cena 3

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Cena 3 Salão de um asilo. Um sofá. Senhora e Mulher Velha Mulher Velha: Eu gostava de dançar tango. Senhora: E eu rock and roll. Pausa. Senhora: Eu sempre dançava o rock and roll, todos os sábados e domingos, eu fugia de casa pela janela do pátio, escondida do papai e da mamãe, e ele me esperava na rua de trás, e a gente dava as mãos; ele sempre tinha a mão quente, a minha estava sempre fria, e ele a esquentava e a gente ia correndo para a zona norte da cidade. Ali, da rua, já se ouvia a música: rock autêntico e a gente dançava feito uns loucos, e foi assim um ano inteiro, talvez mais, as mãos apertando-se e os copos apertados, a cada final de semana até que... até que... chegou a menina, a estúpida menina, você não pode imaginar como eu odiava essa menina nojenta quando estava no meu ventre: me impedia de dançar! E para piorar, papai e mamãe colocaram madeiras nas janelas e eu ia apodrecendo lá dentro e a barriga inchando cada dia mais; mas uma tarde eu me libertei, mais frenética do que nunca enganei a eles e fugi e fui completamente sozinha ao Clube, ao salão de baile do Clube, completamente sozinha, ele não estava lá e nem nunca mais voltou, não voltou a me ver, mas eu ainda me lembro dele; braços musculosos e pernas fortes, a barriga de bronze e as mãos fervendo; fugiu, mas aquela tarde eu dancei como nunca, era como uma droga, eu não podia parar e todos me olhavam e eu dançando sozinha; a estúpida de merda já devia ter uns sete ou oito meses de letargia aqui dentro, sugando meu sangue, roubando o alimento das minhas entranhas, algo inacreditavelmente vivo nesta barriga agora mole, e eu a sacudi para cima e para baixo de um lado para o outro, chocando contra o fígado e os ossos, o estômago e as tripas e contra meus rins, porque era isso que eu queria; agitá-la, enjoá-la, vomitá- la, minha vingança; quase seis meses depois dos primeiros enjoos, seis meses sem me deixar dançar o rock and roll, a

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Cena 3Salo de um asilo. Um sof.Senhora e Mulher Velha

