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8/7/2019 CH - 109 - Sally Cheney - A Aposta http://slidepdf.com/reader/full/ch-109-sally-cheney-a-aposta 1/91 A Aposta - CH 109 - Sally Cheney Sally Cheney - A Aposta The Wager Londres, 1855.  Um prêmio inestimável Linda e inocente, Marianne viu sua vida transforma-se por causa de uma carta do baralho. Peter Desmond foi o vencedor. Seu prêmio: Marianne! Com uma mescla de medo e inexplicável atração, ela se descobriu cada vez mais apaixonada por esse homem que jurara se vingar por seu ingrato Projeto Revisoras 1

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A Aposta - CH 109 - Sally Cheney 

Sally Cheney - A

ApostaThe Wager 

Londres, 1855.  Um prêmioinestimável 

Linda e inocente, Marianne viu suavida transforma-se por causa de umacarta do baralho. Peter Desmond foi ovencedor. Seu prêmio: Marianne! Com

uma mescla de medo e inexplicável atração, ela se descobriu cada vez

mais apaixonada por esse homem quejurara se vingar por seu ingrato

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destino. Mas Peter apostara tudo parater Marianne só para ele!

Digitalização: JoyceRevisão e Formatação:Cynthia

PRÓLOGO

Londres, 1855.

Uma carta. Duas. Nenhuma.Os jogadores à mesa se prepararam para o início da partida. O Sr. Desmond cortou o baralho. A banca fica com três.Os quatro homens estudaram as cartas, atentos, cada um deixando transparecer um nível

diferente de tensão. O Sr. Desmond era o que aparentava mais tranqüilidade. A impressionante pilha de

fichas e notas diante dele justificava, sem dúvida, aquele ar despreocupado. Sr. Phillips, é a sua vez chamou, com delicadeza, o homem a seu lado.Phillips franziu a testa. Aposto uma libra resmungou, antes de jogar a pesada moeda no centro da mesa e encarar o

jogador a sua esquerda.O Sr. Abbot não teria hesitado em enfrentar o desafiante se a banca houvesse sido mais generosa

ao dar as cartas. Porém, com o que tinha nas mãos... Suspirou. Há momentos em que a prudência impõe um recuo na frente da batalha. Estou fora. Sr. Carstairs? Eu pago respondeu, com azedume, e tirou algumas fichas do pequeno monte a sua frente. A mesa cobre a aposta.Os quatro jogadores, Phillips, Abbot, Carstairs e o responsável pela banca, o Sr. Peter Desmond,

não eram propriamente amigos. Talvez fosse exagero até mesmo chamá-los de "conhecidos". Se doisdeles se encontrassem na rua, durante o dia, talvez nem ao menos se cumprimentassem, muito embora sereunissem com frequência a mesa de jogo. Um deles, às vezes mais de um, voltaria para casa derrotado,fato que, decerto, levava a que não fizessem questão de estreitar seu relacionamento.

Deseja continuar, Sr. Phillips? Desejo muita coisa, Sr. Desmond, mas nem sempre podemos nos deixar guiar pelo que

queremos, não é mesmo? Eu fico por aqui. Muito bem, Sr. Carstairs, parece, uma vez mais, que a coisa se resolverá entre nós disse

Desmond, com um sorriso provocador.

Carstairs o encarou, perguntando-se se Desmond seria capaz de manter aqueles modos delicadosdepois de levar um soco no nariz. Muito embora os quatro se revezassem nos papéis de vencedor e

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vencido, Desmond era dos que com mais frequência saía da mesa com a carteira recheada.Você quase me levou à falência hoje. Gostaria muito de tentar minimizar meu prejuízo.

Portanto, não percamos tempo. Carstairs empurrou para o centro da mesa as fichas que lhe restavam. É tudo ou nada.

Peter Desmond levou o charuto aos lábios e examinou as cartas, talvez até com mais atenção queseu adversário. Depois, soltando uma baforada, semicerrou os olhos para protegê-los da nuvem

aromática que o envolveu. Nem a fumaça nem a expressão tensa prejudicavam a beleza de suas feições.Tinha os cabelos e os olhos castanhos e o maxilar firme, que lhe acentuava o ar decidido. Bateu a cinza elevou o charuto à boca outra vez.

É uma pena, meu caro Carstairs, mas o senhor não está em condições de ditar as regras nomomento disse, recolhendo as fichas. Basta que, eu dobre a aposta para que o senhor esteja fora.

Espere! gritou Carstairs, sem dissimularia irritação. Eu disse: tudo ou nada! Sei disso, mas o senhor já apostou tudo. Não tem mais nada a perder. Tenho sim... O que, Sr. Carstairs? Tenho... espere! Dê-me uma folha de papel. Ora, meu amigo! O senhor conhece as regras tanto quanto eu. Só apostamos dinheiro vivo.

Carstairs encontrou uma folha de papel no bolso e pôs-se a escrever. Há coisa melhor. Apanhou uma caderneta e, de dentro dela, um amarrotadíssimo retrato.

Depois de analisá-lo um instante, colocou-o na mesa, sobre a folha de papel. Duvido que exista coisa melhor que o dinheiro gracejou Desmond, pegando os dois

objetos. Logo, porém, ergueu uma sobrancelha e tornou a olhar para o adversário. O senhor estáfalando sério?

Palavra de honra.Desmond recolocou o charuto no cinzeiro. Confesso que conseguiu excitar a minha curiosidade. Então aceita?Desmond hesitou um momento. Está bem. Acho que pode ser divertido... Tudo o que ganhei contra a sua oferta. Mostre o seu

jogo.Carstairs sorriu, triunfante: Full house! anunciou, exibindo as cartas.O Sr. Phillips e o Sr. Abbot não refrearam uma exclamação de espanto.Desmond olhou para a trinca de valetes e o par de dois e sacudiu a cabeça. Ora! Isso bate a minha trinca disse, apresentando três cartas.Carstairs deu uma gargalhada de satisfação e, sem se conter, estendeu as mãos para pegar as

fichas e o dinheiro. Porém continuou Desmond, com frieza, ao mesmo tempo que baixava a quarta um full house é pouco para derrotar uma quadra. Carstairs afundou-se na cadeira. Anime-se,

amigo. Desmond riu, recolhendo as fichas, a folha de papel e a fotografia. Tome. Pegou amoeda de uma libra, que Phillips apostara, e a atirou na direção de Carstairs. Não quero perder aoportunidade de lhe tomar mais dinheiro da próxima vez. Ah, quanto a isto acrescentou, apontandopara a fotografia , espero receber logo.

Perfeitamente resignou-se Carstairs. Estamos ao seu dispor. O que foi apostado? interveio Phillips. Queremos saber protestou Abbot. Afinal, combinamos não apostar promissórias. É verdade. Mas não se trata disso. O que o Sr. Carstairs apostou e perdeu foram os direitos

sobre sua pupila, a Srta. Marianne Trenton.Surpresos, os dois jogadores se entreolharam e riram a valer; Desmond deu uma tragada no

charuto e piscou para eles.

CAPÍTULO UM

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Marianne estava sentada na cama. Em sua .fronte brilhavam gotas de suor, o que não chegava aser uma surpresa, considerando-se o vestido que usava, impróprio para a estação quente e abafadadaquele começo de verão. Mas não era só isso o que fazia com que transpirasse. Marianne esperavaHorace Carstairs, a quem chamava de tio, um homem temperamental, que, quando perdia no jogo, setornava brutal e violento; coisa, aliás, que ocorria com muita frequência.

O pai de Marianne morrera um ano antes, vítima de acidente durante uma caçada, e a mãe, talvez

debilitada pelo desgaste emocional, acometida por uma febre. Assim, o juiz de menores entregaraMarianne aos cuidados de Carstairs, cujo nome figurava no testamento do pai da órfã como devedor deuma considerável importância em dinheiro.

Não tenho condições de cuidar dessa menina objetou ele. Vossa Excelência não podedepositar tamanha responsabilidade nas mãos de um velho solteirão como eu.

Persistente, o juiz lembrou-o de que, encarregando-se da criação de Marianne, poderia dispor como bem entendesse não só da herança, mas também do destino da moça. Como Carstairs mesmoassim insistisse na recusa, o magistrado concordou em remunerá-lo com um salário anual.

Horace Carstairs se aventurava em todo tipo de empreendimento. E, como não era melhor empresário que jogador, via-se a maior parte do tempo forçado a encontrar fontes alternativas de rendapara saldar suas dívidas. Animado com a perspectiva do salário anual, acabou concordando. Foi assim

que, para infortúnio de Marianne, que até pouco antes contava com uma família que a amava e um lar feliz, o juiz a entregou à tutela de um desconhecido; um homem que em pouco       i tempo haveria drevelar detestável.

Embora tivesse sido obrigada, com a morte dos pais, a abandonar a escola, Marianne, na solidãoda casa de Carstairs, passou a dedicar grande parte do tempo à leitura. Comprava os livros com apequena mesada que recebia do "tio". Aquela noite, contudo, nervosa e tensa na expectativa da chegadadele, não conseguia concentrar-se no romance Leonore. O ruído da chave na fechadura sobressaltou-a.Apreensiva, ouviu-o pendurar o casaco no cabide do hall. Percebeu, a seguir, que Carstairs se haviadetido para examinar a correspondência que se encontrava no aparador. Marianne desejou com ardor queele fosse ler as cartas na sala de estar, mas não tardou a ouvir seus passos na escada. As pesadas botasecoavam no assoalho como as passadas de um homem corpulento. Embora não fosse baixo, Carstairs eramagro, de ombros estreitos, lábios muito finos e nariz adunco. Seu olhar inexpressivo lhe acentuava adebilidade das feições.

Apavorada, Marianne apertou o livro junto ao peito. Se tudo houvesse corrido bem aquela noite,tio Horace iria direto para o quarto, e ela, afinal, poderia trocar de roupa e deitar-se. Se, ao contrário, eletivesse perdido outra vez, abriria a porta do quarto com um pontapé e investiria contra ela sem lhe dar chance de defesa. A violência dos insultos e das bofetadas seria proporcional às dimensões do prejuízo.

Notando que ele diminuíra o passo, Marianne arregalou os olhos verdes e prendeu a respiração. Continue, continue... murmurou quando ele parou. E, com o coração disparado, preparou-

se para o estrondo da bota na porta. Para .sua surpresa, no entanto, ouviu apenas um toque suave.  Entre disse, tentando recuperar o fôlego.

A porta se abriu, devagar. Tio Horace olhou com cautela para o interior do quarto, certificando-se de que Marianne estava vestida. Uma preocupação que jamais demonstrara... Acordada ainda? Sim. Estava esperando... Esperando? A mim? Oh, quanta lisonja, Marianne. Sorriu, com sarcasmo. Bem, andei

avaliando nossa situação, sabe? Na minha idade e doente como estou, não tenho condições de cuidar deuma jovem como você. Sei muito bem que não é feliz aqui; não tem companhia nem oportunidade de serelacionar com moças da sua idade. Sei que sente falta de amigos. Está na hora de pensarmos em algonovo. Você precisa de uma perspectiva. Seu tom de voz era neutro, casual, como se os pensamentoslhe estivessem ocorrendo à medida que falava.

Algo novo? Está querendo dizer que devo arranjar emprego, tio Horace?

Não, não. O que estou dizendo é que precisa sair um pouco, procurar companhia. Vou visitar alguém? Algum amigo?

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E um senhor que conheço. Você vai partir no final da semana. Partir?! Marianne ficou mais surpresa que triste com o que acabava de ouvir. Na verdade,

sempre desejara deixar aquela casa. A carruagem virá buscá-la sexta-feira de manhã. Esteja pronta.  Uma  carruagem?  Aonde  vão  me   levar?    perguntou  Marianne,  esforç

compreender.

Esse senhor tem uma propriedade perto de Reading. Acho que vai levá-la para lá. Vamos sair de Londres? Não fica muito longe. E você, decerto, estará de volta em poucas semanas.Horace Carstairs não tinha coragem de dizer a verdade. Até aquela noite, jamais lhe ocorrera a

possibilidade de expor Marianne a uma situação de tal modo constrangedora. Ela era jovem, atraente e,provavelmente, virgem. Quando Desmond a devolvesse, Carstairs poderia lucrar muito, vendendo seusserviços a outros.

Apesar de sua falta de escrúpulo, não tivera a intenção de vender Marianne a Desmond. Tinhacerteza de que ganharia o jogo. Afinal, estava com três valetes e um par de dois na mão. A julgar pelasúltimas rodadas, um full house era sem dúvida garantia de vitória. Só depois de perder a aposta Carstairsse deu conta de quanto Marianne lhe podia ser útil.

O senhor não precisa se preocupar comigo disse Marianne, contrariada com a promessa deestar de volta em breve. Ficarei lá o tempo que for necessário.

Vamos ver. E quem é o senhor que vou visitar? Ele deu de ombros. Você não o conhece. Deve ser um homem caridoso. Para a pobre moça, qualquer um que se dispusesse a livrá-la

das garras de Horace era um verdadeiro filantropo.Na manhã seguinte, Marianne soube que Carstairs tinha viajado muito cedo a Barnet, em busca

de um empréstimo. Ficou confusa. Tio Horace saíra sem informá-la do que de fato estava por acontecer.Chegou a acreditar que tudo fora apenas um sonho. O tio chegara tarde da noite, talvez ela tivesseadormecido enquanto o esperava. Só no fim da tarde, ao receber uma carta, teve certeza de que tinhasido mesmo realidade.

"Senhorita Trenton:Tenho certeza de que seu tutor já a informou de que em breve estará de mudança. Estou ansioso

por conhecê-la. Um empregado de minha confiança irá apanhá-la sexta-feira de manhã. A viagem aKingsbrook durará o dia todo. Devem, portanto, partir ao amanhecer. Até lá, je suis le tiens, ma biche.

P. Desmond."Tendo abandonado as aulas de francês após poucas lições, Marianne não compreendeu que

Desmond a chamara de "minha corça"; muito menos se deu conta da indecência contida em suadespedida.

Na sexta-feira, Marianne despertou com o sol. Já estava pronta, aguardando a chegada do

cocheiro, quando, por volta das sete horas, a campainha tocou. Como a prevenira Desmond, a viagem asua propriedade, nas proximidades de Reading, prolongou-se por toda a manhã e boa parte da tarde.Na hora do almoço, pararam numa taverna à beira da estrada. Como de costume, Marianne tinha

pouco dinheiro e ficou apreensiva: não poderia pagar a conta, mesmo que escolhesse o prato mais baratodo cardápio. Foi com alívio que aceitou as duas libras que o Sr. Desmond mandara o cocheiro lheentregar para as eventuais despesas da viagem. Tranqüilizada, chegou até a pedir um copo de vinho coma refeição. E, durante o resto da viagem, apesar dos solavancos da carruagem, dormiu, confortável.

Quando o cocheiro, que se identificara como Rickers, abriu a porta, Marianne acordou,assustada.

Já chegamos, senhorita. Aonde?

A Kingsbrook.Com uma reverência, o cocheiro abriu as duas portas da carruagem. Marianne respirou fundo.

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Atravessaram uma ponte de madeira sobre um riacho, cujas margens estavam cobertas de musgoe pequenas flores. A beleza da paisagem invadia o jardim, dando a Marianne a impressão de que tudo alihavia sido planejado. As papoulas, as dálias, as azáleas circundavam em pequenos canteiros os arbustose as árvores, enchendo o lugar de perfume e cor.

Ao erguer o olhar à procura da casa, Marianne ficou admirada. A propriedade de Kingsbrook,edificada em meio ao prado e adornada com enormes samambaias, mais parecia um castelo de fadas. Era

um palacete de três andares. No térreo, altas vidraças ladeavam a porta enorme de duas folhas. No andar superior, as janelas eram menores e, abaixo da empena, pequenas aberturas imitavam um pombal.Caminhando em companhia de Rickers, Marianne se deu conta de que a aparente imponência da

casa de Desmond se devia ao fato de haver sido construída num lugar tão rústico. Cercada de elegantesalamedas pavimentadas, talvez não parecesse tão majestosa. Mesmo assim, era a maior residência emque ela tivera

oportunidade de entrar. A Sra. River virá recebê-la disse Rickers. A Sra. River? É a governanta de Kingsbrook. E o Sr. Desmond? perguntou Marianne, ansiosa

por conhecer seu benfeitor. Deve estar por aí. A Sra. River vai lhe mostrar um pouco do lugar. A senhorita logo o

conhecerá.O cocheiro deixou a bagagem no chão e levou a ponta dos dedos à pala do quepe. Srta. Trenton?Marianne se voltou, sobressaltada com a voz da mulher que acabava de abrir a porta. Era alta,

trazia presos num coque os cabelos já grisalhos nas têmporas; embora não chegasse a ser bonita,inspirou-lhe simpatia, de imediato.

E a Srta. Trenton, não? Estávamos aguardando a sua chegada. Entre, por favor. A julgar por seu tom formal e o ar de indiferença, a governanta não tivera a mesma impressão de Marianne.

Sim, obrigada ela murmurou, fazendo menção de pegar a bagagem. Não se preocupe. James levará as malas para cima. E, afastando-se, abriu caminho para que

Marianne entrasse no escuro hall. O Sr. Desmond... Saiu a negócios. Deixou-me instruções para que lhe servisse o chá assim que a senhorita

chegasse. Disse-me que faria o possível para voltar a tempo de lhe fazer companhia. O chá está servido,mas, antes, talvez a senhorita prefira se refrescar um pouco.

O tom de voz da Sra. River já não lhe pareceu tão hostil. No entanto, Marianne teve a sensaçãode que ela desaprovava sua presença ali. Com um meigo sorriso, agradeceu.

Gostaria muito de lavar o rosto e as mãos. Fique à vontade, Srta. Trenton. Alice, acompanhe-a ao quarto. Quando estiver pronta, leve-a à

sala de estar ordenou à jovem criada de saia preta, touca e avental brancos, que acabava de entrar. Sim, Sra. River. Venha comigo, senhorita. Marianne a acompanhou ao primeiro andar. Estes são os aposentos do Sr. Desmond informou Alice. E estes... apontou para a

porta ao lado são os seus aposentos.O cômodo era quase do tamanho do chalé onde Marianne havia crescido, onde morara com os

pais, com muito conforto. Tudo isso só para mim? Suspirou. Quero dizer, vou ficar sozinha aqui? Bem, creio que sim, senhorita. A não ser que traga... quer dizer... A menos que queira

convidar... alguém para lhe fazer companhia gaguejou Alice, encabulada.Marianne estava tão impressionada com o tamanho do dormitório, que não notou a reação da

moça.

Não esperava algo tão... grande balbuciou, olhando a sua volta.Alice fez uma reverência e saiu, deixando-a a sós, sacudindo a cabeça ao fechar a porta. Aquela

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jovem não era o tipo de pessoa que esperava. Não parecia merecer os comentários maldosos que elaouvira a Sra. River e a Sra. Rawlins cochicharem na cozinha.

Marianne lavou o rosto numa bacia de porcelana e enxugou-o com uma das felpudas toalhas queencontrou no banheiro particular. Depois, sentando-se ao toucador, penteou os cabelos. Olhando-se noespelho enorme, chegou a esboçar um sorriso. A seguir, muito séria, tentou ensaiar uma posturaadequada a situação. Ainda não tinha encontrado a melhor maneira de se apresentar quando ouviu uma

batida na porta. Entre. Ele chegou, senhorita disse Alice. A Sra. River pediu-me que a levasse depressa para

baixo. O Sr. Desmond não gosta de esperar. O Sr. Desmond? Claro. Marianne colocou a escova de cabelo no toucador, alisou a saia,

examinou-se uma vez mais no espelho e saiu. Enfim teria a oportunidade de conhecer o gentil cavalheiroe agradecer-lhe a benevolência.

CAPÍTULO DOIS

Com uma delicada xícara de porcelana  chinesa na mão, Desmond se encontrava diante de umaenorme janela. Seus modos requintados, a elegância de seu terno azul-marinho, da camisa im-pecavelmente branca, do cravo na lapela contrastavam com a simplicidade do lugar. Quando ele sevoltou, Marianne reparou que suas feições eram altivas e cheias de vida, como a paisagem lá fora.

Desmond passou alguns instantes observando-a em silêncio. Um raio de sol trespassou a rendada cortina e a iluminou, pondo reflexos dourados em seus cabelos castanhos; o tom de seus olhos verdesevocava a beleza felina, uma jovem leoa, que, saindo da mata sem fazer barulho, vinha contemplar opanorama que se descortinava diante dela.

Marianne não precisava daquele jogo de luz e sombra para transmitir a ideia de um animalacuado. Com o peito a arfar, encarava-o feito uma fera nervosa, prestes a atacar ou fugir. A ideia trouxeum leve sorriso aos lábios de Desmond.

Ele não era o tipo de homem que Marianne esperava encontrar, um senhor grisalho, de gestosvacilantes. Não. Era jovem, tinha a pele bronzeada, o corpo atlético, os músculos bem delineados: nãolembrava em nada o mirrado tio Horace. Seus cabelos castanho-escuros eram Mais longos que os dosamigos de seu tutor; e aqueles olhos que a perscrutavam tinham um brilho atrevido. Quando Desmond sevoltou para olhar Marianne, estava com o cenho franzido, um ar quase de raiva. No momento em que aviu, sua expressão suavizou-se um pouco, mas não o bastante para que ela se sentisse menos ameaçada.A primeira impressão que teve ao conhecê-lo foi de estar diante de um predador.

Que bom que chegou, Srta. Trenton. Senhor De... Desmond...Ele sorriu com satisfação. A moça era perfeita. Não devia ser todo dia que aquele homem sem

escrúpulos, Carstairs, apostava garotas à mesa de jogo; contudo, era sabido por todos que, entre os váriose arriscados negócios em que andava metido, Carstairs por vezes intermediava encontros de senhores depassagem pela cidade com mulheres de... espírito livre. Desmond achou divertido quando ele se referiuàquela jovem como sua "pupila".

Desde que se mudara para Kingsbrook, vivia isolado. Arredio à vizinhança, não tinha cultivadoamizade com nenhuma família da região. Fazia questão de preservar a solidão ali, pois valorizava muitosua privacidade. Os contatos sociais que tinha em Londres lhe bastavam. No entanto, em certas ocasiões,a casa lhe parecia vazia e silenciosa demais, por isso havia se entusiasmado tanto com a ideia de acolher uma hóspede com que pudesse, às vezes, dividir a cama.

Se houvesse necessidade, poderia apresentá-la do mesmo modo que o fazia Carstairs: como suapupila.  A não ser pela roupa e o penteado austeros, Marianne parecia mal saída da adolescência.

Sente-se, Srta. Trenton. O delicioso chá que Jenny nos preparou está esfriando.Puxou uma cadeira para Marianne, que obedeceu depressa, ansiosa por aliviar os joelhos

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trêmulos do peso do corpo. Para sua surpresa, Desmond sentou-se a seu lado. Chá?Ela fez que sim. Açúcar? Leite? Acho que se esqueceram do limão. Quer que peça à Sra. River? Não, Sr. Desmond. Só açúcar e leite. Açúcar e leite, então. Desmond serviu um tablete com a pinça de prata, antes de lhe

entregar a xícara. Marianne segurou-a com as mãos vacilantes. Aceita um sanduíche, senhorita? Acho que são de presunto... Está gostando de Kingsbrook?Bem diferente de Londres, não acha? Bem, na verdade não é outro o meu objetivo: tornar este lugar diferente da cidade.

Acho que já conseguiu. Espero que não sinta falta da agitação de Londres. Kingsbrook é um lugar agradável. Mas há

quem o ache um tanto... monótono. Oh, eu não, senhor. Gosto de lugares tranqüilos. A casa do Sr. Carstairs também não é das

mais movimentadas. De fato, não estou acostumada ao bulício da cidade.Marianne esboçou um sorriso, mas Desmond desviara o olhar. Não queria falar em Carstairs.

Muito menos nos negócios que costumava fazer.

Imagino disse, ao mesmo tempo que se servia de um dos bolinhos que a Sra. River dispusera com capricho numa bandeja.

Ofereceu-os a Marianne. Ela meneou a cabeça. Quer dizer, então, que não se ressentirá muito da mudança, senhorita? De modo algum. Aliás, quero lhe agradecer pelo convite, Sr. Desmond. Kingsbrook é um

lugar encantador. Espero corresponder a suas expectativas. Tenho certeza disso... Estou a sua disposição para o que precisar. Não vou me esquecer. Sorriu, com malícia. Fez-se silêncio, Desmond a observá-la com

interesse,Marianne a olhar para o fundo da xícara. Ela, enfim, murmurou a única coisa que lhe veio à

mente: Foi uma longa viagem. Fez muito calor. Rickers me avisou, ao sairmos, que o calor, na

estrada, seria difícil de suportar. E tinha razão, estava muito quente mesmo. A sombra ou dentro de casanão se nota tanto. Aliás, a temperatura aqui está perfeita. Mas na estrada... Apesar do comentário quefizera sobre a temperatura da casa, Marianne estava com a testa úmida de suor. Não tinha como disfarçar o nervosismo.

Sim. Imagino que esteja exausta Desmond sussurrou ao seu ouvido. Deseja descansar um pouco, antes de nos familiarizarmos?

Gostaria muito. Pois bem. Desmond se levantou e a ajudou a fazer o mesmo. Fique à vontade, Srta.

Trenton. Veremo-nos na hora do jantar.Pelo modo como ele se aproximou, Marianne teve a impressão de que pretendia abraçá-la.Desmond afastou a cortina à procura do cordão da campainha.

A Sra. River atendeu ao chamado. Sr. Desmond? Deseja alguma coisa? Ao entrar na sala e dar com o patrão tão perto da

moça, a governanta se deteve. A Srta. Trenton está cansada da longa viagem. Acompanhe-a aos seus aposentos. Ah, e mande

Tilly ou Alice preparar-lhe um banho. Sim, senhor. Tenha a bondade de vir comigo, senhorita.Marianne a seguiu sem saber se a companhia da hostil governanta faria com que se sentisse

menos constrangida que a do impertinente Sr. Desmond. Começava desconfiar de que, ao livrar-se de tio

Horace, pulara da panela para o fogo.Conforme a orientação expressa da Sra. River, Tilly preparou o banho de Marianne, enquanto

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Alice a ajudava a despir-se.Mais velha, taciturna, atarracada e de rosto fino, Tilly parecia fazer questão de agir como se não

tivesse notado a presença de Marianne. Alice, ao contrário, chegou a lhe endereçar um tímido sorriso,porém, ante o olhar severo da governanta, ficou em silêncio e tratou de evitar qualquer outramanifestação de cordialidade.

Marianne ressentiu-se da frieza com que era tratada pela criadagem. Mas, encantada com o

quarto amplo e confortável, preferiu deixar que as preocupações se dissolvessem na espuma quente eperfumada da banheira. Depois do banho, adormeceu.Quando Alice bateu à porta, às oito e meia, para avisar que o jantar seria logo servido, Marianne

já estava pronta para rever o dono da casa. A empregada a acompanhou à sala de jantar e, saindo por uma porta lateral, foi para a cozinha. Marianne se viu sozinha no luxuoso recinto. A longa mesa, forradacom uma toalha de linho branco, fora posta para duas pessoas, com porcelana chinesa. Ao entrar, ela viuseu vestido verde refletido nos copos de cristal e na baixela de prata. A sala de jantar, nos fundos dacasa, tinha janelas altas como as da sala de estar. Aproveitando a escuridão do lado de fora, Marianne seaproximou da vidraça e examinou uma vez mais o seu reflexo. Estava com um dos poucos vestidos quelevara consigo ao se mudar para a casa de Horace. Alisando o tecido, lembrou-se da mãe a lhe dizer queainda era muito jovem para usá-lo. Se estivesse viva, na certa continuaria com a mesma opinião. Era um

modelo tomara-que-caia, com decote generoso, cintura justa e saia pregueada; sem dúvida, poucoadequado a uma mocinha.

Angustiada com a ideia de jantar sozinha com Desmond, se virou e percebeu, com espanto, que,parado à soleira, ele a observava.

Pensei que tivesse me esquecido disse, nervosa. De modo algum, Srta. Trenton. Tive muito que fazer durante a tarde. Nem houve tempo de

me trocar para o jantar. Desmond admirava a esplendorosa jovem em seu vestido verde-escuro.Lembrou-se da primeira impressão que tivera ao vê-la: uma gata selvagem. Vejo que devia ter mepreparado com mais atenção.

Oh, não. O senhor está muito bem. Marianne corou. Bem, sendo assim, acho melhor continuar conversando enquanto tomamos a sopa. Imagino

que esteja com fome. Desmond se aproximou da mesa e tocou um sino de prata.Marianne teve a exata dimensão da elegância e do luxo daquela casa ao observar a presteza e a

solicitude da governanta. Estamos famintos, Sra. River. Por favor, peça desculpas pela demora à Sra. Rawlins e

providencie para que o jantar seja servido.A governanta fez que sim e se retirou.Desmond puxou uma cadeira, para que Marianne se sentasse.Serviram-lhes um prato de creme de cebola. Pouco depois, ele foi substituído por um filé com

legumes. Marianne estava tão tensa, observando e imitando os movimentos de Desmond, que nemsequer prestou atenção no cardápio.

Marianne não haveria de recordar nada do que se passou durante o jantar, a não ser o olhar intenso e penetrante de Desmond e sua voz melodiosa, suave, a hipnotizá-la. Ele falava de lugaresexóticos, das diversas viagens que fizera às mais diferentes partem do mundo, das quais ela nem mesmotinha ouvido falar. Depois, enveredou pela literatura e se pôs a recitar versos cheios de paixão eerotismo, que a fizeram corar outra vez.

O relógio marcou as dez horas.Desmond elogiou-lhe o vestido e o penteado.O relógio deu as onze. E, pouco depois, meia-noite. Escute o silêncio murmurou Desmond, inclinando a cabeça como que num esforço para

ouvir o tênue rumor da noite lá fora. Os empregados já devem ter se recolhido. Até mesmo a Sra.River. As vezes, tenho a impressão de que ela nunca dorme. Sorriu ele. Que tal se fizéssemos o

mesmo? sugeriu, ajudando-a a se afastar da mesa.Sem lhe soltar a mão, atravessou com Marianne a sala escura. No andar superior, abriu uma

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porta. Ainda não estando familiarizada com a casa, Marianne julgou que aquele fosse seu quarto eentrou. Apenas quando Desmond acendeu uma vela, deu-se conta de que se havia enganado e de que eleacabava de fechar a porta.

Este não é o meu quarto disse, acreditando que também Desmond se equivocara. Não. É o meu.Tomada de pavor, Marianne não conseguiu esboçar uma reação.

É melhor, não acha? - Desmond deu-lhe as costas para trancar a porta. Assim, vocêcontará com um quarto só seu quando quiser ficar sozinha; terá sua privacidade. Tranqüilo, começoua desabotoar a calça.

Marianne o viu despir-se, expondo as longas pernas. Enfim, sós gracejou ele. Aqui ficaremos sossegados. Nossos quartos são tão próximos

que, se você quiser, poderá ir para lá mais tarde. Mas eu prefiro que passe a noite comigo.Marianne estava atônita. Mesmo à luz baça da vela, Desmond devia ter notado o pavor que

transparecia em seus olhos arregalados. Talvez tivesse resolvido não fazer caso dele; ou, quem sabe,interpretou-o mal, confundindo aquela com a expressão do desejo por exemplo.

O medo estava não só nos olhos como na mente e no coração de Marianne. Ela recuou.Estendendo a mão, Desmond segurou seu delicado braço e puxou-a. Estava tão excitado que não lhe

notou o coração disparado como o de um pardal assustado. O que... você está fazendo? murmurou Marianne, inclinando a cabeça para trás e tentando

desvencilhar-se.Desmond a tomou pela cintura e, com a outra mão, segurou-lhe a nuca. Pretendo levá-la ao paraíso, minha gatinha murmurou, roçando os lábios em seu pescoço.

E pode ter certeza de que vai ser bem melhor do que com o velho Carstairs.Colou os lábios nos dela. Durante um breve momento, Marianne entregou-se ao prazer do calor e

da umidade daquele beijo; ficou eletrizada ao contato daquela língua em sua boca.Pressionando o corpo no dela, Desmond lhe acariciou os ombros nus. Marianne sentiu-lhe a viril

musculatura das coxas quando Desmond pôs a perna entre as suas, separando-as. Só no momento emque Desmond procurou seu decote, Marianne se deu conta do que estava acontecendo, de quais eram asintenções daquele homem. Recuando, procurou livrar-se de seus braços e seus beijos. Não! Não!

Confuso, Desmond se deteve e a fitou. Sua resistência não chega a ser uma lisonja, querida. Nunca imaginei que as profissionais do

seu ramo se comportassem assim. Eu... não estou entendendo. Estou dizendo que, já que ganhei a aposta de Carstairs, tenho o direito de desfrutá-la. Aposta? Que aposta? A que ele perdeu e eu ganhei. Você, Srta. Trenton. Eu? Mas eu... sou a pupila do Sr. Carstairs: Desmond sorriu, deliciado. Sem querer, Marianne

lhe dava a impressão de estar apenas representando um papel. Ele a carregou e levou-a à imensa cama.

Não! Não... você não pode... Por favor, Sr. Desmond... Oh! Não!Acreditando que aquilo não passava de uma encenação, Desmond ignorou suas súplicas.Imobilizando-a com uma das mãos, começou a despi-la com a outra. Eram tão pequenos os botões dovestido que teve vontade de arrancá-los. Contendo-se, no entanto, desabotoou-os um a um. Ao tirar-lhe aroupa íntima, soltou-a para lhe beijar os seios firmes e delicados. Marianne, porém, se afastou, sempretentando escapar, e, num gesto de desespero, desferiu-lhe uma bofetada.

Hipnotizado pelo desejo, Desmond recuou, surpreso, e riu. Agarrando-a outra vez, puxou-lhe asaia. Estava disposto a desnudá-la por completo. Esperava alguma colaboração, porém Marianne semostrava decidida a tornar a situação o mais excitante possível.

A saia parecia um labirinto de pano. Enfim, Desmond conseguiu tocar-lhe a pele quente e maciada coxa e roçar o elástico de sua roupa íntima, ao mesmo tempo que lhe beijava o seio.

Marianne estava quase nua. Excitado, Desmond s abandonou ao contato daquelas pernas macias.Colocando uma coxa entre as de Marianne, começou a balançar o corpo. Em breve, ela desistiria de tanta

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resistência e se entregaria a suas carícias. Logo, tomaria a iniciativa. O fogo da paixão se intensificariamais e mais, até que seus corpos se fundissem no prazer.

Desmond lhe tocou a pele alva e gemeu, encantado com o aroma de seu corpo. Sentindo arfar opeito de Marianne, ergueu-se um pouco para vê-la melhor. Ela estava muda, petrificada, com o rostobanhado em lágrimas. Seus lábios moveram-se devagar:

Por favor, não! Oh, meu Deus, não deixeis que ele faça isso comigo!

Soltando-a, Desmond recuou num sobressalto e sentou-se na cama. O que significava aquilo?,pensou, passando a mão nos cabelos. O que estava acontecendo? Não era o que Carstairs prometera.Desmond respirou fundo, tentando raciocinar. Afinal, o que havia lhe prometido Carstairs? O

homem tinha lhe oferecido sua "pupila". Pupila? Seria possível... Marianne? chamou.Sem abrir os olhos, ela continuou movendo os lábios trêmulos. Marianne, quantos anos você tem? Ouvindo-lhe os soluços, Desmond enxugou suas

lágrimas com a ponta dos dedos. Dezesseis... ela balbuciou.Dezesseis?! Seria possível que fosse tão jovem?, pensou, estudando-lhe o rosto. Sim, sem

dúvida.

E... você nunca fez... isso antes? Ela sacudiu a cabeça.Tomado de uma repentina sensação de asco, Desmond afastou a mão do rosto de Marianne.

Estava com nojo de Carstairs, que lhe havia mandado aquela menina sem ao menos informá-la de seudestino. Era mais do que evidente o propósito de sua estada em Kingsbrook. Aquele bandido sabia muitobem o que aconteceria. Desmond também sentiu nojo de si mesmo. Carstairs era um porco; mas... e ele,o que era?

Calado como estava, Desmond parecia alheio à presença de Marianne. Mas, na verdade, estavacom o pensamento fixo nela. Queria compreender por que estava ali. Por que se encontrava em poder deCarstairs? Aonde isso a poderia levar? Se aquela era a sua primeira vez, o velho monstro ainda não ahavia molestado. Porém, uma vez aceita a aposta, decerto tornaria a usá-la. Com certeza, para sempre.Mesmo que Desmond não tocasse a pobre moça, mandá-la de volta equivalia a entregá-la à prostituição.Ao inferno. E, se fizesse isso, não seria melhor que Carstairs.

Sr. Desmond... sussurrou Marianne.Sobressaltado, ele se voltou. Viu-lhe as pupilas dilatadas, os olhos vermelhos e inchados.

Marianne o estava encarando com a expressão de um sentenciado à morte. O senhor já terminou? Quê? Já acabou? Posso ir para o meu quarto? Sim. Vá. Vá respondeu, contrariado, desviando o rosto para não vê-la levantar-se.Marianne rolou na cama, desembaraçando as pernas dos lençóis. Envergonhada, evitou erguer o

olhar enquanto se vestia. Depois, cabisbaixa, aproximou-se da porta. E foi com um suspiro de alívio que

conseguiu destrancá-la.Desmond sentiu-se corroído pelo remorso. Não tinha dúvidas quanto à violência física que quasepraticara. Nem quanto aos danos psicológicos que devia ter provocado na menina. Oh, não, ele nãopodia conservar Marianne em Kingsbrook. Tampouco podia mandá-la de volta à casa de Carstairs.

CAPÍTULO TRÊS

Para Marianne, a vida não passava de uma sucessão de noites de angústia e terror. Primeiroforam as longas vigílias ao lado da mãe, cujo sofrimento ela acompanhou sem nada poder fazer paraevitar que fosse definhando até a morte. Depois, as intermináveis madrugadas aguardando a chegada de

Horace; a aflição de imaginar a que abuso e a que indignidade ele a sujeitaria. Porém, nada secomparava com o pavor de sua primeira noite em Kingsbrook.

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Despindo-se devagar, ela evitou olhar para o espelho; temia encontrar a prova física do que lhehavia sucedido. Desabotoou o vestido e o deixou cair ao chão. Por força do hábito, abaixou-se paraapanhá-lo, muito embora tivesse certeza de que nunca mais tornaria a usá-lo.

Tendo enchido a bacia com a água ainda morna que encontrou no jarro, lavou-se com cuidado.As lágrimas lhe corriam pela face. Seus músculos estavam doloridos pelo esforço que fizera para sedefender. Sua cabeça latejava.

Marianne se sentia humilhada. A vergonha afrontava-a com mais força ainda que o sofrimento dequase ter sido violentada.Abriu a gaveta da cômoda, na qual Alice guardara sua roupa, e tirou uma camisola de flanela.

Vestiu-a depressa e foi para a cama. Enrolou a manta no pescoço, como costumava fazer no inverno;embora fosse pleno verão, nunca tinha sentido tanto frio.

Por mais que procurasse não pensar no incidente, não conseguia evitar que o sentimento de culpaaflorasse, implacável. O que havia feito para provocar aquela atitude em Desmond? Sem dúvida, nadaintencional ou premeditado. Marianne se deixara fascinar por sua atenção, sua delicadeza, e quiseraimpressioná-lo. Teria sido a maneira afetuosa como olhara para Desmond? Será que se haviaaproximado demais quando estavam conversando?

Virou-se na cama e gemeu.

A solidão lhe intensificava a angústia. Marianne não contava com ninguém com quem pudessedesabafar. Ninguém que lhe desse um conselho. Precisava tirar sozinha as suas conclusões. No entanto,ainda não passava de uma garota, carecia de referências, de experiência.

Marianne passou uma noite agitada. Seus breves momentos de sono foram sacudidos por sonhosestranhos, eróticos, que a sobressaltavam. Banhada em suor, sentia-se cheia de vergonha. Quando afinalamanheceu, despertou, sufocada de calor, e recordou que, durante a noite, desejara muito morrer. Mascontinuava viva. E não tardou a compreender que não poderia ficar para sempre naquela cama.

Na verdade, podia deixar o quarto quando quisesse, descer e procurar a companhia de Alice ouda Sra. River. Mas talvez ele estivesse lá em baixo.

A ideia de se confrontar com Desmond lhe pareceu terrível. Todavia, por mais que continuassese escondendo, não estaria em segurança. Desmond era forte o bastante para arrombar a porta e arrastá-la  para  fora,  como  fazia  Horace.  Respirando  fundo  e  erguendo  o  queixo  comdesvencilhou-se dos lençóis e se dispôs a enfrentar a situação.

Sra. River! Srta. Trenton?As duas se surpreenderam na sala de jantar. Marianne ficara aliviada ao dar com a sala vazia e a

mesa do café ainda servida. Como os ovos mexidos e o mingau de aveia já tivessem esfriado, servira-sede morangos frescos e bolinhos, procurando não fazer barulho para que não notassem a sua presença.

A governanta hesitou. Estava confusa ante o que se passava em Kingsbrook. Fazia muito tempoque conhecia o patrão e sua família e ficara perturbada com a ideia de hospedarem uma mulher deorigem e reputação suspeitas.

