caso barcelona traction

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E APLICADAS DEPARTAMENTO DE DIREITO CASO BARCELONA TRACTION

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Page 1: Caso Barcelona Traction

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPECENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E APLICADAS

DEPARTAMENTO DE DIREITO

CASO BARCELONA TRACTION

SÃO CRISTÓVÃO2010

Page 2: Caso Barcelona Traction

ADRIANA DO PIAUÍ BARBOSAAFONSO SOUZA JUNIOR

ANA CAROLINA SANTANACAMILA MARROCOS FONSECA

DÉBORA SONALY BORGES SANTOSGLÓRIA PRISCILA ANDRADE DA SILVA

JULIANA LIMA FREITASKETLYN DE SANTANA NASCIMENTOLARISSA ELLEN MONTEIRO MACIELMÁRCIO VINÍCIUS PASSOS MOREIRA

PRISCILA CAVALCANTI CÔRTESTHISSIANE MATOS BATISTA

CASO BARCELONA TRACTION

Trabalho apresentado à disciplina Direito Internacional Privado, turma A0 da Universidade Federal de Sergipe com fim de avaliação referente à Unidade II pelo professor Doutorando Carlos Rebêlo Júnior.

SÃO CRISTÓVÃO2010

Page 3: Caso Barcelona Traction

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.............................................................................................031. CONTEXTO HISTÓRICO: FRANQUISMO........................................041.1. INTRODUÇÃO: O ALICERCE DA DITADURA FRANQUISTA.......041.2. FRANCO: O CAUDILHO DA ESPANHA.............................................041.3. AS LEIS FUNDAMENTAIS: FRANQUISMO INSERIDO NO CONTEXTO LEGAL.....................................................................................051.4. UMA MONARQUIA SEM REI: A DOUTRINA FRANQUISTA.........051.5. O CONTROLE POLÍTICO DA ECONOMIA........................................061.6. FORÇAS DE OPOSIÇÃO: CRISE E DECADÊNCIA DO GOVERNO FRANQUISTA................................................................................................072. RELATO DO CASO.................................................................................083. DECISÕES.................................................................................................103.1. 1ª FASE DO JULGAMENTO (Sentença de 24 de julho de 1964)..........113.2. 2ª FASE DO JULGAMENTO (Sentença de 05 de fevereiro de 1970)....143.3. A DECISÃO DA CORTE........................................................................154. VOTOS DISSIDENTES............................................................................164.1. JUIZ KOTARO TANAKA.....................................................................164.2. JUIZ PHILIP C. JESSUP.........................................................................184.3. JUIZ ANDRÉ GROSS............................................................................18 5. CONSEQUÊNCIAS NO PLANO INTERNACIONAL.........................20CONCLUSÕES.............................................................................................22REFERÊNCIAS............................................................................................23- BIBLIOGRAFIA..........................................................................................23- WEBGRAFIA...............................................................................................23APÊNDICE A – PERGUNTAS....................................................................25

Page 4: Caso Barcelona Traction

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem por objetivo abordar sucintamente o que significou o

Caso Barcelona Traction, situando-o em seu contexto histórico, com um breve relato sobre o

ocorrido, explanando as questões jurídicas levantadas pelas partes envolvidas (Bélgica e

Espanha) em seus pronunciamentos, trazendo a Decisão proferida pelo Tribunal Internacional

e pontuando aqueles que, na percepção da equipe discente, foram os votos de maior destaque

no julgamento em questão.

O método utilizado foi a da pesquisa bibliográfica; precipuamente em sítios

eletrônicos, mas também em acervo físico.

Registre-se que, não obstante os aspectos analisados durante a pesquisa não serem

restritos ao ramo do estudo do Direito Internacional Privado (a exemplo da introdução

histórica trazida com o fito de contextualizar o fato em estudo), as conclusões e abordagens

concentraram esforços no sentido de relacionar o assunto com os conceitos aprendidos na

referida disciplina, sem ter a pretensão de esgotar a análise do julgado.

Por fim, espera-se destacar as principais consequências trazidas, no plano

internacional e nacional, pelo Caso em foco, complementando o trabalho com a produção de

um questionário sobre o tema em questão.

Page 5: Caso Barcelona Traction

1. CONTEXTO HISTÓRICO: FRANQUISMO1.1. INTRODUÇÃO: O ALICERCE DA DITADURA FRANQUISTA

Apesar do modelo de regime autoritário, antidemocrático, que visa o controle

absoluto da sociedade, a ditadura Franquista não deve ser considerada como absolutamente

Fascista. O Franquismo, urge notar, não pretendeu a renovação total dos indivíduos, dos

valores, enfim, da sociedade como um todo.

Pode-se qualificar o regime franquista de “ditadura militar” embasado na

ideologia conservadora e católica espanhola, em meio a alguns elementos do fascismo

italiano.

O surgimento desse regime foi gestado entre os militares que se uniram contra os

males que, na opinião deles, a República estava causando.

Com isso, durante a Guerra Civil (1936/1939) confabulou-se, junto a Franco, o

novo regime. Francisco Franco, galego de formação militar, organizou todo um país como a

um grande quartel até a sua própria morte.

Impôs transformações dentro da sociedade, que alteraram visivelmente o cenário

corriqueiro dos espanhóis, inserindo, dentre outras coisas: mandado único e indiscutível;

ordem e obediência às autoridades; unidade de pátria; imposição dos valores religiosos e

católicos; nacionalismo espanhol; duro controle dos opositores; retomada da bandeira

monárquica, composta de elementos dos reis católicos no escudo; sufocamento dos sindicatos

de classe, criando uma organização híbrida que abrangia trabalhadores e patrões.

1.2. FRANCO: O CAUDILHO DA ESPANHA

Francisco Franco, membro da Junta de Defesa espanhola durante a Guerra Civil,

iniciou seu crescimento político ainda no período bélico, fazendo-se popular e somando

poderes com apoio de seus próprios companheiros. Com o triunfo na Guerra, sua autoridade

foi ratificada, e ele se tornou uma figura ainda mais forte.

Acumulando todos os poderes do Estado numa só pessoa, tornou-se ditador, sendo

chamado de Caudilho.

Num primeiro momento, tais poderes lhes foram outorgados sob restrições legais,

com a elaboração da Lei Orgânica do Estado. Esta Lei separou as funções de Chefe de Estado

e Chefe de Governo.

