidade dinâmica e contraditória
demanda uma nova estética que se debruce sobre ela e a formalize. A fim de dar conta
dessa realidade simultaneamente ligada a valores progressistas e passadistas, o escritor se
utiliza de dois códigos literários aparentemente contrários, mas que, interligados,
formalizam a complexidade social. Esse descompasso é bem coerente, pois aponta para a
contradição social brasileira em que se entrelaçam em um mesmo tempo e espaço, práticas
sociais e políticas aparentemente díspares. Na Europa, as etapas históricas a que se ligam as
estéticas em questão estão separadas temporalmente; aqui convivem na mesma
temporalidade.
Essa ligação dos dois códigos à realidade sócio-econômica é ainda enriquecida por
outra interação: o romance, Casa de pensão, se vincula a uma situação real, amplamente
explorada publicamente. Como informamos, a fábula advém de um caso real e aproxima-se
desse objeto, encontrando-o já dito e polemizado tanto pelas falas do cotidiano que sobre
ele se debruçaram quanto pela linguagem sensacionalista da imprensa. Desse modo, os
aspectos mais dramáticos, aventurescos e românticos da prosa podem também ter sido
influenciados tanto pela linguagem popular, no seu sentido polêmico e cotidiano, quanto
pela orientação sensacionalista- jornalística que visa a aumentar a venda, dilatando o fato.
Já, o seu aspecto de documentário, mais sóbrio e descritivo se vincula também à imprensa
quando aí se exige, em algumas situações, que o jornalista passe a informação de modo
mais neutro, imparcial e objetivo. Aluísio, assim como vários intelectuais contemporâneos
a ele, foi jornalista e passa a sofrer influências da mídia jornalística. O seu estilo é misto: a
informação mais objetiva, a documentação do cotidiano, o sensacionalismo e a crônica
social de fundo moral. Em Casa de pensão, a imparcialidade exigida do escritor pela escola
de Zola é, raras vezes, alcançada, pois o narrador impõe uma linguagem dissertativa,
emitindo valores e defendendo teses a cada passo. Há um narrador moralizador interferente
que faz das situações narrativas um pretexto para passar uma moral ao leitor ou leitora. O
escritor parece ter o anseio de informar aquele que lê e encaminhá-lo nos passos corretos do
agir e do pensar. O narrador de Aluísio não é um mero observador, mas antes um
moralizador. Essas passagens dissertativas se avolumam no texto e se constituem como
desequilíbrios do romance porque estão destacadas da ação, das personagens e saltam de
p.100)
9
modo simplório e didático da tessitura do texto. A seguir transcrevemos alguns trechos
como exemplo:
“Também só elas, só as mães, podem servir a tão delicado mister. O que se lança no peito da amante desde logo arde e se evapora, porque aí o fogo é por demais intenso; o que se atira ao de um estranho gela-se de pronto na indiferença e na aridez; mas tudo aquilo que um filho semeia no coração materno- brota, floreja e produz consolações. Neste não há chama que devore, nem frio que enregele, mas um doce amornecer, suave e fecundo, como a tepidez de um seio intumescido e ressumbrante de leite.”
“E não se lembrava o imprudente de que o amor de pai é bem contrário ao amor de filho; não se lembrava de que aquele nasce e subsiste por si e que este precisa ser criado; que aquele é um princípio e que este é uma conseqüência; que um vem de dentro para fora e que o outro vem de fora para dentro. Não se lembrava, o infeliz de que o primeiro existirá fatalmente, por uma lei indefectível da natureza; ao passo que o segundo só aparecerá se lhe derem elementos de vida.”14
Nesses dois excertos podemos identificar, além de seu caráter didático, saltando
para fora da narrativa, a sua dualidade entre os dois códigos ( romantismo e naturalismo). O
autor idealiza o amor materno, utilizando-se de linguagem e metáforas românticas, ligadas
a uma natureza espiritualizada. Já o amor paterno é tomado a partir de uma natureza mais
objetiva, cientificizada. Ambos se constituem como a-históricos e somente o amor filial tem
o seu caráter social, sendo visto como uma prática cotidiana e histórica. Essas passagens
professorais e didáticas alcançavam, sobretudo a audiência feminina, pois o universo de
leitores dos romances era constituído, principalmente, pelas mulheres cultas da época. Era
preciso lhes ensinar algo via literatura.
