cenários da memória: a poética do espaço e as topografias da memória na autorrepresentação...
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Tese de doutorado em geografia de André Alvarenga, defendida na UFRJ, em 2015.Essa pesquisa teve como objetivo analisar a importância do espaço na composição poética e discursiva do filme O Espelho de Tarkovski, um cineasta que declara considerar o cinema como uma arte do tempo.O desafio deste trabalho consistiu em apontar como a produção da imagem-tempo de Tarkovski é em em muitos aspectos dependente de formas heterogêneas da ideia de espaço.TRANSCRIPT
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
CCMN INSTITUTO DE GEOCINCIAS
DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA
CENRIOS DA MEMRIA: A POTICA DO ESPAO E AS
TOPOGRAFIAS DA MEMRIA NA
AUTORREPRESENTAO CINEMATOGRFICA DE
ANDREI TARKOVSKI
ANDR LIMA DE ALVARENGA
PROGRMA DE PS-GRADUAO EM GEOGRAFIA
DOUTORADO
ORIENTADOR: PROF. DR. PAULO CSAR DA COSTA
GOMES
Rio de Janeiro
2014
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II
CENRIOS DA MEMRIA: A POTICA DO ESPAO E AS TOPOGRAFIAS
DA MEMRIA NA AUTORREPRESENTAO CINEMATOGRFICA DE
ANDREI TARKOVSKI
ANDR LIMA DE ALVARENGA
Tese submetida ao corpo docente do Programa de Ps-graduao em
Geografia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos
necessrios para a obteno do Grau de Doutor em Geografia (D.SC.)
Aprovada por:
Prof. Dr.____________________________________________________________- Orientador
Paulo Csar da Costa Gomes Dep. Geografia UFRJ
Prof. Dr.____________________________________________________________ Ana Maria Lima Daou Dep. Geografia - UFRJ
Prof. Dr.____________________________________________________________ Gisela Aquino Pires do Rio Dep. Geografia - UFRJ
Prof. Dr. ____________________________________________________________ Andr Reyes Novaes
Dep. Geografia - UERJ
Prof. Dr.____________________________________________________________ Jorge Luiz Barbosa Dep. Geografia - UFF
Prof. Dr.____________________________________________________________ Anita Matilde Silva Leandro Dep. Comunicao Social - UFRJ
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III
FICHA CATALOGRFICA
Alvarenga, Andr Lima de
Cenrios da Memria: A Potica do Espao na Autorrepresentao Cinematogrfica de Andrei Tarkovski / Andr Lima de Alvarenga, 2014.
VIII, 208p. (IGEO/UFRJ, D.Sc., GEOGRAFIA, 2014)
Tese de doutorado Universidade Federal do Rio de Janeiro, IGEO
1. Cinema. 2. Geografia. 3. Memria. 4. Lugar. 5. Potica Espacial. 6. Tarkovski
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IV
minha filha Laura e s almas sensveis,
amantes da arte, interessadas na
compreenso da potica que emana do
espao, que por sua vez habita nossas
memrias.
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V
AGRADECIMENTOS
Finalizando mais essa importante etapa de minha formao acadmica, eu no
poderia deixar de agradecer aquelas pessoas que contriburam, de alguma forma, para
o encaminhar e para a concluso deste trabalho.
Em primeiro lugar, agradeo ao meu orientador Paulo Csar, que desde o
comeo acreditou e me incentivou no sentido de trilhar novos caminhos de
abordagem do cinema pela geografia. Paulo Csar, dirige, na UFRJ, um importante
laboratrio, o Ncleo de Pesquisas Territrio e Cidadania, cujas reunies e discusses
foram sempre muito profcuas e muito me auxiliaram. Seja pelas discusses sobre as
relaes entre geografia e imagem, seja busca de metodologias propriamente visuais
para a abordagem dos fenmenos geogrficos, seja pelos debates sobre nossos
prprios trabalhos, muito pude crescer com as reunies e discusses desse grupo.
Em segundo lugar, agradeo ao Professor Tim Cresswell, que foi meu
orientador por um ano, durante meu estgio no exterior oportunidade em que pude
usufruir das facilidades e especialmente da biblioteca da University of London e das
reunies do laboratrio Landscape Surgery, onde pude expor minha pesquisa e
discuti-la, ouvindo diversas sugestes e crticas que foram fundamentais para a
evoluo do meu trabalho. Agradeo ao Tim por sua dedicao, interesse e pela
extensa bibliografia sugerida.
No posso deixar de agradecer, tambm, a todas as pessoas que possibilitaram
minha permanncia em Londres, oferecendo-me acomodao e a tranquilidade
necessria para tocar esse trabalho durante o perodo que estive em terras estrangeiras.
Agradeo especialmente Erika Tambke, que tanto me ofereceu acomodao durante
minha primeira incurso a Londres, quando fiz o primeiro contato com o Professor
Tim Cresswell, como me indicou possibilidades de acomodao quando do estgio na
Universtity of London. Agradeo, tambm, Mariana Cunha, que no apenas me
hospedou, em minha primeira semana em Londres, como foi uma importante
interlocutora na desenvolvimento da estrutura de redao da tese. Adriana Pinheiro,
tambm foi uma grande anfitri sua casa e seus homemates, foram como uma
famlia que alegraram a vida durante as longas noites do inverno londrino.
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VI
Agradeo tambm ao meu primo Rafael Barroso e sua esposa Flvia Borges
pelas conversas sobre a psicanlise e as escolas freudiana e lacaniana, que ser viram
como um pano de fundo e orientaram parte de minha pesquisa.
Minha me, Ana Lucia, tambm procurou me ajudar no que pode. Me cedeu
um quarto em sua casa, onde montei um escritrio e ainda pude aproveitar de sua
gastronomia. Agradeo ao meu irmo, Pedro Paulo, tambm me ofereceu sua
escrivaninha, quando precisei ir Braslia.
Meu agradecimento especial vai para Liliana Jaeger minha esposa, que me
aturou e buscou me proporcionar tranquilidade, principalmente a partir do ltimo ano,
quando me isolei no stio, e a deixei sozinha cuidando de nossa filha.
E agradeo, por final, as oraes de minhas avs La e Maria Honorina, que
tenho certeza, muito contriburam na iluminao do meu caminho.
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VII
SUMRIO
I - INTRODUO 1
II - PASSADO DO ARTISTA TARKOVSKI ANTES DA PRODUO DE O
ESPELHO 8
III - AUTOBIOGRAFIA, AUTORRETRATO E AUTORREPRESENTAO NO
CINEMA 24
1 - Autorretratos 29
2 - Autobiografias 44
3 - As autorrepresentaes no cinema 54
IV - O CINEMA COMO ARTE DO TEMPO 61
1 - O tempo impresso 61
2 - Imprimindo o tempo no eu interior 69
3 - A imagem-cristal 73
4 - O espao como produto do tempo 79
V A ESPACIALIDADE DA MEMRIA 87
1 - A centralidade do lugar para a constituio da memria individual 87
2 - A especularidade da memria: as introjees e projees do lugar 94
3 - Da casa ao mundo: a dimenso coletiva da memria e a
multiescalaridade do lugar 99
4 - Os cenrios da memria 106
VI - OS CENRIOS DA MEMRIA EM O ESPELHO 115
1 - A estrutura do filme 121
2 - Prlogo: a cura do gago 123
3 - A cena capital: o autorretrato do artista em seu leito de morte 125
4 - O apartamento de todas as memrias 127
a) o palcio flmico das memrias 127
b) o cenrio da vida ntima 134
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VIII
5 - A casa da infncia 137
a) construindo um cenrio com base na reflexividade do lugar 138
b) a memria ntima da casa: projetando o afeto no espao 142
c) a dacha e a memria social russa 154
6 - Tipografia: o cenrio das relaes de trabalho durante a era Stalin 159
7 - Reminiscncias espanholas: o cenrio dos expatriados 161
8 - A Guerra-Patritica: o cenrio do sacrifcio do povo russo 169
a) a carta de Pushkin a Chaadaev 169
b) a paisagem gelada e o espectro da orfandade 171
c) a travessia do lago Sivash 173
d) a paisagem bruegheliana e os conflitos por vir 176
e) a venda dos brincos 178
9 - De volta casa da infncia: o tempo reencontrado 183
VII CONCLUSO 192
BIBLIOGRAFIA 201
FILMOGRAFIA 207
ICONOGRAFIA 208
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I INTRODUO
A memria tem uma grande influncia sobre a nossa forma de perceber e
conceber o espao que nos rodeia. Toda vez que ouvimos ou lemos uma narrativa ou
visualizamos um evento, ns ativamos experincias e textos e tecemos conexes entre
eles. Nossa compreenso do mundo, do nosso lugar e da histria est alicerada nos
processos da memria. Toda forma de trabalho depende dela. Para a arte, a memria
matria prima! No presente trabalho, luz da fenomenologia e do ps-estruturalismo,
o filme O Espelho (Andrei Tarkovski, 1973) analisado como uma expresso flmica
das "espacialidades da memria.
Os filmes de Andrei Tarkovski so muito respeitados entre cineastas e
cinfilos. So originais e tm influenciado muitas produes cinematogrficas ao
redor do mundo. Por este motivo, suas pelculas vm sendo crescentemente analisadas
em um grande nmero de trabalhos acadmicos.
O Espelho um filme autobiogrfico, um dos primeiros filmes autorretrato da
histria do cinema. Contudo, diferente dos autorretratos da pintura e da fotografia,
que apresentam a fachada o rosto ou o corpo do artista, ou das autobiografias
tradicionais, que narram linearmente a vida do autor, Tarkovski comps cenrios da
memria, nos quais conhecemos sua identidade a partir de seus pensamentos,
memrias e sonhos. Dessa maneira, O Espelho consiste num autorretrato que, ao
invs de apresentar a identidade do autor a partir da superfcie ou seja, da sua
imagem-corpo dedica-se a apresent-lo em profundidade, recorrendo a cenas
oriundas de seu mundo mental, interior.
Pesquisando na Internet, pude encontrar referncias a 81 livros e 598 resenhas
ou artigos de jornais ou peridicos nas mais diversas lnguas sobre a obra de Andrei
Tarkovski. Contudo, verificando ttulos e resenhas (quando possvel), constatei que,
desse montante, apenas um livro e 14 resenhas ou artigos se dedicam exclusivamente
ao filme O Espelho. A grande maioria dos trabalhos que se encontram disponveis em
portugus, ingls ou francs dedicada a uma interpretao geral da obra do cineasta,
ora abordando a potica, ora os aspectos tcnicos e simblicos de sua composio
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pictrica ou sonora, dando nfase aos aspectos e elementos que perpassam toda a sua
obra (TUROVSKAYA, 1989; GREEN 1993, JOHNSON e PETRIE, 1994).
