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5 Revista Fórum CESA - ano • n. 9 • p. 4-4 • out./dez. 008 CAPA | No dia 5 de outubro de 008, a Constituição da República Federa- tiva do Brasil completou 0 anos. Marco da transição democrática, a Carta Constitucional é o símbolo de almejadas conquistas civis, como a liberdade de expressão e o voto di- reto, mas seu texto nunca foi sinô- nimo de unanimidade. Os mesmos artigos que lhe renderam a alcunha de Constituição Cidadã, utilizada pela primeira vez pelo presidente da Assembléia Constituinte Ulysses Guimarães, lhe proporcionaram, também, as críticas de ser utópica e irrealizável. Cláudio Lembo, professor titular de direito constitucional e de direi- to processual civil da Universidade Presbiterina Mackenzie, classifica a Carta Constitucional de 1988 como imensamente superior às demais e diz que os direitos da pessoa repre- Em 20 anos, a Constituição da República Federativa do Brasil representou conquistas, mas ainda enfrenta desafios sentam o seu principal avanço. Luiz Alberto Davi de Araújo, professor titular de direito constitucional da graduação e da pós-graduação da PUC-SP, aponta outros méritos da Lei Maior, como o mandado de se- gurança coletivo. Esse instrumento representou, segundo ele, o alarga- mento da legitimidade, que ficava na mão do procurador-geral da República e hoje vai ao presidente e à OAB, por exemplo. “Os ideais democráticos, depois de anos de ditadura, foram alcançados”, res- salta Roberto Rosas, presidente do Instituto Brasileiro de Direito Cons- titucional (IBDC). A Constituição de 1988 tem, por- tanto, uma série de virtudes a se- rem reconhecidas, o que não a exime, porém, de ser fonte de alguns problemas. A extensão da Carta Constitucional, que conta com 50 artigos e mais 95 de Atos das Disposições Constitucionais Transitórias, é um deles. Roberto Rosas afirma que alguns disposi- tivos deveriam ter sido objeto de lei infraconstitucional. Há, ainda, quem critique as medidas provisó- rias que, segundo Bernardo Cabral, que foi relator da Assembléia Na- cional Constituinte, só faria sentido se o sistema parlamentarista de go- verno tivesse sido aprovado. Outra crítica constante diz respeito a uma série de dispositivos que foram dei- xados para serem regulamentados posteriormente, sendo que muitos deles continuam, 0 anos depois, sem tal regulamentação. A ministra do STF Cármen Lúcia ressalta que até meados ou final da década de 1990 muitas das normas constitu- cionais deixaram de ser aplicadas porque dependiam de uma regu- Acervo fotográfico – ABr Duas décadas de democracia Odair Leal/Folha Imagem (Cód. Fot: 1517) Guilherme Bergamini/ ALMG

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Cesa 9 - Natália Martino

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�5Revista Fórum CESA - ano � • n. 9 • p. �4-4� • out./dez. �008

CAPA |

No dia 5 de outubro de �008, a Constituição da República Federa-tiva do Brasil completou �0 anos. Marco da transição democrática, a Carta Constitucional é o símbolo de almejadas conquistas civis, como a liberdade de expressão e o voto di-reto, mas seu texto nunca foi sinô-nimo de unanimidade. Os mesmos artigos que lhe renderam a alcunha de Constituição Cidadã, utilizada pela primeira vez pelo presidente da Assembléia Constituinte Ulysses Guimarães, lhe proporcionaram, também, as críticas de ser utópica e irrealizável.

Cláudio Lembo, professor titular de direito constitucional e de direi-to processual civil da Universidade Presbiterina Mackenzie, classifica a Carta Constitucional de 1988 como imensamente superior às demais e diz que os direitos da pessoa repre-

Em 20 anos, a Constituição da República Federativa do

Brasil representou conquistas, mas ainda enfrenta desafios

sentam o seu principal avanço. Luiz Alberto Davi de Araújo, professor titular de direito constitucional da graduação e da pós-graduação da PUC-SP, aponta outros méritos da Lei Maior, como o mandado de se-gurança coletivo. Esse instrumento representou, segundo ele, o alarga-mento da legitimidade, que ficava na mão do procurador-geral da República e hoje vai ao presidente e à OAB, por exemplo. “Os ideais democráticos, depois de anos de ditadura, foram alcançados”, res-salta Roberto Rosas, presidente do Instituto Brasileiro de Direito Cons-titucional (IBDC).

A Constituição de 1988 tem, por-tanto, uma série de virtudes a se-rem reconhecidas, o que não a exime, porém, de ser fonte de alguns problemas. A extensão da Carta Constitucional, que conta

com �50 artigos e mais 95 de Atos das Disposições Constitucionais Transitórias, é um deles. Roberto Rosas afirma que alguns disposi-tivos deveriam ter sido objeto de lei infraconstitucional. Há, ainda, quem critique as medidas provisó-rias que, segundo Bernardo Cabral, que foi relator da Assembléia Na-cional Constituinte, só faria sentido se o sistema parlamentarista de go-verno tivesse sido aprovado. Outra crítica constante diz respeito a uma série de dispositivos que foram dei-xados para serem regulamentados posteriormente, sendo que muitos deles continuam, �0 anos depois, sem tal regulamentação. A ministra do STF Cármen Lúcia ressalta que até meados ou final da década de 1990 muitas das normas constitu-cionais deixaram de ser aplicadas porque dependiam de uma regu-

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lamentação que ainda não existia. Recentemente, o STF lançou mão do mandado de injunção para su-prir a falta dessa regulamentação.

José Sarney, presidente da Repú-blica à época da promulgação da Constituição, foi um crítico mordaz da Carta Constitucional que era de-senhada e assim continua. Em en-trevista publicada no jornal Folha de S.Paulo no dia 18 de fevereiro de �008, chegou a afirmar que, “depois de termos saído do regime autoritário, nós tivemos a grande oportunidade de construir estrutu-ras modernas para nosso sistema democrático, mas infelizmente a Constituinte de 1988 foi uma frus-tração”. Segundo ele, a Constituição criou um sistema parlamentarista e, ao mesmo tempo, presidencialista, com o instrumento das medidas provisórias, que faz com que o Par-lamento não legisle e transfere ao Executivo essa função.

“Nesses �0 anos, não se pode dei-xar de lembrar em que contexto a Constituição de 1988 foi redigi-da”, lembra Bernardo Cabral. O Brasil do fim da década de 1980 era uma nação recém-saída da ditadura em um mundo que ain-da vivia o fim da Guerra Fria. Esse contexto favoreceu a criação de

uma Carta Constitucional que pre-tendia garantir todos os direitos dos cidadãos e favoreceu, portanto, o nascimento dos constantemente aclamados direitos fundamentais. A ânsia de abarcar todas as garan-tias, entretanto, acabou por levar a Carta Constitucional a abraçar dis-positivos considerados infracons-titucionais por especialistas como Roberto Rosas. Outras virtudes e defeitos são, como esses, fruto de um período evolutivo a partir de uma passagem autoritária da nos-sa história, como ressalta a ministra Cármen Lúcia.

História

Bernardo Cabral, relator da nova Constituição, diz que “o trabalho dos constituintes foi meritório por-que essa Constituição foi a primei-ra que não dispôs de um esboço prévio”. Ao contrário, afirma o re-lator, “nasceu do nada, pedra sobre pedra, tijolo a tijolo, aí incluídas as emendas populares, algumas com mais de um milhão de assinaturas”. O anteprojeto escrito pela Comis-são Afonso Arinos, assim denomi-nada em homenagem a seu presi-dente, não chegou a ser entregue ao Congresso e não foi, portanto, utilizada pela Constituinte.

Apesar disso, o trabalho da comis-são formada por 50 juristas – que havia sido convocada pelo então presidente da República José Sar-ney pelo Decreto n° 91.450 de 18 de julho de 1985 – exerceu influ-ência sobre os constituintes. A mi-nistra Cármen Lúcia diz que, em alguns pontos, os parlamentares constituintes aproveitaram muito o trabalho dos juristas. O desenho do Ministério Público é, segundo ela, um exemplo. “O seu esqueleto já estava no que a comissão apresen-tou ao Governo José Sarney”.

“Ainda não foi desta vez que a sociedade

brasileira, a maioria dos marginalizados,

vai ter uma Constituição em seu

benefício.”

Luis Inácio Lula da Silva22 de setembro de 1988

Para Cláudio Lembo, a Constituição de 1988 é imensamente superior às demais.

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O mandado de segurança coletivo é citado por Luiz Alberto Davi de Araújo como um dos

méritos da Constituição.