Os dois discursos não entram em conflito, pois é o mesmo narrador, monológico
que impõe o ideário díspare que, na realidade, enforma uma visão do feminino e do
masculino na sociedade oitocentista brasileira: a figura da mulher-mãe e da mulher fiel que
devem ser preservadas e a figura do pai, dada por um prisma mais racional e científico.
Aquela se circunscreve ao lar; este não descuida do lar, mas o ultrapassa. Aquela uma santa
espiritualizada; este mais objetivo e mundano. O discurso a um só tempo romântico e
naturalista recobre uma realidade social- o papel doméstico da mulher e o mundano do
homem. Aquela é emoção; este é razão. Além disso, reforça-se o sistema patriarcal vigente
na sociedade brasileira oitocentista quando se coloca o amor indestrutível do pai,
10
justificado pela ciência. O código expressivo mudou, pois antes o patriarcalismo era
formalizado por uma ótica idealizante; agora pelo viés cientificista, mas o conteúdo é o
mesmo. Por essas passagens vemos como Aluísio é conservador, reforçando uma prática e
um ideário que congelam as condutas do feminino e do masculino. Essa dicotomia também
se verifica na divisão das personagens femininas. Tanto Angela como Aurélia e Mme
Brizard são personagens planas, pois apresentam um mesmo comportamento do início ao
final da narrativa; aquela representa a virtude; estas o vício. Em parte, essa divisão dualista
e romântica não se verifica em Hortênsia, que, em várias situações narrativas oscila entre o
interesse e a virtude. Veremos mais adiante como ocorre a formalização mais dinâmica
dessa personagem, mas que ao final, resolve-se e fecha-se em uma síntese romântica.
A prática patriarcal vigente na sociedade brasileira oitocentista se verifica a cada
passo na obra, formalizada em diversas situações narrativas. Há um ir e vir dessa atitude
que perpassa todo o romance. Amâncio, quando vem para a corte a fim de estudar, traz
consigo várias cartas de recomendação que lhe abrem as portas, inclusive ficando bem
patente o uso da prática do favor na ocasião dos exames na Faculdade de Medicina para os
quais não se prepara, mas munido de padrinhos, obtém êxito. O favor é o correlato do
regime escravista15, pois em uma sociedade de produção econômica baseada no braço
escravo, onde o homem livre e pobre está alijado do sistema produtivo e o autoritarismo
inerente ao regime escravocrata impede a emergência de democracia, o ascenso a qualquer
instância de poder não passa pela impessoalidade e meritocracia individual, mas pelo
tráfico de influência sócio-política manipulado por uma elite. Esta, não abrindo mão de
seus privilégios, impede que postos de trabalho sejam disputados pelos homens livres em
um sistema de livre concorrência. É o caso de Amâncio que pertence à elite e se mantém aí
a partir da prática do favor. Assim, temos no romance um discurso crítico sobre as
instituições sociais, aproximando-o do código realista cujo ideário é crítico e não
idealizador. As relações de favor são incompatíveis com os valores burgueses da
impessoalidade e universalidade.
Amâncio é vazio, sua fala é pobre, sua ação é mínima, sua exploração pelos
demais é inflacionada, sendo mais um títere nas mãos de um meio social que o consome. É
14AZEVEDO, Aluisio. Casa de pensão. 6. ed. São Paulo, Ática, 1991, p. 30 e 100. 15 Ver a esse respeito Maria Sylvia de Carvalho Franco e Roberto Schwarz, respectivamente em Homens livres na ordem escravocrata, São Paulo, Unesp e As idéias fora do lugar, São Paulo, Duas Cidades.
