casertano - verdade e erro no poema

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  • 7/27/2019 Casertano - Verdade e Erro No Poema

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    ANAIS DE FILOSOFIA CLSSICA, Vol. 1 n 2, 2007Casertano, GiovanniVerdade e erro no Poema de Parmnides

    1

    VERDADE E ERRO NO POEMA DE PARMNIDES

    Giovanni CasertanoUniversit di Napoli

    Tambm na histria da filosofia existem lendas. No s as lendas que acompanham a

    vida e os episdios da vida de filsofos mais ou menos importantes e significativos, mas

    tambm as que estabelecem as coordenadas do pensamento deles e da sua reflexo teortica; e

    isto sucede principalmente com os grandes filsofos. Tende-se, quase sempre desde o

    princpio, a construir uma imagem de um grande filsofo, que depois viaja autnoma e

    repetitivamente durante sculos, at chegar a ns. A imagem simplifica, esquematiza, fixaalguns caracteres defendidos como essenciais, e entrega-os posterior tradio especulativa,

    que propende substancialmente para a sua conservao e perpetuao. Acaba ento por

    acontecer que os filsofos e os histricos trabalhem mais sobre a imagem de um grande

    filsofo que sobre o texto dele. Essa imagem como se fosse uns culos, e cedo nos

    habituamos a considerar a doutrina de um filsofo apenas atravs deles. Por um lado, tudo isto

    inevitvel: no se pode repensar a filosofia de um grande filsofo seno atravs da sua re-

    interpretao, da sua leitura luz do que so as nossas exigncias de compreenso e deespeculao. Por outro lado, a tarefa da historiografia filosfica deveria ser exactamente a de

    adquirir a conscincia das mltiplas estratificaes que sobre os textos, especialmente dos

    grandes filsofos, foram construdas pelas sucessivas interpretaes. No, claramente, para

    chegar a uma impossvel restaurao do texto em si, a um improvvel originrio e

    autntico significado de um texto filosfico da Antiguidade, mas para tentar restabelecer, nos

    limites do possvel, qual o circuito histrico e hermenutico que um texto de filosofia antiga

    devia certamente possuir no interior do contexto cultural em que nasceu e teve significado.

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    Cedo se construiu tambm para Parmnides uma imagem que imobilizou a sua

    doutrina por meio de caractersticas bem precisas, falsificando-a de maneira mais ou menos

    arbitrria. E isto sucedeu desde o incio, se verdade, mas no h motivo para duvidar que

    seu grande discpulo Zeno teve que defender a doutrina do mestre dos muitos opositores que

    a criticavam e a deformavam1. Cedo Parmnides apareceu como um filsofo isolado, alheio

    ao contexto cultural em que operava, e cujas teses pareciam estranhas e inusuais. Para Plato,

    que o considerava j um antigo, cujas palavras eram difceis de perceber plenamente,

    porque parecia falar como se sobrevoasse por cima das nossas cabeas 2, ele era sim um

    pai venervel e terrvel3, mas um pai incmodo, difcil de enquadrar, e que talvez fosse

    necessrio matar4, mas apenas para o fazer renascer, e, portanto, para o salvar. Depois de

    Plato, Aristteles fixou as caractersticas da doutrina do Eleata com a imagem do

    stasio/thj, do imobilizador da realidade5, e com estas caractersticas a imagem de

    Parmnides viajou da Antiguidade at aos nossos dias.

    Mas quais so estas caractersticas? Uma filosofia que nega a multiplicidade dos

    fenmenos para defender a unicidade e a imobilidade de uma realidade sempre imutvel e

    esttica; ou pelo contrrio, que considera a realidade fenomnica como uma simples aparncia

    privada de qualquer valor gnoseolgico e ontolgico; que defende a existncia apenas do

    ser, um ser ainda por cima dificilmente compreensvel e interpretado desde a Antiguidade

    das mais diferentes maneiras, como uma entidade ontologicamente separada e abstracta, quase

    divina, ou como expresso de uma simples forma verbal; um ser que estabelece uma diviso

    irreparvel entre verdade e opinio, e portanto entre razo e sensibilidade, instaurando

    tambm uma ntida dicotomia de valores entre um plano e o outro; por isso, uma filosofia que

    est sempre na origem do racionalismo, do anti-empirismo, do anti-cientificismo, do

    pensamento metafsico e por conseguinte da metafsica ocidental, etc. verdade que,

    especialmente na historiografia filosfica da segunda metade do sculo XX, houve muitos

    trabalhos de estudiosos que se empenharam em redimensionar esta imagem e em tornar a

    levar o pensamento de Parmnides s mais concretas exigncias culturais da sua poca e do

    seu meio, mostrando a ntima ligao que unia o filsofo de Eleia a elas. Pessoalmente, creio

    1Cf. PLAT. Parm. 128c-d.2 PLAT. Soph. 243a-b.3 PLAT. Theaet. 183e, e Scrates acrescenta que, mesmo parecendo-lhe Parmnides um homem de uma

    profundidade nobre em todos os aspectos, temia no conseguir compreender as suas palavras e ainda mais qualfosse o seu pensamento ao diz-las (184a).4 PLAT. Soph. 241d.5 PLAT. Theaet. 181a; ARISTOT. p.f. fr. 9 Ross.

