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  • FRAGMENTA HISTORICA A evolução da assistência aos expostos durante o século XIX no distrito de Leiria

    2

    FICHA TÉCNICA

    Título

    Fragmenta Historica – História, Paleografia e Diplomática

    ISSN

    1647‐6344

    Editor

    Centro de Estudos Históricos

    Director

    João José Alves Dias

    Conselho Editorial

    João Costa: Licenciado em História pela FCSH/NOVA. Mestre em História Medieval pela FCSH/NOVA. Doutorando em História Medieval na FCSH/NOVA

    José Jorge Gonçalves: Licenciado em História pela FCSH‐NOVA. Mestre em História Moderna pela FCSH/NOVA. Doutor em História Moderna pela FCSH/NOVA

    Pedro Pinto: Licenciado em História pela FCSH/NOVA

    Conselho Científico

    Fernando Augusto de Figueiredo (CEH‐NOVA; CHAM – FCSH/NOVA-UAç)

    Gerhard Sailler (Diplomatische Akademie Wien)

    Helga Maria Jüsten (CEH‐NOVA)

    Helmut Siepmann (U. Köln)

    Iria Vicente Gonçalves (CEH‐NOVA; IEM – FCSH/NOVA)

    João José Alves Dias (CEH‐NOVA; CHAM – FCSH/NOVA-UAç)

    Jorge Pereira de Sampaio (CEH-NOVA; CHAM – FCSH/NOVA-UAç)

    José Jorge Gonçalves (CEH-NOVA; CHAM – FCSH/NOVA-UAç)

    Julián Martín Abad (Biblioteca Nacional de España)

    Maria Ângela Godinho Vieira Rocha Beirante (CEH-NOVA)

    Maria de Fátima Mendes Vieira Botão Salvador (CEH-NOVA; IEM – FCSH/NOVA)

    Design Gráfico

    João Timóteo

    Índices

    João Costa

    Imagem de capa

    Carta régia de D. Manuel I, assinada por D. Martinho de Castelo Branco, Lisboa, 1511.06.06 (ANTT, Corpo Cronológico, Parte I, mç. 10, nº 45, código de referência: PT/TT/CC/1/10/45).

  • 3

    SUMÁRIO

    Imagem da capa: Em torno da assinatura das cartas régias, p. 7

    João Alves Dias

    ESTUDOS

    A Evolução da Assistência aos Expostos durante o Século XIX no Distrito de Leiria, p. 11

    Kevin Carreira Soares

    MONUMENTA HISTORICA

    Diogo Faria, Filipe Alves Moreira, João Costa, José Jorge Gonçalves, Miguel Portela, Paulo Paixão, Pedro Pinto

    Instrumento público de partilha dos bens entre Julião Eanes e Catarina Domingues (1396), p. 41

    Testamento de Maria Vasques, moradora no Redondo (1396), p. 45

    Carta de sentença sobre o direito de relego no lugar de Avô (1399), p. 49

    Traslado em pública forma do testamento de Gonçalo Eanes da Silveira (1411), p. 53

    Carta de contrato anual para o ofício de sineiro do Mosteiro de S. Vicente de Fora (1412), p. 57

    Prestação de serviço de Estêvão do Couto (1412), p. 59

    Contrato de fretamento de um baixel por parte de D. João (1416), p. 61

    Venda de Herdade em Vale de Figueira (Évoramonte) (1424), p. 65

    Demarcação de Herdade em Évoramonte (1424), p. 67

    Contrato de serviço anual de caseiros na granja de Alenquer (1433), p. 69

    LISBOA

    2015

  • FRAGMENTA HISTORICA A evolução da assistência aos expostos durante o século XIX no distrito de Leiria

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    Carta de D. Duarte a Fernan D’ Alvarez del val de Corneja (1434), p. 71

    Doação de direitos da Coutada de Pedra Alçada (1436), p. 73

    Carta de D. Afonso V ao Conde de Alba (1461), p. 75

    Doação de bens de D. Isabel de Castro e de D. Maria a D. Filipa, prima do Rei D. Afonso V (1466), p. 77

    Carta de D. Afonso V de confirmação de privilégio a João Rodrigues (1481), p. 81

    Carta de D. João II ao Duque de Alba (1483), p. 83

    Aforamento de Herdades em Tavira (1484), p. 85

    Aforamento de Olival em Elvas (1499), p. 89

    Emprazamento de casal em Vilarinho de Cotas (1502), p. 93

    Rendimento do Algarve no ano de 1508 (c. 1509), p. 95

    Carta de D. Manuel I a Gonçalo Fernández de Córdoba (1512), p. 97

    Aforamento de Vinha em Tavira (1522), p. 99

    Minuta de instruções régias para uma embaixada a Itália (ant. 1538), p. 101

    Episódios do reinado de D. João II num manuscrito do Palácio da Ajuda (1538), p. 117

    Doação e repartição dos bens de Bento Pereira de Araújo (1664), p. 131

    Contrato de arrendamento dos oitavos de Vila de Figueiró dos Vinhos (1674), p. 135

    Carta sobre o pagamento e a revisão da impressão das constituições de Goa (1794), p. 139

    Carta sobre a edição das constituições de Goa (1798), p. 143

    Pedido para pagamento da impressão das constituições de Goa (1807), p. 145

    Recibo de quantia paga para impressão das constituições de Goa (1807), p. 147

    ÍNDICES

    Índice cronológico dos documentos publicados neste número, p. 150

    Índice antroponímico e toponímico deste número, p. 153

  • 5

    EDITORIAL

    O presente número da Fragmenta Historica, o terceiro da sua série, dá especial relevância à publicação de documentos manuscritos, o que se pode considerar normal numa publicação periódica que tem como subtítulo: História, Paleografia e Diplomática. Embora a História não seja apenas feita com documentação manuscrita, a maioria dos estudiosos dá, aparentemente, mais valor ao documento manuscrito e, dentro deste grupo, aos documentos escritos em pergaminho. É que se normalizou o pensamento para induzir que a documentação importante se escrevia nesse material, porque não era tão perene como o papel. É certo que a base está certa para os tempos mais recuados da denominada medievalidade europeia. O papel (feito a partir dos velhos trapos) era menos resistente à humidade. Assim, um contrato ou um testamento – que certamente teria de ser mostrado ao fim de largas dezenas de anos – tendencialmente era escrito em pergaminho. Outro fator prendia-se com a qualidade da tinta que ainda não deslizava – sem esborratar – com a mesma facilidade, nos dois materiais. Mas o material mais original tem naturalmente tendência para ir aparecendo escrito sobre papel. Se não aparece mais nesse material é pela sua escassez. A partir do século XV, o espontâneo e o efémero são praticamente apenas escritos sobre papel. Mas a grande massa dos documentos desse período que não se escontra registada em pergaminho, ainda está longe de ser classificada e conhecida. Assim, a História, conforme souber fazer interrogações diferentes, vai ter ainda muito para descobrir. A riqueza da documentação presente neste número da Fragmenta Historica prende-se, ainda, com a origem dessa documentação. Uma parte substancial desta documentação teve origem nos arquivos particulares e estiveram à venda em leilões e livrarias. Alguns continuam em casas particulares mas outros foram resguardados da destruição no Centro de Estudos Históricos – uns comprados, outros doados e outros em depósito. Mas mesmo os documentos aqui agora publicados que se encontram em arquivos púbicos, como o Arquivo Nacional da Torre do Tombo, eram na sua essência desconhecidos porque se encontram “encerrados” em códices de grandes dimensões, sem índices, o que dificulta o seu conhecimento. Por exemplo, a documentação do livro de notas de Afonso Guterres, tabelião do Mosteiro de São Vicente de Fora, em Lisboa, revela-nos pormenores do quotidiano esquecido, em especial a quantificação do valor do trabalho. Mas o recuperar uma carta-régia portuguesa que estava «perdida» e afastada da investigação portuguesa – carta de D. Manuel I, datada de 1512, assinada pela sua mão – porque se encontrava em Madrid, no Archivo y Biblioteca de Francisco Zabálburu, complementa o tema tratado na capa deste mesmo número, mas o facto de não ter mencionado o nome do escrivão pode tornar a carta mais interessante. No tratamento das fontes e no recriar da História apresenta-se uma incursão sobre os expostos do município de Porto de Mós, ao longo do século XIX. Foram vários os trabalhos propostos para publicação. Uns não correspondiam às orientações que o Conselho Editorial entende, e bem, que a Revista deve ter. Outros encontram-se ainda em apreciação pelos «pares» ou em revisão depois dessa apreciação. Quer aos revisores quer aos autores a direção agradece a boa vontade e os esforços despendidos. Sem eles a revista não poderá alcançar as metas que deseja: a da credibilidade e a da afirmação no meio Científico.

    João Alves Dias

  • FRAGMENTA HISTORICA A evolução da assistência aos expostos durante o século XIX no distrito de Leiria

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  • 7

    IMAGEM DA CAPA

    Em torno da assinatura das cartas régias

    João José Alves Dias

    São várias as inquietações que têm acompanhado a investigação elaborada nos diferentes projetos em torno da produção da designada Chancelaria Régia que temos elaborado e coordenado no Centro de Estudos Históricos, nomeadamente para a publicação das coleções Chancelarias Portuguesas e Cortes Portuguesas.

    Uma inquietação (a primeira) que sempre acompanhou toda a investigação em que a produção da Chancelaria Régia – que tudo produz em nome do Rei – foi confrontada, era a de saber se os documentos dela emanados tinham sido, ou não, elaborados em conselhos régios, com a presença régia.

    Muitas das incongruências que, por vezes, foram apontadas – quer na elaboração de itinerários régios quer na indexação cronológica da própria documentação – devem-se antes ao facto do historiador tomar conhecimento de determinado ato não por um documento original mas antes pelo seu registo na Chancelaria Régia.

    Comummente partia-se do princípio que quer a Carta quer o Alvará régios eram produzidos por determinação do monarca. Temos, hoje, a consciência que a maioria, senão mesmo a totalidade, da documentação – dita régia – que inclui a expressão «el Rei o mandou» corresponde a uma prévia delegação de poderes e que o monarca esteve fisicamente ausente na sua produção (embora teoricamente por ela seja responsável). Assim, existem antes cartas régias que foram emanadas pelos diferentes serviços ou departamentos da Chancelaria – que na maioria das vezes acompanham, por perto, a itinerância do Rei, mas que, em outras vezes, se encontram distribuídos pelo diferente espaço físico do reino – que são «mandadas» fazer, a um mesmo tempo cronológico, mas em relação às quais o «rei» pode inclusive desconhecer a sua produção. Essa documentação foi elaborada pelo membro, ou membros, do conselho ou do desembargo – com as mais variadas designações e variando entre um ou dois oficiais conforme o nível da documentação – responsáveis pela sua fiscalidade e execução (que essa delegação tinham recebido).