11
o brasileiro do norte que parece representar a decadência do poder dos senhores de engenho
em contraposição à ascensão dos senhores do café do sudeste. Além dessa substituição que
ocorre em nível da elite, Amâncio também vai sendo engolido, por um outro Brasil- o de
uma burguesia média ascendente para quem o cálculo detalhista e miúdo e a racionalização
diária de cada ação deve ser uma prática constante, pois está na tentativa de se estabelecer
como classe. Amâncio é herdeiro da casa grande, universo em decadência, e
despreocupado, imaginando-se em um mundo consolidado, fechado, protegido, busca
apenas aventura e diversão; e os outros, personagens da casa de pensão e colegas da
faculdade de medicina, ligados a estratos médios da sociedade, trabalham sem cessar para
obter êxito ( apossar-se do capital de Amâncio). É a classe média na tentativa de mudar de
estrato social, parasitando o aristocrata decadente. Amâncio parece representar o ocaso de
uma classe social e, por oposição, ilumina o ascenso de outras. Essa luta social formalizada
no romance esclarece uma mudança na realidade social brasileira de meados de oitocentos:
há um dinamismo dado pelas novas configurações do poder e uma nova estratificação
social a se engendrar.
Além disso, a decadência de Amâncio também veicula uma certa desvalorização do
trabalho, pois tanto o herói como seu, principal malfeitor, Coqueiro, estão despojados da
vontade de trabalhar, economizar, racionalizar os gastos. Ambos vinculam-se a um mundo
da aristocracia fundiária e escravocrata ( Amâncio é rico e Coqueiro por já ter pertencido à
elite e passado por processo de decadência econômica) para quem o trabalho miúdo,
diuturno e árduo não faz parte de sua constituição enquanto classe produtora. O capital não
advém da pequena empresa que enfrenta concorrência e que se sustenta pelo trabalho e
poupança individuais do proprietário, mas é oriundo das grandes plantagens cujo produto é
vendido, em grande escala, para o comércio exterior. Desse modo, Coqueiro, lídimo
representante dessa classe despojada do valor do trabalho em nível individual, anseia se
apossar da fortuna de Amâncio, como forma talvez de recuperar uma época que se acha em
decadência social( o poder dos senhores de escravos, sobretudo do norte e nordeste do
país). Coqueiro não é bem sucedido em sua empreitada, pois deixa-se mover por paixão e
não pela racionalidade como veremos mais adiante. É o código romântico a solapar os seus
propósitos.
12
Outra situação narrativa que pode representar esse movimento onde o trabalho é
desqualificado, reforçando-se a sua ligação ao universo escravocrata em conflito com o
valor moderno e burguês da exaltação do trabalho, encontra-se na atitude de Mme Brizard.
Essa personagem é francesa e parece simbolizar a decadência do domínio francês frente a
consolidação do poderio industrial e burguês da Inglaterra. Aqui também podemos aventar
uma hipótese: a aristocracia francesa, despojada dessa visão burguesa do trabalho árduo,
em contraposição aos ingleses, já industrializados e exercendo um vasto domínio para fora
de seu território. Ambos, Coqueiro e Mme Brizard, decadentes, ambicionam se apossar da
fortuna de Amâncio que poderia representar o Brasil da aristocracia da terra,
principalmente a do norte e nordeste que está a deixar o seu espaço de poder para a
aristocracia do café. A empreitada não obtém êxito, pois outra instância de poder está
emergindo. Os cafeicultores do sudeste passam a liderar a política e a economia, vindo a ser
despojados do poder somente em 1930 quando as oligarquias regionais se unem a outros
setores e tomam o Estado.
A luta de Coqueiro para apossar-se do capital do outro, na realidade, traz em seu
bojo as duas orientações- romântica e naturalista- de que estamos tratando. Ela é
impulsionada por este caráter retrospectivo ( o desejo de retomar um poder econômico
agonizante) e, por isso, ligada a uma visão de mundo romântica. Todo o cálculo e a
racionalidade que dirigem o seu comportamento no afã de ludibriar Amâncio, próprios de
um discurso mais realista que vê no outro algo a ser dominado e usufruído, é desviado por
um expediente romântico, pois Coqueiro deixa-se levar pela irracionalidade no final da
empreitada: mata Amâncio movido por um valor patriarcal( a defesa da honra da irmã
seduzida). Antes de matá-lo, porém, lança mão de um expediente mais objetivo, ou seja, o
processo civil, aproximando-se do universo burguês, da razão e da lei. Oscila, portanto,
entre um valor e outro. A coisificação e a mercantilização das relações sociais na sociedade
brasileira oitocentista ainda não se processara em toda a sua plenitude, restando um apego
ao passado. Em uma sociedade escravocrata onde a força de trabalho não é também uma
mercadoria a ser consumida no mercado, é possível ainda jogar com valores não
mercantilizáveis.