Essa abordagem geral da obra de Tarkovski bastante pertinente, uma vez que
o prprio Tarkovski revelou que toda a sua obra um pouco autobiogrfica e,
portanto, seus filmes dialogam com sua vida e, consequentemente, tambm entre si.
Contudo, as anlises gerais do conjunto da obra de um autor acabam por no dedicar
ateno realmente profunda a cada uma de suas produes. Muitos trabalhos se
dedicam exclusivamente a uma explicao dos filmes cena a cena, perdendo-se na
descrio detalhada de tudo que se passa, buscando traduzir os significados precisos
de cenas que s aquelas pessoas que viveram no mesmo tempo e lugar de Tarkovski,
ou ao menos tem algum grau de intimidade com o contexto vivido pelo autor,
poderiam captar. A anlise mais completa de O Espelho que pude encontrar de
Natasha Synesios (2001): a nica a dedicar um livro exclusivamente sobre o filme.
Contudo, a abordagem mais amplamente difundida da obra de Tarkovski a
encontrada no livro Cinema 2 A Imagem Tempo, de Gilles Deleuze (2007). Esse
livro se dedica a uma interpretao generalizante do cinema mundial e, juntamente
com seu antecessor Cinema 1 A Imagem Movimento (1985), tornaram-se clssicos
de leitura obrigatria a todos os que se dedicam a um estudo terico sobre o cinema,
devido robusteza da sua argumentao. A isto soma-se o fato de que o prprio
Deleuze se apropria, em parte, da teorizao desenvolvida por Tarkovski do cinema
como arte de imprimir o tempo, conforme ele prprio revela (DELEUZE, 2007, p.
56). Deleuze desenvolve um arcabouo terico-conceitual de peso, compreendendo
que o cinema moderno capaz de produzir uma imagem do prprio tempo e que
Tarkovski seria um desses desbravadores (DELEUZE, 2007, p. 95). Deleuze cunha o
termo imagem-cristal para definir a imagem multifacetada veiculada pelo que chama
de cinema da imagem-tempo, que rompe com a narrativa clssica. Na imagem-cristal,
as sequncias de imagens no respeitam uma narrativa linear, os personagens no tm
uma representao estvel, e no se apresenta uma verdade absoluta sobre um fato,
mas a verdade do autor, ou de um personagem, por meio de perspectivas no
necessariamente articuladas, ou cenas, cuja sequncia no constri uma descrio de
um evento total, mas uma descrio analtica, que fora o expectador a pensar.
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Deleuze defende que o cinema moderno, que se seguiu ao neorrealismo
italiano, apresenta situaes puramente ticas e sonoras, onde o espao
desconectado e fragmentado e o tempo no se subordina ao movimento. Esse cinema
ignora o espao cartesiano, de raiz euclidiana, e se funda numa imagem direta do
tempo (DELEUZE, 2007, p. 102). O tempo puro, de Deleuze, por sua vez se funda
na concepo ideal de memria pura desenvolvida por Bergson (2010) um plano
inextensivo (no espacial), onde toda a percepo passada se armazenaria
virtualmente em diversos planos temporais . No entanto, o mesmo Deleuze quem
em Mil Plats (DELEUZE, 2000) defende que toda desterritorializao leva a novas
territorializaes: dentro dessa perspectiva, quando pensamos em um tipo de imagem
capaz de desarticular o espao, permitindo destacar o tempo em estado puro,
imediatamente imaginamos que, como a Fnix, o espao ressurja das cinzas, embora,
talvez, com outra feio. No mais um espao cartesiano. Numa breve passagem,
Deleuze fala em espaos cristalizados em contraposio ao espao cartesiano, quando
se refere a O Espelho. Portanto, pretendo aqui compreender o que so e como se
caracterizam esses espaos cristalizados nesse filme.
O presente trabalho busca responder o que feito do espao que tido por
Deleuze como exemplo do que chama de imagem cristal. Ou seja: embora sem
negar a importncia da empreitada de se compreender e conceituar a complexidade do
tempo e da capacidade que o cinema tem de represent-lo (ou de apresentar dele uma
imagem direta), importante que esse trabalho de teorizao no acontea em
detrimento do conceito de espao. O espao , com frequncia, relegado a mero
arranjo esttico de elementos visuais, sem movimento, sem vida. O presente trabalho
tem como objetivo, portanto, trazer uma reflexo sobre O Espelho, de Tarkovski,
luz da geografia humana, da fenomenologia e do ps estruturalismo que lidam com
o espao vivo, no podendo ser compreendido sem a dimenso do tempo. Com isso
em mente, analisei toda forma de expresso espacial envolvida no filme como um
elemento vivo, que participa na composio potica e poltica da mensagem final.
Embora Tarkovski nos apresente, em O Espelho, sua subjetividade, por meio
de uma representao de seu prprio tempo vivido suas memrias, seus sonhos, seus
traumas, delrios, devaneios, medos, rancores e culpas , a proposio aqui defendida
que o cineasta constri um palcio flmico de memrias, onde seu tempo vivido
aparece no filme por intermdio de cenas que guardam a dimenso do lugar e da
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temporalidade cenrios , mais propriamente os espaos vividos percebidos e
concebidos pelo autor e que compe sua identidade atravs de um expresso
multifacetada. Essa expresso espacial se d de cinco modos distintos: 1) as
cenografias refletem, de formas diversas, o eu interior do autor; 2) os espaos e
experincias dos outros refletem os espaos e experincias do autor; 3) o nacional e
universal se refletem na vida do lugar e, mais propriamente, na vida do autor; 4) esses
espaos vividos refletem a memria da vida ntima e familiar; 5) atravs de uma
potica espacial desenvolvida por meio de uma mise-en-scne que valoriza a funo
potica dos diversos micro-espaos, objetos e demais elementos que compem a
espacialidade da vida ntima.
As cenas de O Espelho apresentam recomposies de alguns eventos
marcantes e cenas corriqueiras vividas, em sua maioria, por Tarkovski, mas tambm
por seu coautor Misharin e, de forma difusa, por toda a equipe do filme encarnada na
memria do heri Aleksei. Essas memrias se reproduzem em cenrios que no
apenas representam os lugares que marcaram a vida afetiva de Tarkovski, como
tambm como no caso da dacha1onde Tarkovski passou sua infncia so
verdadeiras reconstrues desses espaos. Como manifestaes de uma mente que
recorda situaes vividas durante um processo de autoanlise, esses cenrios da
memria no aparecem como situaes corriqueiras capturadas por uma cmera
insensvel. Tarkovski adiciona s cenas vividas uma potica visual, ou seja: procura
criar um regime de imagens capaz de transmitir s cenas as sensaes vividas pelo
autor durante a recordao de tais eventos. Essa potica visual tambm espacial,
uma vez que esse regime de imagens se funda na composio espacial da cena, ou
seja, na relao estabelecida entre os elementos visuais em jogo cenografia,
figurinos, iluminao, tipos de lente, movimentao da cmera e dos personagens, que
expressam o seu prprio estado mental ou de toda a cena.
No cinema, as cenografias tm grande importncia, pois, alm de servirem de
palco para a ao, funcionam como uma importante instncia comunicadora de
significados e afetos, que operam a partir da ativao da memria dos espectadores.
Os cenrios so mais do que simples locao, tm importante papel de
contextualizao da cena, sendo portadores de textos e emoes, alm de fundarem
um universo de possibilidades coerentes de situaes e comportamentos esperados 1 Casas de veraneio no campo, localizadas na franja urbana das grandes metrpoles russas.
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que direcionam sua leitura. O conceito de cenrio tem origem nas artes cnicas; no
entanto, o significado aqui utilizado deriva das definies desenvolvidas pelo
gegrafos brasileiros Thiago Silva e Paulo Gomes, de um lado, e pela antroploga
mxico-canadense Diana Taylor, de outro todos interessados na utilizao do termo
para analisar processos culturais e polticos na sociedade contempornea, tendo como
interface o espao , s quais [definies] combinamos uma reviso terica sobre a
espacialidade da memria. Os cenrios da memria so expresses de situaes
inesquecveis, vivenciadas direta ou indiretamente, que, como memria pura, no
sentido proposto por Bergson, s existiriam como virtualidade, mas que tomam forma
atualizam-se quando visitamos os lugares onde as situaes aconteceram, ou so
revividos e atualizados atravs das variadas formas de expresso artstica. O cenrio
a composio espacial que atualiza, materializa, ou somatiza (embody) memrias
pessoais ou coletivas.
O Espelho um autorretrato no cinema. Diferente do autorretrato da pintura,
que tradicionalmente se assemelha a um espelho que paralisa o tempo, onde o corpo e
sua relao com a localizao imediata so exibidos como estandartes da identidade
do autor, em O Espelho, o espectador posto a observar cenas que so como imagens
de um espelho da sua conscincia no tempo, onde passado, presente e futuro de uma
subjetividade aparecem misturados e afetados pelo estado psquico e emocional do
autor. Essas imagens so, portanto, carregadas de uma potica que busca expressar o
estado mental de Tarkovski ao reviver os cenrios do sonho e de suas memrias mais
ntimas.
O Espelho construdo como uma autorreflexo de Tarkovski e composto de
modo a se assemelhar com um processo de pensamento ou lembrana: como um fluxo
de cenas soltas que no encadeiam uma ao nica. Livre do corpo, a conscincia de
Tarkovski se corporaliza no filme atravs de espaos habitados pelo autor: sua casa de
infncia e sua vizinhana, sua casa contempornea, a escola militar etc. a partir
desses lugares que suas lembranas mais ntimas so reveladas e, tambm, a partir
desses mesmos lugares que Tarkovski desenha conexes da sua identidade com
escalas geogrficas mais abrangentes, pois em sua vida pessoal, em sua prpria
casa, no seio da sua vida familiar, que ele se compreende como um russo e tece
conexes com seu pas. Foi em seu prprio lar que ele sentiu na pele os momentos
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dramticos que marcaram a histria da Unio Sovitica na primeira metade do sculo
XX.
A partir da potica espacial de O Espelho podemos ver geografias internas de
Tarkovski, oriundas de seu universo mental, como ressonncias de espaos vividos,
revividos pela autorreflexo deformante do autor. Esta geografia humana especular
difere completamente do modelo do espelho simples e inerte, utilizado na maior parte
dos autorretratos na pintura e na fotografia, pois carrega os traumas e ansiedades de
uma subjetividade que vive no tempo. a partir desta ideia de uma reflexividade
subjetiva de sua prpria vida em profundidade e no uma reflexividade simples e
mimtica , alm da superficialidade do corpo porm no sem o corpo, mas a partir
dele, em seus prprios lugares vividos e em seu prprio tempo vivido , que
analisamos o posicionamento de Tarkovski como um ser humano que revive em sua
mente o seu prprio tempo vivido. De sua vida ntima, somos convidados a assistir
cenas de discusses familiares que expem os dramas de uma separao onde
aparecem questes de gnero, revelando que a casa tambm um espao onde se
reproduz a vida social. Vemos como a identidade de Tarkovski definida em relao
sociedade do seu tempo. Entretanto, no importa a escala dos fatos da vida pblica
que ele apresenta, ele o faz sempre a partir das razes dos lugares em que viveu. de
sua espacialidade vivida que ele vive a sociedade em suas diversas escalas e arenas
sociais.