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    ser esta a linha historiogrfica a seguir, e creio haver tambm no interior dela muitas coisas

    que devem ser esclarecidas e interpretadas. Porque este tipo de investigao no s enquadra

    melhor o pensamento do Eleata no processo histrico ao qual pertence, enraizando-o num

    mundo concreto de debates, de polmicas, de tomadas de posio sobre problemas

    gnoseolgicos, e tambm de epistemologia, de astronomia, de fsica, de biologia, de

    embriologia; mas tambm e principalmente porque desta forma faz realar melhor a sua

    originalidade e a sua fora especulativa, que foram certamente grandes, se impressionaram

    no s um Plato e um Aristteles, mas tambm um Hegel e um Einstein.

    Desta obra de remoo da estratificao e de redimensionamento das doutrinas de

    Parmnides, o poema do Eleata, nos cerca de 160 versos que dele nos restam, ganhou nova

    luz, e embora pequenos particulares nos possam parecer ainda fugazes ou desbotados, o

    desenho geral da obra -nos bastante claro. H uma introduo, majestosa e inspirada, no

    estilo da tradio pica, que narra uma experincia intelectual extraordinria: a revelao de

    uma deusa. Mas uma revelao que nada tem de mstico, ou de iniciador, e no outra coisa

    seno o delinear de um ambicioso programa de investigao que possa levar ao conhecimento

    de todas as coisas, em todos os sentidos, em todos os campos do saber humano. E depois h

    uma penetrante discusso sobre a via que conduz a este saber, isto , uma discusso sobre o

    mtodo atravs do qual se pode construir este saber, e que distingue nitidamente o homem que

    sabe dos homens que nada sabem, que tm peito e mente indecisos, que se deixam arrastar,

    surdos e cegos, pelas tortuosas sendas da vida, que no sabem avaliar. E h ainda a grande

    intuio da relao que une e distingue a experincia de todos os dias, o mundo polimorfo das

    coisas que acontecem e sobre as quais no h verdadeira certeza, e o mundo abstracto e

    formalizado da verdade cientfica, aquele mundo da verdade sem contradies: o corao da

    verdade bem redonda que s a poucos dada a possibilidade de se aperceberem dele. E h por

    fim o cenrio maravilhoso e solene em que se movem os astros e a terra, as estrelas e oshomens, com os seus desejos e paixes, as suas aspiraes e pensamentos, os seus corpos e

    mentes. Tudo medido pela inflexvel lei de uma Necessidade racional e eterna que mantm

    firmemente no interior dos seus poderosos grilhes todas as identidades e todas as diferenas

    de tudo quanto nasceu, e perecer.

    J foi dito, com justia, que se a Grcia a origem da filosofia, Parmnides a origem

    desta origem. De facto, embora a grande filosofia grega traga os nomes de Plato e de

    Aristteles, e a sua encenao se desenrole em Atenas, o centro do mundo grego, houveraprlogos no menos importantes, a Este e a Oeste desse centro, sem os quais aquela luz no se

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    teria acendido. A Oriente existira o pensamento cientfico dos Milsios, mas tambm a

    inquietante e ambgua palavra de Herclito, aquele filsofo que turba e turbar sempre o sono

    dos cientistas, para usar uma belssima expresso de De Santillana. A Ocidente apareceram

    dois poemas que colocaram as bases e delinearam os limites do que teriam sido da em diante

    a filosofia, a filosofia da natureza e a metodologia cientfica: em Eleia, o livro de Parmnides,

    e mais a Sul, na Siclia meridional, um pouco mais tarde, o livro daquele extraordinrio

    filsofo, cientista, visionrio, poeta, que vivera na dourada cidade de kragas. Entre Oriente e

    Ocidente moveram-se os Pitagricos. Com as doutrinas pitagricas, que do extremo oriente

    do mundo grego se transferiram, no final do sculo VI, para a Grcia ocidental, Parmnides

    tivera, em particular, um ntimo contacto: fora iniciado nelas, provavelmente, pelo seu mestre

    Amnias, pitagrico, homem pobre, mas nobre e ntegro, e para quem Parmnides, riqussimo,

    construiu um monumento fnebre6. Tambm Parmnides detectou, analogamente aos

    Pitagricos, dois princpios contrrios (ta)nti/a)7 no fogo e na noite, de que tudo est

    cheio visto que cada coisa se obtm da unio dos dois (pa=n ple/on e)sti/n...e)pei;

    ou)dete/rwi me/ta mhde/n)8. Parmnides no fora um simples repetidor das doutrinas

    pitagricas, mas as criticara especial e fortemente num ponto capital. Como claramente

    evidente das teses polmicas do seu grande discpulo Zeno, mas como tambm j semanifestava nos seus versos, Parmnides pensou o cosmo segundo o paradigma da

    continuidade: descontinuidade de uma realidade composta e estruturada por nmeros-

    partculas, defendida pelas antigas doutrinas pitagricas, ele contraps uma concepo do

    cosmo que possui as caractersticas do ou)lomele/j, do e(/n, do sunexe/j9, isto , da

    compactidade, da unidade, da continuidade. A importncia desta polmica, que nasce na