  • FRAGMENTA HISTORICA A evolução da assistência aos expostos durante o século XIX no distrito de Leiria

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    Depois de teorizada a hipótese, deixaram-se os «Livros de Chancelaria» e partiu-se para a documentação «régia» avulsa. Não encontramos nenhuma carta-régia assinada per manu propria do monarca desde que tivesse a expressão «el rei a mandou», ou similar. Em contrapartida, todas as cartas que não tivessem essa expressão encontravam-se assinadas com o autógrafo régio. Lembre-se que em qualquer dos casos aparece sempre expresso o nome do escrivão que a redigiu.

    Observemos apenas alguns exemplos:

    Ponte de Lima, Arquivo Municipal, Pergaminho 25 (PT/MPTL/CPGPTL/0025)

    Dom afomso per graça de deus Rey de portugall e do alguarue Senhor de çepta A quantos esta nossa carta virem fazemos saber que nos querendo fazer graça e merçee ao conçelho e homeens boons da nossa villa de ponte de lima Teemos por bem e lhe confirmamos todollos foros graças priujlegios liberdades e merçees que lhe forom dadas e outorgadas e confirmadas pellos Rex que ante nos forom e seus boons husos e costumes que sempre ouueram e de que sempre husarom ata a morte do muyto uirtuoso e de grande uirtudes El Rey meu Senhor e padre cuIa alma deus aIa

    e mandamos que lhe seIam guardadas e husem delles como sempre husarom atee o dicto tempo

    e em testemunho desto lhe mandamos dar esta nossa carta

  • 9

    dante em a nossa muy nobre e senpre leal çidade de lixboa doze dias do mes de Iulho El Rej O mandou per O doutor Ruy gomez d aaluarenga e per O doutor pedro lobato seus vasallos do seu desenbargo E das Pitiçoões afomso eannes a fez Anno do naçimento de nosso Senhor Iesu christo de mjll iiijc R ix Annos xij Reaes

    a) Rodericus doctor a) Petrus

    Ponte de Lima, Arquivo Municipal, Pergaminho 30

    (PT/MPTL/CPGPTL/0030)

    Dom afomso per graça de deus Rey de purtugall e do alguarue e Senhor de cepta . e d alcaçer em africa A quantos esta carta virem fazemos saber que estamdo nos em esta cidade d euora em as cortes que ora em ella fezemos per [1] procurador de pomte de lima nos foram [2] dados certos capitollos geeraaes a todo antre doiro e minho aos quaees ao pee de cada huũ mandamos por nosas rrepostas segumdo se a diamte segue.,

    Item ao que dizees que geeralmemte o nosso pouoo rreçebe grande agrauo por os anadees dos beesteiros do comto por estarem ao fazer dos dictos beesteiros na rrolaçom e somente per si tiram

    1 Espaço em branco no original; destinava-se a colocar o nome do procurador.

    2 Riscado: «aprese».

  • FRAGMENTA HISTORICA A evolução da assistência aos expostos durante o século XIX no distrito de Leiria

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    Imquiriçam sobr elles o que nunca foy de custume e que nos pedijs que tall cousa mandemos que se nom faça .,,

    Respomdemos que voso Requirimemto he Iusto e mandamos que o anadel nom seIa presemte quamdo taaes beesteiros forem dados e depois que o forem . os Recebam . segundo as ordenaçoões e rregimemto

    de seus oficios que lhe sam dados

    Item ao que nos pedijs que mamdemos que os nossos comtadores nem outros nossos ofiçiaaes nom estem nas vereaçooes e pusturas do Conçelho soomemte os oficiaaes delle ,. porque per aazo de seus ofiçios os toruam de seus Regimemtos E Recreçe gramdes desuairos e emburilhos dello e a nos pouco seruiço e ao pouoo gramde dano , e que quamdo alguũa cousa quiserem Requerer que a Requeiram e sayam logo .,

    Respomdemos que auemos por bem que elles nom estem nas vereaações soomemte [3] que posam emtrar E Requerer o que quiserem . e semtirem por nosso seruiço ou seu proueito E tamto que acabarem vaao loguo fora.,,

    Pedimdo nos por merçee o dicto procurador por parte da dicta uilla que lhe mamdasemos dar huũa nosa carta com o theor dos dictos capitollos com nossas rrepostas por quamto lhe mamdamos dar segumdo dicto he.

    E porem mamdamos a todollos nossos corregedores Iuizes Iustiças ofiçiaaes e pesoas a que esto perteemcer que lha cumpram e guardem E façam comprir e guardar segumdo em ella . comthudo sem outro enbargo

    dada em euora ix dias de dezembro aluaro gill a fez anno de iiijc lx xxx rreaes

    a) El Rey

    E, por fim, o documento da capa [Lisboa, A.N.T.T., Corpo Cronológico, Parte I, mç. 10, n.º 45]:

    Dom manuell per graça de deus Rey de purtugall e dos algarues daquem e dalem mar em africa Senhor de guinee etc. mamdamos a vos Recebedor da sysa do trigo da nosa Çidade de lixboa e ao stpriuam dese ofiçio que do Remdimento della deste añno presente de bc xj, deis a Senhora Rainha dona lianor minha Irmã dozemtos e trimta seis mill reaes que lhe mamdamos dar e o dito anno de nos ha d aver de suas temças, Dos quaes lhe vos fazee bom pagamemto

    e per esta nosa carta com o conhecimemto do ofiçiall ou pessoa a que os a dita Senhora mamdar emtregar,. mamdamos que vos sejam leuados em Comta,

    dada em lixboa a bj dias de Iunho El Rey o mamdou per dom martimho de castel bramco etc do seu comselho e vedor de sua fazenda, diogo vaasquez o fez de mil e bc xj

    dom martjnho

    3 Riscado: «que pesam».

  • 11

    A EVOLUÇÃO DA ASSISTÊNCIA AOS EXPOSTOS DURANTE O SÉCULO XIX NO DISTRITO DE LEIRIA

    Kevin Carreira Soares

    CHSC – Universidade de Coimbra

    Resumo

    O presente artigo tem como objetivo apresentar a evolução da assistência aos expostos em Leiria, durante o século XIX, tendo como estudo-caso o município de Porto de Mós. É conhecido que este fenómeno adquiriu contornos peculiares em Portugal. Deste modo, assume-se como objetivo trazer novos elementos para o seu conhecimento, a partir de um distrito menos explorado pela historiografia atual: Leiria

    Palavras-chave

    Expostos, Roda de Expostos, Assistência, Infância, Leiria, Porto de Mós.

    Abstract

    This article aims to analyse the evolution of foundlings' assistance in Leiria, in the nineteenth century, having Porto de Mós as a study-case. It is known that this phenomenon acquired peculiar characteristics in Portugal. It is objective to presente new elements concernig his knowledge, from a lesser-known district of the current historiography: Leiria.

    Keywords

    Children abandonment, Foundling wheel, Social assistance, Childhood, Leiria, Porto de Mós.

    Artigo recebido em: 25.11.2015 | Artigo aceite para publicação em: 17.02.2016

  • FRAGMENTA HISTORICA A evolução da assistência aos expostos durante o século XIX no distrito de Leiria

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    © Fragmenta Historica 3 (2015), (11-39). Reservados todos os direitos. ISSN 1647-6344

  • FRAGMENTA HISTORICA A evolução da assistência aos expostos durante o século XIX no distrito de Leiria

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    1 - Introdução4 A partir da fundação da Misericórdia de Lisboa, em 1498, estas instituições difundiram-se rapidamente e tenderam a concentrar um importante leque de práticas caritativas. A sua rápida disseminação integrou o processo de centralização e fortalecimento do poder régio que além de promover uma reorganização de todo o sistema assistencial, o colocou sob a sua direta jurisdição5. Era prerrogativa do rei autorizar a criação de novas Irmandades e aprovar os seus estatutos. Permaneceram sempre isentas da jurisdição eclesiástica, apesar da sua orientação espiritual e de admitirem clérigos como membros6.

    Apesar da ação centralizadora das Santas Casas e da sua rápida difusão, a assistência aos expostos seguiu uma orientação diferente, tendo sido igualmente durante o reinado de D. Manuel I (1495-1521) que melhor se definiram as responsabilidades das diversas instâncias envolvidas. De facto, nas Ordenações Manuelinas

    4 Este texto resulta do desenvolvimento de um trabalho de seminário iniciado na licenciatura e continuado no mestrado, na unidade curricular "Sociedades, Políticas e Religiões 2". Ambos os seminários foram orientados pela doutora Maria Antónia Lopes a quem agradeço as sugestões e comentários que fez nestas três ocasiões. Pude ainda beneficiar da leitura de Beatriz Rodrigues Cabral e Mónica Rodrigues Santos a quem agradeço igualmente. Um resultado preliminar e resumido foi apresentado por mim, em Évora, no encontro da Associação Portuguesa de História Económico Social, no dia 13 de novembro de 2015. Esse texto foi atualizado, reorientado e aprofundando para a versão final que aqui se apresenta. Devo o último agradecimento aos comentários dos dois revisores que contribuíram substancialmente para o melhoramento do texto final. 5 Ver Isabel dos Guimarães Sá e José Pedro Paiva (dir), Portugaliae Monumenta Misericordiarum. A Fundação das Misericórdias: o Reinado de D. Manuel I, Lisboa, União das Misericórdias Portuguesas, 2004, p. 13-16 e Laurinda Abreu, "Políticas de caridade e assistência no processo de construção do Estado Moderno: Alguns elementos sobre o caso português" in Las Relaciones Discretas entre las Monarquías Hispana y Portuguesa: Las Casas de las Reinas (siglos XV-XIX), (coord) José Martínez Millán e Mª Paula Marçal Lourenço, vol. II, Madrid, Polifemo, 2009, pp. 1451-1460. 6 Ver Maria Antónia Lopes e Isabel Drumond Braga, "The Portuguese Social Care System in the Modern Age: An Originality Case in Catholic Europe?", in Social Assistance and Solidarity in Europe from the 13th to the 18th

    ficou definido que todos os concelhos deviam dispor de mecanismos que permitissem o sustento de órfãos que não tivessem família conhecida que os pudesse amparar. Na ausência de um hospital ou albergaria que o garantisse, deviam ser criados à custa das rendas dos diferentes municípios, ficando estes autorizados a lançar fintas sempre que a necessidade o ditasse7.