Na verdade, conhecia Desmond desde o tempo em que ainda o chamavam de Peter e ele vinha,de vez em quando, visitar o avô. Um menino encantador, muito embora, depois, quando foi para aescola, tivesse adquirido hábitos lamentáveis. Era voz corrente entre os criados que o rapaz viera a ser agrande decepção dos pais, que, desiludidos, acabaram abandonando-o como um caso perdido.

Mas a Sra. River conhecia bem o seu lugar. Julgava-se capaz de se manter a distância, contantoque Desmond restringisse a Londres a sua vida desregrada.

De manhã, Alice havia comentado que o Sr. Desmond dormira sozinho em seu quarto. E que, adespeito de sua profissão, a Srta. Trenton parecia ser uma moça educada. Como de costume, agovernanta a repreendeu por estar se intrometendo na vida do patrão e considerou românticas e infantisaquelas observações sobre a hóspede. Porém, no momento em que deparou com a moça na sala dejantar, teve de admitir que ela parecia outra pessoa. Marianne estava com um vestido simples e um

avental branco bordado. Os cabelos soltos, mal penteados, e os olhos vermelhos lhe davam aparência decansaço. A governanta teve um sentimento de maternal compaixão por ela. Será que se enganara?

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Desculpe-me. Sei que já é tarde. Mas, como encontrei a mesa ainda posta, achei que não fariamal servir-me.

Fique à vontade, Srta. Trenton. Se quiser, posso mandar Jane fazer um café novo. Oh, não! Já me satisfiz. Os morangos estavam deliciosos e, se a senhora não se importar, vou

levar uns bolinhos para o quarto. Assim não a incomodarei mais. Olhou a sua volta à procura de umguardanapo.

Aqui está ofereceu a Sra. River.A gentileza surpreendeu Marianne, que, com lágrimas nos olhos, compreendeu que a governantaa tratara com tanta indiferença no dia anterior porque sabia das intenções do patrão. Todos deviam ter pensado que ela era uma pobre-coitada. E talvez fosse mesmo...

Apesar de sua infelicidade por ter de morar com Horace, sempre sozinha, e se submeter a maus-tratos quase diários, Marianne nunca havia enfrentado uma situação que a amedrontasse e confundissetanto.

Oh, querida... balbuciou a governanta, afugentando as últimas reservas com relação àhóspede.

Aproximou-se e abraçou Marianne. Estava convencida de que tudo não passara de um mal-entendido. Sem o vestido provocante da noite anterior, Marianne parecia tão jovem, tão indefesa... Devia

ser mesmo uma pupila do Sr. Desmond. E, sem dúvida, estava passando por um momento difícil; talveztivesse perdido um parente próximo ou mesmo os pais.

Acalme-se disse, oferecendo-lhe um lenço. Está se sentindo melhor agora? Um pouco. Marianne soluçou. Desculpe-me. Não peça desculpas. Eu compreendo muito bem. Marianne a fitou, sabendo que ela, na

verdade, nadacompreendera. Nem a Sra. River nem ninguém podia imaginar que ela fora inocentemente

seduzida. Suba agora, meu bem, lave o rosto, penteie os cabelos. Quando descer, Jenny a estará

esperando com um delicioso prato de sopa.Sentada a um canto tranqüilo da cozinha, Marianne ficou saboreando o que considerou a melhor 

refeição que tomara em Kingsbrook. Ocupada com seus afazeres, a Sra. River entrava e saía. Ao ver queMarianne havia terminado, aproximou-se, enxugando as mãos no avental.

O Sr. Desmond...Com um sobressalto, Marianne se levantou, enxugou os lábios com o dorso da mão e olhou ao

seu redor. Onde ele está? Acalme-se. A boa mulher sorriu. Eu ia comunicar que o Sr. Desmond viajou esta

manhã. Passará uns dias fora. Pediu-me que lhe dissesse que a casa é sua, você deve ficar à vontade. Oque quer fazer?

Não tenho ideia respondeu Marianne, esboçando um sorriso.

Ora, não vai ficar trancada no quarto até que ele volte disse a Sra. River, com ar decensura.Mesmo assim, Marianne preferiu voltar ao quarto. Passou lá todo o primeiro dia e a metade do

segundo. Enfim, resolveu sair da toca! exclamou a governanta ao vê-la na tarde seguinte.Marianne corou. O que vai fazer agora, Sra. River? perguntou, com timidez. Bem, vou descascar ervilha com a Sra. Rawlins e supervisionar o trabalho de Alice, que está

polindo a prataria. Posso ajudar?Assim, enquanto a governanta e a cozinheira debulhavam a ervilha, Marianne se encarregava da

baixela com Alice.A noite, jantou na ala dos empregados e, pela primeira vez, sentiu-se bem, quase feliz, em

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Kingsbrook.Na manhã seguinte, acordou disposta a conhecer a propriedade. Posso dar um passeio? perguntou à Sra. River. A mulher sorriu, satisfeita. Claro que pode, querida. O ar puro lhe fará bem. Emprestou-lhe um xale, que estava

pendurado nocabide da cozinha, e abriu a porta, mostrando-lhe o melhor caminho.

Marianne pôs o pé fora da casa, com receio, como que a experimentar a temperatura da água deum regato antes de mergulhar. Deu outro passo. A governanta não conteve o riso.Depois de andar algum tempo sem rumo entre os canteiros próximos da casa, Marianne tomou a

direção do bosque; ficou deslumbrada com o emaranhado de samambaias e heras. Ao atravessar apequena ponte em arco, sobre o riacho que cortava as terras de Kingsbrook, avistou um pequeno veadocorrendo no prado.

Marianne seguiu seu caminho, atenta às irregularidades do terreno, evitando tropeçar. Quandoergueu a cabeça, viu um muro baixo de pedra. Contornando-o, encontrou quatro pilares, também depedra, que sustentavam o teto inclinado. Era um pequeno caramanchão construído com o esmero que elajá observara no resto da propriedade. Todos os detalhes impediam que o pavilhão destoasse da rústicapaisagem. O sombrio lugar parecia proibido, a imponência dos pilares a intimidaram. Respirou fundo,

antes de subir os degraus. O interior do caramanchão lembrava uma caverna. Mas, ao entrar, Mariannese viu num agradabilíssimo refugio. A curiosa acústica do caramanchão abafava os ruídos do bosque; eracomo se ela se encontrasse a portas fechadas.

Sentando-se num banco de pedra, ficou ouvindo o murmúrio do vento nas folhas. A luz do solenchia o bosque de uma profusão de cores, de diferentes tonalidades de verde, que contrastavam com ofrio cinzento das pedras. Marianne teve a impressão de haver entrado em outro mundo. Um mundo maisalegre e inocente. E, certa de que jamais faria parte dele, chorou. Não só pelo que lhe havia acontecido,mas sobretudo pelos pensamentos obscuros que a perseguiam, pela lembrança de Desmond quase nu asua frente, de suas coxas musculosas comprimidas nas dela, do contato daquelas mãos robustas em seusseios. Por mais que desejasse evitar, não cessava de imaginar como seria se ele a tivesse tocado commais delicadeza.

Marianne não sentira prazer no ato em si. Na verdade, nem mesmo se lembrava de como haviasido. Mas queria muito saber se, em circunstâncias adequadas, seria tão bom quanto costumavam dizer.

Uma sucessão de imagens sensuais lhe invadiu a mente. Sentindo-se vil e pecaminosa, tratou deafugentá-las; cobriu o rosto com as mãos, desejando voltar a ser a jovem inocente de outrora. Mas seucoração lhe dizia que essa Marianne estava perdida para sempre. Por culpa de Desmond...

Marianne só notou que não estava só ao ouvir passos na escada do caramanchão. Assustada,ergueu a cabeça e deu com os olhos do homem que tanto queria esquecer. Teve de reprimir um grito.

Desmond estremeceu, como se ela o tivesse esbofeteado. Ao se levantar depressa, tentando fugir,Marianne lhe pareceu um botão de rosa açoitado pelo vento: corada, sensível, imatura. Porém, semdúvida, suas delicadas pétalas continham uma bela promessa para. o futuro.

Só naquele momento Desmond se deu conta do quanto a havia magoado. E também corou devergonha.Fazia muitos anos que Peter Desmond não se sentia assim. Lembrava-se de quando Ronny

Withers o induzira a embriagar-se pela. primeira vez. No dia seguinte, sua ausência na sala de aula nãotardou a ser notada. E o diretor de Ketterling mandou convocá-lo a seu gabinete.

Eu gostaria de saber por que o senhor faltou à aula. inquiriu o severo Sr. Stampos. Acho que... foi... porque eu estava bêbado, Senhor diretor respondeu o jovem Desmond,

engolindo em seco. O senhor achai Eu estava bêbado, senhor. Seis dias de suspensão, rapazinho! E que isso não se repita, ouviu?

Se o diretor Oliver Stampos o tivesse punido apenas com a suspensão, talvez o incidente tivessesido encerrado. Mas a ameaça implícita na fala do diretor: "E que isso não se repita, ouviu?", soou-lhe

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como uma afronta. E, a partir daquele dia, sua vida escolar se desorganizou por completo. Pouco apouco, Desmond adquiriu a ingênua e divertida obsessão de descobrir até que ponto era capaz detransgredir o regulamento da escola sem ser pilhado. Passou a gastar em bebida toda a mesada que ospais e o avô lhe mandavam. Quando lhe faltava dinheiro, arriscava-se em apostas, muitas vezes pedindoemprestado aos colegas ou mesmo roubando.

Foi nessa época que seu amigo Ronny Withers o apresentou a certas mulheres que logo o

introduziram nos prazeres da carne. Certa noite, Desmond e o colega de classe fugiram de Ketterling. EDesmond ficou tão bêbado que no dia seguinte mal podia se lembrar do que tinha acontecido na casa decômodos escuros.

Mas quando seu pai foi chamado à escola, Peter Desmond descobriu que não era tão espertoquanto imaginava. Depois de apresentar todas as provas de seu mau comportamento, o Sr. Stampos oexpulsou.

Foi levado de volta para casa, em Birmingham. Sua mãe acreditava que, sob o controle dafamília, ele se regeneraria. No entanto, as oportunidades e seduções que a cidade natal lhe oferecia erammuito mais tentadoras que as de Ketterling.

Desmond se tornou jogador profissional, o que lhe custou a herança que recebera de um tio eparte da que receberia após a morte do avô, além do definitivo repúdio do pai.

Às vezes, em Ketterling, e também depois de seu retorno a Birmingham, chegava a ter remorso.No entanto, com o passar do tempo, já não se importava mais. Não se intimidou sequer quando seu pai ochamou em seu escritório e lhe comunicou que, em face dos vexaminosos acontecimentos do fim desemana anterior, quando Desmond perdera seu relógio de ouro e uma das carruagens da família foradestruída, sua presença em casa não seria tolerada nem mais um minuto.

O casal ainda estava discutindo o destino do filho quando a Sra. Desmond recebeu uma cartacomunicando o falecimento de seu pai. Como Peter era o herdeiro de Kingsbrook, o Sr. Desmond tratoude despachá-lo sem demora para lá. Estava decidido a nunca mais tornar a vê-lo.

Sem que ninguém soubesse, Peter passou a receber da mãe, duas vezes por ano, uma soma que oajudava a manter Kingsbrook. Quase sempre, no entanto, o dinheiro desaparecia na mesa de jogo.

Com o tempo, Peter Desmond se tornou um verdadeiro especialista e se viu em condições depagar toda a despesa da mansão com o que ganhava no baralho, tanto em Londres quanto no resto daEuropa.

Ele escolhera uma maneira arriscada de viver. Embora expulso de Ketterling, conseguiu umavagina Universidade de Reading. E mesmo tendo sido bom aluno, saiu da universidade, quatro anosdepois, sem saber que rumo dar à existência. Já havia dilapidado-a herança do avô e fora deserdado pelopai. A despeito das lágrimas da mãe e da fúria do Sr. Desmond, em momento algum baixou a cabeçanem reconheceu sua culpa.

Naquele momento, contudo, entre as colunas de pedra do caramanchão, olhando para a mocinhaque "ganhara" no pôquer, sentiu um ardor na face e foi obrigado a reconhecer a própria ignomínia.

Desmond pigarreou.

Bom dia, Srta. Trenton.Ela não respondeu, apenas olhou para ele, contrariada, e recuou. Senhorita, eu queria lhe pedir que não tivesse medo de mim, mas acho que seria inútil. Em

todo caso, pode ficar descansada, não vou me aproximar. Você está tão pálida... Sente-se, por favor.Marianne obedeceu. Vendo que Desmond continuava junto ao pilar, ficou mais relaxada; seus

olhos, ao contrário, ainda expressavam desconfiança e medo. Vou direto ao assunto, senhorita. Passei as últimas noites em claro, pensando no destino que

devo dar a sua vida. Isso deve preocupá-la também, imagino.Marianne suspirou e fez que sim. Se entendi bem o que tentou me dizer naquela noite prosseguiu ele, notando que o rosto

pálido de Marianne se tingira de rubor à simples menção do episódio , você não é uma das jovens de

Carstairs.Marianne o encarou e enrugou a testa, tentando compreender.

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Quero dizer, você não... trabalha para Carstairs, não é? Pois precisamos encontrar um lugar para moças da sua idade. Em todo caso, é bom saber que tem alguma formação. Em silêncio, Mariannecontinuava a fixar nele os olhos grandes e desconcertantes.

Vou tomar providências. Talvez demore uma ou duas semanas, mas não se preocupe, poisficarei num hotel, em Reading, até que tudo esteja resolvido. Você deve se sentir em casa. A Sra. River vai ajudá-la no que for necessário. Tem alguma pergunta a fazer?

Não... Se lembrar de alguma coisa, pode perguntar à Sra. River. Eu a orientarei sobre asprovidências a serem tomadas. Caso não voltemos a nos encontrar antes de sua partida, Srta. Trenton,quero pedir mais uma vez desculpas pelo mal-entendido.

Desmond suspirou, aliviado. Estava tudo resolvido. Fizera o que estava a seu alcance parareparar o erro de havê-la levado para casa e ter se comportado feito um animal. Com um pouco de sorte,nunca mais tornaria a vê-la, o episódio ficaria esquecido para sempre, e ele retomaria a sua solitáriarotina em Kingsbrook.

Marianne tinha baixado a cabeça e parecia entretida com as próprias mãos. Sr. Desmond, e se... começou a dizer com timidez. Não queria que ele fosse embora sem

esclarecer a dúvida que mais a afligia.

Sim? Desmond a encorajou a continuar. E se eu estiver grávida? Desmond se encostou no pilar. Você não está grávida, Marianne. Mas com o que aconteceu aquela noite... Não aconteceu nada aquela noite. Nada?! Marianne encarou-o, assombrada. Mas o senhor... o senhor... Posso ter me comportado como um selvagem, mas não consumei o ato. Você continua tão

virgem como quando saiu da casa do Sr. Carstairs. E pode ter certeza de que está em segurança aqui.Os olhos de Marianne se encheram de esperança e lágrimas. É mesmo? É verdade?Desmond teve vontade de tomar nos braços aquela trêmula adolescente e confortá-la por todo o

medo, toda a aflição que lhe havia causado. Mas prometera não se aproximar, e nada o levaria a quebrar a promessa.

É verdade.Marianne suspirou. Não teria um bebê. Desde aquela primeira e terrível noite, estava apavorada e

confusa. As informações de que dispunha sobre o assunto vinham da leitura de romances baratos, nosquais um homem beijava uma mulher corri intensidade, como Desmond a beijara, despia-a e, no capítuloseguinte, a pobre coitada aparecia com uma criança nos braços.

E Marianne, que ficara paralisada pelo medo, estava sentindo um alívio imenso naquelemomento. Acreditava no Sr. Desmond. Não só porque ele sabia mais do que ela sobre como se geravauma criança, mas por causa da expressão de seu rosto e do timbre de sua voz ao responder.

Que bom, Sr. Desmond!Quando ergueu a cabeça para fitá-lo, Desmond já se afastara. Marianne ficou pensando no queele havia falado: ia mandá-la a um bom colégio. Como tinha certeza de que aquele homem era rico emau, achou que estava agindo daquela maneira só para se aproveitar dela mais tarde.

Não era a primeira vez que o interpretava mal, nem seria a última.

CAPÍTULO QUATRO

Uma semana depois, a Sra. River recebeu um recado de Peter Desmond, informando-a de quehavia matriculado a Srta. Trenton num respeitável internato para moças, perto de Farnham. Até então,

ele tinha permanecido longe de Kingsbrook, conforme prometera, concedendo a Marianne total pri-vacidade. Marianne, sem saber por quê, sentia-se em casa na enorme mansão e passava os dias vagando

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pelos aposentos.A julgar pela variedade de temas que povoavam aquelas prateleiras, a biblioteca, local predileto

de Marianne, não tinha sido montada por uma única pessoa. Ela ficou admirada com a quantidade deobras sobre pássaros, plantas tropicais, história, os ensaios políticos e a poesia de autores de que nuncatinha ouvido falar. Muitos livros, como Medeia, Antígona, A Ilíada e A Eneida, despertaram-lhe ointeresse. O volume de A Odisséia estava fora do lugar, dando a impressão de que fora lido havia pouco.

Porém, com muita frequência, Marianne ficava decepcionada ao abrir os livros. Muitos estavamescritos em língua estrangeira, outros, grafados em estranhíssimos sistemas alfabéticos que maispareciam símbolos místicos.

Ela se achava justamente na biblioteca quando a Sra. River a procurou com a correspondênciaque acabava de receber.

Carta do Sr. Desmond! anunciou, com o envelope aberto na mão. Ele arranjou umcolégio para você. E diz que... bem, vou ler. "O Internato de Farnham fica longe da cidade. Acho que aSrta. Trenton apreciará a tranqüilidade do lugar. A Sra. Avery, diretora do colégio, garantiu-me queestão capacitados a oferecer o que há de melhor para moças." Que tal? Gostou? Você vai para lá depoisde amanhã.

Marianne sentiu um frio na espinha. Não sabia se de ansiedade ou medo.

O Sr. Desmond pediu que o avisássemos, caso você precisasse de mais tempo. Mas não creioque seja necessário. Alice a ajudará a arrumar as malas; em uma tarde estará tudo pronto, não acha?

Marianne fez um leve gesto afirmativo, concordando com a animada governanta.Dois dias depois, embarcou com Rickers no coche que a levaria a Farnham.Havia passado apenas vinte e um dias em Kingsbrook, mas, sem dúvida, aquele fora o período

mais tumultuado de sua vida. Ao partir, sentiu, surpresa, a garganta apertada de saudade. Aqueles diasem Kingsbrook podiam não ter sido os mais felizes de sua vida, mas haviam se transformado numa parteimportante dela.

Rickers deixara Marianne na escola cinco dias após a chegada da carta do Sr. Desmond. A Sra.Avery fora em pessoa receber a nova aluna.

Srta. Trenton, seja bem-vinda ao Internato de Farnham. Espero que seja feliz em nossacompanhia.

"Ser feliz é o meu único desejo", pensou Marianne ao mesmo tempo que murmurava palavras deagradecimento.

O colégio funcionava numa feia construção de pedra cinzenta, de três andares, com duasedificações menores anexas. Uma delas servia de cozinha, de onde a Comida nunca chegava quente àslongas mesas do refeitório, que, no entanto, ficava muito perto; a outra era reservada à educação físicadas alunas, "tão necessária ao bem-estar do corpo quanto a alimentação". A Sra. Avery, uma mulher altae macérrima, era fervorosa defensora do condicionamento físico, e, além de diretora da instituição,também lecionava latim.

São raras as escolas para moças que oferecem curso de latim costumava dizer. As

jovens só aprendem a falar baixo e a fazer tricô, e os mais sublimes pensamentos da humanidade ficamocultos para elas nas línguas clássicas. Os rapazes aprendem latim desde os oito anos de idade.Considerem-se moças de sorte por terem a mesma oportunidade.

A parte principal da escola, onde as moças passavam a maior parte do tempo, ficava no enormeprédio central.

O Sr. Desmond pesquisara com cuidado até encontrar aquela instituição de ensino "para moçasde classe". Marianne tinha aulas de oratória com a Srta. Gransby, de boas maneiras com a Sra. Lynks, ede história antiga com a Sra. Brannon; em todas, se distraía e se perguntava se um colégio um poucomenos especializado em moças de alta classe não seria mais interessante.

As alunas, em sua grande maioria, eram simpáticas. Marianne, porém, tinha dificuldade parafazer amizades. Demorou uma semana para ter oportunidade de pronunciar uma frase completa; duas

para dar uma informação pessoal. Só a Nedra contou que idade tinha. Passara tão isolada os últimos doisanos que nem ao menos sabia como se comportavam as jovens de sua idade.

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Nedra Stevens era um ano mais nova e tão pálida, inclusive de espírito, que não chegou aintimidar Marianne. Aos poucos, tornou-se amiga dela, e ambas passaram a estudar juntas durante atarde.

Nedra lhe falou em sua casa à beira-mar. Marianne descreveu-lhe as maravilhas de Kingsbrook.Dias depois, Nedra lhe falou em seus dois irmãos mais velhos; na mãe doente, no pai e afinal contou-lhesobre um primo, pelo qual era apaixonada desde os sete anos. Marianne, por sua vez, sentiu-se na

obrigação de mencionar © tutor e fazer comentários sobre seus atributos físicos. Muito bem, meninas. Tenho certeza de que estão em condições de se orientar sozinhas aqui.A Srta. Gransby, a Sra. Grey e eu pretendemos ajudá-las no que for necessário, mas não vamos conduzi-las feito crianças. Reading, como já lhes disse, é uma cidade famosa por suas galerias de arte. Esperoque a visita sirva de inspiração para o desenvolvimento artístico de algumas de vocês. Nos museus deReading, teremos oportunidade de ver uma série de relíquias, muitas da época de Henrique I. Umexemplo é o mosteiro dos beneditinos, que tivemos oportunidade de visitar. Suas ruínas foram des-cobertas por Henrique I. Mas foi Henrique VIII quem o reconstruiu e o transformou num palácio.

A Sra. Avery falou durante horas, sempre reafirmando a "maravilhosa oportunidade deaprendizagem" que a cidade oferecia. No entanto, toda vez que se referia à universidade local, arqueavaas sobrancelhas e olhava para as alunas por cima dos óculos. Já as havia alertado para o fato de que

veriam um grande número de universitários circulando pelas ruas da cidade e de que deviam ignorá-los.Uma advertência inútil. Como esperar que aquelas adolescentes não se interessassem pela grandequantidade de belos jovens que passavam apressados por toda parte?

Segundo as instruções da diretora, as alunas deviam conservar-se em fila, sempre que possível decabeça, baixa, e dizer apenas o indispensável.

Todavia, a presença das alunas perturbava a grave atmosfera dos museus, cujos freqüentadores,amantes da arte quase tão velhos quanto os quadros expostos, conservavam o mais profundo silêncio. Ogrupo de vinte e oito adolescentes foi uma lufada de ar fresco que entrou naquelas salas.

Vamos sair um pouco? cochichou Marianne. Sa... sair? gaguejou Nedra. Não podemos. Logo notarão a nossa ausência. Então vamos pedir autorização. Marianne voltou-se para a Sra. Grey e queixou-se do

ambiente abafado.As duas jovens saíram por uma porta lateral e foram seguidas por Judith e uma amiga. O que vamos fazer? perguntou Nedra, receosa. Conhecer um pouco da cidade. Para passarmos o tempo todo confinadas nestas salas úmidas e

escuras não precisávamos ter saído do colégio. E se nos perdermos? Marianne puxou Nedra pelo braço. Não tenha medo.Em Reading, cidade universitária, não faltavam lugares que ofereciam diversão e comida barata.

Havia uma profusão de cafés com mesas nas calçadas e de pequenas lojas que vendiam desde maçãs atépele de zebra, se bem que estas, quando examinadas de perto, pareciam não passar de couro de vaca

pintado.Marianne estava fascinada, e a pobre Nedra ia atrás dela, apavorada, segura de que a qualquer momento alguém as abordaria, o dedo em riste, perguntando-lhes por que haviam se separado do grupo.

Foi devido ao receio de Nedra de passar por uma calçada repleta de mesas que Marianne reparounos dois homens. Detendo-se de repente, empurrou a colega e, fazendo-a colidir com alguns transeuntes,forçou-a a entrar numa livraria.

O que aconteceu?! gritou Nedra, assustada. Marianne fez um sinal para que ela se calasse eapontou para a mesa de um café.

É o meu tutor sussurrou. Os dois são meus tutores.Lá estava Desmond conversando com Horace. Ambos muito sérios, pareciam discutir. Do lugar 

onde se encontrava, Marianne não conseguia ouvir o que diziam. Passado algum tempo, Desmond tirou

a carteira do bolso e, sem se dar ao trabalho de contar, entregou á Carstairs um maço de dinheiro. De que estão falando? quis saber Nedra. Por que um está dando dinheiro ao outro? Será

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o pagamento de uma dívida?Sem deixar de observar a cena, Marianne sacudiu a cabeça. Estava confusa. Sabia que os dois se

conheciam, mas não imaginava que tivessem feito algum negócio.Desmond fez um sinal para o garçom e pediu bebida. Erguendo o copo, disse algo a Carstairs e o

esvaziou de um trago. Este, por sua vez, sorriu e bebericou. Depois, pegou o dinheiro, que ainda estavana mesa, guardou-o e tomou outro gole. Parecia satisfeitíssimo.

Ao ver que seu novo tutor acabava de se levantar e vinha na direção da livraria onde as duas sehaviam refugiado, Marianne assustou-se e, uma vez mais, empurrou Nedra. Desmond, contudo, passousem olhar para o lado.

No museu, Marianne e Nedra foram severamente repreendidas pela diretora. Judith e Sylviatinham voltado bem antes, após um rápido passeio. Assim que as duas retardatárias chegaram, o grupoembarcou nos coches e retornou a Farnham. Como castigo, Marianne e Nedra ficaram confinadas noquarto e na sala de aula durante um mês. E tiveram de enfrentar a fúria das colegas, que as acusavam delhes haverem estragado o passeio.

Marianne estava muito arrependida de ter insistido na aventura não só pelo constrangimento quecausara às colegas, mas, sobretudo, por haver descoberto que Desmond e seu tio Horace tinham algumnegócio em comum. Ao mesmo tempo, porém, sentia saudade de Kingsbrook. Lembrava-se da casa

espaçosa e fresca. A cada instante, tentava imaginar como estavam os jardins depois do longo período decalor. O verão parecia não terminar mais.

Em setembro, no entanto, o céu se encobriu de nuvens escuras, a temperatura caiu muito ecomeçou a chover. O tempo só mudou em novembro, quando a chuva foi substituída pela neve.

A Sra. River escrevia a Marianne com frequência. Em quase todas as cartas, convidava-a a passar um final de semana em Kingsbrook. Agradecida, Marianne se desculpava, alegando estar muito ocupadacom os estudos. Mas em dezembro, quando a maioria das colegas e professoras foram passar o Natalcom a família, recebeu um bilhete da Sra. River, que não lhe dava margem para pretextos:

"Querida Srta. Trenton.Rickers vai buscá-la no próximo fim de semana. Kingsbrook é adorável nesta época do ano, e

todos estamos sentindo muito a sua falta.O Sr. Desmond garante que não passará toda a temporada ocupado com os negócios em Reading

e Londres, de modo que, com um pouco de sorte, você terá oportunidade de encontrar-se com ele aqui.Estamos ansiosos por sua chegada.Com afeto,Sra. River.""Com um pouco de sorte..." As mãos de Marianne começaram a tremer. Dessa vez, porém, não

tinha como esquivar-se de um reencontro com Desmond.

CAPÍTULO CINCO

O inverno era lindo em Kingsbrook. Nos campos cobertos por uma fina camada de neve, só osespaços protegidos pelas copas das árvores continuavam verdes, embora salpicados de alvíssimos flocos.

Rickers estacionou o coche bem perto da porta. A Sra. River, que passara o dia na expectativa dachegada da jovem pupila do Sr. Desmond, fez questão de manter abertas as cortinas da sala e a lareiraacesa.

Entre! Vamos, entre! Ora, deixe-me olhar para você! Acho que Farnham está lhe fazendomuito bem. Dê-me sua capa e o chapéu. Alice! Ajude a Srta. Trenton com a bagagem. Agora, deixe-mevê-la bem repetiu a governanta, puxando Marianne para a tênue luz do final da tarde que entrava pelajanela. Você mal completou dezessete anos, em novembro, e já está tão linda. Uma moça! Venha. OSr. Desmond pediu que a mandasse direto à biblioteca. Você se lembra do caminho, não? Ora, claro que

sim, era o seu lugar favorito quando estava aqui no verão.A Sra. River deu a entender que não a acompanharia. Sua conversa com o tutor seria particular.

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O Sr. Desmond está me esperando? Não, querida. Ele precisou ir tratar de negócios com sir Grissam, mas prometeu não demorar.

Também está ansioso por vê-la. Tenho certeza de que você encontrará com que se distrair enquantoaguarda.

A porta da biblioteca era pesada e escura; Marianne, que nunca a tinha achado tão sinistra, reuniucoragem e abriu-a com cuidado, tratando de certificar-se de que Desmond não estava lá.

O salão se encontrava vazio conforme havia afirmado a Sra. River. Tudo ali lhe parecia familiar.A primeira coisa que ela fez foi abrir as cortinas. A seguir, voltou-se e se pôs a observar as prateleiras, aescrivaninha, as cadeiras.

Já conseguia reconhecer os livros que tanto a intrigaram na primeira vez; estavam em grego elatim. Seis meses de latim elementar, contudo, não bastavam para que os pudesse decifrar.

Marianne sentou-se numa confortável poltrona de couro diante da lareira. Ouviu, então, uma levebatida.

Entre!Alice empurrou a porta. A Sra. Rawlins lhe preparou um prato de sopa, senhorita. Seja bem-vinda. Obrigada, Alice. É sempre muito bom voltar para casa respondeu Marianne, sem

questionar a veracidade do que estava dizendo.A criada colocou a bandeja na mesa. Sua canja, senhorita. Especialidade da Sra. Rawlins. Está uma delícia! Tenho certeza. Obrigada. A viagem me deixou faminta.Alice sorriu e a deixou só outra vez.A canja estava excelente. Marianne só descansou a colher quando o prato ficou vazio. Saciado o

apetite, o corpo aquecido e relaxado após a longa viagem, a única coisa que ainda a afligia era aexpectativa da chegada de Desmond. Pegou um livro que estava na mesa e começou a folheá-lo.

Era um volume de botânica. Embora o assunto não lhe despertasse o interesse, os muitosparágrafos sublinhados lhe deram a impressão de que alguém o estivera lendo com atenção. Poucodepois, repôs o livro na mesa e, impacientando-se, levantou-se. Andou pela sala, acercou-se daescrivaninha. Chamou-lhe a atenção um peso de papel, de vidro, com uma moeda estrangeira dentro.Marianne não podia saber que, ainda muito jovem, Desmond ganhara aquela moeda no primeiro jogo decartas de que havia participado fora do país. O pai o mandara a Paris, onde devia estudar arte com osvelhos mestres. Desmond perdeu no jogo todo o dinheiro que levava e foi obrigado a abreviar suapermanência. O experiente jogador que o bateu em quase todas as rodadas, Sr. Deveraux, deu-lhe amoeda de presente e convidou-o a voltar outras vezes. Desmond guardou-a como lembrança.

Marianne viu um corta-papel que mais parecia um punhal. E era. O punhal com que Desmondhavia sido ameaçado, em Colônia, por um jogador irritado com as sucessivas derrotas.

Ao longo dos anos, Desmond aprendera a aplacar as emoções, mantendo-se calmo e dandosempre a impressão de completo domínio da situação. Naquela vez, porém, sentiu medo; resolveu,

então, guardar o punhal, transformando-o num corta-papel. Era uma espécie de advertência para simesmo. Tinha aprendido, naquele dia, que não devia jogar com homens que tomavam bebidas baratas.Marianne observou sem muita curiosidade os diversos objetos espalhados na mesa. Algumas

cartas empilhadas num canto lhe chamaram a atenção. Pareciam estar ali havia muito tempo. Pegando oprimeiro envelope, notou que Desmond nem sequer o abrira.

Para se distrair, resolveu contar as cartas que ele não se dera ao trabalho de ler. Já haviapercorrido a metade da pilha quando tomou consciência do que estava fazendo. Se a vissem, podiamconsiderá-la bisbilhoteira. Resolveu, então, recolocá-las no lugar. Antes, porém, pegou um últimoenvelope aberto. Ao ler o nome do remetente, perdeu a disposição para interromper aquilo queconsiderava uma invasão de privacidade.

Tratava-se   de   Horace   Carstairs,   East   Coventry,   número   16,   Londres.   Sem

constrangimento, abriu o envelope. A carta era datada de dois meses antes, pouco tempo depois de suadesastrada excursão aos museus de Reading.

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"Caro amigo.Estive pensando em nossas satisfatórias transações comerciais dos últimos anos. Creio que uma

delas, em particular, continua lhe rendendo aprazíveis lucros, já que você se esqueceu de me devolver amoça. E, enquanto eu pensava, uma ideia engenhosa me ocorreu.

Graças a sua profissão, acredito que conhece um bom número de cavalheiros, cuja situaçãofinanceira lhes permite vir com frequência a Londres, para tratar de negócios ou apenas entregar-se a

algumas noites de descontração e divertimento à mesa de jogo. Tais cavalheiros, contudo, além deforasteiros em nossa cidade, costumam viajar desacompanhados. Daí a necessidade de contarem com umestabelecimento de alto nível, que lhes proporcione companhia mais refinada do que a que lhes podemoferecer as pobres prostitutas que povoam as nossas ruas.

De minha parte, há anos venho me empenhando em encontrar e apresentar-lhes jovens tão purase imaculadas quanto era a doce Marianne quando a entreguei em nossa última rodada de pôquer. Assim,estou convencido de que poderíamos estabelecer uma sociedade, na qual você se encarregaria defornecer os clientes, c eu, as moças. É evidente que não tenho um estoque de pupilas comparáveis aMarianne; mesmo assim, garanto que estou em condições de cumprir a minha parte.

Tomei a liberdade de lhe sugerir a sociedade porque tenho certeza de que você ficou satisfeitocom a nossa primeira negociação. E seguirá desfrutando, conforme o combinado, os préstimos de nossa

jovem. Como cavalheiro que sou, jamais lhe recusaria tal favor.Contudo, apesar do inteligente documento elaborado por seu advogado, não estou convencido de

seu direito de exclusividade sobre ela.Meus respeitos, H. Carstairs."Marianne ficou horrorizada. Tio Horace estava pro-[ pondo ao Sr. Desmond que recrutassem

outras jovens,  a fim de jogar com seu destino da mesma forma como [haviam feito com o dela.Olhando ao seu redor para a sofisticada biblioteca, í admitiu que sua situação não era tão

desalentadora assim. Era evidente que o Sr. Desmond não abriria mão de seu direito de "vencedor".Marianne, porém, estava disposta a morrer, se necessário, para impedir que aquele monstro seapoderasse de sua vida e de seu corpo.

Sabia que precisava manter a calma; não devia tentar fugir nem contrariar Desmond. Ele poderiamandá-la de volta à casa de Carstairs.

Pela primeira vez, Marianne compreendeu o significado da expressão "estar na corda bamba".De súbito, ouvindo o barulho da porta de entrada, teve um sobressalto. Com as mãos trêmulas,

recolocou a carta no envelope. A Srta. Trenton já chegou? Era a voz inconfundível de Desmond. Está a sua espera na biblioteca, senhor respondeu a Sra. River. Ótimo.A porta da biblioteca se abriu. Desmond entrou. Estava com uma elegante capa preta, sobre cuja

gola larga caíam seus cabelos castanhos. Estavam mais longos que da última vez em que o vira emReading.

Apavorada, Marianne mordeu o lábio; sentiu trêmulas as mãos e as pernas. Encontrava-se, afinal,diante  do  vilão  que  pretendia  tornar  seu  futuro  uma  vergonha:  o  sócio  de  "empreendimento" maldito. Um homem cruel, um verdadeiro monstro. E, para desespero dela, maisatraente do que nunca.

A Sra. River me disse que você chegou há algum tempo, senhorita. Espero não ter medemorado muito.

De modo algum. Vejo que teve bastante tempo.Marianne engoliu em seco, aterrorizada com a possibilidade de haver deixado a execrável carta

de Carstairs fora de lugar. Mas Desmond estava olhando para a bandeja na mesa. Ah, sim. O suficiente para que a Sra. Rawlins me preparasse uma deliciosa canja. Espero que

não se importe. Sei que ninguém come aqui na biblioteca. Levarei a bandeja para a cozinha. Não! Não se incomode, Srta. Trenton. A Sra. River cuidará disso mais tarde.

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Desmond tinha deixado a porta aberta; sua presença parecia ocupar todo o ambiente. Emboracom frio, Marianne não teve coragem de lhe pedir que a fechasse.

Sente-se disse ele, arrastando uma cadeira para junto da poltrona onde Marianne estiverasentada.

Ela obedeceu, sem pestanejar. Quer dizer que resolveu passar o Natal conosco? Marianne olhou uma vez mais para a pilha

de cartas.Como aquele homem conseguia se mostrar tão acolhedor e inofensivo se tinha em mente umatrama de tal modo diabólica? Respirou fundo e o encarou.

A Sra. River mandou-me um bilhete, comunicando que o coche ia me buscar respondeu,tentando deixar claro que não fora sua a ideia de voltar.

Ótimo. Tenho certeza de que vai gostar de Kingsbrook no inverno.Fez-se então um constrangedor silêncio. Decidida a não tornar a olhar para a escrivaninha,

Marianne baixou os olhos. Desmond se agitou na cadeira e pigarreou. E o colégio? Está gostando? É muito... adequado respondeu, fazendo uma pausa para encontrar o adjetivo. Adequado... repetiu ele, pensativo. É como você queria, não?

A poltrona de Marianne tinha espaldar alto e arredondado, que a impedia de ver bem o rosto dotutor no lugar onde estava. Erguendo um pouco a vista, ela lhe observou os sapatos lustrosos, os vincosperfeitos da calça. Como era possível que um homem tão cuidadoso com a aparência fosse tão relapsocom o próprio caráter?

A Sra. River me contou que é a primeira vez que você volta a Kingsbrook desde que foi parao internato.

Sim sussurrou.A referência à governanta a fez compreender por que Desmond tinha pelo menos a aparência

externa bem cuidada.Ficaram em silêncio mais alguns instantes. Srta. Trenton, não quero que se sinta exilada no colégio de Farnham. Eu me sinto muito bem lá. Que bom. Mas é apenas um colégio. Não lhe faz bem ficar enclausurada o tempo todo. A Sra.

River disse que a convidou várias vezes, nos últimos meses, mas que você sempre alega estar muitoocupada. Olhe, sei que é importante dedicar-se aos estudos, mas não acho produtivo o isolamentoexcessivo.

Sim... Vim aqui para conversar com você... continuou, olhando para a porta aberta.Marianne percebeu que Desmond não a deixara assim por mero descuido. Fizera-o de propósito,

para que ela não se sentisse ameaçada. Bem... temos de tocar num assunto desagradável para os dois. Inclinou o corpo para a

frente e a encarou. Srta. Trenton... Marianne... Sei que você recusou os convites porque não queria seencontrar comigo.Ela respirou fundo e, sem jeito, sacudiu a cabeça. Lamento muito o que aconteceu naquela noite. Acredite. Foi tão doloroso para mim quanto

para você. Por favor, não quero que fique isolada no colégio. O Internato de Farnham é... é um lugar muito agradável... Não esqueça que conheço Farnham muito bem. Alguns prédios cinzentos, perdidos num

terreno sem o menor atrativo. Como suporta ficar tanto tempo longe de Kingsbrook? Eu não queria... não imaginei que... Compreendo. Tenho uma proposta para lhe fazer, senhorita.Marianne prendeu a respiração. Lembrando-se uma vez mais do que acabava de ler, estava temeu

o que iria ouvir. Posso organizar as coisas de modo a ficar longe de Kingsbrook quando você estiver aqui.

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Embora no momento seja um pouco difícil... Não posso expulsá-lo de sua própria casa. Será por poucos dias. Não me trará nenhum transtorno, garanto. Assim, terá Kingsbrook só

para você.O que significava aquilo? Afinal, o que pretendia aquele homem? Marianne era jovem e pouco

sabia da vida. E talvez nem sempre fosse fácil detectar as más intenções. Mas uma coisa era certa: tio

Horace, que ela conhecia bem, era um homem mau. Se Desmond estava associado a ele naqueledegradante negócio, decerto também não era boa pessoa. Muito embora suas características aparentesfossem opostas às de Horace... Marianne estava confusa, cansada de tentar identificar a perversidade quea cercava.

Acho este lugar maravilhoso admitiu, com polidez. Então virá sempre animou-se ele. Todos os fins de semana? Não é necessário que eu venha toda semana, nem sensato, Sr. Desmond. Preciso estudar.

Talvez uma vez por trimestre. Assim, terei oportunidade de ver Kingsbrook em todas as estações do ano. Bem, é melhor do que nada conformou-se, sem ocultar a decepção. Uma semana a cada

três meses... Não há nada mais monótono do que passar os feriados no colégio. Prefiro que você nãopasse o Natal, a Páscoa e a Semana Santa em Farnham. Mesmo que em algumas dessas ocasiões eu seja

obrigado a também estar aqui. Como neste Natal. Será que podemos estabelecer uma trégua e ficar osdois aqui quando for preciso?

