charles willians silveira - portal mackenzietede.mackenzie.br/jspui/bitstream/tede/3329/5/charles...
TRANSCRIPT
UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE
CHARLES WILLIANS SILVEIRA
A CRIAÇÃO DE ADÃO COMO IMAGEM SOBREVIVENTE:
UMA PERSPECTIVA NIETZSCHIANA
São Paulo
2017
CHARLES WILLIANS SILVEIRA
A CRIAÇÃO DE ADÃO COMO IMAGEM SOBREVIVENTE:
UMA PERSPECTIVA NIETZSCHIANA
Dissertação de mestrado apresentada ao programa de Pós-Graduação em Educação Arte e História da Cultura da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial para a obtenção do título de mestre em Educação, Arte e História da Cultura.
Orientador: Prof. Dr. Marcelo Martins Bueno
São Paulo
2017
S587c Silveira, Charles Willians.
A criação de Adão como imagem sobrevivente: uma perspectiva
Nietzschiana / Charles Willians Silveira.
138 f.: il. ; 30 cm
Dissertação (Mestrado em Educação, Arte e História da Cultura) –
Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2017.
Orientadora: Marcelo Martins Bueno.
Bibliografia: f. 136-138.
1. Criação. 2. Imagem. 3. Niilismo. I. Bueno, Marcelo Martins.
I. Título.
CDD 261.57
À minha amada mãe. E aos fantasmas...
“Deus criou o homem à sua imagem e semelhança...” (Gênesis 1:27)
“Mas então, o que se tornará o homem sem Deus e sem imortalidade? ” (Dostoievsky, 2001, p. 578)
RESUMO
O estudo da história da arte é um importante caminho nas ciências humanas. A pesquisa hermenêutica das obras de arte possibilita-nos uma compreensão mais amalgamada da própria existência humana. Um dos historiadores da arte que veio ter grande destaque na virada do século XIX para o século XX foi o alemão Aby Warburg. Segundo o historiador, profundamente inspirado pela perspectiva nietzschiana, a obra de arte carrega Imagens-fantasmas; imagens-sobreviventes que insistem em nos assombrar. Dentro desta nova perspectiva, o trabalho objetiva demonstrar, por meio da iconologia de Warburg e da genealogia nietzschiana, como a obra de arte sobrevive no decorrer do tempo, por meio de seus fantasmas, e o que ela pode dizer sobre o contemporâneo. A obra Criação de Adão, de Michelangelo, será a ferida aberta no tempo, para que possamos compreender como deter o avanço do niilismo, após a morte de Deus. O que poderia nos dizer, ainda, essa obra de arte sobre a criação, em um mundo marcado pela “morte de todas as mortes?”. Portanto, a arte surge como um caminho alternativo para o sagrado. A ferida causada pela morte de Deus é fonte de dor para contemporâneo, mas também possibilidade de salvação. A “imagem que cura”, poderia ser o título deste trabalho. Usando a dor como fonte de significação, na ausência de um criador a priori, precisamos assumir a postura artística. Tacitamente, o ato de criar é a real imagem e semelhança entre o divino e o “além-do-homem”; a conclusão e o antídoto contra o niilismo.
Palavras–chave: Criação; Imagem; Niilismo.