    Grcia de 2500 anos atrs, a polmica sobre o continuum-discretum que via, na Antiguidade,

    Parmnides contrrio aos Pitagricos, mostra-se evidente apenas se pensarmos que ainda hojeas discusses entre os defensores das teorias ondulatrias e os defensores das teorias

    corpusculares no parecem ter encontrado uma definitiva composio, e indico aqui, por este

    motivo, apenas os grandes nomes de Planck, de De Broglie, de Einstein, de Heisenberg, de

    Schrdinger.

    6

    DL IX 21 = DK28A1.7 DK28B8.59.8 DK28B9.3-4.9 DK28B8.4-6.

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    A figura de Parmnides aparece portanto bem inserida num vivo debate cientfico

    sobre um problema determinado, e por isso bem longe daquela imagem do filsofo

    empenhado em dissertaes abstractamente metafsicas e desprezador das experincias. Que

    Parmnides se inserisse plenamente no contexto da atitude cientfica geral do V sculo a.C.

    concernente especulao acerca do homem claro pelos respeitveis testemunhos de

    Aristteles e de Teofrasto, alm de ser claro tambm por uma longa srie de testemunhos

    antigos. A estes testemunhos, exactamente por essa outra imagem ser j natural, no se

    tinha dado muita considerao10. No IV livro da Metafsica, durante um discurso que

    pretende refutar o relativismo gnoseolgico de Protgoras, um discurso que quer criticar a

    ntima ligao que une fro/nesij a ai)/sqhsij, a inteligncia, o pensamento, sensao,

    Aristteles11, como defensor dessas doutrinas, cita precisamente Parmnides junto com

    Empdocles, Demcrito e Anaxgoras, e at os liga a Homero, que numa famosa passagem da

    Ilada (23, 698) dissera que o heri, delirante pela ferida, jazia com pensamentos alterados

    na sua mente. Tambm Teofrasto, num discurso centrado sobre a sensao, que pretende

    distinguir entre os que admitiram que ela se d segundo o princpio do semelhante com o

    semelhante (sendo estes Parmnides, Empdocles e Plato), e os que defenderam que ela se

    d segundo o princpio do contrrio (isto , Anaxgoras e Herclito), tambm ele, em

    resumo, testemunha que para Parmnides, no s a dia/noia sempre summetri/a, mas que

    h at uma identificao entre ai)sqa/nesqai e fronei=n, ou seja, precisamente entre sentir e

    pensar12.

    Mas a este propsito, felizmente, dispomos dos versos originais de Parmnides, que os

    mesmos Aristteles e Teofrasto citam como prova dos prprios argumentos. Trata-se dos 4

    versos do importantssimo fragmento 16:

    wj ga\r ekastot )exei kra=sin mele/wn poluka/mptwn,twj no/oj a)nqrwpoisi paristatai: to\ ga\r au)to/estin oper frone/ei mele/wn fu/sij a)nqrwpoisinkai pa=sin kai panti: to\ ga\r ple/on e)sti no/hma

    10Cf. Digenes Larcio (IX 21-23 = DK28a1), Suid. (s.v.), Jmblico (v. Pith. 166 = DK28A4), Eusbio (chron.

    a) Hieron = DK28A11), Simplcio (de caelo 556, 25 = DK28A14), Menander [mais exactamente Genethlios]reth. I 2, 2 e I 5, 2 = DK28A20), Hiplito (ref. I 11 = DK28A23), Plutarco (adv. Col. 1114 b).11met. 1009b1-14.12 THEOPHR. de sens. 1sgg. = DK28A46.

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    Com efeito, segundo a relao que em cada um se instaura entre aspartes mveis que o [constituem,

    assim aos homens chega o intelecto; pois o mesmo o que nos homens pensa: a natureza das partes que o constituem,em todos e em cada um; pois o pensamento o conjunto destas relaes todas.

    O fragmento apresenta-se, nos quatro versos que nos chegaram, extraordinariamente

    compacto na sua estrutura lgica e sintctica, e extremamente claro na sua formulao

    conceptual. Ao ligar intimamente o no/oj e o no/hma natureza das partes que constituem o

    corpo, de modo que cada homem aparece como uma unidade indivisvel de corpo e

    pensamento, essa uma ulterior prova da impossibilidade de separar e de contrapor

    racionalidade e sensibilidade em Parmnides. H uma relao muito forte (w(j... tw/j) entre as

    me/lea, as partes que constituem cada homem, e o seu no/oj, o seu intelecto. O sentido desta

    relao este: que sempre a fu/sij mele/wn (isto , a configurao particular que assume

    em cada homem a sntese entre as suas partes constituintes) a determinar o seu pensamento.