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Oficialmente, porém, os parlamen-tares deram início aos trabalhos sem partir de outros documentos, como ressaltou Bernardo Cabral. Para possibilitar esse nascimento, eles se colocaram em permanente disputa, acentuando em cada pro-posta e pronunciamento as diver-gências entre esquerda e direita. Bernardo Cabral afirma que havia disposição entre as lideranças para o acordo em algumas matérias. A disputa era acirrada em outros te-mas, e, segundo Cabral, quando não se tornava possível o acordo, o

caminho era a votação. Algumas des-sas votações, segundo ele, eram pre-cedidas de calorosas discussões. “A realidade é que nenhuma das duas correntes dispunha de força suficien-te para impor o seu desejo”, avalia.

Relatos das reuniões da Assembléia Constituinte, porém, mostram que esse equilíbrio de forças foi leve-mente desestabilizado a favor da direita com a criação do chamado Centro Democrático, o Centrão, em janeiro de 1988. Sua criação foi a reação das forças conservadoras insatisfeitas com as regras impostas pelo regimento interno – que difi-cultavam alterações no texto apro-vado pela Comissão de Sistemati-zação. O Centrão – formado pelo PFL, PDS e PTB, alguns outros par-tidos menores e uma parcela dos parlamentares do PMDB – con-seguiu alterar o regimento, inver-tendo o ônus do quorum para a manutenção do texto aprovado na Comissão. A partir de então, esse grupo, apoiado pelo Poder Executivo, conseguiu influir de-cisivamente na regulamentação dos trabalhos da Constituinte e no resultado de votações im-portantes, como a extensão do mandato de Sarney, a questão da reforma agrária e o papel das Forças Armadas.

O embate da direita e da esquerda, contudo, permaneceu acirrado até a promulgação da Carta Constitu-cional. Os discursos dos parlamen-tares evidenciam as divergências nas opiniões. Dias antes da aprova-ção do texto, em �� de setembro de 1988, o então deputado Luiz Inácio Lula da Silva fez um pro-nunciamento no qual afirmava que ainda não seria daquela vez que a maioria marginalizada teria uma Constituição em seu benefício. Ele disse que os representantes do PT entraram na Assembléia Consti-tuinte reivindicando 40 horas de trabalho semanais e sairiam com 44, queriam férias em dobro e con-seguiriam apenas um terço a mais do salário para gozar desse direito.

Em discordância com a opinião de Lula, Ulisses Guimarães afirmou, em seu discurso de abertura do segundo turno de votação, que a Constituinte cooperaria para rever-são da instável pirâmide social bra-sileira de 1�0 milhões de habitan-tes carentes. “Será a Constituição Cidadã, porque recuperará como cidadãos milhões de brasileiros”, profetizava o presidente da Cons-tituinte. Essas opiniões, colocadas lado a lado, simbolizam a pouca, senão nenhuma, unanimidade em

“Será a Constituição Cidadã, porque recuperará como cidadãos milhões de brasileiros.”

Ulisses Guimarães27 de junho de 1988

Bernardo Cabral foi o relator da Constituição de 1988 e diz que havia disposição entre a liderança para acordo em algumas matérias.

“Os ideais democráticos, depois de anos de ditadura, foram alcançados”, afirma

Roberto Rosas.

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torno do texto da Carta Magna. “A Constituição tem a diversidade daqueles dois mundos, o da di-reita e o da esquerda, porém é produto de um momento e deve ser interpretada como tal”, diz o professor da Universidade Presbi-terina Mackenzie Cláudio Lembo. Para ele, o Brasil tem tradição de conciliação e a Constituição de 1988 é um dos melhores momen-tos da conciliação nacional.

Duas décadas depois da promul-gação da Lei Maior, Bernardo Ca-bral avalia que essa é a Constitui-ção mais democrática que o Bra-sil já teve e a única com primazia absoluta das garantias individuais e dos direitos fundamentais. “Di-zia-se que os direitos não seriam garantidos e que a Constituição não duraria seis meses. Eram as especulações desairosas que fa-ziam alguns apressados, cultores da catástrofe”, diz o relator da constituinte sobre as críticas rece-bidas na ocasião.

Cármen Lúcia, que à época era procuradora de Minas Gerais e ia constantemente a Brasília auxiliar nos trabalhos da Constituinte, cita Pontes de Miranda ao falar des-sas críticas. Esse jurista dizia que é preciso, com uma lei nova, ter boa vontade, pois com má vonta-de não se interpreta, se combate. “Algumas pessoas de antemão já olharam com certa antipatia para essa lei”, afirma a ministra. Para ela, a Constituição pode conter excessos em algumas passagens, resultados do momento históri-co da sua promulgação, mas sua avaliação geral é positiva.

Constituição analítica

A ministra ressalta que a Consti-tuição se realizou depois de uma passagem autoritária, o que pode ser a raiz de alguns dos excessos. Bernardo Cabral concorda e diz que “estávamos saindo de uma ex-cepcionalidade institucional para um reordenamento constitucional e, por essa razão, acabaram sendo incluídos no texto matérias nitida-mente de legislação infraconstitu-cional”. Um dispositivo constan-temente citado por juristas como exemplo de norma indevidamente incluída na Carta Constitucional é o parágrafo �° do artigo �4�, que determina que o Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, deve ser manti-do em órbita federal.

Luís Roberto Barroso, professor de direito constitucional da Escola de Magistratura do Rio de Janeiro e do curso de pós-graduação da Fundação Getúlio Vargas, diz que o principal defeito da Constituição é ter constitucionalizado matérias demais e de modo excessivamen-te detalhista. Ele diz que matérias como o regime jurídico dos servi-dores públicos e o sistema tributá-rio deveriam estar na Carta Mag-na, mas só em linhas gerais e não com o nível de detalhamento que a Carta de 1988 apresenta. Outros assuntos, segundo ele, nem deve-riam estar na Constituição e refle-tem um excesso de corporativismo ao tratar de temas como magistra-dos, militares, advocacia pública e privada, Corpo de Bombeiros.

Para Cláudio Lembo, porém, isso é reflexo da tradição brasileira, e não é um problema. “Na Consti-tuição de 1891 concedia-se uma casa vitalícia à viúva do Benjamin Constant. Isso não altera em nada a vida política e social do país, é apenas o temor da insegurança, das mutações políticas”, diz. Cár-men Lúcia salienta que tal nível de detalhamento não é apenas reflexo da ditadura, mas também de um país em que se falava de Consti-tuição onde a maioria das Cartas

A ministra Cármen Lúcia acredita que muitas das críticas à Constituição se devem à má vontade em sua interpretação.

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Para Luís Roberto Barroso, o principal defeito da Carta Magna é ter constitucionalizado matérias demais e de modo excessivamente detalhista.

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Constitucionais tinham sido feitas dentro de gabinetes. “Claro que havia uma tendência de as pessoas requisitarem que tudo se contives-se naquela Constituição”, explica. Luís Roberto Barroso concorda e diz que era impossível conter a de-manda social. “Essa é a razão pela qual a Constituição ficou extrema-mente casuística, mais que analíti-ca ela é casuística, prolixa e, muitas vezes, corporativa”, diz.

Participação popular

Quando Carmén Lúcia cita essa “requisição popular”, ela eviden-cia um aspecto muito lembrado da promulgação da Carta Cons-titucional de 1988: a participa-ção. A ministra diz que Tancredo Neves havia feito uma campanha que tornou popular a idéia de uma nova Constituição, e, no processo de elaboração dessa, quem teve condições de estar presente ou de mandar material, o fez. “As pessoas participaram não apenas vindo a Brasília. Brasília foi ao Brasil”, diz. Segundo ela, havia debates e dis-cussões em todos os lugares, esco-las, igrejas, comunidades.

Bernardo Cabral lembra que che-garam a ser apresentadas à Mesa Diretora cerca de 1�0 emendas populares, algumas com mais de um milhão de assinaturas. Dentre essas, 8� foram admitidas, segundo o então relator da Carta Constitu-cional. Eram, de acordo com Cár-men Lúcia, quantidades imensas de papéis com todo tipo de pro-posta, que foram submetidas a fil-tros. Aquilo que era razoável e se apresentava em consonância com a espinha dorsal do trabalho que es-tava sendo realizado, foi, segundo ela, aproveitado. Dentre as propos-tas populares que se consolidaram na Carta Constitucional, Bernardo Cabral cita o juizado de instrução, o Sistema Único de Saúde (SUS), os direitos dos consumidores, os direitos dos idosos, a iniciativa po-pular das leis e a aposentadoria das donas de casa.