As vises mais remotas de sua memria esto localizadas em sua casa de
infncia, onde desempenha o papel de filho, mas as cenas de sua vida adulta so
localizadas em seu apartamento contemporneo em Moscou, onde ele desempenha os
papeis de pai e ex-marido. a partir dos lugares vividos, principalmente da casa,
como uma encarnao, somatizao (embodiment) de si, que somos levados a outros
cenrios, paisagens e situaes vividas que compem a imagem de sua identidade.
Imagens de arquivo apresentam momentos histricos importantes da vida do pas.
Essas imagens trazem uma dimenso do tempo histrico, dos eventos mais
importantes de sua gerao, e que tambm situam a vida de Tarkovski no contexto
geral da histria russa e da humanidade. Esses eventos completam o quadro da
identidade de Tarkovski, pois trazem a questo o que a Rssia e o que ser russo,
naquele perodo da histria ou atravs dos tempos?.
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Portanto, o que pretendo mostrar aqui que, atravs do recurso de uma potica
espacial peculiar e da especularidade como figura de pensamento em que o externo
espelha o interno, o outro espelha o eu, o local espelha o nacional e o espao vivido
espelha as cenas do passado , Tarkovski pode apresentar cenrios de situaes
capazes de representar seus temores e desejos nos momentos mais dramticos da sua
vida e paralelamente apresentar uma impresso de seu tempo, do seu lugar e da vida
de seus semelhantes.
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II PASSADO DO ARTISTA TARKOVSKI ANTES DA PRODUO DE O
ESPELHO
Filho de Arseny Tarkovski e Maria Ivanovna, Andrei Arsenevich Tarkovski
nasceu em quatro de abril de 1932, na aldeia de Zavrazhie, prximo cidade de
Yurievets, no distrito de Ivanovo, margem do Rio Volga, 400 km a nordeste de
Moscou, em uma casa que pertenceu ao segundo marido de sua av materna, Nickolai
Petrov. Mdico, foi Nickolai quem fez o parto de Andrei "na mesa de jantar coberta
com uma toalha de mesa branca engomada" conforme nos conta o narrador de O
Espelho e nos confirma sua irm, Marina Tarkovskaya (TARKOVSKAYA, 2001). De
acordo com Tarkovskaya (2001), a casa ficava na parte baixa de Zavrazhie e foi,
posteriormente, alagada, quando da instalao de uma hidreltrica, em 1950.
Embora a famlia Tarkovski fosse moscovita, de vida urbana, tinha o hbito,
comum aos russos metropolitanos, de passar os veres nas dachas, adotando o seu
estilo de vida. Mesmo tendo passado a maior parte de sua vida em Moscou, o perodo
da sua infncia no campo deixou em Tarkovski uma impresso indelvel, sendo uma
presena recorrente em seus sonhos mesmo em idade adulta (TARKOVSKI, 2010).
As dachas, tipo de residncia suburbana, de aspecto rural, voltada principalmente
para uso recreativo dos habitantes das cidades, configuram um fenmeno tipicamente
russo. Como a famlia no tinha uma dacha particular, seus veres eram passados em
casas de amigos ou parentes. Na maioria das vezes, iam para a aldeia de Yurievets,
pra onde seus avs se mudaram no ano seguinte ao seu nascimento. Quando, durante
a Segunda Guerra Mundial, os alemes invadiram territrio sovitico e Moscou teve
de ser evacuada, Maria Ivanovna (divorciada desde 1937) l se refugiou com seus
dois filhos, Andrei e Marina, entre 1941 e 1943, enquanto Arseny Tarkovski, j
novamente casado, se voluntariou para o front da guerra.
Arseny e Maria se conheceram no Instituto Literrio de Moscou, onde
graduaram-se em literatura. Embora vivesse de fazer tradues, Arseny Tarkovski
tornou-se poeta, mas sua fama como tal apareceu bem mais tarde. Seu primeiro livro
de poesias foi publicado no mesmo ano em que Andrei lanava seu primeiro filme, A
Infncia de Ivan (1962) (TUROVSKAYA, 1989). Sua me tambm sonhava ser
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escritora, contudo, embora se considerasse muitssimo criativa com tudo em sua vida,
sentia que lhe faltava o talento (SYNESSIOS, 1999)2.
Finalmente compreendi o horror da minha contradio: tenho uma natureza criativa ou seja, tenho tudo que uma pessoa criativa deve ter em minhas relaes com o mundo ao meu redor, em minha habilidade para generalizar, filtrar, e ainda melhor, em minhas demandas por vida, que so as de um criador. No entanto, falta-me uma coisa talento. Da todo o edifcio vem abaixo e desaba sobre minha cabea. Minhas demandas nunca podem ser satisfeitas porque esto alm de meus poderes... Eu achava que querer era poder (apud SYNESSIOS, 1999, p. ix).
Tornou-se revisora (e posteriormente editora) de uma grfica oficial (Primeira
Casa de Publicaes), onde trabalhou por toda a vida, alm de se dedicar aos filhos e
aos afazeres domsticos, e nunca mais se casou novamente. Segundo Natasha
Synessios, crtica de cinema e pesquisadora da vida e da obra de Tarkovski, Maria
Ivanovna teria procurado passar para os filhos, principalmente a Andrei, uma
educao para a arte, sendo inclusive muitssimo rgida, provavelmente na intenso de
que seus filhos no sentissem o mesmo horror que sentiu ao perceber-se incapaz de
escrever. Ela instilou nele um senso de seu prprio valor e rico potencial e tentou o
melhor que pode dar a ele os meios de cultivar seu talento, determinada que ele se
tornaria um artista cujas habilidades no estariam aqum de suas demandas
(SYNESSIOS, 1999, p. ix).
A separao de seus pais se deu em 1937, quando Tarkovski tinha cinco anos.
No tardou, Arseny casou-se com outra mulher; e embora apoiasse financeiramente a
famlia, era praticamente ausente da vida de seus filhos e s aparecia em aniversrios
e ocasies importantes (MARTIN, 2006). Johnson e Petrie, baseados em entrevistas
com amigos e familiares de Andrei, caracterizaram a ausncia de seu pai como o
"trauma" de sua juventude, cujas ressonncias em sua psiqu seriam manifestadas em
muitos de seus filmes. Natalia Bondarchuk, atriz que protagonizou Hari em Solaris,
narrou um dilogo travado com Tarkovski no qual ele lhe perguntou sobre que idade 2 I have finally understood the horror of it: mine is a creative nature that is, I have everything that a creative person should have in my relationship to the surrounding world, in my ability to generalize, to filter, and, most terribly, in my demands of life, which are those of a creator. One thing is lacking talent; and the whole edifice comes tumbling down and knocks me on the head. My demands can never be satisfied because they are beyond my powers... I thought that to want is to be able (apud SYNESSIOS, 1999, ix)
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tinha quando seus pais se separaram. Ao final do dilogo ele teria comentado:
Provavelmente as crianas sofrem mais do que seus pais, quando se divorciam.
(BONDARCHUK, 2001, p. 108). Em O Espelho, a ausncia do pai um dos temas
mais importantes.
Em 1941, Arseny juntou-se ao Exrcito Vermelho como jornalista de guerra e
foi enviado para o front, onde perdeu uma perna (TUROVSKAYA, 1989, p. 15).
Nesse perodo, Moscou foi evacuada, Andrei teve de deixar a escola e sua me ficou
sem trabalho. Eles enfrentaram escassez e precisaram vender alguns pertences para
poder comprar o mnimo para sobreviver. Numa entrevista, Andrei Tarkovski
confessou que suas duas maiores preocupaes durante a guerra eram: o fim da guerra
e o retorno do pai. No entanto, depois da guerra o pai no retornou para casa, pois j
estava casado.
Em 1943, quando a famlia retornou a Moscou, Andrei reiniciou sua educao
formal. Desde pequeno, a famlia percebia no pequeno Tarkovski grande talento para
a arte. Colocaram-no na aula de msica. Estudou piano por sete anos, mas como no
tinha um em casa (e se recusava a estudar em casa de vizinhos), acabou abandonando
a msica. Passou a frequentar aulas de pintura, mas tambm logo abandonou.
Terminado o secundrio, ingressou no curso de rabe, no Instituto de Estudos
Orientais, onde estudou por um ano e meio, tendo timos resultados, mas desistiu. O
jovem Tarkvoski era muito rebelde e passou a esquivar-se da educao rgida a que
sua me queria lhe obrigar.
Na poca que cursava educao secundria, apareceram em Moscou os
stilyagas uma gerao de jovens inconformados que expressavam ideias
heterodoxas, muitas vezes contrrias a ortodoxia vigente. Segundo seu colega, Bykov
(2001), Tarkovski era um deles. Sua me, no disposta a ver seu filho abandonar todo
o esforo que ela fizera para educar-lhe, visando afast-lo das ms influncias,
enviou-o para trabalhar como coletor numa expedio de prospeco geolgica, na
distante regio de Turukanksi (no extremo oriente russo), ao longo das margens do rio
Kureika; viajou por centenas de quilmetros a p pela taiga e produziu um lbum
inteiro de desenhos (TUROVSKAYA, 1989, p. 16). Essa atitude foi comentada por
amigos de Tarkovski como algo extremamente radical da parte de sua me, visto que
Andrei tinha crises constantes de asma, j tivera tuberculose e estava indo passar
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quase um ano numa expedio rdua, a cu aberto e sem mesmo calados apropriados
(BARNSKAYA, 2001).
Ao fim da expedio, ao invs de se tornar um gelogo, a ss com as
paisagens da taiga russa, ele resolveu se tornar um diretor de cinema. Martin (2006)
acredita que esse ano na taiga siberiana teve a importncia de imprimir no artista a
fora da natureza e a beleza das paisagens, o que fatalmente teria influenciado sua
obra flmica: "a natureza est sempre presente em seus filmes muitas vezes
celebrada, sempre misteriosa" (MARTIN, 2006, p 9).
Em 1954, Tarkovski conquistou uma vaga no Instituto de Cinema (VGIK),
onde estudou por seis anos. Em 1957, casou-se com Irma Raush, uma colega de classe
do Instituto, com quem teve um filho, Arseny Andreyevich Tarkovski. De acordo com
Johnson e Petrie (1994), Irma Raush teria dito, em entrevista, que ela se parecia muito
com a me de Tarkovski, tanto fisicamente quanto no que concerne personalidade.
Ambas eram independentes, autoconfiantes, reservadas emocionalmente, at um
pouco distantes. Raush teria dito, tambm, que Tarkovski insistira para que ela se
tornasse atriz, ao invs de diretora cinematogrfica ocupao que ele no
considerava apropriada para uma mulher.