    Com efeito, as Ordenações criaram uma "hierarquia de responsabilidades". Em primeiro lugar os pais, seguidos das mães e das famílias e caso nenhum destes tivesse condições para manter as crianças, deviam ser entregues a hospitais ou albergarias criados para o efeito e, na ausência destes, cabia às autoridades concelhias garantir a sua sobrevivência8. Foi com resistências e controvérsias que estes encargos foram sendo assumidos pelas câmaras municipais, tendo-se assistido contudo a sua gradual transferência, mesmo em lugares onde havia hospitais destinados a acolher expostos9.

    centuries, Florença, Fireze University Press, 2013, pp. 31-35, 48-49. 7 "Porem se alguuns orfaõs que nom forem de legitimo matrimonio forem filhos d'alguuns homens casados, ou de solteiros, em tal caso primeiramente seram constrangidos seus pays, que os criem; e nom tendo elles por onde os criar, se criem aacusta das mãys; e nom tendo huus nem outros por onde os criar, sejam requeridos seus parentes que os mandem criar; e nom o querendo fazer, ou sendo filhos de Religiosos, ou Frades, ou Freiras, ou de molheres casadas, por tal que as crianças nom mouram por minguoa de criaçam, os mandaram criar aacusta dos bens dos Ospitaes, ou Alberguarias, se os ouuer da Cidade, Vila, ou Luguar ordenados pera criaçam dos engeitados; e nom auendo hi taees Ospitaes ou Alberguarias, se criaram aacusta das rendas do Concelho; e nom tẽdo o Concelho rendas por onde se possam criar, se lançará finta por aquellas pessoas que nas fintas, e encarreguos do Concelho ham de paguar, aqual lançaram os Offiçiaes da Camara", cf. Ordenações Manuelinas, Lisboa, Fundação Colouste Gulbenkian, 1984, livro 1º, título LXVII, parágrafo 10. 8 Ver Isabel dos Guimarães Sá - "Child Abandonment in Portugal: legislation and institutional care", in Continuity and Change, nº 9, 1994, p. 76. 9 Como sucedeu com a Câmara de Lisboa chamada a custear esta assistência, em 1564, apesar de esta ter sido entregue ao cuidado do Hospital de Todos-os-Santos com rendas próprias para o efeito, em 1504, ver Laurinda Abreu, O poder e os pobres. As dinâmicas políticas e sociais da pobreza e da assistência em Portugal (Séculos XVI-XVIII), Lisboa, Gradiva, 2014, pp. 112-116.

  • Kevin Carreira Soares FRAGMENTA HISTORICA

    13

    Neste contexto, sempre que as Misericórdias assumiram a administração das Rodas, a responsabilidade de os sustentar continuou a ser dos concelhos10.

    As Ordenações Filipinas (1603) não promoveram quaisquer alterações significativas neste clausulado, com exceção da permissão para lançar fintas sem autorização régia, desde que a receita se destinasse aos enjeitados11.

    A nova reforma significativa operou-se durante o século das luzes. Por circular emanada do Intendente Geral da Polícia, Pina Manique, em 1783, foi ordenado que todas as vilas dispusessem de uma roda que devia ser localizada em lugar apropriado que garantisse o anonimato ao abandonador12. A diretiva surgiu no contexto das doutrinas de cariz populacionistas que ditavam que a riqueza dos Estados residia na abundância e robustez dos seus contingentes populacionais13, sendo essencial que se criassem condições para se

    10 Seguindo a proposta de Maria Antónia Lopes, adotou-se o termo "roda" para se fazer referência ao dispositivo cilíndrico onde eram depositadas as crianças ou ao edifício onde estava instalado esse mecanismo. Utilizou-se "Roda" quando se quis aludir à instituição de assistência que englobava, em princípio, a sede, a administração e o conjunto de amparados e amas, ver Maria Antónia Lopes, Protecção Social em Portugal na Idade Moderna. Guia de Estudo e de Investigação, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2010, p. 75. 11 Ver Ordenações Filipinas, Lisboa, Fundação Colouste Gulbenkian, 1985, livro 1º, título LXXXVIII, parágrafo 11. 12 No contexto dos países do sul da Europa, foi comum que as exposições decorressem de forma anónima. Como notou Isabel dos Guimarães Sá foram várias as consequências geradas por este sistema, entre as quais, a impossibilidade de controlar ou limitar o número de entradas e o relativo relaxamento dos pais perante a exposição, tendo como princípio seguro que poderiam reclamar as crianças mais tarde, sem qualquer consequência ou constrangimento. O sistema possibilitou também a aparecimento de várias formas de corrupção e fraude visando conhecer o trajeto dos expostos, a identidade das amas, falseando abandonos ou omitindo as mortes... Ver Isabel dos Guimarães Sá, "Circulation of children in eighteenth-century Portugal", in Abandonen Children, (ed.) Catherine Panter-Brick, Malcolm T. Smith, Cambridge, Cambridge University Press, 2000, pp. 27-31. A mesma autora observou que a aprovação generalizada e despenalizada do abandono (no âmbito da jurisprudência pelo menos) possível de verificar no século XVIII, foi o

    expor de forma livre e segura, combatendo assim a temida prática do infanticídio14.

    Deve registar-se que a circular não teve efeito pleno. Laurinda Abreu sustentou mesmo que o aviso de 1783 não foi, nem se pretendeu que fosse, dogmático na sua aplicação. É elucidativa uma carta enviada por Pina Manique, em 2 de agosto desse ano, ao provedor da Misericórdia de Moncorvo, na qual o intendente autorizou o envio de crianças de Pinho Velho, Jesulfe e Valdevez para Cortiços, onde já existia uma Roda, com o argumento de evitar a desnecessária multiplicação de despesas. Em 1800, um documento da Intendência Geral da Polícia fazia referência à falta de rodas em várias áreas do reino. Laurinda Abreu concluiu que, apesar da disciplina forte da ação de Pina Manique, este "estava ciente dos constrangimentos das comunidades", particularmente das mais pobres15.

    Após serem deixadas na Roda, as crianças deviam permanecer aí até serem distribuídas por amas

    resultado de vários debates que remontam aos séculos anteriores, ver Isabel dos Guimarães Sá, "Abandono de Crianças, Infanticídio e Aborto na Sociedade Portuguesa Tradicional através das Fontes Jurídicas", in Penélope, nº 8, 1992, pp. 86-89. 13 A forma como o legislador iniciou o texto é elucidativa a este respeito. Nela, pode ler-se: "Sendo o aumento da população um dos objectos mais interessantes e próprios de uma bem regulada polícia, por consistirem as forças e riquezas de um Estado na multidão dos habitantes...". Apud Sebastião Matos, Os expostos da Roda de Barcelos (1783-1835), Barcelos, Associação Cultural e Recreativa de Areias de Vila, 1995, pp. 253-255. 14 Parafraseando Laurinda Abreu: "Foi para travar o gigantesco desperdício social que significava a morte dos expostos, num país despovoado, que a Intendência Geral da Polícia emitiu o Aviso de 10 de Maio de 1783". Para a autora, foram dois os objetivos principais que motivaram a sua publicação. Em primeiro lugar, o receio do infanticídio generalizado nos locais onde não havia mecanismos que permitissem o acolhimento de abandonados e em segundo, a convicção de que os fatores económicos eram a principal motivação para o abandono. No entender do Intendente, o sigilo era a única forma de proteger a miséria dos filhos das famílias mais pobres e a vergonha do ato, ver Laurinda Abreu, Pina Manique. Um Reformador no Portugal das Luzes, Lisboa, Gradiva, 2013, pp. 245-268 (citação da p. 245). 15 Cf. Laurinda Abreu, Pina Manique. Um Reformador no Portugal das Luzes... p. 259.

  • FRAGMENTA HISTORICA A evolução da assistência aos expostos durante o século XIX no distrito de Leiria

    14

    externas, mantendo-se sob a tutela da instituição até aos 7 anos de idade, altura em que eram transferidas para a autoridade do juiz dos órfãos. Permaneciam ao cuidado deste oficial até que completassem as duas décadas de existência, altura em que se tornavam adultos emancipados e legítimos perante a lei16. Estes procedimentos mantiveram-se até à década de 1860, quando se iniciou verdadeiramente o processo de extinção destas instituições17.

    Com o advento do Liberalismo a assistência passou a considerar-se como uma obrigação pública e da direta responsabilidade do Estado. De forma geral, a nova ordem pautou por fazer cumprir mais eficazmente as disposições emanadas do centro político, ao mesmo tempo que promoveu maior fiscalização sobre as instituições18.

    Foi este o espírito do decreto de 1836, reforçado pela publicação do primeiro código administrativo, no qual Passos Manuel transferiu definitivamente a amparo aos enjeitados para a autoridade civil, retirando-a da alçada de quaisquer outras instituições (como as Misericórdias). Foi ainda ordenado que as despesas fossem geridas por juntas gerais que deviam definir a quantia a cobrar pelos administradores dos concelhos, ficando estes responsáveis também pelo governo das Rodas, com a fiscalização das autoridades do distrito19.

    Foi também neste século que se iniciou o aceso debate em torno da legitimidade desta

    16 Sobre a evolução do estatuto jurídico do exposto ver Isabel dos Guimarães Sá, "Abandono de Crianças, Infanticídio e Aborto na Sociedade Portuguesa Tradicional...", pp. 86-89 e Isabel dos Guimarães Sá, A Assistência aos Expostos no Porto. Aspectos Institucionais (1519-1838), Porto, Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1987, pp. 22-31. 17 Ver Maria Antónia Lopes e Isabel Drumond Braga - "The Portuguese Social Care System in the Modern Age: An Originality Case in Catholic Europe?"... pp. 40-41. 18 Ver Maria Antónia Lopes, Pobreza, Assistência e Controlo Social em Coimbra (1750-1850), vol. 1, Viseu, Palimage, 2000, p. 157. 19 Ver Maria Antónia Lopes, Pobreza, Assistência e Controlo Social em Coimbra (1750-1850)... vol. 1, p. 199. 20 Ver Nuno Osório da Nóbrega e Cortes, "O sistema liberal da Roda dos expostos. O exemplo da administração algarvia (1820-1883)", in Expostos e Ilegítimos na

    modalidade de assistência. Importava dar resposta a um número crescente de expostos e validar este apoio nos quadros mentais de então, tendo todo este processo culminado na publicação do decreto de 21 de novembro de 1867, que ordenou a substituição das Rodas por hospitais de entrada controlada, proibindo o abandono anónimo. É verdade que conheceu revogação no ano seguinte, porém, o processo de alteração de paradigmas evidente a partir de meados do século e a ausência de qualquer diretiva que impusesse o retorno das práticas anteriores, levou à sua persecução20.

    Partindo deste breve quadro, é objetivo do presente artigo traçar a evolução da assistência aos expostos no distrito de Leiria ao longo do século XIX. Optou-se por incluir o município de Porto de Mós como estudo-caso como forma de detetar o impacto de algumas diretivas e tornar visíveis algumas especificidades do território.

    É ainda escassa a produção historiográfica em torno do tema dos enjeitados para a região de Leiria21. Os poucos estudos que são conhecidos demonstraram insuficiências por serem demasiado limitados na abordagem, partirem de bibliografia desadequada ou inexistente ou ainda por promoverem leituras de estilo positivista que, apesar de úteis, não serviram para enquadrar o problema em contextos mais vastos e de longo alcance22.

    realidade ibérica do século XVI ao presente. Actas do III Congresso da ADEH, (coord.) Vicente Pérez Moreda, vol. 3, Porto, Afrontamento, 1996, pp. 127-130, Tiago Manuel Rodrigues Cubeiro, A assistência à infância em Torres Novas: estudo dos subsídios de lactação concedidos pela Câmara Municipal (1873-1910), Coimbra, Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2011, pp. 11-12 e Maria Antónia Lopes, "Os socorros Públicos em Portugal, primeiras manifestações de um Estado-Providência (séculos XVI-XIX)", in Estudos do Século XX, nº 13, (2013), pp. 275-276. 21 Ver Maria Antónia Lopes (com colaboração de João Lourenço Roque), "Pobreza, Assistência e Política Social em Portugal nos sécs. XIX e XX - Perspectivas Historiográficas", in A Cidade e o Campo. Colectânea de estudos, Coimbra, Centro de História da Sociedade e da Cultura, 2000, pp. 74-75. 22 São conhecidos os trabalhos de M. Emília da Rocha Pereira sobre os expostos em Leiria no séc. XIX, no qual a

  • Kevin Carreira Soares FRAGMENTA HISTORICA

    15

    As fontes utilizadas foram os seis regulamentos conhecidos (1846, 1862, 1864, 1868, 1872, 1878), documentação da junta geral (relatórios, orçamentos, atas e alguma correspondência) e do governo-civil (correspondência maioritariamente). Foram ainda consultados os livros de matrículas referentes a Porto de Mós, bem como vários livros de atas de vereação da câmara.

