catalogo o mundo magico de escher
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O MUNDO MÁGICO DE
ESC
HER
Centro Cultural Banco do Brasil | Rio de Janeiro 2 de janeiro a 27 de março de 2011
MÁRCIA ARRUDA FRANCO
O sol é grande, caem co’a calma as aves,
do tempo em tal sazão, que sói ser fria;
esta água que d’alto cai acordar-m’-ia
do sono não, mas de cuidados graves.
Ó cousas, todas vás, todas mudaves,
qual é tal coração qu’em vós confia?
Passam os tempos vai dia trás dia,
incertos muito mais que ao vento as naves.
Eu vira já aqui sombras, vira flores,
vi tantas águas, vi tanta verdura,
Tudo é seco e mudo; e, de mestura,
também mudando-m’eu fiz doutras cores
e tudo o mais renova, isto é sem cura!
(Sá de Miranda)
as aves todas cantavam d’amores.
Na poesia portuguesa contemporânea, sobretudo nas décadas de 70 e 80 do século XX, torna-se qua-
se um lugar comum a referência a Sá de Miranda/Jorge de Sena, através da imagem do passar das aves,
presente em dois poemas homônimos de Sena em homenagem a Miranda, “De passarem aves I e II”. Além
dos poetas referidos por Luís Miguel Nava no ensaio sobre os ecos novecentistas de “O sol é grande...(1)
(Sena, Ruy Belo, Fiama, Gastão Cruz, Luiza Neto Jorge), outros poetas contemporâneos continuaram a
citar este soneto em Portugal, África e Brasil, comprometidos com a imagem mirandina de Sena: António
Franco Alexandre, no poema intitulado “sena”; Pedro Tamen, no poema “Longe do Sá, passam as aves alto”;
Arménio Vieira, numa “Glosa ao poema ‘De passarem aves’ ”, escrito à memória de Jorge de Sena, e Sérgio
Alcides, no poema “...De passarem aviões”, que traz em epígrafe dois versos do primeiro poema de Sena em
homenagem a Miranda: “fiquei olhando / as sombras não, mas a memória delas”.
Bom exemplo de glosa desse tópico, imagens de Sena/Miranda em torno da passagem das aves, é o poe-
ma de Vasco Graça Moura, “o princípio de m.c. escher (II)”. Aí, a conhecida gravura “Dia e noite”, de Escher,
é lida com imagens de “O sol é grande...”, misturadas às imagens senianas em homenagem ao poeta
quinhentista, através de um princípio “imitativo e permutante”, próximo do processo criativo característico
da ekphrasis. Este texto pretende confrontar a gravura e os poemas portugueses envolvidos na leitura de
Vasco Graça Moura, a fim de acompanhar, pela via da comparação, o processo de tradução da imagem de
Escher em poema.
Dia e noite/ Day and night 1938
xilogravura/ woodcut 39,2 x 67,8cm
DE PASSAREM AVES II
De como e de quando
as sombras pousando
no ar que cortaram,
falei, mas não sei
que melancolia
sentida no dia
por tarde eu lembrei
na tarde que havia.
As aves passaram
e delas alei.
Do ar que cortaram
as sombras ficaram,
mas onde, não sei.
as aves passaram tão-leves aflando
as aves passaram tão-leves aflando
DE PASSAREM AVES
A memória de Sá de Miranda
Das aves passam as sombras,
um momento, no chão, perto d, mim.
No tardo Verso que as trouxe e as demora,
por que beirais não sei
onde se abrigam piando
como ao passar chilreiam.
Um momento só. Rápidas voam!
E a vida em que regressam de outras terras
não é tão rápida: fiquei olhando
as sombras não, mas a memória delas,
das sombras não, mas de passarem aves
Que o poema tenha como motivação descritiva ou
meditativa a leitura de uma gravura é um processo
tão antigo como os prescritos nas poéticas clássi-
cas. A ekphrasis, para usarmos a definição sintética
e adaptada às poéticas modernas de Fernanda
Conrado, que examina este processo criativo na
obra de Jorge de Sena, consiste justamente na
“verbalização de textos reais ou fictícios compostos
num sistema sígnico não-verbal e não dependente
do recurso a procedimentos de espacialização
mimética” (Conrado, 1999, 91). Esta definição se
casa bem ao nosso propósito de acompanhar a
verbalização da gravura de Escher no poema de
Graça Moura, embora nela pudesse haver procedi-
mentos de mimesis visual.