O VGIK foi fundado em 1919 por Vladimir Gardin e Lev Kuleshov, entre
outros, e difundiu os princpios do cinema revolucionrio sovitico aos novos alunos
como uma doutrina, instituindo o esprito simblico e dialtico dos filmes de
Eisenstein, Pudovkin, Kuleschov e Dovzhenko. Segundo Johnson e Petrie (1994),
desde meados dos anos 1930 Joseph Stalin teve crescente participao na indstria
cinematogrfica sovitica, tornando-se pessoalmente seu principal rbitro e censor
(JOHNSON e PETRIE, 1994, p. 11). Segundo Neide Jallageas (2007), Stalin teria
criado um decreto, em 1932, intitulado Da Reconstruo das Organizaes da
Literatura e da Arte, que canonizava o Realismo Socialista como nica diretriz para
a produo de todas as expresses artsticas no territrio sovitico (JALLAGEAS,
2007, pp. 24 e 25).
Jallageas enquadra o Realismo Socialista dentro do formalismo de Jackobson.
Ou seja, compreende que todo realismo artstico depende de uma srie de convenes,
no produzindo um efeito natural em seus observadores, mas uma leitura. Jallageas,
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desse modo, busca definir o Realismo Socialista como um organizador do estatuto de
uma visibilidade que se queria pblica e total (JALLAGEAS, 2007, p. 25).
Inicialmente, o Realismo Socialista constitua-se em uma frmula narrativa cuja teoria tivera a paternidade do escritor Maksin Gorki (1868-1936), amplamente corrigida por Vladmir Lnin (1870-1824), luz dos estudos pessoais que realizara sobre a filosofia do alemo Georg Friedrich Hegel (1770-1831) (JALLAGEAS, 2007, p. 25).
Baseada nos trabalhos de Espaa e Kenez, Jallageas (2007, p. 25) descreve,
em linhas gerais, a frmula do Realismo Socialista, que consistia em desenvolver
heris positivos, sem ambiguidades, com base numa repulsa ao individualismo e
ao sentimentalismo burgus. O decreto de Stalin formulava regras a serem seguidas
por todas as atividades que se relacionassem com a cultura e com a comunicao e as
artes, nomeadas revolucionrias (JALLAGEAS, 2007, p. 25).
Organizaram-se em torno desse iderio legislativo com ambies estticas determinadas punies a quem o infringisse, cuja amplitude ia desde a proibio do exerccio da profisso, passando pelo exlio e a priso em gulags, at a morte (JALLAGEAS, 2007, p. 25).
No caso do cinema, essas regras eram aplicadas pela Goskino. Criada em
1922, sob a tutela do Comissariado Popular de Educao, a Goskino foi at a
Perestroika, no fim dos anos 1980, uma instituio burocrtica gigantesca, que
controlava todos os aspectos da indstria cinematogrfica:
cerca de 40 estdios em todas as 15 repblicas soviticas, a distribuio, educao profissional (o renomado Instituto Estatal de Cinematografia de Toda-Unio, VGIK), institutos de pesquisa flmica, publicaes do mercado e jornais de crtica, os arquivos centrais de filmes (Gosfilmofond), a Base Central de Filmes (a cinemateca que engavetava filmes e cpias originais de todos os filmes), uma fbrica de copiagem em Moscou, um estdio de roteiro, o Teatro do Ator de Cinema, e mesmo a orquestra sinfnica (JOHNSON e PETRIE, 1994, p. 7).
O perodo que se seguiu ao decreto de Stalin, mesmo no ps-guerra, foi de
poucos filmes. A total dependncia do Estado determinava que os filmes produzidos
fossem exclusivamente dedicados propaganda ideolgica. Entre 1951 e 1952 a
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produo sovitica estava na sua pior fase, com menos de 10 filmes produzidos
(JOHNSON e PETRIE, 1994, p. 11).
Tarkovski entrou na VGIK como aluno de direo e teve como tutor o
veterano diretor Mikhail Romm, cujos filmes Lenin em Outubro (1937) e Lenin em
1918 (1939) estavam firmemente afinados com a linha do partido. No entanto,
Tarkovski entrava no Instituto de Cinema no perodo conhecido como degelo, que
se seguiu morte de Stalin, em 1953, e ao famoso 20 Congresso do Partido
Comunista, em 1956, no qual Krushchev revelou os crimes do perodo stalinista, fato
que era somado pelos acontecimentos que sucederam a Revolta Hngara, de 1956.
Este perodo se caracterizou por uma grande euforia, principalmente entre os mais
jovens, e um clima de debates, de busca da verdade. Os fatos revelados traziam tona
o totalitarismo sovitico e uma certa herana cultural de uma poltica de imprio,
controlando sua populao e os territrios conquistados fora.
Convocaram-se reunies espontneas em muitas universidades. Nossos companheiros debateram o assunto no auditrio durante dois dias, a administrao se assustou. As pessoas no sabiam como reagir face aos acontecimentos de dimenso poltica to importante. Os estudantes comearam a pedir mudanas em tudo. Contudo, nada estava preparado para essas mudanas. (GORDN, 2001, p. 31)
Para os estudantes de cinema, esse perodo foi de grande efervescncia
cultural e significou o renascimento do cinema sovitico (GREEN, 1993, p. 2). Aos
acontecimentos nacionais somou-se a grande impresso causada pelas primeiras
exibies das pelculas do neorrealismo italiano, que traziam outra concepo de
verdade (GORDN, 2001, p. 31), que se contrapunha verdade ideolgica do
realismo socialista e o realismo naturalista do cinema americano. Johnson e Petrie
contam que Maya Turovskaya teria dito em entrevista que esse foi o perodo da
privatizao do heri, contrapondo-se ideia de heri coletivo (classe proletria)
presente no Realismo Socialista de ento. De acordo com Ian Christie (1989, p. xiii),
aps o "degelo" sovitico os estudantes de cinema "estavam determinados a romper a
camisa de fora stalinista, deleitando-se acima de tudo na liberdade de experimentar
estilo e forma, o que fora por tanto tempo negado aos seus predecessores".
A gerao ps-Stalin, de que Tarkovski era parte, sentiu o imperativo de renovar. Isso significava
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no apenas encontrar novas formas para substiturem os gneros estalinistas o patritico, o pico, a biografia exemplar, a ode ao auto-sacrifcio, a luta para desmascarar os sabotadores mas tambm levando as audincias a ver coisas por sua prpria conta, no como smbolos (CHRISTIE, 1989, p. xviii).
O prprio Mikhail Romm mudou o estilo de seus filmes, como se pode ver
em Nove Dias de Um Ano (1962), passando a dar mais valor e humanidade aos seus
personagens. No Instituto de Cinema, Mikhail Romm incentivou os alunos a criar
suas prprias linguagens, para construir um cinema mais livre, desviando da doutrina
ortodoxa. Gordn, que foi colega de Tarkovski no VGIK, contou que Romm declarara
que, numa turma de 15 bons alunos, se um ou dois fossem verdadeiramente talentosos
a turma toda iria bem. Ele, como professor, deveria apenas ensinar os rudimentos de
produo, filmagem e montagem, mas os alunos aprenderiam cinema por si mesmos,
em suas atividades, produes e discusses. Segundo Gordn (2001), Tarkovski e
Shukshin teriam sido essas duas figuras capitalizadoras de sua turma. Em 1981, numa
homenagem pstuma a Mikhail Romm, Tarkovski disse: "ele no tentou ensinar-nos a
nossa profisso, mas fez todo o possvel para preservar o que h de particular em cada
um de ns e nos ensinou a respeitar a ns mesmos" (CHRISTIE, 1989, p. xi).
Durante seu tempo no VGIK, Tarkovski codirigiu dois curtas-metragens: Os
Matadores (1956) e Hoje No Haver Sada (1959). O primeiro uma adaptao do
conto de Ernest Hemingway de mesmo nome e o segundo conta a histria da
descoberta de um esconderijo de bombas alems no detonadas em um canteiro de
obras de uma pequena cidade russa. Ambos so filmes de produo muito simples e
ainda no apresentam as caractersticas dos ltimos filmes de Andrei. Foram
principalmente filmes estudantis, com foco na aprendizagem das elementaridades do
cinema, mas j apresentam uma boa qualidade de roteiro e produo. Tarkovski
completou o Instituto de Cinema com honras, em 1960, produzindo sua primeira
pelcula, O Rolo Compressor e o Violinista, como trabalho final de curso.
Analisando os textos produzidos por Tarkovski, durante os tempos de
estudante, Maya Turovskaya tentou esboar duas caractersticas de seu pensamento
sobre o cinema que foram posteriormente reafirmadas em seu livro sobre esta arte
(Esculpir o Tempo). Esses dados de seu pensamento, que j apareciam durante a sua
formao no VGIK, foram referncias importantes para o modo como ele produziu
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seus filmes durante toda a sua carreira. A rejeio de alegorias e metforas se somava
a crena de que o envolvimento do pblico aumentaria se o diretor se preocupasse em
no apresentar uma situao de maneira direta, uma vez que alegava ser preciso
deixar espao para que o espectador completasse a obra com seus prprios esforos
criativos. Nesse sentido, Tarkovski rejeitava tanto o cinema sovitico, da montagem
dialtica, produtora de alegorias e metforas visuais, quanto o cinema americano, cujo
excesso de transparncia condena o espectador a uma passividade absoluta. A sua
insubmisso ao realismo sovitico, adotada na prtica, embora no tenha significado o
fim de sua carreira, significou a morosidade burocrtica na aceitao de seus filmes.
Em seu livro Esculpir o Tempo, lanado em 1985, Tarkovski apresenta as
ideias que desenvolveu desde os tempos de estudante, bem como seus
desdobramentos tericos desenvolvidos em dilogo com sua experincia em cada
produo que realizava. Tarkovski produziu sua conceituao prpria do cinema,
compreendendo-o como uma arte do tempo, uma arte capaz de representar a vida
alm da superficialidade da percepo natural, apresentando uma potica que nos
atinge o esprito, provocando-nos emoes. Embora muitas vezes, na prtica,
Tarkovski no seguisse sua prpria teorizao, de modo geral sua cinematografia
segue seus preceitos com bastante ortodoxia. Ao longo de cada filme Tarkovski foi
aprimorando sua habilidade em ser mais fiel sua prpria ideia de cinema, bem como
na medida em que percebia o insucesso de alguns preceitos evolua sua teorizao.