    O texto foi organizado em três partes distintas. Na primeira pretende apresentar-se o modo como o socorro aos expostos se processou no concelho de Porto de Mós antes da centralização imposta gradualmente a partir de 1836. Esta observação será enquadrada no contexto distrital sempre que as fontes o permitirem. Assente na análise dos regulamentos, a segunda parte terá como objetivo analisar a evolução do sistema de assistencial em todo o distrito. Na terceira parte, é intenção observar o impacto das diferentes alterações até à extinção destas instituições.

    2 - A assistência aos expostos do distrito no período anterior à criação dos círculos. O caso de Porto de Mós (1812-1848)

    autora analisou 29 casos recolhidos, entre 1862 e 1866 e outro de quatro autoras que abordaram 99 casos referentes ao concelho de Pombal, entre 1865 e 1867, que além de demasiado circunscritos, apresentam insuficiências na sustentação teórica das conclusões apontadas. Ver M. Emilia da Rocha Pereira, "O abandono de crianças: os expostos nos finais do séc. XIX em Leiria", in Jornadas de Antropologia e Etnologia Regional, Leiriam Escola Superior de Educação de Leiria, 1988, pp. 59-62 e Elisabete Bento, Ivone Elói, M. Edite Melicias e Manuela Fernandes, "Os expostos no concelho de Pombal: 1865-1867", in Jornadas de Antropologia e Etnologia Regional, Leiria, Escola Superior de Educação de Leiria, 1988, pp. 71-74. Ainda, Manuel Paula Maça publicou vários textos num semanário regional onde abordou a temática do abandono de crianças em Leiria. A recolha, conhecimento e apresentação de fontes deve ser assinalada como positiva, sendo ausente um enquadramento teórico sustentado para algumas das conclusões e dados apresentados, ver Manuel Paula Meça, "Da contracepção ao infanticídio e à exposição de crianças", in Jornal das Cortes. mensário regional, publicado ao longo do ano de 2007. [Consultado em 04/01/2015]. Disponível em http://jornaldascortes.no.sapo.pt/. Finalmente, João

    Ignora-se o momento em que os expostos de Porto de Mós começaram a receber assistência e o modo como era administrada. Em regiões próximas do município é conhecida a criação de Rodas em Ourém, por ordem da Intendência Geral da Polícia de 2 de agosto de 1800, e ainda Figueiró dos Vinhos, Pedrogão Grande e Alvaiázere, entre outras, em 20 de janeiro de 1803. Alguns anos antes, em janeiro de 1796, as populações de Alcanede requereram a instalação do mesmo dispositivo e, em 1798, partiu de Torres Novas um pedido idêntico23. Em Leiria, conhece-se um pedido do Provedor da Misericórdia da cidade, de 1698, para que verba para o sustento da Roda fosse reforçada através dos rendimentos do concelho e24, em 27 de abril de 1814, há notícia do aumento do ordenado das amas-de-leite e redução do período deste tipo de criação, de 18 para 12 meses, decidido pela vereação da cidade25. No caso da Batalha, território vizinho, há registo de um alvará de 20 de abril de 1671 que autorizou o lançamento de 10000 réis nas sisas para reforçar o orçamento da Roda26.

    No caso de Porto de Mós, os quatro livros de matrículas que existem cobrem todo o período entre 1812 e 1906. No primeiro encontram-se registos sistemáticos entre 1812 e 182727; no segundo, entre 1827 e 1848; no terceiro, entre

    Cabral, em obra dedicada à cidade de Leiria, apresentou um breve capítulo dedicado a esta temática no qual se podem conhecer algumas decisões da vereação local no que concerne à Roda da cidade, ver João Cabral, Anais do município de Leiria, vol. II, Leiria, Câmara Municipal de Leiria, 1993, 2ª edição, pp. 30-31. 23 Através da documentação da Intendência Geral da Polícia sabe-se que, em agosto de 1800, a Roda de Torres Novas ainda não havia sido instalada, bem como a de Alcanede em 1801, ver Laurinda Abreu, Pina Manique. Um Reformador no Portugal das Luzes... pp. 265-266. 24 Ver Maria de Fátima Reis, Os Expostos em Santarém. A Acção Social da Misericórdia (1691-1710), Lisboa, Cosmos, 2001. p. 86. 25 Ver Ana Paula Margarida, Leiria. História e morfologia urbana, Leiria, Câmara Municipal de Leiria, 1988, p. 71. Ignora-se o momento no qual se deu a transferência da administração da Roda da Misericórdia para a Câmara Municipal local. 26 Ver Maria de Fátima Reis, Os Expostos em Santarém. A Acção Social da Misericórdia (1691-1710)... p. 86. 27 À guarda do Arquivo Municipal de Porto de Mós [AMPM].

  • FRAGMENTA HISTORICA A evolução da assistência aos expostos durante o século XIX no distrito de Leiria

    16

    1848 e 185828; e no quarto, entre 1858 e 190629. Nos arquivos da Santa Casa da Misericórdia local não foi possível detetar indícios que sugerissem qualquer ligação daquela instituição com este tipo de assistência (livros de pagamento de amas, inventários de Roda, registos de fiscalizações a amas...), circunstância que sugere que a instituição se manteve distante desta prática assistencial30.

    Analisando a forma como o abandono se processava, deve observar-se que a inexistência de qualquer referência a uma roda no período em análise sugere que a recolha dos expostos seria um fenómeno recente. De facto, a maioria das crianças foi deixado à porta de algum morador durante a noite (ver tabela 1). O termo rodeira surge na documentação como a mulher responsável pela sua distribuição pelas amas e que, provavelmente, colaborava no pagamento dos ordenados.

    Tabela 1 - Locais de exposição e ofício do residente

    28 Estes dois livros encontram-se à guarda do Arquivo Municipal de Leiria [AML]. 29 Este livro integra o espólio do Museu Municipal de Porto de Mós [MMPM]. 30 É ainda muito reduzido o conhecimento das fontes disponíveis no arquivo da Misericórdia local. Recentemente, tive oportunidade de preparar um breve inventário do seu espólio no qual não encontrei quaisquer fontes que se relacionassem diretamente com este assunto. A este respeito, Isabel dos Guimarães Sá demonstrou que os concelhos de menor dimensão tenderam a manter a administração dos expostos sob a sua tutela direta (como Meda, Guimarães, Barcelos, e Braga) em oposição aos grandes centros, onde, com maior frequência, se delegou esta responsabilidade às Misericórdias, ver Isabel dos Guimarães Sá, "Abandono de crianças, ilegitimidade e concepções pré-nupciais em Portugal. Estudos recentes e perspectivas", in Expostos e Ilegítimos na realidade ibérica do século XVI ao presente. Actas do III Congresso da ADEH, (coord.) Vicente Pérez Moreda, vol. 3, Porto, Afrontamento, 1996, p. 39. Neste quadro seria expectável que, a existir Roda em Porto de Mós antes do século XIX, fosse sob a tutela direta do Município, facto que as fontes utilizadas não permitiram apurar. 31 Graça Maria de Abreu Arrimar Brás dos Santos, A Assistência da Santa Casa da Misericórdia de Tomar. Os expostos. 1799-1823, Tomar, Santa Casa da Misericórdia de Tomar, 2002, pp. 128-129.

    Deve registar-se que a prática de expor fora da roda foi comum mesmo em vilas que disponham deste mecanismo. Em Tomar, por exemplo, entre 1799 e 1823, dos 1092 enjeitados, 228 foram deixados em lugares públicos31. Em Trancoso, Leonor Diniz sustentou mesmo que a Roda tinha um "poder pouco atractivo". Nesse município, apenas 47,63% foram ali deixados enquanto 564 se depositaram em outros locais32. Tal como em Porto de Mós, estes estudos apontam para uma escolha propositada dos lugares onde se esperava que a criança recebesse um tratamento adequado. É, aliás, significativo que apenas uma pequena minoria de exposições denunciem um comportamento negligente por parte dos expositores33.

    Esta situação alterou-se a partir da publicação do primeiro regulamento distrital, de 1846, que ordenou a criação de um asilo de receção em todos os municípios que não fossem sede de círculo. No caso de Porto de Mós Leiria seria o destino para o qual se deviam fazer transportar

    32 Leonor do Céu Pinheiro da Rocha Diniz, A protecção à infância abandonada em tempos de conflito: os expostos em Trancoso (1803-1825), Coimbra, Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2011, pp. 56-58. Também em Barcelos, apesar da existência de Roda, entre 1784 e 1787, 25% dos expostos ficaram à porta de particulares, ver Sebastião Matos, Os expostos da Roda de Barcelos... pp. 128-130. Já no Porto, durante o século XVII, a maioria (50,3%) foi abandonado à porta das igrejas da cidade, ver Isabel dos Guimarães Sá, A assistência aos expostos no Porto... pp. 67-68. 33 Apenas cinco (em 272) conheceram abandono em outro lugar que não foi a porta de um particular. O primeiro, em 11 de dezembro de 1812, foi encontrado à porta da igreja do Juncal; o segundo, em 29 de maio de 1813, foi abandonado à porta de um palheiro na Boieira (Juncal), o terceiro, em 13 de maio de 1832, "ao banco do ferrador", o quarto, achado por uns pastores, em 21 de julho de 1839, num rego em lugar despovoado perto de uma zona de cultivo e o último junto a de um moinho de vento de uma viúva da Mendiga, em 12 de novembro de 1839, ver AMPM, Livro de Matrículas de Expostos de Porto de Mós, 1812-1827, fls. 7 e 9v e AML, Expostos - Porto de Mós 1822 - 1865, fls. 53, 115, 117. Note-se que apenas uma destas situações denuncia uma situação de clara negligência (21 de julho de 1839). A escolha dos outros lugares pode ter respondido à mesmo lógica de seleção de sítios onde se sabia que o exposto receberia acolhimento.

    Locais de Exposição

    Frequência Absoluta

    Frequência Relativa (%)

    À porta de um particular (sem função indicada)

    191 70,22%

    À porta da rodeira

    49 18,01%

    À porta do juiz de vintena

    10 3,68%

    À porta do moleiro

    1 0,37%

    À porta do padre da paróquia

    1 0,37%

    Outro local público

    2 0,74%

    Local ermo 3 1,10%

    Outros casos 6 2,21%

    Sem informação

    9 3,31%

    Total 272 100,00%

  • Kevin Carreira Soares FRAGMENTA HISTORICA

    17

    todos os novos expostos34. A primeira referência à existência de um asilo neste território data do ano 1851, durante o qual se passou a registar a data da entrada na Roda do concelho e posterior ingresso na da cidade, capital de círculo35. Para o período entre 1848 e 1851 não se fez qualquer menção ao lugar de abandono, o que sugere que a prática se manteve inalterada, não havendo espaço no novo tipo de registo imposto pela junta do distrito, a partir de 1848, para assinalar os nomes dos proprietários das habitações onde era deixada a criança, como até então acontecia.