Essa coisificação de Amâncio é levada a partir dos dois códigos. Num movimento
pendular que engloba as personagens que ora são românticas ora racionalistas. Mme
13
Brizard parece ser a detentora de uma visão mais racional, pois é contra o processo judicial
instaurado por Coqueiro contra Amâncio, pois vê aí uma radicalização que pode colocar
toda a empreitada a perder. De modo bem inteligente, Mme Brizard pronuncia a seguinte
fala: “Quem tudo quer, tudo perde”. Brizard, ciente da posição que ocupa dentro de uma
classe social desvalorizada, percebe que a justiça, atrelada ao poder econômico-político,
dará ganho de causa a Amâncio. Coqueiro, ainda se imaginando pertencente a elite,
achando-se dela apenas afastado temporariamente, não enxerga a sua perda de prestígio
social e conta com a lei. O malogro é evidente, pois a justiça não é ainda a justiça burguesa,
mais impessoal e objetiva, mas atrelada ao poder econômico-político. A seguir
exemplificamos com um excerto da fala de Mme Brizard em que a personagem critica
Coqueiro por sua inabilidade de negociação com Amâncio. Em uma sociedade patriarcal e
escravocrata, o universo de negociação se faz muito mais em nível pessoal do que
impessoal, via justiça.
“-Mas o culpado foste tu e só tu! Berrou de supetão Mme Brizard, erguendo-se da cadeira com um movimento de cólera.- Se me tivesses ouvido, não ficarias agora com essa cara de asno. ‘Quem tudo quer, tudo perde!’ Foi bem feito! Foi muito bem feito, para que de hoje em diante, prestes mais atenção ao que te digo!- Agora- pega-lhe com trapos quentes!16”
A mercantilização das relações não se dá por inteiro e é formalizada num
movimento que vai do romantismo ao naturalismo. Outra passagem que denuncia essa
duplicidade no código romanesco de Casa de Pensão é o final da narrativa. Amâncio, no
Rio de Janeiro, é, em inúmeras ocasiões, rebaixado a nível de mercadoria. Troca o lar
paterno onde o amor é dado pela casa de pensão onde é comprado. Lá o universo
romântico; aqui o interesse e cálculo orquestrando as relações. Amâncio, diversas vezes,
parece estar em uma vitrine, especialmente quando valsa. Parece um objeto a ser desejado e
cobiçado pelos demais. Esse viés racional das relações é porém deslocado, especialmente
na relação Campos/Hortênsia/ Amâncio. Campos é conhecido do pai de Amâncio e o
recebe por relações de amizade em sua casa. Amâncio desrespeita essa solidariedade,
cortejando Hortênsia que se sente lisonjeada, mas não cede ao moço. Esse trio lembra, em
oposição, o trio Rubião/ Palha/Sofia do romance Quincas Borba de Machado de Assis.
16AZEVEDO, Aluisio. Casa de pensão. 6. ed. São Paulo, Ática, 1991, p. 183
14
Aqui a relação é inteiramente dada pelo cálculo do casal e pela inocência de Rubião. Já, em
Casa de Pensão, o casal não demonstra interesse na fortuna de Amâncio. Entre Sofia e
Hortênsia temos que ambas auferem prazer em ser cortejadas, mas Sofia é fria e calculista
em toda a sua trajetória, pois Rubião representa uma possibilidade de se atingir mais capital
e, em assim sendo, deve ser tratado sob a ótica da racionalidade do mercado. Já Hortênsia
se mantém fiel ao marido, demonstrando certa racionalidade, visando manter seu status
social e sua estabilidade matrimonial, mas ao final descamba por um romantismo
exacerbado, comprometendo toda a sua coerência interna. Escreve uma carta apaixonada e
desbragadamente sentimental para Amâncio ( este encontra-se na prisão) em que afirma
estar disposta a lutar contra o mundo para ficar com o moço. Totalmente desarvorada,
acredita que a tragédia de Amâncio resultou de seu amor não correspondido por ela. Desse
modo, vê-se, novamente, o reforço do movimento pendular entre dois códigos que se
entrelaçam no interior de um mesmo discurso.
