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PROSA Editora Literária Prosa, N.º 9 César e a Vestal Capítulo IV (87-86 a.C.) Maria Galito 2017

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Page 1: César e a Vestal · Sila ditou a sorte de Roma ao invadir as muralhas sérvias e abriu portas à vingança de Mário, ao sair da cidade para combater o rei Mitridates

PROSA

Editora Literária

Prosa, N.º 9

César e a Vestal

Capítulo IV

(87-86 a.C.)

Maria Galito

2017

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Capítulo IV

667-668 AUC

Um regime bipartidário dominado pela demagogia e pela violência consumia Roma.

Há precedentes que mudam o sistema. Sila ditou a sorte de Roma ao invadir as muralhas sérvias e abriu portas à vingança de Mário, ao sair da cidade para combater o rei Mitridates. A raposa de Arpino aproveitou a oportunidade para regressar em força, mas, sem apoios, não tinha conseguido fazê-lo.

O culpado é Cina! – Queixou-se Metela, que agora liderava o templo de Vesta.

É patrício dos Cornélios, tal como Sila. Julguei que gostasses dele. – Disse-lhe.

Não, porque é um mariano disfarçado. – Rosnou Metela. Desconfiei da sua versão, pois havia antecedentes a levar em consideração:

Eu não tenho a certeza disso. – Adverti, antes de explicar a minha ideia. – Nada indicava que Cina fosse um popular, a fingir ser optimate. Mas Sila humilhou-o em público e há atitudes que não se perdoam.

Cina vencera as eleições de 667 AUC, enquanto solução de compromisso, em tempos conturbados. Mas Sila não confiava nele e, perante o olhar estupefacto da cidade, obrigou-o carregar uma grande pedra do fórum ao Capitólio sob ameaça: E agora reza para não me desagradares, ou eu atiro-te cá de cima [da Rocha Tarpeia] da mesma maneira que hoje atiraste essa pedra. Não era exemplo cívico e prestava mau serviço à República.

Foi um tormento de Sísifo! – Identifiquei, pois conhecia as lendas gregas. Tinham-se ultrapassado todos os limites do razoável. Perpena avisou-nos:

O meu avô disse-me que o rancor de Cina por Sila é grande!

Mas há meses que ele se sujeitava a Sila de forma abjeta. Porquê? – Estranhei.

Por questões estratégicas. – Propôs Perpena.

O teu avô pensa isso? – Coloquei-o em causa. – Nem penses! Um patrício não pode descer tão baixo. A honra vem primeiro!

Ora! O sangue patrício está gasto? – Escarneceu Popília. Por ser plebeia?

Onde há dois patrícios, um está sempre a mais. – Troçou Perpena, outra plebeia.

Vocês criticam-nos por não gostarem de nós, ou por invejarem a nossa classe? – Perguntei frontalmente, de peito aberto e mãos na cintura.

Oh cresce e aparece! – Atirou-me Popília.

À tua conta não tenho feito outra coisa desde que cheguei ao templo! – Ironizei.

Ótimo! Isso significa que estou fazer um bom trabalho. – Arrogou Popília. Enfrentei a sua bazófia:

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És parva, ou fazes-te? A situação não é para brincadeiras! Roma está novamente à beira da guerra civil. – Constatei.

Quero lá saber da briga entre galos!

Ela referia-se a Sila e Cina, ambos patrícios. Os galos eram animais considerados nobres, pois tinham crista (nasciam com coroa na cabeça) e lutavam com infinita coragem. Os romanos da República identificavam-se com lobos, mas os patrícios ainda eram acusados, pelos plebeus, de se comportarem como galos, ou seja, como guerreiros do tempo da monarquia. Às vezes, os plebeus recebiam o epíteto de galos quando procediam de patrícios de cidades conquistadas e tinham, portanto, sangue real estrangeiro.

Não faz sentido haver rivalidades entre patrícios e plebeus, quando todos fazemos parte da República! – Advoguei. Estava a ser sincera.

Uns mais do que outros, apesar de tudo. – Queixou-se Perpena.

Vivemos numa cidade de filhos e enteados! – Reclamou Popília. Abanei a cabeça, revoltada:

O quê? Vocês protestam numa época em que há maioria de plebeus em qualquer órgão do Estado! Aqui no santuário eu sou a única patrícia!

Julgas ser mais do que eu, ora confessa! – Exclamou Popília, com fel na língua.

Tu é que te sentes inferior a mim! – Atirei-lhe em resposta.

Para começar… eu sou mais alta! – Ameaçou Popília, olhando para baixo. O argumento era ridículo.

Finges-te vítima, mas és carrasco. – Acusei, sem me deixar amedrontar. Ela mostrou-me os dentes:

Coitadinha estou cheia de pena! – Ironizou Popília, avançando sobre mim. Encarei-a com unhas e dentes:

Eu não tenho medo de ti. Nem de ninguém! – Resisti, com valentia. – Enfrento-te as vezes que foram necessárias, para me defender, a mim e aos meus direitos. Tens de respeitar-me!

Eu não tenho de fazer nada que eu não queira. – Gritou Popília, profundamente irritada. – Vai filosofar para a casa de teu pai!

Se pudesse, eu não estava aqui. Mas, uma vez que vivo no santuário, vocês têm de tratar-me bem!– Fiz questão de avisar. Popília fez-me uma careta. Desafiava-me, a incauta! Em resposta, agarrei-a pelos ombros e sentei-a à força. O que não foi fácil, atendendo a que ela era pesadona. Felizmente, eu podia medir forças com ela. – Ouve bem! Estás absolutamente proibida de me faltar ao respeito! Eu não admito faltas de consideração.

Acalmem-se! – Foi a ordem de Metela. Ela não tinha metade da autoridade da predecessora e Popília fazia-se de mártir:

Ela é que começou. – Queixou-se, com tom de voz agressivo. Antes que Metela reagisse a favor da colega, dirigi-me a todo o grupo e disse:

Escutem as minhas palavras. Vamos viver em paz no templo, estamos entendidas? A partir de agora, tratamo-nos umas às outras como gente civilizada. Acabaram as partidas de mau gosto e as conversas paralelas. Somos vestais! Temos de dar o

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exemplo e não é só aos outros, é a nós mesmas! – Exclamei. – Assim fica a questão resolvida de uma vez por todas! Estou a falar a sério e não admito ser contrariada!

Entreolharam-se. Engoliram em seco e acataram a minha nova disposição. Queres a paz, prepara-te para a guerra! Já dizia o meu irmão. Nunca fui muito apologista, mas naquele dia não houve alternativa.

O colégio de pontífices preencheu finalmente o lugar deixado vago pela sumo-sacerdotisa suicidária. Por influência de Sila, a nova vestal era uma patrícia. Chamava-se Fábia e preferia a companhia de Popília, pois as duas eram optimates e conheciam-se através de Terência, a meia-irmã da rapariga.

Fábia ingressou no nosso templo com oito anos. Já era bonitinha, com rosto simétrico e olhos castanhos. Em temperamento era altiva, como Popília. Não tinha vocação para o sacerdócio. Mas, ao contrário de mim, jamais fazia perguntas, pois não estava interessada em compreender o sistema e simplesmente agia de acordo com o esperado. Quando discordava, calava-se, fingia adaptar-se ou mentia. Agia na retaguarda, como uma miúda mimada. Ela fazia-se de vítima das conspirações que, por motivos pueris, engendrava. Não admira que se desse bem com Popília, eram farinha do mesmo saco! Mas com Perpena, entrou em choque. A tensão negativa entre elas era evidente, obrigando Popília a intervir. Mas dali não nasceu triunvirato. As duas mais velhas, habituadas a trabalhar em conjunto, foram-se afastando paulatinamente.

Portanto, o primeiro contributo de Fábia, no santuário, foi negativo, no sentido em que alimentou a discórdia. Lembro-me de o comentar com Metela.

Tem paciência, Emília. – Pediu a nova sumo-sacerdotisa. – Ela aprende. Todas nós, enquanto vestais, passámos por um processo de ajuste.

Não acredito. Mas vamos esperar para ver. – Admiti, cruzando os braços.