Toda essa participação foi resultado da mobilização em torno da Cons-tituição, mas também do revigora-mento de movimentos sindicais e populares desde o início da ditadu-ra militar. A construção do Sistema Único de Saúde, por exemplo, é fruto de uma mobilização iniciada na década de 1970, coordenada pelo chamado Movimento da Re-forma Sanitária, que reivindicava ampliação, melhoria e descentra-lização da rede pública de saúde para os bairros de periferia. Foi essa articulação social que permitiu, em 1987 e 1988, a apresentação e a aprovação da proposta do SUS.

Roberto Rosas, do Instituto Bra-sileiro de Direito Constitucional (IBDC), destoa do coro e diz que o povo se fez presente menos do que

se diz. “Houve uma participação pontual de segmentos que tinham interesse, não do povo”, diz. Se-gundo ele, participaram pontual-mente grupos de servidores, índios, representantes do Poder Judiciário. A participação popular é, de acor-do com Rosas, pequena até hoje, mesmo diante das possibilidades da democracia direta, como a ini-ciativa popular de leis. O motivo, explica o constitucionalista, é a fal-ta de educação e cultura políticas, sendo que mesmo as pessoas mais aprimoradas culturalmente não têm interesse.

Ives Gandra da Silva Martins, mi-nistro do Tribunal Superior do Trabalho e professor emérito da Universidade Mackenzie, também considera que a participação po-

Um dos momentos mais marcantes da participação popular na redemocratização do Brasil foi o movimento das Diretas Já.

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pular foi pequena. A presença do povo foi importante, segundo ele, para o processo constituinte, com a campanha das “Diretas Já!” e as pressões sobre Sarney para con-vocar a Assembléia. Depois disso, porém, ele diz que o Congresso seguiu e a participação popular foi menor. Ele afirma, ainda, que a pressão da sociedade, como a que aconteceu no sentido de pe-dir a punição dos envolvidos com o mensalão, é importante, porém não decisiva. “Os interesses políti-cos prevalecem”, diz.

A opinião de Luís Roberto Barro-so corrobora mais com a visão de Cármen Lúcia e Bernardo Cabral. “Os corredores da Assembléia Constituinte eram um espetáculo antropológico. Havia pessoas de todos os seguimentos: militares, garimpeiros, empregadas domés-ticas, juízes, prostitutas. Todos os setores que conseguiram se articu-lar estavam lá”, diz. O professor de direito constitucional e de filosofia do direito na Universidade Federal Fluminense, Cláudio Pereira Neto, completa dizendo que “foi um processo especialmente democrá-tico e, portanto, nossa Constituição é uma das mais democráticas, que abarca muitas aspirações, muitas

demandas, e também, obviamen-te, muitos interesses.”

Algumas críticas dizem respeito a uma facilidade maior de certos gru-pos, em detrimento de outros, para conseguir a aprovação das suas propostas. Cármen Lúcia, porém, ressalta que somos não só um país continental, mas um povo plural e, por isso, é difícil abarcar todas as demandas. “A despeito disso, nós temos um conjunto de princípios constitucionais que retratam o que o homem brasileiro queria. A dig-nidade da pessoa humana, a cida-dania, a democracia participativa, tudo isso foi posto na Constitui-ção”, comemora a ministra.

Garantias fundamentais

Esses direitos – dignidade da pes-soa humana, cidadania, democra-cia participativa – são alguns dos elencados entre as garantias funda-mentais. A existência de tais garan-tias, listadas nos cinco capítulos do Título II da Constituição de 1988, é constantemente apontada como grande conquista. Os direitos hu-manos, por exemplo, ganharam espaço na Constituição e questões que antes recebiam pouca atenção passaram a ser tratadas de forma especial, como o racismo por parte das autoridades, que se tornou cri-me inafiançável.

A Carta privilegiou a temática dos direitos fundamentais e tratou deles antes mesmo de abordar a organi-zação estatal, que era o tema dos primeiros artigos da Constituição an-terior. A preocupação com a preva-lência dos direitos fundamentais em uma Carta Constitucional que vinha para colocar um ponto final na di-tadura levou os legisladores a elevar tais direitos a cláusulas pétreas. Des-sa forma, direitos como liberdade de expressão e inviolabilidade da vida privada, tão violentados durante a ditadura, foram protegidos de forma tal que a nenhum legislador é dado o poder de suprimi-los ou restringi-los sem afrontar a Carta de 1988.

Apesar de o legislador ter deter-minado essa intangibilidade das garantias fundamentais, debates suscitam a necessidade de flexibi-lização das leis trabalhistas, con-tidas no Capítulo II, Dos direitos Sociais, do Título I, Das garantias fundamentais, da Constituição da República. Em �007, uma pesquisa elaborada pelas univer-sidades de Harvard (EUA) e Mc-Gill (Canadá) a partir de dados da Organização Internacional do Trabaho (OIT) revelou que o Bra-sil está em sintonia com os países mais desenvolvidos no que tange a direitos dos trabalhadores, en-tre os quais a Suíça, a Finlândia e a Suécia. O Brasil, porém, ainda não alcançou o estado de desen-volvimento desses países.

“Teremos que nos adaptar à econo-mia mundial, desse jeito não esta-mos beneficiando os empregados, mas sim gerando a informalidade. Temos que nos inspirar nos Estados Unidos, que têm uma flexibilização maior. Os direitos individuais estão no Artigo 5°, acho que eles podem ser modificados sem ferir cláusulas pétreas”, defende Ives Gandra.

Luís Alberto Barroso lembra que, quando a legislação diminuiu a

Ives Gandra é um dos defensores da flexibilização das leis trabalhistas.

Cláudio Pereira Neto acredita que, por ser resultante de um processo muito democrático,

a Constituição de 88 abarca muitas demandas e aspirações.

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proteção do locatário, houve um aumento da oferta de unidades para locação e, em razão disso, o valor dos aluguéis diminuiu. Ele diz que, de certa forma, isso corrobora com a crença de que a desregulamen-tação aumenta a proteção. Sobre a flexibilização das leis trabalhistas, ele afirma que é ideologicamente contra, mas que se for possível de-monstrar que essa mudança trará uma melhora material, no sentido de aumentar a formalidade (ver grá-fico) e as garantias reais dos traba-lhadores, então, ele será a favor.

Luis Alberto Davi de Araújo, pro-fessor da PUC-SP, é contra e diz que as leis trabalhistas são uma conquista e não se deve retroce-der. “Quando a Constituição co-meçou, questionavam que licen-ça maternidade nessa extensão e horas extras de 50% quebrariam as empresas, mas nenhuma delas quebrou por isso”, lembra. A mi-nistra Cármen Lúcia salienta que a flexibilização só poderia atingir os procedimentos, ou seja, a for-ma do cidadão dispor dos direitos constitucionais, mas não os direi-tos em si. “Uma mudança para anular direitos que foram con-quistados e que são tidos como fundamentais realmente seria uma matéria, pelo menos, muito questionável”, afirma.

Críticas como essa, que atingem diretamente as garantias funda-mentais, não são recentes. Antes mesmo da promulgação do texto aprovado em 1988, políticos e economistas já desacreditavam tais garantias. O economista Má-rio Henrique Simonsen, que foi ministro da fazenda na década de 1970, disse na época que o Estado não conseguiria garantir todos os direitos listados, os quais representariam um atraso para o crescimento econômico do país e levariam à explosão da carga tributária. “Ora, dizer que os di-reitos elencados na Constituição são a causa da elevada carga tri-butária é usar de sofisma”, diz Bernardo Cabral.

Nesses �0 anos, o que se pode constatar é que a carga tributária brasileira saiu de algo em torno de �0% do PIB em 1988 e atingiu �7% em �008. Ives Gandra diz que essa carga não deveria ter crescido tan-to. “Justo seria entre �7% e �0%, usando como referência as duas maiores economias do mundo, Estados Unidos e Japão. Chegou o momento de se repensar seriamen-te tudo isso”, afirma.

Roberto Rosas salienta que o au-mento de impostos não se deve aos direitos garantidos constitu-cionalmente. Afinal, muitos desses direitos nem são implementados, como ele lembra. André Ramos Tavares, professor do mestrado e do doutorado em direito constitu-cional da PUC-SP, em consonância com a opinião de Roberto Rosas, diz que não são os custos dos di-reitos sociais que irão quebrar o Es-tado, mas sim a corrupção, o des-vio de verbas. “O excesso da carga tributária brasileira é, infelizmente, uma realidade, mas não tem servi-do a custear os direitos sociais, pois o que o Estado oferece ainda está muito aquém e o que ele cobra muito além”, afirma.