Claro respondeu ela, sem convicção. Tinha medo do que podia acontecer, medo do queestava acontecendo naquele momento: a lembrança das pernas bronzeadas e musculosas de Desmond alhe invadir a mente.

Na verdade prosseguiu Desmond, interrompendo-lhe o pensamento , lamento que issonão passe de um pacto de tolerância entre nós. Não se esqueça de que é minha pupila agora. Acho que aSra. River já deve estar estranhando o fato de você nunca me visitar. Pelo menos diante dos empregadose dos poucos convidados que vêm a Kingsbrook, temos de nos dar bem. O que acha? Será que vocêconsegue?

Marianne engoliu em seco. Podia trocar algumas palavras com Desmond, mas não era capaz deencará-lo sem corar, nem conseguiria conter os tremores quando ele lhe perguntava alguma coisa. Se aSra. River e os convidados do Sr. Desmond estranhavam o fato de eles quase nunca se encontrarem, oque pensariam quando os vissem juntos com frequência?

Srta. Trenton... Hã... Marianne, acha que consegue? Não estou pedindo que esqueça o queaconteceu. Só quero dizer que não vale a pena superestimar uma única noite em sua vida.

Ela estremeceu com a simples menção do episódio. Desmond notou que aquilo que para ele nãopassava de uma lembrança desagradável significava, para Marianne, uma experiência muito dolorosa.

Está bem, Sr. Desmond. Compreendo que o melhor é agir da maneira mais natural possível. Não vai ser tão ruim assim. Você vai adorar Kingsbrook. E prometo comportar-me como um

cavalheiro.

Marianne não sabia mais o que dizer. Nem ele. O fogo da lareira já não conseguia combater ofrio que entrava pela porta. Depois de alguns minutos de desconforto, Desmond se levantou. Marianne oimitou.

Importa-se de me apertar a mão em sinal de paz, Marianne?Marianne lhe deu a mão. Desmond a tocou com delicadeza. Era tão frágil e delicada que ele

podia feri-la sem o menor esforço. Mas o que desejava era apenas beijar-lhe os dedos, o pulso, o braço, oombro...

Apesar da constante lembrança da carta de Horace e da justificável desconfiança que tinha emrelação ao "tutor", permanecer em Kingsbrook não foi tão desagradável quanto Marianne imaginara aprincípio.

Desmond deu ordem para que fossem servidos toda noite na grande sala de jantar. Sentavam-se

em lados opostos da mesa, e, entre eles, uma enorme quantidade de pratos, copos e travessas formavauma conveniente barreira.

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Desmond sempre lhe perguntava como estava se -sentindo. Marianne respondia que muito bem.Ele lhe perguntava se a comida a agradava, o que havia feito durante o dia. E ela respondia da maneiramais lacônica possível.

Essas perguntas constituíam os tópicos da conversação, a menos que Desmond acrescentasse umeventual comentário sobre o tempo ou que Marianne mandasse um tímido cumprimento à cozinheira por intermédio da Sra. River.

Na primeira noite, o silêncio constrangedor entre Desmond e a pupila foi encoberto pelamovimentação de Alice, que entrava e saía da cozinha, e pela presteza da governanta ao levar astravessas de um lado a outro da mesa.

Na noite seguinte, Desmond recebeu a visita de dois cavalheiros recém-chegados de Londres, e,Marianne jantou com os criados.

Desculpe-me por haver sugerido que ficasse aqui na cozinha. Não tive intenção de tratá-lafeito uma criança malcriada. Só queira poupar-lhe uma noite aborrecidíssima explicou a governanta. O Sr. Desmond e seus convidados quase nunca trocam mais de duas palavras durante o jantar. Estãosempre apressados para se sentarem à mesa de jogo.

Ora, Sra. River, não precisa se desculpar. Eu gosto muito de jantar com a senhora e comAlice.

Na noite seguinte, Jenny Rawlins achou preferível proibir Alice, que estava muito gripada, deservir a mesa. A governanta, por sua vez, passara o dia ocupada com a contabilidade da casa e, com dor de cabeça, foi se deitar mais cedo. Ela havia orientado Jenny a levar à mesa a travessa de peixe assadocom batatas. O Sr. Desmond e Marianne se serviriam.

Ambos sentiram um frio no estômago ao ser informados da situação. Significava que ficariam nomínimo vinte minutos a sós. Desmond já estava à procura de um pretexto para sair quando Marianneergueu o queixo e disse, decidida:

Não se preocupe, Sra. River. Vá descansar. Ambos se serviram em silêncio, tentandodissimular o nervosismo.

O peixe está muito bom comentou Desmond, depois de algum tempo. Excelente. Muito saboroso.Embora sua expressão não o demonstrasse, Desmond estava assediado pelas lembranças da

primeira vez que jantaram juntos. Recordava o quanto Marianne se deixara fascinar por suas histórias,pensava em como rira, descontraída.

Marianne olhou para o homem a sua frente. Parecia concentrado na comida. Observando-o,constatou que estava tão constrangido quanto ela.

Foi divertido o jantar com seus amigos ontem, Sr. Desmond? perguntou, com um sorrisonos lábios.

Surpreso, Desmond encarou-a. A pergunta nada tinha de extraordinário. Contudo, admirava-o ainiciativa.

Foi respondeu, enrugando a testa.

O senhor deve ficar contente quando seus amigos vêm de Londres para visitá-lo. Às vezes. Ontem foi muito agradável. Tem muitos vizinhos em Kingsbrook? O senhor deve ter muitos amigos em toda parte. Bem, na verdade, não conheço meus vizinhos confessou Desmond. Não? Nunca passei aqui tempo suficiente para... Pensei que costumasse ficar longas temporadas em Kingsbrook. Nos últimos tempos, sim. Mas ainda não tive oportunidade de conhecê-los.Marianne ficou séria. Precisa criar a oportunidade, Sr. Desmond. Seus vizinhos não virão se não forem convidados.

Como o proprietário mais próspero da região, precisa dar o primeiro passo. Não está pensando em

convidá-los no Natal? Não me lembro de ter passado um só Natal em Kingsbrook.

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Desmond costumava passar a temporada nos lugares escolhidos pelas pessoas que conhecia: eraa época em que tinha a oportunidade de participar do maior número de jogos.

Vai passar este ano. É verdade. Então, pode convidá-los propôs Marianne, com ar decidido. A Sra. River e eu nos

encarregaremos dos preparativos para uma pequena recepção que lhe dê oportunidade de conhecê-los.

Mas o senhor precisa convidá-los pessoalmente. E logo, para que tenhamos tempo de organizar tudo. Uma festa de Natal? Claro! enfatizou, com o entusiasmo das adolescentes. Se você acha... balbuciou Desmond, inseguro.Enquanto falava, Marianne olhava para a sala, fazendo planos. Quanto Desmond afinal

concordou com a ideia, ela o encarou e sorriu. Não sabia ao certo o que estava acontecendo, só queaquele homem ameaçador começou a lhe parecer quase doce.

CAPÍTULO SEIS

Ainda menino, Desmond se acostumara  grandes festas de Natal organizadas por seus pais.Depois de expulso de casa, porém, não voltou a ser convidado.

Mal sabia o nome dos vizinhos, os quais se limitava a cumprimentar a distância. Agora, noentanto, já que concordara com a ceia, e Marianne e a governanta andavam cheias de planos, não tinhaescolha senão formalizar os convites.

O Sr. Jacobs ficou boquiaberto ao receber a visita pessoal de Desmond. Afinal, eleja estavamorando em Kingsbrook havia quase dez anos e nunca entrara em contato. Contudo, ali estava agora,convidando-o, assim como à Sra. Jacobs e as suas duas filhas, para a ceia de Natal.

Será uma recepção íntima, só para os vizinhos. Creio que vocês todos já se conhecem. Claro que sim disse a Sra. Jacobs. Bem acrescentou Desmond, com uma timidez quase infantil , acho que chegou a hora de

eu conhecê-los também. É muita delicadeza sua... A Sra. Jacobs sorriu. Será um prazer participar de sua festa de

Natal. E muito obrigada por ter se lembrado de nós. O prazer será todo meu.A Sra. Jacobs acompanhou Desmond até a porta e só a fechou quando eleja estava se afastando, a

cavalo.Desmond suspirou, aliviado. Pelo menos o primeiro convite fora aceito. A vizinha fora muito

simpática. Não tinha sido tão difícil quanto imaginara. Por sorte, as cercanias de Kingsbrook não eramdas mais povoadas.

Esteve também na casa dos Romer, na dos Martin, e, por fim, foi ao chalé de sir Grissam. Todos

se mostraram surpresos, inclusive o próprio Grissam, com quem Desmond já havia tratado dós custos demanutenção do bosque que separava as duas propriedades.Passado o primeiro impacto, o que Desmond encontrou foi muita cordialidade. Todos aceitaram

o convite. Querida, que surpresa, não? disse o Sr. Romer à esposa. Por essa eu não esperava... Há quase dez anos ele vive como um eremita. Sim, mas só quando está em Kingsbrook, pelo que ouvi dizer. É. Eu também já fiquei a par de certos boatos. Mesmo assim, pareceu-me um rapaz educado. Acha que podemos levar os meninos?Talvez seu marido, ao contrário da Sra. Romer, que costumava tomar chá com as amigas, não

soubesse de tudo o que se falava sobre o vizinho. Desmond os convidou, não convidou? Ora, claro que vamos levá-los! Será que essa mudança

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de comportamento tem a ver com sua nova pupila? Talvez ele queira apresentá-la aos rapazes do lugar  ponderou o Sr. Romer.

A mulher já havia considerado a hipótese, mas a ideia não a agradou tanto quanto o maridoesperava. Ela já ouvira mexericos também sobre a pupila de Desmond.

Os Romer não foram os únicos a comentar o inesperado convite e os modos refinados do ariscovizinho.

No Natal, todos compareceram.A casa tinha mergulhado num verdadeiro alvoroço a partir do momento em que Mariannesugeriu a ceia. Agitadas, a Sra. River e a Sra. Rawlins se entregaram de corpo e alma aos preparativos daprimeira festa, em Kingsbrook, desde que o patrão recebera a herança.

Na noite da ceia, os convidados começaram a chegar por volta das oito horas. Marianne, quemuito se esforçara para que a ideia se concretizasse com sucesso, recebeu os convidados, ao lado deDesmond, à porta da sala de jantar.

Sra. Jacobs, minha pupila, a Srta. Marianne Trenton. Ela estava ansiosa para conhecê-los  disse Desmond, mostrando-se bastante solícito.

Depois da ceia, todos foram conduzidos à sala de estar. Desmond já orientara James a buscar vinho na adega. O empregado apareceu com duas garrafas.

Sir Grissam incumbiu-se de descontrair o ambiente, contando a ultrajante história de ladySteepleton e do alfaiate londrino, Will Pellan. Havendo se esquecido de anotar as medidas de lordeSteepleton, o alfaiate resolveu procurar sua esposa, lady Steepleton, para lhe perguntar a medida dacintura do cliente. Distraída, a mulher disse que ela e o marido tinham quase a mesma constituiçãofísica. Assim, preferindo não tornar a molestar o lorde, o alfaiate tirou a medida da própria mulher. Aosaber disso, o lorde mandou-o tomar todas as medidas de sua esposa: desse modo, já não precisaria dar-se ao incômodo ir à alfaiataria quando quisesse encomendar um terno. Para grande vergonha de ladySteepleton e do alfaiate, a história se espalhou por todos os salões.

A anedota contada por Sir Grissam provocou muito riso e alguns rostos corados na sala deDesmond.

Pouco depois, a Sra. River mandou Tilly servir o café, e Alice, os petit fours. Enquantoconversavam, o Sr. Martin recostou a cabeça no espaldar da cadeira e acabou cochilando. Os dois filhosmais velhos do casal Romer, Teddy e Ross, se puseram a cutucar e a imitar o vizinho. O Sr. Romer lhesdirigiu vários e inúteis olhares ameaçadores. Por fim, com sua delicadeza peculiar, a mãe anunciou quejá estava na hora de irem para casa.

Todos concordaram em que estava ficando tarde e lamentaram o fim da reunião tão agradável.O Sr. Desmond e sua pupila se colocaram mais uma vez à porta para as despedidas. Foi um prazer conhecê-la, Srta. Trenton. A Sra. Romer apertou a mão de Marianne. É

uma pena que venha tão pouco a Kingsbrook. Mas não a condeno. Até comentei com meu marido que asenhorita deve se sentir muito isolada aqui. Acho que eu também não me sentiria à vontade num lugar tão... agreste.

Na verdade, o que a Sra. Romer tinha dito ao marido era que a opção do Sr. Desmond de manter as características rústicas do lugar transformaram a propriedade numa verdadeira selva e que, por nadadeste mundo, ela se aventuraria sozinha naquele jardim. Temia ser devorada por alguma fera.

Não pude deixar de notar o quanto os jardins da casa e inclusive o Sr. Desmond mudaramapós a sua chegada. Tenho a impressão de que a senhorita é a grande responsável por esse sopro decivilização em Kingsbrook.

Quando os convidados se foram, uma nova agitação invadiu a casa. Alice e Tilly levaram suasbagagens para a porta da frente, onde Rickers as esperava com o coche. Alice teria uma semana de folgapara visitar a família, e Rickers e Tilly, que só então Marianne soube que eram casados, passariamalguns dias descansando em Reading.

De repente, a casa ficou vazia. Antes mesmo que o patrão acabasse de trancar a porta, a Sra.

River se despediu dos empregados e se recolheu.Ao se voltar, Desmond notou que estava a sós com Marianne.

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Pode-se dizer que a noite foi um sucesso, Srta. Trenton. Acho que sim. Só lamento ter demorado tanto para me aproximar de meus vizinhos. Desmond apagou as

velas do candelabro que iluminava o hall de entrada. Todos me pareceram muito gentis. Marianne sorriu, nervosa, sem saber como afastar-se. Nós também não nos saímos mal. Demos a impressão de conviver sem problemas.

É verdade. Marianne nem se lembrara de que haviam representado, muito embora nãotivesse coragem de confessá-lo no hall escuro. A verdade é que me diverti muito esta semana com os preparativos da festa. Espero que

também tenha sido agradável para você. Gostei muito, senhor.Desmond quase não podia lhe divisar o rosto, porém a voz de Marianne era suave como a brisa

da noite; como se ela estivesse lhe sussurrando ao ouvido. Estou muito agradecido. Bem, boa noite, Srta. Trenton. E tratou de afastar-se depressa

daquela sedutora presença. Boa noite, Sr. Desmond. Srta. Prince, por favor. Decline a palavra nauta, que significa marinheiro.

Muito alta e de rosto quadrado, Sylvia Prince era amiga inseparável de Judith Eastman, coisa queMarianne achava curiosa devido à notória diferença que havia entre elas. A Srta. Eastman era umajovem muito bonita, decidida, inteligente e possuía um aguçado espírito crítico. Já a Srta. Prince eramais perseverante que inteligente e, na certa, a pessoa mais mal-humorada que Marianne conhecera.Mesmo assim, todas as. professoras do internato a admiravam, talvez porque levasse muito a sério osestudos. Na verdade, a Srta. Prince encarava tudo na vida com extrema seriedade. Ela se aproximou damesa da professora para responder:

Nauta, nautae, nautae, nautam, nauta. Muito bem, Srta. Prince. Por favor, Srta. Baxter, como se declina o substantivo silva, floresta?Uma a uma as alunas foram chamadas à mesa da Sra. Avery e declinaram substantivos latinos.

Não era um exercício difícil, pois estavam estudado a matéria havia algum tempo. Marianne, porém, nãoconseguia se concentrar na aula e muito menos no que dizia a professora.

Srta. Trenton, por favor, a declinação de terra, país. Marianne se levantou, sem jeito por estar distraída.

Terra, terrarum, terris... No singular, Srta. Trenton, no singular! Tente outra vez. Terra.Marianne fixou o olhar melancólico na janela da sala de aula. Nas horas de folga, ela e Nedra

costumavam passear nos jardins de Farnham. O relvado estava começando a verdejar outra vez, e asflores capazes de desabrochar em março ainda não passavam de pequenos botões. A cada instanteMarianne se lembrava de Kingsbrook. Imaginava-se passeando nos prados, que, com certeza, também jádeviam estar anunciando o fim do inverno, ou sentada à sombra fresca do caramanchão, a ler um dos

livros da biblioteca de Desmond e a escutar o canto impaciente dos pássaros, excitados com a chegadada estação do acasalamento. Talvez lá Marianne também encontrasse dificuldade para se concentrar naleitura, como estava acontecendo na aula de latim da Sra. Avery. Talvez um ruído a sobressaltasse,fazendo-a imaginar que... certa pessoa, que lá a surpreendera uma vez, estivesse se aproximando. Eestaria ele com aquele ar sério e distante, o cenho cerrado, os cabelos a lhe roçarem os ombros. E quemsabe Marianne não ficaria decepcionada ao constatar que o ruído era apenas um galho caindo ou umpássaro que acabava de pousar na folhagem do caramanchão?

No colégio, porém, o espetáculo da natureza não se mostrava tão idílico quanto ela desejavanaquele frio mês de março.

Bastou uma semana de passeios naqueles campos úmidos para que a pobre Nedra apanhasse umforte resfriado e precisasse ser levada à enfermaria.

Está melhor, Nedra? perguntou Marianne, no dia seguinte. Já nem sei o que significa a palavra melhor respondeu, mexendo-se na cama e gemendo.

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Marianne saiu da enfermaria na ponta dos pés, convencida de que o melhor seria dar um passeioe aproveitar o bom tempo, em vez de aborrecer a amiga.

O sol já estava se pondo. Marianne se envolveu no xale, protegendo-se da brisa fria da tarde, eseguiu rumo ao pequeno bosque que ficava atrás dos prédios da escola. O acesso era difícil devido àíngreme subida e à vegetação densa. Ao ver-se só e rodeada de árvores, Marianne se sentiu obrigada areconhecer que Nedra não deixava de ter razão em não gostar de passear naquele lugar escuro e baldio.

O ar estava pesado, seus pés afundavam na terra úmida. Precisou erguer a saia acima dos joelhos paranão sujá-la de barro. Era quase impossível avançar sem que os galhos lhe prendessem os cabelos ou oxale.

Com a atenção concentrada na busca dos atalhos mais limpos, Marianne se distraiu do rumo quehavia tomado. Ao ouvir um barulho entre as árvores adiante, deteve-se. "Não é nada", afirmou para simesma após um breve momento de nervosismo. Olhando ao redor, sentou-se num tronco caído paradescansar. Riu de si mesma, certa de que tinha ouvido apenas um esquilo a correr em meio à folhagem.

Porém, não era um inofensivo animal que estava escondido no bosque: o susto de Marianne tinharazão de ser.

Tio Horace! gritou.Assombrada na presença de Carstairs, Marianne recuou. Só então percebeu que estava num beco

sem saída. Ora essa! Marianne! exclamou ele, surpreso. O que está fazendo... O salto do sapato de Marianne afundou na lama, fazendo-a cair de

costas.Carstairs assistiu à cena com um sorriso nos lábios. Marianne, minha pequena. Parece que você continua desajeitada como sempre disse,

balançando a cabeça. Vamos, levante-se. Tio Horace, o que está fazendo aqui? Eu estava na cidade, a negócios, e pensei: não seria uma boa ideia dar uma olhada no colégio

em que Desmond disse ter matriculado a minha Marianne? Queria ter certeza de que você estava bem. Estou muito bem, sim. Não precisava ter se incomodado. Claro que precisava, meu bem. Você sempre há de ser a minha pequena. Mas... Eu pensei que agora fosse pupila do Sr. Desmond. Pensou, é? Ora, eu sei que o velho Desmond está tentando obter isso na Justiça. Mas um

pedaço de papel não vai destruir o vínculo que há entre nós, não é mesmo?Mas para que pensar nisso agora? Vamos. Venha dar um passeio com seu querido tio. E, antes

que ela pudesse recuar, Carstairs lhe segurou a mão e a abraçou com força. Que bosque agradável!Você sabe que ali, um pouco mais acima, há uma rocha de onde se pode ver toda a escola e as lindasalunas passeando no pátio? Marianne estremeceu de repulsa. Imaginou-o espiando Farnham feito umaave de rapina. Porém, antes que tivesse reunido coragem para lhe censurar a atitude, haviam chegado aotopo do morro. Carstairs a puxou para trás de uma árvore.

Veja, Marianne. Tudo isso para você, sem falar em Kingsbrook! Peter a tem recompensadomuito bem pelos serviços. Carstairs estalou a língua. Quem diria que uma rodada de pôquer lherenderia tanto? Eu estava com um full house. Ele, com uma quadra de três. E agora você tem tudo isso. Pôs a mão no ombro de Marianne e, com a outra, fez um gesto largo.

Ela se encolheu, envergonhada, e tentou recuar, mas Horace a deteve. Passados alguns minutos,soltou-a. A Sra. Avery acabava de aparecer na porta e estava tocando o sino para o recomeço das aulas.

Está na hora de voltar para a classe, querida. Diga a Desmond que mandei lembranças.Marianne voltou correndo ao pátio. Olhou para trás, mas o homem tinha desaparecido.Vários dias depois, ela ainda não se havia recuperado do susto. Não tivera coragem de comentar 

com ninguém o encontro com Carstairs, muito menos de contar que ele costumava espionar o colégio.

CAPÍTULO SETE

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Embora tivesse assumido a responsabilidade com uma dedicação capaz de surpreender seu pai,Desmond tinha mandado Marianne ao internato na esperança de nunca mais voltar a pensar nela. Por que não conseguia esquecê-la, então? Em Kingsbrook, tudo lhe trazia a pupila à lembrança. Nabiblioteca, eram os livros fora do lugar ou recolocados de modo diferente na prateleira; a fita de cabeloesquecida num canto. As vezes, Desmond tinha até mesmo a impressão de estar sentindo o seu perfume.

No Natal, haviam conseguido manter as aparências diante de criados e vizinhos. Mas entre elesexistia o acordo tácito de jamais ficarem a sós. A não ser em situações inesperadas.Com o passar do tempo, Desmond acabou reconhecendo que estava fascinado por aquela moça,

coisa que o aterrorizava. Ele se sentia um canalha. E tudo fazia para negar que aqueles olhos verdes ohaviam enfeitiçado, que aqueles cabelos castanhos, tão brilhantes, o tinham seduzido, que ela já não erauma menina: tornara-se mulher.

Em seu esforço para esquecer Marianne, Desmond evitava tocar em seu nome com a Sra. River.Desde que herdara Kingsbrook, tinha chegado a passar seis meses ausente, limitando-se a mandar dinheiro para as despesas; às vezes sem um único bilhete. Agora, no entanto, sentia-se na obrigação deestar atento às necessidades da casa, chegando até a negligenciar suas atividades à mesa de pôquer. Foi oque aconteceu em junho, quando, depois de haver passado quase todo o verão em Londres, resolveu

voltar para supervisionar o plantio em terras que arrendara. Sra. River! Ei, Sra. River! Cheguei! gritou ao entrar.Foi para a biblioteca. Ao abrir a porta, deu com uma silhueta feminina à janela, a qual, no

primeiro momento, tomou pela governanta. Pensou que tinha se livrado de mim? Sorriu. Aos poucos, seus olhos se adaptaram à

penumbra, e ele ficou paralisado de surpresa. Srta. Trenton! Não imaginei que fosse encontrá-la aqui! Não recebeu a carta da Sra. River? Ela prometeu escrever-lhe, avisando que eu passaria o mês

em sua casa. Um mês? Agora em junho? Constrangida, Marianne fez que sim.Desmond tinha recebido a carta da Sra. River. Porém, como de costume, esquecera-a num canto,

sem abri-la. A Sra. Avery resolveu fechar o colégio durante o verão explicou Marianne. Precisava

fazer uma reforma no dormitório antes que o inverno chegasse. Que coisa inoportuna! desabafou Desmond, sem dissimular a contrariedade. Bem... Sinto muito. Não tinha para onde ir... Oh, desculpe-me! Eu não estava querendo dizer que você não é bem-vinda. Já afirmei que

deve considerar Kingsbrook a sua casa. Lamento incomodá-lo até o fim do mês. Desmond  olhou  para  o  chão.   Ambos  es

constrangidos.A situação não teria sido tão difícil para Marianne se ela não se lembrasse o tempo todo das

insinuações que Horace fizera sobre seu tutor. Desmond, por sua vez, teria reagido de maneira mais

equilibrada se Marianne não estivesse usando aquele vestido que lhe ressaltava o brilho dos cabelos.Parecia jovem como na noite em que se conheceram; e muito mais atraente. De súbito, envergonhado,Desmond se deu conta de que estava com os olhos fitos nos seios arfantes da pupila.

O problema é que me comprometi, com os arrendatários, a permanecer em Kingsbrook até odia 1Q de agosto disse ele, desviando o olhar.

O senhor não poderia... Marianne se interrompeu com a chegada da Sra. River. Sr. Desmond! Que bom que chegou! O senhor e a Srta. Marianne passarão o mês juntos. Viu

como a nossa mocinha cresceu em Farnham? Logo será uma dama.A governanta estava radiante. Corando, Marianne baixou a cabeça. Ora, Sra. River... E também é muito inteligente. Quase uma erudita. Vamos, Marianne, conte ao Sr. Desmond o

que estava me dizendo sobre Corio... Coriolino... Coriolano. Duvido que o Sr. Desmond esteja interessado na Vida de Plutarco.

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Pelo contrário, Srta. Trenton. Aprecio muito não só Coriolano, como Plutarco, Demóstenes,César... Que bom que está se familiarizando com os clássicos!

Ora, vamos deixar isso para depois disse a Sra. River, que era menos distraída do queparecia. Tendo percebido certa intranqüilidade no ambiente, tratou de intervir. Afinal, tinha se afeiçoadoa Marianne e queria bem ao patrão. Mandei James levar a bagagem para cima, Sr. Desmond. Talvez osenhor queira estar lá quando ele desfizer as malas.

Sim, claro. O jantar será servido às sete e meia acrescentou a governanta, acompanhando-o até a porta,como se quisesse livrar-se dele. Lamento, mas eu não estava esperando a sua chegada. Tinha dadoinstruções à Sra. Rawlins para que preparasse uma refeição leve. Vou avisá-la de que chegou.

Atordoada, Marianne ficou parada junto à estante.Um mês. Um mês inteiro! E ambos ali, encurralados como coelhos.Temendo a possibilidade de Desmond voltar a insinuar-se, ela pegou os livros e papéis que

trouxera do colégio e correu para o quarto, onde passou o resto do dia.Alice foi chamá-la ao anoitecer. Srta. Marianne? A Sra. River me mandou avisar que o jantar será servido mais cedo. Que horas são?

Seis e quinze. O jantar será às sete. Está bem. Obrigada, Alice. Por nada, senhorita. Depois de alguns instantes, a criada tornou a bater. Senhorita? Está

precisando de alguma coisa?Marianne sorriu. Não, obrigada. Diga à Sra. River que eu já desço. Ao sair do quarto, Marianne encontrou a

governanta na sala. O Sr. Desmond já desceu? Acho que não.Marianne passou pela Sra. River. Vou esperá-lo na sala de jantar. Cinco minutos depois, Desmond apareceu. Vou esperar a Srta. Trenton na sala de jantar. Ela já está a sua espera, senhor. Desmond endireitou o corpo. Nesse caso, sirva-nos assim que estiver pronto. Ao abrir a porta da sala, viu Marianne sentada

à mesa, as mãos no regaço, em silêncio. Constrangido, Desmond se aproximou. Mandei servirem o jantar agora mesmo disse, sentando-se à cabeceira. Você deve estar 

com fome. O senhor também. Fez uma longa viagem. Sim.Alice os serviu. Quando ela se retirou, fez-se um pesado silêncio. Depois de algum tempo,

Desmond perguntou:

Como vai o colégio? Muito bem. Não é difícil. Matemática? Matemática? Ah, sim. Tivemos algumas aulas. A Sra. Avery acha importante que tenhamos

ao menos algumas noções básicas. Imagino que em Farnham não ensinem geometria. Não faz parte do currículo. Mas achei um livro de Euclides, na biblioteca, e tenho estudado

por conta própria. É mesmo? Que bom! Desmond se admirou. E o latim, como vai? Linguam latiriam doctus sum. Vejo que já aprendeu alguma coisa. Puré et latine loqui.

Ainda não domino a língua, mas os livros de sua biblioteca já não me parecem tãoenigmáticos.

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Desmond meneou a cabeça. Muito bem. E quanto às outras matérias? Marianne falou nas aulas de oratória da Srta.

Gransby, e nas de história da Sra. Brannon. Tivemos também um curso de boas maneiras com a Sra. Lynks acrescentou. De boas maneiras? Claro. A Sra. Lynks diz que a matéria é a mais importante em nossa formação.

O que aprendem? Ora, postura, etiqueta... Você deve ter feito muitos exercícios: como levantar-se, caminhar... E sentar-se de novo. Pode parecer tolice, mas é impressionante o número de vezes que nos

levantamos e nos sentamos durante o dia. Não acha que seus modos já são adequados? Com exceção de como me sento e de como movimento a cabeça. Como movimenta a cabeça?! E. Muitas vezes, faço movimentos muito abruptos. A Sra. Lynks me advertiu quanto a esse

descuido. Ela acha que nenhum cavalheiro se interessa por uma moça que mexe a cabeça com tantarapidez. Estou me esforçando para me corrigir. Mas é difícil. Apesar dessa dificuldade, acredito que os

professores estão satisfeitos com meu progresso.Marianne esboçou um tímido sorriso, e Desmond riu satisfeito. Não tenho a menor dúvida quanto à inteligência de minha pupila, Srta. Trenton. E, se me

permite, vou discordar da opinião da Sra. Lynks. Conheço muitas damas que nunca tiveram apreocupação de tolher os movimentos da cabeça, e nem por isso deixam de ser respeitadas ereconhecidas na sociedade.

Talvez o senhor tenha razão.Apesar da desconfiança inicial, tiveram um jantar tranqüilo e agradável.Marianne ficou intrigada com a gentileza de Desmond. Começava a desconfiar que aquele

homem tivera uma formação requintada, bem superior à de um mero jogador profissional. Kingsbrook é um lugar tão tranqüilo... E curioso que o senhor Desmond tenha escolhido

morar aqui disse Marianne à Sra. River, na tarde seguinte. Estavam bordando na sala. Peter herdou esta propriedade do avô, sir Arthur Chadburn.Marianne riu, encabulada. O que houve? perguntou a governanta. É estranho que a senhora o chame de Peter. A Sra. River sorriu. E que eu o conheço há muitos anos. As vezes me esqueço de que já é um homem feito. Deve

ser porque... interrompeu-se ao vê-lo entrar na sala. Por que, Sra. River? perguntou ele, sorrindo. Eu só estava contando à Srta. Marianne quem era o seu avô. Tirando os esqueletos do armário? gracejou, sentando-se no braço do sofá.

Ora, o senhor sabe o quanto admirávamos sir Arthur. Claro que sim. Ele era um santo, sem dúvida. Já não se pode dizer o mesmo do resto dafamília. Desmond piscou para a Sra. River, que sacudiu a cabeça em desaprovação. Ela já lhefalou em meu pobre primo Jerome, que, quando bebia, espancava a esposa? Ou no tio Iverson, com seus"hábitos"?

Não ligue para ele, querida interferiu a Sra. River. Os Chadburn descendem de umafamília antiga e respeitável, muitas vezes condecorada. Foi o rei Carlos II que, em 1662, premiouWallace, o primeiro barão Chadburn, com a propriedade de Kingsbrook. Wallace o ajudou a restaurar otrono.

E mesmo? surpreendeu-se Marianne. A Sra. River só se esqueceu de contar que, há duzentos anos, esta casa não passava de uma

cabana à beira do rio. Claro que Kingsbrook não era o que é hoje, mas...

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Mas os descendentes do barão trataram, todos, de se casar com mulheres ricas e... Sr. Desmond! Não admito que o senhor encha a cabeça da Srta. Marianne com essas histórias

absurdas! Está bem, Sra. River. Foi preciso muito tempo para esconder certos detalhes da história da

família Chadburn. Não vamos estragar tudo agora. Reconheço que é um nome muito respeitado no reino.O atual barão de Chadburn e seus dois filhos são, hoje, donos de muitas terras. Kingsbrook nunca foi

uma propriedade que merecesse grande atenção. Acabou ficando sempre para os filhos mais jovens ou asovelhas negras.Decidida a mudar de assunto, a Sra. River examinou o bordado que estava fazendo No entanto, senhorita, o atual proprietário de Kingsbrook tem se mostrado um excelente

administrador. Oh, Sra. River! Que elogio! Só me resta corar disse Desmond, com uma gargalhada.Marianne riu, tímida. Estava surpresa com o que acabava de ouvir.

CAPÍTULO OITO

A princípio, tanto Peter quanto Marianne tiveram dificuldade para se aproximar; mais pareciamestar ensaiando os primeiros passos de um bailado desconhecido.

Bom dia, Sr. Desmond. Srta. Trenton! Você acordou cedo! Oh, desculpe-me. Não quis incomodá-lo. Fique à vontade, eu posso voltar depois... Ora, imagine! A sua companhia é sempre bem-vinda. Sente-se. Desmond sorriu.Dias depois da chegada de Desmond, sentiam-se mais à vontade. Entre, senhorita convidou Desmond, já à mesa. Obrigada. O dia está lindo! Está mesmo. Hum, que cheiro bom! São bolinhos de canela.Passada a primeira semana, ambos se haviam acostumado à rotina do café da manhã. Acho que hoje não resistirei a um passeio disse Marianne, após tantos dias no quarto,

reclusa entre os livros. Boa ideia! Andar um pouco lhe fará bem. Não se esqueça de levar a sombrinha. O sol está

forte. Está? E melhor precaver-se. Nesse caso, acho melhor não arriscar. Por favor, vá. Um passeio ao ar livre só pode lhe fazer bem.

A Sra. Avery disse que o sol faz mal à saúde. É mesmo?Houve um breve momento de desconforto. Logo, porém, sem conter o ímpeto, Marianne

convidou: Eu... gostaria muito... que o senhor me acompanhasse. No passeio? surpreendeu-se Desmond. Seria um prazer! Então, vou buscar o xale. Levantando-se, fitou-o uma vez mais.Desmond e Marianne caminharam um pouco no jardim na frente da casa. Que flores são estas, senhor? É camomila, uma espécie de orquídea silvestre. Quem as plantou?

Ninguém. Sempre que nasce uma planta nova aqui, o Sr. Rickers cuida para que nãodesapareça.

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O Sr. Rickers também é seu jardineiro? Tanto Rickers quanto James gostam muito de cuidar das plantas, mas não são jardineiros. Quem projetou os canteiros, então? Tanto o jardim quanto o bosque existem há gerações, embora tenham estado quase

abandonados. Meu avô foi um dos poucos que lhes dedicou atenção. Tenho tido oportunidade de meocupar mais da casa. Procuro manter a paisagem o mais natural possível.

Alheios ao sol quente e aos insetos, os dois seguiram pelo prado até que, da janela da sala, a Sra.River os chamou para o almoço.Não voltaram a se encontrar aquele dia. Desmond fora convidado a jantar com amigos de

Londres.Marianne tampouco viu o tutor na manhã seguinte. Desmond voltara muito tarde, depois de uma

série de derrotas no pôquer e muita bebida; não desceu a tempo de lhe fazer companhia no café damanhã.

Mas os passeios matinais foram se tornando uma rotina. Almoçavam juntos e, quase sempre, aconversa iniciada durante a refeição se prolongava pela tarde. Marianne lhe falou de sua infância, dafalta que sentia dos pais, das moças que conhecera em Farnham: Judith, Sylvia e a novata Myrtle Thane.Chegou a confessar, um tanto constrangida, que ela e sua melhor amiga, Nedra Stevens, às escondidas,

costumavam tirar livros proibidos da biblioteca particular da Sra. Avery.E Desmond acabou descobrindo que sua pupila era uma moça ávida por descobrir o mundo,

tocava piano de maneira encantadora, e, às vezes, revelava-se uma terrível adversária no xadrez. Prefiro Alexander Pope a Samuel Johnson, senhorita. Seus poemas me parecem mais

incisivos. Não sei... Li alguma coisa dele, mas não o bastante para formar um juízo de valor.Desmond sentia-se feliz. As ocasiões em que Marianne se recusava a opinar sobre um assunto,

alegando falta de informação, estavam ficando cada vez mais raras. Não sabiá que havia livros dele na biblioteca de Farnham. Não há. O que li foi na sua biblioteca. Desmond sacudiu a cabeça, resignado. Confesso que Johnson e Pope não têm muito espaço em minhas prateleiras. Prefiro o mestre

Shakespeare ou Homero e Virgílio.Bordando uma toalha de mesa, a Sra. River acompanhava a conversa com atenção. Homero e Virgílio! É curioso que um homem jovem como o senhor não prefira a literatura

moderna. Não creio que existam idéias modernas, Marianne. O que há não passa de revisões, muitas

vezes grosseiras, dos velhos temas. Lealdade, cobiça, ódio, amor, guerra, paz: as questões são sempre asmesmas. Nossa única esperança de entendimento e controle dependem do que pudermos aprender dopassado.

Então, ao ler os clássicos, o senhor procura compreender melhor os problemas atuais?Desmond riu.

Isso mesmo. E também porque até hoje ninguém conseguiu descrever uma degola com tantariqueza de detalhes quanto Homero em A Ilíada gracejou.Em menos de três semanas, estavam se sentindo muito à vontade um com o outro. Às vezes,

Marianne entrava na biblioteca quando Peter lá se encontrava. Ele sempre insistia para que ficasse, ehavia ocasiões em que até lhe pedia que lesse em voz alta uma passagem qualquer. Porém, maisimportantes que as conversas que os entretinham eram os longos silêncios que surgiam entre eles, ambospensativos e distraídos umas vezes, entreolhando-se outras, deixando escapar suspiros, sorrindo semmotivo. E ficaram constrangidos no dia em que se deram conta de que estavam de mãos dadas. Desmonddesviou o olhar, e Marianne aproveitou para afastar a mão. Logo depois, mais tarde, mudaram deassunto e de lugar. Mas nenhum deles se esqueceu daquele momento.

Meu pai era comerciante Marianne revelou a Desmond, certa vez, de súbito, sem

preâmbulos.Desmond ergueu o olhar do livro de contabilidade que estava lendo. Marianne continuou:

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A Aposta - CH 109 - Sally Cheney 

Tinha uma pequena loja na periferia de Londres. Nunca pôde abastecê-la de mercadoriascaras como as lojas do centro, mas costumava dizer a seus fregueses

que seus produtos eram quase tão bons quanto os dos melhores estabelecimentos. Era a frase queele mais repetia. "Este abajur é quase tão bom quanto o que vendem na Stillworthy & Grey, Sr.Markham." Pobre papai! Não tinha a intenção de enganar os fregueses. Acreditava mesmo no que estavadizendo. Sorriu.

O mês de junho tinha chegado ao fim. Era o dia 29. Desmond dissera que teria de ir a Londres nodia seguinte; dois dias depois, Marianne voltaria ao colégio; talvez não voltassem a se encontrar.Nenhum deles comentava a iminente separação, mas, sem que se dessem conta, viam-se

atormentados pela ideia. Na última semana, dilataram as horas de passeio e ficavam aborrecidos quandoalgum imprevisto os impedia de estar juntos. A biblioteca de Desmond era o ponto de encontropreferido, ainda mais porque a Sra. River tinha o hábito de descansar na sala de estar, e, assim, podiamficar a sós.

No último dia, apesar da manhã ensolarada, nenhum deles propôs que saíssem. O Sr. Desmondsentou-se à escrivaninha e se pôs a examinar uns documentos. Marianne tentou ler durante algum tempo,depois ficou a vagar de um lado para o outro, folheando ao acaso os volumes que retirava das estantes;por fim, perdida em reminiscências, deteve-se à janela. Rendendo-se à situação, Desmond fechou as

pastas que tinha na mesa e se encostou na cadeira. Observando a pupila, deixou-se invadir por umaespécie de devaneio. Os raios de sol, filtrando-se no tecido do vestido, ressaltavam-lhe a silhueta dosseios, as curvas da cintura, o volume do quadril. Desmond chegou, inclusive, a divisar a sensualidade desuas coxas. Deparando-se com o sorriso da jovem, no entanto, preferiu retomar o assunto anterior:

E você o ajudava na loja? Também dizia aos clientes que as mercadorias eram quase tão boasquanto as de Londres?

Marianne sacudiu a cabeça. Não. Quer dizer, às vezes ajudava, quando minha mãe consentia. Porém, nunca tive a

convicção de meu pai. E acho que ele não via com bons olhos minha presença lá; eu sempre sugeria aosclientes onde encontrar produtos mais baratos ou melhores.

A sinceridade das crianças... Sempre foi a desgraça do mundo adulto. O senhor está falando como se já fosse idoso. Desmond arqueou as sobrancelhas. Oh, minha jovem, se você soubesse o que estes olhos já viram... Que tolice! O fato de ter viajado muito e ser culto não o transforma num homem de idade

avançada. Só o tornou um tanto rabugento. Você me diverte, Srta. Trenton. Desmond sorriu, provocando-a. Daqui a dez ou vinte

anos, você vai se lembrar desta conversa e, sem dúvida, terá vergonha de sua presunção juvenil. Por enquanto, só resta esperar que o tempo lhe traga maturidade.