O Rolo Compressor e o Violinista apresenta a histria de um menino
sonhador, que estudava violino e fez amizades com um trabalhador da construo
civil. um filme linear e simples. Contudo, podemos destacar a forma como
Tarkvoski j valorizava os momentos de devaneio e epifania vividos pelo heri e
representados em imagens. Tarkovski, portanto, j buscava apresentar em imagens,
no apenas um heri individualizado, mas principalmente sua subjetividade, sua
psiqu, seu eu interior, revelados atravs de imagens. Nesse curta-metragem, os
momentos de devaneio so mais claramente definidos, permitindo ao pblico
compreender a mudana de regime de imagem que no se caracteriza como uma
diferena de textura, mas de contedo do que aparece, quebrando o desenrolar da ao
objetiva. Essas cenas so representativas dessa busca precoce de Tarkovski por um
tipo diferente de realismo, com base na expresso da potica de sua subjetividade
ntima, por via de imagens.
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Nessa poca, portanto, Tarkovski j desenvolvia sua concepo sobre a
potica das imagens, que amadureceria mais tarde, na qual ataca a concepo
naturalista de filmes que baseiam suas imagens na produo de detalhes exatamente
como na vida real, como se esse fosse o caminho capaz de produzir maior semelhana
com uma percepo cotidiana da realidade. Em seu dirio (TARKVOVSKI, 1994), o
cineasta russo culpa Stanislavski por sua m influncia entre os atores de sua gerao,
pois pensava que o realismo formal que este propagava s podia levar a uma
artificializao da cena: pode produzir cenas geometricamente corretas,
superficialmente realistas, mas no vai cativar intimamente o pblico, por ser incapaz
de expressar a realidade potica da vida. Tarkovski acreditava que a percepo real
acompanhada de uma espcie de potica, que a expresso de nossas emoes no
universo percebido. Ele exemplifica com uma situao hipottica:
Chegamos ao fim de um dia: digamos que durante esse mesmo dia algo de muito importante e significativo aconteceu, o tipo de coisa que poderia servir de inspirao para um filme, que tem as qualidades essenciais de um conflito de ideias que permitiriam a realizao de um filme. (...) Em contraste com o restante do dia, esse acontecimento aparece como uma rvore em meio cerrao (TARKOVSKI, 2010, p. 21).
Tarkovski sustenta sua ideia de cinema numa fenomenologia da percepo,
que considera, como Merleau-Ponty, em O Visvel e o Invisvel (2009), que nossa
percepo do mundo est to carregada de nossos afetos que o prprio mundo se torna
como que um espelho, uma dobra de ns mesmos. nesse sentido, que no cinema de
Tarkovski as paisagens aparecem como emanaes do estado subjetivo do heri. A
realidade apresentada nas imagens incorpora (somatiza), o fator psicolgico, o estado
mental do personagem com uma emoo em particular.
O Rolo Compressor e o Violinista cativou a crtica e o staff da Mosfilm
(produtora estatal que produziu todos os filmes de Tarkovski realizados na Unio
Sovitica). Alm da qualidade tcnica, o baixo custo da produo e a beleza e
simplicidade da composio potica das imagens, o filme tambm passava uma
mensagem moral que agradou os idelogos e censores da indstria do cinema
sovitico: o filme, embora de modo muito diferente desta vez atravs de um heri
individual, personalizado e dono de sua prpria subjetividade , como contedo
moral, produziu uma mensagem se no semelhante, no mnimo paralela de Dziga
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Vertov, em O Homem com uma Cmera (1929), traando um elo entre o trabalho do
artista e o dos trabalhadores em geral.
Terminada sua formao na VGIK, o nome de Tarkovski estava bem cotado
para dirigir filmes de longa-metragem. E, de fato! Pouco depois de formado, Andrei
foi convidado a dirigir um filme baseado no livro Ivan, de Vladimir Bogomolov. Este
filme estava sendo rodado por outro diretor, mas o projeto estava ficando sem
recursos, muitas filmagens precisavam ser refeitas e Tarkovski foi chamado para
refazer o trabalho com o restante dos recursos oferecidos.
A histria original narra alguns acontecimentos vividos por Ivan, um menino
que se tornara rfo durante um ataque alemo e passou a trabalhar no front como
escoteiro, enviando informaes sobre a formao inimiga. Depois de muito discutir
com o roteirista, Tarkovski convenceu-o de inserir quatro cenas de sonho do menino,
trazendo para o filme o lado subjetivo do personagem. Aqui, novamente, Tarkovski
busca imprimir sua marca, adotar o seu conceito de cinema. No se tratava apenas de
um heri individualizado, era preciso dar-lhe vida, um esprito prprio. Sua
subjetividade deveria transparecer. Esses sonhos apresentavam uma mescla de
lembranas de sua casa e sua me; e imagens poticas de conforto e nutrio (como
cavalos comendo mas cadas na areia de uma praia), bem como sons relacionados
ao pavor de ter visto a me ser morta, ajudaram a dar mais dramaticidade situao
vivida pelo heri.
Tarkovski (2010) diz que Bogomolov, o autor do livro, tinha concebido o
cenrio flmico "com a invejvel preciso de uma testemunha ocular dos
acontecimentos que constituem a base da histria" (TARKOVKSI, 2010, p. 28); no
entanto, ele pensou que a produo de tal cenrio resultaria sem vida, pois a frieza de
seu realismo no produziam nele [Tarkovski] nenhum sentimento esttico. Ele disse:
"Senti, o tempo todo, que para o filme ser bem-sucedido a textura do cenrio e das
paisagens devia ser capaz de provocar em mim recordaes precisas e associaes
poticas" (TARKOVSKI, 2010, p 28). Com o sucesso do filme, premiado com o Leo
de Ouro do Festival de Veneza, em 1962, Tarkovski diz ter chegado a uma concluso
muito importante para o presente trabalho: ele ficou convencido de que "se um autor
se deixar comover pela paisagem escolhida, se esta lhe evocar recordaes e sugerir
associaes, ainda que subjetivas, isso, por sua vez, provocar no pblico uma
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emoo especfica" (TARKOVSKI, 1986, p. 28). Ele trabalhou com a ideia de que
essas memrias profundas poderiam espelhar o afeto do autor para o pblico.
Tarkovski considerava que todo o cenrio do filme deve incorporar o estado
psicolgico do personagem seu tempo interior. Esta ideia nos remete Potica do
Espao, de Bachelard (2008), na qual ele diz que as imagens poticas so as nicas
capazes de produzir ressonncias e de afetar a intimidade de outras pessoas. Embora
no possamos afirmar se Tarkovski leu a obra de Bachelard, podemos constatar que
sua teorizao sobre o cinema, bem como seus prprios filmes, encontram eco no
pensamento deste filsofo do incio do sculo XX.
Com o sucesso de A Infncia de Ivan, Tarkovski tornou-se o mais jovem
cineasta russo a conquistar um prmio internacional. A partir de ento, ele ganhou
confiana no seu princpio flmico. Seu prximo filme surgiu de uma ideia original de
Tarkovski, desenvolvida em parceria com seu roteirista desde os tempos da VGIK,
Konchalovsky. Era um filme sobre Andrei Rublyov, um monge e renomado pintor
russo que vivera no sculo XV. No entanto, esse tema, em si, j constitua um desafio
e, principalmente, uma ousadia, e dificilmente seria aceito se proposto por outro
cineasta, visto que a Unio Sovitica travara dura batalha antirreligiosa, destruindo
diversas igrejas e templos de seu territrio. Contudo, como na etapa de apresentao
do projeto Tarkovski defendera que o filme tinha como interesse principal apresentar,
atravs do olhar do artista religioso, o perodo de retomada das fronteiras
conquistadas em batalha pelos trtaros, conseguiram a aprovao do bureau estatal.
Tarkovski e Konchalovsky, roteirista do filme, declararam na sinopse do roteiro:
A vida de Rublyov um completo mistrio, e no temos a inteno de desvendar o enigma de sua vida. Queremos ver, atravs dos olhos de um poeta, aquele perodo maravilhoso e terrvel, quando a grande nao russa foi tomando forma e se tornando ela prpria (apud TUROVSKAYA, 1989, p. 37).
Adiante, no livro Esculpir o Tempo, Tarkovski afirma que, em adio, ele
"queria investigar a natureza do gnio potico desse grande pintor russo", e "analisar a
mentalidade e a conscincia cvica de um artista que criou um tesouro espiritual de
significado atemporal" (TARKOVSKI, 1986, p. 34). Assim, a fim de alcanar os dois
objetivos, ou seja, apresentar a psicologia de um artista e a importncia do momento
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histrico que ele viveu, Tarkovski entrelaa momentos da vida do pintor, com cenas
da vida de um pas que clamava por fraternidade "numa poca de ferozes lutas
intestinas e de domnio trtaro (TARKOVSKI, 2010, p. 36). Os acontecimentos que
aparecem em cena configuram um perfeito cenrio, inspirador para a pintura da
Santssima Trindade, de Rublyov, que nos termos de Tarkovski simbolizou o ideal de
fraternidade, amor e santidade silenciosa.
Em Esculpir o Tempo, refletindo sobre o cenrio de Andrei Rublyov,
Tarkovski observa que, embora tenha empreendido grande esforo pesquisando
cenrios russos do sculo XV, e embora tivesse usado o que pde para retratar uma
Rssia desse perodo, recorrendo arquitetura, iconografia etc., ele afirma que
nunca teve a inteno de reproduzir em seu filme uma cpia perfeita da Rssia nesse
perodo histrico. Este tipo de reproduo mimtica, no seria apenas impossvel,
mas, principalmente, indesejvel. Assim, ele optou por reconstruir a Rssia do sculo
XV para um pblico moderno, ou seja, "apresentar aquele mundo de tal forma que os
trajes, o modo de falar, o estilo de vida e a arquitetura no passassem ao pblico uma
sensao de relquia, de raridade de antiqurio (TARKOVSKI, 2010, p. 91).
Tarkovski partiu do seguinte pressuposto: da mesma forma que uma relquia, como a
Santssima Trindade, de Rublyov, sobreviveu ao tempo, sendo contemplada pelas
populaes contemporneas atravs de um imaginrio contemporneo, o filme
tambm deveria contemporaneizar o cenrio da Rssia do sculo XV com questes e
situaes que ainda repercutem na vida da nao russa. Sobre esse tema, Peter Green
destaca os paralelos sutis entre a Rssia arcaica e a contempornea, que podem ser
destacados no filme.
Ao longo de seu trabalho, ele fez comparaes entre o passado e o nosso prprio tempo e procurou o universal no particular. O espectador constantemente estimulado a contribuir com sua prpria interpretao dos acontecimentos, quer na busca de analogias ao longo do tempo entre as invases mongis do perodo medieval e a agresso alem na primeira metade do sculo XX, entre a violncia com que os prncipes feudais russos governaram e os excessos do stalinismo, ou entre a viso do Juzo Final e os estragos causados pelas hordas trtaras (GREEN, 1993, p. 44).
Portanto, paralelamente histria do artista cristo, o filme mostra os horrores
cometidos em territrio russo nos tempos do imprio, traando um silencioso paralelo
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com os horrores revelados sobre o perodo stalinista. O filme termina fazendo uma
ode f. Numa longa cena vemos a subida ao Monte Calvrio, sendo interpretada em
plena neve, num cenrio tipicamente russo. Na cena final, um jovem comanda toda a
populao a forjar o sino de uma igreja sem nunca ter sabido como faz-lo, baseado
na f individual e na realizao de sua prpria potncia intuitiva. Assim, Tarkovski
associa a arte ao auto-sacrifcio, e os artistas, aos missionrios.