“O Custo Brasil está mais associa-do à necessidade de um choque de gestão do que a um problema

de atendimento dos direitos fun-damentais”, diz Luís Roberto Bar-roso. Segundo ele, em um país pobre, a prestação de serviços pú-blicos essenciais de qualidade pelo Estado ou sob sua intensa regula-ção é uma forma indispensável de realização dos direitos fundamen-tais, de realização da dignidade da pessoa humana.

Ives Gandra tem opinião contrária e diz que é preciso reduzir despe-sas. Para ele, o problema está no

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André Ramos Tavares rebate as críticas sobre os altos custos dos direitos fundamentais dizendo

que não são eles que vão quebrar o Estado e sim a corrupção.

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tamanho da estrutura governamen-tal. “Não abriria mão das garantias individuais, mas dos direitos so-ciais, sim. Nos Estados Unidos, em 1980, a Chrysler baixou o salário de todos os operários para sobre-viver e todos concordaram, até o sindicato. O acordo ficou famoso no mundo todo”, diz.

Medidas provisórias

Todas essas garantias citadas estão elencadas entre os artigos 5° e 17 da Constituição da República. Mais adiante, porém, no artigo 6�, resi-de outro tema controverso. “Em caso de relevância e urgência, o presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacio-nal” é o que diz tal dispositivo. Quando Fernando Henrique Car-doso se utilizava de tal instrumento era criticado pela oposição. Quan-do essa oposição chegou ao poder, utilizou-se também da ferramenta e foi alvo, também, de críticas por esse motivo.

O deputado João Paulo Cunha afir-ma que as medidas provisórias são um instrumento importante para assegurar a governança em um am-biente que passa por transforma-ções tão rapidamente. Ele lembra

que, inicialmente, as normas edi-tadas dessa forma tinham validade assegurada até que fossem aprecia-das pelo Congresso, o que poderia não ocorrer nunca. “Este fato pro-vocava grande insegurança jurídica e concentrava poder no Executivo”, avalia. O instituto foi redesenhado e a medida provisória que não for apreciada no prazo, perde o seu poder normativo. Para o deputado, essa mudança foi positiva e o ins-trumento é importante, apesar de necessitar de aperfeiçoamento. “É necessário frisar que, apesar de ser um instrumento importante para a governança, o Executivo precisa utilizá-lo com mais parcimônia”, relativiza.

Bernardo Cabral afirma que o ins-tituto da medida provisória só faz parte da Constituição de 1988 porque as discussões do Congresso estavam voltadas para a implemen-tação de um sistema parlamentaris-ta de governo. Ao final, quando o regime presidencialista prevaleceu, o que Cabral considera um erro, o instituto persistiu. “E o resultado foi a transformação do presidente da República em usurpador das fun-ções do Congresso Nacional”, diz.

Para a ministra Cármen Lúcia, no entanto, esse instrumento não é, em si, antidemocrático, mas o seu abuso o é. Ela ressalta que as medidas provisórias deveriam ser utilizadas apenas em situações de relevância e urgência, como pres-creve a Constituição. Situações essas que, segundo ela, existem e realmente não poderiam esperar nem mesmo a tramitação de pro-jetos de lei em regime de urgência. O problema é que tais critérios não são observados.

A Medida Provisória n° 4�7, de �9 de julho de �008, é apenas um dos vários exemplos de situações que poderiam esperar a deliberação do

Congresso. O que essa medida faz é alterar as leis que dispõem sobre a transformação da Secretaria Espe-cial de Aqüicultura e Pesca da Presi-dência da República em Ministério da Pesca e Aqüicultura, a criação de cargos em comissão, funções comissionadas do Banco Central e gratificações de representação da presidência da República.

O abuso das medidas provisórias só poderia ser freado, segundo Rober-to Rosas, do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, com maior atividade do Congresso. É preciso, para ele, ter independência para re-jeitar ou alterar as medidas encami-nhadas. João Paulo Cunha faz coro com Roberto Rosas e diz que se a matéria não é urgente nem relevan-te o Congresso deve, por maioria, rejeitá-la. “Aprovada a medida pro-visória depreende-se que a maioria considerou que tais critérios esta-vam presentes. Este é o jogo demo-crático”, diz o deputado.

Além do Congresso, que demora a legislar, são responsáveis também, de acordo com Rosas, o Executivo, que abusa do instrumento, e o STF, que não discutiu em um primeiro momento os requisitos, as urgên-cias e as necessidades. Luis Alber-to Davi de Araújo diz que, se o Legislativo não tem estrutura para dizer o que realmente é urgente e relevante, então cabe ao Judiciário

A ministra Cármen Lúcia lembra que o Judiciário só pode se manifestar sobre a urgência e a relevância das medidas provisórias se provocado a falar sobre algum caso específico.

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Para o deputado João Paulo Cunha, as medidas provisórias são um instrumento importante para

assegurar a governança.

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fazer isso. Para ele, o STF ainda é muito cauteloso quando aprecia a questão da urgência e, “embora tenha melhorado”, ainda pode ser muito mais efetivo.

Cármen Lúcia concorda que é função do Congresso frear os abu-sos do Executivo, mas lembra que o Poder Judiciário só exerce a fun-ção de verificar a urgência e a rele-vância quando é provocado a falar sobre uma determinada medida provisória e, portanto, atua em um campo limitado. Ela diz ainda que acha difícil voltar ao veio constitu-cional que estabelece a necessida-de de urgência e relevância para o uso desse instrumento. “Depois de um tempo fica parecendo que ele pode continuar a ser usado. Em �0 anos quase que se cria, não vou dizer uma cultura, mas um mau uso permanente desse instru-mento”, afirma.

Eficácia limitada

As medidas provisórias, apesar de toda a controvérsia, se constituem como um instrumento que tem seu funcionamento todo regulado em lei. Acontece que nem todos os dispositivos constitucionais go-zam desse privilégio. Algumas das normas contidas na Carta de 1988 dependem da posterior edição de leis, sejam elas complementares, es-pecíficas ou ordinárias. São as cha-madas normas de eficácia limitada. Bernardo Cabral diz que os pontos sobre os quais as lideranças não conseguiram chegar a um acordo fo-ram deixados para regulamentação posterior. Segundo levantamento promovido no primeiro semestre de �008 pelo jornal Valor Econômico, ainda restam 51 incisos, parágrafos ou artigos não regulamentados na atual Constituição.

O inciso VII, artigo 15�, por exem-plo, dispõe sobre o imposto que deve incidir em grandes fortunas e demanda para a cobrança desse imposto, Lei Complementar. Duas décadas depois, a Lei Complemen-tar ainda não existe. Outro exem-plo é o dispositivo que deveria tra-tar das atribuições e prerrogativas do vice-presidente da República, que também não conta ainda com a regulamentação requerida pela Constituição. Por enquanto, o vice-presidente é apenas figurativo.

Para falar sobre a questão da re-gulamentação, Luis Alberto Davi de Araújo cita a lei de acesso das pessoas com deficiência, que “le-vou 1� anos, o decreto do presi-dente mais quatro anos, e ainda fixou de cinco a dez anos para que sejam feitas as adaptações para os deficientes”. Na visão dele, isso de-monstra que o Congresso Nacional é tolerante com pontos nos quais deveria ser muito exigente. “Há leis de 1996 que ainda não se de-finiram. É preciso que o Congresso

A demora para que a lei de acessibilidade

entre em vigor é citada por Luis Alberto

Davi de Araújo para exemplificar a excessiva

a tolerância do Congresso em questões

importantes.

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O Congresso Nacional é o responsável por regulamentar os dispositivos com

eficácia limitada da Constituição e criar os mecanismos para efetivar direitos

constitucionais.

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resolva, decida, vote e pronto. Mas há recessos, épocas de eleição e de-pois vem mutirão para isso e aqui-lo, o parlamento deveria ser menos caro e operar mais”, avalia.

O deputado João Paulo Cunha diz que o problema não é a omissão legislativa. “A agenda do Congresso Nacional, normalmente, é determi-nada pelas necessidades imanentes ao processo social e econômico do momento, pelos programas de governo e pela ação dos grupos sociais que se reflete nos partidos políticos. Leis que não sejam pro-duzidas como reflexo da dinâmica social tendem a ser inócuas. São as chamadas ‘leis que não pegam’”, afirma. Ele diz, ainda, que alguns temas são mais controversos e ca-recem de um tempo para angariar o consenso mínimo necessário para ser transformado em lei.