Essa da qual você se orgulha tanto? Desmond fez que sim. Como o senhor pode ser tão maduro e experiente se nem mesmo é casado?Ele sorriu e baixou os olhos.

Faltou-me a oportunidade. Nunca se interessou por ninguém? Duvido! Digamos que, quando surgiu a oportunidade, a moça tinha mudado de ideia.Desmond tentou manter a naturalidade, muito embora o tema, mesmo depois de mais de dez

anos, ainda lhe causasse sofrimento. Quer dizer que já esteve apaixonado? Uma vez admitiu, sem encará-la. Em Coventry, a cidade onde nasci. A moça em

questão moravacom a irmã mais velha, que era uma tirana. Jamais tivemos oportunidade de ficar um minuto a

sós. Talvez por isso ela não seja hoje a dona de Kingsbrook. Ainda bem... murmurou Marianne. Intrigado, Desmond a fitou.

Como assim? Marianne corou. Que sorte o senhor ter se livrado de uma cunhada tirana!

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E verdade... Como se chamava? A irmã? Por incrível que pareça, não me lembro. Não. A moça por quem esteve apaixonado insistiu Marianne. Deborah Woodley. Mas ela não demorou muito a se tornar Chancery. Ela o trocou por outro?!

Sua incredulidade me lisonjeia. Sorriu. É verdade. Preferiu casar-se com um amigomeu. O senhor ainda pensa nela? Não. Quase nunca. Havia meses não me lembrava dela. E, assim que mudarmos de assunto,

passarei vários outros meses sem me lembrar nela. Desculpe-me, Sr. Desmond. Não precisa se desculpar. Pensar na Srta. Woodley... isto é, na Sra. Chancery não é

desagradável. Era uma moça encantadora e, hoje em dia, deve ser uma ótima esposa.Marianne, porém, lamentava tê-lo feito recordar o antigo amor. Ainda mais na última semana em

que passariam juntos. Teve a impressão de que não suportaria permanecer confinada em Farnham,pensando em Desmond sozinho, revivendo os momentos que passara na companhia da linda mulher pela

qual esteve apaixonado.

CAPÍTULO NOVE

Na manhã da despedida, embora tivesse se levantado cedo, Desmond esperou que Mariannedescesse para tomarem juntos o café da manhã. Terminada a refeição, ele se levantou. O mais provávelera que só voltassem a se reencontrar no Natal, dali a seis meses.

Quando Desmond partiu, Marianne não encontrou outra atividade senão errar pela casa, quasesempre estorvando a governanta. A Sra. River a teria mandado passear no jardim, não fosse a bruscamudança de temperatura e a garoa.

Marianne ficou à janela, na sala de estar. Saia daí, Srta. Trenton, está fazendo frio. James foi acender a lareira da biblioteca. Não quero ficar lá hoje resmungou Marianne, sem se voltar. Vou pedir a Alice que acenda os candelabros e lhe sirva uma xícara de chocolate quente.Para alívio da governanta, Marianne concordou em se afastar da janela.Ao entrar na biblioteca, encontrou Alice ocupada em iluminar o ambiente. Pronto, senhorita. Acho que não há nada mais agradável a fazer num dia como este do que se

aquecer junto ao fogo. É verdade concordou Marianne, sem entusiasmo. Precisa de mais alguma coisa?

Como? Oh, não, obrigada.Assim que a criada se retirou, o silêncio voltou a incomodá-la. Desejava ter alguém por perto.Não Alice. Nem a Sra. River. Queria...

Acariciando o couro macio da poltrona em que Desmond costumava se sentar, teve de admitir que era dele que sentia falta. Sentou-se. Se pretendia não tornar a pensar no tutor, havia escolhido umpéssimo refúgio. Todos os detalhes da biblioteca evocavam, a sua presença.

Olhando para a escrivaninha, lembrou-se da carta de Horace. Como podia se haver entregadocom tanto prazer à companhia daquele homem, nas últimas semanas, se sabia quais eram as suasintenções? Deixara-se fascinar por sua inteligência, por seus hábitos refinados e também por seu olhar penetrante, pelos cabelos que lhe caíam nos ombros largos. As vezes, quando observava aquele corpoatlético, musculoso, chegava a sentir nos dedos o desejo de lhe tocar a pele macia.

Distraída, apanhou o volume de A Ilíada que Desmond deixara na mesa lateral. Ao abri-lo, sentiuo cheiro agradável da encadernação de couro. Foi com surpresa que reconheceu a própria caligrafia em

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alguns papéis guardados no interior do livro. Não se lembrava de haver deixado seus manuscritosespalhados pela casa, muito menos de tê-los colocado no livro favorito de seu tutor. Era uma carta queela se esquecera de remeter à amiga Nedra. Nela, comentava os assuntos relativos à vida escolar, ocomportamento de algumas amigas e, no final, reafirmava o quanto adorava Kingsbrook. Marianne leu acarta e suspirou, aliviada por não ter encontrado nenhuma referência a seu tutor. Guardou-a, então, nobolso. Não pretendia remetê-la. Em dois dias, estaria com Nedra em Farnham.

Apesar de tudo, Marianne estava ansiosa para retornar ao colégio. Sentia falta de sua melhor amiga e também de Grace, Elionor, Beverly e das demais colegas.Foi com surpresa que, no segundo dia de aula, soube que a Srta. Prince não retornaria ao

internato. O quê?! exclamou Judith, arrasada. Sua melhor amiga não mencionara a hipótese de

abandonar o colégio. Espero que já tenham obtido informações. Peter Desmond se achava no escritório de Cranston

e Dweeve, dois respeitáveis detetives particulares. Sentado à escrivaninha, o rosto muito vermelho,Cranston costumava gesticular e falar, animado. Era bem diferente do Sr. Dweeve, franzino, de peleclara e olhar delicado, que, sentado numa poltrona, observava o sócio em discreto silêncio.

Desmond tinha procurado os detetives por causa de uma carta que seu advogado, Sr. Bradley,

recebera de um tal "Sir H. Carstairs", cujo tom, segundo o próprio Sr. Bradley, era claramentebeligerante. O advogado examinara com atenção o documento em que Carstairs delegava a Desmond atutela de Marianne Trenton. Embora tivesse valor legal, o papel que tinham em mãos podia ser contestado a qualquer momento, como Carstairs fizera questão de salientar. Se Horace, por acaso,tivesse parentesco com a moça, nenhum juiz lhe negaria a tutela enquanto ela não completasse vinte eum anos, a menos que se casasse. O Sr. Bradley não entendia por que seu cliente relutava em devolver ajovem a Carstairs e, assim, livrar-se de despesas e preocupações. O que o advogado desconhecia era oteor da outra carta que Desmond recebera pouco antes do Natal.

O que ele não explica é por que esperou tanto tempo para contestar o negócio dissera o Sr.Bradley. Se não me engano, já tratamos desse assunto há mais de um ano. Não entendo por que nãodisse que estava arrependido, na ocasião.

Quer dizer que Carstairs não pode fazer nada? se animara Desmond. Não é bem assim, senhor. Afinal, nós não investigamos a jovem, nem seus laços de

parentesco. E se eu quiser fazer essa investigação agora? Conheço um escritório que costuma trabalhar com esse tipo de caso: Cranston e Dweeve,

detetives particulares.Por essa razão Desmond se encontrava agora pela segunda vez, num escritório de detetives. O que descobriram? A senhorita... hã... Trenton, Marianne Trenton, foi pupila do Sr. Carstairs. Sim, eu sei. Mas e Carstairs? O senhor sabe se é parente da moça? Conseguiu descobrir se

tem algum direito sobre ela? Bem, quanto a ele Cranston olhou para Dweeve, cujo o olhar brando nada parecia dizer ,ainda não temos condição de determinar se é ou não parente da jovem. No entanto, fizemos algumasdescobertas muito interessantes.

De que se trata? O senhor nos pediu que investigássemos um agiota chamado Horace Carstairs. Na verdade, o

sujeito que investigamos tem ocupações mais sórdidas. Como assim? Tráfico de ópio e bebidas alcoólicas, além de receptação de produtos roubados, conexão com

a máfia asiática do tráfico de marfim, comércio de escravos. Se houver interesse, por um bom preço, elepode inclusive arranjar para o cliente um pistoleiro profissional. Um desses facínoras, capazes de matar 

qualquer um em troca de um cigarro.Desmond franziu a testa. De repente arregalou os olhos.

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Prostituição também? perguntou, alarmado. Tudo indica que é o seu empreendimento mais recente.Desmond deixou-se cair na cadeira. Nunca imaginei que Carstairs estivesse me fazendo aquela proposta a sério. Mas, pelo que

posso perceber, já está com o plano montado.Cranston olhou para o parceiro, que se restringiu a dar de ombros.

O Sr. Carstairs tem condições de colocar em andamento o que quer que deseje.Desmond havia procurado o escritório de detetives para descobrir se Carstairs era parente daSrta. Trenton. Por sugestão do advogado, procurava certificar-se, visto que nem ele nem o Sr. Bradleycompreendiam por que Carstairs demorara tanto para contestar o negócio. Agora, tudo fazia sentido.Carstairs passara meses fazendo contatos, localizando jovens inocentes, que pudessem ser jogadas naprostituição, lubrificando, enfim, as engrenagens de sua máquina infernal. Era evidente que, naquelemomento, estava pronto para fazer deslanchar o negócio. Desmond não acreditara que o agiota fossecapaz de tanto. Porém, Horace lhe havia proposto um esquema de rapto e prostituição. E o Sr. Cranstonacabava de lhe revelar que o rapto e a prostituição eram as menores contravenções no currículo deCarstairs.

Criminoso! exclamou Desmond. Ele não passa de um bandido! Podemos mandar esse

homem para a cadeia!Dweeve desviou o olhar, ocupando-se de um fiapo na calça. Não vai ser fácil contradisse Cranston. Saber é uma coisa, provar é outra. Ao que tudo

indica, Carstairs é o que, como se diz no submundo, um tipo "versátil". O que significa isso? O máximo que podemos provar que ele é agiota. Mas e as outras atividades que o senhor mencionou? Drogas, pistoleiros... Não há provas. Mas o senhor sabe que é verdade. Não basta? Muita gente sabe. Aliás, todas as pessoas que têm negócios com ele sabem. Porém, não é

suficiente para que se possa mandá-lo para a cadeia ou impedi-lo de continuar. O Sr. Carstairs não deixarastros.

E a Srta. Trenton está correndo perigo? É provável disse Cranston. Se o caso for parar nas mãos de um juiz corrupto, nada nos

garante que ele não acabará obrigando a moça a voltar para a casa de Carstairs. E uma vez em suas garras... balbuciou Desmond. Uma vez em suas garras, imagino que tratará de dispor rápido de todos os bens da moça. Dispor de seus bens? Com certeza, irá transformá-la num negócio lucrativo explicou o Sr. Dweeve, com frieza. Como assim? Ele teria coragem de vender a jovem? Ela, não. Os serviços dela respondeu Cranston.

O Sr. Carstairs não é idiota a ponto de entregá-la definitivamente a outra pessoa. Mas... é incrível! Em todo caso, ele não espera arrecadar muito, negociando mercadoria usada. O que está insinuando?! gritou Desmond, levantando-se. O Sr. Cranston tem razão reafirmou Dweeve. Carstairs espalhou por aí que pode providenciar adolescentes virgens a quem estiver 

interessado e tiver condições de pagar. Tanto que já tem um freguês. Um tal de monsieur Phillipe deRauchenout.

Não é possível! exclamou Desmond, embora já não tivesse dúvidas quanto às intenções deCarstairs.

Acredite. Ninguém sabe onde Carstairs vai buscar essas moças. Mas o fato é que o Sr.

Rauchenout teve a garantia de que, se a Srta. Prince não for imaculada, receberá o dinheiro de volta. A Srta. Prince?!

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O Sr. Cranston consultou suas anotações. O nome completo é Sylvia Prince. Eu tenho a garantia disse Desmond, com voz grave.Intrigados, Cranston e Dweeve olharam para ele. Conhece a Srta. Prince? De nome, Sr. Dweeve. É colega da Srta. Trenton. O senhor está me dizendo que Carstairs

pretende entregá-la a monsieur Rauchenout? Se é que já não entregou. Precisamos detê-lo! Como, Sr. Desmond? Encontre a moça e trate de tirá-la das mãos de Carstairs! As informações que temos não são seguras. Baseiam-se em comentários colhidos aqui e ali.

Além disso, para encontrar a jovem numa cidade como esta, precisaríamos de muito tempo e dinheiro. Não temos tempo a perder insistiu Desmond, embora soubesse que não dispunha de tanto

dinheiro. Seus recursos estavam comprometidos com a manutenção de Kingsbrook. Mesmo assim,estava disposto a levantar a quantia necessária no pôquer. Ache a moça. Mesmo que precisemarrancá-la da cama de Rauchenout.

Desmond estava seguro de que conseguiria o dinheiro, fosse como fosse. O que importava,naquele momento, era livrar a Srta. Prince das garras de Carstairs.

Sylvia não retornou ao internato de Farnham. Ninguém, além de Judith e Marianne, voltou apensar nela. Judith não conseguia entender por que a amiga não lhe escrevera sequer um cartão-postalcontando-lhe o motivo da saída. Depois de algumas semanas sem notícias, ela estreitou sua amizade comMyrtle Thane. Sylvia já não passava de uma lembrança.

Marianne, por sua vez, não se sentia tão feliz em Farnham. Sendo uma das alunas mais antigasdo internato, começava a suspeitar que os professores pouco podiam ajudá-la a progredir nos estudos. Asaulas lhe pareciam fáceis demais e repetitivas. Sentia-se entediada. Na maior parte do tempo, perdia-seem devaneios e lembranças de Kingsbrook e seu enigmático proprietário. Na certa, não podia confiar naquele homem, mas aguardava com ansiedade notícias da Sra. River, comunicando-lhe a data em queRickers viria buscá-la para o Natal. Quando a mensagem da governanta chegou, avisando-a de queRickers só chegaria em uma semana, Marianne pensou que a espera a enlouqueceria.

A carruagem afinal veio buscá-la. Fazia muito frio, e os campos estavam cobertos de neve.Apesar da estrada enlameada, as campinas de Kingsbrook, à luz do sol, lhe pareceram ainda mais

encantadoras recobertas de uma fina camada de cristal.Mais do que o som produzido pela pesada porta de entrada, o que alertou a governanta foi a

rajada de vento que invadiu a casa. Estamos aqui, senhorita!Marianne sentiu um calafrio. Afastou uma mecha de cabelo umedecida pela neve e alisou o

vestido, certificando-se de que a cintura estava no lugar. Queria tanto ter um espelho! Precisava ter 

certeza de que estava perfeita. Srta. Marianne, está é Candy Miller. Sua família é de perto de King's Crossing disse agovernanta, sentada ao lado de uma jovem.

Marianne teve a impressão de já conhecê-la, talvez de Kingsbrook ou de Reading.Surpresa, apertou a mão da moça, que havia se levantado quando a Sra. River as apresentou. Muito prazer. Já tive oportunidade de vê-la passeando com o Sr. Desmond, embora a

senhorita não me conheça. Candy Miller? repetiu Marianne. Candy veio substituir Alice explicou a Sra. River. Alice foi embora? Casou-se no mês passado. Eu ia lhe escrever, contando a novidade, mas preferi esperar a sua

chegada. Ela encontrou com um ótimo rapaz, David Trout sorriu a governanta. Já se conheciamdesde meninos.

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Vou sentir falta de Alice. Isso não quer dizer que você não seja bem-vinda, Srta. Miller. Pode me chamar de Candy. Marianne se dirigiu à governanta: E o Sr. Desmond? Eu esperava... pensei que ele estivesse aqui... O patrão está em Londres, a negócios. De lá, seguirá para Reading. Deve passar alguns dias

com os Dudley. Que Dudley?

São conhecidos do Sr. Desmond. Pode ir agora, Candy. A Sra. Rawlins deve estar precisandode ajuda na cozinha. E que eu não... balbuciou Candy.A governanta se levantou, com um suspiro de resignação. Está bem, vou com você.David e Alice formavam um lindo casal, ambos jovens e apaixonados. A Sra. River lhes desejava

toda a felicidade do mundo, mas lamentava que Alice não tivesse ficado tempo suficiente até que a novacriada aprendesse a obedecê-la sem contestações.

Marianne ficou só na sala. Alice, sua única amiga desde que chegara a Kingsbrook, havia secasado, e o Sr. Desmond estava visitando amigos em Reading. Ou melhor: conhecidos. Em todo caso,gente mais importante para ele que Marianne.

Acharam?Desmond estava no escritório dos detetives Cranston e Dweeve outra vez. Sim, senhor. E não foi fácil tirá-la de lá. Monsieur Rauchenout se mostrou um adversário e

tanto. Mas, com a inteligência do Sr. Dweeve e os meus músculos, acabamos libertando a Srta. Prince.Nosso problema

i agora é... Cranston se agitou na cadeira. Nosso problema, Sr. Desmond, é o que fazer com a moça. O pai dela está em viagem no

oceano Indico e só voltará na primavera. Podem levá-la para Kingsbrook. O senhor vai mantê-la em casa? Não quero ser desagradável, Sr. Desmond, mas devo adverti-

lo de que, neste momento, a reputação da garota não é das melhores... Posso imaginar, Sr. Dweeve. Não se preocupem, sua permanência em Kingsbrook será

confidencial até que eu possa mandá-la para... Deteve-se, despertando a curiosidade dos detetives.  Pretendo mandá-la para a casa de minha mãe até que o pai dela retorne. Mamãe jamais se recusaria aajudar uma jovem em apuros. Não se recusou sequer a auxiliar o filho desprezível que lhe partiu ocoração.

Nesse caso, Sr. Desmond... Ainda não encerramos. Desmond sorriu. Quer que façamos mais algum trabalho? Sim. Quero que tirem Carstairs de circulação. Mesmo que as autoridades não possam fazer 

nada, nosso dever é impedi-lo de continuar.

Nosso dever? sobressaltou-se Cranston. Claro. Não podemos esquecer que Carstairs foi claro quanto a seus planos. Embora tenhamosconseguido livrar a Srta. Prince, ele poderá aliciar outras jovens inocentes.

E como faremos isso? De acordo com o relatório que me apresentaram, Sr. Cranston, Carstairs está envolvido com o

tráfico de drogas e bebidas alcoólicas, além de receptação de mercadorias roubadas... E contrabando de marfim. Exatamente, Sr. Dweeve. Pois basta interromper o fornecimento. Comecem por ameaçar os

clientes habituais de Carstairs. Se for preciso, descubram onde ele esconde a mercadoria e destruam-na. Mas isso leva tempo advertiu Cranston. Quanto mais cedo começarem, melhor.

Precisamos ter cuidado. Se Carstairs desconfiar de alguma coisa, pode se tornar perigoso. Sejam discretos. E por isso que estou contratando especialistas.

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Esse trabalho pode lhe sair caro, Sr. Desmond. Está preparado para mais essa despesa?Impaciente, Desmond respirou fundo. Não importa. Se for preciso, arrumarei um emprego... respondeu.Não sabia se Cranston e Dweeve tinham ideia do quanto aquilo lhe seria custoso. De qualquer 

forma, era como se estivesse assinando um compromisso com o próprio sangue.

CAPÍTULO DEZ

Faltava menos de uma semana para o Natal quando o Sr. Desmond chegou. A Sra. River e a novacriada aproveitaram sua ausência para adornar a sala e a biblioteca com guirlandas e ramagens para afesta. Marianne se encarregou da árvore que James e Rickers haviam escolhido no bosque.

Na tarde da chegada de Desmond, o Sr. e a Sra. Dudley, acompanhados de uma prima, foramfazer uma visita a Kingsbrook.

Marianne se apressara a servi-los, esperando que, assim, fossem logo embora. Minha prima voltou há pouco do continente comentou a Sra. Dudley à mesa de chá.  

Para ser exata, acaba de chegar. O que achou de Bruxelas, Eriça?

Bruxelas é uma bela cidade, muito movimentada respondeu Eriça Leeming. Ah! E verdade... A Sra. Dudley sorriu, tentando disfarçar a inexpressividade da prima.A Srta. Leeming era muito tímida, apesar dos espalhafatosos cabelos ruivos e do excesso de jóias

que fazia questão de usar. Marianne chegou a se sentir ofuscada quando a moça entrou na sala.Embora o Sr. Desmond e a pupila estivessem acostumados às frequentes visitas da família

Romer, de sir Montmare Grissam, dos Steepleton e mesmo de Parson Dooley, ficaram impressionadoscom a frequência com que os Dudley iam a Kingsbrook. Os Dudley e a Srta. Leeming, naturalmente.Talvez porque a vizinha achasse que Desmond e sua prima formavam um casal perfeito. De fato, a Sra.Dudley recorria às mais engenhosas manobras para deixá-los a sós. Em duas ocasiões, chegou a selembrar de compromissos inadiáveis, forçando Desmond a acompanhar a moça até sua casa.

Nada havia de errado em um rapaz se dispor a fazer companhia a uma moça; porém, Marianne,que conhecia bem seu tutor, devia avisar a Sra. Dudley de que Desmond não era o que se poderiachamar de "cavalheiro". O que mais aborrecia Marianne, no entanto, era o fato de ele jamais se recusar aacompanhar a pretendente.

Os Dudley, é claro, compareceram à ceia de Natal, frustrando os planos de Marianne de passar uma noite agradável na companhia de Desmond. Contrariada, chegou a pensar em recolher-se maiscedo. Mas, ao ver a Srta. Leeming com um vestido verde de seda, achou melhor não deixá-la à vontadepara novas investidas.

A meia-noite, a Sra. Dudley bateu palmas, com entusiasmo, pedindo ao marido que fosse buscar os presentes, os quais Marianne achou extravagantes e de péssimo gosto. Por fim, cerca de duas horas damanhã, quando Marianne já havia adormecido na poltrona, os convidados se foram.

Vamos dar uma pequena recepção amanhã, senhor Desmond. Contamos com sua presença.Não nos decepcione disse a Sra. Dudley, ao sair. Teremos muito prazer em comparecer. Oh! Suspirou. Não... Quer dizer... Talvez o senhor preferisse ir sozinho. Eu não privaria a Srta. Trenton de sua hospitalidade. É claro. Faremos o possível para entretê-la corrigiu-se a Sra. Dudley. Não é preciso. Tenho certeza de que a Srta. Marianne se divertirá tanto quanto eu. Tomara que sim.Pela primeira vez ocorreu à Sra. Dudley que o Sr. Desmond podia ser um homem perigoso,

astuto demais, mesmo para Eriça. Mas, olhando a sua volta ao sair, observando as alamedas deKingsbrook, chegou à conclusão de que, apesar de tudo, seria um ótimo negócio casar a prima com o

proprietário.Tendo se despedido dos convidados, Desmond retornou à sala e sacudiu o braço de Marianne.

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Ela despertou num sobressalto. Já é Natal, senhorita. Que bom! respondeu ela, massageando o pescoço. Os Dudley já se foram? Já. E nos convidaram para uma recepção amanhã. Uma reunião íntima de confraternização.Deixando escapar um gemido, Marianne afundou na poltrona. Eu preciso ir? Diga-lhes que fiquei doente ou precisei voltar ao colégio. Ou que sou

inexperiente demais para freqüentar a casa de gente tão sofisticada. Sinto muito.Na reunião, estavam presentes todos os vizinhos do casal Dudley. A Sra. Dudley tinha concluído

que seria mais fácil distrair a Srta. Trenton com a casa cheia. Uma cuidadosa disposição de cadeiras emesas obrigou Desmond a ficar ao lado de Eriça quase a noite toda.

O Sr. Wynder, que morava a quase dois quilômetros da casa dos Dudley e a quem Marianneapenas conhecia de vista, veio acompanhado do irmão mais novo. Embora a anfitriã não estivessepreocupada em tornar a noite agradável para a pupila do Sr. Desmond, empenhou-se em aproximá-la dojovem Wynder, a fim de mantê-la longe do tutor.

Joseph Wynder era um moço magro e inexpressivo. Com certo esforço, Marianne conseguiuconversar com ele. Soube que era o mais jovem de cinco irmãos, que passaria um ou dois meses na casa

do mais velho, que gostava muito de pescar e não tinha a menor consideração pelos "pálidos ratos debiblioteca".

Há coisa mais interessante na vida do que ficar preso numa sala de aula feito um idiota inútil disse ele, numa das poucas vezes em que emitiu uma opinião.

Constrangida, Marianne fez que sim e tratou de mudar de assunto. O tal Sr. Wynder, sua companhia favorita durante a noite, pareceu-me um rapaz um tanto

rústico comentou Desmond, quando voltavam para casa. O senhor acha? murmurou Marianne. Talvez você se sinta mais à vontade em companhia de rapazes toscos. Pelo menos foi a

impressão que deu. É mesmo? Não concorda? Com o quê? Que prefere a companhia dos rapazes mais simplórios à dos cavalheiros sofisticados? Não tenho a menor ideia. Você parecia satisfeita ao lado do Sr. Wynder. Não tive escolha disse Marianne, alterando a voz. Mas como o senhor pode saber o que

fiz e com quem estive se passou o tempo todo com a atenção voltada para os encantos da Srta. Leeming?Aliás, ela estava tão encantadora hoje com aquele vestido roxo...

Marianne enrolou-se no casaco como que para se esquivar de novas perguntas. Violeta sussurrou, depois de algum tempo.

Roxo! insistiu ela, com mau humor. Não me lembro de ter achado a conversa da Srta.Leeming brilhante nas poucas vezes em que trocamos algumas palavras. Pelo menos, ela freqüenta lugares mais interessantes que baias e cocheiras. Chegou há pouco

do continente. É. E achou Bruxelas movimentada ironizou Marianne. Sempre é melhor que ouvir comentários sobre o Vale do Sono... ou sei lá como se chama o

lugar de onde veio o Sr. Wynder. Pois foi um alívio contar com ele. Se dependesse de você, eu teria ficado num canto, como

um porta-chapéus ou feito uma mosca pousada no lustre. Pelo menos tive oportunidade de passear umpouco pelo salão e descobrir por que a conversa da Srta. Leeming é tão interessante. Só não sei se o queprende mais a atenção são as histórias que conta ou o decote de seu vestido roxo.

Marianne virou o rosto, com petulância; Desmond fingiu concentrar-se na estrada. Ela estava me falando numa tia, que mora em Liverpool.

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Marianne olhou para ele, intrigada. O quê? Eu disse que estávamos conversando sobre a tia da Srta. Leeming, a Sra. Stagway, que mora

em Liverpool. A noite toda? Desmond fez que sim. Você conhece a tia de Eriça?

Não.Desmond e a Srta. Leeming tinham ficado a um canto afastados do salão, e a maioria dosconvidados, sem coragem de se aproximar, apenas observou que a moça discursou, entusiasmada, amaior parte do tempo. Marianne abriu um sorriso debochado.

Pelo menos não a conhecia até hoje continuou ele, com sarcasmo. Agora, sei ondenasceu, o nome de seus irmãos e irmãs, sei com quem se casou, qual a profissão do marido e que ele devez em quando costuma provocar escândalos na cidade. Ah, sei também o nome de seus filhos e quantosjá se casaram. Se você estiver interessada, posso inclusive lhe informar o número do manequim da tiaWinnie, o endereço de sua costureira favorita e o nome de seu gato de estimação.

Marianne não pôde conter o riso. Sem se dar conta, segurou o braço de Desmond para se aque-cer. Depois, recostando a cabeça em seu ombro e ainda sorrindo, fitou-o.

E eu pensando que era a única a achar a noite um tédio... Tudo o que consegui arrancar do Sr.Wynder foram alguns monossílabos ininteligíveis. Bem, mas pelo menos ele me deixou respirar.

Desmond suspirou. Sorte sua. Da próxima vez, é melhor que troquemos de parceiro de vez em quando. Duvido que a Sra. Dudley concorde. Além disso, acho que a Srta. Leemijig não tem muito a

me dizer. Ah! Devo preveni-lo de que o Sr. Wynder considera os homens letrados uns "pálidos ratos debiblioteca".

Nesse caso, acho que ele também não tem muito a me dizer. Desmond olhou-a nos olhos esorriu. Tanto melhor.

A Sra. Dudley e a sobrinha fizeram o possível para incluir Desmond em todas as atividades queprogramaram entre o Natal e o Ano-Novo. Na passagem do ano, todavia, Desmond recusou todos osconvites. Preferiu estar no sossego do lar, na companhia de sua pupila.

Marianne se encontrava radiante. Aquela data, em Kingsbrook, tinha para ela um significadoespecial. No ano anterior, ficara tão aflita ao voltar para a casa onde tudo acontecera... Mas seu estada deespírito se modificara quando se vira tão bem recebida por Desmond, sobretudo quando ele concordaraem convidar os vizinhos para a ceia de Natal. Pouco depois, Desmond se ausentou. E agora, passadotanto tempo, Marianne era obrigada a admitir que havia sentido a sua falta.

Naquela noite de Ano-Novo, Desmond chegara acompanhado de alguns amigos de Reading.Tiveram uma noite alegre, todos dançando e rindo, enquanto a Sra. River e Alice, sem um momento dedescanso, controlavam o vaivém dos pratos. Marianne se sentira uma criança entre os amigos deDesmond. Mesmo assim, ele havia insistido para que ficasse. Aquela fora a primeira vez em .que ela

ouvira seu riso descontraído e inconfundível. A meia-noite, a Sra. River servira a Marianne um cálice decherry: "O Sr. Desmond faz questão de que você participe do brinde", dissera.Enquanto os homens brindavam, animados, Desmond virara-se para a pupila e erguera o copo:

"Que este seja o melhor ano de sua vida!"Marianne tinha passado os doze meses seguintes a cultivar aquele voto como a um verdadeiro

talismã. Brindaremos a chegada de mais um ano disse Desmond, dessa vez.Marianne sorriu ao imaginar que ele, sem dúvida, se lembrava de como ficara corada após o

cálice de cherry. Caso eu sobreviva até lá brincou ele. A Srta. Leeming volta a Manchester terça-feira.

Creio que só agora sou capaz de calcular o alívio que sentem os animais silvestres quando termina a

temporada de caça. Se conseguir resistir mais alguns dias, a Srta. Leeming voltará para casa sem o troféuque tanto deseja ostentar na parede.

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Marianne riu e fechou a porta da biblioteca, deixando-o a sós.Como a Sra. River estivesse ocupada com seus afazeres e com o treinamento de Candy, e como o

dia não convidasse a um dos longos passeios ao ar livre que costumava fazer, Marianne distraiu-seexplorando a casa. Até então, não tivera a curiosidade de conhecer os quartos do andar superior. Munidade um candelabro, explorou os aposentos escuros e empoeirados do terceiro andar, abrindo, às vezescom dificuldade, as portas emperradas pela falta de uso. Porém, ao forçar a última delas, a de um quarto,

no corredor, próximo à escada da cozinha, abriu-a, com facilidade. Apesar da falta de luz, notou que nãoestava empoeirado como os outros. Curiosa, Marianne entrou. O chão se mostrava limpo e, a um cantodo toucador, havia uma bacia e um jarro de prata muito bem polidos.

Marianne enrugou a testa, intrigada. Por que teriam arrumado aquele quarto? Sem dúvida, forausado havia pouco.

Ergueu o candelabro e examinou o ambiente. Quando se voltou, a trêmula luz iluminou umobjeto no chão, perto da cômoda. Marianne se abaixou e pegou-o. Era um dedal, um utensílio comum decostura; gravadas no metal, havia algumas iniciais. Ao aproximá-lo da luz, reconheceu-o de imediato.

Em Farnham, era comum as alunas se reunirem ao pé da lareira da sala, ocupando-se de seusbordados. Marianne lembrava-se bem da noite em que sentara-se ao lado de Sylvia Prince. Tinha ficadoimpressionada com a habilidade da colega. Muito séria, Sylvia lhe dissera que o segredo residia no uso

do equipamento adequado. Equipamento adequado? Marianne sorrira. Tenho agulha e linha. De que mais preciso? De um dedal respondera Sylvia. É indispensável. Veja o que meu pai me trouxe ao

retornar  de  uma  de  suas  viagens  ao  Oriente.    Mostrou  o  dedal  com  s.

Nesse caso, acho que nunca serei tão boa quanto você. Meu pai já faleceu e, quando era vivo,a viagem mais longa que fez não passou de Shoeburyness.

É pena...E Marianne não se surpreendera com o fato de ela nem sequer haver notado o tom irônico de sua

resposta.Marianne sentiu um calafrio ao voltar a olhar para o dedal com aquelas iniciais. Como tinha

vindo parar num dos quartos de Kingsbrook?

CAPÍTULO ONZE

Embora estivesse perto da lareira, Marianne tremia de frio. Ao sentar-se na sala, no lugar quesempre fora o da Sra. River, esperava aquecer-se. Sem conseguir conter os calafrios, pediu a James queatiçasse o fogo. Não sabia o quanto era precário o sistema de calefação do terceiro andar.

A Sra. River estava no segundo pavimento, orientando a nova criada quanto à arrumação dosquartos. Marianne sentou-se no tapete e inclinou o corpo, aproximando-se mais do fogo.

O Sr. Desmond continuava na biblioteca, onde passara a maior parte do dia, lendo. Mariannesuspeitava de que naquele momento estivesse dormindo, mas não ousou ir até lá para averiguar.O que a atormentava não era tanto haver achado o dedal de Sylvia na casa de Desmond, mas as

imagens e a recordação de fragmentos de conversas que passaram a lhe assediar a memória após adescoberta. Com os olhos fitos nas labaredas que dançavam diante dela, quase podia divisar a caligrafiaque já se lhe tornara familiar e odiosa. "De minha parte, há anos venho me empenhando em encontrar eapresentar-lhes jovens tão puras e imaculadas..."; "... você se encarregaria de fornecer os clientes, e eu,as moças."

Depois de ler a carta infame, Marianne apressou-se em escondê-la em meio à correspondência deDesmond. Mas isso não bastou para fazê-la esquecer o seu torpe conteúdo.

Baixando o olhar, fitou as cinzas que se acumulavam na lareira e lembrou-se do dia em que se

vira sozinha com Carstairs no bosque de Farnham."Daqui, eu posso vê-la e às outras garotas", ele dissera. E estremeceu mais uma vez, como se

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ainda a estivesse segurando a mão pegajosa daquele homem repulsivo.Veio-lhe à mente A Ilíada, que Desmond relia com frequência. O cheiro forte da encadernação

de couro penetrou-lhe as narinas. No mesmo instante, se lembrou da carta que escrevera a Nedra. Nelacomentara detalhes da vida pessoal de Sylvia Prince e tinha chegado a mencionar que seu pai, capitão denavio, partira numa longa viagem. Recuando no tempo, um ano talvez, recordou o dia em que tinha vistoDesmond e Horace num restaurante de Reading. Arrepiou-se ao rever Desmond dando dinheiro a seu

antigo tutor.Marianne ouviu um barulho e teve um sobressalto. Nossa! Que está fazendo nessa escuridão?Só então se deu conta de que passara a tarde perdida em devaneios. Não notei que já era tão tarde. Nem você nem o patrão. Parecem dois bichos-da-seda no casulo. Um na biblioteca,

queimando a pestana nos livros, e a outra no escuro.A governanta acendeu os candelabros. Depois, sentou-se em sua poltrona predileta, deixando

escapar um tímido gemido. Marianne não lhe deu atenção. Estava preocupada em ouvir algum ruído queviesse da biblioteca. Talvez Desmond decidisse reunir-se a elas quando Rickers reabastecesse a lareira.

Desmond devotara o dia todo à leitura. Para alívio de Marianne, ela não tornara a encontrá-lo

depois da desastrosa incursão ao terceiro andar. Porém, se não tinha a intenção de vê-lo, por que nãotirava os olhos da porta da biblioteca?

Pouco depois, Candy entrou na sala e anunciou o jantar. A Sra. River levantou-se e agradeceu.Marianne não teve escolha senão segui-la.

Desmond já estava na sala de jantar, de pé, ao lado da mesa. Ao ver a pupila, cumprimentou-a esentou-se.

Mande a Sra. Rawlins servir alguma coisa, antes que eu desmaie gracejou com Candy.A criada esboçou um sorriso e saiu. Tivemos um dia bem mais tranqüilo do que esperávamos, Srta. Marianne. Você já deve estar 

lamentando havermos recusado os convites para jantar. Não. Acho que eu ficaria até contrariada se tivesse de ir a algum lugar respondeu ela, com

mau humor.Terminada a refeição, Marianne suspirou, aguardando o momento de Desmond ir para o quarto.

Mas a Sra. River pediu que lhe fizessem companhia. Uma vez na sala de estar, a boa mulher persuadiuDesmond a declamar um dos poemas que conhecia tão bem.

O que quer que eu recite, Sra. River? Qualquer coisa. Srta. Marianne, sabe que o Sr. Desmond sabe de cor todos os livros da

biblioteca? Todos não corrigiu ele. Declame um poema sobre o Ano-Novo pediu a governanta.Desmond refletiu um pouco.

Milton! disse, por fim. Vou recitar John Milton. Nada melhor, no Ano-Novo, que umapassagem de O Paraíso Perdido."... Nesse caso, por que não hei deEstender a mão e alimentar de uma só vez o corpo e a mente?Assim dizendo, em hora má, estendeu a precipitada mãoPara o Fruto, e o arrancou e comeu. Ferida, a terra suspirou e... Suspirando, constatou Que tudo

estava perdido."As duas mulheres permaneceram caladas quando Desmond terminou a solene declamação. Então

a Sra. River aplaudiu com entusiasmo, e fez um sinal para que Marianne a imitasse. Esta obedeceu.Desmond escolhera uma estranha passagem para a chegada do novo ano. Versos que falavam de

Eva e do fruto proibido, a causa das desventuras do Homem.

Vejam que tarde disse a governanta, bocejando. O Ano-Novo começou há quarentaminutos. O senhor e a Srta. Marianne podem ficar acordados, mas eu tenho muito que fazer amanhã.

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Srta. Marianne, Sr. Desmond...Levantou-se e saiu, sem que Marianne pudesse retê-la. Acho que a Sra. River tem razão, senhorita. Desmond estava de pé, junto à cadeira, pois

tinha se levantado quando a governanta saiu. Um novo ano chegou sem que notássemos. Vamosbrindar.

Desmond olhava, intrigado, para ela. Notara a mudança em seu estado de espírito. De manhã,

eles se haviam comportado como amigos, sorrindo, conversando, gracejando como costumam fazer aspessoas íntimas. Mas, ao se encontrarem à noite, tinham voltado a ser estranhos. Trataram-se com afrieza e a distância do dia em que se conheceram.

Oh, claro! Vamos brindar! exclamou Marianne. Muito bem disse Desmond.Esperou um instante para ver se ela mudava de ideia. Convencendo-se de que de fato queria

brindar, voltou-se para o aparador e serviu a bebida. Para ele, dois generosos dedos do bom uísqueirlandês; para ela, um líquido rosado. Entregando-lhe o cálice de cristal, ergueu o copo.

Ao Ano-Novo, senhorita. Que seja o melhor de nossa vida.Estavam diante da lareira, frente a frente. Desmond a fitou nos olhos. A luz do fogo brincava em

suas verdes pupilas, fazendo-as brilhar. Desmond notou que Marianne chorava. Parecia um bichinho

assustado, desamparado, com medo. Desmond sentiu uma grande simpatia por aquela menina e, aomesmo tempo, raiva do que quer que tivesse lhe provocado lágrimas. Por que ela fazia assim?,perguntou-se com impaciência, tomando de um trago a forte bebida.

Enxugou os lábios e pôs o copo sobre a lareira. Marianne estava bebendo devagar, e assim podiacontinuar por mais dez minutos, tomando aos poucos a bebida. Não olhou para o tutor; manteve a cabeçabaixa, expondo a alvíssima pele da nuca.

Uma coisa estava dilacerando o coração de Desmond. Ele conhecia o desejo, sentira-o muitasvezes em sua carreira de galanteador. Mas agora era diferente. Aquela moça, de cabeça baixa e posturavulnerável, suscitava nele uma espécie de necessidade primitiva de protegê-la. Calado, Desmondestendeu a mão e lhe tomou o cálice, ainda pela metade. Colocou-o ao lado de seu copo e se deixou ficar um momento encarando-a.

E o ano passado foi... Foi o quê? ela sussurrou. ...o melhor de sua vida? Eu... não sei respondeu Marianne.Não foi uma resposta vaga, impensada, dada apenas para ganhar tempo. Ela achava que a

verdade era um enfático "não". Porém, estando ali com Desmond, próxima o suficiente para lhe ouvir arespiração, já não tinha certeza. O internato fora um exílio,que tolerara porque sabia que tornaria a vê-lo.

Acha que este ano será? Também não sei, senhor. Pode ser.

Marianne olhou para Desmond. Ele falou com voz grave, rouca, insinuante: Pode ser o melhor ano de nossas vidas. E suas palavras se tornaram um imã irresistível,que a atraía. Esta pode ser a melhor noite de nossa vida.

Aproximou-se. E seus corpos se encontraram, encaixaram-se, como que feitos um para o outro.Seus lábios se tocaram. Marianne sentiu na boca o calor do hálito de Desmond.