    De facto, sempre ela aquilo que precisamente (o(/per) nos homens pensa; e, com efeito, o

    no/hma exprime exactamente a totalidade do homem (to\ ple/on), a significao pregnante

    do seu serem sentido pleno.Mas se Parmnides est na origem da origem da filosofia, ele est tambm na origem

    do problema da verdade. E a este propsito gostaria de debruar-me sobre ela, em particular

    para mostrar como, mesmo acerca deste problema, seria mais interessante dedicar-se ao texto

    do Eleata, pondo de parte a imagem vulgata da filosofia de Parmnides. Como sabido,

    durante sculos quis-se ver uma fenda no interior do poema de Parmnides, fenda que seria

    marcada pelos versos 50-51 do fragmento 8: Com isto eu interrompo o discurso certo e o

    pensamento / acerca da verdade; a partir daqui aprende as opinies dos homens. Sobre estes

    versos construiu-se uma improvvel dicotomia entre as duas partes do poema, a primeira

    dedicada verdade, a segunda dedicada s opinies. Na primeira, Parmnides exporia as

    linhas de uma filosofia verdadeira sobre o ser (o que quer que signifique pois este ser); na

    segunda, as linhas de um enganador quadro das opinies dos homens, e, por conseguinte, toda

    uma cosmologia, uma antropologia, enfim, uma filosofia da natureza fundamentalmente

    falsas. Desta maneira, com muito simplismo, resolvia-se o problema da verdade em

    Parmnides: verdadeiro o ser, e, por conseguinte, o discurso sobre o ser, falsas so as

    opinies, e, consequentemente, todo o discurso sobre as opinies. A historiografia filosfica

    mais atenta j desfez este quadro, no s ao saldar novamente as duas partes do poema,

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    dando outra vez textura e dignidade filosficas ao discurso sobre as opinies, mas tambm ao

    aprofundar as ntimas relaes teorticas que existem entre as duas partes. Tambm eu

    trabalhei neste quadro no s de revalorizao da doxa de Parmnides, mas inclusive de

    reconsiderao do sentido da unicidade do pensamento do Eleata, publicando um livro h

    cerca de trinta anos13. O que, em vez disso, queria tentar aqui uma anlise do sentido e das

    condies da verdade para Parmnides, para mostrar como a sua posio no de modo

    nenhum monoltica, mas contm no seu interior fendas teorticas que, sabiamente usadas

    pelos sofistas, em particular por Protgoras e por Grgias, Plato tentar em seguida reparar,

    com um complicado enquadramento de fidelidade e ao mesmo tempo de superao da

    perspectiva do Eleata.

    De facto, a verdade tambm um problema para Parmnides. Problema porque,

    embora sendo bastante claras as coordenadas teorticas nas quais se situa a sua perspectiva,

    no fcil esclarecer o significado e as implicaes desta perspectiva. O fragmento 3 (to\

    ga\r au)to\ noein e)stin te kai einai: com efeito, a mesma coisa pensar e ser), lido

    fora de qualquer horizonte neoplatnico ou idealstico, dentro do qual, a partir de Plotino, nos

    foi legado, fala-nos apenas de uma coincidncia, de uma identidade, ou de uma

    indivisibilidade. Mas enquanto o pensar fcil de perceber, mais difcil se mostra percebero campo semntico do einai, do ser. Como sabido, para indicar o objecto da sua

    investigao, Parmnides no usa o termo ser, mas sim to\ e)o/n, o ente, aquilo que . E

    ento o primeiro problema : o ser de B3 a mesma coisa que to\ e)o/n, ou indica outra coisa

    qualquer? O problema complica-se porque junto a aquilo que aparece tambm um to\ mh\

    e)o/n, um no-ente, aquilo que no , e dele se diz explicitamente que no cognoscvel nem

    enuncivel (B2.7-8: ou)/te gnoi/hj ... ou)/te fra/saij), portanto, evidentemente no

    pensvel. Existe pois uma ntima relao entre a sequncia: ser-pensar-conhecer, e,

    especularmente, entre a outra: no ser-no pensar-no conhecer. E as duas sequncias

    poderiam verosimilmente enriquecer-se, respectivamente, com um exprimir-dizer e com um

    no exprimir-no dizer, baseando-se, por exemplo, no verso 1 do fragmento 6, em que o

    le/gein, o dizer, est necessariamente ligado ao noei=n, ao pensar14.

    13 G. CASERTANO, Parmenide il metodo la scienza lesperienza, Napoli 1978 (II ed. Napoli 1989).14 B6.1: xrh\ to\ le/gein te noei=n t ) e)o\n e)/mmenai. Sobre esta ntima ligao cf. tambm B8.8, B8.17.

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    Permanece o problema sobre o que o einai do fragmento 3, e em que ele se

    distingue do to\ e)o/n. De facto, todos os sh/mata de B8 dizem respeito a aquilo que :

    ingnito, indestrutvel, compacto, imutvel, etc., e creio que no existe em nenhum dos versosde Parmnides a indicao de o que o ser. E se os sinais de o que so as

    modalidades em que ele pode ser pensado/dito, o ser de B3 deixado nossa leitura, isto ,

    nossa interpretao. O cnone hermenutico que apresenta o ser de Parmnides como

    englobando em si, contemporaneamente, o plano da realidade, do existir, o plano da

    pensabilidade, do pensar, e o da enunciao, do dizer, poderia ser correcto e tambm

    iluminante para perceber o pensamento de Parmnides, mas no pode ser aplicado letra.