    Outro dado relevante e insuficientemente estudado reside na concessão de subsídios a mães pobres pelas câmaras municipais. Deve recordar-se que este tipo de auxílios teve enquadramento jurídico apenas a partir da década de 60 do século XIX, a par da intimação de mulheres grávidas em situações irregulares (mormente solteiras e viúvas) e da posterior substituição de Rodas por hospícios de admissão controlada, tendo com objetivo a diminuição do elevado número de exposições36.

    Apesar disso, até à segunda metade do século XIX, sabe-se que foi frequente a sua atribuição

    34 Neste regulamento, o círculo era composto por Leiria (sede), Batalha e Porto de Mós, ver regulamento dos Expostos do Districto de Leiria, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1846, art. I. 35 Na larga maioria dos casos, a entrega em Leiria deu-se no dia seguinte à entrada no asilo de receção ou mesmo no próprio dia. 36 Ver Tiago Manuel Rodrigues Cubeiro, A assistência à infância em Torres Novas... pp. 9-13. 37 Maria Antónia Lopes realçou que, tendo em conta as conceções de caridade e esmola da época, dificilmente uma criança com o pai vivo poderia ser abrangido por este tipo de apoio que, perante a iminente falta de recursos, ficava obrigado a pedir esmola. Era a ausência de pai que gerava maior miséria e piedade. Contudo, a mesma autora destacou que não é adequado considerar que todos os não órfãos estavam automaticamente excluídos, uma vez que este tipo de apoios serviu maioritariamente para responder a uma carência real e transitória, a falta de leite materno na fase da vida das crianças em que ele era essencial, aliada à impossibilidade de contratar uma ama. Esta carência grave e o carácter curto do subsídio permitiu que tivessem uma maior abrangência, ver Maria Antónia Lopes, “O socorro a lactantes no quadro da assistência à infância em finais de Antigo Regime”, in A infância no universo assistencial da Península Ibérica (séculos XVI-XIX), (org.) Maria Marta Lobo de Araújo e Ferreira Fátima

    sobretudo pela parte das misericórdias, visando socorrer principalmente os recém-nascidos privados de alimento por doença ou ausência de mãe, aliada à impossibilidade de contratar uma ama. Assim, dificilmente um filho legítimo de um casal seria considerado como apto beneficiário, tendo em conta o número de outras situações que geravam maior piedade pública37. Através dos estudos existentes, é possível aferir que a forma de aplicação, o número e a proporção de abrangidos e a sua evolução foi bastante desigual em todo o território38.

    No Porto, por exemplo, durante o século XVIII, a Misericórdia local fez incluir esta despesa no montante que a autarquia da cidade tinha de suportar para o sustento dos expostos. Neste caso, o número de subsídios era muito reduzido em relação ao número de abandonos e deu-se, sobretudo, por enfermidade ou grave doença das mães39. Em Évora, o número de desamparados auxiliados pelo Misericórdia local abrangeu uma porção significativa em termos comparativos. Entre 1632 e 1713 foram identificadas 722 (107 identificadas como tinhosas) a par das 3700 entradas na Roda administrada pela mesma instituição40. Já no século XIX, em Tomar,

    Moura, Braga, Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho, 2008, p. 98. 38 Esta disparidade é clara no próprio clausulado dos Compromissos das Misericórdias. A título de exemplo, em Lisboa, no compromisso de 1577, concedia-se subsídio aos filhos cujas mães adoecessem ou estivessem impedidas de os criar, estando incapacidades de pagar a uma ama. O mesmo sucedia em Galizes no compromisso de 1668. Em oposição, são vários os compromissos que não preveem qualquer tipo de apoio, ver Maria Antónia Lopes, “O socorro a lactantes no quadro da assistência à infância em finais de Antigo Regime”... pp. 98-100. 39 Ver Isabel dos Guimarães Sá, A circulação de crianças na Europa do sul: o caso dos expostos do Porto no século XVIII, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1995, pp. 214-224 e Isabel dos Guimarães Sá, A Assistência aos expostos no Porto... pp. 105-109. 40 Ver Rute Pardal, "A criação dos filhos dos pobres e dos tinhosos: um aspecto esquecido da assistência da Misericórdia de Évora no século XVIII", in Noroeste. Revista de história, nº 3, vol. 2, 2007, p. 758. Significa que 16,33% da assistência à infância incidiu sobre crianças desamparadas, sendo esta uma proporção considerável se comparado com o Porto ou mesmo com Montemor-o-Novo. Nesta última Misericórdia, entre 1650-1700 não se atribuíram quaisquer subsídios a tinhosos e apenas sete a desamparados, ver Rute Pardal, "A assistência praticada

  • FRAGMENTA HISTORICA A evolução da assistência aos expostos durante o século XIX no distrito de Leiria

    18

    aconteceu algumas vezes serem admitidas crianças, tendo pais e mães conhecidas, com a conivência das autoridades, o que correspondia a um certo desvirtuamento das funções da Roda41.

    Tendo em conta as múltiplas formas de assistência suportadas pelas Misericórdias, não é estranho que algumas delas tenham atribuído apoios desta natureza. A mesma orientação caritativa não tinha de se esperar das câmaras municipais que se deviam reger em primeiro lugar pelas leis e decretos em vigor. Tendo sido apenas no segundo metade do século XIX que a atribuição de lactações foi ordenado pelas autoridades centrais, até esse momento, coube a cada autarquia decidir por si sobre os critérios de atribuição e o número de assistidos.

    Em Ponte de Lima, por exemplo, sabe-se que durante as primeiras décadas do século XIX a autarquia manteve um ritmo de alargamento no número de subsídios a filhos de pais pobres, a mães impossibilitadas de amamentar por doença ou falecimento ou ainda em situações de parto duplo. Segundo Teodoro Afonso da Fonseca, o simultâneo crescimento do número de expostos neste concelho levou a que esta medida fosse considerada ineficaz a sofresse uma posterior retração, até à década de 60 do século XIX42. Já em Barcelos, entre 1783 e 1805, importa assinalar que estes registos se fizeram nos mesmos livros de matrícula, acrescentando-se a identificação dos pais e tendo períodos de pagamento consideravelmente mais curtos43.

    Isto mesmo sucedeu em Porto de Mós onde todos registos de concessão de subsídios de

    pela Misericórdia de Montemor-o-Novo na segunda metade do século XVII através da análise dos seus movimentos económicos", in A Misericórdia de Montemor-o-Novo. História e Património, Montemor-o-Novo, Santa Casa da Misericórdia de Montemor-o-Novo, 2008, p. 92. 41 Ver Graça Maria de Abreu Arrimar Brás dos Santos, A Assistência da Santa Casa da Misericórdia de Tomar. Os expostos. 1799-1823... pp. 124-125. 42 Ver Teodoro Afonso da Fonte, O Abandono de Crianças em Ponte de Lima. (1625-1910), Ponte de Lima, Câmara Municipal de Ponte de Lima, 1996, pp. 107-117. 43 Após o ano de 1805, o autor refere que a atribuição deste tipo de subsídios se fez em livro próprio, ver Sebastião Matos, Os expostos da Roda de Barcelos (1783-1835)... p. 118.

    lactação foram elaborados no mesmo livro de matrícula dos expostos, identificando-se os progenitores e o acórdão da câmara responsável pela aprovação. Em algumas destas entradas fez-se ainda menção do motivo pelo qual se atribuía este apoio e identificou-se frequentemente a mãe como a ama44. Devido ao seu relativo desconhecimento no panorama nacional e por terem estado na origem de alguns atritos entre as instituições distritais e as autarquias, justifica-se que se dê alguma atenção à sua proporção e motivações, ainda que só se tenha os dados relativos a um dos municípios.

    Entre 1812 e 1848 foram concedidos 104 subsídios em Porto de Mós (ver gráfico 1). Analisando a sua evolução é evidente o movimento tendencialmente oposto entre número de subsídios e de novos abandonos, com poucas exceções. Entre 1826 e 1831, por exemplo, o número de lactados cresceu em relação aos anos antecedentes e, sintomaticamente, o número de enjeitados diminui, sendo mesmo menor em alguns anos.

    Tal como nos outros municípios, a maioria destes subsídios foi deferida pela pobreza dos pais (70%) (ver tabela 2), seguido de necessidade de amamentação em outra ama (20%) e do sustento de gémeos (7%). O prazo mais comum foi de um ano e seis meses (49%) (ver tabela 3) e de 1 ano (32%), havendo casos pontuais de maior ou menor longevidade por razões que não foram explicitadas, mas que provavelmente se relacionaram com a fragilidade das crianças45.

    44 A título de exemplo veja-se o seguinte registo de 3 de janeiro de 1812. Um recém-nascido, José, "filho de Jozé Lopes, e sua mulher Maria da Serra, da Vila de Alvados baptizado pelo Cura da dita Freguezia Manuel do Espírito Santo Barreiraas em 27 de Outubro de 1811 mandádo criar a sua Mae pela sua muita pobreza por despacho de tres de Janeiro de 1812". No registo da ama preencheu-se com a informação "Maria da Serra sua Mae". O subsídio foi pago até 31 de outubro de 1813 e conheceu baixa em 6 de novembro de 1813, cf. AMPM, Livro de Matrículas de Expostos de Porto de Mós, 1812-1827, fl. 3. 45 Nesta cronologia, era frequentemente recomendado que quando a criança era particularmente frágil, se estendesse a sua amamentação por mais tempo. A título de exemplo, José Pinheiro de Freitas Soares, médico do século XIX que defendeu a preferência do leite de vaca ao

  • Kevin Carreira Soares FRAGMENTA HISTORICA

    19

    Tabela 2 - Motivo apresentado para a concessão de subsídio

    Razão apresentada

    Frequência absoluta

    Frequência relativa (%)

    Amamentação noutra ama

    20 20%

    Gémeos 7 7%

    Subsídio à pobreza

    71 70%

    Desconhece-se 4 4%

    Total 102 100%

    leite de cabra nas grandes Rodas, escreveu "Convenho todavia que haverá Crianças tão debeis, e delicadas, que não deverão ser desmammadas, sem passar anno e meio, e mais; bem como muitas vezes ás já desmammadas, por hum ou dous annos, convem se torne a dar amas, como a unica Medicina, capaz de lhes salvar a vida", cf. José Pinheiro de Freitas Soares, Memoria sobre a preferencia

    Tabela 3 - Duração dos subsídios.