Os responsáveis por fazer cumprir a Constituição em todos os seus dis-positivos são, para Bernardo Cabral, os agentes políticos dos três Pode-res da República. “Os congressistas, porque lhes cabe o dever primá-rio, até aqui pouco cumprido, de complementar e integrar o texto da Constituição. Os magistrados nacio-nais, especialmente os ministros do Supremo Tribunal Federal, porque

muitos dispositivos da Constituição são imediata e diretamente aplicá-veis, mas o Judiciário não lhes ex-plorou as virtualidades. Finalmente, o próprio presidente da República que, lamentavelmente, até hoje mantém o vezo eventual da hege-monia do Executivo, dando-lhe ares de presidencialismo imperial, quan-do mais salutar seria realizar inte-gralmente o programa normativo contido na Constituição”, afirma.

O constitucionalista Cláudio Lem-bo diz que as regulamentações mais importantes foram feitas. “Podemos dizer que há um estar-dalhaço a respeito disso. Além do mais, o Legislativo não é uma fábri-ca de salsichas, uma lei pede de-bate com a sociedade, isso demo-ra mesmo”, afirma. Cármen Lúcia concorda e salienta que a maioria dos dispositivos ainda não regula-mentados já conta com projetos de lei em tramitação. Os poucos que ainda não contam com tais projetos são, segundo ela, os que foram mudados recentemente por emendas constitucionais ou alguns que realmente não chamaram a atenção do legislador.

Vários projetos podem ser citados. Em tramitação no Senado, por exemplo, tem-se o PLS 50/�008,

que pretende regulamentar o im-posto sobre grandes fortunas pre-visto no inciso VII do artigo 15� e a PLS 96/�008, que dispõe sobre o procedimento para a criação, a incorporação, a fusão e o desmem-bramento de municípios na tenta-tiva de regulamentar o parágrafo 4º do artigo 18. Já na Câmara dos Deputados, podemos encontrar propostas com a PLP 414/�008, que visa regulamentar as garantias contra a despedida arbitrária ou sem justa causa de que fala o inciso I do artigo 7°.

Nas comemorações de �0 anos da Constituição da República, a Câmara dos Deputados formou a Comissão dos Notáveis, com o objetivo de estudar os dispositivos ainda não regulamentados e pro-por regulamentações. O presiden-te da comissão é Michel Temer e o relator, João Paulo Cunha. As ex-pectativas em relação à comissão, no entanto, são baixas. Roberto Rosas diz que, se os congressistas não tomaram inicitativa ao longo do tempo, não será essa pequena comissão que resolverá os proble-mas. Luis Alberto Davi de Araújo ironiza e diz que “vamos orar, fazer preces, e escolher bem nossos par-lamentares. É mais uma comissão,

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mais um grupo de trabalho. Espero que esse tenha sucesso”. Já Cláu-dio Lembo diz que não gosta de comissões de notáveis e que seria melhor ouvir todos os segmentos da sociedade.

João Paulo Cunha, relator da Comissão, diz que o ceticismo é procedente, já que nem todas as comissões terminam seus traba-lhos ou atingem seus objetivos. Ele afirma, porém, que acredita que essa comissão apresentará, na sessão legislativa de �009, à direção da Câmara dos Depu-tados um roteiro para enfrentar cada um dos problemas e que o tempo dirá se essa direção, jun-to aos líderes, vai enfrentá-los. “Vale uma observação final: não são notáveis. Notável é o conjun-to do parlamento”, diz. O depu-tado lembra, ainda, que a própria Constituição Federal dispõe de mecanismos para que o direito individual possa ser defendido ainda que o dispositivo não este-ja regulamentado.

Mandados de injunção

Um desses mecanismos é o man-dado de injunção, que fica a car-go do Supremo Tribunal Federal. Tal prerrogativa é dada pelo inciso LXXI do artigo 5° da Constituição da República, que diz que “con-ceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma re-gulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberda-des constitucionais e das prerro-gativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania”. Ironi-camente, porém, o processo de mandado de injunção também não foi normatizado. “Nós ado-tamos, por empréstimo, basica-mente o processo do mandado de segurança, mas isso ainda não foi regulamentado. Não se deixa de aplicar, mas há de se ter uma lei para tratar especificamente do mandado de injunção”, diz a mi-nistra Cármen Lúcia.

No dia �5 de outubro de �007, o STF decidiu, pela primeira vez, so-bre um mandado de injunção. O julgamento tratava do direito de greve dos servidores públicos, que, de acordo com o inciso VII do ar-tigo �7 deveria ser regulamentado primeiro por lei complementar e, depois, sob a nova redação dada pela emenda n° 19 de 1998, por lei específica. Na ausência dessa regu-lamentação, o Sindicato dos Servi-dores Policiais Civis do Espírito San-to (SINDPOL) levou o caso ao STF e os ministros decidiram, por maio-ria, aplicar ao setor, no que couber, a Lei n° 7.78�/89, que regulamenta a greve do setor privado.

A ministra Cármen Lúcia diz que “chegaram os pedidos de injunção e houve uma nova compreensão constitucional no sentido de que não adianta ter normas no papel se elas não influenciam a vida das pessoas. E para influenciar é preci-so exatamente que se dê seqüência e eficácia a esse instrumento inte-grativo de normas ainda não com-pletadas, não integradas pelo legis-lador”. A ministra diz, ainda, que essa decisão reflete uma mudança significativa no papel dos cidadãos,

que passaram a reivindicar os seus direitos em todas as instâncias, até no STF, o que impulsiona o Poder Judiciário a atuar mais no sentido de dar uma resposta válida a “uma sociedade que tem o direito de exigir os seus direitos”.

Nesse tipo de julgamento, no qual o STF declara a omissão do Legis-lativo e decide uma questão apesar da ausência de normas específicas, ou até em casos nos quais o Supre-mo é chamado a dar seu parecer sobre constitucionalidade de leis, é, mais uma vez, levantada a ques-tão da separação dos poderes. Luís Roberto Barroso diz que se pode dizer que a Constituição de 1988 contribuiu para a judicialização das relações sociais no Brasil, mas que não é um crítico dessa judicializa-ção. “A crise de representatividade, de legitimidade e de funcionalida-de do Legislativo levou o Supremo a expandir a sua atuação em certos casos. Isso tem uma parte positiva: o Supremo está atendendo às de-mandas da sociedade. Mas tem a face negativa: revela que o Legisla-tivo não as está atendendo, não em toda a sua extensão”, diz.

O primeiro mandado de injunção determinou a aplicação da Lei de Greves do setor privado no setor público.

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Aos críticos que dizem que o STF usurpa a função do Legislativo ao recorrer, por exemplo, aos manda-dos de injunção, a ministra Cármen Lúcia diz que “o Judiciário se sub-mete à lei como todo e qualquer outro órgão do Estado. A diferença é que compete ao STF em última instância, por exemplo, dizer como se interpreta a lei, mas isso sempre do ponto de vista jurídico”, explica a ministra.

Ela continua dizendo que legislar é inovar a ordem jurídica, é criar algo no direito. O Supremo, salienta Cármen Lúcia, não pode e não faz isso. Para exemplificar, a ministra cita o julgamento da inclusão em listas eleitorais de pessoas sujeitas a processos. “Muitos queriam que o Poder Judiciário tivesse dito que essas pessoas não poderiam ser elegíveis. No entanto, o Supremo disse que, naquele caso, não havia nenhuma norma que se pudesse interpretar naquele sentido e, por isso mesmo, descontentou uma grande parte da sociedade brasilei-ra”, diz. De acordo com a ministra, enquanto não vier uma lei, en-quanto a ordem jurídica brasileira não tiver uma criação do legislador no sentido de tornar inelegíveis pessoas sujeitas a processos, o STF não pode inovar.

Emendas constitucionais

Se os legisladores que passaram pelo Congresso Nacional nesses �0 anos por qualquer motivo não re-gulamentaram alguns dispositivos constitucionais, muitos se interes-sarem por outras matérias tratadas pela Lei Maior. Apesar das limita-ções impostas pelo artigo 60, que renderam à Constituição a clas-sificação de semi-rígida, dados a restrição na iniciativa dos projetos de emendas e o quorum especial de aprovação das mesmas, a Cons-tituição de 1988 já foi emendada em mais de 50 artigos.

“É certamente um recorde mundial. Esse número excessivo de emendas impede que a Constituição cumpra a sua vocação de permanência, de síntese dos valores fundamentais e duradouros”, diz Luís Roberto Barroso. Ele diz, ainda, que é o detalhamento da Constituição que causa sua instabilidade.