No entanto, poca do lanamento do filme, a fase do degelo chegava ao
fim e comeava a era Brejnev, na qual a censura ideolgica voltava a patrulhar o
contedo dos filmes da indstria sovitica com bastante rigor. A verso final de
Andrei Rubliov no era exatamente o que as autoridades soviticas esperavam, pois
queriam um tratamento positivo da histria russa. Eles esperavam ver uma cena de
batalha final em que os russos tomassem suas terras de volta dos trtaros, bem como
um sentido de glria, orgulho nacional, e o sentimento de unio do povo para uma
causa final. "As autoridades no tiveram o pico, heroico nacional que esperavam"
(GREEN, 1993, p. 61). O que o filme apresenta um povo derrotado de um lado por
estrangeiros, e de outro, pelas autoridades locais, e uma exaltao da f religiosa e do
cristianismo, que se confrontou diretamente com a base de fundao Sovitica3. Foi
provavelmente esta a razo que levou o Comit Sovitico de Cinema a engavetar o
filme por cinco anos. Para no ter de censur-lo, o Comit apontou problemas que
impediram a liberao do filme. O engavetamento no foi um privilgio de
Tarkovski. Muitos outros filmes passaram pelo mesmo processo, nesse perodo.
Muitos cineastas aceitavam as alteraes sugeridas pelo Comit, mas Tarkovski no
tolerava interferncias.
O filme foi exibido pela primeira vez em Moscou em 1966, onde recebeu considervel aclamao do pblico. Colocado no programa do Festival de Cannes, em 1967, foi ento retirado [pelas autoridades russas]. No festival de Veneza, em 1968, nenhum filme sovitico foi exibido, na sequncia da recusa do diretor do festival Luigi Chiarinide apresentar quaisquer filmes soviticos se no fosse autorizado a projetar Andrei Rublyov. Sua estreia no Ocidente (depois de feitos certos cortes) foi em maio de 1969 no Festival de Cannes, onde foi mostrado fora da concorrncia e em face aos
3Repare-se que no quero dizer, aqui, que o filme se resume a esses aspectos, mas destaco-os por terem sido os pontos de conflito entre o que o filme apresenta e o cdigo de conduta do realismo sovitico.
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protestos das autoridades soviticas (mesmo fora da concorrncia, recebeu o prmio da crtica FIPRESCI). Somente em 1973 Andrei Rublyov pde ser lanado oficialmente no Ocidente (GREEN, 1993, p. 62).
Todo este processo de tentar liberar o filme para a exibio levou sete anos.
Tarkovski, nesse perodo, no pde iniciar um novo projeto. Tudo isso foi muito
demorado e aprofundou a averso de Andrei pela burocracia sovitica. Nesse
intervalo, ele escreveu roteiros para trs filmes - Dostoivski (que nunca foi feito),
Confisses (que viria a se tornar O Espelho) e Solarys.
No dia 18 de fevereiro de 1971, ele destacou, em seu dirio, algumas frases
dos cadernos sobre Crime e Castigo, de Dostoivski, que tratavam o socialismo
criticamente:
A ideia suprema do socialismo maqunica. Busca mecanizar as pessoas. H regras para tudo. Assim, o homem extrado de si mesmo. Sua alma viva removida. compreensvel que uma pessoa seja calma neste tipo de quietismo oriental, e estes senhores ainda se dizem progressistas? Meu Deus! Se isso progresso, ento o que quietismo oriental?!
O socialismo o desespero oriundo da impossibilidade de um dia ser capaz de organizar o homem. Ele organiza a tirania e diz tratar-se de liberdade! (DOSTOIVSKI apud TARKOVKSI, 1994, p. 36).
Aparte o seu desentendimento com a burocracia estatal, o cinema de
Tarkovski muito se desenvolveu desde A Infncia de Ivan. A cada filme que fazia,
Andrei experimentava e consolidava sua teorizao prpria sobre o cinema. Em 15 de
fevereiro de 1972, ele escreveu em seu dirio: "Por muitos anos tenho sido
atormentado pela certeza de que as descobertas mais extraordinrias nos aguardam na
esfera do tempo, pois sabemos menos sobre tempo do que qualquer outra coisa"
(TARKOVSKI, 1994, p. 53). Ou seja, a temtica do cinema como arte do tempo j
comeava a ganhar seu contorno definitivo.
Seu prximo filme, Solarys, que em princpio seria rodado aps O Espelho,
acabou sendo adiantado, j que este ltimo no teve autorizao do Comit. Apesar de
ambientar-se em um cenrio de fico-cientfica, o foco principal do filme uma
crtica filosfica sobre a busca da cincia: o fato de que a humanidade tem
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reproduzido no espao exterior a busca de expanso e dominao, fugindo da questo
mais fundamental para ele, que relativa compreenso da alma humana.
A histria se passa em uma estao espacial, na fronteira da expanso humana
no espao sideral, onde uma pesquisa sobre as propriedades do oceano de Solarys
realizada. Este oceano um tipo diferente de vida, como um grande crebro, com o
poder de penetrar na mente humana e materializar personagens que povoam nosso
imaginrio. Da mente do protagonista, um psiclogo, o oceano materializa sua ex-
noiva, suicidada. Essa nova presena na aeronave o obriga a lidar com as suas
prprias memrias, seu passado escondido. Ele tenta se livrar dela de muitas
maneiras, at que decide aceit-la. Depois convencido pela equipe da aeronave a
enviar seu prprio eletro-encefalograma para o oceano em um foguete. Essa ltima
tentativa de domar o oceano pareceu, a princpio, ter funcionado, pois as aparies
foram embora. A prpria ex-mulher do psiclogo decide se aniquilar. Mas na cena
final a vitria aparente se desmascarada. Vemos o autor voltando para a casa dos pais,
que conhecemos no incio do filme. Contudo, quando o personagem se aproxima da
casa e avista seu pai l dentro, atravs da janela, ele repara que a casa est chovendo
por dentro. Ele se d conta de que agora no so mais personagens extrados da
memria e da imaginao que povoam o espao que o rodeia, mas ele prprio que se
materializou no espao da sua psiqu. Fundamental para o presente trabalho
destacarmos que o cenrio escolhido para apresentar esse mundo ilusrio criado pelo
oceano foi a casa dos pais do heri, ou seja, sua casa de infncia, que o topos
privilegiado da memria autobiogrfica, como veremos em captulo especfico.
Solarys, no teve problemas com a comisso estatal. Seguiu uma narrativa
mais tradicional, linear, e apresentou um cenrio da conquista espacial que
indiretamente apresentava uma viso do progresso cientfico sovitico. Foi logo
exibido em diversos festivais, sendo muito premiado. muito importante destacar a
ideia da constituio de um espao visual (cinematogrfico) como uma materializao
do espao interno da subjetividade do heri, isto , como um espelho deformado do
espao percebido como real. O tema do tempo trabalhado por Tarkovski passa a trazer
uma relao mais direta e profunda com a perspectiva fenomenolgica merleau-
pontiana, apresentando, na cena final, a ideia de um mundo que a imagem do eu
interior.
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Depois de terminar Solarys, Tarkovski sentiu-se pronto para produzir o que
considerava ser o seu trabalho mais importante. Em seus dirios (TARKOVSKI,
1994, p. 74), em 23 de Maro de 1973, ele escreve:
Comeo a sentir que chegada a hora: estou pronto para fazer o trabalho mais importante da minha vida.
A garantia de que isso certo , em primeiro lugar, a minha prpria certeza (que, naturalmente, pode ser decepcionante e acabar dialeticamente por se tornar um desastre) e, segundo, o material que vou usar o mais simples, mas ao mesmo tempo o mais extraordinariamente profundo, familiar e banal de forma que ningum se distraia e desvie a ateno do que importante.
Eu poderia at cham-lo de material ideal, pois o sinto e o conheo muito bem. Tenho plena conscincia disso. A nica pergunta : serei capaz de faz-lo? Serei capaz de impregnar o corpo perfeitamente construdo com uma alma?
O filme que Andrei Tarkovski estava prestes a produzir era O Espelho. O
material ideal que Andrei se dispe a usar, e que diz ser simultaneamente simples e
extraordinariamente profundo sua prpria vida. O filme que estava para vir foi
idealizado como uma verso cinematogrfica de um autorretrato ou autobiografia de
Tarkovski.
Enquanto a autobiografia tem longa histria, a autorrepresentao no cinema
bem mais recente. Na poca da produo de O Espelho, poucos trabalhos haviam
sido feitos nesse sentido. No universo da Unio Sovitica, Tarkovski foi a esse
respeito um pioneiro.
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III AUTOBIOGRAFIA, AUTORRETRATO E AUTORREPRESENTAO NO
CINEMA
Em seu dirio, Tarkovski (1994) cita O Espelho e O Sacrifcio, dois de seus
filmes, juntamente com Palhaos (1970), de Fellini, como filmes autorretrato.
Tarkovski (2010) diz que O Espelho seu filme mais autobiogrfico. Embora
Michelangelo defenda que toda obra de arte , de certa maneira, um autorretrato
(WODALL, 2005) e Gusdorf (apud MARCUS, 2006) afirme que todo trabalho de
arte constitui uma projeo do mundo interior no espao exterior, no cinema, as obras
explicitamente autobiogrficas foram, at a exploso do homevideo, bastante
incomuns. Esse fato se torna ainda mais agudo quando reduzimos nossa ateno aos
filmes de grande oramento, produzidos em escala industrial. Contudo, entre 1968 e
1974, perodo que separa a elaborao da ideia original de O Espelho (ainda com o
nome de Confisses) e seu lanamento oficial, um filme autobiogrfico era novidade
at mesmo para as obras de baixo oramento. Poucos trabalhos haviam sido feitos
nesse sentido, como veremos, nos Estados Unidos. Se pensarmos no universo flmico
da Unio Sovitica, dos tempos de Brejnev, tal feito era tido como algo inconcebvel
e temeroso, quase criminoso, pois afrontava o Realismo Socialista, protegido por
decreto, que repudiava os dramas individuais burgueses. No toa, o filme foi
recusado em sua primeira apreciao pela Goskino, antes da realizao de Solarys. O
nome Confisses, alm de tudo, fazia referncia direta obra de Santo Agostinho, de
mesmo nome, considerada por muitos como a primeira autobiografia. Depois da
afronta de ter feito Andrei Rublyov um filme religioso, em plena Unio Sovitica e
com recursos pblicos , a burocracia estatal sovitica prontamente recusou tal
roteiro. Quando Tarkovski completou Solaris, reelaborou o pr-roteiro de Confisses,
alterou seu ttulo para Um dia Branco e conseguiu aprovao para elaborar o roteiro
definitivo e o plano de direo.