Eu não me queixo da situação. Foi-me benéfica. Perpena, sentindo-se abandonada pela amiga de longa data e porque a minha família era popular, alterou radicalmente de postura em relação a mim.

Sabes que mais, Emília. Tens razão. Vamos ser amigas. – Foi a sua proposta.

O que te fez mudar de ideias? – Perguntei, julgando saber a resposta.

Livra! Comparadas com vocês, patrícias, as plebeias parecem ovelhas.

Ah? – Eu tinha sido apanhada de surpresa.

As plebeias brigam com as patrícias. Mas vocês, entre si, odeiam-se! Ela nem olha para ti. Evita-te a todo o custo. Nunca vi animosidade tão gelada como a vossa. – Declarou, sem esboçar sorriso, como se levasse a sério a ameaça que a nossa suposta rivalidade, em sociedade, representava. Sinceramente não percebi o que ela me dizia:

Não vejo as coisas assim. Eu não tenho nada contra Fábia. Nem estou em guerra contigo ou com ninguém! Vê se entendes, de uma vez por todas, que eu sou a favor da paz e da harmonia entre vestais e, no geral, entre romanos. Ela observou-me com atenção. Deve ter concluído que eu era inocente.

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Se deres uma mão a Fábia, ela arranca-te o braço. – Avisou-me.

Por Vesta! Fábia é uma criança. Ela tem oito anos. – Negligenciei.

Quem avisa, amiga é. – Rematou Perpena, lavando as mãos do assunto. Respirei fundo e aceitei a oferta de paz:

Agradeço o aviso, Perpena. Foi simpático da tua parte. – E sorri-lhe.

Perpena ficou satisfeita e tornámo-nos amigas. Metela e Fábia já o eram. Popília e Fábia podiam ter feitio difícil, mas não me causavam problemas e até se esquivavam. As colegas desentendiam-se mais entre si do que comigo.

Até porque eu tinha outras prioridades. Enquanto vestal, centrava as minhas atenções nos romanos, na cidade e nas suas necessidades, que eram muitas. O fogo de Vesta já não era branco e a malha urbana, de casas construídas muito juntinhas, lastimava em eco. Não havia, propriamente, uma onda de clamor. Mas o povo não sossegava.

Sempre que eu saía do fórum, para participar num ritual religioso, regressava consternada ao átrio das vestais. Tinha razões para isso. A crise política, ao invés de culminar, apenas piorava.

Porque é que os senadores não se entendem? – Perguntei a Metela, numa tarde em que aquecíamos as mãos no fogo de Vesta.

Porque os romanos não fazem bom uso da Cúria Hostília. – Respondeu-me.

Como assim? Não estou a perceber. Ela já estava à espera disso. Não fez cara de caso.

Não há homem rico que se sinta confortável fora do hemiciclo depois de atingir os trinta anos. – Admitiu ela. – Mas quantos cidadãos sabem para que serve o Senado? Querem ser admitidos num clube que consideram prestigiado. Mas, depois de entrarem, fazem o quê?

Não há República sem o cumprimento cívico dos deveres dos senadores. – Frisei.

És ingénua! Eles reclamam direitos mas não assumem as obrigações.

Pensam mais no seu próprio umbigo, do que em Roma, é isso?

Eles faltam às sessões! Quando as frequentam, brigam-se. Passam mais tempo em intrigas do que a fazer o que lhes compete, que é gerir o Estado e ajudar os cônsules a governar. – Contra-argumentou Metela.

Não fazem pactos de regime, portanto.

Cina comportava-se de forma ambivalente. A princípio foi considerado um moderado. Agradava aos optimates. Mas ganhou fama de radical ao defender a restauração dos poderes da Assembleia da Plebe, a amnistia de exilados políticos como Mário e os direitos das tribos italianas a quem fora atribuída cidadania romana durante a guerra. Da sua perspetiva, eram medidas justas e necessárias ao restabelecimento da ordem destrambelhada por Sila. Mas foi expulso do Senado. Ouvi falar nisso numa assembleia na Cúria Régia:

Quem vai substituir Cina? – Perguntou Mamerco a Cévola. O interlocutor ficou a matutar no assunto.

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A peste alastrava pela cidade. Parte significativa da população desesperava com febre e dirigia preces a Jove. Por isso, o fórum pediu ajuda ao Capitólio e reforçou os poderes do seu flâmine.

Não era normal um sacerdote de Júpiter assumir a magistratura. Mas, em circunstâncias de absoluta exceção, a Cúria Hostília entregou poderes de cônsul júnior substituto a Mérula. Ele não abdicou do apex ou do traje com laticlavo franjado e comprido, que lhe tapava as mãos e, com toga de cinto que não podia apertar com nós, sentou-se na cadeira curul.

Enfiaram o barrete ao cônsul. – Suspirou Marco, encostado ao portão do santuário.

Ele tinha vindo visitar-me e eu sorria aos seus trocadilhos de palavras. De facto, o flâmine de Júpiter usava chapéu enrubescido que, até a um tímido, dava enfoque na multidão!

Mérula estava proibido de sair da cidade e de dormir fora da sua cama oficial, mais do que três dias consecutivos! Escoltado por um lictor, não podia montar a cavalo nem tocar em ferro. A guerra estava-lhe vedada.

Escolhemos um cônsul que nos vai ser de grande ajuda. – Ironizou o meu irmão.

Pelo menos é pacífico. – Reconheci.

Ou uma potencial vítima. – Alertou Marco.

Coitado do homem!

Não lhe desejo mal, só que… expôs-se ao perigo.

Infelizmente estamos todos em risco. – Suspirei. – E tu, como estás?

Eu estou bem. – Sorriu-me. Não fiquei convencida.

E os teus filhos? E Apuleia?

Estamos todos bem. – Garantiu. Fiquei com a sensação que ele mentia com todos os dentes; para me proteger da verdade e para que eu não lhe fizesse perguntas incómodas.

Vou orar por vocês a Vesta. – Disse-lhe. Ele deu-me um beijinho na testa. Metela deixara-nos sozinhos e ele pouco se ralava com o protocolo.

Protege-te, que estes dias não estão para perdizes à solta! Senti-me na obrigação de lhe lembrar que o ónus da prova recaía sobre ele:

Tu é que tens de ter cuidado! Eu vivo num santuário. Quem vai entrar aqui?

Em princípio estás guardada, mas nunca fiando. – Alertou e eu concordei.

Tenho enfrentado mais resistência dentro do templo, do que fora dele…

Das outras vestais? A antiga sumo-sacerdotisa tinha mau feitio, eu lembro-me! Metela é menos rígida e até nos deixa conversar, aos dois. Mas se for preciso, defende-te! – Fez questão de frisar.

Já as enfrentei. Reivindiquei o meu espaço. Ninguém se mete mais comigo.

É isso mesmo! Mantém a cabeça erguida. Ninguém tem o direito de colocar-te as patas em cima. Não te deixes amesquinhar. És uma Emília, mostra o teu valor.

Combinado. – Garanti-lhe. – Mas e tu, tens a certeza que ficas bem?

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Queridinha, não te preocupes. Está tudo sob controlo.

Marco despediu-se com ternura e eu retribui na mesma moeda. Eu adorava o meu irmão! Acenei-lhe, até que ele deu a curva e desapareceu do meu horizonte.

Depois disso, tudo correu de mal a pior! A desgraça de Mérula arrepiou-me. O nosso flâmine de Júpiter ocupava o cargo de cônsul há pouco tempo, quando soube que Mário e Cina regressavam a Roma à frente de um exército. Ergueu-se no Senado e advertiu sobre as reais intenções dos dois rebeldes, quando a maioria dos senadores ainda acreditava no sucesso de uma política de desanuviamento.

Mérula discursou contra a marcha mariana sobre Roma e fez disso uma causa pública. Mas falhou no intento e entrou em pânico. Concluiu que a sua cabeça estava a prémio. Não quis ser torturado e humilhado por terceiros. De acordo com os mais tradicionais princípios romanos, encheu-se de coragem e, na sua residência, cortou os pulsos.

Mérula suicidou-se? – Horrorizei-me. Eu não queria acreditar!