Foi justamente Jorge de Sena que, com Metamor-
foses, deu início, na poesia portuguesa contem-
porânea, à maneira de compor poemas a partir de
músicas, quadros e imagens. Vasco Graça Moura,
cujo percurso poético parece seguir de perto o de
Sena, demonstrava, já na década de 60, “interesse
por formas de arte combinatória e por princí-
pios de ekphrasis”, como afirma numa entrevista
recente à revista de poesia luso-brasileira Inimigo
Rumor (no 12, 8).2 Por conta da “natureza museo-
lógica que envolve todo o [seu] projecto poético”3,
segundo a formulação de Fernando Matos Oliveira
(Inimigo Rumor, no 12, 14), Vasco Graça Moura
reúne aquelas qualidades – digamos senianas –
tão necessárias à pratica da ekphrasis: a visita ao
Museu Imaginário, ou a posse de uma cultura esté-
tica e da história da arte que lhe permite compor
poemas capazes de produzir energeia (Conrado,
op.cit., 91).
Vasco Graça Moura admite, na entrevista mencio-
nada, que, na sua prática poética, de certo caniba-
lizando outras vozes, há “uma certa incapacidade
de alinhar com vanguardas ininteligíveis”. Produzir
sentido a partir da leitura de objetos de arte seria
uma necessidade incontornável de sua poesia.
Processo de que o próprio poeta é consciente,
quando considera: “Ler um texto (plástico, musical,
literário, etc.), implica uma busca de sentido e não
uma busca de gratuidades mais ou menos travesti-
das de conceptuais. [...] Trata-se de abordar aquilo
que me ‘diz’ coisas suficientemente importantes
para me fazer ‘dizer’ por minha vez aquilo que
preciso de exprimir” (Inimigo Rumor, no 12, 12). (4)
É neste sentido que se tem explicado a presença
de tantos poemas na obra poética de Graça Moura
que “convocam a ida ao museu” (Inimigo Rumor,
no 12, 14). Ainda segundo Fernando Matos Olivei-
ra, é na experiência de fruição da arte que seria
desencadeado o processo criativo do poeta: “O
2 Quando já havia redigido este texto, entrei em contacto com
uma antologia ecfrástica organizada pelo próprio Graça Moura,
Imitação das Artes, com uma pintura de Jorge Pinheiro. Edições
ASA, Porto, 2002. No texto introdutório da antologia, “O que
farei com esta ecfrase?”, o poeta declara que no seu primeiro
livro,“Modo Mudando (1963), havia poemas relacionados com a
pintura (George Braque, Francisco Relógio)” (Moura, 2002, 11).
3 Continua Fernando Matos Oliveira: como “[a]s condições desta
percepção vêm sendo cada vez mais insustentáveis no museu-
espectáculo da actualidade [, o] museu ideal de VGM seria aquele
que concentrasse a diversidade e a riqueza patrimonial dos
grandes museus públicos com a circulação restrita das colecções
privadas. [...] É sob estas condições ideais – onde o burguês se
reconcilia com o mundo da arte – que a poesia de VGM tem
visitado o museu, dando absoluta primazia às obras ‘realmente’
boas.” (Ibidem, 15).
Dia e noite/ Day and night 1938
xilogravura/ woodcut 39,2 x 67,8cm
momento aurático do visitante tem como pré-
condição o encontro individual do sujeito com
a obra. Só no sossego deste encontro se permite
a subjectivação do objecto e a mobilização da
imaginação que o acto interpretativo pede”.
No caso em questão, a perspectiva descritiva da
ekphrasis permite ao poema de Vasco Graça Moura
atingir interesses outros para os estudos compa-
rativos, além da intertextualidade pressuposta nos
poemas alinhados na glosa do tema Sena/Miranda.