O poder de Franco sempre foi exercido com o apoio fundamental do exército,

pilar do regime ditatorial; afinal, eles defendiam o território, a integridade da pátria, a ordem

Page 6: Caso Barcelona Traction

pública, e defendiam também o próprio Regime contra os famigerados inimigos internos (os

comunistas e os separatistas).

Muito embora a importância basilar do exército, o mesmo sempre foi obsoleto e

com escassa preparação.

1.3. AS LEIS FUNDAMENTAIS: FRANQUISMO INSERIDO NO CONTEXTO LEGAL

As chamadas Leis Fundamentais, eram de um certo caráter constitucional, a fim

de dar legalidade ao regime. Como normas básicas, impunham condições de organização do

Estado.

Elas foram elaboradas durante quase trinta anos e, pelo seu caráter, foram

divididas em dogmáticas ou orgânicas.

Tais Leis foram inspiradas no fascismo de B. Mussolini, e regulamentavam, de

forma geral, diversos aspectos da vida política espanhola.

1.4 UMA MONARQUIA SEM REI: A DOUTRINA FRANQUISTA

Na Lei de Sucessão implementada durante o governo de Franco (1947), definiu-se

a Espanha como reino.

Por conta disso, o Conde João de Borbón reclamou a Franco o trono, já que, por

ser filho de Alfonso XIII seria o próximo na linha de sucessão. Contudo, a relação entre eles

não era amistosa, uma vez que Franco negou-se a ceder o poder até a data de sua morte,

quando deveria ser instaurada uma monarquia inspirada no seu regime.

O Conde João de Borbón, por sua vez, ansiava pela restauração da monarquia

borbônica. A solução encontrada por Franco não poderia ser mais perspicaz: afastou

arbitrariamente João de Borbón da linha de sucessão real, proclamando o filho do Conde,

João Carlos, como Príncipe herdeiro, atitude que enfraqueceu a família real internamente.

Page 7: Caso Barcelona Traction

A Doutrina do Regime Franquista baseava-se no programa da Falange1, e na união

de forças daqueles que lhes apoiavam. As bases dessa doutrina foram lançadas ainda durante a

Guerra Civil, quando Franco determinou a união dos falangistas e dos requetés.

O Regime Franquista reconheceu apenas um partido: o Movimento Nacional,

tendo proibido todas as demais organizações, submetendo-as à perseguição policial.

Para o Franquismo, a Espanha deveria ser a referência a que todos os indivíduos e

interesses deveriam estar submetidos. Com a pátria centralizada, todas as terras espanholas

deveriam formar uma entidade única e indivisível. Tal posicionamento refletia na base

governamental, que concentradamente administrava todas as localidades.

Ademais, outra forte característica da Doutrina Franquista era o grande apelo ao

Catolicismo, com a total ligação da vida política, cultural e social à Igreja Católica. Dessa

forma, a Igreja acabou sendo legitimadora do regime, unindo os interesses de ambos os lados.

A união Franquista-Católica chegou a tal ponto de a Igreja considerar a Guerra Civil como

“Cruzada contra o ateísmo marxista”, justificando, com isso, a autoridade de Franco.

Francisco Franco assinou em 1953 uma Concordata junto à Igreja, o que trouxe

fortes implicações sociais para esse período. Reconheceu-se o Papa e seu poder junto ao

governo espanhol; concedeu-se à Igreja capacidade legal de adquirir, possuir e administrar

quaisquer tipo de bens; garantiu-se o ensino da religião católica dentro das escolas; dentre

outros.

Daí percebe-se a relevância da instituição católica para a formação doutrinária do

Regime Franquista.

1.5. O CONTROLE POLÍTICO DA ECONOMIA

A fim de atingir a auto-suficiência financeira, a economia Espanhola foi dominada

pela forte intervenção estatal Em todas as transações comerciais, inclusive, havia intervenção

do governo, baseando o comércio exterior num sistema de licenças e acordos bilaterais.

Apesar de tantas mudanças, o quadro dominante nesse período era caracterizado

pela escassez, inflação e estancamento da produção.

Houve proibição da circulação interna de moedas estrangeiras, bem como a

remessas de divisas para o exterior.

1 Falange Espanhola é o partido político de índole Facista legalmente reconhecido durante a ditadura Franquista. Fundada em 1933, a Falange aliou-se às forças nacionalistas de Franco durante a Guerra Civil Espanhola (1936-9), que depôs o governo republicano de cunho socialista. Franco assumiu o controle do partido em 1937. O governo democrático instituído após a morte de Franco declarou-a ilegal em 1977, mas ainda está em atividade.

Page 8: Caso Barcelona Traction

A luz sinalizando uma possível recuperação econômica começou a brilhar no

início dos anos 502. Em contra partida, enquanto a economia começava a dar sinais de

melhoria, a política mantinha-se estática, dificultando cada vez mais as relações

internacionais.

Com a elaboração do Plano de Estabilização de 1959, a economia mostrou-se

mais flexível, apresentando uma sensível melhora, especialmente a partir dos incentivos dados

à indústria.

Essas alterações se refletiram na sociedade, cada vez mais globalizada, tornando-a

mais consumista e adequada ao padrão europeu.

1.6. FORÇAS DE OPOSIÇÃO: CRISE E DECADÊNCIA DO GOVERNO FRANQUISTA

A intelectualidade provinda das Universidades começou a denunciar a falta de

legitimidade do regime de Franco, exigindo o retorno à democracia. Contra esses estudantes a

reposta do governo foi rápida e dura, porém as consequências implícitas não puderam ser

evitadas.

Graves conflitos entre trabalhadores se avolumaram e tomaram dimensão

especialmente após a forte repressão tomada pelo governo.

No lado religioso nada estava em paz, igualmente. Na década de 70 a Igreja pediu

a separação entre ela e o Estado.

Politicamente, Franco teve que enfrentar, ainda, a criação do ETA (Euzkadi Ta

Askatasuna3), uma forma radicalizada do nacionalismo basco que praticavam atividades

terroristas.

Externamente enfrentou inúmeros problemas, a começar pelo Marrocos, sendo

que as terras em disputa acabaram sendo devolvidas ao país africano.

A crise petrolífera afetou sobremaneira a economia espanhola, principalmente

porque o governo franquista não buscou nenhuma alternativa para amenizar a crise energética.

Tal fato aumentou a dependência estrangeira da Espanha, com o consequente endividamento

do Estado.