O sacerdote de Jove nunca me fizera mal e sempre tivera apreço por mim. Fiquei triste com a sua morte, pois era homem íntegro.

E agora? – Inquiriu Metela. Ela levara-me à Domus Publica e eu olhava para os adultos à procura de respostas.

Substituímo-lo. – Replicou Cévola, qual corte administrativo. O pontífice máximo parecia preocupado, mas não queria demonstrá-lo.

Mérula é substituível? – Perguntei.

Que remédio... – Disse ele. A frieza das palavras de Cévola contrastava com a sua real consternação.

O suicídio de um flâmine de Júpiter pode enfurecer o deus do Capitólio…

Julgas que eu não sei, miúda? – Rosnou Cévola, irritado. Metela colocou-me a mão no ombro e eu, percebendo a mensagem, calei-me.

Para quando está prevista a chegada de Mário? – Questionou ela.

A raposa de Arpino já tem o exército acampado às portas da cidade. – Avisou Cévola. Era aquela a razão pela qual estava tão nervoso e embrutecido.

Isso é grave. – Reconheceu Metela.

Vão para o templo e fechem o portão do santuário. Não saiam à rua, sob nenhum pretexto, nos próximos dias. Têm provisões suficientes?

Sim, Cévola.

Então vão! Rápido.

As muralhas sérvias cumprimentaram o exército de Mário, dividido em quatro grupos de forças armadas: um liderado pelo próprio comandante, com veteranos provenientes da província de África; outro por Cina, que reunira aficionados na cidade de Nola; um terceiro comandado por Sertório; além dos legionários de Carbão.

O Senado escolheu alguns dos seus membros como embaixadores temporários, para manter o diálogo entre as partes, partindo do suposto que Mário e a Cina estavam

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dispostos a negociar. Depois da reunião, foi-lhes permitida a entrada na cidade. Os retornados deixaram o exército para trás, mas não foram desarmados. Tinham proteção dos bardeus, uma escolta mercenária constituída por libertos pagos a soldo.

Os senadores, que tinham ficado no fórum, foram ter com eles. Mário insultou-os por ter sido banido como um cão raivoso, com base em leis espúrias desenhadas para denegrir a sua imagem. Ele não parecia disposto a perdoar e a tensão sentia-se à distância.

Ele está irritado. – Constatei, pois o perfil do comandante era fácil de identificar. Perpena e eu espreitávamos a rua, agarradas ao portão do santuário.

O interlocutor é o cônsul sénior, vês? – Apontou. Mas não era isso que me preocupava.

O meu pai deve ter sido escolhido como embaixador. Marco talvez esteja inserido no grupo maior. Mas não tenho a certeza. Não vejo nenhum dos dois…

O meu avô é aquele mais velho, à esquerda. – Indicou. Só me lembro de um homem de cabelo branco, mas ainda ágil.

Eles estão todos com cara feia. Tenho mau pressentimento…

Então, vem! Fecha o portão e vamos para dentro. – Pediu-me.

Foi a nossa sorte! Os confrontos iniciaram pouco depois e alastraram a toda a cidade. Recordo o barulho das espadas e o relinchar dos cavalos. Parecia que as pessoas corriam desenfreadamente, de um lado para o outro, junto ao muro do santuário.

Mas o que é que se passa? – Inquietei-me, com medo pela minha família.

Emília vem para o templo se faz favor! – Mas era uma ordem. Acudi a Metela e sentei-me a seu lado. As colegas estavam tão apreensivas quanto eu.

Não saímos do santuário nesses dias e, do templo, apenas para confecionar comida ou cuidar da higiene. De resto, dormimos no chão duro, junto ao fogo sagrado e o nosso sustento era rezar, a fumegar pelos cabelos com o coração apertado.

Não cheguei a temer pela vida, por considerar o santuário inviolável. Mas ninguém duvidou que se tratava de uma nova incursão militar no pomério quando os legionários marcharam sobre Roma. Duas invasões deixavam bem claro, portanto, que as muralhas sérvias não nos protegiam dos inimigos da paz romana, nem dos líderes mais votados da República.

Os espíritos pareciam dominados pela vendeta, pela vontade de castigar os adversários políticos e por interesses mesquinhos. Cina fora substituído por Mérula no cargo de cônsul júnior. O primeiro fora eleito, mas expulso. O segundo fora nomeado pelo Senado, porém, suicidara-se. Cina reivindicava agora legitimidade para governar, queixando-se da ilegalidade da sua destituição.

Mário era inimigo público, em título. A coação imposta por Sila ainda não fora levantada, mas o Senado concedera-lhe uma segunda oportunidade. Qual foi a reação da raposa de Arpino à reabertura nas negociações? Soltou os cães pelas ruas.

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Nós estamos a ser invadidos por concidadãos… pela segunda vez, caramba! – Queixei-me em voz alta.

Tenho de escrever a Dalmática. – Anunciou Metela, de olhos fixos nas labaredas. A mulher de Sila exilara-se na Grécia com os filhos, para se manter próxima do marido, que combatia na Ásia. As primas correspondiam-se amiúde.

Vais contar-lhe o quê? – Perguntou Fonteia.

Vou pedir-lhe que Sila nos venha salvar! – Confessou e eu tremi de preocupação.

De repente, alguém bateu à porta do santuário. A nossa chefe entrou em pânico e mostrou-se incapaz de responder ao chamado, agarrando-se ao Paládio. Popília também hesitou em deixar o fogo sagrado. Fábia era inexperiente e uma recém-chegada ao átrio das vestais, incapaz de tomar a iniciativa. Eu, pelo contrário, enchi-me de coragem, saí do templo e desci as escadas. Fonteia não queria que eu fosse sozinha e designou Perpena para me acompanhar. A rapariga queixou-se, fez birra, tudo em vão. Acabou por seguir-me como voluntária à força.

Tenham cuidado. – Pediu Metela, enquanto Fonteia nos seguia os movimentos.

Avancei resoluta em direção ao muro. Tinham sido dias longos que nunca mais acabavam. Eu sentia necessidade de confrontar a realidade, de perguntar sobre a minha família. O compasso de espera exasperava mais do que o medo. Eu já não aguentava aquele impasse!

Perpena ajudou-me a retirar a tranca do portão. Este abriu-se a rostos familiares. Dois lictores, que protegiam os sacerdotes há anos, avisaram-nos que o pontífice máximo solicitava a presença das vestais, na Domus Publica, em reunião presidida por Mário.

Isso quer dizer que os populares venceram os optimates. – Sussurrou-me Perpena, mais animada. – Anda, o meu avô deve lá estar…

Agarrei-me às seis tranças. Encapuzei-me com o traje de sacerdotisa bem apertado. Entrei na via-sacra, sob a luz de um sol intimidado. Admitindo que a batalha terminara, não me coibi de fazer perguntas:

Um áugure pode liderar uma assembleia do colégio dos pontífices na Cúria Regia?

Quem manda é o sumo-sacerdote. – Retorquiu, medindo as palavras.

Não me digas que aconteceu alguma coisa a Cévola? Ela engoliu em seco.

Não sei. Talvez seja uma assembleia extraordinária a pedido do áugure…

Interrompi-lhe o raciocínio, quando os meus pés ficaram rubros de sangue. Senti uma sensação nauseabunda e molhada, até pastosa, pois aquilo não era uma poça de água e, a curta distância, havia um cadáver no chão.

Arrepiei-me. Perpena agarrou-se a mim, engolindo a língua e, com ela, as palavras que preferia calar. Sacudi a sandália, contornámos a cabeça separada do pescoço do legionário desfalecido e seguimos em frente. Avistámos mais mortos. O cenário era degradante. Em plena via-sacra havia corpos tombados com roupas romanas. Também havia feridos, a gemer e a contorcer-se.

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Abre os olhos, Perpena, temos de ajudá-los. – Pedi, compadecida.

Nem penses! Eu não fico aqui, que tenho medo. – Assustou-se.

Ela puxou-me pelo braço e deu ordens aos lictores para nos afastarem das gangrenas. Depois empurrou-me para dentro da Cúria Régia. Foi com dor-de-cabeça que me deixei iluminar pelas tochas acesas e segui as vozes pelo corredor.