O beijo foi suave como sua voz, sedutor como os seus olhos. A pressão de sua boca não eraexigente nem arrebatada, mas havia uma densa inevitabilidade naquele beijo, algo que ao mesmo tempoa excitava e a assustava. Marianne não podia fazer nada, senão entregar-se.

Desmond pediu seus lábios, depois, segurou-lhe os ombros, e os músculos fortes de suas coxaslhe roçaram as pernas trêmulas. Comprimiu o corpo no dela. Era um estranho e, contudo, poderoso ritualde posse, como se a estivesse marcando como sendo dele. Para sempre. Acariciou-lhe os ombros, e o

lento movimento de seu corpo, de suas pernas, era também uma carícia, mais íntima e mais urgente.Desmond afastou os lábios e, quando Marianne suspirou, roçou-os em seu queixo e em seu

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pescoço. Devagar, empurrou o vestido, descobrindo-lhe os ombros. E foi com satisfação que ouviu cair um botão e sentiu a roupa soltar-se.

Aspirou o perfume dela; suas mãos formigaram ao contato de sua pele. Ele a desejava. Precisavadela. E a tomaria para si aquela noite, e a guardaria para sempre. Marianne queria conhecer aqueleprazer que, sabia, haveria de arrebatá-la por completo. Já provara aquela sensação, já não era menina.Mais velha, não se deixava atemorizar pelo desejo de Desmond, nem ficava confusa com os seus. Ele a

tomaria nos braços e a levaria para a cama; tiraria, uma a uma, as suas roupas. Hesitante, ela também odespiria. Seus membros se entrelaçariam, suas mãos se explorariam, e os dois mergulhariam numa doceembriaguez.

O corpo de Marianne pulsava de desejo. Ela queria deitar-se com Desmond, dormir com ele. Paraser mais uma de suas prostitutas? A pergunta surgiu, de súbito: uma voz de tal modo rude que ela mal areconheceu como sua.

Durante quanto tempo ele a deixaria ficar em seu quarto, ou melhor, no dele, até mandá-la para oaposento vazio do terceiro andar e, depois, para a rua? E, então, Marianne teria de procurar um novocliente ou seria devolvida a Horace, ou até poderia desaparecer. Como Sylvia!

Não, Peter! Por favor, não! Não faça isso. Nunca! Eu não posso... Oh! Não torne a fazer issocomigo!

Tornar a fazer o quê? O que foi que eu lhe fiz? Isto! ela gritou.Desmond pensou que se tratasse de seu gesto apaixonado, porém Marianne estava se referindo à

paixão que ele despertara em seu corpo. Aquele protesto o fez mudar de atitude. Agora, suas mãos, quepouco antes a estreitavam de modo que Marianne mal podia respirar, a apartaram dele. E ela já nãosentiu o calor que ameaçava dominá-la. Tinha sido confortável, protetor, o calor que fazia parar depensar.

Eu queria levá-la a um lugar que você não imagina disse ele. Só à força! Imaginei que, dessa vez, não seria contra a sua vontade disse ele, com voz calma,

equilibrada, diferente da do homem que pouco antes estava tão arrebatado pela paixão. Pensei quegostasse de mim.

Assim não! Assim nunca!Quando Desmond a tomara nos braços e colara os lábios nos dela, Marianne se entregara ao

beijo. Queria que ele fosse o cavaleiro de cintilante armadura que ela imaginava. Mas sabia que não era. Assim nunca! repetiu.Suas palavras foram como o disparo de uma arma. Desmond lhe soltou os ombros e recuou, com

passos trôpegos.Marianne saiu correndo da sala.Mal voltaram a conversar no tempo que lhes restou em Kingsbrook. Desmond saía de manhã

cedo e só voltava tarde da noite, quase sempre bêbado.

Quando Marianne e Desmond eram obrigados a estar juntos, ele não manifestava mais quegrunhidos e monossílabos, e, quando era absolutamente necessário dizer alguma coisa, mandava recadopela Sra. River, mesmo que ambos se achassem na mesma sala.

Marianne estava absorta demais em sua autocomiseração para prestar atenção nele no primeirodia e, quando afinal o notou, ficou muito zangada com seu comportamento. Era ele quem estava errado.

O fato era que Desmond estava ofendido. Não pelo orgulho ferido e o desejo frustrado. Ouvir Marianne dizer que não o queria, que nunca haveria de querê-lo, desejá-lo, amá-lo, foi como umapancada que lhe arrancasse o ar dos pulmões, uma punhalada no peito. Desmond ficou surpreso com suaprópria dor. Não imaginara que sentiria aquilo, sobretudo considerando a que ponto sua moral e seucaráter tinham decaído.

Dois dias depois, Desmond anunciou que viajaria a Londres e a Reading, a negócios, e que tinha

certeza de que a Srta. Trenton estava em condições de retomar os estudos por si só. Disse-o à Sra. River,que se voltou para Marianne, na outra extremidade da mesa, à espera de uma resposta.

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Acho que estou.Ela dormiu mal aquela noite e, muito cedo, ouviu Desmond descendo a escada com a bagagem.

Com certeza, passaria um bom tempo longe de Kingsbrook, embora não tivesse dado nenhumaexplicação sobre os negócios que o obrigavam a viajar.

Marianne não conseguiu dormir. Passou várias horas em claro, na cama, até que Candy veiobater à porta e lhe dizer com delicadeza que o café estava servido.

Marianne guardou seus pertences em duas malas, que Rickers levou para o coche.Assim, terminou seu segundo final de ano em Kingsbrook. O primeiro, que ela tanto temera,havia sido maravilhoso. O último, esperado com tanta ansiedade, resultou em duas terríveis descobertas:que o Sr. Desmond tinha algum envolvimento com o desaparecimento de Sylvia Prince e que tal fato,por horrendo que fosse, não extinguia seu afeto por aquele homem mau.

CAPÍTULO DOZE

Marianne voltou ao internato decidida -a fazer alguma coisa pela Srta. Prince, ainda que poucosoubesse sobre seu desaparecimento. Nada podia fazer em Kingsbrook, sob a temível influência deDesmond, a qual, aliás, ela só considerava assim a distância. No internato, porém, contaria com a ajudade pessoas com autoridade e em condições de localizar Sylvia e entregar Desmond à Justiça.

Não perdeu tempo, ao chegar. Deixou a bagagem no quarto e foi falar com a diretora.- Sra. Avery, há uma coisa... que preciso lhe contar... Algo que descobri no Natal e que a

senhora precisa saber...Apesar de sua determinação, Marianne vacilou. Ainda temia prejudicar o tutor. Pois não, Srta. Trenton. Bem, eu descobri uma coisa que me leva a acreditar que meu tutor, o Sr. Desmond, tem algo a

ver com...Uma batida à porta a interrompeu. A Sra. Grey entrou e disse: Um cavalheiro quer falar com a senhora.A diretora ficou surpresa. Seus compromissos sempre tinham hora marcada, e nada estava

agendado aquele dia. Quem é? perguntou. É o capitão Prince. Veio buscar as coisas da filha. Marianne encarou a Sra. Grey com

incredulidade. O pai de Sylvia? perguntou, assombrada. A mulher fez que sim. Ele disse que a Srta. Prince não vai voltar ao internato e veio buscar sua roupa e seus livros. Ora, está bem disse a Sra. Avery. Mas eu não sabia que a Srta. Prince não estava

satisfeita com o colégio. Ela teve algum problema, Sra. Grey?Distraída com a novidade, a diretora se levantou, esquecendo-se de Marianne. Que eu saiba, não. Ela foi embora de repente. As educadoras saíram, comentando o caso.

Nenhumadelas, contudo, estava tão surpresa quanto Marianne.O pai de Sylvia? Tinha vindo buscar suas coisas?A diretora demorou a voltar. Marianne devia ir para a classe, mas preferiu ficar no escritório

vazio da Sra. Avery, imaginando as mais absurdas explicações.Por fim, a Srta. Lynks apareceu e lhe disse que todas teriam uma hora livre, mas que deviam

retornar às aulas depois do almoço.Pelo que Marianne sabia, ninguém tinha falado com a diretora depois que ela foi atender o pai de

Sylvia. No entanto, ao sair do prédio, com o cachecol enrolado no pescoço, viu Myrtle Thane afastar-sedo grupo de moças, aglomerado ao redor de Judith Eastman, e correu ao seu encontro.

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Você soube, Marianne? De quê, Myrtle? O capitão Prince, pai de Sylvia, veio buscar as coisas dela! Eu estava no escritório da Sra. Avery quando ele chegou. Parece que houve uma discussão, a Sra. Avery ficou pálida e abalada.Marianne estava confusa.

Ninguém sabia o que o capitão havia dito à diretora, mas, naquela mesma tarde, houve umareunião, e as alunas receberam ordem de não sair do colégio nem se afastar do prédio principal sozinhas. Srta. Trenton, nós fomos interrompidas esta manhã disse a Sra. Avery, após a reunião.  

Queria   ./ me contar alguma coisa? Queria dizer... Bem, que eu e minhas colegas gostamos muito daqui balbuciou Marianne.Era estranho, porém ela já não sabia o que dizer à diretora. Se a Srta. Prince estava com o pai,

como podia o seu dedal ter ido parar em Kingsbrook? E, se a Srta. Prince estava com o pai, de que sepoderia acusar o Sr. Desmond?

Marianne era moça de inteligência excepcional. Mesmo quando as aulas terminaram, naqueleinverno, todas as professoras reconheceram que ela havia aprendido tudo quanto se podia ensinar. Nãoera preciso ser muito dotada, contudo, para perceber que o que aquelas senhoras sabiam não era tudo o

que existia para aprender. Você deve ir para a faculdade aconselhou a Sra. Avery.Marianne ficou atônita. A universidade não era o que as jovens daquela época costumavam

ambicionar. Eu... acho que não.... Ora, claro que sim, Srta. Trenton. Você é muito capaz, seria uma universitária exemplar.

Tenho certeza de que teria mais sucesso que esses "almofadinhas" que se intitulam "acadêmicos". Meu tutor... balbuciou Marianne, numa nova tentativa de contestar a diretora. Quem você acha que foi o primeiro a sugerir? O Sr. Desmond?! perguntou Marianne, incrédula. Ele mesmo! Agora, tudo depende de você. Vamos provar que as mulheres são tão

inteligentes, habilidosas, estudiosas e sérias quanto os homens! Você me faz o favor?Marianne hesitou. Não queria provar nada; só desejava saber qual era a intenção de seu tutor.Menos de uma semana mais tarde, chegou a resposta: uma correspondência de Kingsbrook, um

grosso envelope cheio de documentos e uma carta de Desmond."Srta. Trenton:Na primavera, completará dois anos de preparação no Internato de Farnham. Quando falei pela

primeira vez com a Sra. Avery, ela me disse que, de modo geral, as alunas deixam o colégio aos dezoitoanos. Em novembro, você os completou. A questão é: e agora, o que fazer? Minha sugestão é que penseem cursar a universidade."

À margem do papel, Desmond acrescentou uma nota pessoal típica:

"Como sabe, não tenho condições de apresentá-la à sociedade. Aqui em Kingsbrook, você nãopode, digamos sair. Não tenho nenhuma parente nem amiga que possa ajudá-la. Venho pensando muitono problema, como se pode ver, e, agora que você chegou a certa maturidade, acho que a melhor maneira de abrir-lhe o horizonte do matrimônio é matriculá-la na Universidade de Reading. Lá vocêconhecerá rapazes."

Marianne ficou olhando, confusa, para o papel. "Horizonte do matrimônio?" Sim, claro. Tinhalógica. Já que fora rejeitado, o objetivo de Desmond, agora, só podia ser livrar-se do fardo que elarepresentava.

"Anexei uma solicitação de admissão na universidade. Por favor dê uma olhada e pense emminha proposta.

Seu humilde criado, Peter Desmond."

Os papéis que Desmond mandara eram abrangentes. Explicavam os curso oferecidos, elogiavama universidade e deixavam claro o que se exigia dos estudantes. Em nenhum lugar sugeriam que as

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moças eram bem-vindas, mas tampouco diziam que elas não podiam freqüentá-la.Afetada pela atitude generosa de Desmond, Marianne examinou os documentos, mas não os leu

como a carta. Depois, levou-os à Sra. Avery, que se debruçou sobre eles com todo interesse, aceitandode imediato o desafio de matricular Marianne na universidade.

Escreveram-se cartas. Desmond prometeu lançar mão de sua influência para que ela fosseadmitida. A Sra. Avery ergueu as sobrancelhas, perguntando-se talvez, como Marianne, que influência

podia ter aquele homem na Universidade de Reading.No fim de maio, bem quando o verão começava a exibir os aspectos mais encantadores dointernato, a diretora chamou Marianne a seu escritório e, solenemente, entregou-lhe a carta queconfirmava seu ingresso na universidade. As aulas começariam no outono.

"Não é nossa prática regular, Srta. Trenton," dizia a carta, "incluir mulheres no corpo discente daUniversidade de Reading; todavia, graças às solicitações e garantias oferecidas pelo Sr. Desmond,decidimos autorizar sua matrícula."

Assim, Marianne aceitou os parabéns e o abraço das professoras e de Nedra. Não era a únicaaluna a deixar o internato. Judith ia se casar aquele ano e até já andava ostentando um olhar plácido esatisfeito de matrona. As outras estavam prestes a debutar. Haveria bailes, festas e passeios, de modoque, no Natal, boa parte de suas colegas teriam pescado um peixe no grande aquário que o Sr. Desmond

denominava  "o  horizonte  do  matrimônio".  Mesmo  a  pescaria  de  Marianne,  em  freqüentadas, poderia ter sucesso.

A Sra. Avery classificava os estudantes universitários como "um bando de rapazinhos imberbes,corados e ignorantes"; todavia, Marianne supunha que, se houvesse rapazinhos imberbes e ignorantes emnúmero suficiente, também ela acabaria recebendo um pedido de casamento. E, se não fosse demasiadoexigente, qualquer proposta serviria. O problema era que ela se valorizava muito para aceitar comgratidão o primeiro pedido que surgisse. Esperava mais da vida que isso. Queria um homem experiente,maduro, forte e determinado. E de olhos profundos, castanhos...

Decidiu não pensar mais no assunto. A decisão estava tomada, a sorte, lançada: era um fatoconsumado. E, já que ele queria vê-la casada e fora de sua vida, não haveria de contrariá-lo, mas seria aomenos seletiva.

Na segunda quinzena de agosto, o coche veio buscá-la. Marianne ficaria em Kingsbrook até ofim do mês e, no dia Ia de setembro, devia apresentar-se na Universidade de Reading.

No curto período que passou na mansão de Desmond, Marianne acompanhou de perto osesforços da Sra. River para lhe arrumar o guarda-roupa e os pertences para a nova jornada, a qual agovernanta considerava um verdadeiro presente do destino. Como de costume, a Sra. River não haviasido consultada, e, com o trabalho de preparar e despachar Marianne, além dos afazeres domésticos,ficou assoberbada. Na véspera da partida, quando tudo estava pronto, ela teve alguns momentos desossego na sala. Foi a primeira vez em que as duas puderam conversar com calma.

A casa estava em silêncio, o ar, ainda carregado do calor do fim do verão. A governanta começoua bocejar, mas, antes que fechasse os olhos para um merecido repouso, Marianne quebrou o silêncio:

Sra. River disse, com voz tranqüila, procurando tornar a pergunta inofensiva , alguémesteve aqui em Kingsbrook? Um amigo do Sr. Desmond, quem sabe?A mulher a encarou. Como assim? Reparei que um dos quartos, lá em cima, foi usado há pouco.Sem dúvida, Sylvia Prince estivera ali com o pai, mas permanecia o enigma do dedal. Na busca

de uma resposta, Marianne tornara a subir ao aposento do terceiro andar. Só encontrou novasinterrogações. Esperava achar a escrivaninha e o guarda-roupa cobertos de poeira de seis meses. Noentanto, deu com o quarto arrumado e concluiu que fora ocupado. Nos minutos que passou sentada nacama, não lhe restou senão reconhecer que estava confusa. Não tinha ideia do que se passava naquelacasa, mas tinha certeza de que a Sra. River sabia. E decidiu cobrar respostas a suas perguntas.

O fato de estar limpo não significa que tenha sido usado, senhorita. Não, mas eu achei um objeto pessoal lá.

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Não é possível. Eu mesma... A Sra. River se calou, de súbito, refreando tarde demais alíngua.

Marianne pôs o bordado de lado. Vamos, Sra. River. Quem é a moça que esteve aqui? perguntou, em tom impositivo. O que a faz pensar que se tratasse de uma moça? Eu achei um dedal lá. Só pode ter sido uma mulher. E o quarto continua sendo usado. Não

negue, Sra. River.A mulher, simples e franca, incapaz de enfrentar um interrogatório, deixou escapar um gemido. Oh, senhorita, eu não sei o que dizer! O Sr. Desmond nunca fez uma coisa dessas. Ele trouxe

uma moça para cá antes do Natal. Ela deve ter ficado uma semana, talvez dez dias. Depois, vieramoutras duas. O Sr. Desmond entra com elas quando ninguém está vendo, à noite. São umas coitadinhas,mortas de medo. O patrão me manda dar-lhes comida e deixá-las à vontade, mas faz questão de quefiquem a sós. Oh, senhorita, eu não estou gostando nada disso!

Quem são elas? Não sei. O Sr. Desmond é rigoroso quanto a isso. "Não lhes pergunte nada", diz. O que aconteceu com elas? A governanta deu de ombros. O Sr. Desmond as traz e, depois, leva-as embora.

Com o coche? É Rickers quem as leva? Ninguém aqui sabe delas. Só eu. Não sei como se vão.As duas se entreolharam. Devem ser amigas dele murmurou Marianne. É, devem ser concordou a Sra. River, sem a menor convicção.Desmond não tinha retornado quando Marianne partiu de Kingsbrook. Ela não o vira uma só vez

desde que voltara do colégio, coisa que à Sra. River parecia anormal, pois Desmond costumava passar láo fim do verão, quando os jogadores voltavam para casa.

Ele mandara um recado à governanta, pedindo-lhe que cuidasse para que Marianne estivesse emReading no dia 1Q de setembro. Já havia alugado um quarto para ela na casa de uma viúva.

Marianne teria feito sozinha a mudança se não contasse com Candy, James, Rickers e a Sra.Rawlings, a qual lhe preparou o nécessaire com tudo quanto podia precisar na perigosa jornada. Semfalar na onipresente Sra. River.

Não esqueceu o livro? Nem as luvas? Onde foi . que James colocou o nécessaire da Sra.Rawlings? Ah, sim, está ali. Rickers vai levá-la direto para a casa dessa tal Sra. Simmons. O Sr.Desmond deixou instruções rigorosas. Aliás, não sei por que ele não veio!

Eu vou contar para o Sr. Desmond como a senhora teve trabalho prometeu Marianne,correndo de um lado para o outro.

Rickers, o baú está bem amarrado? A roupa da Srta. Marianne vai acabar caindo toda naestrada.

Eu mesmo o amarrei, Sra. River disse Rickers. E já examinei as correias. Tudo vai

chegar a Reading são e salvo, se a senhora nos deixar partir. Eu acho... Sim... Bem, acho que está tudo pronto. Não se esqueça de escrever, Srta. Trenton.Tenho certeza de que, por mais que viaje, o Sr. Desmond não deixará de cuidar de seu bem-estar, masvocê sabe como nós, aqui, ficamos preocupados.

Eu sei, Sra. River. Marianne sorriu. Mas Rickers vai me levar em segurança até a casada viúva Simmons, e, a julgar pela carta que escreveu, ela é no mínimo tão cuidadosa quanto a senhora;portanto não precisa ter medo. Vou estar muito mais perto agora, é a metade da distância daqui aFarnham.

É, mas o internato era uma instituição exclusiva para moças. Agora você vai morar numacidade grande e freqüentar uma universidade de homens. Não diga que eu não preciso me preocupar.

Mesmo que estivesse indo para um convento, a senhora encontraria motivos para se

preocupar. Claro que encontraria. A Sra. River deu-lhe uma palmadinha no rosto. Cuide-se,

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menina!Marianne e Rickers chegaram a Reading quando o sol da tarde começava a alongar as sombras

das árvores e dos prédios.Depois de algumas voltas nas ruas residenciais, Rickers encontrou a casinha da viúva Simmons.

Diante dela, parado na calçada, havia um homem estranho, do tipo ameaçador, contra o qual a Sra. River lhe dissera que devia tomar todas as precauções.

Quando Rickers parou o coche, Marianne notou que o rapaz, além de ter olhos escuros e umolhar suspeito, era imberbe e corado. Srta. Trenton? perguntou ele.E, antes que Rickers tivesse descido da boleia, abriu a porta e olhou para dentro. Sim respondeu Marianne. O professor me mandou ver se a senhora encontrou boas acomodações. O professor? Sim, senhorita. Oh, desculpe-me. Meu nome é Bernard Brewster. Pode me chamar de Bernie.

Deixe-me ajudá-la. Venha. Cuidado com o degrau. Como foi a viagem?Com um sorriso, Marianne segurou a mão que ele oferecia e desceu. Além do sadio corado de

sua face, o rapaz tinha uma forma também sadia, qualquer coisa que evocava um cavaleiro medieval.

Possuía cabelo avermelhado e muitas sardas. Agradeço muito disse Marianne. E Rickers também ficará agradecido se o senhor tiver 

a bondade de ajudá-lo a levar minhas coisas para dentro. É para isso que estou aqui.Marianne deixou Rickers e o inesperado ajudante desamarrando a bagagem. Foi à porta e bateu,

muito embora já tivesse visto um rosto curioso à janela e soubesse muito bem que sua chegada não erasurpresa para ninguém.

A porta se abriu com um rangido. Sra. Simmons? Sou Marianne Trenton. E esses dois? O Sr. Rickers me trouxe de Kingsbrook. Trabalha para o Sr. Desmond e é um velho amigo. O

rapaz deve ter sido enviado pela universidade. Você não o conhece? Ele parece ser gentil respondeu Marianne, calma. Hum... É o que veremos.Os homens estavam se aproximando com o baú, de modo que a Sra. Simmons foi obrigada a

abrir por completo a porta para lhes dar passagem. Carrancuda, deixou-os entrar, mas os seguiu de perto,mostrando-lhes o caminho sem ocultar o mau humor.

Por esta escada. Aí em cima, por ali. Agora sigam pelo corredor. A segunda porta à esquerda.Ponham o baú perto da cama. Saiam agora. Vocês estão no quarto de uma moça!

Seguiu-os de perto outra vez, passando por Marianne, que ainda estava ao pé da escada.

Então você é a Srta. Trenton? perguntou a Sra. Simmons, fechando a porta atrás dos doishomens. Percorreu-a com os olhos como que em busca de um sinal de duplicidade, uma prova de que elanão era quem dizia ser.

Sou. De Farnham? Estudei em Farnham, mas moro numa propriedade ao sul daqui, chamada Kingsbrook. O

dono é o Sr. Peter Desmond, com quem acho que a senhora já conversou. Sim, o Sr. Desmond. Nós trocamos algumas cartas, mas não tive oportunidade de conhecê-lo.Marianne não ficou surpresa. Se aquela mulher tivesse visto seu tutor, com seus belos olhos

castanhos e a cabeleira revolta, dificilmente teria deixado que Marianne ficasse em sua casa. Acho melhor você mandar esses dois embora. E diga a eles, e a qualquer outro visitante, que

não admito homens em minha casa. Se tiver namorado, terá de conversar com ele do lado de fora. Não tenho namorado, Sra. Simmons, e só o meu tutor viria me visitar. Mas vou informá-lo de

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seu regulamento prometeu Marianne. Seu tutor pode entrar, é claro afirmou a viúva. Porém, Marianne achou melhor esperar até

que oDesmond se apresentasse, antes de acreditar nas palavras da Sra. Simmons.Saiu para se despedir de Rickers e agradecer ao rapaz desconhecido. Mande notícias, Srta. Marianne disse o cocheiro, levando a mão ao boné, o que, no caso de

Rickers, significava um gesto de grande deferência. Diga à Sra. River que está tudo bem aqui Marianne gritou ao vê-lo subir no coche. Voltou-se para o rapaz, que continuava esperando: E você, por favor, diga aos cavalheiros da universidadeque agradeço muito a ajuda e a consideração que tiveram por mim.

Brewster enrugou a testa um momento, depois sorriu. Foi só o professor, senhorita. Mas eu lhe darei o recado. Está precisando de mais alguma

coisa? perguntou, olhando à sua volta. Acho que não.Brewster não ocultou a decepção. Então, acho melhor ir embora. Marianne se limitou a sorrir. Ah, ia me esquecendo, senhorita. Pode ser que nos vejamos na classe, amanhã.

Na classe? E. Você está matriculada no curso de literatura, como eu.Marianne ficou admirada, pensando que sua presença em Reading, sua inscrição na universidade

e até os cursos em que estava matriculada eram de conhecimento geral.Com um ou dois comentários sobre a universidade e os professores, os quais ela não entendeu, o

rapaz se afastou. Mas foi devagar, como esperando que ainda lhe ocorresse um tema brilhante sobre oqual discorrer e, assim, ficar um pouco mais. Nada houve, e quando Bernie virou a esquina, Marianneentrou na casa da Sra. Simmons.

Você deve estar querendo ir para o quarto disse a viúva ao vê-la fechar a porta.Na verdade, Marianne estava ansiosa por contato humano, porém, não tendo escolha, subiu a

escada e se recolheu.Passou mal a noite. Não se sentia bem na cama minúscula, no quarto desconhecido, e, de manhã,

estava com as pálpebras tão pesadas que mal conseguia abri-las. A água fria da bomba da Sra. Simmonsa ajudou, e, por volta das oito horas, havia se lavado, escovado os cabelos e estava pronta para oprimeiro dia de aula.

Endireitando os ombros, como era seu costume, preparou-se para ir sozinha à universidade.Estava ao mesmo tempo excitada e assustada. Ia colocar o cachecol quando a sobressaltou uma fortebatida à porta da rua. Furiosa, a Sra. Simmons foi atender. Parado do lado de fora estava nada menos queo radiante Sr. Brewster.

Bom dia, minha senhora! Vim acompanhar a Srta. Trenton à universidade.A Sra. Simmons franziu a testa, porém Marianne aproximou-se, correndo.

Oh, obrigada, Sr. Brewster. Nunca tive uma colega de classe, senhorita. Vai ser fantástico. Não que estejamosmatriculados nos mesmos cursos. Eu já estou no segundo ano, sabe? Mas você conseguiu uma vaga nocurso de literatura. Os rapazes ficaram impressionados. E ainda nem a viram! Brewster mostrou omais amplo sorriso de que era capaz.

Era evidente que Marianne era a notícia principal, e todo o seu histórico escolar tinha sidoespalhado na universidade. Porém, se todos os estudantes fossem ingênuos como o jovem Brewster, nãotinha muito a temer.

Hoje teremos aula de literatura clássica disse  ; o rapaz. Foi interrompido pelo relógio datorre, que batia as oito e quarenta e cinco. Bem, acho que vamos chegar atrasados. Segurou asrédeas e açoitou o cavalo, que saiu num rápido trote.

Marianne segurou-se num dos lados da carruagem, que avançava aos solavancos. Tinhaestremecido ante as palavras de Brewster. Não queria chegar atrasada no primeiro dia de aula, chamando

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a atenção de um bando de rapazes curiosos e atraindo o olhar severo do professor. Decidido a evitar quetal coisa acontecesse, Brewster chicoteava o cavalo nas ruas estreitas do campus. As ruas estavamdesertas quando ele parou diante de um antigo prédio de tijolos, saltou e amarrou o cavalo. Ajudou-a adescer e, segurando-lhe a mão, subiu correndo a escada e empurrou a pesada porta. O saguão estavaescuro e frio, as paredes exalavam um certo cheiro de mofo. Aqueles corredores deviam ser percorridosem silêncio, as cabeças inclinadas em contemplação. Mas ao contrário, Brewster continuou arrastando-a,

apressado, seus passos a ecoarem no cavernoso prédio.Afinal, parou diante de uma porta, arrumou o paletó e passou a mão nos cabelos. Isso deu aMarianne a oportunidade de arrumar o chapéu-e colocar no lugar uma ou outra mecha.

Quando Brewster abriu a porta, ela descobriu que estavam nos fundos de uma sala de aula, ondese encontravam dez ou quinze rapazes. Os que não se voltaram quando eles entraram estavam comatenção concentrada no professor, que acabava de escrever no quadro-negro a lista das obras que seriamestudadas aquele ano: a Oréstia, de Esquilo, Ifigênia, de Eurípedes, e Os Cinco Cânones da Retórica, deCícero.

O senhor está atrasado, Sr. Brewster disse o professor, sem se virar.Nesse momento, todos os alunos olharam para os recém-chegados. Alguns endereçaram

expressões zombeteiras ao velho Brewster, mas arregalaram os olhos ao ver Marianne em sua

companhia. E esta é a nossa aluna mais nova, a Srta. Trenton. Espero que vocês a tratem com toda a

consideração e muito respeito. Será que fui claro, cavalheiros? perguntou o mestre, voltando-se,afinal, para a classe.

Sim, professor Desmond responderam os estudantes.

CAPÍTULO TREZE

Desmond encontrou Marianne quando as aulas terminaram, o que não foi difícil, já que ela erauma das três únicas mulheres no campus. Convidou-a para jantar. Agora, estavam juntos a uma pequenamesa do Treemore, um modesto restaurante povoado de estudantes ruidosos, que conversavam aos gritosde uma mesa para a outra. Havia inclusive um pequeno grupo, no fundo, cantando músicas sentimentais.

O barulho e os comentários de Desmond ajudaram a dissimular o fato de que Marianne semantinha em silêncio. Mas duas pessoas tinham consciência de sua reticência: ela mesma e seu tutor.

Tenho certeza de que você achou interessante o seu primeiro dia na universidade, bem maisque as aulas de boas maneiras e oratória em Farnham.

Desmond apontou para o prato de Marianne, que, obediente, levou o garfo à boca. Ele respiroufundo, e estava a ponto de despejar uma nova série de observações, as quais ela não podia refutar nemaprovar, quando foi interrompido:

Desmond, meu velho! Que bom encontrá-lo aqui, afinal! E eu encontro o nosso mais novoacadêmico jantando justo com uma de nossas mais celebradas alunas novas. Quem é você, minha

querida? Quero lhe apresentar minha pupila, a Srta. Marianne Trenton. Srta. Trenton, este é o Sr.Brimley, o diretor disse Desmond, em voz baixa.

Sua pupila?! Quer dizer que se matriculou na universidade para vigiar o nosso novo professor,não é mesmo? Há anos que digo que Desmond devia dar alguma utilidade a sua requintadíssimaeducação. Sou Brimley, minha querida. Warren Brimley. Diretor da Faculdade de Estudos Antigos. Ohomem parecia mal caber naquela sala lotada, não por seu físico, mas por sua personalidade, que pareciaprender Marianne na cadeira com a força de uma rajada de vento. Agora, ele estava debruçado sobre ela,a mão muito branca e carnuda próxima de seu rosto. - Está mergulhando na vida do campus, pelo quevejo. É a melhor maneira de se adaptar.

Bem, nós só viemos jantar disse Desmond, com frieza. Sua voz não chegava a ser hostil,

mas tampouco era convidativa. Ele sabia, muito embora Brimley nem sequer desconfiasse, queMarianne estava a ponto de desmaiar.

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Oh, sim, claro disse o homem, com o entusiasmo diminuído pela frieza de Desmond.  Foi um prazer conhecê-la, Srta. Trenton, e uma alegria tê-lo aqui, Peter querido. Acho melhor procurar onde me sentar. Isto aqui está cheio hoje!

Brimley olhou para a mesa de Marianne e Desmond, porém este não lhe ofereceu o lugar vago. Odiretor teve de afastar-se em busca de outra mesa.

Então, Marianne se inclinou para a frente.

Por favor, vamos embora daqui. Já acabou de comer? perguntou Desmond, olhando para o prato que ela mal havia tocado.Marianne empurrou a comida, com impaciência. Desmond se levantou.Lá fora, Marianne respirou o ar frio e deixou escapar um suspiro de alívio. Havia se sentido

como se estivesse a ponto de explodir no restaurante, e agora precisava tomar fôlego para falar.Desmond, que até então tinha mantido uma conversação leve e inconseqüente, também se calou. Por que o senhor não me contou que era professor? ela perguntou, enfim. Não faz muito tempo que dou aulas. Quanto? Ele sorriu. Que horas são? Marianne não achou graça. Então você não era professor?

Palavra que não. Há um mês, eu ainda era o que parecia ser: um inútil. Mas o diretor Brimley deu a impressão de conhecê-lo há anos. É verdade, ele foi meu professor de literatura quando eu era estudante nesta mesma

universidade. Sempre me interessei pela literatura clássica. Então, é um emprego novo? O senhor veio para cá só para me vigiar! Sem dúvida, é o que parece... Para dirigir meus estudos e controlar minha vida social! Não é bem assim. Por que outro motivo se tornaria professor de repente, um trabalho que combina tão pouco

com o senhor? Para resumir, foi porque eu estava precisando de dinheiro disse Desmond, um tanto

constrangido.Com um gesto, Marianne mostrou o pouco crédito que dava àquela resposta. Juro que é verdade, senhorita. Minhas finanças se... esgotaram nos últimos meses. Fui

obrigado a arranjar um emprego bem remunerado. E o que o senhor ganha no jogo? Eu precisava de uma renda fixa. Londres e as capitais européias são charmosas e excitantes às

vezes, mas também muito caras, e a maior parte do que eu ganhava no jogo acabava deixando nos hotéisem que me hospedava. Não prosseguiu, sacudindo a cabeça , precisava ganhar dinheiro. E confessoque a ideia me ocorreu quando você foi admitida na universidade.

E passou a lecionar sem mais nem menos? perguntou Marianne, incrédula.

Sem mais nem menos, não! O diretor Brimley detectou a minha vocação quando eu ainda eraestudante e, depois que me formei, continuou insistindo para que viesse trabalhar aqui. Quanto acombinar ou não com a profissão, estou tão surpreso quanto você, por isso não fico magoado com suaobservação. Acho que tenho jeito para a profissão. Conheço bem a matéria e gosto de conviver com osjovens, acho estimulante o seu desejo de aprender. Ora, estou começando a falar como o próprioBrimley! Desmond riu.

Marianne permaneceu séria, e eles caminharam em silêncio durante mais algum tempo.Desmond não tinha carruagem na cidade, e tomar um coche de aluguel parecia-lhe um luxo

desnecessário. Chegara a pensar em tal extravagância, mas agora estava contente com sua recém-adquirida parcimônia. Por outro lado, o longo passeio até a casa da Sra. Simmons daria a oportunidadede a raiva de sua pupila arrefecer.

Não sei por que você está tão zangada disse Desmond, inocente. O magistério não éuma profissão hedionda. Até parece que acaba de descobrir que sou traficante de escravos.

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Achei muito interessante.Desmond ficou sério, tentando adivinhar de que Marianne estava falando. Ela sorriu. Estou falando de meu primeiro dia de aula na Universidade de Reading. E de haver 

descoberto que você é professor de literatura clássica. Também assisti à aula de poesia do professor Howard e a de ciências naturais do professor Ingle, muito embora eu ache que minha presençainquietante não tenha sido bem-vinda na aula de ciências.

Tolice resmungou Desmond.Calaram-se uma vez mais, percorrendo depressa as ruas estreitas. A calçada de pedra era áspera etraiçoeira no ar úmido da noite, de modo que, para não escorregar, Marianne teve de aceitar o braço queDesmond ofereceu.

Acomodando-se aos passos mais curtos dela, ele passou a andar mais devagar, até queparecessem um mero casal a passeio. A ideia deixou Marianne ainda mais nervosa.

Minha decisão foi repentina disse Desmond. Eu não dispunha de muito tempo.Aquela estranha conversa não tinha muita lógica, e foram necessários vários passos até que

Marianne conseguisse retomar o que fora dito para adivinhar de que Desmond estava falando. Por que não me contou que era professor? queixou-se ela. - Não, não posso aceitar isso.

O senhor podia ter escrito, e voltado a Kingsbrook e me trazido para cá. Acho que queria me surpreender 

quando eu entrasse na classe.Desmond não conseguiu reprimir um sorriso. Confesso que queria muito ver a sua expressão. Já estavam chegando ao fim da caminhada

entre o restaurante e a rua onde ficava a casa da Sra. Simmons. Depois que se deram os braços, passarama andar cada vez mais devagar; agora, porém, Desmond ia tão lentamente que Marianne quase precisavaarrastá-lo.

E os estudantes? O que achou deles? Os alunos do professor Howard ou o jovem Brewster sãoótimos rapazes, não acha?

Penso que sim. Hoje estive muito nervosa para prestar atenção neles. E natural. Mas, no futuro, vai achar o grupo bastante razoável. Não demorará para que faça

uma conquista. O Sr. Brewster é um bom moço. O Sr. Brewster foi providencial. E, se hoje não tivesse me arrastado a sua aula de literatura

com dez minutos de atraso, eu teria ficado mais agradecida. Mas estava muito humilhada para agradecer a ele como devia...

É, acho que a sua chegada foi um tanto dramática. Bernie pode ser um pouco desastrado, masno fundo é um bom moço. Você precisa perdoá-lo. Podia ter sido pior.

Oh, sem dúvida, podia ter sido muito pior. Acho que devia se encontrar outras vezes com o Sr. Brewster. Isso vai acontecer, com certeza. Estamos em dois ou três cursos juntos. Eu digo socialmente corrigiu Desmond. Marianne não era tola, tampouco eram sutis as

indiretas de Desmond. Ela compreendeu muito bem o que ele estava querendo dizer e acreditava que

sabia por quê. Tem razão, o Sr. Brewster é um rapaz adorável e eu ficaria lisonjeada se ele me procurasse.Por favor, diga-lhe isso.

Estavam parados em frente ao portão da Sra. Simmons. Desmond soltou sua mão. Você mesma pode lhe dizer. Acho que os dois ainda vão passar muito tempo juntos.Apesar do desejo de aprender de Marianne e da ajuda eficaz de seu tutor, a carreira universitária

não era fácil para uma mulher na segunda metade do século XIX. Marianne e as outras duas moças queestudavam na universidade de Reading tinham uma tarefa árdua pela frente. Uma delas, a Srta.Tamberlay, era jovem e tímida, usava óculos, percorria com a cabeça baixa as calçadas de pedra eassistia às aulas calada e apática. Suas notas, porém, eram bem melhores que as dos rapazes. A Srta.Tamberlay não era capaz de assustar uma galinha, mas podia discutir todos os detalhes do processo de

formação dos ovos e inclusive dissecar uma galinha.A outra estudante era uma mulher de meia-idade, viva e animada. Tinha o mesmo modo de

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pensar da Sra. Avery e se matriculara porque, em geral, as mulheres não frequentavam uma faculdade.. As mulheres devem estudar declarava. Devem fazer política, dirigir governos e empresas,fazer pesquisa científica e até advogar. Outro dia eu estava conversando com meu marido e disse: "Sr.Nebling, a mulher deve ficar em casa? Quer que eu fique o dia inteiro enfurnada com você?". E elerespondeu: "Claro que não, Sra. Nebling". Pois estou aqui e daqui não vou sair, portanto, trate de meensinar alguma coisa, professor Desmond. A Sra. Nebling fez seu discurso apaixonado no dia em que

Desmond a recebeu como aluna nova. Marianne, que simpatizava mais com o exemplo da Srta.Tamberlay, ficou imóvel em seu lugar, mas foi compelida a virar a cabeça e sorrir ante a bravata e odesafio daquela mulher. Resultou que os estudantes tinham mais facilidade que os professores paraaceitar as mulheres, mesmo a Sra. Nebling. A maior parte dos mestres não fazia caso de Marianne nemdas outras, ou respondiam às suas perguntas a partir da ótica masculina. Corrigiam seus trabalhos commais rigor, exigiam mais, permitiam menos; em resumo, faziam o possível para desanimá-las. Porém,estavam diante de três das piores adversárias que podiam ter encontrado. A Srta. Tamberlay tinha umainteligência brilhante, a Sra. Nebling era dona de um sarcasmo invencível, e Marianne, com quasedezenove anos, se transformara num verdadeiro camaleão, com sua habilidade para se adaptar a si-tuações difíceis. Sem uma única falta ou sequer outro atraso, freqüentava as aulas todos os dias.

O Sr. Desmond a levava a jantar com frequência, mas quase sempre convidava também outro

aluno. A conversa à mesa consistia nos educados comentários de Marianne e em suas perguntas, as quaisDesmond procurava evitar, cedendo a palavra ao outro convidado.

Desmond parecia estimular e promover o contato de Marianne com todos os rapazes dauniversidade, e ela, por sua vez, suportava com um sorriso delicado as atitudes do tutor. No entanto,embora Desmond tivesse sido sincero quanto a seu objetivo ao matriculá-la, ela não se sentia obrigada ase envolver com nenhum dos colegas. A emoção mais cálida que tinha era pelo jovem Bernie Brewster,e esta não passava de um sentimento de amizade.