Os abalos estavam tão profundo que Franco teve que amargar uma força de

oposição surgida dentro do próprio exército. Militares argumentavam a urgência do retorno à

democracia.

2 A Organização das Nações Unidas reconheceu como legítimo o governo de Franco em 1955.3 Basco para Pátria Basca e Liberdade.

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A decadência final atingiu o poder de Franco quando, após sofrer, por anos, de

Parkinson, lhe acometeu uma tromboflebite em 1974, afastando-o temporariamente da chefia

do Estado. Meses depois sofreu um infarto, que complicou derradeiramente sua saúde, vindo

a falecer no ano seguinte.

2. RELATO DO CASO

A Barcelona Traction, Light and Power Company foi uma empresa de serviços de

eletricidade criada pelo engenheiro elétrico Frederick Stark Pearson, em 12 de setembro de

1911. Esta sociedade empresarial foi constituída e teve sua sede estatutária e social fixada em

Toronto, no Canadá.

O principal objeto desta Companhia canadense era a produção e distribuição de

energia elétrica na região da Catalunha, na Espanha. Para alcançar esta finalidade, foram

criadas várias empresas subsidiárias, sediadas tanto no Canadá quanto na Espanha. Contudo, é

oportuno salientar, que, de acordo com o relatado pelo governo da Bélgica, após a Primeira

Guerra Mundial, a maior parcela do capital da Barcelona Traction já havia sido transferido

para acionistas cuja nacionalidade era belga.

Cumpre registrar que, no ano de 1936, grande parte da demanda da Catalunha

pelo fornecimento de energia elétrica foi suprida pelas empresas subsidiárias da Barcelona

Traction. Ocorre que, em decorrência de uma série de medidas restritivas às atividades das

empresas estrangeiras, empreendidas pelo governo espanhol4, a Companhia enfrentou

diversas dificuldades financeiras que a conduziram à falência, decretada em 12 de fevereiro

de 1948.

Com efeito, aquela empresa canadense costumava emitir títulos, os quais, durante

o período em que ocorreu a Guerra Civil Espanhola, tiveram a sua transação suspensa, e,

quando aquela acabou, o governo da Espanha não autorizou que fosse transferida a moeda

corrente estrangeira necessária para reativar tais títulos. Por esta razão, a Justiça Espanhola

declarou que a Barcelona Traction estava falida, em razão de não mais dispor de condições

para pagar por seus títulos.

Após a falência e a apreensão dos recursos financeiros oriundos tanto daquela

Companhia quanto de algumas de suas empresas subsidiárias, diversas ações,

infrutiferamente, foram propostas junto à Corte da Espanha, com o intuito de fazer com que o

4 Em 1936, as atividades da Barcelona Traction já haviam sido prejudicadas com a Guerra Civil Espanhola. Com o fim deste conflito, Francisco Franco ascendeu ao poder de forma ditatorial, e desenvolveu uma política nacionalista desfavorável às empresas estrangeiras instaladas na Espanha, fazendo com que aquela Companhia fosse à falência.

Page 10: Caso Barcelona Traction

governo espanhol indenizasse os acionistas, em razão de ter aquele prejudicado o

desenvolvimento e a continuidade da Barcelona Traction, em decorrência da implementação

de medidas extremamente danosas para as empresas estrangeiras.

Por fim, diante do insucesso nas demandas propostas na justiça espanhola, a

Bélgica decidiu ingressar na Corte Internacional de Justiça, em defesa de seus nacionais que

eram acionistas da Barcelona Traction, para que fosse reconhecida a responsabilidade da

Espanha concernente aos prejuízos sofridos pelos acionistas belgas, devido à falência da

Companhia.

Entretanto, como adiante se observará de forma mais exaustiva, a Corte

Internacional decidiu, majoritariamente, de forma desfavorável à Bélgica, por considerar

aquele país parte ilegítima para a causa, em razão de a sociedade em questão ser canadense,

em nada influindo no campo da legitimidade o fato de os acionistas serem belgas.

Portanto, de acordo com o entendimento firmado por aquele Tribunal

Internacional, somente o governo do Canadá, em razão de ser o país onde a empresa se

constituiu e instalou sua sede social, teria legitimidade para dar início a uma demanda

relacionada à Companhia Barcelona Traction.

Page 11: Caso Barcelona Traction

3. DECISÕES

Consoante dito alhures, após a eclosão da Guerra Civil Espanhola, foram

impostas, pelo Estado espanhol, restrições comerciais que impossibilitaram a saudável

continuidade da Companhia Barcelona Traction Ligth and Power Limited, na Espanha. A fim

de ilustrar que tipo de restrição foi imposta é possível citar a suspensão da transação dos

títulos empresariais da companhia canadense em libras esterlinas, o que findou por afastar

possíveis investidores e, conseqüentemente, fez com que as ações da companhia de energia

elétrica fossem demasiadamente desvalorizadas.

Em 1948, foi solicitada, por três acionistas espanhóis, à Corte de Reus

(Província de Terragona) a declaração de falência da companhia em decorrência do não

pagamento dos títulos em libras esterlinas. Ante tal solicitação, foi julgado procedente o

pedido de decretação de falência, em 12 de fevereiro de 1948. Na referida decisão foi

determinada a apreensão dos recursos da Barcelona Traction e das empresas subsidiárias.

Posteriormente, o caso foi levado a julgamento em diversos tribunais, por

pessoas físicas e jurídicas, as quais se afirmavam lesadas pelas medidas impostas pelo Estado

Espanhol e que levaram à falência a Companhia Barcelona Traction.5

Após discussões acerca do respeito formal à notificação e publicação da

sentença declaratória da falência, em 23 de setembro de 1958, foi depositado, pelo Estado

Belga, o primeiro requerimento junto à Corte Internacional de Justiça relacionado à demanda

em tela, na qual o Estado belga pugnava por uma indenização do estado espanhol, em razão

das severas restrições que desembocaram na falência da companhia canadense. Todavia, em

23 de março de 1961, sem maiores justificativas, com espeque no art. 69, § 2º, do

Regulamento, a demandante informou que não almejava dar continuidade ao procedimento. A

demandada foi notificada de tal decisão e não opôs objeção, razão pela qual, o caso foi

removido da lista da Corte Internacional de Justiça na data de 10 de abril de 1961.

Malgrado, em 1961, o Estado Belga tivesse desistido da ação, em 19 de junho

de 1962, a questão foi novamente suscitada.