Bernardo Cabral usa a expressão “canteiro de obras” para designar o Congresso em trabalho de edição de emendas constitucionais. “Hoje são por volta de 1.600 propostas de emenda tramitando nas duas Casas Legislativas. Não vejo na maior parte delas, nem mesmo nas já aprovadas, nenhum efeito no

processo ordinário ou revisional”, diz. Cabral afirma que é preciso extrair da Constituição tudo o que dificulta sua efetividade, sem, no entanto, modificar o texto por in-teresses meramente circunstanciais ou momentâneos.

Ives Gandra diz que as emendas foram apenas alterações tópicas, que desfiguraram a Constituição perifericamente, mas não atingi-ram sua espinha dorsal. Foram, para ele, mudanças necessárias para determinadas situações. “Eu diria, parafraseando o ministro Gilmar Mendes, que uma Consti-tuição com excesso de ‘analitismo’ gera um excesso de ‘emendismo’, e a nossa é prolixa e muito analí-tica. Mas a estrutura e o equilíbrio dos poderes foram preservados, estão incólumes”, afirma Gandra lembrando os neologismos do pre-sidente do STF.

Cláudio Pereira, da Universidade Fe-deral Fluminense, diz que, apesar de a Constituição não poder ser imutável, ela também não deve ser o inverso, com texto instável e profundamente alterado. Segundo ele, não é bom que a Constituição seja modificada toda hora, pois estabilidade é uma das condições fundamentais para que ela incida na realidade social. Só uma Constituição estável pode, segundo ele, provocar no povo um sentimento de adesão ao seu texto.

No entanto, ele diz que, como nossa Constituição é analítica, é inevitável que ela seja constante-mente alterada. “Não é bom que a Constituição seja emendada toda hora, mas temos que ver isso como um dado da realidade, como uma das características fundamentais do nosso texto constitucional”, diz. Roberto Rosas completa afirmando que, no conjunto, foi uma adapta-ção à realidade. “Algumas emendas são mesmo casuísticas, mas na mé-dia foram boas, reajustes necessá-rios, por isso realizados. Sem essas modificações tornava-se inviável a eficácia da Constituição em um ce-nário de �0 anos.”

Pesquisar e lavrar recursos minerais deixou de ser exclusividade de empresas brasileiras de capital nacional a partir da Emenda nº 6 de 1995.

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A primeira emenda foi aprovada apenas quatro anos depois da pro-mulgação da Carta Constitucional, no governo do presidente Fernan-do Collor. A emenda inaugural tratava primordialmente das ques-tões relativas a subsídios de agen-tes políticos. Foi ela, por exemplo, que estabeleceu o teto para os subsídios dos deputados estaduais em até 75% do recebido pelos de-putados federais. Entre a aprova-ção dessa emenda, em 199�, e o fim do mandado de Itamar Franco – que substituiu Collor depois do impeachmant, em 1º de janeiro de 1995, foram mais três emendas.

Nesse período, porém, o Congres-so se voltou para promover a re-visão constitucional, prevista para cinco anos depois da promulgação da Carta Magna no artigo �º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT). Os trabalhos, presididos pelo senador Humberto Lucena e relatados pelo deputado Nelson Jobim, resultaram em 74 projetos de emendas de revisão. Apenas seis foram aprovadas. A partir dessa aprovação, por exem-plo, a dupla nacionalidade foi per-mitida a brasileiros em alguns casos, o rol de inegibilidades foi ampliado e o mandado presidencial foi redu-zido de cinco para quatro anos.

Foi a partir do governo de Fernando Henrique Cardoso, porém, que as emendas constitucionais passaram a ser editadas com mais freqüên-cia no Congresso Nacional. Se em sete anos foram aprovadas quatro emendas, sem contabilizar as revi-sionais com previsão constitucio-nal, de 1995 a �00�, no Governo FHC, foram �5 emendas. O teor desses dispositivos é variado, mas foi a partir deles que se tornou pos-sível, por exemplo, a privatização de várias estatais e a entrada mais consistente de capital estrangeiro. Assim, a Emenda n° 6 de 1995 alte-rou o parágrafo 1° do Artigo 176 e possibilitou que qualquer empresa constituída sob as leis brasileiras e que tenha sua sede e administra-ção no país pudesse pesquisar e la-

1a emenda aprovada no governo de Fernando Collor (1990 a 199�)

9 emendas no governo de

Itamar Franco (199� a 1995), sendo 6 de revisão

constitucional, prevista pelo artigo �º do Ato das

Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT)

35 emendas nos dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso (1995 a �00�)

20 emendas no governo de Luís Inácio

Lula da Silva no período de �00� a �007.

Total: 65 emendas

Emendas constitucionais

Em duas décadas, os diferentes governos alteraram a Constituição em vários pontos, modificando, por exemplo, a intervenção do Estado na economia e os princípios da Administração Pública. Abaixo, o panorama geral das emendas constitucionais nos vários governos pós-88.

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vrar recursos minerais. Antes dessa emenda, apenas empresas brasilei-ras de capital nacional exploravam esse mercado. Já a Emenda Cons-titucional n° 5 de 1995 alterou o parágrafo �° do artigo �5 e retirou, dessa forma, a exclusividade de distribuição de gás canalizado de empresas estatais.

O professor da PUC-SP Cláudio Pereira acredita que algumas pes-soas consideram as emendas re-trocessos, principalmente na área econômica. Ele salienta que o texto originário da Constituição de 1988 era mais nacionalista, mais aberto a intervenções, ao domínio estatal no campo econômico. As sucessi-vas emendas constitucionais, expli-ca o constitucionalista, foram apro-vadas em grande parte com o ob-jetivo de reduzir esta intervenção e esse caráter mais nacionalista da Constituição. “Por essa razão, são emendas que se abrem a críticas, principalmente críticas de caráter ideológico”, diz.

Foi também nesse Governo que foi editada a Emenda n° 16 de 1997, que possibilitou a reeleição, outro dispositivo controverso. O cons-titucionalista Luis Alberto Davi de Araújo considera tal emenda um grande equívoco, pois, para ele, foi reduzida a capacidade da oposição

falar qualquer coisa sobre a elei-ção. “Para mim é algo indigesto, ainda mais pela reeleição de quem estava no poder, no caso FHC. Isso não me pareceu nada correto”, diz. Cláudio Lembo diz que a ree-leição não foi antidemocrática, mas anti-republicana. “Desde 1891, os constituintes foram precisos ao não permitir a reeleição, alegando que ela possibilitaria o uso da máquina e estimularia o caudilhismo. Foi um erro efetivo. Já a reeleição do pró-prio presidente da época envolveu uma questão ética”, avalia.

Luis Alberto Davi de Araújo diz ainda que a Constituição sofreu um giro um pouco mais para o centro, ou para a direita, mas, se-gundo ele, se o povo brasileiro quis assim, pode-se até não gostar, mas não se pode dizer que está erra-do. “Mudanças ocorreram, mas a preservação da dignidade da pes-soa humana segue firme, ou seja, a Constituição teve a essência preservada. O legislativo atua mal porque escolhemos mal, mas isso é outro problema, eles são escolhi-dos democraticamente. Falta uma reforma política, de fato”

Ao governo de Fernando Henri-que, seguiu-se o mandato do Lula. Desde que o novo presidente as-sumiu, em �00�, até �007, foram

mais �0 emendas. Seu teor tam-bém é do mais variado. A Emenda n° 50 de �006, por exemplo, altera as datas de reuniões do Congres-so Nacional, diminuindo as férias parlamentares. A Emenda n° 5� de �006, por sua vez, diminui de seis para cinco anos a idade dos filhos de trabalhadores urbanos e rurais com direito a garantia de assistên-cia gratuita em creches e pré-es-colas. “Essa ponderação recente, com número menor de emendas em relação aos primeiros anos, faz o barco seguir num ritmo melhor”, avalia Ives Gandra.

Cármen Lúcia salienta que, no mundo democrático, o que se ado-ta é ouvir o povo nessas ocasiões, por meio, principalmente, do re-ferendo popular. Assim como para elaborar a Constituição, o povo foi chamado a participar e legitimar o texto, ela lembra, os mecanismos de interação entre os parlamenta-res e a sociedade em geral devem ser utilizados. No Brasil, adota-se que o Congresso Nacional, por três quintos dos seus membros em dois turnos de votação, tem a prerroga-tiva de editar as emendas. “Mas se eu sou titular do poder, então eu é que tenho que dizer quando que-ro falar diretamente. Afinal, eu dei um voto pra que ele me represen-te, mas às vezes eu não quero me representar, eu quero me apresen-tar no processo”, diz a ministra.