    Se temos de perceber, temos de traduzir, isto , temos de interpretar, e creio que, deste pontode vista, no nos ajudaria traduzir o einai em todas as suas formas verbais, em positivo ou

    em negativo, com ser variamente conjugado. Seria, talvez, mais correcto (mas se calhar s

    mais simples, ou menos trabalhoso ao leitor) escolher traduzir aquelas formas sempre da

    mesma maneira, mas no h dvida de que o problema no se resolveria. Alm disso, deve-se

    ter presente que Parmnides usa no s a forma infinitiva einai, mas tambm, talvez como

    sinnimos, e)/mmenai15, pe/lein16, pele/nai17.

    E portanto preciso escolher. B6.1 nos diz: xrh\ to\ le/gein te noei=n t ) e)o/n

    e)/mmenai. Especularmente, B8.8-9: ou) ga\r fato\n ou)de\ nohto/n [o sujeito precisamente

    o mh\ e)o/n do verso 7] e)/stin o(/pwj ou)k e)/sti. Traduzimos: preciso dizer e pensar que

    aquilo que existe; [aquilo que no ] no enuncivel nem pensvel, porque no existe.

    E ento, o plano semntico de aquilo que , como delineado no fragmento 8, o plano da

    realidade, fsica, existencial, formalizado precisamente na forma lingustica to\ e)o/n; esta

    serve para indicar o todo, o cosmo das coisas existentes, cosmo esse que visto, com ummovimento de abstraco do pensamento, na sua unidade, que dispensa a multiplicidade dos

    fenmenos particulares que nele se manifestam. Digamos j que esta no uma perspectiva

    original de Parmnides: de Tales em diante se verdadeira a sua afirmao que diz e(/na

    to\n ko/smon18, mas no vejo nenhum motivo para duvidar de que seja verdadeira , a

    unidade e a unicidade do cosmo (que no excluem obviamente a multiplicidade dos mundos

    15

    B6.1.16 B6.8.17 B8.11.18 At. II 1, 2 = DK11A13b.

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    possveis que o constituem) doutrina dominante na reflexo grega; como testemunha com

    autoridade Aristteles em relao a todos os que filosofaram em primeiro lugar19,

    acrescentando que, nesta perspectiva, nada nasce e nada se destri; como j havia poetadoXenfanes naquelas duas afirmaes, s em aparncia contraditrias, em que, por um lado, se

    diz que nada nasce, nada se destri e nada se move porque o uno-todo isento de devir20, e,

    por outro lado, se diz que tudo o que nasce mortal21.

    E tambm para Parmnides o uno-todo precisamente ingnito, indestrutvel,

    compacto, contnuo, homogneo (B8), enquanto que as coisas que so, os fenmenos

    particulares, nascem e tero um fim (B19). E antes e depois de Parmnides, com

    Anaximandro, Anaxmenes, Melisso, Filolau, Herclito, Empdocles, Anaxgoras, Demcrito

    se dissera e se repetir que o nascimento e a morte so nomes de casos que concernem os

    fenmenos particulares que acontecem na realidade, mas no tocam de maneira alguma e no

    podem ser aplicados realidade mesma entendida como uno-todo22.

    Os dois aspectos absolutamente novos em Parmnides so, por um lado, a

    demonstrao lgica e formal das duas teses, tal como ela se desenvolve fundamentalmente

    nos versos centrais do fragmento 8, e, por outro lado, a clara teorizao do mtodo, da via de

    investigao (B2-B7), atravs da qual os dois tipos de afirmaes podem ser alcanados. O

    segundo destes aspectos aquele que concerne propriamente ao nosso tema. Afirmada a

    identidade entre pensar e ser, podemos entender esta identidade no sentido que cada vez que

    se pensa, pensa-se algo que , ou seja, que existe, enquanto que no se pode pensar algo que

    no , ou seja, que no existe. E assim em B8.34: tau)to\n d )e)sti\ noei=n te kai\ ou(/neken

    e)/sti no/hma, e a mesma coisa o pensar e aquilo que pensado23. Isto significa no s

    que o pensar est inseparavelmente ligado ao pensado, pela evidente razo de que no pode

    haver pensamento que no seja pensamento de algo, mas tambm pela razo mais profunda de

    19 ARIST. met. A 3.983b6.20 HIPL. ref. I 14, 2 = DK21A33.21 D.L. IX 19 = DK21A1.22 Anaximandro: DK12A1; Anaxmenes: DK13A11; Melisso: DK30A5, A10, B1, B7-8; Filolau:DK44A16,B21; Heraclito: DK22A6; Empdocles: DK31B8, B9; Anaxgoras: DK59B17; Demcrito:DK68A37, A49; A57-59.23 Os vv. 34-36 deste fragmento, so, como sabido, de difcil traduo e interpretao. Para a minhainterpretao, e para a discusso das outras interpretaes, cf. o ensaio citado na nota 13. Uma das dificuldadesde traduo deste verso o sentido a ser dado ao ou(/neken do verso 34. Eu interpreto-o como to\ ou e(/neka(testemunhado por Simplcio, phys. 87,17), porque o objecto do pensar sempre o ser, no sentido de algo queexiste. Mas, de facto, poder-se-ia tambm interpretar o ou(/nekencomo ou e(/neka, no sentido que a causa, oumelhor o fundamento do pensar, sempre o ser-existir, como confirma o verso 35. No acredito, porm, quepossa ser interpretado como o(/ti.