Com o fito de contestar as alegações iniciais do Estado Belga, então

demandante, a Espanha, à época, demandada, apresentou quatro exceções preliminares, tendo

5 “De acordo com o governo espanhol, 2.736 decisões foram tomadas no caso, 490 julgamentos proferidos por tribunais inferiores e mais de 37 por tribunais superiores antes do caso chegar à Corte Internacional de Justiça.” In http://www.cedin.com.br/site/pdf/jurisprudencia/pdf_cij/casos_conteciosos_1962.pdf. Acesso em 21 Nov. 2010.

Page 12: Caso Barcelona Traction

sido as duas primeiras rejeitadas por 12 votos a 4 e 10 votos a 6; e as duas últimas providas e

levadas a mérito por 9 votos a 7 e 10 votos a 6, respectivamente.

O momento acima esboçado, qual seja, do conhecimento das preliminares ficou

conhecido como a Primeira Fase do Caso Barcelona Traction. A segunda fase engloba o

julgamento do mérito e prolação da sentença, no ano de 1970.

3.1. 1ª FASE DO JULGAMENTO (Sentença de 24 de julho de 1964)

Alegava o Estado Belga que cerca de 88% (oitenta e oito por cento) do capital

social da Companhia Barcelona Traction pertencia a acionistas belgas, sendo este motivo

mais que suficiente para que o país possuísse jus standi6 e requeresse do estado espanhol uma

justa indenização pelo prejuízo sofrido pelos acionistas belgas em virtude das restrições

comerciais impostas pelo governo da Espanha. O governo belga pontuou ainda que o

comportamento do Estado espanhol foi contrário ao direito das gentes.

Em contestação às alegações e requerimentos da Bélgica, a Espanha suscitou

quatro exceções preliminares.

A primeira exceção preliminar refere-se à competência da Corte Internacional

de Justiça para receber e julgar a demanda ajuizada pelo governo belga. Segundo a Espanha, o

fato de o Estado demandante ter desistido da ação impossibilitava a reapreciação do caso. O

governo espanhol respaldava tal afirmação com supedâneo em cinco argumentos.

O primeiro era o de que a desistência é ato meramente processual, que para

compreendê-la, devem-se pesquisar as circunstâncias que a ensejaram. Tal argumento foi

aceito pela Corte.

O segundo argumento sustentava que a desistência da demandante deveria ser

entendida como renúncia à propositura de qualquer ação em face da demandada, e que o novo

depósito da questão perante a Corte Internacional afrontaria ato anterior da demandante.

Todavia, tal alegação não prosperou, uma vez que a Corte pontuou que a notificação anterior

da demandante requerendo a desistência não trazia expressa qualquer motivação e que estava

adstrita àquela reclamação inicial. Asseverou a Corte ainda que cabia à demandada provar que

a desistência de 1961 propunha algo além da vontade de não dar prosseguimento àquela

demanda específica.

O terceiro argumento para justificar a primeira exceção preliminar dizia

respeito à existência de um acordo anterior entre as partes, no qual ficara resolvido que seriam

6 Jus standi in judicio – Capacidade de estar em juízo.

Page 13: Caso Barcelona Traction

feitas negociações entre espanhóis e belgas, em troca da retirada definitiva da reivindicação.

Respaldada no que ficara acordado, a demandada aduziu que a demandante desrespeitou o

pactuado e ingressou com nova ação, ao que a demandante pontuou que não pretendia desistir

definitivamente da ação. Diante do exposto, a Corte Internacional de Justiça afirmou que,

provavelmente, houve a desistência por parte da demandante com o fito de facilitar as

negociações e que não havia prova contundente de acordo definitivo que impossibilitasse a

propositura de nova ação, razão pela qual, rejeitou o argumento.

O quarto argumento referia-se a um pedido de estoppel7, pois, pontuou a

Espanha que a Bélgica a induziu a erro, com sua conduta de desistir da ação anteriormente,

abrir-se para negociações e, posteriormente, ajuizar nova ação com o mesmo pedido e causa

de pedir, independente da existência de qualquer entendimento. Afirmou ainda que se tivesse

conhecimento da nova propositura de ação em seu desfavor, não teria anuído com o pedido de

desistência. Com relação a tal argumentação, a Corte Internacional de Justiça a entendeu

como descabida, tendo em vista que não houve prejuízo para a demandada, uma vez que se

esta não concordasse com a desistência, o processo seguiria o seu regular trâmite, assim como

se houvesse a primeira desistência e fosse novamente proposta a ação, como ocorreu. Logo,

não houve qualquer prejuízo para a requerida.

Por fim, a primeira exceção preliminar trouxe o argumento de que os

procedimentos utilizados eram contrários ao Tratado Hispano-Belga de Conciliação e

Arbitragem, de 19 de julho de 1927, o qual conferia competência à Corte Internacional de

Justiça, pois, segundo o Estado espanhol, a Corte em comento já havia cumprido os estágios

preliminares no primeiro processo ajuizado, não podendo fazê-lo neste segundo. A Corte não

acolheu tal posicionamento e manifestou-se pela possibilidade de conhecer e julgar dada

causa se for apresentado caso para o qual inexista julgamento anterior.

Destarte, do breve esboço acima, é de se concluir que a primeira exceção

preliminar foi rechaçada pela Corte Internacional de Justiça em uma votação acachapante de

12 (doze) votos desfavoráveis contra 4 (quatro) favoráveis às alegações da demandada.

7 “Em Direito Internacional o princípio do estoppel é um conceito em evolução. Apesar da  grande variedade de definições na  doutrina e na  prática, as seguintes características são geralmente aceitas como seus elementos essenciais: 1) Uma situação criada pela  atitude de uma parte, 2) Uma conduta seguida pela  outra parte baseada diretamente naquela atitude, e 3) Uma impossibilidade de quem adotou a primeira atitude de alegar contra a mesma ou de manifestar-se em sentido contrário mesmo que não ocorra um detrimento ou prejuízo para a outra parte. O efeito típico desta doutrina é que as partes estão proibidas, independentemente de sua verdade ou precisão, adotar posturas diferentes, subsequentes, sobre a mesma matéria. Ver, JÖRG PAUL MÜLLER AND THOMAS COTTIER, ESTOPPEL, IN R. BERNHARDT (ED.), ENCYCLOPEDIA OF PUBLIC INTERNATIONAL LAW, VOLUME II (1992), page 116. IN HTTP://WWW.CIDH.ORG/ANNUALREP/2003PORT/ARG.12159.HTM . Acesso em 21 Nov. 2010.