Embora Desmond tivesse assumido o cargo de professor no final de agosto, passara boa parte doverão ali, levando seus objetos pessoais, ocupando suas salas e preparando-se para sua última e, ao queparecia, mais desafiadora aventura. O diretor Brimley, seu ex-professor naquela mesma universidade,pedira ao jovem Sr. Brewster que o ajudasse na mudança, e os dois, Brewster e Desmond, acabaramfirmando uma sólida amizade, que dava a impressão de que se conheciam havia anos. Não era deadmirar que fosse Brewster quem Desmond convidava com mais frequência a jantar em sua companhiae Marianne. E transferia ao estudante todas as perguntas, mesmo as que Marianne fazia sobre omagistério ou até sobre Kingsbrook, assuntos sobre os quais Brewster nada tinha a dizer. Por fim, eladesistiu de incluir seu tutor na conversa. Discutia com Bernie sobre as aulas, os colegas, os outrosprofessores. Desmond se encostava na cadeira e os ouvia em silêncio.

Mais tarde, insistiu para que Brewster levasse Marianne à casa da Sra. Simmons, e esta, por suavez, conhecendo o simpático rapaz, chegou a permitir que ele entrasse para dizer boa noite a Marianne.

Com o tempo, Desmond passou a encontrar cada vez mais desculpas para não se reunir aMarianne e Brewster no jantar.

Vão vocês. Preciso corrigir algumas provas. Tome, Brewster, ponha isto no bolso. Leve aSrta. Marianne à cidade dizia, entregando uma nota de uma libra ao rapaz, que era de famíliaabastada e costumava ter mais dinheiro no bolso que o próprio professor.

Marianne e Brewster foram "empurrados" a espetáculos teatrais, leituras dramáticas, jantaresformais e festas de estudantes.

Assim, Marianne se rendeu à inevitabilidade da situação e deixou que seu tutor os transformasse,a ela e ao Sr. Brewster, num casal. Tinha certeza de que era o que Desmond queria, e Marianne, por suavez, sabia que não corria o perigo de ser forçada a se casar. Pelo menos não com Bernie.

O Sr. Bernard Brewster já encontrara o amor sem a ajuda do professor na encantadora Srta.Rachel Tamberlay.

CAPÍTULO CATORZE

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Desmond se considerava nobre e sutil; contudo, Marianne sorria intimamente do tom queixosode sua voz, do ar pensativo com que se despedia dela e de Brewster. Era de dar pena, e Marianne teria seesforçado mais para retê-lo se não precisasse tratar de assuntos confidenciais com o colega.

O pobre Bernie se julgava a discrição em pessoa, porém Marianne não precisou estar mais deduas vezes em sua companhia para notar os frequentes comentários, os elogios e as perguntas que fazia

sobre a Srta. Rachel Tamberlay. A Srta. Tamberlay é uma moça encantadora, não acha, Srta. Trenton? Bernie perguntou naprimeira vez em que ficaram a sós.

Rachel? A Srta. Tamberlay? Ora, claro que sim. Só é um pouco tímida. Isso aumenta o seu encanto disse Brewster, reprimindo um suspiro.Nos encontros seguintes, Marianne soube que Bernie não conseguia imaginar nada mais adorável

que os olhos azuis da Srta. Tamberlay, ampliados pelas lentes dos óculos. Sua voz, para ele, era opróprio canto do rouxinol, o que Marianne achava curioso, pois nunca tinha ouvido a moça falar, senãoem sussurros. Mas, aos olhos de Bernie, Rachel era o que havia de mais belo, refinado e amoroso.

Longe de ficar magoada com flagrante preferência do rapaz pela outra jovem, Marianne sentiu-sealiviada.

Brewster confessou que havia tentado aproximar-se de sua amada, fazendo-lhe discretos sinais einclusive atrevendo-se a esboçar um sorriso toda vez que seus olhares se encontravam.

Foram essas as suas tentativas de aproximação? Foi o que ousei fazer, mas reconheço que não tive muito sucesso. O que me falta é um aliado,

compreende? disse-lhe ele em meados de outubro, quando Desmond já não se dava ao trabalho deacompanhá-los. Alguém que me ajude, que defenda a minha causa.

Quer que eu converse com a Srta. Tamberlay? ofereceu Marianne, enfim,  e o sorrisoaliviado de Brewster foi uma clara resposta.

No fim do mês, ela levou a primeira mensagem do jovem apaixonado. Escrupulosa, não procurousaber o que ele tinha escrito, mas Rachel Tamberlay corou ao ler a mensagem, e Marianne teve certezade que devia conter as lisonjas nas quais só Bernie era capaz de acreditar.

Não pôde contar ao amigo senão que a Srta. Tamberlay tinha ficado contente, pois ela não enviouresposta.

Nas semanas seguintes, no entanto, Marianne levou várias cartas de um para outro e, afinal, ummedalhão de prata de Bernie e um sabonete da Srta. Tamberlay ao rapaz, presente que Marianne achoucurioso e pouco lisonjeiro. E aconteceu sob os auspícios de Desmond em seu esforço para unir Mariannea Brewster.

Ela encarava com resignação o desajeitado papel de Cupido de seu tutor. Era sempre fria econtrolada perante quase tudo; todavia, Desmond sempre a deixara confusa. Em Kingsbrook, Mariannechegara a acreditar que ele não passava de um homem cruel, inescrupuloso e diabólico. Bonito, sim,romântico às vezes, mas de modo algum o que seu pai denominaria "um pilar da sociedade". Muito

embora, na universidade, em seu curso, se revelasse um acadêmico Sério, bem preparado, preocupadocom os alunos. Contudo, toda vez que Marianne tentava aceitar a imagem decente que Desmond estavacultivando, sua última discussão com a Sra. River lhe retornava à lembrança, e Marianne não conseguiaesquecer que, no íntimo, seu tutor, seu professor, o homem que lhe atraía o coração, andava levandomoças para Kingsbrook, na certa associado ao abominável tio Horace.

Enquanto isso, Desmond acreditava que estava conseguindo realizar seu plano de casar bem apupila.

Juro, Srta. Marianne, não sei o que hei de fazer se a Srta. Tamberlay não voltar à universidadedepois do Natal!

Bernie e Marianne estavam numa das tavernas preferidas dos estudantes. O mesmo local,inclusive a mesma mesa, aonde Desmond a levara no primeiro dia de aula.

Acho que a Srta. Tamberlay não está gostando da faculdade, mas duvido que queirainterromper os estudos disse Marianne. É uma moça brilhante, você sabe.

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Brilhante?! Por Deus, ela é uma estrela! E o próprio Sol! declarou Brewster, num arroubo. Só estou querendo dizer que ela é inteligente. O jovem ficou sério e tomou um gole de sua

bebida. Sei disso. Muito mais inteligente que eu. Não sou tão idiota para não perceber isso. Acaso

você está querendo dizer que ela não quer saber de um idiota como eu? Oh, Sr. Brewster, não seja ridículo! Marianne riu.

Estou apaixonado explicou ele. Isso mesmo. Então, preste atenção e não me interrompa. Você perguntou se Rachel vaiabandonar a universidade depois do Natal. Minha resposta foi que, por um lado, ela é muito tímida, mas,por outro, não quer perder a oportunidade de aprender. Agora, vou lhe contar outra coisa. Se fosse só por isso, acho que Rachel deixaria a faculdade, com alívio. Mas, como sabe, há outra coisa que a prende aReading.

Eu? Você.Era a primeira semana de dezembro, faltavam menos de vinte dias para o Natal, e Brewster não

parava de se torturar com a dúvida sobre se a Srta. Tamberlay voltaria ou não depois das festas. Por que não pergunta a ela?

Se ela vai voltar? Se voltará por sua causa corrigiu Marianne. Endireite os ombros, erga a cabeça e diga-

lhe o que sente. É preciso ser muito tolo para não perceber que Rachel nutre o mesmo por você.Cheio de dúvida, Bernie enrugou a testa ao mesmo tempo que abria um sorriso de felicidade.

Marianne segurou-lhe a mão. Acho que você devia pedi-la em casamento. Em casamento?! Marianne fez que sim. Eu não posso... você entende? Oh, eu não conseguiria... Pedir sua mão?Bernie a fitou nos olhos, e Marianne viu a desesperada resolução no olhar do atormentado

colega. De súbito, Bernie deu um soco na mesa, fazendo tinirem os pratos e talheres e chamando aatenção de todos, apesar do barulho geral.

Eu juro gritou , é o que vou fazer! Você me ajudou muito, Srta. Trenton, mas chega umahora em que um homem precisa ser um homem. Na semana que vem!

Hoje. Depois da aula de química disse Marianne, com firmeza. Não estou no curso de química. Mas a Srta. Tamberlay está. Está vendo? Eu não disse? Uma moça brilhante a ponto de estudar química não há de querer 

se casar com um paspalho que se esforça como louco para entender os sonetos do professor Lear. Quer sim. E você vai pedir sua mão hoje mesmo.Peter Desmond estava no escritório vazio, escuro e frio, sentado à escrivaninha iluminada apenas

por um lampião. Diante dele, diversas interpretações dos estudantes do conflito entre Paris e Menelau,na Ilíada; contudo, ele não estava concentrado naquelas opiniões que pouco variavam, mas pensandocom satisfação em seu plano, que parecia progredir de vento em popa. Marianne e o jovem Brewster tinham se tornado inseparáveis. A preferência de um pelo outro era comentada até pelos professores.

Desmond acreditava que perto do Natal eles tornariam públicas as suas intenções. Toda vez queo rapaz entrava em sua classe, Desmond, na expectativa de receber a notícia, dava-lhe oportunidade deconversar com ele em particular. Mas os dias passavam, e Brewster nada lhe dizia.

Marianne o cumprimentava todas as manhãs, com o frescor e a inocência de uma margarida,coisa que o estava deixando maluco.

Cranston e Dweeve tinham sido muito discretos em seus movimentos e o informaram de que onegócio de Horace Carstairs ia de mal a pior, muito embora o agiota ainda ignorasse quem era o

responsável. Isso era muito bom, sem dúvida, mas Desmond queria livrar-se daquele homem de uma vezpor todas e ver Marianne casada. Chegara a alimentar a esperança de lhe oferecer, ele mesmo, tal

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proteção, porém a moça deixara claro que jamais o amaria.Desmond pôs a mão na testa e se surpreendeu ao notar que seus dedos estavam trêmulos.

Conseguia dominar-se a ponto de não pensar em Marianne quando estava longe dela, o que acontecia amaior parte do tempo.

Quando estiveram juntos em Kingsbrook, Desmond se convencera de que sua relação alcançarauma estabilidade platônica que já não oferecia perigo. Porém, com ela em Reading, freqüentando suas

aulas, trazendo consigo a luz do sol ao entrar, afetando-lhe os sentidos quando sorria, quando falava,quando lhe segurava o braço, quando exalava seu delicado perfume, os desejos que ele supunhaadormecidos retornavam com todo ímpeto.

Sr. Desmond?Sobressaltado, ele afastou a mão do rosto e deu com aquele vulto amortiçado pela luz incerta,

feito uma miragem no deserto. Estava bem a sua frente. Marianne? O senhor não estava dormindo, estava? Claro que não. Estou corrigindo provas. Quehoras são? E tarde. Quase sete. Eu estava esperando-o perto

da biblioteca. Esperando-me na biblioteca? Numa noite destas? E onde anda o Sr. Brewster? Ele devia tê-la

levado para casa há mais de uma hora. Bernie tinha um assunto importante a resolver. Eu lhe pedi que não se preocupasse comigo,

disse-lhe que o Sr. Desmond teria a bondade de me acompanhar, com certeza. Pois ele devia preocupar-se com você, sim disse Desmond, arrumando os papéis na

escrivaninha e levantando-se. Acho que preciso ter uma conversa com o nosso amigo e lembrá-lo desuas responsabilidades. Apagou a chama do lampião, e a sala ficou escura.

Que responsabilidades? Marianne perguntou, tateando para lhe segurar o braço.Desmond sentiu um choque quando suas mãos se encontraram. Ele não é minha babá, senhor, e, a menos que tenha renunciado por completo às suas

obrigações, Bernie tampouco é meu tutor. Vamos. Estou cansada e com frio, e você está com fome. Seidisso porque você fica uma fera quando suas refeições atrasam.

Desmond rugiu feito um urso, e ela riu. Saíram juntos. A noite estava clara e fria. Onde quer comer, senhorita? No Treemore? Marianne sacudiu a cabeça. Num lugar mais tranqüilo. Não estou me sentindo... exuberante hoje. Entendo...Desmond também temia enfrentar a luz e os risos da ruidosa taverna. Ele e Marianne não

passariam muitas horas juntos. Importa-se de comer pão amanhecido, carne fria e queijo, Marianne? No lugar em que estou

pensando, o que falta no cardápio é compensado pelo sossego e o calor.

Perfeito. Onde fica esse cantinho misterioso que só você conhece? É o meu quarto. Tenho uma modesta despensa para as noites como esta, quando a idade mepesa e eu não me sinto disposto a bancar "mais um dos rapazes" na taverna.

Seu quarto? A dona da casa vai me deixar entrar ou será que é mais uma Sra. Simmons e euterei de me esgueirar pela janela?

Ele ocupa todo o andar inferior de uma casa antiga e está reservado para o meu uso exclusivo.Tenho liberdade de receber quem quiser. E hoje, pelo menos durante o tempo necessário para lheaquecer as mãos e comer um sanduíche, quero a sua visita, Srta. Trenton.

A casa a que Desmond se referira era um sobrado próximo da universidade, com décadas de heraa cobrir-lhe uma das paredes. Eles chegaram em poucos minutos; Desmond abriu a porta e convidouMarianne a entrar.

Era um lugar bem diferente de Kingsbrook. Tudo estava limpo e arrumado. A sala de estar tinhaum pequeno sofá com duas graciosas poltronas. Parecia ter sido mobiliada pela avó de Desmond.

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Ele se afastou, despreocupado, levando consigo a luz. Vamos fazer um piquenique na cozinha. Já nos conhecemos o bastante para que eu tenha de

recebê-la na sala de estar disse, entrando por um corredor estreito.A cozinha se parecia com Desmond bem mais que a sala, porém era sobretudo prática. Ele pegou

o pão, a carne e o queijo. Marianne preparou os sanduíches e, juntos, à luz de apenas duas velas,comeram. Havia um pequeno fogão, o qual Desmond acendeu antes mesmo que Marianne tivesse

entrado. O pequeno espaço não tardou a ficar aquecido e, como Desmond prometera, em trinta minutosMarianne estava alimentada, desfrutando do delicioso aconchego da casa. Espero que as intenções de Brewster sejam sérias disse Desmond, de repente, pegando-a

de surpresa. Seriíssimas Marianne respondeu, com um desinteresse que chegou a irritá-lo. E honradas. Honradíssimas disse, lembrando-se do quanto Bernie tinha sofrido, aquela tarde, para

tomar a decisão de pedir a Srta. Tamberlay em casamento. Ele não falou comigo, mas acho que não vai demorar muito para que apresente uma

declaração formal. E o que acho.

Brewster é um ótimo rapaz. Firme. Talvez não chegue a ser um gênio, mas tem um coração deouro.

Concordo. Claro que concorda disse Desmond, olhando para o prato vazio. Ele vai ser um bom

marido. Muito bom. Tenho certeza de que quer fazer feliz a esposa. Você está feliz? Para mim, é uma coisa muito abstrata. Como abstrata? Você vai ficar noiva do rapaz e me diz que o que sente por ele é abstrato? Eu não! Se o meu estímulo tiver algum efeito sobre ele, o Sr. Brewster vai pedir a Srta.

Tamberlay em casamento ainda hoje.Desmond ficou paralisado na cadeira, boquiaberto, atônito.Marianne tomou um gole de leite.Desmond estava vendo seu sonho ruir como um castelo de areia. Gostava muito de Brewster, um

bom moço, o tipo do rapaz que protegeria Marianne com o invulnerável escudo da respeitabilidade.Seria um marido inofensivo e sincero. E os negócios de sua família se situavam em Reading. Não ficariaviajando pelos quatro cantos do país quando se casasse; permaneceria ali mesmo, em casa. No fundo,aquela era a maior vantagem que Bernie oferecia.

O castelo de areia ruiu e foi levado pelas ondas, e Desmond não podia ter se sentido mais feliz.Teve vontade de saltar e gritar "Viva!". Mas se limitou a erguer a sobrancelha.

E mesmo?

Oh, sim. Eles estão loucos um pelo outro, mas são tímidos como dois ratinhos. Em todo caso,ajudei bastante o romance contou Marianne, triunfante. Depois, sorriu com malícia para o homemdiante dela.

Pelo menos, um de nós teve sucesso em seu papel de Cupido. Levantou-se antes queDesmond pudesse articular o que quer que fosse, e pegou os dois pratos.

Deixe-me ajudá-lo com a louça.Desmond tinha montado a cozinha para acomodar uma única pessoa. Não havia quase nenhum

espaço para que duas trabalhassem ao mesmo tempo. Enquanto Marianne lavava os pratos e os talherespara que ele os enxugasse, era inevitável que se roçassem. Ambos sabiam que não haviam estado tãopróximos desde a véspera do Ano-Novo.

Você ficou decepcionada com Brewster? Desmond perguntou, com cautela.

De jeito nenhum. Mas agradeço a sua preocupação. Mostra que agora tem mais consideraçãopor meus sentimentos do que quando escolheu o Sr. Brewster para me cortejar.

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Pensei que você e ele tivessem algo em comum, que se dariam bem. Será que me enganei? Não, claro que não. Eu só queria a sua felicidade afirmou, em voz baixa.Estavam muito próximos, e Marianne pôde encará-lo. Não viu falsidade nos olhos dele, nenhuma

dissimulação.No silêncio da cozinha, o momento demorou a passar. Desmond se inclinou em sua direção, e

Marianne ergueu a cabeça, oferecendo-lhe os lábios. Desmond não aceitou o convite. Em vez disso,pegou a bacia de água suja e foi esvaziá-la no quintal.Quando se havia afastado o bastante para não ouvi-la, Marianne murmurou: "Você podia ser a

minha felicidade, Peter Desmond. Bastava eu saber que tipo de homem você é".

CAPÍTULO QUINZE

Em uma semana espalhou-se em todo o campus a notícia de que Bernie Brewster e a Srta.Tamberlay iam se casar.

A Srta. Rachel acha que não vai voltar à universidade, mas eu lhe disse que nós vamos morar 

aqui em Reading e, se algum dia ela quiser concluir os estudos, como a Sra. Nebling, contará com todo omeu apoio disse Brewster a Marianne, uma semana depois.

O feliz casal a procurara depois das aulas e tinha insistido para que jantassem juntos.Marianne sorriu, tentando imaginar a suave Rachel Tamberlay com a estridente personalidade da

Sra. Nebling. E quando será o casamento? perguntou. Rachel corou, e Brewster lhe deu uma afetuosa

palmada na mão. Nó começo do ano. No Natal, nossas famílias vão se conhecer. Depois, terei de passar uns

dias em Londres, a negócios. Mas, assim que voltar, nós nos casaremos. Você virá, é claro. Rachel e eunão podemos nos casar sem a sua presença.

Claro que podem! Marianne sorriu, com indulgência. Mas, se eu estiver aqui emReading, vou assistir.

Como se você estiver em Reading?! Eu também não sei se vou voltar à universidade. Não? O que o Sr. Desmond acha disso? Eu ainda não... Marianne começou a explicar, mas se interrompeu. Esteja ou não na

universidade, vou fazer o possível para assistir ao casamento concluiu, tratando de desviar a atençãodo rapaz.

Vai ser uma grande festa gabou-se ele, passando o braço pela cintura da noiva e apertando-a.

Marianne sorriu, e a Srta. Tamberlay corou outra vez.

As aulas terminaram na primeira quinzena de dezembro. A última semana foi de exames.Marianne foi aprovada, mas não sem dificuldade: era mulher e estava sendo julgada por uma faculdadeeivada de preconceitos masculinos. Mas concluiu o curso e estava se sentindo: realizada porqueaprendera o que viera aprender.

Desmond precisou ficar mais alguns dias, para terminar a classificação dos estudantes quetinham feito o exame final, e sugeriu que ela alugasse um coche e voltasse sozinha a Kingsbrook.

Marianne não aprovou a ideia de deixá-lo só naquela época do ano. Andava muito sentimental:por causa do Natal ou de sua decisão de não voltar à universidade...

Enfim, Desmond terminou o trabalho do semestre e se viu livre para gozar seu mês de férias.Saiu de Reading com Marianne uma semana antes do Natal. A neve dos últimos dias havia derretido,transformando a estrada numa interminável poça de lama. Embora tivessem partido muito cedo, só

conseguiram chegar a Kingsbrook no fim da tarde, ambos cansados, morrendo de fome, com dores nocorpo e salpicados de lama dos pés à cabeça.

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Nossa! O que aconteceu, senhor? E a Srta. Marianne, em que estado se encontra! Estou bem, apesar da aparência, Sra. River afirmou Desmond, ao descer da carruagem,

tomando Marianne nos braços, numa desnecessária e rude tentativa de ajudá-la. Parecem exaustos insistiu a governanta. Acertou, Sra. River. Rickers!O cocheiro saiu de trás da carruagem, e Desmond ; lhe atirou as rédeas e lhe deu rápidas

instruções. A seguir, desapareceu, deixando que a Sra. River se encarregasse de receber Marianne. Deve ter sido uma viagem horrível murmurou • a governanta, sacudindo a cabeça eolhando para o patrão, que estava longe de se portar como um cavalheiro.

Não é isso disse Marianne, segurando a saia enlameada e subindo a escada com a mulher. Não? O Sr. Desmond e eu... hã... tivemos uma discussão. Oh! É mesmo?Marianne notou a curiosidade na voz da senhora, mas não estava com disposição para satisfazê-

la. Pelo menos não naquele momento.Aquele horroroso dia de inverno, a meio caminho entre Reading e Kingsbrook, com a carruagem

enterrada na lama até o eixo, não tinha sido a melhor ocasião para informar Desmond de sua decisão,

mas ele perguntara sobre seus planos de estudo para o ano seguinte e fizera açucarados comentáriossobre Howard Collins.

Eu não vou voltar à universidade Marianne dissera.Desmond demorara a compreender. Não vai voltar? Como não vai voltar? Você tem de voltar. Por quê? Para concluir seus estudos, para participar da vida social... Para arranjar marido? E terrível ficar lá, uma vez que você já escolheu a próxima ovelha a ser 

sacrificada disse ela, com sarcasmo.Agora, tendo chegado à propriedade e encontrando-se sob as asas protetoras da Sra. River,

Marianne desejava poder voltar atrás, retirar quase tudo o que dissera na viagem. Vou ficar no meu quarto, Sra. River. Se a Sra. Rawlins tiver uma sopa para mim, por favor,

mande Candy me levar um prato pediu ao subir a escada.No quarto, Marianne tirou a roupa imunda e verteu um pouco da água do jarro na bacia.

Impaciente, pegou o sabonete e o esfregou na esponja. Achou bom que a água estivesse fria, que aesponja no peito nu e nas costas a fizesse arfar.

Depois de se enxugar, vestiu uma longa e folgada camisola de flanela; estava disposta a passar oresto da tarde sozinha no quarto e dormir cedo. A camisola quente e confortável, assim como o aposentoalegre e familiar, acalmou um pouco o seu péssimo humor. Não gostava de guardar ressentimentos,detestava ficar zangada. Muito menos com Desmond. Mesmo assim, considerando o modo comoacabara vindo morar em sua casa, considerando o tirânico controle que passara a exercer sobre a sua

vida, além da suspeita que o envolvia, ela já devia estar acostumada a se zangar com ele. Com umsuspiro, deitou-se e constatou que, por incrível que fosse, ainda não estava acostumada.Bateram de leve à porta. Enfim, Candy tinha vindo com a sopa. Morrendo de fome, Marianne foi

abrir. Sr. Desmond! exclamou Marianne, quase sem voz, olhando com horror para a camisola.

Voltou-se em busca do roupão de banho. Achando-o no chão, perto da cama, passou alguns segundoslutando para enfiar o braço na manga. Eu não o estava esperando...

A Sra. River contou-me que você queria tomar a sopa no quarto. Eu me ofereci para trazê-la disse ele, ainda do lado de fora, esperando ser convidado a entrar.

E muita bondade sua. Entre. Coloque-a ali. Apontou para o móvel onde estava a bacia deágua suja.

Não acha melhor colocá-la aqui, ao pé da cama? E. Está bem. É melhor. Obrigada.

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Marianne, precisamos resolver nossas diferenças com relação à universidade. Eu já resolvi. Agora, cabe ao senhor aceitar o fato. Acho... Sei muito bem o que acha. Mais claro o senhor não podia ter sido. Acontece que não tenho

intenção de voltar a universidade. Como já disse, agradeço muito a oportunidade que me proporcionoude freqüentá-la nos últimos meses, e agora creio que posso me ocupar do que me interessa aqui mesmo,

na biblioteca de Kingsbrook. Não duvido de sua capacidade pessoal nem de sua iniciativa, e, se fosse apenas uma questãode literatura, é claro que eu poderia autorizar um estudo independente. Porém, há outras consideraçõesmais urgentes e pessoais. Nós já discutimos isso.

Não! Não! gritou Marianne. O senhor decidiu. Eu tive de obedecer. Não houvediscussão nenhuma. Nunca houve discussão entre nós. Afinal tomei consciência desse fato. No fundo,devia estar satisfeito com a minha proposta. Afinal, continuará tendo o controle absoluto que semprequis ter.

Você está sendo insensata, Marianne. Pelo contrário. Estou sendo muito sensata. Não quero voltar a sua universidade, onde sou

exibida como poça de museu.

Não sei por que está dizendo isso. Os rapazes de lá são muito bem educados. E já lheexpliquei que não tenho outra maneira de apresentá-la à sociedade.

Seu objetivo não é apresentar-me à sociedade.Na verdade, sempre foi o de me casar e se livrar de mim. Isso eu entendi muito bem. E um fato

que já aceitei. Fui para Reading. Matriculei-me em sua universidade. Encontrei-a cheia de candidatos anoivo. E não me interessei por nenhum deles.

Se você voltasse, conhecesse melhor Collins ou mesmo o Sr. Dowling, talvez... Desmondfoi uma vez mais interrompido.

Você é quem precisa conhecê-los melhor! Você é quem escolhe! E você quem vai escolher por mim de qualquer modo. Minha presença lá é desnecessária. Os rapazes me conhecem. Eu osconheço. É você quem decidirá com quem quer que eu me case, que dinheiro quer que eu tenha, quesobrenome hei de adquirir.

Você faz tudo parecer tão calculado... É calculado! Sinto muito se não gosta de ouvir isso, mas eu, pelo menos, reconheço o fato. Não posso deixá-la sozinha aqui em Kingsbrook disse Desmond, tentando tomar outro

rumo, compreendendo que Marianne continuava inflexível. Mas ele tinha escolhido um tópico aindamais delicado que o anterior.

Oh! Isso é que não seria sensato? Por acaso há alguma coisa aqui que você não quer que euveja ou saiba?

A expressão de Desmond foi de profunda surpresa. De modo algum! Quer dizer... nem sempre.

Ah! gritou Marianne. Então, alguma coisa está acontecendo aqui! Do que está falando? Acho que a viagem a deixou exausta. Desmond procurava umaexplicação para a atitude de Marianne.

Ela lhe deu as costas. Acho que tem razão. Estou exausta e com fome. Claro. Depois nós conversamos sobre sua volta à universidade.Marianne tornou a olhar para ele. Já não estava com raiva. Você não entende? Estavam no centro do quarto; esquecido, o prato de sopa esfriava na

cama. Eu quero ficar aqui. O que posso fazer para que entenda? Eu entendo, Marianne. Você adora Kingsbrook. E como se só aqui se sentisse viva.Havia um brilho suave em seus olhos, e Marianne ficou surpresa ao ouvir seus próprios

sentimentos expressos em termos tão exatos. Sim. Sim... sussurrou.

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E é só Kingsbrook? perguntou ele, baixando a voz. Este lugar passou a ser a minha casa disse ela, fugindo da pergunta, com medo de

responder. Não quero ir embora.Desmond lhe tomou a mão. Seus dedos eram grandes e fortes, mas seguraram os dela, tão

delicados, com a doçura com que uma mãe carrega o filho. Nem sempre você foi feliz aqui.

Eu sou feliz aqui. Marianne baixou os olhos, e Desmond não pôde ver a sinceridade do queela acabava de dizer. Oh, minha querida Marianne, eu a fiz sofrer muito, não é mesmo? Veja o que fiz de sua vida,

e mesmo assim você permaneceu doce e alegre... e jovem e bela como na primeira vez em que a vi. Não tão jovem. E o que foi que fez de minha vida? Salvou-me de tio Horace, cuidou de mim e

de minha educação. Você tem sido muito bom. Mas parece que não o bastante. Desmond continuou segurando sua mão, mas não a puxou

para si nem pediu nada.Falou sem urgência nem esperança. Embora não houvesse mais que dez centímetros entre eles,

era como se estivessem separados por um abismo. A atitude de Desmond era de arrependimento, eMarianne sentiu aflorarem-lhe as lágrimas pela dor que ambos compartilhavam.

Reconheço que cometi erros monstruosos ao conhecê-la. E antes de conhecê-la também.Acredite, Marianne, eu faria qualquer coisa para limpar o caminho entre nós. Haverá uma possibilidade?

Sua voz era humilde. Ele a fitou, mas ela não ergueu os olhos. Como pode haver? Marianne sussurrou, sacudindo a cabeça. Como você pode me pedir 

que esqueça o que sei a seu respeito?Estava se referindo ao segredo que ele mantinha em Kingsbrook, mas Desmond pensou que se

tratasse de uma acusação quanto ao seu procedimento na noite em que ela chegou. Soltou-lhe a mão erecuou um passo.

Você nunca vai esquecer, é claro. Foi loucura pedir. Mas compreenda que tenho o dever decuidar de sua segurança no futuro. Você precisa se casar bem...

A estas palavras, Marianne ergueu a cabeça e o fuzilou com o olhar, mas Desmond não lhepermitiu falar.

E para o seu bem, Marianne, não para o meu, garanto. Os rapazes da universidade mepareceram um bom começo, mas não posso ditar a sua decisão. Esboçou um sorriso que, no entanto,de pouco serviu para aliviar a atmosfera pesada do quarto. Ainda vamos conversar sobre isso.

Eu desejava...Desmond tinha retrocedido um passo, mas ainda estavam muito próximos. O tempo dos desejos passou. Desmond tornou-lhe a mão, levando-a aos lábios e beijando-

a. Sua sopa está esfriando.Marianne, que já tinha esquecido o jantar, olhou para a cama, onde se encontrava a bandeja. Já esfriou. Não faz mal, não estou com fome.

Absurdo. O dia não foi fácil, e você precisa comer um pouco. Venha, vamos descer à cozinhae ver se. a Sra. Rawlins pode esquentá-la. Quem sabe haverá outro prato para mim? disse Desmond,pegando novamente a bandeja. E um pedaço de pão.

E talvez um pouco de queijo Marianne sugeriu. E um pedaço de carneiro ou de carne fria. E um pedaço de torta.Como sempre faziam, trataram de esconder o que sentiam. Se Marianne Trenton e Peter 

Desmond continuassem sendo tão cuidadosos, haveriam de se proteger de tal modo que nunca seriamfelizes.

CAPÍTULO DEZESSEIS

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Os sentimentos de perda, abandono e desconfiança de Marianne se intensificaram com o estranhocomportamento de Desmond nessas férias, talvez as últimas que passaria em Kingsbrook. , Os Dudley eos Romer mandaram convites para a ceia de Natal, mas Desmond recusou-os, insistindo em quepassassem aqueles dias em casa, embora ele se confinasse na biblioteca, e Marianne permanecesse re-colhida ou, quando muito, com a Sra. River na sala. Houve época em que Desmond havia manifestado odesejo de convidar os vizinhos para a festa de Ano-Novo. Agora, no entanto, passado o Natal, Marianne

notou que não estavam fazendo preparativos. Quais são os planos para a véspera do dia primeiro? afinal perguntou à governanta. Não há planos, senhorita. Nada? Mas o Sr. Desmond disse que... Não. Dessa vez, pelo que entendi, o patrão vai a uma festa em Reading.E Desmond partiu de fato; sem se despedir. Marianne se viu sozinha, atormentada por 

pensamentos, a perguntar-se o que lhe traria o ano seguinte.O último dia do ano amanheceu frio e claro. O rio estava congelado.Durante o café da manhã, Rickers contou a Marianne que aquele era um fenômeno raro. Que eu me lembre, só aconteceu duas ou três vezes. É preciso que esteja muito frio e muito

seco. É um milagre, senhorita disse, sacudindo a cabeça.

De fato, a temperatura estava muito baixa para sair, e era "muito difícil aquecer a casa toda!",queixou-se a Sra. River. Marianne, contudo, gostava da biblioteca e aproveitou a ausência de Desmondpara usá-la; a governanta, por sua vez, permanecia na sala. E James e Candy eram obrigados a manter acesas as lareiras em ambos os cômodos, e Rickers, que cortava a lenha, queixava-se a cada golpe domachado. A Sra. River, reclamando de que Marianne estava intratável, recolheu-se mais cedo, o que foiinterpretado como sinal de que todos deviam se recolher, inclusive James e a criada.

Marianne, então, foi obrigada a manter o seu próprio fogo e, quando acabou a lenha dabiblioteca, teve de atravessar o hall escuro para se servir da madeira que a Sra. River não havia usado.Mas não quis ir para a cama. Era véspera de Ano-Novo. Ela sabia onde o cherry ficava guardado e sedecidira a erguer um solitário brinde à meia-noite, mesmo sozinha.

Leu um pouco, bordou e, com o passar das horas no silêncio do casarão, cochilava de vez emquando na enorme poltrona de couro diante da lareira.

A Sra. River insistira para que Marianne ficasse na sala, mas aquela noite em especial queriaficar na biblioteca. Era o cômodo de que mais gostava, assim como o caramanchão era o seu lugar predileto lá fora. Ambos faziam parte de sua vida, parte de Marianne. Aqueles lugares tinhamcontribuído para a formação da mulher que ela se tornara.

E agora Desmond, que, muito tempo antes, a levara para lá para divertir-se e ter prazer, estavafazendo o que podia para afastá-la de Kingsbrook, para cortar para sempre os vínculos que a prendiamàquele lugar, para que ter liberdade de transformar sua bela e antiga mansão em... Em quê? Uma casa detolerância? Um mercado de mulheres? Era horrível. De súbito, Marianne compreendeu que o que maistemia era perder Kingsbrook.

Encolheu-se na poltrona, encostando o queixo no braço revestido de couro. Quando o sonocomeçou a embalá-la, teve a impressão, já quase sonhando, de que estava sentindo o perfume deDesmond. Sonhou que se encontrava em seus braços, que era em seu ombro que reclinara a cabeça.Seria mesmo a casa que ela temia perder? Seria mesmo Kingsbrook?

Com badaladas que soaram como trovões, o relógio marcou as onze e quarenta e cinco. Quasemeia-noite. Marianne ia levantar-se, para que o primeiro dia do ano não a encontrasse dormindo, quandoouviu um tumulto à porta de entrada. Era Desmond. Marianne se levantou de um salto e se postou dianteda porta da biblioteca, os olhos muito abertos, quando ele a abriu. Havia apenas dois lampiões acesos, eo que estava atrás dela formava um suave halo ao seu redor.

Você parece um anjo, Marianne. E você parece que andou bebendo. Desmond estava com a roupa amassada, os cabelos

desgrenhados; sua expressão era uma mistura de assombro e dolorosa seriedade. É verdade admitiu. Olhou para a mesa, onde se encontrava o pequenino cálice que ela

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servira às dez horas, esperando as badaladas da meia-noite. Mas, pelo que vejo, não sou o único abeber esta noite... Oh, não! É o nosso brinde de Ano-Novo! Queremos que o ano que vem seja bom, nãoqueremos? O melhor de nossa vida! Vamos precisar de uma dose extra de poção mágica para enfrentá-lo. Obrigado por ter me esperado para beber!

Você não esperou, pelo visto. Psiu! fez Desmond, levando o dedo ao queixo de Marianne, embora quisesse levá-lo aos

lábios. Voltou-se e, com exagerado cuidado, fechou a porta. É verdade que eu e alguns de meusamigos mais íntimos... Ora, você os conhece, Srta. Trenton. O Sr. Greg, que imita com perfeição odiretor Brimley, e Whitney c Dowling; e o Sr. Collins, é claro. Não podemos esquecer o velho Collins,não é mesmo? Agora, ele é praticamente da família. Ou será, quando você deixar de tolices e tomar umadecisão. Oh, e o outro amigo, você sabe, o que tem... um modo afetado de falar e anda com aqueleridículo pincenê.

Está se referindo ao Sr. Brown? Claro, claro que sim! O Sr. Brown... Um de meus amigos mais íntimos. Bem, você sabe, nós

todos queríamos receber bem o ano que chegava, então decidimos beber o mais que podíamos. E achoque conseguimos!

Desmond tinha ficado junto à porta durante a sua longa e atrapalhada fala, mas agora começava a

avançar com passos trôpegos, e Marianne se apressou a ajudá-lo a sentar-se. Havia uma cadeira dura eestreita perto da porta, na qual ela pretendia acomodá-lo, porém aquele homem alto e pesado dirigiu-se àmacia poltrona onde Marianne até então estivera.

Você está bêbado, Sr. Desmond! Nem tanto. Eu pronunciei direitinho as palavras "ridículo" e "pincenê", não? E as empreguei

no contexto certo. A dúvida transpareceu em seus olhos vermelhos. Pelo menos acho queempreguei. Sei o que estava querendo dizer. Que calor horrível está fazendo aqui... Deitou a cabeçano braço da poltrona.

Marianne não sabia o que fazer. Talvez devesse acordar a Sra. River. Ou seria melhor avisar James primeiro? Alguém precisava ajudar o Sr. Desmond a ir para a cama, e James era o mais indicado;porém, era Marianne quem devia chamá-lo ou seria melhor mandar a Sra. River fazê-lo? Mas podiadeixar o Sr. Desmond sozinho e tão perto da lareira? Seu hálito alcoolizado era capaz de provocar umincêndio.

Marianne ainda estava indecisa quando Desmond começou a falar em voz baixa: Você sabe, às vezes, quando me sento nesta poltrona, tenho a impressão de sentir o seu

perfume. Não o sabonete ou a colônia. Tenho a impressão de sentir o seu aroma. Esse cheiro único emaravilhoso. Levantou a cabeça e olhou para a lareira, onde se via uma chama e a lenha em brasa.  E às vezes, quando o sinto, fecho os olhos e fico imaginando que estes braços são os seus. Passou asmãos na poltrona, acariciando o couro macio com a ponta dos dedos. Esta maciez, esta sensaçãoagradável vem de você...

Marianne conteve a respiração. Desmond acabava de descrever o sonho dela. Aqueles eram os

pensamentos, as fantasias, que tinha com ele. Acho melhor chamar a Sra. River, Sr. Desmond. Antes que pudesse se afastar, no entanto, elelhe

segurou a mão. Não me deixe, Marianne! Ela tentou livrar-se. É da Sra. River que você está precisando. Estendendo a outra mão, Desmond segurou-lhe o

ombro, forçando-a a inclinar-se. Eu não preciso de ninguém, Marianne! Só de você! De repente, soltou-lhe a mão e passou o

braço por sua cintura. Na posição desajeitada em que estava, Marianne perdeu o equilíbrio e caiu sobreDesmond.

Ele a beijou à força, quando ela tentava virar a cabeça, deixando-a um momento sem poder 

respirar. A Marianne não restou senão ceder à pressão daqueles lábios. Porém, antes que o beijo setornasse íntimo demais, tratou de afastar a cabeça e respirar.

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Desmond mergulhou o rosto na curva macia entre o pescoço e o ombro de Marianne. Sua bocaera uma chama devoradora que lhe buscava o pescoço, o colo, a elevação dos seios que assomava nodecote.

É de você que eu preciso repetiu ele, erguendo a cabeça e tentando desabotoar-lhe ovestido. : E você que quero! Quero-a desde o momento em que a vi pela primeira vez, há três anos. Sótrês anos?! Parece uma eternidade. Você sempre esteve aqui, tão perto, mas ao mesmo tempo tão longe

de mim... E agora vai me abandonar para sempre. Não posso deixá-la partir, Marianne, sem nunca ter provado o fruto...Marianne retorcia-se, revirava-se e lutava. Embora falando com voz firme, Desmond estava

bêbado, e, quando ele a soltou para lhe abrir a roupa, ela conseguiu escapar e levantar-se. Mas Desmondnão tinha soltado o decote do vestido, de modo que, no movimento, rasgou-se a parte superior de seucorpete. Marianne não chegou a ficar com os seios nus; mesmo assim, ofereceu-lhe sem querer opanorama tentador de sua pele.

Desmond se levantou, tentando agarrá-la outra vez, mas Marianne se manteve fora de seualcance. Queria fugir da biblioteca, porém Desmond conseguiu interpor-se em seu caminho até a porta.Nervosa, ofegante, ela se viu encurralada.

Desmond estendeu a mão, não para agarrá-la dessa vez. Era um gesto de súplica.

Oh, Marianne... Por que você não me quer? Os anos que passamos juntos não conseguiramcurar o arranhão no seu coração delicado? Sei que agora você me considera um tutor bondoso, um tiopredileto. Mas não quero ser seu tio, nem seu tutor, nem um amigo fiel. Quero você. E achei que, sefosse bondoso, cauteloso, se lhe desse tempo, conseguiria destruir essa sua muralha de gelo. Seusjoelhos se dobraram, e Desmond caiu sentado na cadeira junto à porta, onde antes Marianne tentaracolocá-lo. Ou, se não desse certo, esperava poder construir a minha própria muralha de gelo.Esquecê-la, fingir ignorar o que você fez com a minha vida.