O cúmulo desse movimento pendular que enforma a pseudo reificação de Amâncio
ocorre ao final da narrativa na cena do reconhecimento. Angela, mãe de Amâncio, vem à
Corte, objetivando salvar o filho da prisão e, andando pela rua do Ouvidor, reconhece em
uma vitrine, artigos masculinos que levam o nome do filho. Passara a ser moda batizar as
mercadorias com nomes que se tornaram públicos pela mídia jornalística em virtude de
algum feito proeminente ( o caso Amâncio movimentou a opinião pública, sendo
amplamente debatido nos cafés, nas ruas, nas casas e nos jornais). Amâncio, desse modo,
parece ser definitiva e amplamente reificado: em vida é consumido por Coqueiro e seus
consortes; quando está preso, é usado pela mídia sensacionalista e após a sua morte,
mobiliza o comércio, reforçando-se em várias instâncias o seu valor de mercado. Essa
tematização pertence antes à sociedade burguesa que a tudo e todos mercantiliza como
colocamos na epígrafe deste ensaio. Porém, essa coisificação é dada por um quadro
referencial bastante romântico visto que é a mãe, criatura dada no romance como fora das
relações racionais de mercado, que o reconhece a partir de uma cena altamente sentimental
e melodramática. Além do nome do filho batizando as mercadorias, reconhece-o também
por uma foto em que Amâncio aparece morto coberto de sangue. É a reedição romântica da
situação bíblica: o corpo do filho sacrificado pelos homens pecadores. Angela, porém,
dentro de seu mundo romântico, não enxerga, como o narrador e o leitor, que Amâncio não
15
é somente um anjo decaído em uma sociedade corruptora, mas também o anti-herói realista.
Há em Amâncio esse movimento pendular entre o herói realista e o herói romântico.
Parafraseando e adaptando Georg Lukács, temos que Amâncio é autêntico e inautêntico, na
busca de valores ora autênticos ora degradados em um mundo a um só tempo autêntico e
degradado.17 A seguir transcrevemos a passagem citada em que o quadro realista é
emoldurado pelo sentimentalismo romântico:
“Estavam já na Rua Direita. Ela[Angela], de repente, estacou e pôs-se a fitar a vidraça de um armarinho.
-Algum conhecido? Perguntou o velho. -Não. É que estes chapéus... tenha a bondade de ver se consegue ler aquele
nome...eu, talvez me enganasse... O velho leu distintamente ‘à Amâncio de Vasconselos’(...) –Eles agora
batizam as mercadorias com os nomes que estão na moda. -É esse justamente o nome de meu filho. (...) Mas D. Angela fugira-lhe outra vez do braço para correr a uma nova
vidraça. Eram agora bengalas e gravatas ‘à Amâncio de Vasconcelos’que lhe prendiam a atenção.
(...) -Ah!, fez o companheiro, já impaciente.- V. Exa. vai encontrar o mesmo
nome por toda parte. Olhe! Se me não engano, lá está o retrato do tal Amâncio. (...) D. Angela aproximou-se do retrato, correndo, e saltou logo uma
exclamação: _Mas é ele! É meu filho! O meu Amâncio! E começou, a rir e a chorar muito perturbada. O velho, meio comovido e meio vexado com aquela expansão em plena
Rua do Ouvidor, principiava talvez a arrepender-se de ter sido tão cavalheiro com Angela, quando esta, que estivera até aí a percorrer como doida, outros mostradores, arrancou do peito um formidável grito e caiu de bruços na calçada.
Tinha visto seu filho, representado na mesa do necrotério, com o tronco nu, o corpo em sangue.
E por debaixo, em letras garrafais: ‘Amâncio de Vasconcelos, assassinado por João Coqueiro no Hotel Paris,
em tantos de tal.’”18
O corpo ensangüentado, a nudez e o necrotério parecem, à primeira vista, pertencer
ao realismo grotesco do naturalismo que explora o lado mórbido, a doença, o aspecto
17 Aqui parafraseamos e adaptamos o pensamento do filósofo marxista Georg Lukács que em sua obra Teoria do romance, São Paulo, Duas Cidades, coloca o herói romanesco como aquele que, epicamente, busca valores autênticos em um mundo degradado. A sociedade burguesa insta essa busca e, ao mesmo tempo, a frustra, pois aí não há possibilidade de remissão. 18 AZEVEDO, Aluisio. Casa de pensão. 6. ed. São Paulo: Ática, 1991, p.191-92.