Page 14: Caso Barcelona Traction

A segunda exceção preliminar levantada pelo Governo Espanhol ateve-se ao

fato de a postulante ter se utilizado do efeito do artigo 17(4) do Tratado de 1927, entre a

Bélgica e a Espanha, combinado com o art. 37, do Estatuto da Corte Internacional de Justiça,

para determinar a competência da Corte Internacional de Justiça para processar e julgar a

ação. Pontuou a demandada que o artigo 17(4), do Tratado de 1927, havia sido revogado, com

a dissolução da Corte Permanente de Justiça, em abril de 1946. Como não havia previsão

expressa de julgamento pela Corte Internacional de Justiça e sim pela Corte Permanente de

Justiça Internacional, a qual havia sido extinta, aduziu a postulada a impossibilidade de

substituição de uma corte pela outra.

A Espanha alegou ainda que a dissolução da antiga Corte Permanente de

Justiça Internacional e a sua adesão ao Estatuto da Corte Internacional de Justiça somente em

1955, impossibilitavam a aplicação do Tratado de 1927.

A argumentação espanhola fez alusão ao Caso referente ao Incidente Aéreo, de

1955, ocorrido entre Israel e Bulgária, no qual existia declaração unilateral de aceitação da

jurisdição obrigatória da Corte Permanente, todavia não era aplicável ao caso em estudo, haja

vista que existia entre os países envolvidos um tratado.

Asseverou a Corte que, em 1945, ante a previsível dissolução da Corte

Permanente de Justiça Internacional, os redatores do art. 37, do Estatuto, somente impuseram

três condições à aplicabilidade deste, quais sejam: a existência de tratado em vigor, a

existência de cláusula de envio à Corte Permanente e a disputa entre os países signatários do

Estatuto. Aduziu que os Estados signatários do Tratado de 1927, deveriam passar a ler Corte

Internacional de Justiça onde antes se lia Corte Permanente de Justiça Internacional. Por esta

razão, a Corte rejeitou a segunda exceção.

As terceira e quartas exceções preliminares diziam respeito ao jus standi da

demandante, uma vez que se tratava de empresa canadense e não belga, afinal não se tratava

de nacional ou empresa belga e sim canadense, sendo que o Canadá, até então, não havia se

manifestado pelo pedido de indenização ao governo espanhol, alegou a demandada que não

caberia à Bélgica, país estranho à relação, pleitear indenização para os seus nacionais, ainda

que eles fossem os sócios detentores da maioria das ações da companhia canadense.

A necessidade de saber se existia ou não jus standi por parte do Estado Belga

levou à Corte a conhecer a terceira exceção e discutir a questão meritória pertinente.

Por fim, a quarta exceção preliminar suscitada pela demandada referiu-se ao

não esgotamento de todos os recursos internos antes de ser levada a questão à apreciação e

julgamento da Corte Internacional de Justiça, acompanhava tala exceção a acusação de

Page 15: Caso Barcelona Traction

restrição ao acesso à Justiça. Assim como a terceira exceção preliminar, a quarta foi levada à

discussão de mérito, no que ficou conhecido como a Segunda Fase de Caso Barcelona

Traction.

3.2. 2ª FASE DO JULGAMENTO (Sentença de 05 de fevereiro de 1970)

A segunda fase de julgamento do caso Barcelona Traction se deu no ano de

1970 e consistiu no julgamento da terceira e quarta exceções preliminares e do mérito causae.

Inicialmente a Corte abordou a terceira preliminar, que continha três questões a

serem discutidas, e abordava o tema do jus standi.

A primeira das questões suscitadas tratava do direito da Bélgica de exercer a

proteção diplomática dos acionistas belgas numa companhia constituída no Canadá, vez que

as medidas reivindicadas não se referiam a qualquer nacional belga, mas à própria

Companhia.

A Corte entendeu que no momento em que um Estado admite em seu território

investimentos estrangeiros ou pessoas estrangeiras, deve estender-lhes a proteção da sua lei e

assumir as obrigações relativas ao tratamento que lhes é atribuído. Porém, essas obrigações

não são absolutas. Um Estado não pode apresentar uma reivindicação sobre o

descumprimento de uma dessas obrigações sem antes estabelecer o seu direito de fazê-lo.

Ademais, com a evolução do Direito Internacional, há o reconhecimento das

instituições do Direito Interno. E neste, o conceito da empresa foi fundado numa firme

distinção entre os direitos da firma e os direitos dos acionistas8.

Com isso, consolidou-se o entendimento de que a Companhia, dotada de

personalidade jurídica, pode atuar em relação a matérias de caráter corporativo; mas os seus

acionistas não. Portanto, um erro cometido contra a empresa, causa prejuízo a seus acionistas,

mas isso não implica que ambos tenham a titularidade para reclamar a devida compensação.

A segunda colocação sustentada foi no sentido de que um Estado poderia

reivindicar quando os investimentos de seus nacionais no exterior – por eles serem parte dos

recursos econômicos da nação – forem prejudicialmente afetados pela violação do direito do

próprio Estado quando seus nacionais se beneficiem de certo tratamento.

Com relação a essa proposição, a Corte asseverou que tal direito somente poderia

resultar de um tratado ou de um acordo especial entre a Bélgica e a Espanha. Porém, tal

instrumento não existia, muito menos vigorava.8 Isso devido ao fato de que a empresa Barcelona Traction era uma empresa do tipo limitada: Barcelona

Traction, Light and Power Company, Limited.

Page 16: Caso Barcelona Traction

A terceira questão aduzia que, por razões de equidade, um Estado deveria ser

capaz de agir, em determinados casos, para a proteção de seus acionistas nacionais em uma

Companhia vítimas de violação do Direito Internacional.

A Corte entendeu, a respeito disso, que a adoção da teoria da proteção

diplomática dos acionistas abriria a porta a reivindicações concorrentes por parte de diferentes

Estados, o que poderia criar um clima de insegurança nas relações econômicas internacionais.

Nas circunstâncias particulares do caso em testilha, nas quais somente o Estado

nacional da Companhia poderia agir, a Corte entendeu que não deveria ser conferido ao

governo belga o jus standi por questões de equidade, pois a Bélgica estava na defesa dos

interesses particulares de seus nacionais e não do Estado belga.