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    que o pensamento assenta no ser, no sentido que no concebvel um pensamento que no

    seja pensamento da realidade, ou ento, mas o mesmo, que sempre uma realidade aquilo

    que se exprime no pensamento. Assim , de facto, nos versos seguintes: J que sem aquilo

    que , nos limites dos quais ele enunciado, no encontrars o pensar; nada mais, com efeito,

    ou ser fora daquilo que 24. O pensar assenta ento no ser, est agrilhoado aos limites da

    realidade, para usar a poderosa expresso do verso 3125; e cada vez que se pensa, e portanto

    se diz, um pensado, pensa-se, e portanto se diz, uma realidade. Especularmente: no existe,

    no se pode pensar e portanto no se pode dizer, uma no-realidade, algo que no , que no

    existe.

    Tudo isto bastante claro. O problema nasce quando o ser e o pensar se ligam

    precisamente verdade. Pensar e dizer o ser, isto , algo de real, evidentemente pensar e

    dizer a verdade. Todo o discurso sobre to\ e)o/n, sobre a realidade, com todas as suas

    demonstraes, os seus princpios lgicos, a explicitao das caractersticas e das

    determinaes de aquilo que , claramente um discurso a)mfi\j a)lhqei/hj, que se move

    no reino e nos confins da verdade26. E a verdade, para Parmnides, est fortemente ligada

    persuaso; o caminho da persuaso, com efeito, segue a verdade27: tudo o que foi dito

    acerca de to\ e)o/n , no s um discurso verdadeiro, mas tambm um pisto\j lo/goj, umdiscurso digno de confiana, e portanto credvel28. de notar, algo que nem sempre feito,

    esta ntima ligao em Parmnides que depois aparecer em Grgias e naturalmente em

    Plato entre verdade e persuaso: um discurso verdadeiro sempre um discurso que

    convence, que persuade. E este sobretudo todo o discurso sobre to\ e)o/n, o discurso sobre a

    realidade vista como uno, como todo, na determinao lgica e necessria das suas

    caractersticas fundamentais. Mas a verdade do discurso sobre to\ e)o/n ao mesmo tempo o

    prprio constituir-se deste discurso: por outras palavras, o mtodo; aquilo a que Parmnides

    chama a o(do\j dizh/sioj, a via de investigao. E somente a via de investigao que impele

    to\ e)o/n constituio de um caminho (ke/leuqoj) para a verdade, enquanto que a que

    pretende falar sobre to\ mh\ e)o/n um a)tarpo/j, um trilho absolutamente intransitvel,

    24 B8.35-37: ou e(/neka ou) ga\r aneu tou= e)o/ntoj, e)n wi pefatisme/non e)stin, eu(rh/seij to\ noein:ou)de\n ga\r h estin h estai allo pa/rec tou= e)o/ntoj.25

    B8.31: pei/ratoj e)n desmoi=sin.26 B8.51.27 B2.4: a)lhqei/hi ga\r o)phdei=.28 B8.50.

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    porque aquilo que no no se pode conhecer nem dizer29. Como afirmei antes, esta ptica

    mostra-se monoltica ao estabelecer ntidas diferenas, conexes e excluses. E no entanto,

    no assim to monoltica, precisamente pela introduo do factor persuaso, como deseguida veremos.

    Portanto, se o reino da verdade coincide com o do ser, isto , com o da realidade, o

    reino do no ser, isto , o do no real, deveria ser o da falsidade: e ento, se dizer a verdade

    significa dizer as coisas que so, dizer a falsidade deveria significar dizer as que no so. O

    problema que estas equaes nunca so afirmadas explicitamente por Parmnides, embora a

    primeira se possa deduzir bastante legitimamente, como vimos. O que explicitamente

    negado que se possa pensar e dizer o que no . Os dois primeiros versos de B7,

    exactamente os que so citados por Plato no Sofista30, dizem que jamais se poder impor

    com a fora o seguinte: que existam as coisas que no existem. Mas afasta tu o pensamento

    desta via de investigao. J vimos como aquilo que no no possvel diz-lo nem

    pens-lo, a partir do momento que no existe31. E que algo de impensvel e de indizvel no

    seja sequer verdade re-afirmado mais frente, nos versos 17-18 do mesmo fragmento B8:

    uma das vias de investigao impensvel e indizvel [de facto, no a verdadeira via],

    enquanto que a outra existe e autntica (th\n me/n e)a=n a)no/hton a)nw/numon (ou) ga\r

    a)lhqh/j e)/stin o(do/j), th\n d )w(/ste pe/lein kai\ e)th/tumon einai); onde o termo

    e)th/tumon oferece um significativo reenvio quer ao plano da realidade quer ao da verdade.