Cármen Lúcia avalia que algumas medidas aprovadas representaram avanços e eram necessárias diante das mudanças pelas quais o mundo passou depois de 1988. Em outros casos, porém, ela acredita que os parlamentares deveriam ter tido, no mínimo, o cuidado de ampliar mais o debate na sociedade, fazendo uso de Audiências Públicas. A emenda constitucional que possibilitou a re-eleição se inclui, na opinião da mi-nistra, no segundo caso. Ela ressalta, no entanto, que a edição de emen-das é legítima, uma vez que os par-lamentares receberam do povo a função de, entre outras atribuições, modificar a Constituição.

A Emenda nº 5� de �006 diminuiu de seis para cinco anos a idade dos filhos de trabalhadores urbanos e rurais com garantia de assistência gratuita em creches e pré-escolas.

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Eficácia

Em �0 anos de vigência da Carta Constitucional, é preciso reconhe-cer as virtudes e avaliar os proble-mas para solucioná-los. Para falar em virtudes, é necessário lembrar que a Carta Magna promulgada em 1988 representou a volta da democracia depois de décadas de ditadura. Bernardo Cabral diz que “sem a nova Constituição, o Brasil não estaria respirando o ar saudável das liberdades públicas e civis enfim restauradas”. Ives Gan-dra compartilha da opinião de Ca-bral e afirma que o Brasil tem um equilíbrio notável entre os três po-deres e que essa é uma das gran-des conquistas da nossa Lei Maior. “Passamos o impeachment de um presidente, processo inflacionário elevado, crise asiática e russa, cri-se interna, anões do Congresso, desvalorização cambial, mensalão com 40 indiciados pertencentes ao governo e a democracia fluiu naturalmente. Foram crises es-truturais da democracia e graças à Constituição passamos incólu-mes”, afirma Gandra.

Para falar de problemas da Cons-tituição, José Sarney é, desde a promulgação, uma fonte pro-missora. Na já citada entrevista à Folha de S.Paulo em fevereiro de �008, ele afirmou que, para que a democracia se aprofunde, é ne-cessário mudar a Constituição. “O meu sentimento é que nós temos um encontro marcado com um grande impasse político em ter-mos de futuro se não mudarmos a Constituição”, disse. Para ele, se não for realizada uma reforma política rapidamente, assistiremos a uma “completa paralisia das fun-ções dos poderes”. “O Congresso não funciona, o Executivo absorve funções do Congresso, o Judiciário absorve funções do Congresso. A atividade política morre, criam-se nichos de influência paralelas, o que é uma deformação do sistema democrático.”

Luís Roberto Barroso é a favor da reforma política e diz que, em sua opinião, é preciso reformar o sis-tema eleitoral, acabar com o siste-ma proporcional com lista aberta e implantar um sistema de voto distrital misto com lista fechada. Além disso, ele defende uma re-forma partidária que prestigie a autenticidade dos partidos e con-tenha com razoabilidade a pulve-rização partidária. O constitucio-nalista defende, ainda, as refor-mas tributária e previdenciária, no sentido de desconstitucionalizar amplamente as matérias, de forma a deixar na Carta Magna apenas as grandes diretrizes, o que for ver-dadeiramente essencial.

Barroso afirma que a Constitui-ção tem problemas em matérias administrativas e econômicas. O detalhamento da Carta promul-gada em 1988 produz, segundo

ele, uma dificuldade para a go-vernabilidade por impor a neces-sidade de emendas constitucio-nais sucessivas. “Em toda parte do mundo, os partidos políticos vitoriosos em eleições governam por maioria simples, que é o quo-rum necessário para a aprovação de uma lei ordinária. No Brasil, como tudo está na Constituição, a política ordinária acaba tendo de ser feita por emendas à Cons-tituição que exigem um quorum de três quintos dos membros de cada Casa Legislativa para a sua aprovação”, explica.

O constitucionalista ressalva, po-rém, que apesar das deficiências de origem, a prática da Constitui-ção de 1988 nestes últimos vinte anos foi muito feliz. “Nós esta-mos muito queixosos hoje porque passamos a ter pressa no avanço político e no avanço social. Mas

Os últimos �0 anos foram marcadas por

crises como a do impeachment do

presidente Fernando Collor (acima) e a do

mensalão (abaixo). Para Ives Gandra, o

Brasil passou incólume por elas graças à

Constituição de 1988.

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a quantidade de realizações im-portantes que nós conseguimos no Brasil nestes últimos vinte anos são notáveis. A prática dos pode-res ajudou a dar vida à Constitui-ção, inclusive superando as defi-ciências do seu texto em muitas situações.”

A ministra Cármen Lúcia concorda que existem problemas na Carta Magna brasileira, mas afirma que “o que ela tem de bom é muitíssi-mas vezes maior do que o que ela tem de ruim”. Bernardo Cabral evi-dencia que a Constituição firmou a liberdade de expressão, a liber-dade de comunicação, o acesso à informação, o sigilo da fonte, o fim da censura, dentre tantos coman-dos constitucionais do mais alto valor significativo. Roberto Rosas salienta outro grande avanço em sua opinião: a independência do Ministério Público e do Poder Judiciário em geral. “Muitos criti-cam, mas é muito importante essa estrutura do Judiciário bem apri-morada, especialmente no plano estadual. Hoje a carreira do juiz estadual não está subordinada ao Executivo”, diz.

Não é suficiente, claro, uma mera declaração solene de direitos. É preciso garantir meios para que eles possam ser usufruídos. Cláu-

dio Pereira lembra que o direito de inviolabilidade do domicílio implica a prévia existência de uma casa, de uma morada. Da mes-ma forma, de nada vale o direito à educação, se não forem criados meios materiais para a sua reali-zação. “A Constituição é cidadã, mas os próprios cidadãos é que precisam o ser em sua plenitude, principalmente no que tange aos direitos sociais e econômicos”, diz. André Ramos Tavares afirma que, para o cumprimento integral da Constituição, falta apenas tem-po. “Vinte anos, de maneira geral, é pouco tempo para a consoli-dação da Constituição, que não é algo isolado da sociedade, ela é a própria sociedade e o que a envolve”, diz. É preciso, segundo ele, apenas dar continuidade ao trabalho de consolidação da Carta Constitucional.

Toda lei quando é bem interpre-tada e bem aplicada, segundo Cármen Lúcia, pode apresentar resultados muito melhores que uma ótima lei mal interpretada. E, segundo ela, a Constituição tem sido bem interpretada e bem aplicada. “Pelo menos se tem um Poder Judiciário, que atua muito mais com vontade de aplicar e de tornar efetivas as normas constitu-cionais do que talvez jamais tenha

tido na sua história”, diz a minis-tra. Cláudio Lembo concorda com a importância do Poder Judiciá-rio na manutenção da democra-cia constitucional e afirma que a Constituição permanecerá como um documento estável em razão da possibilidade de revisão e da competência do STF. “A Constitui-ção americana tem �00 anos por-que o Supremo foi a interpretando a todo o momento, alterando cos-tumes e posições”, diz.

A Lei Maior promulgada em 1988 tem como grande mérito, na ava-liação de Cármen Lúcia, o fato de ter se tornado conhecida por gran-de parte dos brasileiros, o que, se-gundo ela, nunca tinha acontecido no país. Para Cármen Lúcia, deixa-mos de ser cidadãos que preferi-mos um mau acordo para não ter que ir à luta pelos nossos direitos, que aprendemos a exigir. O que falta agora, ela salienta, é fazer o mesmo compromisso em nome dos direitos daqueles que estão ao nosso lado. “Não há a possibi-lidade de termos um Brasil justo para todos os brasileiros enquanto todos não fizerem disso um com-promisso e uma responsabilidade pessoal”, explica. A ministra diz, ainda, que a Constituição não se torna efetiva apenas pelo ato do poder público, mas pela atuação da sociedade. Ela afirma que a dignidade é um compromisso com cada um de nós assim como a so-lidariedade, para que o outro tam-bém seja respeitado na sua digni-dade. “Se o Brasil não der certo de forma justa e democrática pra todos os outros, para nós também não estará dando certo”, diz.