3.3. A DECISÃO DA CORTE

A Corte Internacional de Justiça conheceu dos documentos e das evidências

submetidas pelas partes e apreciou completamente a importância dos problemas jurídicos

levantados pelas alegações da petição belga, dentre as quais se incluía o cerceamento de

defesa da Companhia por órgãos do Estado espanhol. No entanto, a posse de um direito de

proteção pelo governo belga era um pré-requisito para o exame de tais problemas. Uma vez

que a qualidade deste governo para agir perante a Corte não foi demonstrada, não caberia a

esta se pronunciar sobre qualquer outro aspecto do caso.

Dessa forma, a Corte rejeitou a reivindicação do governo belga por 15 votos a

1, dos quais 12 foram baseados nas alegações acima descritas.

Page 17: Caso Barcelona Traction

4. VOTOS DISSIDENTES

A Corte Internacional de Justiça traz inúmeras regras de procedibilidade e

julgamento dos casos submetidos a este Tribunal, e, dentre essas regras, está o direito de os

Juízes apresentarem opiniões diversas das defendidas na decisão final da Corte. Assim, vale

ressaltar os argumentos trazidos por alguns Juízes que, de alguma forma, discordaram, no

todo ou em parte, da decisão final da Corte Internacional.

Dos 15 (quinze) Juízes que formaram a maioria que votou pela ilegitimidade ativa

da Bélgica, 3 (três) deles defenderam a mencionada ilegitimidade Belga por motivos diversos

dos trazidos pelo julgamento final, explanados nas “separate opinions”, ao passo que 9

(nove) outros Juízes trouxeram alguns pontos divergentes mas que, em geral, sustentaram os

argumentos contidos na decisão final da Corte Internacional de Justiça.

Os Juízes Tanaka, Jessup e Gross, embora defendam o mesmo fim atingido pela

decisão da Corte, qual seja, o não acolhimento do pleito da Bélgica, respaldam suas opiniões

em diferentes argumentos, senão vejamos.

4.1. JUIZ KOTARO TANAKA

O Juiz Tanaka defende que embora seja signatário da conclusão a que se chegou a

Corte Suprema (em rejeitar o pedido da Bélgica de indenização pela violação de uma

obrigação internacional pelo Estado Espanhol), discorda das preliminares9 acatadas. Sustenta

que a análise do mérito ensejaria na mesma resolução do conflito.

O Juiz Tanaca sustenta que, diante da complexidade do presente caso, as questões

trazidas preliminarmente limitam, de certa forma, a opinião e análise do caso pelos Juízes.

Aduz, ainda, que faz-se necessária uma visão liberal que traga considerações de humanidade,

em contraste com a visão técnica e mecânica trazida nas preliminares analisadas.

Acrescenta, o ilustre Julgador, que se sente levado a seguir o seu “próprio

processo lógico” guiado pela sua própria consciência porque é assim que acredita estar sendo

justo.

As duas primeiras preliminares foram rejeitadas pela Corte Internacional,

enquanto que as outras duas foram aceitas. Entretanto, o nobre julgador sustenta que a terceira

preliminar não deveria ser acatada, tendo em vista o espírito universal do direito internacional

que garante o direito diplomático de cada Estado proteger os seus nacionais no estrangeiro.

9 Tradução livre de objections.

Page 18: Caso Barcelona Traction

Ademais, é dever do Estado exigir que os demais Estados ofereçam tratamento decente para

os estrangeiros localizados em seu território.

Na defesa do mencionado “espírito da proteção diplomática” é que o Juiz Tanaka

faz menção à declaração feita pelo próprio Tribunal de Justiça Internacional, in verbis:

"… in taking up the case of one of its nationals, by resorting to diplomatic action or international judicial proceedings on his behalf, a State is in reality asserting its own right, the right to ensure in the person of its nationals respect for the rules of international law. This right is necessarily limited to intervention on behalf of its own nationals because, . . . it is the bond of nationality between the State and the individual which alone confers upon the State the right of diplomatic protection, and it is as a part of the function of diplomatic protection that the right to take up a claim and to ensure respect for the rules of international law must be envisaged." 10

É feita uma longa análise da função dos sócios na empresa, da teoria da

personalidade jurídica da empresa e da possibilidade de proteção dos sócios individualmente

ou como componentes da empresa. Tanto a Bélgica quanto a Espanha defendem, ao seu

modo, a teoria da personalidade jurídica. Sendo que, enquanto a Espanha enfatiza a

importância da personalidade jurídica pautada na Teoria Realística, a Bélgica defende a

Teoria da Ficção no tocante às pessoas jurídicas.

Por fim, conclui que os sócios devem ser protegidos pelo seu Estado Nacional,

independentemente da personalidade jurídica da companhia. Afirma, ainda, que a

preponderância na porcentagem de participação não tem relevância legal para a necessária

proteção a que os sócios fazem jus, embora a porcentagem pertencente aos sócios belgas seja

grande, o que ratifica a evidente necessidade de proteção.

Não há regra no direito internacional que permita dois tipos de proteção (dirigida

à companhia e aos seus sócios), ao passo que também não há nenhuma lei que proíba a dupla

proteção. O Juiz Takuna defende, portanto, a existência de uma lacuna que deve ser sanada

com base no espírito da instituição da proteção diplomática.

Ultrapassadas as preliminares, as quais deveriam ser rejeitadas, segundo opinião

do Juiz Tanuka, insta analisar o mérito da causa.

No mérito, a Bélgica alega, principalmente, a má-fé do Judiciário Espanhol no que

tange ao procedimento de falência11 promovido, bem como a má-fé das autoridades judiciais e

administrativas espanholas. Entretanto, vale ressaltar que a Bélgica não traz provas da

ocorrência de corrupção ou de abuso por parte do poder judiciário e, como a má-fé não se

presume, não há que se falar em abuso praticado pelo Estado Espanhol.10 Panevezys-Saldutiskis Railway case, P.C.I.J., Series AIB, No. 76, p. 16.11 Tradução livre de bankruptcy

Page 19: Caso Barcelona Traction

Logo, hão de ser respeitadas as decisões judiciais e administrativas realizadas pelo

governo espanhol na forma estabelecida na sua legislação, sendo afastada qualquer

condenação moral do poder judiciário espanhol.

Portanto, o Juiz Kotaro Tanaka defende o não acolhimento da pretensão belga por

motivos diversos dos defendidos na decisão da Corte Internacional de Justiça.