Os sacerdotes apinhavam-se num espaço confinado. Como eles chegavam cronicamente atrasados às assembleias, obriguei-me a concluir que tinham vindo, a correr, borrados de medo. De quem? Em silêncio expectante, eles escutavam a um homem calvo com pernas a rebentar de varizes, junto ao estandarte de uma águia.

Era Mário! Eu não via o líder dos populares há dois anos. Nunca o desassociara da minha puerícia. Recordava as suas histórias de batalhas, na companhia do sobrinho, a comer torradas com manteiga das Gálias. Custava-me admitir que ele fosse responsável por entrada tão violenta em Roma. Portanto, eu ansiava por explicação para tão triste comportamento. Um homem seis vezes cônsul e herói da República, em quem o meu pai e Marco haviam confiado, devia ter uma justificação para dar-nos:

Caros colegas sejam bem-vindos! Reuni-vos aqui porque desejo falar-vos.

Há aqui membros dos quatro colégios de Roma, vês? – Murmurou Perpena.

Para além da comitiva de Mário, estavam concentrados cerca de vinte homens dentro da Cúria Régia, entre os quais pontífices, áugures e arúspices, decênviros e epulões. Também havia ausências notórias.

Cévola, apesar de ferido num braço, continuava vivo. Ao contrário do que era costume, o pontífice máximo não liderava a assembleia. Pálido e sem um pingo de sangue na pele já branca, mostrava-se abatido. Nem parecia a mesma pessoa, com grandes olheiras e olhos fundos.

Olhei em volta. Entre os rostos reconheci Albinovano. Pelos vistos, regressara à cidade. Enquanto senador do partido popular, pertencia ao grupo dos vencedores. Mas enterrava-se no assento de braços cruzados e rosto pesado. Aproximei-me para o saudar. Toquei-lhe no braço e ele encolheu-se, pois estava ferido. Saudou-me com reserva.

Onde está o meu irmão? – Perguntei a Albinovano.

Não os vejo desde o dia da invasão. – Sussurrou-me. – Mas sei que estão vivos, se é isso que perguntas.

Não se alongou nas explicações, mas disse-me o que eu queria ouvir. Depois indicou-nos o melhor lugar para nos sentarmos, o que me pareceu uma gentileza da sua parte.

Onde está Mamerco e Vopisco, sabes? – Questionei, pois não dava com eles.

Vopisco está morto. Mamerco fugiu com a família para fora da cidade.

Calei-me, com as mãos à frente da boca. Contive a respiração. Reparei que, numa mesa ao fundo, estava esventrado um animal. Mário afirmou que o sacrifício garantia bons presságios, mas o desassossego de quem o escutava parecia indiciar o contrário.

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Os deuses estão contentes com a invasão? – Perguntei a Albinovano.

O comandante interpreta os presságios à revelia… – Balbuciou ele. O pontífice temia que Mário o ouvisse, mas este dirigia-se à assistência:

Meus compatriotas! Quero que saibam que não planeei combater entremuros, nem desejei a morte a nenhum dos homens que tombaram. Regressei a Roma com a intenção declarada de vos proteger da tirania de Sila.

Tens de contar-me o que se passou. – Pedi a Albinovano, de olhos pregados no seu rosto.

Ao que parece, Cina convencera Mário a dialogar com o Senado. Mas, quando os dois chegaram ao fórum, o comandante desabafou o que sentia e houve atraso na satisfação das suas exigências. O compasso de espera frustrou-o – mais do que isso, assustou-o! Sentindo-se vulnerável e temendo pela sua segurança, deu ordens aos bardeus para o defenderem. Os mercenários, com dois golpes de espada, mataram o cônsul sénior e um pretor. Foi o caos! Os intervenientes rapidamente perderam o controlo à situação.

Cina sentou-se na cadeira curul da qual fora expulso. A Cúria Hostília estava desfalcada. Só cinco senadores de registo consular se mantinham na cidade – os outros tinham fugido ou morrido – e eram eles: Mário, Cévola, Flaco, Filipe e o avô de Perpena. O primeiro era o verdadeiro líder da cidade. O segundo era líder religioso. O terceiro era flâmine de Marte. O quarto era amigo de longa data do comandante. O quarto permanecia vivo por ter fechado os olhos ao suplício dos seus parentes. Filipe e o avô de Perpena assumiriam o cargo de censores no mês de Jano do ano seguinte, sob especial recomendação do tio de César que se candidataria a cônsul, pela sétima vez.

Roma pagou caro pela ambição de Mário. Albinovano contou-me que a cabeça do cônsul sénior foi a primeira a rolar, logo no início dos combates. O homem teria sido derrubado da própria tribuna de oradores. Foi esmurrado até deixar de oferecer resistência e esquartejado pelos bardeus.

O pretor, que estava a seu lado, pereceu em seguida. O seu crânio, de olhos esvaziados e cogote fendido, foi enfiado numa estaca sem misericórdia.

Vem comigo. – Pediu Perpena, que não queria ir sozinha com o avô até aos rostra.

Eu não quero ver as cabeças espetadas. – Avisei imediatamente, afincando o pé.

Não faças figuras! Somos vestais. Temos de ir com eles. – E puxou-me.

Os pontífices sentiram-se na obrigação de supervisionar o palco de guerra, como quem avalia as entranhas de um animal sacrificado e eu fui puxada pela corrente em direção a espetáculo macabro!

Ao lado de Albinovano e de Perpena, mas inserida num cortejo maior, constatei uma realidade que, só de pensar era revoltante, mas que, presencialmente, era uma tragédia em céu aberto! Crânios cabeludos a pingar sangue eram ostentados qual troféus de guerra. A barbárie descera à cidade.

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Lembro-me dessa tarde, como se fosse hoje! Nem parecia que estávamos no fórum magno. Recusei-me a avançar non terreno, temendo cair num precipício de esgares, olhos esvaziados e pescoços gotejantes. Mas devo ter sido a única.

Quem são estes homens, Albinovano? – Inquiriu Perpena, alguns passos à frente. Albinovano identificou os mortos, cujas almas já haviam abandonado os corpos:

Este é o pai e o irmão mais novo de Crasso. Eu preferi nem olhar. Fiquei-me pelos contornos.

Eles suicidaram-se. Não foi Mário quem os matou, Que isso fique bem claro.

Sabes lá tu! – Exclamou Albinovano contra o comentário do avô de Perpena.

Enquanto proscritos de Mário, tinham morrido como inimigos públicos e o Estado tinha-lhes confiscado os bens. O paterfamílias era neto de um dos pontífices máximos de Roma e tivera três filhos. O mais novo caíra sobre terra a seu lado. O primogénito falecera anos antes, na guerra contra os italianos. O do meio estava exilado e era aliado de Sila.

Crasso ainda está vivo e isso não me agrada nada. Ele é um bom líder militar. – Avisou o avô de Perpena. – Estamos tramados com ele. Escreve o que te digo.

E este aqui, quem é? – Indagou Perpena.

O pai de Pompeu fora incumbido, pelo Senado, de lutar contra o exército de Mário. Mas, segundo se dizia, tinha sido fulminado por um raio. Provavelmente morrera em batalha. Pode ter sido assassinado. O seu crânio fora transportado para Roma e exposto.

O vesgo era duro de roer. – Revelou o avô de Perpena, com voz rasgada. – Um dos homens mais difíceis que conheci. Não vai ser chorado.

O filho tem fama de Alexandre Magno. Pode vingar-se. – Avisou Albinovano.

Também o conheço. Vai desforrar-se de certeza. – Admitiu o ex-cônsul.

Os troféus incluíam as cabeças cortadas de um censor e de um pontífice. Os esgares de Lúcio e de Vopisco podiam ser observados junto à Curia Hostília.

Lúcio dava mais luta. O irmão nem por isso. – Comentou Albinovano.