Mulher Velha: Eu gostava de danar tango.Senhora: E eu rock and roll.Pausa.Senhora: Eu sempre danava o rock and roll, todos os sbados e domingos, eu fugia de casa pela janela do ptio, escondida do papai e da mame, e ele me esperava na rua de trs, e a gente dava as mos; ele sempre tinha a mo quente, a minha estava sempre fria, e ele a esquentava e a gente ia correndo para a zona norte da cidade. Ali, da rua, j se ouvia a msica: rock autntico e a gente danava feito uns loucos, e foi assim um ano inteiro, talvez mais, as mos apertando-se e os copos apertados, a cada final de semana at que... at que... chegou a menina, a estpida menina, voc no pode imaginar como eu odiava essa menina nojenta quando estava no meu ventre: me impedia de danar! E para piorar, papai e mame colocaram madeiras nas janelas e eu ia apodrecendo l dentro e a barriga inchando cada dia mais; mas uma tarde eu me libertei, mais frentica do que nunca enganei a eles e fugi e fui completamente sozinha ao Clube, ao salo de baile do Clube, completamente sozinha, ele no estava l e nem nunca mais voltou, no voltou a me ver, mas eu ainda me lembro dele; braos musculosos e pernas fortes, a barriga de bronze e as mos fervendo; fugiu, mas aquela tarde eu dancei como nunca, era como uma droga, eu no podia parar e todos me olhavam e eu danando sozinha; a estpida de merda j devia ter uns sete ou oito meses de letargia aqui dentro, sugando meu sangue, roubando o alimento das minhas entranhas, algo inacreditavelmente vivo nesta barriga agora mole, e eu a sacudi para cima e para baixo de um lado para o outro, chocando contra o fgado e os ossos, o estmago e as tripas e contra meus rins, porque era isso que eu queria; agit-la, enjo-la, vomit-la, minha vingana; quase seis meses depois dos primeiros enjoos, seis meses sem me deixar danar o rock and roll, a imbecil, a traidora, a criatura inoportuna, monstruosa, porque o rock and roll se dana com um par e ele me abandonou e eles me encarceraram, mas aquela tarde eu dancei sozinha como uma louca diante de todos, quando tocou o meu rock preferido, o sangue j descia at os meus tornozelos.Mulher Velha: Eu gostava de danar tango porque tambm odeio os homens, eu tambm os odeio; e quando danvamos aquele pobre idiota nem percebia. E era feliz, o infeliz, porque pensava que estava me dominando. Sempre dizia... o tango domnio do macho... e eu sabia que no, e deixei o meu macho plantado ali mesmo, no salo do baile, quando ele quis meter a mo no meio das minhas pernas depois de ter danado seu tango favorito (que era o que eu mais detestava). Pobre rapaz, nem lembro mais da sua cara, s me lembro das suas mos peludas como verrugas negras e o horror entre suas pernas. Coitadinho. O nico homem na minha vida, por sorte, o nico. Nunca mais voltei a danar com nenhum outro homem, nunca mais... e olha que eu gostava de tango, olha s que coisa mais estranha... gostava de tango.Pausa.Senhora: No sabia que voc estava aqui.Mulher Velha: No tenha medo. Voc acabar se acostumando a esse lugar.Pausa.Senhora: Como o tempo passa.Mulher Velha: Isso dizem.Senhora: Mas voc est muito bem.Mulher Velha: No verdade.Senhora: Falando srio.Pausa. A senhora olha fixamente para a mulher velha, pega a sua mo e se aproxima. Se beijam na boca, por um tempo. De repente, toca uma msica doce, cafona, antiga. Som ligeiramente defeituoso.Mulher Velha: Vamos danar?Senhora: Vamos tentar.Se levantam, se abraam, danam.Mulher Velha: horrvel.Senhora: Insuportvel.Mulher Velha: Ai! J chega!Param de danar.Senhora: Que absurdo.Mulher Velha: Tirem isso! Parem!A msica para.Senhora: sempre assim?Mulher Velha: Freiras velhas idiotas!Senhora: Sempre assim?Mulher Velha: Eu j cansei de falar, mas no tem jeito.Senhora: Que horror.Mulher Velha: Se essa vitrola fosse minha...Senhora: Se fosse... nossa...Mulher Velha: Nada. Nada. Msica de asilo, msica de asilo, para velhos brochas, essas freiras de merda gostam de msica de asilo, adoram, ficam loucas e no entra na cabea delas que eu detesto e que no sou a nica! Tudo bem. Tudo bem. Vou me queixar outra vez.Senhora: Isso, vamos nos queixar.Mulher Velha: Sim, as duas juntas, melhor ns duas juntas, unidas venceremos.Senhora: No se preocupe, estou contigo.Mulher Velha: Teremos que ser duras, fortes, intransigentes.Senhora: Ento, sejamos duras, fortes, intransigentes.Mulher Velha: Teremos que tomar medidas drsticas.Senhora: Como o qu por exemplo?Mulher Velha: Greve de fome. Greve de fome.Senhora: Isso! At que ponham uma msica que a gente goste!Pausa.Mulher Velha: Talvez nos deixem morrer.Senhora: Talvez sim.Mulher Velha: Para mim j falta to pouco tempo...Senhora: No!Mulher Velha: Sim!Pausa.Senhora: Ns temos uma a outra.Mulher Velha: No tenha medo! Voc acabar se acostumando a esse lugar!Silncio.Senhora: Ainda bem que voc est aqui! Mulher Velha: Por qu?Senhora: Ainda bem que nos encontramos de novo.Mulher Velha: Que voc est dizendo?Senhora: Eu achava que j tinha perdido voc.Mulher Velha: Que voc est dizendo?Senhora: Voc me ensinou tanta coisa!Mulher Velha: O qu? O qu?Senhora: Da vida. E em to pouco tempo.Mulher Velha: Desculpa.Senhora: O qu?Mulher Velha: que eu no me lembro de voc.A senhora chora.