4.2. JUIZ PHILIP C. JESSUP

O Direito Nacional e o Direito Internacional integram planos diferentes e

oferecem soluções para diferentes situações, de modo que aquilo que é abarcado pelo direito

municipal foge à esfera internacional. O ilustre julgador faz ampla explanação acerca das

esferas do Direito Internacional e do Direito Nacional.

No que tange ao caso Barcelona Traction, afirma que a decisão da Corte

Internacional de Justiça foi no sentido de que o país legitimado para pleitear atuação

diplomática referente ao caso Barcelona Tractcion é o Canadá, tendo em vista a

nacionalidade canadense da empresa.

Por outro lado, o Douto Julgador entende que em certos casos e diante de certas

circunstâncias, o Estado tem o direito de defender diplomaticamente os sócios que são seus

nacionais, conforme preceitos do direito internacional.

Assim, sendo reconhecida a legitimidade da Bélgica para defender seus nacionais,

insta observar que esta não se desincumbiu de provar a nacionalidade, durante o período de

crise da empresa, das pessoas físicas e jurídicas cujos direitos são defendidos pela Bélgica.

Conclui, portanto, que o pleito Belga deve ser rejeitado.

4.3. JUIZ ANDRÉ GROSS

Inicialmente é feita a distinção entre "fato" e "lei", e, posteriormente, o Sr. Gross

conclui que é papel do Juiz aplicar a norma insculpida na lei aos fatos particulares.

Afirma que a terceira e quarta objeções não poderiam ter sido decididas antes de

se analisar profundamente o mérito da lide, sob pena de se incorrer em injustiças.

Defende que a decisão final da Corte Internacional estabeleceu uma certa

superioridade da norma estadual em face da norma internacional, o que é permitido somente

Page 20: Caso Barcelona Traction

em alguns casos. De fato, em algumas situações, deve-se interpretar a norma estatal a fim de

que esta, da forma como se apresente, encontre conformidade com o tratado internacional.

Entretanto, esse não é o caso do Barcelona Traction, uma vez que trata-se de

ofensa praticada contra os nacionais no estrangeiro, situação perpetrada tanto pelos sócios

quanto pela própria companhia, não se aplicando a teoria do Reenvio.

Ademais, a prática do Reenvio não pode ser efetivada, nesse caso, uma vez que a

lei estadual para a qual seria submetido o pleito não ampara o direito dos sócios, o que deixa a

Bélgica sem possibilidade de ação na defesa dos seus nacionais.

Assim, defende que a Corte Internacional de Justiça não deve aplicar a lei estadual

como uma corte estadual faria na relação entre os sócios da empresa e a empresa, mas sim

enxergar a problemática como um todo, com vistas à aplicação da Legislação Internacional.

O Ilustre Julgador defende, brilhantemente, que os sócios belgas não devem

responder diretamente pelos danos causados pela empresa, uma vez que os danos foram

causados pela pessoa jurídica. Por conseguinte, afirma que o patrimônio pessoal dos sócios só

pode ser atingido subsidiariamente, criticando os sistemas legislativos de alguns países que

assumem que os sócios investem em determinada empresa e passam a receber os ganhos e

responder pelas perdas a que esta vier a sofrer.

É nesse contexto que o Juiz Gross defende a moderna Teoria Financeira do Risco,

ao afirmar que os sócios não devem responder por todos os riscos pelos quais assume a

empresa, uma vez que é a pessoa jurídica que lucra e que, portanto, deve responder pelo risco

que as ações dos seus administradores causarem.

Após as brilhantes considerações, o douto Juiz declara que concorda com o

posicionamento do Juiz Sir Gerald Fitzmaurice e do Juiz Jessup no que tange à ausência de

provas acerca da proveniência dos investimentos em questão. Ou seja, a Bélgica não provou

que os mencionados investimentos pertenciam à economia belga, especialmente a partir de

1940 (período de crise da empresa), muito embora haja evidências de grande participação do

capital belga em momentos anteriores.

Ressalte-se, ainda, que o presidente Bustamante y Rivero e os Juízes Sir Gerald

Fitzmaurice, Morelli, Padilla Nervo, Ammoun, Petrén, Onyeama e Lachs configuram as 9

(noves) opiniões semelhantes à defendida pelo julgamento final mas com algumas

observações.

5. CONSEQUÊNCIAS NO PLANO INTERNACIONAL E NACIONAL

Page 21: Caso Barcelona Traction

O tratamento dado ao caso Barcelona Traction pela Corte Internacional gerou

consequências para as relações internacionais e para os estudos do Direito Internacional,

tendo formado precedentes para o julgamento de outros casos semelhantes submetidos a uma

decisão de Tribunal Internacional ou de Tribunal Nacional com elemento de conexão

internacional.

Este caso entre Bélgica e Espanha semeou um importante precedente no Direito

Internacional, já que determinou que a nacionalidade nominal de uma companhia primava

sobre sua nacionalidade efetiva (neste caso, a companhia era formalmente canadense, mas de

fato se tratava de uma companhia de capital belga).

Interessante perceber que as regras para a determinação da nacionalidade da

pessoa jurídica não se assemelham às regras relativas à nacionalidade da pessoa física, vez

que impossível utilizar os mesmos critérios, a exemplo do jus sanguinis. Para as pessoas

jurídicas, atualmente os critérios mais utilizados são: a) nacionalidade determinada pela lei do

Estado da constituição da pessoa jurídica (art. 11, da Lei de Introdução ao Código Civil) e b)

aquela conferida pela lei do Estado em que processam as principais atividades da empresa.

Há casos, porém, em que tais critérios são considerados insuficientes, e o Direito

comparado mostra situações em que os Estados, para fins de controle de entidades

estrangeiras, passam a definir uma empresa nacional, com outros critérios concomitantes ou

não: a nacionalidade dos seus dirigentes ou a nacionalidade da maioria dos acionistas ou

associados.

Destaque-se, ainda, que o caso Barcelona Traction foi o primeiro em que um

Tribunal Internacional se pronunciou sobre a proteção diplomática que um Estado pode

conferir a pessoas jurídicas de sua nacionalidade, abrangendo a proteção para além das

pessoas físicas.

Outra contribuição para as relações internacionais foi a imposição do julgado aos

Estados em respeitar a comunidade internacional como um todo, por meio da proibição da

prática de genocídio e atos de agressão, tendo o Direito Internacional se direcionado, a partir

de então, para aceitação das decisões erga omnes dos Estados e um maior respeito aos direitos

universalmente consagrados.