Em busca de experincias anteriores de trabalhos auto-representativos, recorri
literatura dedicada ao estudo dos autorretratos, autobiografias e ao cinema
autobiogrfico, com vistas a encontrar paralelos tericos que me permitissem analisar
O Espelho como um filme em que Andrei Tarkovski retrata sua prpria
personalidade.
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Sobre as ideias de personalidade e autorreflexo, Mikhail Bakhtin (1990)
chama a ateno para o fato de que tais noes, como as conhecemos hoje, no
encontram paralelo no passado. Na Grcia antiga, por exemplo, a ideia de
personalidade era compreendida como uma espcie de essncia que acompanha a
pessoa em todas as fases de sua vida. Eventos narrados da vida de algum s
poderiam corroborar esse carter essencial. Bakhtin destaca que no havia, na poca,
uma noo de uma subjetividade interna ao indivduo. No havia a ideia de um eu
interior e um eu exterior.
A ideia altamente complexa de identidade que compartilhamos no tempo
presente, que inclui as noes de carter, gnero, raa, orientao sexual e
interioridade, , segundo West (2004, p. 29), um legado do sculo XVII, quando a
ideia de eu comeou a ser explorada filosoficamente". Por outro lado, Laura Marcus
(2006) comenta que Robert Kellogg e Robert Scholes, no livro Natureza da
Narrativa, apontam o cristianismo, mas principalmente a abordagem de Santo
Agostinho, em suas Confisses, como importantes desbravadores do eu interior,
abrindo caminho para Freud e o surgimento da psicanlise.
O Renascimento apontado, por muitos autores, como um perodo importante
na gestao dos germes do individualismo moderno. A esse respeito, Alfred
Whitehead (2010) destaca que Leonardo da Vinci precedeu em um sculo o
perspectivismo cientfico, introduzido por Francis Bacon, e em dois sculos, a
introduo do perspectivismo filosfico. Duas importantes formas de pesquisa foram
conduzidas por pintores renascentistas, com vistas a seu aprimoramento esttico: a
explorao da anatomia e da fisionomia humanas, trazendo o foco para o corpo, e o
desenvolvimento da perspectiva geomtrica e da paisagem, chamando ateno para a
ideia de ponto de vista, colocando o corpo no centro do mundo. Esse foi, certamente,
o germe da noo de perspectiva individual, e significou uma ruptura importante com
o transcendentalismo medieval.
De acordo com o gegrafo Denis Cosgrove (1998), a ideia de paisagem
emergiu na Europa renascentista como uma dimenso da conscincia de uma elite,
num determinado perodo da histria, e era uma expresso da mudana de valores
pela qual a sociedade ocidental passava. A emergncia da burguesia e a gradual
laicizao do pensamento esto entre esses processos, que juntamente com o gradual
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aprofundamento do individualismo e das noes de identidade, personalidade e
carter, marcaram a transio do feudalismo para a modernidade. Segundo Cosgrove,
no sculo XVI, a arte se tornava uma mercadoria e a simples necessidade de vender a
obra levava o artista a apelar para qualquer observador individual. A conquista
especfica dos pintores renascentistas foi a perspectiva linear. Cosgrove cita o tratado
Della Pintura, de Leon Battista Alberti, observando que o autor apresenta um
discurso sobre as tcnicas sobre como construir uma pirmide visual a partir do olho,
que permitiro ao pintor representar as coisas como realmente so. Nesse sentido,
Cosgrove alerta que a perspectiva no era tida meramente como uma tcnica ou
recurso visual, mas uma verdade em si mesma, a descoberta de uma propriedade
objetiva do espao, ao invs de uma simples viso. Ela [a perspectiva] regulava o
espao das pinturas e do teatro, representando como realidade aquilo que observado
pelos olhos do espectador (COSGROVE, 1998, p. 22).
Se, de um lado, a perspectiva aponta para a paisagem como uma realidade
espacial pretensamente objetiva, de outro, o observador individual que ganha
notoriedade, pois o ponto de observao criado pela perspectiva linear chama a
ateno para e privilegia a prpria figura do observador. Se a paisagem aparece
como uma janela para o mundo, vista de uma perspectiva monocentrada, os
autorretratos aparecem como espelhos, nos quais os pintores se dedicavam
expresso de sua autoimagem.
De acordo com Cosgrove (1998), somente aps o desafio representado pelas
vanguardas modernas do sculo XX principalmente o cubismo , o perspectivismo
relativizado. Mas isso se d apenas quando as ideias de indivduo, ego, e eu
interior j haviam ganho, com Freud e a psicanlise, a imagem de um espao
interior aos indivduos. Portanto, os movimentos modernos, em grande parte,
apesar de romperem com o perspectivismo tradicional, buscaram aprofundar a
descoberta pela arte de outros espaos capazes de revelar a realidade dos indivduos.
Um fator de central importncia para o desenvolvimento dos processos
individualizantes e, consequentemente, para o surgimento dos autorretratos, foi a
criao e a difuso de espelhos planos. Durante a Idade Mdia, os espelhos planos
ainda no haviam sido inventados. Para vislumbrar a autoimagem era necessrio usar
pequenas chapas metlicas altamente polidas. Depois, surgiram os espelhos convexos,
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amplamente utilizados por barbeiros. De acordo com Woods-Marsden (1998, p. 31),
"o desenvolvimento das imagens especulares sem distores foi provavelmente
grande encorajador de uma autoconscincia (...) e pode-se dizer que foi fator
essencial para permitir a formao do clima cultural que deu origem aos
autorretratos". Espelhos planos foram obviamente muito importantes para possibilitar
aos artistas se relacionarem com sua aparncia externa.
Segundo Woods-Mardsen (198), por muito tempo se disse que os espelhos
eram um atributo da verdade, do conhecimento e da Cincia, porque simbolizava a
busca por verdade e verossimilhana na Renascena. Foi tambm "um atributo dado
virtude Prudncia, cujo ato de autocontemplao foi interpretado como a busca por
autoconhecimento espiritual que era empreendida pelos sbios" (WOODS-
MARSDEN, 1998, p. 33). No entanto, a autocontemplao excessiva, associada ao
mito de Narciso, foi interpretada como uma obsesso com o eu fsico, razo pela
qual a imagem especular tambm foi denotada como o vcio Vaidade, e foi o smbolo,
por excelncia, dos pecados mortais da Volpia, Soberba, e Luxuria" (WOODS-
MARDSEN, 1998, p. 33). Devido autocontemplao recorrente diante dos espelhos,
ao longo do curso de uma vida, estes tambm foram vistos como um lembrete da
inevitabilidade da transitoriedade da vida humana.
A teoria do estgio do espelho, de Lacan, como etapa fundamental do
desenvolvimento da autoconscincia da criana, endossa a considerao do espelho
como objeto que induz ao autoexame e maior conscincia de si. Tendo por base a
observao de Wallon, de que as crianas reagem sua imagem especular, e
recorrendo teoria psicanaltica de Freud, Lacan produziu uma tese sobre a fase do
desenvolvimento infantil que ele chamou de estgio do espelho. Lacan considera que
ao reconhecer-se neste, pela primeira vez, aos seis meses de idade, a criana percebe a
imagem de seu corpo como um todo unitrio, em contraste com a realidade
fragmentada nos cinco sentidos da percepo e das recorrncias da memria. Para
Lacan (2006), esse autorreconhecimento da criana no espelho, antes mesmo do
desenvolvimento da linguagem verbal e, portanto, da sua plena insero no contexto
social, seria responsvel por situar a agncia conhecida como ego" (LACAN, 2006,
76). Esse dar-se conta de si, como indivduo, representado pela figura do espelho,
por sua vez, induziria outros processos de ansiedade e agressividade. Embora Norman
Holland (1998) nos revele que pesquisas posteriores, como as de Michael Lewis e
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Jeanne Brooks-Gunn, indicassem que as crianas, comprovadamente, apenas se
reconhecem no espelho depois dos quinze meses, a teorizao de Lacan continuou
pertinente, gerando alguns desdobramentos tericos bastante interessantes. Entre
esses desdobramentos, podemos citar a considerao de que antes do reconhecimento
no espelho na imagem da me que a criana se reconhece. Tambm destacamos as
operaes psquico-cognitivas de introjeo e projeo em que outros objetos e
pessoas podem ser alvos da projeo da identidade interior da criana, e tambm dos
indivduos adultos. Essas operaes de introjeo e projeo encontram eco no texto
de Foucault.
Procurando conceituar suas heterotopias, Foucault defende que os espelhos
so utopias e heterotopias ao mesmo tempo. No espelho, eu me vejo onde no estou,
em um espao virtual, irreal, que se abre por traz da superfcie. Estou do lado de l,
onde no estou, uma espcie de sombra que me d minha prpria visibilidade
(FOUCAULT, 1984, p. 3). Essa seria a utopia do espelho. Por outro lado, a
heterotopia consistiria no fato de que o espelho de fato existe, e que exerce um tipo de
efeito na posio que eu ocupo.
Partindo do ponto de vista do espelho eu descubro minha ausncia no lugar onde estou, porque me vejo l no espelho. Partindo desse olhar que dirigido a mim, posicionado nesse espao virtual que existe do outro lado do vidro, eu retorno a mim mesmo. Passo novamente a dirigir meus olhos a mim mesmo e a reconstituir a mim onde estou (FOUCAULT, 1984, p. 3).
Se os espelhos oferecem uma reflexividade natural, objetiva, que convida as
pessoas a realizar o autoexame, as formas de autorrepresentao atravs da arte
constituem uma reflexividade artesanal ou artstica, subjetiva, constituindo o prprio
resultado de um ato minucioso de autorreflexo. Enquanto nos espelhos a imagem nos
apresenta o tempo real, em seu fluxo permanente, as formas de autorrepresentao
constituem uma forma de embalsamar o tempo. O crtico de cinema Andr Bazin
(1967) descreve a evoluo das artes representativas, desde as mmias egpcias at o
cinema, como o resultado da permanente busca por resistir ao horror de perecer
morte. De maneira similar, Laura Marcus (2006) diz que a linguagem dos
monumentos, estaturia, epitfios etc., permeia os discursos biogrficos e
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autobiogrficos e atesta a tenso entre a memorializao de uma vida pstuma e a
tentativa de se ter uma noo de como essa vida era vivida.
Vejamos, individualmente, algumas caractersticas dos autorretratos,
autobiografias e filmes de carter autobiogrfico. Destacaremos entre esses diferentes
meios de autorrepresentao aqueles aspectos e abordagens que, seja por semelhana
ou por diferena, nos permitiro extrair pontos de comparao que nos auxiliaro na
anlise de O Espelho.