A Literatura Comparada, sobretudo relativamente
aos estudos interdisciplinares entre a literatura e as
artes plásticas, tem na ekphrasis um procedimento
chave, na medida em que esta convoca processos
intersemióticos legitimadores de estudos compara-
tivos, como a reescrita, a transcriação, a tradução,
a adaptação, a paródia, a interpretação imaginativa,
por exemplo. Todos estes processos partem de
provas de contacto entre as manifestações artísti-
cas, e não apenas de afinidades temáticas. Por isso,
permitem que ao vale-tudo comparativo se contra-
ponha uma busca mais rigorosa pela objetividade
dos estudos comparados.
O poema que aqui nos interessa, “o princípio de m.
c. escher II”, pertence ao livro de 1985, a sombra
das figuras, no qual o processo compositivo em
questão, isto é, a ekphrasis, encontra-se presente
à exaustão. Encontramo-la não apenas nos dois
poemas homônimos, “o princípio de m. c. escher”
(I e III), mas em inúmeros outros ao longo do livro,
como os “tercetos do aleijadinho”, o “desenho
de jorge pinheiro”, “glosa para degas”, “pintura de
ilda david”, “a rosa púrpura do cairo” ou o “retrato
da infanta, conjecturas”, para citar apenas alguns
exemplos. O livro abre com um poema que não
pode deixar de ser lido como uma referência indi-
reta às Metamorfoses de Jorge de Sena, intitulado
“metamorfoses para 23 versos”, em que se parece
explicar o processo de transformação da imagem
em poema e o título do livro: “a escrita é uma orla
inquieta das coisas, / uma sombra das figuras”
(Moura, 1985, 7).
Na série de poemas “o princípio de m. c. escher”, a
ekphrasis se organiza como descrição que busca
captar justamente a mecânica criativa das gravuras
de Escher.(5) No primeiro, que leva o subtítulo
“prelúdio e fuga sobre um tema popular”, a conti-
güidade entre o positivo e o negativo de algumas
figuras nas estampas de Escher, como a dos peixes
ou das pombas, é perseguida através da repetição
característica da linguagem musical infantil, sendo
a escrita do poema uma espécie de decalque da
gravura: “lá sai uma, saem as duas / as três pombas
do papel / saem do bico da pena / que nesta folha
O PRINCÍPIO DE M.C ESCHER
é quando as aves brancas voam para a noite que
as aves negras voam para o dia, sobre as árvores, no vento, vão
em bandos, batem asas pausadas. sobre as árvores
as aves brancas tomam a noite clara, as negras,
apostas companheiras, escurecem o dia, voam baixo,
no ar para onde fogem ocupando o intervalo
das outras, e as brancas só cortam o espaço, exactas guias,
entre o voo das pretas. bandos, bandos
de oposto movimento, na luz de transição,
lá, onde se cruzam, voam
aves cinzentas para os dois lados, no lugar indeciso
em que das matérias do ar e da chuva
se elevam as árvores dessa parda fronteira, e
sobre todas as árvores da paisagem, da matéria da noite, deslocada
se formam as aves negras. as brancas giram altas e agudas, feitas
da substância do dia que transpõem. imitativo e permutante é o
voo das aves e aqui, nas caudas do vento, a terra estreita-se:
de passarem baixas as aves negras, todas
mudaves, negras, á cousas todas vás, á brancas
aves de suaves claves, ides tão acima dos graves
é quando as aves brancas voam para a noite que...
é quando as aves brancas voam para a noite que...
voam para o dia as aves negras e lá se cruzam, cinzentas
O PRINCÍPIO DE M.C ESCHER
é quando as aves brancas voam para a noite que
as aves negras voam para o dia, sobre as árvores, no vento, vão
em bandos, batem asas pausadas. sobre as árvores
as aves brancas tomam a noite clara, as negras,
apostas companheiras, escurecem o dia, voam baixo,
no ar para onde fogem ocupando o intervalo
das outras, e as brancas só cortam o espaço, exactas guias,
entre o voo das pretas. bandos, bandos
de oposto movimento, na luz de transição,
lá, onde se cruzam, voam
voam para o dia as aves negras e lá se cruzam, cinzentas