Marianne continuava segurando sobre o peito o tecido rasgado. Deixe-me sair daqui, Sr. Desmond. "Deixe-me sair daqui, Sr. Desmond." Foi isso o que você sempre pediu. Marianne, eu lhe

entreguei o coração. Se você for embora com outro, sem que nunca a tenha possuído, morrerei. O quetenho de melhor morrerá, de qualquer modo, quando você partir. Portanto, não me negue isso. Tudo oque peço é uma noite... que você venha para a minha cama por vontade própria, sem nenhuma lágrima.É pedir demais? Seu peito arfava. Desmond encostou a cabeça na dura parede e fechou os olhos.  Eu lhe entreguei a alma. Não vai me dar nada em troca?

Vamos jogar baralho. Desmond abriu os olhos. Como? Vamos jogar uma partida de pôquer. Se ganhar, você pode me possuir. Irei para a sua cama,

nua, sorrindo. Não haverá lágrimas. E se você ganhar? Ficarei com Kingsbrook. Houve um silêncio de assombro.

Kingsbrook? Ou você me possui. Desmond voltou a se calar. Você se atribui um valor altíssimo, Srta. Trenton. O equivalente a esta enorme propriedade. Resta saber que valor você me atribui, Desmond disse ela, fria. É verdade. E eu a valorizo- muito. Muito bem. Considero a aposta justa afirmou. Sua voz,

embora ainda trêmula, adquirira o tom suave e neutro do jogador profissional. Vamos jogar, então? Agora?Marianne olhou para o vestido rasgado. Você me empresta o paletó? A não ser que prefira deixar a partida para outra ocasião, quando

estiver sóbrio. É bom que os dois estejamos em nossa melhor forma.

Estou em forma. Por outro lado, se estivesse sóbrio, não aceitaria a aposta. O melhor tempo ésempre o presente.

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Desmond tirou o paletó e o entregou a Marianne.Em silêncio, sentaram-se frente a frente à mesa de jogo, que Desmond arrastara para o centro da

biblioteca. Ele pegou o baralho. Ainda está selado disse, entregando-lhe o estojo com as cartas para que as inspecionasse.Marianne fez que sim. Desmond tirou-as e as embaralhou, com habilidade. Você tem mais experiência que eu, Sr. Desmond. Conta com muitos recursos para ganhar.

Mas não trapaceie. A aposta é muito alta para que ganhe o jogo mediante a fraude. Não vou trapacear, Srta. Trenton. Dou minha palavra de que será uma partida honesta.A sinceridade de Desmond não podia ser tomada como garantia de que não lhe ocorrera a idéia

de uma carta por baixo do baralho ou de um ás escondido na manga. Gostava de Kingsbrook quase tantoquanto desejava Marianne, e a ideia de perder as duas lhe era insuportável. Mas eleja tinha sido expulsode casa uma vez e conseguira sobreviver. Podia fazê-lo de novo, se fosse obrigado. Ia perder Mariannede qualquer jeito. Ou para um rapaz de sua escolha, ou para o homem que, cedo ou tarde, acabariaentrando na vida dela.

Marianne tinha razão. A aposta era alta demais para que o resultado fosse determinado pelafraude.

Desmond colocou o baralho na mesa.

Você termina de embaralhar e dá as cartas. Bem mais devagar e com menos habilidade, Ma-rianne cortou o baralho e tornou a misturar as cartas.

Desmond arregaçou as mangas da camisa e repousou os braços no tampo da mesa. Vamos jogar uma única mão de cinco cartas. É uma base sólida para sustentar uma vida, não

acha, Desmond? Não foi assim que você me ganhou?Deu as cartas em silêncio, cinco para ele, cinco para ela. Recolocou o baralho na mesa. Desmond

forçou a vista para ver o que tinha na mão e, sem alterar em nada a expressão do rosto, examinou caladoas péssimas cartas que recebera. Copas, espadas, ouros, figuras, cartas numéricas... raras vezes tinharecebido um jogo tão desencontrado. A sorte devia ser mais gentil com ele: eram sua vida e suafelicidade que estavam em jogo, afinal.

Cartas, Sr. Desmond? perguntou Marianne, voltando a segurar o baralho: quarenta e duaschances de ganhar ou perder... tudo.

Sim. Três. Devolveu um valete e duas cartas numeradas, ficando com um ás e um dois.Mas, ao receber a primeira carta de substituição, viu que não tinha possibilidade de fazer um

jogo. O dez lhe devastou as esperanças. A carta seguinte, porém, foi um dois, e a terceira, também umdois, fez renascerem as suas esperanças. Três dois! Havia cinco combinações capazes de bater um terno,sem contar os ternos de cartas mais altas. Em todo caso, era melhor que um ou dois pares.

Eu quero uma carta disse Marianne.As esperanças de Desmond se arrefeceram outra vez. Só uma carta! Olhou para ela. Onde aquela

menina aprendera a manter uma expressão tão neutra? Não passava de uma criança, ou melhor... de umamoça, ele tratou de corrigir: não só para aliviar a consciência do que estava em jogo, mas porque

Marianne já não era uma menina, uma escolar; era uma mulher feita. E estava com o destino dele nasmãos. Sabemos bem o que está em jogo, Srta. Trenton. É tolice blefar. Eu tenho uma trinca de dois

disse ele, colocando as cartas na mesa.Marianne estudou com cuidado o que tinha na mão, porém não abriu o jogo. O que você tem? perguntou Desmond, impaciente.Ainda calada, Marianne o fitou com um leve, enigmático e irritante sorriso. Uma a uma,

começou a pôr as cartas na mesa. A primeira foi uma dama de paus. Desmond teve medo. A segunda,um cinco, que o deixou mais aliviado. A terceira foi o quarto dois; e o cinco, ele notou com umsobressalto, era de paus, como a dama. Um flush bateria sua trinca. Cinco cartas de paus lhearrebatariam a moça e Kingsbrook, o único refúgio que havia encontrado na vida.

A quarta carta que Marianne pôs na mesa foi o oito de paus.Desmond sentiu que o tempo havia parado. Não sabia se teria energia suficiente para recomeçar,

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mas o suspense de não saber era capaz de enlouquecê-lo.Marianne segurou a última carta entre o polegar e o indicador e, misteriosamente, bateu com ela

no rosto.CAPÍTULO DEZESSETE

No dia 26 de dezembro, Bernie Brewster . beijou o rosto da noiva e tomou o coche de aluguel

que o levaria a Londres para resolver um negócio de seu pai. Prometeu voltar em uma semana. No máximo em dez dias, meu amor. Estamos fechando um negócio, e as pessoas sempredemoram um pouco para se separar do dinheiro. Pode ser que eu fique uns dias a mais, ou seja, umaeternidade longe de você.

Volte logo. Mamãe está ansiosa com o casamento disse Raquel.Bernie aproximou os lábios de sua orelha. E eu estou ansioso com a noite de núpcias. Embora Raquel já não corasse a cada palavra deBrewster, havia coisas, como aquela, que lhe tingiam o rosto de vermelho. Oh, Bernie! exclamou em voz baixa.Ele, então, beijou-a outra vez e embarcou. O veículo tinha lugar para seis passageiros, mas

parecia lotado com apenas cinco.

Muito antes de chegar a Londres, Bernie, sociável como sempre, já sabia o nome de todos oscompanheiros de viagem, suas ocupações e o que iam fazer na capital. Os Forsyth, iam se despedir dofilho, que ia embarcar como oficial da Marinha Real. O Sr. Hardy, um comerciante de cavalos, ia vender um árabe de dois anos na periferia da cidade.

O melhor cavalo do mundo, meu rapaz. A quarta passageira era uma artista. Srta. Mellifluous Chase apresentou-se, com seu forte sotaque interiorano. Vou fazer 

fortuna nos palcos londrinos, isso eu vou! Sei cantar, danço um pouco e sou capaz de representar qualquer personagem de comédia.

Podia ser que Brewster tivesse mencionado o seu negócio em Londres, mas o principal tema detoda conversa era o seu iminente casamento com a Srta. Raquel Tamberley.

Demorava dois dias para se chegar a Londres. A carruagem ia parando em cada povoado. A tardeainda estava começando quando eles chegaram à capital. Entusiasmado como um escolar, Brewster saltou do coche para tratar logo do negócio e voltar o mais depressa possível ao braços da amada.

O pai de Bernie fabricava chapéus. Vendia-os não só em Reading como em Londres. Ele acabarade saber que um carregamento atrasado de pele de castor desembarcaria em Liverpool nos primeiros diasdo ano. Bom negociante como era, viu uma excelente oportunidade de lucro, caso conseguisse levantar ocapital para comprar as peles e, com ela, fabricar chapéus, que seriam vendidos no inverno, quando oshomens sentiam frio na cabeça e não se importavam com o preço do castor. O problema, sem dúvida, erao capital. Assim, o Sr. Brewster precisou viajar imediatamente a Liverpool, com o dinheiro de quedispunha, para reservar a pele até que o financiamento fosse obtido. Era, pois, tarefa de Bernie obter odinheiro. O Sr. Brewster garantiu ao filho que a Chapéus Brewster Ltda. era uma empresa sólida o

bastante para conseguir um empréstimo bancário apenas com uma carta de seu proprietário. Outroproblema, contudo, era a urgência da transação. Bernie não tinha exagerado ao mencionar a dificuldadede se tirar dinheiro dos ricos e poderosos. Haveria cheques, verificações e muitas cartas entre Londres,Reading e Liverpool.

Eles só guardarão a mercadoria para mim até a primeira quinzena de janeiro, meu filho. Sevocê não conseguir concluir a tempo a transação com o banco, terá de recorrer a um agiota.

Bernie ouviu com atenção e assentiu. Participava dos negócios do pai quase desde o dia em quenascera e conhecia bem os sinuosos caminhos que era preciso percorrer para tratar de assuntosfinanceiros.

Com essas instruções, portanto, chegou à capital e foi direto ao Banco Nacional de Londres.Descreveu o negócio, mostrou a carta do pai, declarou o montante necessário e explicou a urgência da

transação. Foi levado ao Sr. Biggins, gerente do setor de empréstimos. Depois de lhe apertar a mão,Bernie explicou tudo outra vez, mostrou a carta, escreveu a importância requerida e solicitou ao

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funcionário a máxima urgência.Pensativo, o Sr. Biggins leu a carta do Sr. Brewster. Sra. Riley, quer fazer o favor de chamar o Sr. Yarnell?A Sra. Riley saiu. O Sr. Biggins ofereceu um charuto a Bernie e se pôs a discutir com ele a

situação na índia. Pouco depois, o Sr. Yarnell entrou no pequeno escritório inundado de fumaça. Ah, Sr. Yarnell. Este é o Sr. Brewster.

Sim. Claro. O recém-chegado se pôs a ouvir em silêncio a conversa sobre a colônia, atéque Bernie começasse a achar desnecessária a sua presença. Sr. Brewster, com toda certeza, o Banco Nacional de Londres emprestará à Chapéus Brewster 

Ltda., de Reading, a quantia solicitada disse por fim o Sr. Biggins. Já estava ficando tarde.- Excelente! exclamou Bernie, levantando-se de um salto e estendendo a mão para o

homem. Vamos discutir isso na reunião da diretoria amanhã disse o bancário, alheio ao entusiasmo

do rapaz. Sim, sem dúvida acrescentou o Sr. Yarnell. Em seu ingênuo otimismo, Bernie esperava

que o negócio fosse realizado aquela mesma tarde, e também que conseguiria transporte e começaria aviagem de retorno ao anoitecer. No entanto, saiu do Banco Nacional de Londres para passar uma longa e

solitária noite num quarto de hotel.Na manhã seguinte, bem cedo, dirigiu-se apressado à imponente sede do banco. Muito bem, tenho boas notícias, Sr. Brewster disse Biggins. O banco está disposto a lhe

emprestar o dinheiro assim que tivermos uma resposta de Liverpool. Precisamos da confirmação dovalor das peles para   conceder um empréstimo desse vulto.

Claro... - respondeu Bernie. Pôs o chapéu na cabeça e saiu do banco.Uma carta a Liverpool e a resposta demoraria pelo menos uma semana, e quem podia saber que

outro adiamento o Sr. Biggins inventaria depois? Bernie teria de obter o dinheiro com um dos agiotas dacidade e pagá-lo assim que recebesse o empréstimo do banco.

Se você precisar recorrer a um agiota dissera-lhe o pai , há alguns anos tomei dinheiroemprestado de um homem chamado Horace Carstairs. Ele deve se lembrar.

O Sr. Brewster lhe dera o endereço de Carstairs, mas só agora, que precisava achar o lugar,Bernie se deu conta de que não conhecia a região.

Está perdido, rapaz?Um jovem estava parado na escadaria do Banco Nacional. Era um dos muitos rapazes que

ficavam do lado de fora da instituição em busca de uma oportunidade de ganhar uns trocados. Procuro a rua East Coventry.O rapaz, que não chegava aos vinte anos, meneou a cabeça. Quer dizer que não conseguiu o empréstimo... Bernie olhou surpreso para ele e sorriu. Estavaclaro que era tolice tentar esconder alguma coisa do desconhecido. Vou obter o empréstimo, mas preciso do dinheiro hoje.

Então vai buscá-lo e está precisando de um guia que o leve. E esse guia é você? O jovem tirou o chapéu. Tom Moffitt. Conheço os agiotas como a palma de minha mão. Claro, nada é de graça, meu

velho.Bernie concordou com um gesto e tirou do bolso um punhado de moedas. Começou a contá-las. Qual é o preço? Isso basta disse Tom, apontando para todo o dinheiro.Bernie sacudiu a cabeça, mas lhe entregou as moedas, que perfaziam quase uma libra.Quarenta minutos depois, na ruazinha suja a que chegaram por um caminho tortuoso que Bernie

duvidava repetir sozinho, ele concluiu que o dinheiro tinha sido bem empregado. Nunca teria encontradoaquele lugar e, olhando a sua volta, perguntou-se como seu pai o havia encontrado. O bairro era feio e

pobre, não dava a impressão que atrás daquelas paredes carcomidas houvesse dinheiro disponível.Talvez o tal Sr. Carstairs tivesse se mudado dali nos anos posteriores à data em que fizera o empréstimo

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a seu pai. Esta é a rua East Coventry, Sr. Moffitt? Isso mesmo, número 16. Bem, então deve ser este o lugar.Ficou olhando para o prédio escuro e decadente e, quando se voltou para dizer alguma coisa,

descobriu que seu guia já tinha ido embora. Lembrando-se da importância da transação, Bernie decidiu

que não lhe restava senão tentar obter o empréstimo. Há alguém em casa?! gritou da rua. A seguir, subindo a escada, espiou pela portaentreaberta. Há alguém aí?

O que você quer? responderam do alto. Bernie voltou para a rua e olhou para o segundoandar, onde um postigo estava aberto. Estou procurando... O quê? gritou a voz, interrompendo-o. Eu vou subir.Bernie empurrou a porta e entrou. Subiu uma escada escura junto à parede. Lá em cima,

encontrou outra porta bem fechada. Bateu. Quem é? gritou a mesma voz rouca e áspera do lado de dentro.

Meu nome é Bernard Brewster. Acho que o senhor conhece o meu... Não conheço nenhum Bernard Brewster. Não, senhor, mas eu estava dizendo... acho que meu pai e o senhor fizeram um negócio há

alguns anos...A porta estreita se abriu. Negócio?Apareceu um homem muito magro e feio, com um nariz que parecia um bico. Já calvo, tinha a

cabeça pontilhada de feridas, o rosto sujo e a roupa amarrotada. Deixou escapar uma baforada de ar fétido.

Sr. Carstairs? perguntou Bernie, esperando que não fosse aquele o homem que estavaprocurando.

Horace Carstairs, a suas ordens. Como eu disse, o senhor e meu pai fizeram um negócio há alguns anos, e agora ele se

encontra numa situação... provisória, que exige uma transação parecida... Está querendo dinheiro disse Carstairs, abreviando a explicação do rapaz. Sim, senhor. Entre. Sente-se. Horace juntou um monte de papéis e roupa suja e jogou tudo a um canto

da sala. Brewster... Brewster... Chapéus, se não me engano. Uma fábrica de chapéus. Eu me lembro. Carstairs examinou Bernie com atenção. Reparou no corte elegante de seu terno, na boa qualidade dotecido. E não lhe custou concluir que era de família rica. Pelo jeito, Brewster se deu muito bemdepois que lhe emprestei dinheiro. É seu pai?

É. Ótimo. Você tem o narigão e a cara gorda dele. Ouça, Sr. Carstairs, estou aqui a negócios. Talvez tenha vindo ao endereço errado. O senhor 

não tem um escritório? Este é o meu escritório, menino. E verdade que não estou tão bem quanto a Chapéus

Brewster, mas pode ser que melhore de vida. Basta uma única chance. Talvez seja melhor eu voltar numa hora mais conveniente. Sente-se! Bernie obedeceu. Eu não queria incomodá-lo, senhor. Você não veio porque precisa? Pois vamos lá. Sinceramente, Sr. Carstairs, não precisa se incomodar, não é nada urgente. Só estou

precisando de um pouco de dinheiro. Foi bobagem vir até aqui. Tenho um amigo, o Sr. Desmond...  Calou-se de repente.

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De fato, ele tinha um amigo. Embora ensinasse literatura na universidade, Desmond era dono deuma bela propriedade e sabia que sua família tinha muito dinheiro. Por que não havia pensado nissoantes? Talvez ele pudesse lhe emprestar a quantia.

Desmond? perguntou Carstairs, com súbito interesse. Por acaso é Peter Desmond, deKingsbrook?

Ele mesmo. É meu professor na Universidade de Reading.

Bernie estava surpreso. Como era possível que aquele homem conhecesse alguém como oprofessor Desmond? Engraçado. Ele resolveu se tornar respeitável. Ou talvez só esteja representando um papel. Sr. Carstairs, não creio que se trate da mesma . pessoa. Peter Desmond, de Kingsbrook, um vilão que vive explorando os limites da lei, mas que até

agora teve muita sorte.Bernie hesitou. Sim... O Sr. Desmond é o dono de Kingsbrook, mas o que ele tem não é sorte, apenas

inteligência e disciplina.Carstairs soltou uma gargalhada. Quer dizer que isso agora se chama inteligência e disciplina? Ora, ora, duvido que Desmond

tenha abandonado a mesa de jogo. Deve ter descoberto um novo modo de ganhar dinheiro. Talvez estejafornecendo acompanhantes femininas aos estudantes.

Bernie se sentia ao mesmo tempo enojado e fascinado por aquele homem torpe. Se está insinuando o que acho que está, Sr. Carstairs, só podemos estar falando de duas

pessoas diferentes. Bem, foi um prazer conhecê-lo. Desculpe-me havê-lo incomodado. Levantou-se ese virou para a porta, porém Carstairs o deteve.

Sente-se!Bernie se voltou para protestar e viu com surpresa que o agiota estava apontando uma arma para

ele. Eu o mandei sentar-se!Bernie se sentou. Seria trágico morrer às vésperas de seu casamento.Quando Marianne segurou a última carta, com o polegar e o indicador, e a aproximou do rosto,

ouviu-se uma forte batida à porta de entrada. Ela e Desmond tiveram um sobressalto. Passava de meia-noite, estava escuro e muito frio. O ano apenas começava e, devido ao drama que se desenrolava nabiblioteca, nenhum deles esperava que outra coisa viesse perturbá-los.

O ruído persistiu. A Sra. River gritou de seu quarto: Sr. Desmond! É o senhor, Sr. Desmond? Ele se levantou. Um momento, Marianne. Desmond olhou para a carta que Marianne continuava ocultando,

mas ela não a abriu.A Sra. River tornou a chamar. O barulho continuava lá fora. Sr. Desmond!

Já vou, Sra. River! Pode voltar para a cama. Correu para o hall. Marianne ouviu-o destrancar oferrolho. As fortes batidas cessaram. Ela colocou a carta na mesa, voltada para baixo, e se

aproximou da porta da biblioteca. Que história é essa de bater assim no meio da noite? Desmond perguntava.Embora ele tivesse levado consigo um dos lampiões, Marianne não reconheceu o recém-chegado. Desculpe-me incomodá-lo disse o estranho, levando a mão ao chapéu , mas tenho

ordens expressas de entregar-lhe isto ainda hoje. Disseram-me que o senhor me receberia a qualquer hora.

O homem tirou do bolso um papel dobrado. Segurando o lampião com uma mão, Desmond odesdobrou com a outra e o aproximou da luz. Olhou para o mensageiro.

Deram-lhe isto hoje? Esta tarde, senhor. Não foi fácil chegar aqui.

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O homem enxugou a boca, e Marianne deduziu que pelo menos uma das coisas que o haviaretido no caminho fora uma visita a uma taverna.

Pela mudança de expressão e de modos de Desmond, ficara evidente que a mensagem continhanotícias graves.

Você pode me levar? Desmond perguntou. É para isso que estou aqui respondeu o desconhecido.

Então, entre. Feche a porta. Eu só vou... Desmond puxou o homem para dentro e fechou aporta, mas ficou parado, olhando confuso ao seu redor, esforçando-se para se livrar da tontura que oálcool provocava.

O senhor vai buscar alguma coisa? perguntou o homem com solicitude. Não. Não. Não quero perder tempo respondeu Desmond. Meu paletó... espere aqui. Já

volto. Ia subir a escada, mas, voltando-se, dirigiu-se à biblioteca.Marianne recuou para lhe dar passagem. O que aconteceu, senhor? Preciso cuidar de uma coisa. Não é nada. Não se preocupe. Não me preocupar?! exclamou, incrédula. Peter, o que é isso? Apontou para o

bilhete que ele ainda levava na mão.

Um negócio. Só um negócio. Desmond tirou uma carteira de couro da gaveta daescrivaninha e nela guardou o bilhete. Depois, abrindo outra, retirou um surpreendente maço dedinheiro, o qual também guardou. Vou precisar de meu paletó, Marianne.

Aonde você vai? A Londres. Agora?! Devo estar de volta dentro de um ou dois dias. Mas... Nada de perguntas pediu ele, detendo-se apenas para fitá-la nos olhos. Não tenho tempo

nem respostas. Não agora.Marianne o seguiu quando Desmond ia sair da biblioteca e quase lhe pisou os calcanhares

quando ele se deteve diante da mesa de jogo e olhou para as nove cartas abertas e a única fechada.Estendeu a mão para virá-la, porém Marianne colocou o dedo sobre ela, prendendo-a com a face parabaixo.

Eu a mostrarei quando você voltar. Tudo será diferente quando eu voltar. O importante é que volte.Com o vestido rasgado, ela se colocou atrás da porta da biblioteca, oculta aos olhos do

desconhecido. Ouviu o Sr. Desmond pegar o pesado sobretudo no cabide do hall, abrir a porta e fechá-laatrás de si. Correndo à janela, afastou a cortina para ver a luz da lanterna que já ia diminuindo naescuridão, e enfim sumiu.

CAPÍTULO DEZOITO

O Sr. Desmond não está disse a Sra. River na manhã seguinte, ao ver Marianne descer aescada. Partiu no meio da noite sem dar explicações sobre o tumulto. Você também ouviu o barulho,imagino. Em plena madrugada... Pareciam estar querendo derrubar a porta!

Na verdade, foi pouco depois de meia-noite corrigiu Marianne. Quer dizer que ouviu tudo de seu quarto? Da biblioteca. Da biblioteca?!

O Sr. Desmond e eu estávamos... Oh, claro. Você e o patrão estavam esperando a passagem do ano adiantou-se a mulher.  

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Mas, afinal, que barulho foi aquele? Quem estava aí, acordando toda a vizinhança? E onde está o Sr.Desmond?

Não sei. Não sabe qual foi o motivo de tanto tumulto ou não sabe quem o causou, senhorita? Nem uma coisa nem outra. Não vi quem era, e o Sr. Desmond não me deu nenhuma

explicação ao sair.

A governanta soltou uma gargalhada. É típico dele!Marianne preferiu calar-se. Em silêncio, pegou um pedaço de pão do cesto, a carne agora fria e

seca, o se voltou para o hall. E você, aonde vai? A biblioteca. Vai comer lá? Não seja tola. Venha, sente-se aqui. Deixe para se trancar com seus livros

depois que Candy tiver limpado a biblioteca. Ela não vai limpar nada! gritou Marianne. Não? Não vai limpar a biblioteca? Como assim, menina? Há um jogo de carta que não pode ser alterado disse Marianne, mudando o tom de voz.  

A mesa pode ser levada de volta para junto da parede, mas ninguém deve mexer no baralho. Precisa ficar como está.

Até quando? Até a volta do Sr. Desmond. É um... truque que quero lhe mostrar, e as cartas precisam ficar 

onde estão para que dê certo. Não sabemos quando voltará. Não vai demorar. Mas, quando ele chegar, o baralho deve estar onde está. Fui clara? Sem dúvida. Eu tenho bons ouvidos. Candy! chamou, de repente, causando um sobressalto

em Marianne, que deixou cair um pouco de suco no chão. Acho que vou comer aqui mesmo disse, olhando para a sujeira. E foi para a mesa. Podia

examinar as cartas depois do café, pensou.Na verdade, examinou-as várias vezes durante o dia.A precoce escuridão do inverno invadiu Kingsbrook, e Marianne mandou Candy acender os

lampiões em todas as salas do andar térreo, de modo que a luz pudesse ser vista em todas as janelas.Anoiteceu, e Desmond não retornou.A Sra. River entrou na biblioteca, onde Marianne estava lendo Antígona, de Sófocles. James, Candy e eu vamos dormir. Está bem respondeu Mariaflne, impaciente. Quer que deixe todas as luzes acesas? Não. Pode apagá-las. Já que todos vão dormir, acho que também vou.Desmond não voltou no dia seguinte, nem no outro.

Passou-se a primeira semana do Ano-Novo. As aulas, na universidade, deviam começar nasemana seguinte, e as cartas continuavam intactas na biblioteca.Marianne se sobressaltava com o ruído de toda carruagem que passava e, todos os dias, apressava

a Sra. River para que fosse buscar a correspondência.Uma semana depois da partida de Desmond, enfim recebeu uma carta, se bem que não dele. Era

de Rachel Tamberlay."Querida Srta. Trenton.Não sei se você pode me ajudar, mas o Sr. Brewster viajou há quase quinze dias, e estou muito

preocupada. Você e Bernie eram muito amigos, e imaginei que talvez soubesse o que o está retendo emLondres durante tanto tempo sem que ele me mande uma explicação. Talvez minha ansiedade se dêdevido a meu iminente casamento. Espero que seja só isso... Mas gostaria muito de receber a palavra de

conforto, a explicação ou o conselho que você puder me enviar. Escreva assim que possível. Estou numaterrível agonia, sem saber o paradeiro de meu querido Bernie.

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Sinceramente, Rachel Tamberlay."Afetada pelas palavras empregadas por Rachel, Marianne releu a carta várias vezes. "... viajou há

quase quinze dias, e estou muito preocupada"; "... o que o está retendo em Londres durante tanto temposem que ele me mande uma explicação"; "Estou numa terrível agonia..."

Marianne podia ter escrito a mesma carta a Rachel Tamberlay. O que significava aquilo? Ascircunstâncias do desaparecimento do Sr. Brewster e do Sr. Desmond tinham muito em comum para ser 

apenas uma coincidência.Estava olhando, preocupada, para o papel quando ouviu uma batida à porta da frente, que a Sra.River apressou-se a atender. A julgar pelo tom de alegre surpresa em sua voz, a governanta deviaconhecer quem acabava de chegar.

Pouco depois, apareceu à entrada da biblioteca e a escancarou, dando passagem a uma senhoradistinta que aparentava uns cinqüenta anos.

Você é a Srta. Trenton? indagou, aproximando-se e estendendo-lhe a mão. Eu sou aSra. Desmond, mãe de Peter.

Sra. Desmond?! Oh, é uma honra... E uma surpresa. Marianne apertou a mão da belamulher. Seu filho não está. Tenho certeza de que ele não esperava a sua chegada, do contrário, nãoteria viajado.

Não, eu sei que meu filho não estava me esperando. Não venho a Kingsbrook desde que Peter a herdou. Havia conflitos entre ele e o pai, embora eu esperasse que... A Sra. Desmond seinterrompeu.

A senhora sabe onde o Sr. Desmond... Peter... está agora? perguntou Marianne,esperançosa. Talvez aquela senhora pudesse lhe dar uma resposta.

A Sra. Desmond, que fazia graves restrições morais quanto ao estilo de vida do filho e quantoàquela jovem que ele chamava de "pupila", preferiu deixar de lado as acusações que tinha guardadas.

Você não sabe, senhorita? Eu esperava que pudesse... Uma vez mais, ela hesitou einterrompeu-se. É que a Srta. Morely está conosco há um mês, e Peter não mandou notícias de suafamília nem nos disse o que fazer com ela. Escrevi para o endereço de Reading e não recebo resposta hámais de quinze dias..

A Srta. Morely?A Sra. Desmond estava por demais preocupada naquele momento para notar o curioso e

inconsciente tom de ciúme na voz de Marianne. Havia ocasiões em que Peter viajava sem avisar ninguém e passava meses fora. A Sra. Desmond podia estar preocupada, mas de modo algum surpresa.Peter andava tão mudado, suas ações nos meses recentes tinham sido tão generosas, que sua mãecomeçara a alimentar a esperança de uma reconciliação entre seu marido e o único filho. Contudo, Peter tornara a desaparecer sem avisar e, pior ainda, deixando uma daquelas "moças em dificuldade" ainda sobseus cuidados.

A Srta. Helen Morely é uma das moças que meu filho tem ajudado. A senhora sabe sobre essas jovens?!

Na verdade, Desmond nunca falara muito nos pais, de modo que Marianne não tinha senão umavaga ideia de quem eram; porém, acabando de conhecer a Sra. Desmond, não podia acreditar que aquelagraciosa dama apoiasse atitudes tão sórdidas. Fossem de quem fossem, inclusive do filho.

Claro que sim. Quer dizer, pelo menos desde que ele me escreveu pedindo ajuda.Marianne ficou boquiaberta. A senhora tem ajudado o Sr. Desmond? Faço o possível. Claro que é Peter quem concebe toda a operação. Eu apenas providencio

alojamento para as moças até que seus familiares possam ir buscá-las.Marianne se deixou cair no divã. A Sra. Desmond se sentou a seu lado. O caso da Srta. Morely ainda não foi resolvido, por isso você pode imaginar o quanto estou

surpresa com a viagem de meu filho. Sem deixar recado, sem tomar providências.

Marianne encarou-a. Sra. Desmond, o que acha que seu filho faz com essas moças que a senhora hospeda?

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Eu sei o que ele faz com elas. Meu querido filho se encarrega de encaminhar essas pobrescriaturas aos familiares ou amigos, resgatando-as de uma vida de pecado e degradação. Falou em tomtriunfante,   sugerindo   que   aquelas   ações,   mais   que   a   salvação   de   algumas   moçrepresentavam a própria salvação de Peter.

Marianne ficou um momento calada. É mesmo? disse, com a assombro.

Ora, é claro! Mas eu pensei... Você não era... Desculpe-me, Srta. Trenton, mas imaginei quePeter a tivesse trazido para cá a fim de lhe oferecer a mesma proteção.Marianne respirou fundo. Sim disse por fim. Foi o que ele fez.A Sra. Desmond mudou de assunto, preferindo voltar a falar sobre o paradeiro do filho, sem

saber que a vida de Marianne acabava de se redefinir por completo. Ela agora estava livre das suspeitasque a atormentavam; sentia o coração e a mente, enfim, harmonizados.

Quer dizer que você não tem ideia de onde Peter se encontra?Marianne sacudiu a cabeça.Distraída, a Sra. Desmond havia tirado uma das luvas, agora, começava a colocá-la outra vez. Estou mesmo confusa. Vim na expectativa de encontrar Peter, mas, se ele não está aqui...

Marianne se deixou cair no divã. A Sra. Desmond se sentou a seu lado. O caso da Srta. Morely ainda não foi resolvido, por isso você pode imaginar o quanto estou

surpresa com a viagem de meu filho. Sem deixar recado, sem tomar providências.Marianne encarou-a. Sra. Desmond, o que acha que seu filho faz com essas moças que a senhora hospeda? Eu sei o que ele faz com elas. Meu querido filho se encarrega de encaminhar essas pobres

criaturas aos familiares ou amigos, resgatando-as de uma vida de pecado e degradação. Falou em tomtriunfante,   sugerindo   que   aquelas   ações,   mais   que   a   salvação   de   algumas   moçrepresentavam a própria salvação de Peter.

Marianne ficou um momento calada. É mesmo? disse, com a assombro. Ora, é claro! Mas eu pensei... Você não era... Desculpe-me, Srta. Trenton, mas imaginei que

Peter a tivesse trazido para cá a fim de lhe oferecer a mesma proteção.Marianne respirou fundo. Sim disse por fim. Foi o que ele fez.A Sra. Desmond mudou de assunto, preferindo voltar a falar sobre o paradeiro do filho, sem

saber que a vida de Marianne acabava de se redefinir por completo. Ela agora estava livre das suspeitasque a atormentavam; sentia o coração e a mente, enfim, harmonizados.

Quer dizer que você não tem ideia de onde Peter se encontra?Marianne sacudiu a cabeça.Distraída, a Sra. Desmond havia tirado uma das luvas, agora, começava a colocá-la outra vez.

Estou mesmo confusa. Vim na expectativa de encontrar Peter, mas, se ele não está aqui... Sra. Desmond, esta é a casa de seu filho. Sei que ele gostaria que ficasse. Preciso ir a Reading,mas a Sra. River ficará muito contente na sua companhia e, sem dúvida, o Sr. Desmond vai voltar amanhã ou depois e há de querer vê-la.

Oh, meu bem, eu nunca imaginei... começou a dizer, resistindo um momento, mas por fimaceitando o convite.

Marianne chamou a Sra. River, que, como previra, ficou encantada com a ideia de hospedar aSra. Desmond em Kingsbrook. E não se mostrou surpresa quando Marianne pediu:

Diga a Rickers que estou indo a Reading. Agora, senhorita? Imediatamente.

Tanto ela quanto a Sra. Desmond viram, admiradas, Marianne sair correndo da sala, chamandoCandy e mandando James avisar Rickers.

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Embora ocupado com o conserto de uma cerca, o cocheiro ainda estava com o cavalo atrelado àcarruagem no momento em que, seguida de Marianne, Candy desceu com a mala. Marianne tinhaarrumado a bagagem, sem prestar atenção no que ia levar, nem notar o estilo ou a cor das roupas,tratando apenas de reunir todo o necessário para viajar.

Menos de meia hora depois, Marianne, a Sra. Desmond, a Sra. River e os criados estavamreunidos à porta.

Srta. Marianne, o que significa isso? Aonde está indo? perguntou a governanta ao mesmotempo que olhava para a mãe do patrão. Preciso ir a Reading visitar uma amiga. Tenho esperança de que ela ou seu noivo saibam do

paradeiro do Sr. Desmond. Escreverei assim que tiver notícias.Nenhuma das duas ficou tranqüilizada com a vaga promessa. Tampouco Marianne. Mas ela não

podia ficar em Kingsbrook, esperando novidades sobre o homem que amava. Tinha o pressentimento deque o que estava impedindo o retorno de Bernie à Srta. Tamberlay era a mesma coisa que retinha Peter.

Sorriu para a Sra. Desmond e a Sra. River e lhes pediu que não se preocupassem.Rickers puxou as rédeas.Anoitecia quando chegaram a Reading.A Srta. Tamberlay morava com uma tia, perto do campus, mas, como Marianne só estivera lá

uma ou duas vezes com Bernie, não tinha certeza de que encontraria o lugar, no escuro, em plenoinverno.

Tente aquela casa ela gritou duas vezes para Rickers, antes de encontrarem a residência daSra. Cortaine.

Quando o cocheiro perguntou e a Sra. Cortaine respondeu que a casa era aquela, Marianne viuRachel descendo a escada.

Srta. Marianne! O que está fazendo aqui? perguntou-lhe a amiga. Recebi a sua carta. O Sr. Brewster não voltou? Não, mas não pedi que viesse a Reading. Como lhe disse, deve ser uma tolice minha. Duvido. O Sr. Desmond também desapareceu. O quê?!Marianne contou sobre o mensageiro que chegou de madrugada e da imediata partida de

Desmond, afirmando que só um caso de extrema urgência o teria afastado naquele momento. Foi há mais de uma semana. Não recebemos notícia do Sr. Desmond desde então. E, esta

manhã, a Sra. Desmond, sua mãe, chegou a Kingsbrook. Ela também não sabe do filho e estavaesperando que ele entrasse em contato com ela. Acho que há uma conexão entre o misteriosodesaparecimento do Sr. Desmond e o de Bernie   explicou Marianne, sem ocultar sua preocupação.Rachel a levara à sala de estar. Marianne segurou a mão de Rachel, e agora as duas estavam lado a ladono divã.

Não vejo como a sua situação possa ter vínculo com a minha, Marianne. A viagem de Bernienão tem mistério algum. Seu objetivo era simples, e ele me avisou que podia demorar alguns dias. Claro,

eu não esperava que fossem mais de duas semanas. Acho que ele também não. Mas foi negociar umempréstimo para o pai, que está em Liverpool, para comprar um estoque de pele de castor. E ele não falou em Desmond ao partir? O negócio nada tem a ver com a faculdade nem com sua amizade com o Sr. Desmond ou com

você.Marianne soltou a mão de Rachel e se voltou para olhar para o outro lado da sala. O Sr. Brewster viajou há quinze dias, não? Isso mesmo. Mas não lhe escreveu. Não é estranho? Eu nunca seria capaz de imaginar que ele ficasse duas

semanas sem lhe escrever. Na verdade, duvido que seja capaz dessa atitude. Eu não tinha pensado nisso disse Rachel. Estava com a voz trêmula, e, por trás das lentes

dos óculos, Marianne viu lágrimas em seus olhos. O Sr. Desmond também não deu notícias. Claro, isso nada tem de extraordinário, mas ele não

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escreveu para a Sra. River, o que é tão estranho quanto o Sr. Brewster esquecer-se de você. Rachelcontinuou séria.

Bernie não me esqueceu. Não. Não a esqueceria disse Marianne, pensativa. Do mesmo modo, o Sr. Desmond não

se ausentaria agora sem se comunicar com a mãe. Então, eu estava certa, não? Aconteceu alguma coisa...

Na verdade, não sabemos. Nem sequer se Bernie obteve o empréstimo. Isso nós podemos saber animou-se Rachel. Bernie me disse o nome do banco...  Levantou-se e se pôs a vasculhar as gavetas de uma pequena escrivaninha. Pouco depois, voltou com umpedaço de papel. Banco Nacional de Londres!

Marianne pegou o papel e leu as três palavras. Ótimo. Irei a esse banco para ver o que eles têm a dizer. Vai a Londres sozinha? Por que não escrevemos para lá? sugeriu Rachel, tímida. Não posso confiar numa carta. Já me cansei de esperar que escrevam para decidir meu futuro.

CAPÍTULO DEZENOVE

Ficou decidido que Marianne dormiria na casa da Sra. Cortaine. Nada podia fazer aquela noite e,no dia seguinte, seria mais eficiente se estivesse descansada e bem alimentada. Mas decidira viajar demanhã bem cedo. E sozinha. Porém, Rachel mostrou-se bastante determinada, para sua surpresa.

Não vou ficar esperando aqui enquanto você tenta descobrir o que foi feito do meu noivo. O que está dizendo? Que também estou ansiosa para encontrar esses cavalheiros, e você pode precisar de ajuda.Marianne fingiu esboçar um protesto, mas não tardou a ceder, certa de que se sentiria mais

segura nos sinistros becos de Londres tendo alguém a seu lado. Sinistros becos de Londres? surpreendeu-se Rachel. Você disse que íamos ao Banco

Nacional. Isso mesmo concordou Marianne, muito embora sua voz sugerisse perigo.A Srta. Tamberlay riu, nervosa. Esperava que a colega estivesse brincando. Mas tanto ela quanto

Marianne haveriam de descobrir que Londres tinha, de fato, becos muito sinistros.Rachel contou à tia que a Srta. Trenton era uma velha e querida amiga e a havia convidado a

passar uns dias em Londres. A Sra. Cortaine consentiu depois de alguma hesitação.Assim, as jovens tomaram uma carruagem de aluguel. Mais reservadas que o Sr. Brewster,

trocaram poucas palavras com os companheiros de viagem. Despediram-se sem saber seu nomes eperderam a oportunidade de ficar conhecendo um dos maiores escritores da época.

Ao desembarcar, Rachel pegou o papel que Bernie havia deixado, e as duas só precisaram tomar 

outro coche para ir ao banco. Em vinte minutos, o cocheiro as deixou no imponente edifício do BancoNacional de Londres. De braços dados, elas empurraram as pesadas portas e entraram. Aproximaram-sede uma escrivaninha onde se lia "Empréstimos" numa placa.

Pois não? disse-lhes o pálido jovem ali sentado. Que desejam? Gostaríamos de saber se o Sr. Bernard Brewster obteve um empréstimo neste banco disse

Marianne, acreditando que receberia uma resposta.O rapaz olhou para as duas e perguntou: Desculpe-me. Isto tem a ver com... o quê? Com um empréstimo que o Sr. Bernard Brewster veio pedir. E com quem vocês marcaram entrevista? Eu não sabia... Nós não sabíamos... gaguejou Marianne.