16
patológico dos personagens, mas há aí um outro quadro referencial a emoldurá-lo: o
sentimentalismo, a irracionalidade, a comoção que corrompem a objetividade. O corpo de
Amâncio, documentado, fotografado e público presente na foto do jornal é retirado desse
meio frio, sendo resgatado, dramatizado e emocionalizado pelo sentimento materno. O
corpo serve a dois códigos: o romântico e o naturalista e a duas posturas culturais que se
embatem para dizer o social, constituído por práticas entre valores liberal- progressista e
patriarcal- tradicionalista.
Considerações finais
Vemos, portanto, que Casa de pensão, se constitui em um discurso híbrido
composto de, especialmente, dois códigos: o romântico e o realista-naturalista. Há um ir e
vir das situações narrativas e das personagens entre esses códigos, ocasionando, não raras
vezes, uma boa dose de incoerência. Tentamos justificar esse hibridismo da linguagem
romanesca, especialmente, enquanto uma possível formalização estética das próprias
práticas sociais oitocentistas na realidade brasileira. O escritor, ao dizê-las e criá-las no
universo romanesco, utiliza-se de códigos díspares à medida que as percebe em sua
contradição interna vinculada ora a um ideário mais racional ora mais passadista. Parece
coexistirem nas situações narrativas duas temporalidades que emperram a fluidez do texto,
a coerência, a clareza, e, sobretudo, a amplitude crítica. A crítica social em relação,
especialmente, à mercantilização das relações sociais, que parece ser um dos temas
relevantes no romance Casa de pensão é neutralizada por uma moldura sentimentalista e
romântica. A epígrafe deste ensaio vai, desse modo, somente de modo parcial, ao encontro
da obra Casa de pensão. Aqui, o discurso romanesco diz uma realidade a meio caminho
entre a sociedade burguesa e a patriarcal; lá, na epígrafe, o discurso diz uma realidade
burguesa já consolidada.
Resumo
Neste ensaio, analisamos o romance Casa de pensão publicado em 1884, por
Aluísio Azevedo, destacando que aí o discurso ficcional se constitui em um híbrido
composto de, especialmente, dois códigos estéticos: o romântico e o realista. Justificamos
17
esse hibridismo da linguagem romanesca, especialmente, enquanto uma formalização
estética das práticas sociais, políticas e econômicas oitocentistas da realidade brasileira.
Literatura e sociedade são conectadas a partir da forma estética híbrida. O escritor,
empenhado em dizer a realidade brasileira, percebe-a em suas contradições internas em que
coexistem realidades díspares: liberalismo, escravismo, patriarcalismo e valores culturais
burgueses. Essa percepção do contexto local como diverso do universo europeu, leva o
escritor a formalizar uma prosa vinculada ora a um ideário mais racional, apegado ao
realismo; ora mais passadista, vinculado ao romantismo. Nossa análise se efetiva em
permanente diálogo com Antonio Candido para quem Aluísio Azevedo soube adaptar a
forma importada dos romances zolistas à realidade local, com Alfredo Bosi para quem a
elite local oitocentista soube também ajustar os ideais liberais à sociedade escravocrata e,
finalmente, com Mikhail Bakhtin, filósofo russo, para quem a linguagem é essencialmente
dialógica por ser sempre uma retomada do já dito e uma réplica. Para este filósofo todo ato
comunicativo é um ato de tradução. O contexto reacentua e desloca o já dito. Desse modo,
vemos que Aluísio Azevedo “traduz” a forma original francesa a partir de uma nova
situação: o contexto literário, econômico e político brasileiro.
Palavras chaves: dialogismo cultural; hibridismo; deslocamento cultural.