Ademais, caso Barcelona Traction também é citado em julgamentos dos

Tribunais brasileiros, a exemplo do Recurso Ordinário n. 74 do Rio de Janeiro (Processo n.

2008/0076862-4, Relator Fernando Gonçalves, Órgão Julgador: Quarta Turma, Data de

Julgamento: 21/05/2009, Data da Publicação/ Fonte: DJe 08/06/2009/ RSTJ vol. 215 p. 569).

Page 22: Caso Barcelona Traction

CONCLUSÕES

Conclui-se que o momento histórico vivido à época (a ditadura franquista) muito

influenciou para que fosse deflagrado o conflito entre a Bélgica e a Espanha, pois foi em

decorrência das restrições comerciais impostas pelo governo espanhol que a companhia

Barcelona Traction, Light and Power entrou em situação de falência, levando o governo

belga a defender os interesses de seus nacionais (acionistas majoritários da companhia)

perante a Corte Internacional de Justiça.

Ademais, conclui-se que o caso fora determinante para definir que a nacionalidade

nominal de uma companhia prima sobre sua nacionalidade efetiva.

De outro enfoque, esse foi o primeiro caso em que um Tribunal Internacional se

pronunciou sobre a proteção diplomática que um Estado pode conferir a pessoas jurídicas de

sua nacionalidade, abrangendo a proteção para além das pessoas físicas.

Finalmente, observa-se que a decisão se deu no sentido de que o Estado belga não

possuía o jus standi, ou seja, a capacidade de estar em juízo, não tendo sido, sequer, analisado

o mérito da questão.

Diante de todo o exposto, resta claro que o Caso Barcelona Traction trouxe

implicações importantes no que diz respeito ao Direito Internacional Privado.

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REFERÊNCIAS

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SOARES, Guido. A Abrangência Pessoal das Normas do Direito Internacional Público. A nacionalidade, a plurinacionalidade, a apatrídia e a proteção diplomática de estrangeiros. A Pessoa Jurídica no Direito Internacional Público e a Nacionalidade de Meios de Transporte Internacional e no Espaço Sideral. In: DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO – ABRANGÊNCIA + PESSOAL. Disponível online em < http://www.scribd.com/doc/7035260/Guido-Soares-Direito-Internacional-Publico- AbrangnciaPessoal> Acesso em 02 nov 2010.

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THE HAGUE JUSTICE PORTAL. Barcelona Traction, Light and Power Company, Limited (New Application: 1962) (Belgium v. Spain) Disponível onlineI em <http://www.haguejusticeportal.net/eCache/DEF/6/259.html> Acesso em 19 nov 2010.

Page 25: Caso Barcelona Traction

APÊNDICE A – PERGUNTAS

1) A partir de que Guerra o poder do general Francisco Franco passou a se destacar?Resposta: A partir da Guerra Civil Espanhola (1936/1939).

2) Qual o único partido político reconhecido pelo governo Franquista?Resposta: Movimento Nacional.

3) Qual o país que ingressou na Corte Internacional de Justiça contra a Espanha, em defesa de seus nacionais, que eram os principais acionistas da Barcelona Traction?Resposta: Bélgica.

4) Em que país foi constituída a empresa Barcelona Traction, Light and Power Company, destinada a produzir e fornecer energia elétrica na região da Catalunha, na Espanha?Resposta: Canadá.

5) Pesadas restrições do governo espanhol, tal como a proibição de negociação de títulos comerciais em libras esterlinas, propiciaram um esvaziamento do valor das ações da Companhia Barcelona Traction, com a conseqüente quebra da empresa canadense. Apesar de a mencionada companhia de energia possuir “sede principal”, nos termos dos estatutos da Barcelona Traction, em Toronto no Canadá, o depósito da demanda na Corte Internacional de Justiça em desfavor do Estado espanhol foi feito pelo Estado Belga, por quê?Resposta: O Estado belga entendeu possuir jus standi in judicio em decorrência de cerca de

88% (oitenta e oito por cento) do capital social da empresa canadense encontrar-se em poder

de acionistas belgas.

6) A Espanha, em contestação apresentada perante a Corte Internacional de Justiça, no caso Barcelona Traction suscitou quatro exceções preliminares, sendo as duas primeiras rejeitadas e as duas últimas aceitas e levadas a julgamento de mérito. Quais foram as exceções preliminares acolhidas?Resposta: as terceira e quartas exceções preliminares diziam respeito ao jus standi da

demandante e ao fato de não terem sido esgotados todos os recursos internos antes da

submissão do caso à apreciação da Corte Internacional de Justiça.

7) Qual foi a decisão final da Corte Internacional de Justiça a respeito do caso Barcelona Traction?Resposta: A decisão se deu no sentido de que o Estado belga não possuía o jus standi, ou a

capacidade de estar em juízo, não chegando a analisar o mérito da questão.

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8) Um importante precedente foi semeado no Direito Internacional a partir do Caso Barcelona Traction, já que ele determinou que a nacionalidade nominal de uma companhia primava sobre sua nacionalidade efetiva. Explique o porquê de essa afirmação ser verdadeira.Resposta: No caso em estudo, a companhia era formalmente canadense, mas de fato se

tratava de uma companhia de capital belga, devendo prevalecer esta última nacionalidade, a

efetiva.

9) Quais são, atualmente, os critérios mais utilizados para definição da nacionalidade das pessoas jurídicas?Resposta: A nacionalidade determinada pela lei do Estado da constituição da pessoa jurídica

(art. 11, da Lei de Introdução ao Código Civil) e aquela conferida pela lei do Estado em que

processam as principais atividades da empresa.

10) Em que a decisão do Tribunal Internacional no Caso Barcelona Traction foi inovadora?Resposta: Foi o primeiro caso em que um Tribunal Internacional se pronunciou sobre a

proteção diplomática que um Estado pode conferir a pessoas jurídicas de sua nacionalidade,

abrangendo a proteção para além das pessoas físicas.

11) O juiz Gross, em um dos votos dissidentes, defendeu uma Teoria que, hodiernamente, é

aplicada pelo Código de Defesa do Consumidor em relação às empresas fornecedoras. Que

Teoria é essa e o que ela afirma?

Resposta: Teoria Financeira do Risco. Afirma que os sócios não devem responder por todos

os riscos pelos quais assume a empresa, uma vez que é a pessoa jurídica que lucra e que,

portanto, deve responder pelo risco que as ações dos seus administradores causarem.