    Ento: se no possvel pensar e dizer o que no , e se possvel apenas pensar e dizer o que

    , e se, de cada vez que se pensa e se diz o que , pensa-se e diz-se a verdade, a consequncia

    da afirmao de Parmnides deveria ser exactamente a que os sofistas dela retiram, sobretudo

    Protgoras e Grgias, ou seja, que cada vez que se diz, diz-se sempre a verdade, logo que

    todos os discursos so verdadeiros. Mas mesmo assim?Com efeito, esta poderosa perspectiva, que liga a verdade ao ser, proclamando

    pensvel e dizvel apenas o ser, e que, ainda assim, estabelece em termos nossos uma

    analogia, ou uma identidade, entre as leis do real e as do pensamento (pressuposto que foi e

    fundamental para o desenvolvimento do pensamento cientfico, bem como do filosfico); esta

    perspectiva, dizamos, apresenta no seu interior perigosos desvios muito antes que as

    perspicazes anlises de um Grgias as trouxessem para a luz e as ampliassem. De facto,

    29 B2.4-8.30Soph. 237a, 258d.31 B8.8-9.

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    Parmnides convida a bem reflectir (ko/misai de\ su\ mu=qon a)kou/saj: tira proveito do

    discurso que ouves), em B2, sobre as nicas vias de investigao pensveis32, uma das

    quais ou)k e)/sti mh\ einai, isto , no pode no existir, e que precisamente o caminho

    (ke/leuqoj) da verdade da qual no se pode seno gerar persuaso, enquanto que a outra

    absolutamente intransitvel (panapeuqe/a). Esta via no transitvel evidentemente a (ou

    as) de B6, aquela na qual os homens das duas cabeas se movem, que afirmam o ser e o no

    ser, o existir e no existir, como tau)to/n, a mesma coisa. Isto significa que um discurso sobre

    o que no , portanto um discurso no verdadeiro, pode ser feito na mesma. De facto, em

    B8.50, d-se fim ao discurso certo e ao pensamento sobre a verdade, mas nem por isso o

    discurso termina; comea-se um outro que, se no verdadeiro, no deixa de ser menos

    importante pelo vasto programa do saber pr-anunciado nos ltimos versos do fragmento 1:

    necessrio que tu aprendas tudo, quer o fundo imutvel da verdade sem contradies, quer

    as experincias dos homens, em que no h verdadeira certeza. Mas custe o que custar

    tambm estas aprenders, a partir do momento que as experincias devem ter um valor para

    aquele que investiga tudo em todos os sentidos 33.

    O discurso sobre as opinies, isto , sobre as experincias dos homens, que

    evidentemente no possui o grau de verdade do discurso sobre to\ e)o/n, parte fundamental

    da construo do conhecimento humano: um discurso no verdadeiro, mas nem por isso

    um discurso falso. Em B2, a via de investigao, se no propriamente uma o(do/j,

    todavia uma a)tarpo/j, uma ke/leuqoj, e embora no sendo transitvel,panapeuqh/j (ou

    melhor, absolutamente intransitvel), pode ainda assim ser pensada, por fazer parte das

    nicas vias que podem ser pensadas (noh=sai). E portanto pode-se pensar e dizer tambm o

    falso, no s como fazem os di/kranoi de B6.5, que gente que no sabe avaliar (a)/kritafu=la) e que mistura nos seus discursos o ser e o no ser, o existir e o no existir, mas

    tambm como fazem os que falam sem mtodo sobre a natureza. Estes, com efeito, ao

    confundir as vias, atribuem a aquilo que os nomes nascer e morrer34, mudar, que,

    em rigor, no lhe podem ser atribudos, a partir do momento que so caractersticas no de

    32 B2.2: o(doi\ mou=nai dizh/sioj...noh=sai.33

    B1.28-32. Para a justificao desta traduo, e especialmente para a traduo de do/cai por experincias,veja-se o meu ensaio citado supra, em particular n. 32 nas pp. 56-59; pp. 203-213.34 B8.39-41: Em relao a ele [aquilo que ] so-lhe dados todos os nomes que os homens estabeleceramacreditando serem verdadeiros, isto , nascer e morrer, existir e no existir, mudar de lugar e mudar a cor brilhante.