Tendo estabelecido sua autoridade, o jovem a interrompeu: Vocês precisam falar com o Sr. Henner. Apontou para a extremidade do enorme salão,

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onde estava sentado outro jovem muito pálido.Marianne e Rachel foram falar com o Sr. Henner, o qual, depois de ouvir três vezes a história,

conduziu-as a um escritório. Brewster, Brewster, vamos ver.... Sr. Brener, não e? perguntou ele, examinando uma pilha

de papéis. Brewster repetiu Marianne. Sr. Bernard Brewster.

Não... Aqui não há nenhum Brewster. E melhor conversarem com o Sr. Biggins. E,levantando-se, conduziu-as a outra porta, onde encontraram um homem enorme num escritóriominúsculo. Estas jovens querem informar-se sobre um tal Sr. Brewster.

Sr. Brewster... Sr. Brewster... murmurou Biggins. Chapéus Brewster. O carregamento de pele em Liverpool esclareceu Rachel.Ah, sim, os chapéus Brewster! O que desejam saber? Com um suspiro, Marianne repetiu toda

a história. Sim, claro, o empréstimo foi aprovado anunciou o Sr. Biggins. Oh, compreendo disse Marianne, surpresa. Estava esperando algo mais dramático depois

de tanto trabalho. Agora, tinha a impressão de nada mais poder fazer ali. Obrigada, Sr. Biggins.As duas se entreolharam. De súbito, uma luz se acendeu nos olhos da Srta. Tamberlay, que,

voltando-se, perguntou: O senhor pode me dizer se o empréstimo foi aprovado de imediato? Oh, sim, foi. Com muita urgência. O Sr. Brewster nos falou do prazo exíguo que tinha para

fazer o negócio em Liverpool, e eu mesmo tratei de acelerar as coisas. Uma carta para Reading, umabreve verificação em Liverpool, o encontro seguinte, e o empréstimo foi aprovado. Em menos de quinzedias, garanto.

Rachel olhou para ele, depois se voltou para Marianne. A Srta. Tamberlay me contou que seu noivo pretendia procurar um agiota se não conseguisse

obter rápido o empréstimo. Acreditamos que é o que deve ser feito. Pode nos dizer aonde levou esse cavalheiro? perguntou Rachel, com ansiedade. Bem, senhorita. Dizer eu posso, mas vocês se perderiam ao virar a primeira esquina e, depois,

estariam em perigo, ainda mais com essas bolsas na mão. É melhor eu mostrar o lugar.O rapaz lhes deu as costas, e as duas se entreolharam. Rachel ergueu as sobrancelhas, e Marianne

respondeu com um dar de ombros. Como é, vocês vêm ou não? gritou Tom Moffitt. Sem hesitar mais, as duas o seguiram.Moffitt não tardou a afastá-las das ruas amplas e elegantes das proximidades do Banco Nacional

de Londres. A tarde precoce de inverno já tinha caído, e os lampiões que tudo iluminavam nasimediações começaram a rarear a algumas quadras dali, brilhando na escuridão a intervalos cada vezmaiores.

Afinal, Tom entrou por uma ruela desprovida de iluminação, onde só se notava a luz de velas abruxulear em uma ou outra casa.

Rachel e Marianne iam diminuindo o passo à medida que se aproximavam nos bairros maispobres. Marianne tinha falado nos becos sinistros de Londres, e agora os encontraram.Tom caminhava a passos largos, e logo se distanciou delas. Na verdade, já estava tão adiante, que

Marianne chegou a temer perdê-lo de vista. Estava pensando nisso quando Tom virou uma esquina edesapareceu.

Elas se viram a sós na escuridão; apressaram-se para alcançá-lo, e seus passos começaram aecoar na viela vazia. Foi Rachel quem primeiro chegou à esquina, de onde puderam ver uma rua maisiluminada. Marianne se deteve.

Eu conheço este lugar. Eu... eu... já morei aqui. Você morou aqui? Nesta rua?! Quando meus pais morreram, me tornei pupila de um homem que morava aqui. Havia um

livreiro, que guardava sua carroça nesta esquina, e ali em frente morava uma senhora idosa, a Sra.Daniel disse Marianne, apontando para uma janela às escuras, vazia, na certa havia muito tempo

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abandonada. Ela me xingava sempre que eu passava para ir à livraria. Havia admiração na voz deMarianne. Eram lembranças que não lhe ocorriam fazia anos. Mas naquele tempo a rua não era assim.

Rachel lhe puxou o braço. Venha. Acho que o Sr. Moffitt está nos esperando ali, mas não posso ter certeza com esta

iluminação fraca. Não quero perdê-lo outra vez neste lugar. Sei aonde ele foi disse Marianne, como que em transe. Rua East Coventry, número 16.

O apartamento do segundo andar.Rachel olhou para ela, intrigada, mas não tinha tempo para perguntar como Marianne sabiaaquelas coisas. Mal enxergando o rapaz que estavam seguindo, pôs-se a correr, sem largar a mão daamiga.

Em poucos minutos estavam ao lado de seu guia, ofegantes. Tom apontou para o prédio velhodiante delas. Número 16.

É aí disse. Não chegou a cochichar, mas falou em voz baixa, coisa que as duas moçasimitaram sem perceber.

O que aconteceu quando o Sr. Brewster entrou aí? perguntou Marianne. Nada. Eu o trouxe até aqui, ele me deu uma gorjeta, e fui embora. E o Sr. Brewster ficou? indagou Rachel.

Sim, senhora. Quanto tempo? Não sei dizer. Só sei que viemos até aqui e ele entrou. Quem está aí? Quem está aí embaixo, na rua? Os três se sobressaltaram com a voz que vinha

de uma janela aberta no andar superior. Era áspera, rouca, porém Marianne a reconheceu. Atemorizada,recuou e se agachou na sombra de um beiral, puxando Rachel consigo.

Quem é? Responda! perguntou a voz outra vez. É... começou a dizer Tom Moffitt. Contudo, Marianne agitou as mãos para lhe chamar a

atenção e sacudiu a cabeça quando ele olhou para ela. É Tom Moffitt, senhor. Tom Moffitt? Mestre Moffitt? É você? Trouxe alguém para mim hoje? Hoje não respondeu o garoto. Só estou dando uma volta. Uma volta? Ora! Aposto que está querendo assaltar algum incauto. Se não tem o que fazer,

suba aqui. Tenho um trabalho para você. E não pense que vai ser recompensado como um rei. Se eu lheder uma banana, já será muito mais do que você vale.

Acho melhor... ia dizer o rapaz, porém Marianne o chamou com um gesto, para poder sussurrar-lhe sem ser ouvida lá em cima.

Se você subir e distrair o homem, nós poderemos dar uma olhada sem ser vistas. Ele vai me mandar ir e voltar de Birmingham e me dirá que o ar fresco e o exercício são a

minha recompensa queixou-se Tom. Mas a expressão triste das duas moças lhe amoleceu o coração. Está bem...

O rapaz saiu da sombra outra vez. Estou subindo, patrão. Mas não esqueça que prometi encontrar-me com Bob Killmer sábadoque vem, quando o senhor me mandar fazer aquele serviço.

Com uma careta, Tom abriu a porta e entrou. Marianne e Rachel ouviram os passos pesados dorapaz no corredor, que foram se tornando menos nítidos à medida que ele subia a escada? As duas, aocontrário, entraram pouco depois, erguendo as saias e na ponta dos pés. Cada vez que a madeira doassoalho rangia, paralisavam-se como estátuas".

Ninguém as notou, e afinal elas chegaram à escada. Marianne apontou para cima. Rachel fez quesim. Curvadas e segurando o corrimão, foram subindo devagar, até que seus olhos ficassem no nível doprimeiro andar. Diante delas, estava a porta de um pobre apartamento, que Moffitt tinha deixadoentreaberta de propósito.

Ponha esta carta no correio para mim, menino o homem estava dizendo.

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Marianne sabia que se tratava de Horace Carstairs. O tio Horace. Mais velho e mais magro doque quando ela o vira pela última vez, decrépito como o lugar onde morava, mas inconfundível.

O senhor mesmo pode pô-la no correio da esquina lembrou Tom. Não confio no carteiro daqui. Ponha-a no correio central, na cidade. E não pense em me

ludibriar. Mas vai demorar...

E o que é você faz na vida? Fica perambulando por aí, assustando as pessoas decentes. Válogo e não reclame! De graça não. Faço o serviço, mas não de graça. Está bem, está bem. Tome um penny. Agora, faça o que mandei, e não me engane. Saberei se

a carta foi enviada ou não.Pouco depois, as moças ouviram passos fortes e firmes que se aproximavam da porta. Marianne e

Rachel se agacharam para não serem vistas por Carstairs.Tom ficou parado, olhando ao seu redor. Por fim, localizando os dois vultos agachados, sorriu e

fez um sinal para elas. O que está fazendo? perguntou Carstairs. Quem está aí fora? Outros passos se

aproximaram da porta, arrastados, porém ágeis, de modo que as moças mal tiveram tempo de descer pé

ante pé e esconder-se no patamar antes que ele chegasse até Moffitt. Quem está aí? Ninguém disse Tom.Horace olhou mais uma vez para a escada. Eu ouvi um barulho. Deve ter sido um rato. Carstairs continuou espiando da porta. Pois vou descer com você!Marianne e Rachel tiveram tempo para se levantar, erguer o vestido e descer o último lance,

produzindo apenas um ruído abafado. Esconderam-se debaixo da escada pouco antes de os doisdescerem também.

Chegando ao portão, Carstairs deteve o rapaz. Essa carta tem de ser enviada hoje. Não se esqueça. Hoje repetiu Tom.Carstairs ficou esperando que ele partisse e, como não sabia onde estavam as moças, o rapaz não

teve escolha senão ir embora.Horace ficou um bom tempo à porta, vendo o mensageiro afastar-se; depois tornou a entrar.Marianne e Rachel esperavam que ele subisse outra vez, porém Carstairs contornou a escada e

foi direto para o lugar onde elas estavam escondidas. A escuridão era tal que dificilmente as veriaagachadas junto à parede. Ele se aproximou um pouco mais, resmungou um palavrão, voltou-se, mas,em vez de subir, entrou numa sala em frente.

Marianne e Rachel não se atreviam a sair, mas era possível que fossem descobertas secontinuassem ali. Marianne, com os olhos já adaptados à escuridão, distinguiu uma abertura atrás da

amiga. Esta porta está aberta?Ela conhecia a porta debaixo da escada, que, nos dois anos em que morara naquela casa, sempreestivera bem trancada.

Rachel respondeu num sussurro: Acho que dá no porão.Elas se esgueiraram e deram com outro lance de escadas que descia para o subsolo. Rachel tateou

à procura de um corrimão. Aliviada, segurou um pedaço roliço de madeira e desceu o primeiro degrau,ao mesmo tempo que Marianne encostava a porta. Ficou ainda mais escuro. Tinham descido oito ou dezdegraus quando Rachel tropeçou numa inesperada superfície plana.

A escada continua... Marianne cochichou, por cima do ombro.E, antes que pudesse dizer mais alguma coisa, a porta se abriu com um rangido. Olhando para

cima, reconheceu a silhueta de tio Horace. Segurando Rachel pela cintura, Marianne trouxe-a para juntoda parede.

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Sentiram o movimento do ar quando Carstairs chegou ao patamar, passou por elas e continuoudescendo. Marianne chegou a ver que estava carregando alguma coisa. Devia ser o que tinha ido buscar na outra sala.

Feito um esquelético morcego, Horace Carstairs se sentia em casa nas trevas: conhecia bem olugar, não precisava de vela.

Elas o ouviram chegar ao último degrau, destrancar e abrir uma porta. Pé ante pé, desceram

também. Lá embaixo, com Rachel a suas costas, Marianne colou o ouvido à porta.O que ela não esperava era ouvir vozes.Atreveu-se a abrir um pouco a porta e espiar pela fresta. Teve a impressão de ver um espaço

amplo, com salas, outras portas e colunas de sustentação e divisórias. Não conseguiu avistar Carstairsnem a pessoa com quem ele estava falando, mas notou uma luz fraca a uns dois metros de distância.

Empurrou a porta um pouco mais, para entrar, e sentiu que Rachel a seguia de perto. Avançaramna escuridão. Por fim, conseguiram compreender as palavras e, escondidas atrás de uma divisória,sentiram um calafrio.

Ora, o que mais você quer? Um pedaço de pão basta. Até receber uma resposta de seu pai,preciso mantê-lo vivo disse Carstairs, com uma repugnante gargalhada.

E o meu amigo? perguntou a outra voz, e Marianne sentiu um novo calafrio. Era Desmond.

Isso não importa respondeu Carstairs. Para ele já é tarde demais. Não! A voz de Desmond lhe saiu num gemido. Não quero mais nada enquanto você não

cuidar de Brewster.Rachel chegou a fazer menção de gritar, porém Marianne lhe tapou a boca, obrigando-a a calar-

se. Tudo bem, a água que há é esta. Se ele beber, você não beberá ameaçou Carstairs.Ouviu-se um gemido. Era Bernie. Marianne sentiu lágrimas quentes na mão que ainda segurava a

boca de Rachel. E água. Tome um pouco disse Carstairs. Ouviu-se um ruído, talvez de Brewster mudando

de posição, e depois, os goles ávidos, engasgados, febris. Pronto disse Carstairs , a água quase acabou, e o seu amigo derrubou a metade no chão.

Eu avisei. O pão murmurou Desmond. Não trouxe um banquete para vocês. Se quer o pão, coma. Se não quiser, eu o levo de volta

para cima. Dê a ele a minha parte. E o resto da água disse Desmond, com voz mais forte, em tom de

comando. Idiota! gritou Carstairs, mas elas ouviram os seus passos e o débil gemido de Bernie

quando a ordem foi obedecida. Por que não nos mata de uma vez, Horace? Não é isso o que vai acabar fazendo? Oh, não pense que eu esteja tendo prazer disse Carstairs. Também não gosto disso.

Pensando melhor, talvez eu esteja gostando um pouco mais que vocês. Mas não se desespere, assim queseu pai mandar alguma coisa que compense o meu prejuízo, eu os mato. Mas pode ser que prefiraesperar um pouco. Acho fascinante o sofrimento alheio.

Eu já disse que meu pai não vai mandar um tostão. Não vai salvar a vida do seu único filho, Peter? Que pai desnaturado! Pois continuo achando

que vou ficar com o dinheiro que ele mandar e ainda terei o prazer de matá-lo. Deixe pelo menos o pobre Brewster fora disso pediu Desmond. Esse aí? Por quê? Ele já está morrendo. Você pode soltá-lo quando tiver me matado. Carstairs soltou outra gargalhada. Duvido. A vela está acabando disse Desmond. Trouxe outra?

Amanhã eu trago, se me lembrar. Não nos deixe no escuro outra vez suplicou Desmond, com uma humildade que Marianne

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desconhecia. Vamos enlouquecer.A resposta foi uma nova gargalhada, que dessa vez pareceu mais próxima.As duas moças viram o vulto do cruel agiota passar pelo canto onde elas estavam escondidas.

Ouviram-no atravessar o comprido porão, abrir e depois fechar a porta, e o ruído da chave quando atrancou. Ficaram imóveis e abraçadas até que Carstairs subisse a escada e fechasse a outra porta.

Então, Marianne soltou Rachel, e as duas foram para o lugar onde tinham ouvido o diálogo.

Quem está aí? perguntou Desmond, alarmado, tentando distinguir os vultos que sedebruçavam sobre ele. Sou eu. Marianne. E Rachel Tamberlay. Oh! O que ele fez com você? Marianne? É você? Ou será um fantasma que veio me assombrar na hora da morte? Sou eu.Desmond ergueu a mão e, cheio de medo, roçou os dedos no rosto dela. Oh, meu amor! Psiu! Estou aqui agora. Mas o que faz neste lugar? Como conseguiu entrar? Não importa agora. Viemos libertá-los, levá-los para casa. Libertar-nos? Como? Oh, não! O pior é que, agora, vocês também estão presas!

CAPÍTULO VINTE

Rachel aproximou-se de Bernie e ajudou-o /a colocar-se de costas. Não pôde reprimir um gritode horror. Seu noivo estava naquele porão havia quinze dias, e Carstairs lhe havia dado pouquíssimaatenção, visto que lhe servira apenas de isca para capturar Desmond. Brewster estava magro, flácido,com os olhos fundos e os lábios secos pela desidratação.

Vá cuidar de Bernie Desmond pediu a Marianne. Deve haver água. por aí. Eu a ouçogotejar de vez em quando.

Obedecendo-o, Marianne se levantou e percorreu o porão em busca do precioso líquido. Nãotardou a achar uma poça. Provou-a, com cuidado. Pareceu-lhe fresca, e Marianne concluiu que devia ser de chuva ou neve derretida que se infiltrava pela parede.

Voltou correndo para onde estava a luz. Achou? perguntou Desmond ao vê-la. Sim. Preciso de alguma coisa para trazê-la até aqui. Desmond apontou para um prato

quebrado, ondeardia um toco de vela. Tome cuidado. Não deixe que a chama se apague. Marianne conseguiu retirar a vela, pegar o

prato, ir até a poça e recolher o máximo de água possível. Repetiu a operação várias vezes até queBernie, com um gesto, comunicou que estava satisfeito.

Enquanto isso, Rachel, sentada no chão, segurava no. regaço a cabeça do noivo, chorandobaixinho. Saciada a sede, Bernie abriu os olhos, fitou-a e disse: Rachel?Ela fez que sim, tentando sorrir. Oh, Rachel, que saudade!Ele se chamava Tom Moffitt. Andava em más companhias, é verdade, e tratava de ganhar 

dinheiro como fosse possível, pouco importando de onde vinha o pão de cada dia. Mas, no fundo, eraum bom rapaz. E gostava de moças bonitas. Era capaz de qualquer coisa por elas. De modo que nãotinha sido a nota de uma libra que mais lhe despertara o interesse.

Esperava encontrar as duas jovens na rua, mas já estava a meio caminho do Banco Nacional enão as havia encontrado. Detendo-se, olhou a sua volta, tentando avistar uma saia. Depois, virou-se para

trás. Tudo estava deserto. Só se via um bêbado, de vez em quando, ou uma mulher que nada tinha debonita. Coçou a cabeça. Deu mais um passo na direção do centro da cidade, tornou a parar e a olhar para

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trás. Por fim, com um suspiro, resolveu retornar por onde tinha vindo.Os dois estavam algemados e presos à parede. Aquele lugar devia ter servido para guardar 

escravos destinados ao mercado americano. Desmond forçou a corrente para mostrar quanto era firme. Não adianta, vocês não conseguirão nos libertar. Quando Carstairs voltar, tratem de se

esconder e fugir do mesmo modo que entraram.Marianne sacudiu a cabeça.

Não sairemos daqui enquanto não os tivermos libertado. E como você pretende fazer isso? Com isto aqui disse Rachel. Levando as mãos aos cabelos, extraiu um grampo. Mostrou-o

a Marianne, que olhou, atônita, para a amiga. Isto pode abrir as algemas. Você conhece o mecanismode uma fechadura?

Marianne continuou indecisa, sem saber o que fazer. Com licença, Marianne. Meu tio Thadeus era da polícia e me ensinou muitas coisas, inclusive

a abrir algemas... Ai! Desculpe-me Sr. Desmond pediu Rachel. O senhor está preso há muito tempo, seu

pulso inchou, e eu preciso apertar um pouco a algema para abri-la... Pronto!

A argola de ferro se soltou e, com grande surpresa, Desmond se viu livre. Pouco depois, a outratambém estava aberta.

Rachel se virou para Bernie, enquanto Marianne massageava os pulsos sensíveis de seu tutor.Momentos depois, Brewster estava livre e também esfregando os pulsos.

Quantas vezes o tio... Quantas vezes Carstairs vem aqui? perguntou Marianne a Desmond.Ele sacudiu a cabeça. Uma vez por dia, quando muito. Perdi a noção do tempo nesta escuridão. A única coisa que

tenho visto nos últimos dias são os olhos apavorados desse pobre rapaz. Tentamos conversar para fazer com que o tempo passasse mais depressa.

O senhor falava comigo corrigiu Bernie. Sobre o céu, o mar, sobre os sons queouvíamos; tentava descrevê-los, fazendo-me acreditar que estava em outro lugar. Foi graças a você quenão enlouqueci.

Você também me contou muitas histórias, Bernie.Ou será que já se esqueceu? Ele falava o tempo todo em você, Srta. Tamberlay. Acho que por 

isso resistiu tanto tempo. Mas, respondendo à sua pergunta, Marianne, creio que Carstairs vem aqui umavez por dia, porém nunca no mesmo horário. Às vezes, quando desce, a vela está quase no final, comoagora. Em outras ocasiões, ainda está pela metade.

Bem, então há algum tempo para encontrar um meio de sair daqui. Devemos ter umas dozehoras.

Não há vela para tanto ; lembrou Brewster. Precisamos pensar em alguma coisa enquanto ainda há luz.

As paredes são de pedra, Marianne disse Desmond. Não há possibilidade de fuga senãopela porta por onde vocês entraram. E tenho certeza de que Carstairs a mantém muito bem trancada. Estas paredes são antigas, duvido que sejam indestrutíveis. Podem não ser resistentes, mas não conseguiremos derrubá-las sem fazer barulho, e isso

atrairia Carstairs. E ele está armado disse Brewster.A lembrança desencorajou a todos. Marianne, contudo, sentiu-se estimulada. Não conseguiremos escapar se ficarmos apenas nos lamentando. E os cavalheiros parecem

estar precisando de um pouco de ar puro gracejou, imitando as pregações da Sra. Avery.Embora relutante, Rachel soltou o noivo e levantou-se. Com muita dificuldade e alguns gemidos,

os dois homens a acompanharam. Havia mais de uma semana que estavam praticamente imobilizados,

presos às correntes, e precisaram de algum tempo para que as pernas e os braços recuperassem aflexibilidade.

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Marianne apanhou a vela. Vamos ordenou. Aonde? quis saber Bernie. Arrombar a porta. Mas Carstairs virá com o revólver! Precisamos trabalhar em silêncio. Não se esqueça de que agora somos quatro. Nós

conseguiremos. Veja se encontra no chão alguma coisa que possa nos servir de ferramenta.Pouco depois, Brewster exclamou, animado: Achei!Porém, ao abaixar-se, o que pegou foi uma bolota de barro, que se esfarelou em sua mão.Rachel encontrou uma pequena pedra, e Desmond viu um reflexo que logo se revelou um

simples prego.Marianne estava procurando em algum canto, no amontoado de trastes inúteis que costumam se

acumular nos porões. Quando se aproximaram da porta, porém, não tinham achado senão a pedra, oprego e uma barra de ferro enferrujada. Esta fora encontrada perto de uma das colunas de sustentação;Bernie tinha caído ao tropeçar nela. Estava tão fraco que, mesmo com a ajuda de Rachel, mal conseguiase manter em pé. Marianne se acercara com a vela, para ver se ele estava machucado, e percebeu que se

tratava de um pedaço de ferro. Deve ser o que restou das barras que prendiam os escravos comentou Desmond, enquanto

Marianne se abaixava para apanhá-la. O movimento brusco quase apagou a vela. Não perca tempocom isso. Está muito enferrujada. Servirá menos que o prego.

Não estamos em condições de escolher retrucou Marianne.Aproximou-se com Desmond da pesada porta de carvalho. A luz escassa da vela estava quase se

esgotando. A única saída é tentar remover as dobradiças e puxar a porta para dentro presumiu

Desmond. Não será fácil, elas estão aí há décadas. Vamos raspá-las com o prego para retirar a crostade ferrugem. Depois, podemos forçá-las com a barra que a Srta. Marianne fez tanta questão de apanhar.

Rachel, pode segurar isso para mim? pediu Marianne, entregando a barra à amiga.  Minhas extravagâncias parecem estar incomodando o Sr. Desmond.

Ele sorriu. Temos de aproveitar enquanto ainda nos resta alguma luz. Marianne, por favor, segure a vela

aqui perto.Desmond começou a raspar a velha dobradiça com o prego e a pedra que Rachel achara. Porém,

do mesmo modo que Brewster, havia passado vários dias sem comida nem água. Em pouco tempo, ficouexausto.

Deixe-me tentar disse Marianne, pegando as precárias ferramentas. Não vai conseguir. É muito... difícil.Ela lhe entregou a vela e se pôs a trabalhar na parte mais baixa da dobradiça para que Desmond

não precisasse manter o braço erguido muito acima da cabeça. Acho que... estou vendo... Acho que estou vendo alguma coisa! Tinha conseguidomovimentar um pouco a dobradiça. Ah! suspirou, animada.

Nesse momento, a luz da vela se apagou.Todos estavam tão concentrados no trabalho de Marianne que não se deram conta de que a

pequena chama estava prestes a se extinguir.Sobressaltada com a súbita escuridão, Rachel deixou escapar um grito sufocado, e Bernie gemeu

de pavor. Marianne sentiu a mão de Desmond à procura de seu braço. Calma, estamos juntos afirmou Desmond, com a voz controlada, embora seus dedos,

trêmulos no braço de Marianne, denunciassem sua tensão. Bernie, meu velho, respire fundo. Apóie-sena Srta. Tamberlay; ela está aí, bem ao seu lado.

Sim, Bernie, estou aqui. Fique tranqüilo, não vou me afastar.Passados alguns minutos, quando sua vista já havia se adaptado à escuridão, Desmond voltou a

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falar: Será que você consegue continuar trabalhando sem luz, Marianne? Não sei...Só quando a vela se apagou, ela foi capaz de avaliar o quanto eles deviam ter sofrido

acorrentados àquelas paredes frias, sozinhos na escuridão. Estavam lado a lado agora, com as mãoslivres. Mesmo assim, Marianne não conseguiu evitar que o pânico se apoderasse dela. Não tinha certeza

de ser capaz de controlar-se para manejar as toscas ferramentas. Deixe-me tentar pediu Desmond. Marianne ia estender a mão para lhe entregar o prego e apedra quando teve a impressão de ouvir um ruído.

O que foi isso? sussurrou, colando o ouvido à porta.Brewster gemeu uma vez mais, e Rachel o abraçou. O quê? cochichou Desmond. Psiu! Acho que ouvi alguma coisa.O porão estava escuro e silencioso como um túmulo; Desmond e Rachel também ouviram o

suave toque na porta. Quem está aí? perguntou Marianne. Para sua surpresa, a resposta foi imediata: Tom. É a senhorita?

A voz estava abafada, mas todos a ouviram bem. Tire-nos daqui! suplicou Marianne. Estamos presos. Tire-nos daqui! Consegue abrir a porta, rapaz? perguntou Desmond. Quem está aí? É o senhor? Ora essa, por que se trancou aí dentro com as moças? Não. Eu não sou Horace. Ele nos prendeu aqui. É o homem que a senhora estava procurando, moça? perguntou Tom. E respondeu Marianne. São os dois cavalheiros que esperávamos encontrar, mas não

sabíamos que estavam presos aqui. Dois? Mas vocês não estavam procurando um gordo de cabelos vermelhos?Marianne ia responder, mas Desmond interferiu: Escute, Carstairs nos prendeu aqui. Pretende matar-nos. Ele ainda não sabe que as moças

estão conosco, mas, quando descobrir, vai matá-las também. Você pode nos ajudar a fugir? Não sei. Não sei mesmo... respondeu Tom, compreendendo a gravidade da situação.  

Posso arrombar a fechadura, mas há o cadeado. Não estou vendo nenhuma chave por aqui. Carstairs! Foi a primeira contribuição de Bernie à conversa.Marianne ficou aliviada ao ouvir sua voz. Ele estava fraco, mas lúcido. Ele?! perguntou o rapaz. Sim respondeu Desmond. A chave está com Carstairs. No bolso. No bolso? Ora, o velho Tom Moffitt aqui é um grande batedor de carteiras. Se depender 

disso, vocês não ficarão presos muito tempo. Luz! gritou Bernie, dessa vez mais alto. Precisamos de luz aqui!

Rachel tratou de calá-lo, mas, já na escada, Tom respondeu: Tudo bem!Houve um súbito silêncio. O porão lhes pareceu mais escuro. A voz do outro lado da porta devia

ter sido um sonho. Quanto tempo faz que ele subiu, Sr. Desmond? sussurrou Rachel. Alguns minutos. Ainda não teve tempo. Você acha que ele vai conseguir? perguntou Marianne cheia de medo. Ele disse que consegue.Calaram-se outra vez, esforçando-se para escutar um barulho na escada.Marianne sentiu o rosto de Desmond perto do dela. Eu derrubei o prego e a pedra sussurrou ele, esperando que Rachel e Bernie não o

ouvissem. Acho que caíram quando estávamos falando com o jovem. Ajude-me a procurar. Devemestar por aqui.

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Antes que pudesse responder, Marianne divisou um brilho dourado. Olhe! Parece que o rapaz trouxe a vela que você pediu, Bernie.Pouco depois, ouviram um leve arranhar do outro lado da porta. E você, Tom? perguntou Desmond. Sou.

Conseguiu a chave? Está aqui, senhorita.Gratificados, ouviram o barulho do metal e depois o ruído característico do mecanismo soltando-

se. A porta se abria para dentro, de modo que foram obrigados a recuar um passo. Antes que tivessemsaído, porém, Tom gritou:

Ai!E entrou bruscamente no porão, tropeçando, caindo. Seguiram-se um rápido clarão e um

estampido. Tom Moffitt caiu de bruços.Horrorizada, Marianne olhou para ele e, depois, para o vulto ainda parado no último degrau da

escada, uma vela na mão e uma pistola na outra. Viu bem aqueles olhos que brilhavam na escuridão.Horace Carstairs.

CAPÍTULO VINTE E UM

Rachel deixou escapar um grito. Brewster /recuou, trôpego. Desmond se inclinou para a frente,como para atacar, porém Carstairs apontou a pistola direto para seu peito.

Para trás! rosnou. Desmond se deteve. Todos para trás! O primeiro que tentar qualquer coisa vai se juntar a esse menino aí no chão.Carstairs avançou, e os quatro retrocederam. Marianne se aproximou de Moffitt. De esguelha,

notou um leve movimento e ouviu sua respiração difícil. Ora, ora, ora. Carstairs riu. Que reunião agradável! Todos juntos agora. E você?  

Apontou a arma para Rachel. Eu não a conheço. Mas, como sempre digo: quanto mais, melhor. Deixe as moças irem embora. Oh, não vou estragar a festa, Desmond. Acha que sou louco? Pode ficar com minha propriedade. Você sabe que meu pai não vai mandar nenhum tostão

para me libertar, mas eu sou o dono de Kingsbrook. Pode ficar com a casa, as terras... Não estou pedindoque me solte, mas solte as moças.

Ora, já não se trata de dinheiro nem da propriedade. Chega um tempo, meu caro Peter, em quea vingança vale mais que tudo. Você arruinou os meus negócios um por um: os empréstimos, asmeninas, as armas, a droga, o marfim. Só não conseguiu arruinar o meu ódio. E esse ódio ainda estácomigo. Virem-se! Voltem para aquele canto!

Todos recuaram. Carstairs os seguiu com a pálida luz. Desmond estava com a mão nas costas deMarianne, e Rachel ajudava Bernie. Não sei como conseguiram tirar as algemas, mas vou dar um jeito para que não aconteça de

novo. Carstairs empurrou a corrente com a ponta do pé. Marianne, ponha isto em Desmond. Evocê aí, prenda o rapaz.

As duas não tiveram escolha senão acorrentá-los outra vez. Rachel não parava de murmurar: Oh, Bernie, eu lamento. Sinto muito... O que está fazendo? Carstairs se aproximou de súbito da moça e do debilitado estudante. Prendendo as... as... algemas gaguejou Rachel. Pois acho que está tentando mais um de seus truquezinhos. Saia daí!Cheia de medo, Rachel se afastou. Colocando a vela no chão, Carstairs puxou e sacudiu a

corrente que prendia as duas algemas, fazendo Brewster cair de bruços.Rachel gritou, alarmada, e avançou, sem fazer caso do perigo a que estava se expondo. Sem

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hesitar, Carstairs desferiu uma bofetada que a derrubou também. Rachel bateu a cabeça na terra dura enão se moveu mais.

Marianne ficou horrorizada, mas nada pôde fazer; mesmo assim, aproveitando-se da distração deCarstairs, fechou apenas de leve as algemas nos pulsos de Desmond, sem pressioná-las o suficiente paraque ficassem travadas.

De repente, Carstairs lhe agarrou o ombro. Afastou-a com brutalidade e examinou as algemas.

O que é isso? Você também quer bancar a espertinha?Com a arma apontada para o peito de Desmond, fechou as algemas. Tratou de agir depressa, poisnão gostava de estar muito próximo daquele homem, mesmo algemado e sob a mira de uma arma.Prendeu-o bem. Dentro de algumas horas, quando seus pulsos voltassem a inchar, Desmond sabia quesentiria uma dor horrível.

Marianne foi acudir a amiga. Ajoelhando-se a seu lado, segurou-lhe a mão, tentando reanimá-la. Como você é traiçoeira, Marianne. Carstairs estava a seu lado. Sua bruxa! Queria soltar 

seu amante? E agora, hein?Ela o fitou, amedrontada, seu instinto pedindo que" corresse, que se afastasse dele. A porta do

porão tinha ficado aberta. Mas não era só a arma apontada que a impedia de tentar fugir. Não podiaabandonar Desmond nem os outros dois. Não podia tentar salvar-se sozinha.

De repente, Carstairs lhe agarrou os cabelos, forçando-a a inclinar a cabeça para trás. Curvando-se, gritou-lhe em pleno rosto:

Quem vai libertá-la? Ele? Daqui a pouco estará morto. Mas acho que vou deixá-lo viver,acorrentado como um animal, para que me veja possuí-la. Para que me veja despi-la, deixá-la encolhida,tremendo, os mamilos duros de frio. De frio ou de desejo? O que você acha? As vezes, na cama, vocênão ficava imaginando, como eu, as minhas mãos em seu corpo? Talvez nunca tenha pensado, mas é issoo que vai conhecer hoje. E Desmond vai ver. Os outros também. Enquanto morrem.

Carstairs passou o dedo esquelético no rosto, no queixo, no pescoço de Marianne, e lhe apalpou oseio.

Que macio! Que firme! Que perfeito!De súbito, ergueu a mão e a esbofeteou. Marianne caiu, a boca sangrando. Colocando-se de

bruços, tentou ajoelhar. Carstairs lhe deu um pontapé, derrubando-a outra vez. Mas, quando estendeu amão para agarrá-la, ouviu um rugido de fera que lhe arrepiou os cabelos ralos. Voltou-se. Enfurecido,Desmond arremeteu contra ele. Horace puxou o gatilho às cegas, em pânico. Foram as correntes que oprendiam que salvaram a vida de Desmond. A bala lhe atingiu a coxa.

Fique longe de mim! gritou Carstairs. Mais uma palavra e você leva um tiro na outraperna. Ou no braço. Apontou a arma para o cotovelo de Desmond. Será que isso o deteria? Possoatirar em seu joelho. Nos dois. Será que doeria o bastante? Eu gosto muito de causar dor. Não sei de quegostaria mais, de atirar em seus dois joelhos ou de ganhar um baú cheio de ouro. Ou prosseguiu,erguendo a pistola poderia dar um tiro bem aí. Que vingança perfeita! Eu veria sua terrível agonia, evocê veria Marianne comigo. E morreria sabendo que perdeu tudo e sabendo que já não era homem...

Carstairs engatilhou a pistola.Marianne tinha ficado atordoada com a bofetada e o pontapé, mas não inconsciente. Enquanto eleameaçava atirar em diferentes partes do corpo de Peter, ela se esforçava para recuperar-se.

Levantou-se. O porão parecia girar diante dela, mas sua vista clareou quando Carstairs disse:"...você morreria sabendo que não era homem".

De um salto, ela atacou o vilão pelas costas.Com o empurrão, ele apertou o gatilho, mas errou o alvo, e a bala foi se alojar na parede.

Marianne o agarrou. Horace se debatia e imprecava. Livrando-se, afinal, voltou-se, colérico, os olhosarregalados. Esquecendo-se de seu plano de tortura e vingança, puxou o gatilho uma vez mais. Nomesmo instante, Marianne rolou no chão. A bala atingiu o piso. Sem pensar, Marianne tinha rolado nadireção de seu agressor. As pernas dela esbarraram em seus tornozelos, e Horace caiu. A arma lhe

escapou da mão. Em pânico, ele se arrastou para recuperar a pistola.Enquanto isso, Marianne tratou de se afastar ao máximo de Horace e, sem querer, tropeçou no

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corpo inerte de Rachel. Esta gemeu, lutando para recobrar os sentidos. Estava viva. Marianne sentiualívio mesmo sabendo que, se Carstairs conseguisse matá-la, haveria de descarregar na outra o seu ódiofrustrado.

O bandido achou a arma. Empunhando-a depressa, ergueu-a no ar em triunfo. Ah! gritou. Parece que a sorte está comigo!Levantando-se com dificuldade, voltou-se para Marianne, que, desesperada, investiu novamente.

Na confusão, a vela se apagou, e o porão mergulhou no escuro.Um segundo depois, ela esbarrou de novo nas pernas de Carstairs, derrubando-o. Mas dessa vezele não deixou escapar a pistola e, com a outra mão, agarrou-a. Marianne estava de joelhos, mas obandido conseguiu segurar-lhe o tornozelo e puxá-lo. Ela estendeu os braços, procurando em que seagarrar no chão liso e duro.

Roçou num objeto roliço, pegou-o. Atordoada de pavor, tardou um pouco a reconhecer a barra deferro que Bernie havia encontrado e que ela mesma entregara a Rachel.

Com a mesma tenacidade com que Carstairs procurava manter a arma em seu poder, Marianneagarrou o metal enferrujado. E foi arrastada. Ele lhe soltou o tornozelo e lhe prendeu o braço. Não queriagastar a munição, mas queria matar. Era agora uma necessidade. Não mataria só Marianne; começariapor ela, depois liquidaria os outros, um a um. Seria seu ato supremo de vileza.

Quando Carstairs lhe soltou a perna, porém, Marianne desfechou um furioso pontapé. Horacetentou esquivar-se, mas, atingido, caiu. Eles se engalfinharam. Ouviram-se grunhidos confusos.

Esforçando-se para enxergar na escuridão, Desmond acreditou que ia enlouquecer. Ouviu umtiro. Um gemido! Depois, um profundo silêncio.

Marianne! sussurrou. Ouviu uma respiração ofegante. Carstairs? É você? Eu acho... que ele está morto. Era a voz abafada de Marianne. Você está bem, querida? Ele não me atingiu, se é o que está querendo saber. Mas não consigo tirar... não consigo tirar 

o corpo dele de cima de... mim!Com um último safanão, Marianne se livrou dele. A seguir, ainda engatinhando, aproximou-se de

Desmond, abraçou-lhe as pernas, depois os quadris, o corpo, até afinal segurar-lhe o rosto. E você? perguntou de novo. Sim, sou eu. Estamos vivos. Acho que Rachel e Bernie também. Creio que até mesmo Tom

Moffitt esteja.Embora acorrentado, Desmond teve liberdade de movimentos para inclinar-se e encontrar os

lábios de Marianne na escuridão. Beijou-a, mas não como um tutor beija a pupila nem com a irrefreávelpaixão com que a beijara antes. Foi uma carícia leve, delicada, cheia de ternura.

Quando seus lábios se separaram, Desmond murmurou: Eu te amo. Estava com medo de perdê-la e nunca poder lhe dizer isso. Eu lhe dou licença para dizê-lo quanto quiser nos próximos cinqüenta anos. Mas como foi que...

Eu o feri com o pedaço de ferro que o Sr. Brewster achou.A preocupação mais imediata era o cuidado dos feridos.Desmond disse a Marianne que o ferimento em sua perna era superficial e insistiu para que ela o

ajudasse a levantar-se. Juntos, foram pedir socorro para Brewster e o rapaz baleado. Encarregaram aprimeira pessoa que encontraram na rua de levar água e alimento para Bernie.

Encontraram fechado o consultório do Dr. Manley, porém o médico morava no andar de cima eos atendeu. Tendo ouvido a história, concordou em ir à rua East Coventry com Marianne, mas primeiroordenou que Desmond ficasse repousando na enfermaria. Confirmando que o ferimento não era grave,fez um rápido curativo e, acordando a criada antes de sair, deu-lhe instruções para que esquentasse umpouco de sopa para o cavalheiro e lhe desse água.

No porão, constatou que Tom Moffitt estava correndo perigo. A bala o atingira na cabeça,

rompendo-lhe o couro cabeludo e provocando uma hemorragia.Levado ao consultório, Bernie recebeu água, alimento, e ficou em repouso. No dia seguinte, já

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representava. Marianne se entregou àquele ardor. Com a mão livre, porém, juntou todas as cartas e asjogou no fogo.

 

SALLY CHENEY era uma pacata proprietária de livraria antes de se aventurar na produção de suaprimeira história de amor. Apesar de viajar com frequência pelos Estados Unidos, é em sua bucólicacidade natal, no Estado de Idaho, que Sally se sente feliz de verdade. Quando não está escrevendo,dedica-se ativamente às questões de sua comunidade. Adora a culinária e a jardinagem.