Abstract
In this essay we analyze the novel Casa de Pensão, written by Aluísio de Azevedo,
in 1884, demonstrating that the fictional discourse constitutes itself through a hybridism
between two different aesthetic codes: romanticism and realism. This dialogical discourse
between two different perspectives connects itself with the social environment. The two
codes represent the complexity of nineteenth century Brazilian society in which coexists
contradictory universes like liberalism, slavery and patriarchal order. Casa de Pensão is
not only a copy of the French realistic narratives written by Emilie Zola, but it is a very
realistic literary piece through which we can view the Brazilian society. Romanticism is
connected to the slavery and patriarchal order; on the other hand, realism is linked to
emerging bourgeois values. Our analysis is a dialogue with Antonio Candido for whom
Aluísio Azevedo fulfills to adapt a foreign aesthetic form to a Brazilian context; with
18
Alfredo Bosi from whom we borrowed the term ‘filtragem’ that goes in the same direction,
i. e., understands that the Brazilian context, deviates and “reacentuates” the liberal ideas
from Europe and, finally, with Mikhail Bakhtin, a Russian philosopher, for whom
dialogism is a central idea. Language is dialogic because any act of communication (
Literature is a way of communicating) is an act of translation. Aluísio Azevedo “translates”
the European narrative to a new discourse. The social situation- the economic, political and
literary Brazilian context- modifies the given French novel. Therefore, there is no copy of a
origin text, but a dialogic response to it.
Keywords: cultural dialogism; hybridism; unrepeatable quality of utterance.
Referência Bibliográfica
BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e estética: a teoria do romance. Trad.
Aurora Fornoni Bernardini. São Paulo: Hucitec, 1988.
_________.Problemas da poética de Dostoivéski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro:
Forense-Universitária, 1981.
_________. Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi
Vieira, 3.ed. São Paulo: Hucitec, 1981.
_________.Estética da criação verbal. Trad. Maria Ermantina G. G. Pereira. São Paulo:
Martins Fontes, 1977.
_________. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais. Trad. Yara frateschi Vieira. São Paulo: Editora Universidade de
Brasília, 1987.
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira.3. ed. São Paulo: Cultrix.
_____. A escravidão entre dois liberalismos. In:___________. Dialética da colonização. 3
ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
19
BOSI, Alfredo et al. Machado de Assis e sobre ele. São Paulo: Ática, 1982.
CANDIDO, Antonio. De cortiço a cortiço. In: _____________. O discurso e a cidade. São
Paulo: Duas Cidades, 1993.
_________. Formação da Literatura Brasileira ( Movimentos decisivos). 6. ed. Belo
Horizonte: Ed. Itatiaia, 1981.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Trad. Roberto Machado, 11. ed. Rio de
Janeiro: Edições Graal, 1979.
__________. História da Sexualidade: a vontade de saber. Trad. Maria Thereza da Costa
Albuquerque, 12. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1997.
FERNANDES, Florestan. Problemas de conceituação das classes sociais na América
Latina. In: ZENTENO, Raúl Benitez (coord). As classes sociais na América Latina
Latina. Trad. Galeno de Freitas, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977. p.173-247.
FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. 4.ed. São
Paulo: Unesp, 1997.
LÖWY, Michael. As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchausen:
marxismo e positivismo na sociologia do conhecimento. Trad. Juarez Guimarães. São
Paulo: Busca Vida, 1987.
LUKÁCS, Georg. Teoria do romance: um ensaio histórico sobre as formas da grande
épica. São Paulo: Duas Cidades, Ed. 34, 2000.
JUNIOR, Araripe. Teoria, crítica e história literária. Seleção e apresentação: Alfredo
Bosi, São Paulo: Edusp, 1978.
MARTINS, Wilson. A crítica literária no Brasil, v.2. Rio de Janeiro: Francisco Alves,
1983.
ROMERO, Sílvio. História da literatura brasileira, 4.ed., org. Nelson Romero. Rio de
Janeiro: José Olímpio, 1949.
SCHWARZ, Roberto. As idéias fora do lugar. In: ___________. Ao vencedor as batatas.
5. ed. São Paulo: Duas Cidades, Ed. 34, 2000.
SODRÉ, Nelson Werneck. Literatura e história no Brasil contemporâneo. Porto alegre:
Mercado Aberto, 1987.
VERÍSSIMO, José. História da literatura brasileira, v.3. Brasília: Editora Universidade
de Brasília, 1963.
20
___________. Estudos de literatura brasileira. 1ª série. São Paulo: Ed. Itatiaia-Edusp,
1976.
WEBER, João Hernesto. A nação e o paraíso: a construção da nacionalidade na
historiografia literária brasileira. Florianópolis: Ed. da UFSC, 1997.
21