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    aquilo que , mas das coisas que so, isto , das unidades mltiplas dos fenmenos. E no

    s: nesta sua operao errada, eles acreditam serem verdadeiros aqueles nomes (B8.39:

    pepoiqo/tej einai a)lhqh=). Portanto, como se v, tambm para Parmnides se pode dizero que no verdade: e no s, pode-se tambm acreditar na verdade do no verdadeiro que se

    diz. Aqui reside o erro fundamental dos homens, aquele erro que constitua a terceira via de

    B6, ou a segunda via de que era preciso afastar-se (B6.4), e que se torna precisamente um

    erro fundamentalmente metodolgico. Erro que consiste em atribuir as caractersticas de

    aquilo que s coisas que so, e vice-versa, isto , em atribuir as caractersticas da

    imutabilidade, da homogeneidade, da continuidade, da unidade, multiplicidade dos

    fenmenos mutveis e transeuntes, quando estas so caractersticas unicamente da realidade

    pensada na sua totalidade; e vice-versa ainda, as caractersticas da mudana, da

    multiplicidade, da descontinuidade, do nascimento e da morte a aquilo que , quando essas

    so caractersticas unicamente das coisas que so.

    claro que a perspectiva hermenutica aqui esboada se liga intimamente a uma

    reconsiderao em positivo da do/ca de Parmnides, fortemente conexa a)lh/qeia no

    quadro de um conhecimento da realidade que seja o mais amplo e omni-abrangente possvel.

    Se s o discurso sobre to\ e)o/n a ser verdadeiro, porque um discurso metodolgico,matemtico, geomtrico, o discurso sobre as opinies, ou sobre as experincias dos homens,

    mesmo no sendo verdadeiro, no todavia falso: verosmil, tal como qualquer discurso

    sobre a realidade fsica, sobre a fenomenalidade, desde Parmnides a Plato (recorde-se o

    ei)ko/j do Timeu), at Einstein (se certo, no fsica). De facto, a do/ca aparece em B1.30

    flanqueada ao corao imutvel da verdade bem redonda, isto , verdade sem

    contradies, como parte integrante do programa de saber que a deusa expe a Parmnides.

    verdade que a pi/stij a)lhqh/j reside apenas na verdade e no na do/ca; mas igualmente verdade que a deusa insiste por duas vezes (B1.28, B1.31) sobre a necessidade de

    o saber do ei)dw\j fw/j, do homem que sabe, englobar tambm ta\ dokou=nta, ou seja,

    precisamente as opinies, as experincias, cujo verdadeiro valor deve ser bem compreendido.

    Em todo o contexto, portanto, destes ltimos versos de B1, do/caie dokou=nta no tm

    absolutamente uma conotao negativa; pelo contrrio, importante, ou melhor, necessrio

    (xrh/n) que elas sejam investigadas, que sejam estudadas, porque sbio exactamente aquele

    que investiga tudo em todos os sentidos (B1.32). Os versos de B8.50-52 confirmam e

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    esclarecem: tambm aqui as do/cai dos homens devem ser aprendidas (B8.52: ma/nqane); as

    do/cai sobre as quais, se no possvel, como vimos, construir um discurso verdadeiramente

    credvel, porm necessrio construir um discurso verossmil, uma construo lgica quetodavia se baseie num kri/nein lo/gwi, num juzo racional. O erro dos homens no portanto

    o de falar do mundo das do/cai, mas o de falar dele de maneira confusa, imprecisa, sem

    seguir nenhum mtodo, ou pior ainda, seguindo um certo mtodo para depois abandon-lo e

    seguir o mtodo oposto (B6.7-9): assim que se torna a)/krita fu=la, gente que no sabe

    avaliar. Enfim, em B19, que constitui provavelmente o fim do poema, reaparecem as do/cai,

    e desta vez referem-se evidentemente a todo o contedo da chamada segunda parte do poema,

    em que se fala das estrelas (B10-12), do sol (B10-11), da lua (B10-11, B14-15), da gerao

    dos animais (B12, B17) e dos homens (B12, B17-18), da terra (B11, B15a), da percepo, da

    sensao e do pensamento (B16). E tambm aqui, como se v claramente, todo o discurso da

    deusa sobre estas do/cai no um discurso falso: sim um discurso que versa sobre a

    multiplicidade dos fenmenos considerados nas suas vrias individualidades e propriedades,

    um discurso sobre os e)o/nta, e no sobre a realidade na sua totalidade e na sua unidade; mas

    ainda um discurso que consegue instaurar ligaes, relaes, conexes na linguagem deParmnides do fragmento 4, um discurso que consegue tornar pareo/ntaos a)peo/nta, na

    nossa linguagem, um discurso que consegue encontrar a lei imutvel da mudana, da

    transformao. Por outras palavras, as do/cai dos homens aparecem agora como a descrio

    da totalidade dos aspectos particulares daquela ordem csmica racionalmente verossmil

    que a deusa prometera expor em B8.60.

    Em concluso, podemos dizer que no h uma oposio entre o campo da cincia e o

    da experincia comum, entre o processo do discurso racional e o das experincias sensveis,mas uma continuidade. Uma continuidade que dada pelo no/oj, pelo intelecto, pela mente do

    homem que conhece. A interveno do no/oj na leitura da experincia comum, essa

    interveno necessria para que este mundo possa constituir no uma sucesso catica de

    factos e de aparncias, mas um cosmo racionalmente ordenado, precisamente a de dar um

    justo valor, uma justa colocao (veja-se o w(j einai de B1.31-32) multiplicidade dos

    fenmenos dessa nica realidade em que o homem vive e trabalha.

    Traduo de

    Maria da Graa Gomes de Pina

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