Seja por iniciativa do poder pú-blico ou da população, ajustes e reformas são necessárias, mas as conquistas também são inegáveis. Organização e limitação do poder político e centralização dos direi-tos humanos são a síntese dessas conquistas representadas pela Constituição de 1988, segundo Luís Roberto Barroso. “Não quero vender a ilusão de que nós tenha-mos atingido um patamar ideal nessa matéria. Estamos, infeliz-mente, longe disso. Mas na vida o rumo é mais importante que a velocidade”, conclui.

Cláudio Pereira Neto lembra que é preciso garantir meios para que os direitos sejam usufruídos. De nada vale o direito à educação se não existem meios materiais para sua realização.

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1824 Foram garantidos di-reitos de primeira geração (civis e políticos). A Declaração dos Direitos do Homem e do Cida-dão, de 1789, inspiraram a in-clusão de liberdade, segurança individual e propriedade como garantias constitucionais. A De-claração continha também o direito de resistência à opressão, mas esse foi omitido na Consti-tuição de 18�4. A propriedade e a renda eram condições fun-damentais para o exercício do poder político.

Algumas das garantias foram:• liberdade de expressão do pensamento, inclusive pela imprensa, independentemente de censura;• igualdade de todos perante a lei;• abolição dos açoites, tortura, marca de ferro quente e todas as demais penas cruéis;• exigência de lei anterior e autoridade competente para sentenciar alguém; • instrução primária gratuita; • direito de petição e de queixa, inclusive o de pro-mover a responsabilidade dos infratores da Consti-tuição.

1891 A nova Constituição possibilitou, formalmente, que o poder político fosse exercido in-dependentemente do poder fi-nanceiro dos indivíduos. Seriam eleitores os cidadãos maiores de �1 anos, excluindo-se desse alis-tamento os mendigos, os analfa-betos, os religiosos sujeitos a voto de obediência e as mulheres. O voto, entretanto, continuava a ser aberto.

Além das garantias da Constituição de 18�4, acrescen-tou-se:

• plena liberdade religiosa, com a separação da Igreja do Estado; • liberdade de associação sem armas;• assegurou-se aos acusados a mais ampla defesa; • aboliram-se as penas de galés, banimento judicial e morte; • criou-se o habeas corpus com a amplitude de re-mediar qualquer violência ou coação por ilegalidade ou abuso de poder (depois restringiu-se o uso desse instrumento a casos relacionados à liberdade de lo-comoção);

• instituíram-se as garantias da magistratura (vitalicie-dade, inamovibilidade e irredutibilidade de venci-mentos), mas, expressamente, só em favor dos juizes federais.

1834A partir de 19�4, verifica-se maior inserção dos direitos so-ciais (direitos de segunda gera-ção) nas constituições brasilei-ras. Eles exigem do Estado mais participação para que possam ser implementados, ou seja, há a necessidade de uma atuação Estatal positiva. Em 19�4, as mulheres ganharam o direito ao voto.

Acrescentaram-se os seguintes direitos:• Instituiu a Justiça Eleitoral e o voto secreto;• normas para direito penal: instituiu o mandado da segurança; vedou a pena de caráter perpétuo; proi-biu a prisão por dívidas, multas ou custas; criou a assistência judiciária para os necessitados;• normas de proteção do trabalhador: repouso sema-nal, férias anuais remuneradas; proibiu de diferença de salário para um mesmo trabalho por motivo de idade, sexo, nacionalidade ou estado civil; criou da Justiça do Trabalho, salário mínimo capaz de satisfa-zer às necessidades normais;• direitos culturais: educação para todos, obrigato-riedade e gratuidade do ensino primário, inclusive para os adultos.

1937 A Constituição do Esta-do Novo fortaleceu o Poder Execu-tivo federal e ignorou a autonomia dos entes da federação. Leis even-tualmente declaradas contrárias à própria Constituição autoritária, ainda assim podiam ser validadas pelo presidente. O plebiscito para a aprovação da Carta nunca che-gou a ser realizado.

A Constituição declarou o país em estado de emergência e trouxe vários retrocessos no âmbito dos direitos dos cidadãos:• a magistratura perdeu suas garantias;• a liberdade de ir e vir foi suprimida;• foi estabelecida a censura da correspondência e de to-das as comunicações orais e escritas;• a liberdade de reunião foi suspensa;• passou a ser permitida a busca e apreensão em domicílio.

Direitos humanos nas constituições brasileiras

Duas décadas de democracia

Revista Fórum CESA - ano � • n. 9 • p. �4-4� • out./dez. �0084�

1946 Marcou um retorno democrático com a consolidação de um sistema político fundado na democracia representativa. A Constituição de 1946 restaurou os direitos e garantias individuais, que foram mais uma vez ampliados, em comparação com o texto constitu-cional de 19�4.

Foram algumas das conquistas:• o princípio da ubiqüidade da justiça;• a soberania dos veredictos do júri e a individualização da pena;• normas de proteção do trabalhador: salário mínimo ca-paz de atender às necessidades do trabalhador e de sua família; participação obrigatória e direta do trabalhador nos lucros da empresa; proibição de trabalho noturno a menores de 18 anos; assistência aos desempregados; obrigatoriedade da instituição, pelo empregador, do seguro contra acidentes de trabalho; direito de greve; liberdade de associação profissional ou sindical. • direitos culturais: gratuidade do ensino oficial ulterior ao primário para os que provassem falta ou insuficiência de recursos; obrigatoriedade de as empresas em que trabalhassem mais de 100 pessoas manterem ensino primário para os servidores e respectivos filhos; obriga-toriedade de as empresas ministrarem, em cooperação, aprendizagem aos seus trabalhadores menores; institui-ção de assistência educacional em favor dos alunos ne-cessitados, para lhes assegurar condições de eficiência escolar.

A partir do golpe de 1964, no entanto, a Constituição de 1946 sofreu múltiplas emendas e suspensão da vigência de muitos de seus artigos. Isso aconteceu por força dos Atos Institucionais de 9 de abril de 1964 (posteriormente consi-derados como o de n° 1) e de �7 de outubro de 1965 (Ato Institucional de n° � ou AI-�).

1967 A Constituição promul-gada durante a ditadura militar au-mentou os poderes concernentes à União e ao presidente da Repúbli-ca, reduziu a autonomia individual, permitiu a suspensão de direitos e garantias constitucionais e refor-mulou os sistemas tributário e or-çamentário.

Alguns dos retrocessos foram:• supressão da liberdade de publicação de livros e peri-ódicos ao afirmar que não seriam tolerados os que fos-sem considerados (a juízo do Governo) como de propa-ganda de subversão da ordem;

• restrição do direito de reunião facultando à polícia o poder de designar o local para sua realização;• criação da pena de suspensão dos direitos políticos, declarada pelo Supremo Tribunal Federal, para aquele que abusasse dos direitos de manifestação do pensa-mento, exercício de trabalho ou profissão, reunião e as-sociação, para atentar contra a ordem democrática ou praticar a corrupção;• manteve todas as punições, exclusões e marginaliza-ções políticas decretadas sob a égide dos Atos Institu-cionais;• inovações contrárias ao trabalhador: redução para 1� anos a idade mínima para o trabalho; supressão da esta-bilidade como garantia constitucional e estabelecimen-to do regime de fundo de garantia, como alternativa; restrições ao direito de greve; supressão da proibição de diferença de salários por motivo de idade e nacio-nalidade.Nesta Constituição verificam-se também algumas con-cessões vantajosas aos trabalhadores, como o direito ao salário família, em favor dos dependentes do tra-balhador; proibição de diferença de salários também por motivo de cor, circunstância a que não se referia a Constituição de 1946; participação do trabalhador, eventualmente, na gestão da empresa; aposentadoria da mulher, aos trinta anos de trabalho, com salário in-tegral.Em contraste com as restrições sofridas durante a dita-dura militar, a Constituição de 1967 determinou que era imprescindível o respeito à integridade física e mo-ral do detento e do presidiário, preceito que não existia, explicitamente, nas Constituições anteriores. A eficácia desse artigo não saiu, entretanto, da teoria, dado o cli-ma geral de redução de liberdade e a conseqüente im-possibilidade de denúncia dos abusos que ocorressem.

1988 As garantias fundamen-tais foram tratadas logo nos primei-ros artigos da Constituição e decla-rados cláusulas pétreas pelo Artigo 60, parágrafo 4°.

Alguns importantes direitos conquistados:• livre expressão da atividade intelectual, artística, cien-tífica e de comunicação, independentemente de cen-sura ou licença;• o racismo passou a ser crime inafiançável e impres-critível;• proteção à vida privada, à intimidade, à honra e à imagem das pessoas;• a determinação de que propriedade deverá atender a sua função social;• o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibra-do, impondo-se ao poder público e a coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.