Outro vesgo. Vopisco não tinha corpo para dar ao manifesto. Era orgulhoso e fraco, uma combinação ridícula nos dias de hoje. – Criticou o avô de Perpena. Fiquei escandalizada com a conversa e empurrei Albinovano, de tão furiosa:

Vopisco era nosso colega! Como podes ser tão insensível? Coitado do homem. Ele ainda pensou em reagir, mas eu desatei a chorar e Albinovano desistiu do intento. Suspirou, optando por afastar-se. Perpena abraçou-me, tentou consolar-me e a procissão perdeu fulgor.

Entre as cabeças cortadas estava a de Lutácio, que combatera os Cimbros com Mário, quando foi seu colega de consulado. A dada altura os dois brigaram e o mais novo aliou-se a Sila. Por isso foi sentenciado à morte. Os apelos dos amigos, na tentativa de o salvar, foram infrutíferos. É preciso que ele morra! Terá gritado Mário a quem o queria ouvir. O

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alvo de tanto ódio preferiu suicidar-se inalando o fumo de uma fogueira a arder no seu quarto fechado.

Mário considerava Lutácio um traidor, por este lhe ter passado a perna. Não lhe ia perdoar nunca! – Opinou o avô de Perpena.

É difícil absolver a deslealdade. – Disse Albinovano.

Em paz muitos invocam a ética. Na guerra poucos a praticam. – Alertou o avô de Perpena. A sua experiência de vida fazia dele um bom vidente, pois adivinharia o futuro do interlocutor.

O fim de António Orador também causou comoção entre os seus pares. Ele refugiara-se em casa de um amigo, que gentilmente o acolheu. Mas este tinha um escravo a quem incumbiu de comprar vinho de primeira qualidade para agradar ao convidado; o qual se embebedou pelo caminho e trauteou para paredes com ouvidos. Foi assim que os bardeus descobriram o paradeiro do retórico. O advogado ainda tentou salvar-se recorrendo a belas palavras e quase conseguiu. Mas o rufia, que liderava os captores, insistiu em degolá-lo e mandou matar toda a gente daquela casa.

Como é que Mário manda matar um homem destes? Eu não entendo! – Assombrou-se Cévola. – Ele era mais brilhante dos oradores da sua geração!

António Orador era vaidoso, dizia umas patacoadas. Mas, sinceramente, que mal fazia? – Admitiu Albinovano.

Vocês endoideceram? Há anos que ele lançava invetivas contra Mário, nos seus discursos. Enquanto ele fosse vivo, o comandante não tinha descanso. – Admitiu o avô de Perpena.

Aquela cabeça é de quem? – Estranhou Albinovano. – Parece que o conheço…

É um senador de última fila. Ousou criticar Mário e ontem foi atirado da Rocha Tarpeia. – Esclareceu o avô de Perpena, com frieza. – Por isso é que o crânio está esmagado…

Ouviram a história do senador que se salvou graças à fidelidade dos seus escravos? – Troçou Albinovano, como se o tema tivesse piada. – Eles esconderam-no. Depois, dependuravam um cadáver perdido na rua e colocaram-lhe, num dedo, o anel do dono da casa, para fingir que ele se tinha enforcado. Os rufias só se foram embora após assistirem ao (falso) funeral. Mas ele sobreviveu e conseguiu escapar. Foi um vizinho que me contou, ontem.

Cala-te, antes que te ouçam! – Exclamou Cévola, pisando-lhe os calos.

As histórias causavam asco! Mário era acusado de atentar contra a vida de senadores, de alto perfil e das filas traseiras da Cúria Hostília, mas poupou o povo. Talvez por isso, a arraia-miúda não se virou contra ele e continuou a apoiar o seu campeão, admitindo justificável aquele ataque à elite corrompida.

Deixei Perpena entregue ao avô, Albinovano ao quadro grotesco que contemplava e fui-me embora do pé deles! Pelo caminho, limpei as lágrimas. Subi pela vereda do fórum até

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ao morro de Rómulo, sob a proteção de um lictor. Decidi que era tempo de falar com a minha família.

Bati à porta da casa patriarcal. Amílcar saudou-me no vestíbulo e pediu a uma escrava para avisar os patrões da minha visita. Pedi ao lictor que aguardasse por mim, talvez na cozinha a comer qualquer coisa – convite que ele prontamente aceitou, pois estava cheio de fome.

Eu sabia que os elementos daquela casa eram simpatizantes do partido popular, mas podiam estar feridos. Pior, podiam ter cometido alguma imprudência. Aguardei pela chegada do meu irmão, o primeiro a acudir ao chamado.

Queridinha, o que estás aqui a fazer? – Perguntou, surpreendido.

Marco parecia nervoso, talvez atrapalhado, junto às efígies dos nossos antepassados. Não aceitei os seus carinhos e fui direta ao assunto que ali me trazia:

Cortaste alguma das cabeças que estão expostas no fórum? Enfrentou-me com uma expressão seca:

O que foste fazer ao cemitério?

Marco, responde à pergunta e não me mintas! – Exigi, desaustinada. Ele respirou fundo e passou a mão pelo cabelo, para controlar a ansiedade:

Não. O pai integrou a embaixada enviada a Mário, pelo Senado. Mas, quando a confusão começou, eu trouxe-o para o Palatino.

Ainda bem. – Confessei, aliviada.

Isso dizes tu! A minha mulher já me chamou de tudo, desde cobarde a estúpido, por eu não ter participado na purga de Mário. Ela queria que eu lhe vingasse o pai. – Suspirou Marco.

Apuleia não sabe o que diz. Aquela tragédia, lá em baixo, tem nome: é chacina!

Calculo! Os nossos amigos têm-nos contado histórias horrendas. Mas nós, em si, não temos saído de casa. Tal comportamento era abonatório, mas estranho. Tive mau pressentimento.

Onde está o Pater? Porque não veio receber-me ao átrio?

Está de cama. – Redarguiu Marco, para meu desassossego.

Porquê?

Enfim… eu convidei Carbão a visitar-nos e ele contou-nos que Mário mandara matar António Orador e Lutácio e… o nosso pai atirou o pé contra a porta, com força e partiu-o.

O quê?! – Afligi-me, com o coração a batucar no peito. Nem pensei duas vezes. Dirigi-me ao cubículo paterno. Marco foi atrás de mim.

Já mandei vir o médico.

Abri a porta e catapultei-me lá para dentro. O Pater repousava a cabeça no travesseiro e parecia respirar com dificuldade.

Meu pai, como está? – Perguntei-lhe, sentando-me a seu lado.

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As notícias eram desagradáveis, mas não alertavam para a desolação total daquele homem de cabelos grisalhos, deitado numa cama rodeada de velas acesas. O nosso pai estava mal, com grandes olheiras, assolado pelo pessimismo. Parecia uma sombra de si mesmo e a inquietude apoderou-se de mim.

Filha, o que estás aqui a fazer? – Perguntou ele, com voz trémula. Beijei-lhe a mão, que estava lívida e húmida.

Vim vê-lo, pai. Como se sente?

Triste por Roma e a caminhar para a cova. – Sorriu, como se a ironia o salvasse num momento de aperto.

Por favor, não diga isso. – Roguei, com o coração apertado. O nosso pai não suportava os efeitos da invasão mariana e parecia perdido:

Do altivo leão a morada terrível, mesmo quando ausente parece-nos temível! É assim que as pessoas se referem a Mário, sabias? Roma está entregue aos bichos, ao sabor da vingança da raposa de Arpino!

Calma, pai. – Pediu Marco, que estava a ouvir-nos.

Mário não é o herói que tu idealizaste! É um assassino! – Exclamou o meu pai. Marco tentou contrariar a disposição geral:

Sejamos justos com o líder do nosso partido! Os que morreram traíram-no. Ousaram votar na proscrição de um homem que foi seis vezes cônsul de Roma e que, por causa deles, perdeu tudo o que tinha. Mário sofreu no exílio. Júlia está a viver em Subura porque lhe destruíram a casa do Palatino, o que equivale a passar de cavalo para burro! Não se preocupa com isso? O meu pai respondeu-lhe sem hesitar:

Por Júpiter! António Orador e Lutácio eram cidadãos romanos, senadores, que não atraiçoaram o comandante. Tinham ideias diferentes! A questão era política, não era pessoal! Desde quando é que discordar de alguém é crime público? Nesta cidade era suposto haver liberdade de expressão! Eles não mereciam a morte. Nem Lúcio ou Vopisco eram inimigos de Mário, embora se tenham excedido ao apoiar Sila na publicação da maldita lista de doze hostes! O meu irmão tentou defender o comandante:

Mário alegou autodefesa.