    Duração Frequência

    absoluta Frequência relativa (%)

    6 Meses 3 5%

    12 Meses 21 32%

    14 Meses 1 2%

    15 Meses 1 2%

    18 Meses 32 49%

    21 Meses 4 6%

    24 Meses 3 5%

    Total 65 100%

    Média de meses 16

    A maioria dos requerentes vivia em união matrimonial (37%) (ver tabela 4), seguido das mulheres solteiras (23%) e viúvas (13%) e homens viúvos (4%) com filhos a cargo.

    do leite de vaccas ao leite de cabras para o sustento das crianças principalmente nas grandes casas dos expostos; e sobre algumas outras materias, que dizem respeito a' criação delles. Lisboa, Typografia da Academia, 1812, p. 36.

    Gráfico 1 - Nº de expostos e subsidiados entre 1812 e 1848

  • FRAGMENTA HISTORICA A evolução da assistência aos expostos durante o século XIX no distrito de Leiria

    20

    Tabela 4 - Estado conjugal dos requerentes

    Estado conjugal dos(as)

    requerentes

    Frequência absoluta

    Frequência relativa (%)

    Casadas/os 34 37%

    Mulheres solteiras

    21 23%

    Mulheres viúvas 12 13%

    Homens viúvos 4 4%

    Desconhecido 21 23%

    Total 92 100%

    Para o caso da localidade em estudo, nem o arquivo local dispõe de documentação que permite aferir se a aplicação desta modalidade de assistência se verificou em séculos anteriores nem o estado atual da investigação sobre a Misericórdia local esclarece quaisquer dúvidas quanto a este assunto.

    Deve-se apontar-se que os subsídios atribuídos pelas autoridades concelhias parecem ter divergido bastante daqueles que eram aprovados pelas Misericórdias. O facto de as mães serem apontadas como amas na maioria dos registos indica que estavam aptas para amamentar e que o fizeram. Não foi a privação de alimento numa situação de extrema carência financeira que moveu a maioria dos subsídios atribuídos pela câmara mas sim a pobreza na maioria muitos dos casos, sendo que a maioria das crianças pode ficar à guarda das suas famílias. Fica por esclarecer o momento em que se principiaram

    46 João Lourenço Roque sustentou a existência de tratamento bastante diferenciado entre o que era concedido aos filhos biológicos, em relação àquele que era aos expostos. Através de vários testemunhos, escreveu "num mesmo lar a divisória original filho da casa/expostos equivaleria frequentemente a uma acentuada desigualdade dicotómica na natureza e conteúdo do amor e no trato dispensado a uns e outros", apontando os atrasos nos pagamentos das amas um dos fatores mais relevantes para a sua conduta. Não obstante, sustentou também haver relatos de várias amas que desempenhavam o seu ofício de modo exemplar. Ver João Lourenço Roque, Classes Populares no Distrito de Coimbra no século XIX (1830-1870), vol. I, tomo II, Coimbra, Dissertação de Doutoramento apresentada à Faculdade de

    por atribuir estes apoios, bem como a proporção de concelhos que o faziam e qual o seu impacto na evolução do abandono. Apenas o aumento do número de estudos locais que incidam sobre este tema poderá responder a estas questões com segurança.

    Outro tópico que tem merecido algum debate prende-se com o tipo de tratamento concedido pelas amas externas aos enjeitados, assumindo alguns autores que este seria particularmente negligente, em relação ao comportamento face aos filhos biológicos46. Para a sustentação desta tese contribuíram inúmeras denúncias e fraudes que as fontes permitem conhecer47, bem como as elevadas taxas de mortalidade, mesmo tendo em conta as diversas situações de risco a que um exposto era sujeito desde o momento do abandono (frio prolongado, existência de largos períodos sem alimentação durante os primeiros dias de vida, o transporte até à Roda e até à casa da ama, etc.)48.

    Também é verdade que se sabe que o salário das amas foi, muitas vezes, essencial para a economia familiar das classes populares. Contudo, como notou Laurinda Abreu, esta importância parece ter sido menor em Portugal do que nos restantes países Europeus, devido aos frequentes atrasos nos pagamentos salariais que resultaram na recusa de muitas mulheres em assumirem estas funções. Nesta circunstância, as crianças foram muitas vezes entregues a mulheres em deplorável condição socioeconómica, em alguns casos com problemas físicos ou mentais ou mesmo delinquentes49.

    Letras da Universidade de Coimbra, 1982, pp. 727-728 (citação da p. 727). 47 Eram várias as fraudes comuns. Entre estas: a recolha de expostos e posterior depósito em outras Rodas com vista a receber vários ordenados pelas mesmas crianças, a omissão de morte, até crimes que atentavam contra o bem-estar e a vida, ver Laurinda Abreu, "The Évora foundlings between the 16th and the 19th century: The Portuguese public welfare system under analysis", in Dynamis, nº 23, 2003, p. 48. 48 Ver Maria Antónia Lopes, "Crianças e jovens em risco nos séculos XVIII e XIX. O caso português no contexto europeu", in Revista de História da Sociedade e da Cultura, nº 2, 2002, pp. 155-184. 49 Ver Laurinda Abreu, "The Évora foundlings between the 16th and the 19th century..." pp. 48-49.

  • Kevin Carreira Soares FRAGMENTA HISTORICA

    21

    A concessão dos subsídios camarários apontados permite comparar o sucesso da criação entre os que ficaram com os pais e os que foram entregues a outras amas (ver gráfico 2), no universo de todos os beneficiados. Mau grado o número reduzido de dados, a comparação dos resultados afirma-se reveladora. 75%. dos subsidiados que permaneceram com as mães sobreviveram, por oposição a 32% dos que foram entregues a amas externas. Igualmente, morreram 12% dos que ficaram com as mães em oposição aos 42% entre os que foram entregues

    a amas para amamentação. Em comparação com os expostos durante este período, 49% morreram e 42% conseguiram terminar a sua criação50, confirmando-se que as crianças que eram criadas fora do seu contexto familiar apresentavam uma menor probabilidade de sobreviverem51.

    Importa regressar agora à escala distrital. A centralização imposta pela lei de 1836 teve como primeiro obstáculo a diversidade de procedimentos de cada município. Tal como em Faro, a ação da junta geral durante a primeira

    50 Veja-se que no caso em estudo, entre os expostos que morreram durante a criação, 46% vieram a falecer durante os primeiros 12 meses de vida e 20% durante o segundo ano de vida. Apenas 34% das mortes ocorreram entre o segundo e o sétimo ano de criação. 51 Sem apontar números, Maria de Fátima Reis apontou a mesma diferença para Santarém, ver Maria de Fátima Reis, Os Expostos em Santarém. A Acção Social da Misericórdia (1691-1710)... pp. 123-124.

    década de funcionamento foi muito reduzida devido à necessidade de conhecer o modo de agir das diferentes circunscrições e normalizar formas de atuação52. Foi neste contexto que as queixas e repreensões de falta de rigor ou de zelo, desvios à norma, etc., foram emitidas.

    Uma das primeiras e mais significativas ações das autoridades distritais assentou no combate às lactações que a documentação permite saber que não eram exclusivas de Porto de Mós. A este respeito, em 23 de Julho de 1839, a junta geral enviou uma carta ao governador-civil solicitando que fossem tomadas medidas que pusessem fim "a abusica pratica de se admittirem e acumulárem ao Numero dos Expostos muitos filhos de pais legitimamente cazados, quando estes por hum simples requerimento e atestaçam do parocho provão a sua pobreza e dahi rezulta mandar-selhes abrir assento por Acordão da Camara ficando logo habilitados aos seus vencimentos de Leite ou Seco como se fossem Expostos", pedido que justificou pela despesa que causava e pela falta de legislação que o permitisse, considerando-o "intolerável e insubsistente" e solicitando a intervenção do governador para que as "Camaras não exorbitem de suas atribuições"53.

    A pobreza efetiva de muitos requerentes, aliada a situações de necessidade como a doença ou o nascimento de gémeos, contrapunha-se à falta de legitimidade normativa para atribuir quaisquer subsídios. Foi assim que, em 22 de outubro de 1842, se apresentou um requerimento de Ana Joaquina do Pedrogão Grande, com ofício da mesma câmara municipal, no qual solicitou "lhe alimentasse pelo Cofre dos expostos hum dos seus dois filhos gemeos mandando o criar por via que ella não podia sustentar os dois; nem tinham meios de pagar a quem"54. Pedido parecer à comissão de expostos, o assunto voltou a ser debatido na sessão de 25

    52 Ver Nuno Osório da Nóbrega e Cortes, "O sistema liberal da Roda dos expostos..." p. 132. 53 Cf. Arquivo Distrital de Leiria [ADLra], Fiscalização e Fiscalidade. Expostos do Distrito de Leiria 1835 – 1877. Proposta do presidente da Janta Geral para se por fim aos subsídios abusivos, sem numeração. 54 Cf. ADLra, Junta Geral do Distrito, atas e Relatórios, caixa 1, atas da junta geral do distrito de Leiria 1842-1854, fls. 11-11v.

    Gráfico 2 - Destino dos subsidiados entre os que permaneceram com a mãe e os que foram para

    amas provisórias

  • FRAGMENTA HISTORICA A evolução da assistência aos expostos durante o século XIX no distrito de Leiria

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    de outubro, tendo-se esclarecido que Ana Joaquina "viuva de Manuel Bento [...] não tem com que alimentar-se asi, e muito menos para sustentar seus filhos, tendo ultimamente duas creanças de hum parto, que de certo pareceraõ á mingua". É de registar a informação de que se levantou um "vivo e renhido debate a este respeito" provocado, "não pella verdade das suas razoens, mas pella ellegalidade e icompetencia delle [do requerimento]". O pedido acabou retirado da discussão e, portanto, não aprovado, tendo-se comprometido o governador-civil a apresentar uma proposta a ser discutida e que se aplicasse a todo o distrito55. Essa discussão ocorreu no dia seguinte, tendo sido colocada à consideração dos membros da junta se era legítimo conceder subsídios a todas as mães que tivessem parto duplo e vivessem da absoluta indigência. A proposta acabou aprovada por maioria apesar da falta de enquadramento legal56. Em 1842, o distrito de Leiria autorizou o apoio a crianças, quando nascidas em parto duplo, que vivessem em absoluta pobreza. Deve notar-se que esta medida, na forma como conheceu esta primeira aprovação, teve grande proximidade com os requisitos que as Misericórdias adotavam nos séculos anteriores, uma vez que se recusou qualquer apoio a famílias pobres no geral.