1 Autorretratos
O surgimento dos autorretratos no incio da Renascena foi definidor de suas
caractersticas. A Renascena foi o perodo em que se dominaram as tcnicas de
pintura em perspectiva e a leo (essa ltima j se desenvolvia desde o incio do sculo
XV), o que possibilitou a produo de imagens de corpos e paisagens com alto grau
de realismo. A tela se tornava uma superfcie plana onde, tal como num espelho,
vemos um mundo virtual se projetar para alm de sua superfcie. A perspectiva da
pintura renascentista aparecia como to geometricamente perfeita que seus quadros se
assemelhavam a uma extenso do mundo real. Parece sintomtico que essa
transformao no modo de se produzir imagens tenha ocorrido no mesmo momento
em que se difundiam os recm-criados espelhos planos. Esse realismo perspectivo,
que, como vimos, acreditava-se apresentar a prpria realidade, como um espelho,
aliado ao aumento dos processos de individuao da sociedade ocidental e
autopercepo do artista, so fatores caractersticos do perodo e que marcaram a
fundao moderna dos autorretratos.
por este motivo que a representao do corpo aparece como central na
constituio dos autorretratos. O corpo a base essencial, necessria, que at hoje
define um retrato pictrico. A imagem-corpo geometricamente perfeita, representada
como a imagem do artista no espelho, foi o padro fundador dos autorretratos. Os
demais elementos da pintura so perifricos, embora no sem valor. Um autorretrato
pode apresentar, ou no, um cenrio de fundo; pode incluir, ou no, o artista entre
outros sujeitos (retratados ou inventados); pode apresentar o artista de roupa ou nu;
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mas dentro do modelo clssico, que foi por muito tempo definidor de autorretrato e
ainda prevalece nos trabalhos tericos recentes sobre o tema, no pode faltar a
imagem do prprio artista.
Esta centralidade da imagem-corpo do artista, nos autorretratos, , talvez, a
principal diferena com relao autorrepresentao em O Espelho, uma vez que a
nica cena em que a o verdadeiro corpo do autor seria revelado foi mutilada de
forma que s podemos ver com clareza seu pescoo, seus ombros, e seus brao e mo
diretos, impossibilitando seu reconhecimento facial.
Para Shaerer West, a principal importncia de um retrato "engajar-se com
ideias de identidade conforme percebidas, representadas e compreendidas em
diferentes tempos e lugares" (WEST, 2004, p. 11). Este, alis, o objetivo comum a
todas as formas de autorrepresentao. Neste sentido, no processo de engajamento
com a identidade individual, os retratos destacam a singularidade do indivduo em
meio a seus pares: seus conterrneos e contemporneos. Contudo, no faz isso sem
antes indicar as semelhanas que o ligam justamente comunidade da qual pretende
se destacar. West define o retrato como uma apresentao do corpo e da alma,
representada atravs da exibio 'frontal' de uma pessoa, de forma a identificar o
modelo, bem como para conect-lo semiologicamente ao ambiente social.
Identidade" pode abranger o carter, a personalidade, a posio social, relacionamentos, profisso, idade e sexo do sujeito retratado. Essas qualidades no so fixas, mas so expressivas das expectativas e circunstncias do momento em que o retrato foi feito. Esses aspectos da identidade no podem ser reproduzidos, s podem ser sugeridos ou evocados. Assim, embora retratos retratem indivduos, muitas vezes o artista destaca as qualidades tpicas ou convencionais ao invs de nicas - do sujeito representado (WEST, 2004, p. 11).
Um grande nmero de retratos apresenta apenas a face do retratado, sem
qualquer indicao do local onde o modelo est. Este tipo de retrato concentra sua
expresso na fisionomia. Toda forma de expresso corporal e facial compe o carter
do retratado. Se olharmos simplesmente para a face e o corpo representados, podemos
reconhecer a pessoa e identificar seu nome prprio (se conhecermos o seu semblante
previamente), alm de saber seu sexo, sua idade, o perodo histrico que o
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contextualiza, sua classe social, bem como a sua ocupao e posio frente sua
famlia e histria de seu tempo. No entanto, um grande nmero de retratos
apresenta, alm do rosto do retratado, outros atributos que operam como ndices, ou
smbolos, da identidade do mesmo. Entre esses elementos, podemos destacar
adereos, objetos, uma paisagem, compondo um cenrio semitico que ambienta e
contextualiza o retratado. Portanto, h uma semitica prpria aos autorretratos. Esses
elementos da imagem, tomados em conjunto, ajudam a compor o sentido de
localizao da imagem. Ora esses elementos apresentam um lugar de vida do artista
seja a casa, um lugar de lazer ou de trabalho , ora aparecem como constituintes
simblicos da imagem expressando um sentido a partir de uma semiologia
inteligvel, que opera por decodificao e ora apresentam um cenrio ou textura que
provocam certo tipo de impresso afetiva no observador, completando poeticamente a
imagem do artista autorretratado.
Anthony Bond (2005) salienta que, desde o Renascimento, os artistas que
pintaram seus autorretratos no estavam preocupados apenas com a imortalidade de
sua aparncia superficial, mas com modo particular como queriam ser lembrados"
(BOND, 2005, p. 31). Essa construo da imagem do eu tambm muito
significativa do empenho dos pintores do
Renascimento em projetarem-se como
criadores, e, portanto, membros da elite
intelectual, ao invs de meros artesos. O
Autorretrato (1500) (Fig. 1), de Drer,
um timo exemplo desse tipo de
autorrepresentao. Sua autoimagem
alusiva da imagem de Cristo: com cabelo
longo e encaracolado, bigode e barba, a
postura ereta e um olhar solene. Se
seguirmos a linha horizontal que une os
escritos de ambos os lados da sua
autoimagem, cruzando seus olhos e a linha
vertical que vai da sua mo at a testa,
vemos a imagem de uma cruz.
Possivelmente o nico motivo pelo qual essa imagem no foi confundida com uma
Fig. 1 Autorretrato. Abrecht Drer (1500).
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imagem de Cristo foi o fato de o pintor ter escrito no lado direito do quadro: "Eu,
Albrecht Drer de Nuremberg, me pintei com cores eternas em meu vigsimo oitavo
ano". Argumenta-se que esta semelhana com a imagem de Cristo foi concebida
propositadamente para criar um paralelo entre o artista e Deus, a fim de exaltar seu
papel como criador (WOODALL, 2005; CUMMING, 2010).
Elementos como a presena de um ou mais corpos representados, as variadas
formas de expresso corporal e facial, os adereos, o estilo de cabelo e a
representao do espao circundante, apesar de aparecerem 'em cena' completamente
estticos, em conjunto tais elementos apresentam uma trama visual que sintetiza a
identidade do autor. Portanto, para interpretar um retrato, alm de olharmos para a
representao do semblante do retratado, devemos perguntar: que outros elementos
aparecem na cena? O que esses elementos nos dizem sobre a identidade do retratado?
E o que dizer de outros personagens? H mais algum na cena? Quem? Qual a sua
relao com o retratado? Contudo, do ponto de vista da representao espacial,
igualmente importantes so as consideraes sobre cenrio e localizao. Onde o
retrato ocorre? Se no posso saber especificamente onde, em que tipo de localidade
genrica a cena ocorre? Quais so os elementos que nos informam sobre a localidade
da cena? Qual a contribuio dos ndices de localizao para a leitura da identidade
do retratado? Quanto mais um retrato cheio de elementos significantes mais ele
revela o envolvimento do retratado com o contexto em que se insere, seja familiar,
profissional ou histrico.
Os elementos que compem a cena, nos autorretratos, alm do autorretratado,
funcionam como ndices de contextualizao. s vezes, esses elementos revelam
instantes da vida familiar; outras vezes, mostram uma cena de trabalho, ou uma cena
histrica, da qual o retratado pode ter ou no participado. Quando um retrato
apresenta o indivduo numa cena histrica na qual nunca tomou verdadeiramente
parte, temos uma alegoria onde uma cena de um ato histrico famoso utilizada para
vangloriar a pessoa retratada. Ou ento, o indivduo inserido como testemunha de
uma cena que no presenciou de verdade, com o intuito de indicar seu
posicionamento em relao ao evento retratado. Dessa maneira, os autorretratos
podem lidar com a autoimagem do artista de diversos modos, desde a simples
apresentao de seu semblante sua contextualizao frente ao mundo seja esse
mundo encarado como real ou como alegoria.
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Fig. 2 A Famlia do Artista (1621).
A Famlia do Artista (1621) (Fig. 2), de Jocob Jordaens, um exemplo interessante. O
pintor se apresenta em uma cena familiar, com sua esposa, filha, servente e co. No
entanto, Cumming nos mostra como a cena apresentada cheia de alegorias: a
posio do artista, de p, distingue-o como o chefe da famlia; o alade em sua mo
simboliza a harmonia; as vinhas ao fundo representam a unio dos amantes; o co
representa a fidelidade; a fonte do Cupido representa o amor casto; os cestos cheios
de uvas representam a fertilidade confirmada pela presena de sua filha. No entanto,
se tomarmos apenas o corpo do artista e o abstrairmos do restante, ignorando todos os
demais elementos significantes da pintura, o que temos a imagem do artista no
prprio ato de olhar-se em um espelho, durante o ato de pintar seu autorretrato. Seu
brao direito levantado, com a mo segurando a cadeira, sugestivo de uma mo
segurando um pincel, pintando a tela. Contudo, o lado performtico da imagem do
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pintor se autorrepresentando escamoteado pelo cenrio altamente codificado em que
este encontra-se inserido.
Portanto, alm dos objetos em cena, outro importante aspecto a ser observado
nos autorretratos so as relaes especulares e os jogos de olhares. Nesse sentido,
Fig. 3 O Casal Arnolfini, Jan van Eyck (1434)
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Laura Cumming destaca que desde os primeiros autorretratos de que se tm notcia,
produzidos por Jan van Eyck, j podemos ver como as relaes especulares
complexificam o espao pictogrfico. Em O Casal Arnolfini (1434) (Fig. 3), van Eyck
insere uma mancha de um homem de turbante junto a um cavalete de pintura,
refletidos num espelho cncavo, situado ao fundo, no alto, acima da cabea do casal
Arnolfini (Fig 4). Atravs dessa autocitao, van Eyck se faz presente na cena, no
prprio ato de pintar, produzindo um grau de realismo que ultrapassa o universo
Fig. 4 Detalhe do espelho em O Casal Arnolfini, Jan Van Eyck (1434)
hermeticamente fechado da cena principal. O pintor est ali, testemunha da cena. O
casal no est parado sem razo: marido e mulher esto posando para o pintor, que ali
est. Cumming acrescenta que esta autocitao de Eyck na cena dos Arnolfini no
apenas insere sua presena virtual como pintor no quadro, mas gera um efeito
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especular que ocorre porque, ao observarmos o quadro, nos posicionamos no exato
lugar, em relao tela, ocupado pelo pintor no ato de pintar. Van Eyck, ao pintar seu
reflexo no fundo, nos leva, como observadores, a pensar na posio ocupada por ele
no m