Ele pensou ter caído numa armadilha? Nada o garante. Não há provas. Lutácio assegurou-me que havia intenções de dialogar com Mário, antes da missão diplomática que eu encabecei.

O pai acreditou em Lutácio? O homem odiava Mário por, alegadamente, lhe ter roubado a vitória sobre os Cimbros! O que não é verdade. Eles desfilaram em triunfo pelas ruas de Roma… o comandante é que não podia impedir o povo de o aplaudir mais.

Os senadores estavam dispostos a fazer as pazes? – Perguntei a Marco. O meu irmão pensou antes de responder:

Com armas na mão é fácil perder o controlo à situação! Até que o Pater se agarrou a mim, fazendo um último esforço para falar:

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És uma vestal, filha, ajuda-me… retira-me este peso na consciência. Purifica-me!

O pai defendeu a paz. Quer purgar-se porquê? – Perguntei. O líder dos Emílios Lépidos era a integridade em pessoa e a toda a prova:

Por ter discursado a favor do regresso de Mário. Por ter participado na embaixada que o deixou entrar em Roma. – Confessou, pesaroso.

O Pater não é responsável pela violência praticada por terceiros. Era o que mais faltava! – Exclamou Marco.

Eu sou um patrício, compete-me defender a cidade!

Mário mentiu-lhe! Como poderia o pai adivinhar este desfecho?

Eu não podia. Ninguém lhe deu autorização para matar senadores e destruir Roma! O meu irmão resolveu intervir:

Ele queria limpar o nome das acusações de Sila que agiu ilegalmente ao não abdicar do comando do exército contra Mitridates! – Recordou Marco.

Sila e Mário estão a arruinar o que os nossos ancestrais construíram com tanto esforço ao longo dos séculos e eu não vou pactuar com os exageros por eles cometidos. Chega! – Afirmou, determinado.

O pai não é obrigado a fazê-lo. – Fiz questão de mencionar.

É isso mesmo! Já me humilhei perante Sila e não o farei perante Mário. Recuso-me a bajulá-lo, ou até a negociar com ele, depois das atitudes que tomou! – Declarou, com orgulho patrício. – Não consigo sequer sair à rua. Não aguento entrar no Senado depois de tudo o que aconteceu. O líder dos Emílios Lépidos rolou com a cabeça no travesseiro.

Pai acalme-se por favor. – Pedi-lhe, pois ele estava muito alterado.

Como? Quem não sente, não é filho de boa gente! – Retorquiu o líder dos Emílios Lépidos. – Sou um homem de bem, pelos deuses! Não foi para isto que eu nasci! Eu devia ter sido eleito cônsul e tê-lo-ia sido se Mário não se tivesse candidatado tantas vezes ao cargo! Se, uma vez na vida, ele tivesse respeitado as leis de Roma, que limitam os mandatos e impedem qualquer cidadão de ocupar o mesmo lugar dois anos seguidos, eu teria honrado os meus antepassados e contribuído para a sociedade, como era meu dever cívico e de linhagem.

Não se luta contra o destino. – Suspirou Marco. Mas o pai contrariou tal fatalismo, atribuindo-lhe o seu real nome: egoísmo.

A raposa de Arpino roubou o comando das guerras a Numídico e a Sila, porquê? Para o povo continuar a votar nele até elegê-lo sete vezes cônsul. Toda esta confusão por um capricho! Porque ele encontrou, quando era miúdo, um ninho de sete águias! Portanto, ele é que criou esta confusão! Nem os deuses nem as Parcas têm nada a ver com a ambição desmedida de um Mário que tomou o gosto pelo poder e nunca mais quis abdicar dele! Essa é que é a verdade, nua e crua!

O monólogo silenciou-nos. O meu irmão optou por calar-se e eu puxei-o em direção ao átrio, para deixar o patriarca descansar. Ele aceitou o convite e veio comigo, enquanto a voz de Apuleia se ouvia ao longe a chamar pelos filhos que brincavam inocentemente.

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Respirei fundo e fiz sinal à Ana, à qual pedi que preparasse um caldo quente para o meu pai, pois ele precisava de comer. Também chamei pelo lictor, a quem solicitei que avisasse o pontífice máximo e a chefe das vestais sobre o meu paradeiro. Eu planeava prolongar a minha estada no Palatino, por questões de saúde. Ele prometeu seguir as minhas indicações.

Queridinha, tu podes ficar connosco? – Estranhou Marco, agindo paternalmente.

Não sei. Eles que me repreendam depois. Preciso falar contigo.

O pai está mal, eu sei. – Reconheceu.

Está cheio de febre, queres tu dizer! Ele tem o pé inchado e gangrenado. O nosso pai pode não sobreviver ao dia de hoje. – Avisei. O instinto não me enganou.

Pela décima hora da noite, o Pater despediu-se da família e fechou os olhos à miséria humana. Expirou nos meus braços, rodeado pela família.

Foi o maior trauma da minha vida!

O Pater foi dos poucos senadores que teve morte natural, naquela época. A parca Morta cortou-lhe o fio da vida e levou a sua alma honrada e estoica para os Campos Elísios. O corpo foi velado em casa por uma noite. Depois Marco mandou vir as carpideiras. Salvo o longo desfile com efigies dos nossos antepassados, expostas pelos escravos, a cerimónia foi discreta, conforme tinha sido desejo do paterfamílias, para assim cumprir a lei.

Eu lavei em lágrimas o cortejo fúnebre do Palatino ao túmulo familiar. O meu irmão chorou tanto quanto eu, ao lado dos filhos. Os seus amigos mantiveram-se próximos, sobretudo Bruto, Cetego, Letório e o irmão de Apuleia. Mário ofereceu ajuda oportunista. Cina, Sertório, Carbão e Gratidiano fizeram, sobretudo, companhia à esposa do meu irmão. O que gerou, em mim, embaraço e desconforto.

Aliás, toda a situação me irritou, tornando-a mais dolorosa do que já era! Aguentei, aguentei, até não conseguir mais! Eu estava tão revoltada que, quando Mário se despediu de Marco e Apuleia, rejeitei as suas condolências, enchendo-me de coragem para lhe dizer o que ninguém mais conseguia:

Oh, deixe-nos em paz! Mário não apreciou a minha reação e enrubesceu até às varizes!

Como te atreves, vestal? – Regougou a raposa de Arpino.

Apuleia pediu desculpa pelo meu comportamento, enquanto Marco recuperava do espanto. O comandante podia ter-me punido, mas Júlia controlou a situação:

Marido, não leves a peito o que Emília diz hoje. Vamos deixá-la sossegada, que ela precisa chorar o pai que morreu.

O casal afastou-se em direção a Mariozinho, que acompanhava o pai para todo o lado. Mas Cina e Sertório, por exemplo, levaram em consideração as minhas palavras de sacerdotisa.

As vestais avisam sobre a vontade da deusa. – Declarou Sertório, com pose séria.

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Vesta revolta-se contra a invasão do pomério, é normal. – Reconheceu Cina, movido pela superstição e pela consciência pesada.

As mortes intramuros têm de acabar. – Advogou Sertório, um homem espadaúdo que, em corpo, era o dobro do outro. – Na minha opinião, o problema são os bardeus que estão descontrolados.

A guarda pessoal de Mário? Cina tinha dificuldades em contrariar o comandante.

O comandante já não precisa deles. – Insistiu Sertório. – Há dias que alastram o pânico na cidade. São mau exemplo para toda a gente. Não os quero confundidos com os meus legionários que não entraram nas casas dos senadores!

Fala mais baixo! Mário ainda te ouve… – Avisou Cina, num tom comedido.

O objetivo é esse. Ele tem de agir imediatamente contra mercenários que já enviaram umas cem cabeças para o fórum!