    Em 22 de outubro de 1844, desta vez por intermédio do município de Pombal, foi requerido que fossem aprovadas "certas quantias com gemeos filhos de pais pobres, e filhos de Pais indigentes"57. Pedido parecer à comissão de contas, o assunto conheceu resolução quatro dias mais tarde, numa votação fragmentada em três resoluções distintas. A

    55 Cf. ADLra, Junta Geral do Distrito, atas e Relatórios, caixa 1, atas da junta geral do distrito de Leiria 1842-1854, fls. 12v-13v. 56 Ver ADLra, Junta Geral do Distrito, atas e Relatórios, caixa 1, atas da junta geral do distrito de Leiria 1842-1854, fl. 17. 57 Cf. ADLra, Junta Geral do Distrito, atas e Relatórios, caixa 1, atas da junta geral do distrito de Leiria 1842-1854, fl. 41v. (sublinhado meu). 58 Ver ADLra, Junta Geral do Distrito, atas e Relatórios, caixa 1, atas da junta geral do distrito de Leiria 1842-1854, fls. 45-46. Apesar da recusa da Junta Geral em assumir este tipo de encargos por considerar que não tinham qualquer enquadramento legal, em 18 de novembro de 1848, uma

    primeira deixava à consideração se era legítimo pagar ordenados referente a meses anteriores à entrada na Roda; a segunda, sobre se a junta devia pagar as despesas feitas com socorros a filhos de pais indigentes; a terceira, se era legítimo pagar as despesas relativas aos subsídios atribuídos a gémeos, filhos de pais indigentes. A primeira e segunda proposta foram recusadas e a terceira recebeu aprovação na sequência da decisão tomada dois anos antes58.

    O que as investigações têm demonstrado é que o processo que levou à oficialização dos subsídios de lactação foi objeto de intensas discussões que antecederam a sua aprovação, sendo notória a oposição entre as leis e decretos existentes e o que era prática nos concelhos. Deste modo, este foi um processo gradual, iniciado décadas antes, durante o qual as Juntas Gerais alargaram gradualmente os critérios de seleção para os possíveis apoiados. Em Vila do Conde, por exemplo, a aprovação dos subsídios de lactação a filhos de mulheres casadas pobres aconteceu logo no ano de 1845, por expensas do governo-civil59.

    No caso de Leiria, o hiato existente nas atas da Junta Geral entre 1854 e 1883 dificulta o acompanhamento da discussão em torno deste tema. Os primeiros indícios de um novo alargamento dos critérios da sua atribuição datam de 14 de março de 1855, dia em que se publicou uma notícia no jornal O Leiriense, na qual se referiu a recentemente aprovação da permissão para subsidiar filhos ilegítimos de pais indigente. Segundo o autor texto, a exposição tornava-se inevitável em situações de extrema pobreza, conseguindo-se assim um duplo ganho:

    devassa feita às contas do Concelho de Pombal encontraram-se pagamentos a cinco filhos legítimos. Na sessão deste dia lamentou-se ainda a falta de uniformidade das contas dos municípios no que concernia ao apoio de crianças abandonadas e recusou-se a aprovação das contas do município de Porto de Mós, por não terem sido apresentados alguns documentos considerados indispensáveis, em virtude de algumas ordens dadas pelo governador-civil que a câmara não cumpriu, ver idem fls. 62-64. 59 Ver Adelina Piloto, Os Expostos da Roda de Vila do Conde 1835/1854, Vila do Conde, Câmara Municipal de Vila do Conde, 1998, pp. 57-60.

  • Kevin Carreira Soares FRAGMENTA HISTORICA

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    a nível moral (as crianças podiam continuar nos cuidados da mãe) e económico (o período variava entre um ou dois anos em oposição aos sete da criação na Roda). Esta medida foi adotada a par da intimação de mulheres solteiras com vista a obrigá-las a não abandonar os seus filhos, sendo o seu conteúdo omisso em relação ao apoio a filhos de mulheres casadas60.

    No plano nacional, a aprovação dos subsídios de lactação deu-se em 17 de julho de 1862, quando uma comissão criada nesse ano com o objetivo de estudar o tema do número elevado de expostos, emitiu um parecer no qual se apontou três medidas essenciais: a substituição de rodas por hospícios de admissão controlada, a intimação de mulheres grávidas não recatadas e a atribuição de subsídios de lactação a filhos de pais ou mães indigentes61. Em consonância com estas diretivas a Junta Geral do distrito de Leiria publicou um novo regulamento no mesmo ano, no qual inscreveu a possibilidade de auxiliar financeiramente as mães que "por effeito de doença, grave, absoluta carencia de meios, ou outros quaesquer motivos dignos de particular attenção" se considerassem em estado de impossibilidade absoluta ou temporária para criar ou amamentar os seus filhos, bem como às casadas ou viúvas que se encontrassem em situação de absoluta pobreza. O deferimento dos requerimentos era da competência dos governadores-civis62.

    Em Porto de Mós, os últimos registos de lactação datam de 1846 (prolongando-se o seu pagamento até 1848), sendo notório que as autoridades concelhias se mostraram relutantes em continuar a atribuir estes apoios. Estas resistências eram motivadas, provavelmente, pelas grandes dificuldades de tesouraria e a falta

    60 Cf. O Leiriense, nº 73 de 14 de Março de 1855. A título de exemplo, em 25 de Abril de 1864, o governador-civil escreveu ao município de Porto de Mós autorizando o pagamento de 800 réis a Francisca Maria, mulher solteira da Ribeira de Cima (freguesia de S. João Batista), por um ano. O mesmo subsídio foi atribuído a António Joaquim, casado, para o auxílio de um dos filhos gémeos que a sua esposa tinha dado à luz no dia 23 de Novembro anterior, ver ADLra, Licenciamento e Fiscalização. Câmaras Municipais. Registo de Correspondência/Expostos 1864-1866, nº. 97.

    de concordância das autoridades distritais. A título de exemplo, em 7 de agosto de 1849, a autarquia indeferiu o pedido de Alexandre Vieira para o pagamento da criação de leite de um filho devido a "estar em desarmonia com o regulamento de Expostos"63.

    Deve fazer-se menção a uma carta do governador-civil à vereação da câmara portomosense, de 20 de maio de 1865, numa altura em que os subsídios de lactação tinham sido aprovados no contexto nacional desde 1862. Nesta missiva, pode ler-se: "No dia 18 do corrente foi exposto na Roda d'este Circulo um filho de Mathilde de Jezus, solteira, d'esse Concelho, cuja exposição Vossa Excelencia authorisou por meio de uma guia que para esse fim athé passou à conductora Alexandrina Elvas". Prosseguiu o governador "este facto na realidade estranho, é devido provavelmente ás boas intenções de Vossa Excelência da Camara a que preside, mas não devia por isso ser contrario às ordens, regulamentos e intrucções d'este governo-civil. Nas Rodas só podem admittir-se as ciranças filhas de pais incognitos, e nunca as que tiverem pais conhecidos, como acaba de acontecer". Reconhecendo a legitimidade em atribuir subsídios de lactação a esta criança devido à incapacidade da mãe para amamentar, o governador-civil terminou explicando que o autarca de Porto de Mós devia ter mandado a mãe apresentar o devido requerimento e ordenou que a mesma Matilde de Jesus fosse intimada a ir buscar a criança à secretaria da câmara municipal de Leiria64.

    Partindo desta carta, pode questionar-se se terá sido prática da vereação portomosense fazer entregar as crianças como enjeitados, com vista à sua criação pela Roda do círculo, perante a

    61 Para um acompanhamento dos trabalhos desta comissão, ver Nuno Osório Cortes, O abandono de crianças no Algarve. O caso dos expostos de Loulé. (1820-1884), Porto, Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1991, pp. 21-42. 62 Ver Regulamento dos Expostos do Districto de Leiria. Leiria, Typographia Leiriense, 1862, cap. V art. 20º e 21º. 63 Cf. AMPM, Atas de vereação da Câmara Municipal de Porto de Mós 1848-1853, fl. 24. 64 Cf. ADLra, Licenciamento e Fiscalização. Câmaras Municipais. Registo de Correspondência/Expostos 1864-1866, nº. 509.

  • FRAGMENTA HISTORICA A evolução da assistência aos expostos durante o século XIX no distrito de Leiria

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    incapacidade da tesouraria municipal em assumir quaisquer encargos que excedessem o imposto anual já cobrado. Depois do que se expôs parece evidente que não e que esta não terá sido prática exclusiva deste município, sendo esta uma forma de contornar o rigor normativo que as autoridades distritais procuraram impor. Os casos conhecidos sugerem que estas duas formas de assistência - expostos/lactadas - à escala local, tinham uma proximidade significativa.

    3 - A concentração da resposta institucional (1848-1872)

    Em 11 de Março de 1846 foi aprovado o primeiro regulamento para administração dos expostos do distrito de Leiria (ver tabela 5 e mapa 1). Como foi prática em vários outros65, o território foi dividido em círculos que deviam funcionar em estreita colaboração. No centro de cada um deles previa-se a existência de uma Roda para onde todas crianças se deviam encaminhar e registar para serem matriculadas e posteriormente entregues a amas externas. Nos municípios que não eram sede de círculo, devia existir um asilo de receção que servia apenas para as receber sendo, no próprio dia ou no dia seguinte normalmente, encaminhadas para a Roda do círculo ao qual pertenciam, ficando o transporte a cargo de amas condutoras assalariadas que deviam levar uma guia assinada pelas autoridades concelhias, com a hora e local do abandono66.

    Tabela 5 - Organização administrativa das Rodas de expostos pelo regulamente de 1846

    65 Em Coimbra, por exemplo, o processo de centralização a criação das rodas de transição iniciou-se em 1843. As rodas de transição acabaram por ser extintas no ano seguinte e instituídas novamente em 1850, ano em que o distrito passou a contar com quatro rodas fixas, que correspondiam a quatro círculos, e duas de transição. Sobre a evolução da administração dos expostos em Coimbra, ver João Lourenço Roque, Classes Populares no Distrito de Coimbra no século XIX (1830-1870)... vol. I, tomo II, pp. 709-724. 66 Ver Regulamento dos Expostos do Districto de Leiria, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1846. As condutoras

    Sedes de círculo

    Municípios com asilo de receção

    Alcobaça Pederneira Caldas da

    Rainha S. Martinho

    Óbidos

    Figueiró dos Vinhos

    Alvaiázere Chão do Couce

    Maçãs de D. Maria Pedrogão Grande

    Leiria Batalha

    Porto de Mós

    Pombal Ansião Louriçal

    Mapa 1 - Organização administrativa das Rodas

    de expostos pelo regulamento de 1846.

    O regulamento fez criar cinco círculos. O primeiro, com sede em Figueiró dos Vinhos, incluía os concelhos de Pedrogão Grande67,

    recebiam 120 réis por légua percorrida (ida e volta) (art. 16). Note-se que, para o efeito, em sessão de 19 de junho de 1848, após apresentação de um ofício do governador-civil para que se colocasse em prática o novo regulamento, foi escolhida "Thereza de Jezus desta villa para os conduzir [os expostos] com a compentente guia à Roda da Capital do Cituclo, e bem assim nomeavão a mesma Rodeira dos Expostos". Cf. AMPM, Atas de vereação da Câmara Municipal de Porto de Mós 1848-1853, fl. 3. 67 O concelho de Castanheira de Pera foi criado no século XX. Na cronologia em estudo integrava o território de Pedrogão Grande.

  • Kevin Carreira Soares FRAGMENTA HISTORICA

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    Maçãs de D. Maria68, Chão do Couce69 e Alvaiázere. O segundo, com sede em Pombal, incluía os municípios de Ansião, e Louriçal70. O terceiro círculo, com sede em Leiria71, tinha anexo a Batalha e de Porto de Mós. O quarto círculo, com sede em Alcobaça, integrava também a Pederneira72. Finalmente, o círculo das Caldas da Rainha a que pertencia também S. Martinho73 e Óbidos74.