Como? Estamos em Roma há apenas cinco dias? Cina estava chocado com os números.

Não estiveste no fórum? – Atirou-lhe Sertório.

Sim, estive. Mas não me tinha apercebido que eram tantos…

A matança tem de acabar. Ou quem tem fim drástico somos nós! – Disse Sertório. Cina resolveu atender aos conselhos do amigo:

Está certo. Logo falamos com Mário sobre isso!

Eu ainda os escutava, quando apareceu César. Eu não o via há muito tempo! A princípio nem o reconheci. Ainda não usava toga viril. Mas crescera em altura. Era uma torre de cabelos de trigo! Os olhos pareciam mais negros e os lábios escoriados. Borbulhas rubras despontavam do seu pescoço. Os dedos das mãos, mais compridos, faziam-no parecer magro. Mas tinha músculos firmes, pelo que fazia exercício físico regularmente.

César és tu? – Perguntei-lhe por entre as lágrimas.

Sim, sou eu. Lamento pelo falecimento do teu pai.

Eu também. – Respondi-lhe secamente. – Mas a morte não esquece tudo.

O que queres dizer com isso? Falávamos baixinho, mas a sua expressão estava cerrada.

O Pater faleceu triste pela invasão e digo-te, Vesta está indignada!

Sim, já sei. Infelizmente o tio Mário perdeu o controlo aos bardeus e não foi o único a dar-lhes ordens desde que chegámos, pois Mariozinho tem tanto poder sobre os escravos como o pai dele. Não era suposto ter corrido assim…

Ainda há pessoas a morrer. Diz ao teu tio para parar com esta loucura!

Não sei se ele me ouve! Atende mais ao filho… Mas eu exigia talvez demais dele. César era jovem e não tinha poder nas mãos.

Não inventes desculpas, César! A lei do mais forte dá maus resultados! Quanto mais romanos caírem, mais vinganças haverá no futuro. Vê se percebes!

Eu percebo. Mas não estarás a aplicar duplo critério? – Perguntou, ao desafio. – Da invasão de Sila não te queixaste e até foste ao casamento de Cornélia. Levei a mão ao peito, sentindo-me ofendida pelo ataque.

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Estás a ser injusto comigo! Reclamei na altura e protesto agora! Fica sabendo que o matrimónio, a que te referes, era suposto assinar a paz na cidade. Mas Sila e o teu tio continuam a arrastar-nos para a guerra, que faz tantos mortos e feridos…

Estás com medo, Emília.

É suposto não estar? – Enfrentei-o. A nossa troca de palavras era sussurrada, para não ser ouvida por terceiros.

Vou proteger-te, Emília. Prometo. Admito candidatar-me a pontífice para substituir Vopisco e assim poderei estar ao pé de ti.

Nem me fales nisso! Vi a cabeça cortada de Vopisco e ainda nem quero acreditar que Mário foi capaz de mandar matar alguém da família da esposa e da tua! – Recalcitrei.

Não queres que eu frequente a Cúria Régia, onde posso ver-te? – César barafustava como se tivesse levado uma bofetada e reagia com estranheza, ou até desilusão, à minha nova atitude para com ele. – Não tens saudades minhas? Aquele não era o momento para me pressionar daquela maneira:

Estamos num funeral, César! Estou triste e muito cansada. Se não te importas, tenho de ir…

Estás a virar-me as costas, Emília? – Reclamou, profundamente desiludido.

Eu estou a regressar ao templo onde sirvo como sacerdotisa, lembras-te? – Perguntei-lhe, pois era importante que ele não perdesse a perspetiva da realidade. – Não te esqueças de dizer ao teu tio para tirar as cabeças do fórum. O espetáculo é deplorável e uma ameaça à saúde pública. – E assim me despedi.

Levada pela dor, só mais tarde me apercebi das farpas verbais que lhe atirei ao peito e teriam sido muito duras de ouvir! César dificilmente teria culpa do que estava a acontecer, mas eu tinha ficado órfã e sentia-me revoltada e muito sozinha.

Fechei-me no templo redondo de Vesta. Devotei-me ao silêncio durante dois meses seguidos, em que todos os dias velava pelo fogo sagrado, de joelhos pregados no chão. Sentia-me vazia. Estava um frangalho! No que me concerne, foi um período de carência, diferente do que experimentara até então. Sentia-me desamparada no meio da confusão, perguntando aos céus porque me faziam sofrer daquela maneira!

Talvez por eu estar a queixar-me, os deuses resolveram testar ainda mais os meus nervos.

Quando o líder dos populares foi oficialmente eleito para o sétimo consulado, na companhia de Cina, foram anunciados três casamentos com toda a pompa e circunstância! O objetivo era consolidar alianças políticas.

Mariozinho contraiu matrimónio com Múcia, a filha do pontífice máximo. Ele fora casado com Crassa, neta de um primo mais velho de Cévola e seu homónimo; um áugure que falecera após a invasão de Sila – e, talvez em consequência disso, pois defendera Mário no Senado, recusando-se a votar nele como inimigo público. O casal tivera um filho e este estava à guarda de Mariozinho. Crassa estava fugida em parte incerta.

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Cina entregou a sua filha mais velha ao primogénito de Aenobarbo (o falecido pontífice máximo). Cévola fez referência ao acordo, num dia de Mercúrio, em que trabalhava com Metela na Curia Regia. Eu estava presente, pelo que ouvi a conversa:

Mário apoiava a candidatura do sobrinho a pontífice, para substituir Vopisco no nosso colégio. Mas o escolhido foi Cota. Como é que o comandante reagiu à notícia? – Perguntou Metela.

Que eu saiba, sem problemas. O sobrinho de Rutílio estava exilado e Aurélia queria muito que o irmão regressasse a Roma. O filho dela também não saiu a perder, pois vai casar com a filha mais nova de Cina.

O quê? – Atrapalhei-me. Eu reagi mal à notícia. Nem queria acreditar! Caiu-me o coração aos pés.

Não queres ir à boda de César e Cinila?

Eu não faço intenção de assistir a nenhuma das três cerimónias. Estou de luto.

Não és obrigada, Emília. Nem tu, nem Metela. – Assegurou Cévola, compreensivo. – Perpena já se disponibilizou para representar o vosso templo e ela irá comigo.

Ótimo. – Suspirou Metela, mais aliviada. – Mas que história é essa de César casar com Cinila? O rapaz não estava noivo de uma equestre?

Cévola explicou que, durante o exílio de Mário, Júlio negociara o casamento do filho com uma tal de Cossúcia, de classe equestre. Ela era filha de um aliado de Mário, muito rico e reconhecido em sociedade pela sua queda para os negócios.

Júlio talvez pensasse ser o melhor negócio que podia arranjar. Toda a família vivia em Subura e agora era um fora-da-lei. Endividara-se para pagar uma frota capaz de trazer o cunhado de regresso a Roma (pois este fora expropriado e não tinha bens para financiar a sua luta, pelo que solicitara apoio financeiro a amigos e aliados). Sila odiava-o. Que tipo de mulher haveria de casar com César numa circunstância daquelas? Portanto, o dote de uma equestre teria de servir, mediante as circunstâncias.

Mas quando o comandante recuperou o poder, Júlio desmanchou o noivado do filho com Cossúcia. Com a ajuda da irmã e do cunhado, consolidou aliança estratégica entre os dois novos cônsules (Mário e Cina) e morreu descansado, por ter conseguido dar a volta a situação tão desfavorável.

O que aconteceu a Júlio? – Estranhei.

Ninguém sabe. – Comentou Cévola. – Ele não estava na cidade, quando tudo aconteceu, mas, segundo me contaram, ele teve morte natural. Ao levantar-se da cama, depois de uma noite de sono, caiu para o lado. Assim, sem mais nem menos. Eu tive de registar o fenómeno como inexplicável nos nossos documentos. Metela preferiu dar ênfase à questão política:

Se Cina morre e Sila regressa ao poder, o filho de Júlio fica em maus lençóis.

É por isso que estamos a falamos hoje no assunto. Mário quer que César substitua Mérula. – Anunciou Cévola, com vontade de vomitar. Entreolhámo-nos. O problema era evidente:

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César e a Vestal 112 Maria Galito

Cina e a mulher são ambos patrícios e a filha pode candidatar-se a flamínica. Mas a mãe de César é uma plebeia. Ele não pode concorrer ao lugar.

Eu sei disso. Ele e toda a gente. – Reclamou Cévola, atirando os braços ao vazio. – Mas o rapaz é esperto! Arenga descender de Eneias, filho de Vénus.

Quem tem uma deusa na família, não precisa de mãe patrícia, é isso? – Indaguei.

É o que ele diz. Pois, no que me concerne, Aurélia é uma mulher comum e ele não reúne as condições exigidas para o cargo! – Argumentou Cévola, um patrício. Foi frase infeliz na presença de Metela, uma plebeia.

E agora? – Mostrei interesse em saber.

Mário quer fazer o gosto à esposa, que ambiciona o cargo de flâmine de Júpiter para o sobrinho. O casal já faz campanha nesse sentido. – Explicou Cévola.

Júlia quer garantir um futuro para César, sobretudo na eventualidade de uma reviravolta política. Um Flamen Dialis não é ameaça para ninguém. Nem em armas pode tocar! – Avisou Metela, que percebeu logo o enredo.

Mérula suicidou-se e Vopisco foi assassinado. Os cargos religiosos estão a saque! Já ninguém está seguro em lado nenhum. – Vaticinou Cévola e ele, infelizmente, tinha razão. – Eu sei o que os novos cônsules querem enfiar os filhos no Capitólio mas, enquanto eu for pontífice máximo, isso não vai acontecer!

Cuidado, Cévola. Enfrentar Mário nesta altura, não é boa ideia. – Advertiu Metela.

A minha filha casou com o filho dele. Portanto, os marianos vão ter de cumprir com as regras religiosas da cidade como toda a gente! – Concluiu ele.

Regressei ao templo redondo na companhia da sumo-sacerdotisa. Sentei-me junto ao fogo, em silêncio e enraizei os pés no chão. Enquanto Metela metia conversa com Fonteia, sobre os temas do dia, encostei-me à parede de olhar perdido.

A minha mente divagava por portas de pensamentos antigos. O peito arfava. Eu não sabia o que sentia em relação ao casamento de César! Eu era vestal e a invasão da cidade gerara em mim uma grande revolta. Mas teria ele esquecido os nossos votos de Caio e Caia? Comecei a tremer. As lágrimas despontaram dos olhos sem emitir qualquer ruído.

As colegas não se meteram comigo, admitindo que eu ainda chorava pelo meu pai. Tive vergonha de não ser essa a razão da minha aflição. Eu estava confusa. Irritada. Sentia-me profundamente desajustada. Não sabia o que fazer para me controlar.

Deixei-me ficar em jejum. No dia seguinte, quando a noite caiu, esqueci-me de comer e desfaleci de barriga vazia, sem que me tivesse apercebido. Foi Metela quem deu o alarme. Fui convidada a ficar no meu cubículo, durante uns tempos, livre das incumbências.

Eu não assisti a nenhuma das bodas desse ano, nem quis ouvir falar nelas. Enquanto a cidade lambia as feridas, Mário rejubilava no auge do seu poder, mas dava mostras de pouca saúde. Os adversários diziam que ele se fingia doente para provocar compaixão. Apregoava-se na rua: Que não se engane o povo. Os reveses não o abatem, aguçam-lhe o engenho, inspirando na velhice mais coragem e terror, do que piedade.

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César e a Vestal 113 Maria Galito

Mas Perpena contou-me que, através do avô, soubera Mário perdido. Ele enchia a barriga de comida e babava-se em vinho para esquecer as dores. Nos últimos dias delirava, acossado por pesadelos e suores frios, a sonhar com o comando de mais uma batalha.

Até que o comandante teve um colapso e morreu. Do alto se deu a queda. O último consulado de Mário não durou mais do que treze dias.

O seu velório foi longo. Arrastou-se entre dois cultos a Saturno, pois sete tinham sido os seus consulados. O corpo foi exposto no fórum e, no final, exalava cheiro insuportável! O povo fazia filas para se despedir do seu campeão.

Dia e noite, chegavam a Roma veteranos das guerras de Mário. Aguentavam horas em pé para lhe prestar homenagem, em agradecimento por o comandante lhes ter garantido um emprego no exército e terras para lavrar, que lhes permitia constituir família. Graças a ele já não eram pobres ou pedintes, mas cidadãos plenos da República.

A elite dividia-se em considerações sobre Mário, mas o povo romano e italiano só lhe tinha a agradecer! Eu recordo aquela maré humana que impressionava pelo ruído das lágrimas e assustava pela força da comoção, capaz de nos empurrar a todos para o Tibre!

Os marianos metem medo. – Queixou-se Metela, tremendo a meu lado.

Temes o povo? A culpa é de quem o manipula.

Refiro-me a Mário.

Esse já morreu. Não o vês ali estendido? – Apontei com o dedo.

A sua memória continua viva na mente das pessoas. – Suspirou ela. Metela não percebia a força daquela matriz. Eu tentei explicar-lhe:

O povo agradece as benesses que recebeu de Mário, prestando-lhe homenagem.

Esta gente esqueceu que o homem invadiu a cidade de espada na mão?

Mário foi uma espécie de herói que tirava aos ricos para dar aos pobres. É difícil combater a sua áurea Repara! O povo demonstra fidelidade a quem promoveu o seu bem-estar num mundo onde há pouca mobilidade social e muita pobreza.

Metela não entendia o que, para mim, era evidente. Mas ela era optimate. Não adiantava insistir com ela. Olhei em volta.

Avistei César no meio da multidão em chaga. Alto e magro, ele dava nas vistas na tribuna temporária de madeira, construída especialmente para o efeito, ao lado da família. Qual daquelas raparigas era Cinila? Não consegui ter a certeza. Mas era agora homem casado e um paterfamílias. Usava uma bela toga branca. Mirava a pilha de lenha acesa, de olhar fixo e distante, enquanto as labaredas consumiam o corpo do campeão dos populares.

Passaram por mim uns flautistas. Havia vários músicos a trabalhar naquele funeral e eu centrei os meus ouvidos na orquestra quando, de repente, um Fímbria em fúria carregou sobre o pontífice máximo. A vítima curvou-se sobre si mesma, para se proteger do ataque, desfalecendo nos braços de quem lhe acudiu.

Eu estava a uns vinte passos de distância e quase fui atropelada por catrefada desesperada aos gritos, que corria em todas as direções. Foi um lictor que me socorreu

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O que lhe teria dado para cometer tal heresia? – Perguntei a Metela.

Fímbria era filho de um cônsul já falecido e exercia funções de questor. Ele não era um marginal, ou alguém desprovido de poder. No geral, era um cobrador de impostos que apunhalara o líder da religião romana! Sem noção de decência, ainda culpou Cévola por não ter sucumbido imediatamente aos ferimentos. Foi o que nos contou o lictor.

O nosso líder sobreviveu? – Preocupou-se a vestal máxima, a quem competia colocar questões pertinentes.

O lictor garantiu que Cévola ainda estava vivo e encaminhou-nos em direção ao templo. Nós aceitámos o seu conselho e entrámos no santuário à primeira oportunidade. As colegas que não haviam assistido ao funeral estavam perplexas com a narrativa.

Fímbria endoideceu? – Perguntou Perpena, de olhos esbugalhados.

Cévola é um pontífice máximo! Filho e sobrinho de pontífices máximos! Ele é sagrado! – Exclamou Popília, escandalizada. – Como é possível ter sido atacado daquela maneira?

Onde está ele agora? – Perguntou Fábia.

Na Domus Publica. – Avisou Metela. – Vamos a ver se ele sobrevive, esta noite, aos ferimentos. Mas, pelo que percebi, não é caso perdido.

Já ninguém tem respeito por nada nesta cidade! – Suspirou Popília, desaustinada. Metela parecia profundamente consternada quando nos alertou para o facto:

Se a ideia é matar todos os sacerdotes… será que nós, vestais, estamos em perigo?