    As convulsões políticas e as sucessivas reformas postas em prática no Portugal de Oitocentos conduziram à necessidade de atualizar o regulamento em conformidade com as novas circunscrições territoriais. Foi esta a característica maior do regulamento de 1862 (ver tabela 6 e mapa 2). Os concelhos de S. Martinho, Chão do Couce e Maçãs de D. Maria, extintos em 1855, passaram a integrar Alcobaça, Figueiró dos Vinhos e Ansião respetivamente75. Louriçal passou a integrar o território de Pombal no mesmo ano e, em 1836, extinguiu-se o município da Atouguia da Baleia, anexado ao de Peniche que viu alargado o seu território e constituiu, no novo quadro administrativo, um círculo isolado e integrado no distrito de Leiria.

    Neste ano de 1862, manteve-se o salário das amas (1200 réis para o primeiro ano e 800 réis para os anos seguintes), transferiu-se a

    68 Extinto em 1855. Correspondia, atualmente, a parte do território a nordeste do concelho de Alvaiázere. 69 Extinto em 1855. Correspondia, atualmente, a parte do território a sudeste do concelho de Ansião. 70 Extinto em 1855. Correspondia, atualmente, a parte do território a este do concelho de Pombal. 71 Marinha Grande foi concelho entre 1836 e 1838, tendo sido restabelecido em 1917. Neste contexto, o território manteve-se integrado no município de Leiria. 72 O território do município da Pederneira correspondia sensivelmente ao que atualmente se designa de Nazaré. Em 1855 foi extinto, tendo integrado o território do concelho de Alcobaça. Em 21 de junho de 1898 foi restaurado sob a mesma designação e na sequência da importância crescente dos aglomeradores populacionais próximos do mar, em contraponto com a depressão da população na Pederneira (atual freguesia), recebeu a designação de concelho da Nazaré em 21 de dezembro de 1912, ver "Nazaré", in Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, Lisboa, Rio de Janeiro, editorial enciclopédia, [s.a.], vol. XVIII, pp. 506-511, "Pederneira" in Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira. Lisboa, Rio de Janeiro, editorial enciclopédia, [s.a.], vol. XX, p. 744 e João António Godinho Granada, Nazareth. Pederneira Sítio

    responsabilidade de administração económica e governo corrente das rodas e asilos, anteriormente sob a alçada das autoridades concelhias, diretamente para as rodeiras e intensificou-se o controlo sobre a forma de registo e fiscalização dos expostos e ainda sobre o pagamento das amas e forma de cobrança do imposto pelos diversos municípios, com vista à sua harmonização em todo o distrito.

    Praia. Para a história da Terra e da Gente, Nazaré, Livraria Suzy de Abílio dos Santos Figueira, 1996, pp. 27-50. 73 Extinto em 1855. Correspondia, atualmente, a parte do território a sudoeste do concelho de Alcobaça. 74 Note-se que para as representações em mapa se optou por partir de um mapa administrativo atual. A escolha deveu-se à dificuldade em representar visualmente os diversos círculos e municípios em mapas da época que, apesar de mais rigorosos, tornavam menos eficaz a sua leitura. Ainda, as múltiplas alterações administrativas do território impossibilitavam que se seguisse um mapa apenas e invalidavam a possibilidade de demonstrar a evolução de forma tão clara quanto se pretendia. Deste modo, retenha-se que os limites não correspondem aos da cronologia em estudo e que as imagens servem apenas de auxílio às informações contidas nas tabelas. O mapa de base foi retirado da página do Instituto Geográfico Português. [Consultado em 24/09/2015]. Disponível em: http://www.dgterritorio.pt/cartografia_e_geodesia/cartografia/carta_administrativa_oficial_de_portugal__caop_/caop_em_vigor/. 75 Chão do Couce foi integrado no município de Alvaiázere, apenas no final do século XIX. Neste contexto, passou a integrar Figueiró dos Vinhos.

  • FRAGMENTA HISTORICA A evolução da assistência aos expostos durante o século XIX no distrito de Leiria

    26

    Tabela 6 - Organização administrativa das Rodas de expostos pelo regulamente de 1862

    Sedes de círculo

    Municípios com asilo de receção

    Alcobaça Pederneira Caldas da

    Rainha Óbidos

    Figueiró dos Vinhos

    Alvaiázere Pedrogão Grande

    Leiria Batalha

    Porto de Mós Peniche Pombal Ansião

    Mapa 2 - Organização administrativa das Rodas de expostos pelo regulamente de 1862.

    A verdadeira inovação deste regulamento residiu na permissão para concessão de subsídios a mulheres casadas ou viúvas e na atribuição de prémios a "todas as amas do Circulo que mais se distinguirem no esmero e bom tractamento dos expostos, quer seja quanto á sua alimentação, estado d'aceio, e de saude". Estas gratificações

    76 Cf. Regulamento dos Expostos do Districto de Leiria. Leiria, Typographia Leiriense, 1862, cap. VII, art. 32. 77 Ver Regulamento de administração dos expostos do districto de Leiria, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, [1864], art. 1º. 78 Os primeiros registos de intimação que conheço no distrito de Leiria recuam ao ano de 1856. Entre este ano e 1860 foram intimadas 228 mulheres (8 em Porto de Mós). Agradeço à colega Leila Matos pela disponibilização do

    correspondiam a dois meses de salário e a um vestuário para a criança, cujo custo não devia exceder 1200 réis, devendo a seleção ser feita à sorte, caso houvesse mais do que uma possível vencedora76.

    O regulamento seguinte, aprovado em 1864 (ver tabela 7 e mapa 3), suprimiu, logo no seu artigo 1º, as Rodas de Pombal, Alcobaça e Peniche, e todos os asilos de receção77. Nesta conjuntura, os apoios aos filhos de pais pobres e a intimação de mulheres começavam a surtir algum efeito78, ao mesmo tempo que o elevado endividamento de vários municípios obrigava a que se tomassem medidas para reduzir o número de expostos através da redução do número de estabelecimentos e a eliminação dos prémios que a documentação não permite aferir se chegaram a ser atribuídos.

    O fim dos asilos de receção colocava o expositor perante duas possibilidades: ou recorria à sede do círculo para aí depositar a criança ou abandonava-a em qualquer lugar público, fincado o administrador do concelho encarregue de a enviar para a Roda por algum "portador" pago para o efeito79. Os regulamentos seguintes mantiveram esta organização, notando-se uma evolução no sentido da progressiva concentração de toda a administração, nas autoridades distritais.

    trabalho escrito de seminário que fez a respeito desta matéria. Ver Leila Cristiana Silva Matos, Mulheres Grávidas Intimadas no Distrito de Leiria (1856-1860), Coimbra, trabalho de seminário, 2013, p. 23. 79 O pagamento previsto era de 100 réis por cada cinco quilómetros, ver Regulamento de administração dos expostos do districto de Leiria, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, [1864], art. 5º.

  • Kevin Carreira Soares FRAGMENTA HISTORICA

    27

    Tabela 7 - Organização administrativa das Rodas de expostos pelo regulamente de 1864

    Rodas Municípios integrantes do

    círculo

    Caldas da Rainha

    Alcobaça Óbidos Peniche

    Figueiró dos Vinhos

    Alvaiázere Ansião

    Pedrogão Grande

    Leiria Batalha Pombal

    Porto de Mós

    Mapa 3 - Organização administrativa das Rodas de expostos pelo regulamente de 1864.

    O regulamento de 1868, em conformidade com o decreto que ordenou a extinção das rodas no ano anterior, procurou por fim à exposição anónima tendo determinado que apenas se poderiam admitir filhos ilegítimos e menores de sete anos

    80 Os filhos de mães que por doença não pudessem amamentar e os gémeos que fossem entregues a outras amas deviam ser devolvidos à mãe findo o primeiro ano de criação, ver Ver Regulamento dos expostos do Districto de Leiria, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1868, art. 7º. 81 Ver Regulamento dos expostos do Districto de Leiria, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1868, art. 4º. 82 Deve registar-se que se estabeleceu novamente uma "hierarquia de responsabiliade". Em primeiro lugar os pais, depois os familiares e só em caso de ausência deste, a assistência pública, de forma bastante semelhante ao que

    que nascessem de parto duplo, em caso de doença da mãe, fossem filhos de pessoas recatadas e honestas que recorressem à exposição para preservar a sua dignidade e da família a que pertenciam ou ainda, se a pessoa que entrega-se a criança aos cuidados da Roda depositasse a quantia de 9$600 réis e as despesas de criação por cada trimestre (ou entregasse logo 67$200 réis80). Admitiam-se ainda os órfãos e os filhos de condenados a prisão ou degredo (durante o tempo da pena) caso não houvesse familiares a quem os entregar ou aqueles que fossem abandonados em algum lugar, ignorando-se a sua filiação81.

    Em 1872 fez-se emitir novo regulamento que eliminou a possibilidade de expor em caso de parto duplo e reforçou-se a obrigação a que os filhos de pais pobres fossem entregues a familiares, sempre que estes detivessem recursos para os sustentar82. O auxílio a gémeos ficou consagrado no capítulo sobre o "auxílio a mães indigentes"83, verificando-se ainda que o apoio aos enjeitados, como entendido no início da Centúria, ganhou um significado mais abrangente em estreita associação com o amparo a toda a infância desvalida84.

    No último regulamento considerado, publicado em 1878, surgiu a regulamentação face aos expostos, o auxílio às mães indigentes e a necessidade de intimação de mulheres, no mesmo texto. Pela primeira vez pode ler-se que "As mulheres solteiras que em publico se apresentarem com signaes evidentes de gravidez, devem ser intimadas para dar conta do parto, e para crear seu filho ou satisfazer a sua creação, quado para isso tenham possibilidade",

    consagravam as Ordenações Manuelinas, ver supra introdução. 83 Cf. Regulamento para o serviço dos expostos no distrcito de Leiria, Leiria, Typographia leiriense, 1879, cap. 2º, art. 7º e cap. 4.º, art. 21º. 84 O regulamento aprovado em 1878 substituiu a denominação de Roda por hospício, intensificando o controlo sobre as mulheres intimadas. Ficou assim consagrada a tríade, expostos - lactados - intimadas, cuja proximidade se manteve até ao fim deste fenómeno, ver Regulamento para o serviço dos expostos no distrcito de Leiria, Leiria, Typographia leiriense, 1879.

  • FRAGMENTA HISTORICA A evolução da assistência aos expostos durante o século XIX no distrito de Leiria

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    obrigação que se estendia às mulheres viúvas85. Este facto é elucidativo do modo como estas três medidas funcionaram de forma muito próxima inserindo-se, antes de mais, no contexto das opções tomadas para combater o grande número de abandonos por todo o território.

    4 - A evolução do número dos expostos e os seus impactos

    A ausência de estudos que incidam sobre as outras Rodas do distrito e os hiatos documentais não permitem uma análise sistemática do número de expostos em toda a região. Apesar destas condicionantes, a documentação recolhida e o conhecimento da evolução das matrículas num dos concelhos do distrito permite retirar algumas conclusões86.