RESUMEN
El estudio de la historia del arte es un importante camino en las ciencias humanas. La investigación hermenéutica de las obras de arte nos posibilita una comprensión más amalgamada de la propia existencia humana. Uno de los historiadores del arte que ha venido a destacar en el cambio del siglo XIX al siglo XX fue el alemán Aby Warburg. Según el historiador, profundamente inspirado por la perspectiva nietzscheana, la obra de arte lleva imágenes fantasmas; Imágenes-sobrevivientes que insisten en asombrar. Dentro de esta nueva perspectiva, el trabajo objetivo demostrar, por medio de la iconología de Warburg y de la genealogía nietzscheana, como la obra de arte sobrevive en el transcurso del tiempo, por medio de sus fantasmas, y lo que ella puede decir sobre lo contemporáneo. La obra Creación de Adán, de Miguel Ángel, será la herida abierta en el tiempo, para que podamos comprender cómo detener el avance del nihilismo, después de la muerte de Dios. ¿Qué podría decirnos todavía esta obra de arte sobre la creación, en un mundo marcado por la muerte de todas las muertes? Por lo tanto, el arte surge como un camino alternativo a lo sagrado. La herida causada por la muerte de Dios es fuente de dolor para contemporáneo, pero también posibilidad de salvación. La "imagen que cura", podría ser el título de este trabajo. Usando el dolor como fuente de significación, en ausencia de un creador a priori, necesitamos asumir la postura artística. Tacitamente, el acto de crear es la real imagen y semejanza entre lo divino y el "más allá del hombre"; La conclusión y el antídoto contra el nihilismo.
Palabras clave: Creación; Imagen; Niilismo.
LISTA DE IMAGENS
1. IMAGEM:............................................................... A CRIAÇÃO DE ADÃO.
Sumário
1. INTRODUÇÃO..................................................................................................................11
2. UMA PINTURA SEM DEUS: O Luto Pelo Divino.........................................................19
2.1 O RETRATO DO CÉU ESVAZIADO: O Trono Vazio e os Vice-Reis.......................32
2.2 OS FANTASMAS DA OBRA: A Ferida no Tempo de Warburg................................42
3. LUZES DO AFRESCO: O Renascimento como Supernova (Último Sopro Divino)...51
3.1 SOMBRAS DO AFRESCO: O Coração do Buraco Negro (Um Poema Primordial)60
3.2 ADÃO NA TERRA DEVASTADA: O Último Homem e Tipos de Niilismo..............73
4 A MENSAGEM DE “MIGUEL- ÂNGELO”: Em Agonia e Êxtase...............................89
4.1 A CRIAÇÃO DE ADÃO À BEIRA DO ABISMO: Como Fazer Nascer uma Estrela?.97
4.2. À IMAGEM E SEMELHANÇA: O Niilismo Criativo é Brincadeira de Criança...109
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS: A Mão de Adão............................................................. 128
REFERÊNCIAS................................................................................................................... 136
11
1. INTRODUÇÃO
“Uma História de Fantasmas para Gente Grande”
Michelangelo Buonarroti, escultor, pintor, arquiteto e poeta italiano; formou
junto com Rafael e Da Vinci, a Santíssima Trindade do Renascimento. Sua obra é
marcada pelo sentimento intenso causado pelas contradições entre o espírito e a
matéria, a condição humana e o mundo divino, sofrimentos e prazeres, enfim, sua
figura tornou-se a própria encarnação do gênio. Entre suas obras, selecionamos
para a realização deste trabalho “A Criação de Adão”, um afresco pintado por
Michelangelo próximo do ano de 1511. A obra está localizada na Capela Sistina, em
Roma, e faz referência a uma passagem do livro de Gênesis 1.27: “Deus criou o
homem à sua imagem e semelhança”. Mas por que uma obra do Renascimento
apareceria em uma tese de mestrado voltada para a pesquisa do contemporâneo?
No início de fevereiro de 2003, funcionários das nações unidas decidiram
cobrir com um pano azul e uma fila de bandeiras a enorme tapeçaria que reproduz o
famoso quadro de Picasso, a Guernica, que, dentro da proposta do artista cubista,
descreve os horrores da guerra. A reprodução da obra estava exposta na ONU
(Organização das Nações Unidas), onde o secretário dos Estados Unidos, Colin
Powell, apresentava dados obtidos pelo EUA de que o Iraque estaria escondendo
armas de destruição em massa e que uma guerra talvez fosse necessária para
garantir a “segurança do mundo”.
Centenas de jornalistas compareceram para ouvir o relatório do inspetor chefe
da UNMOVIC (comissão de controle, verificação e inspeção da ONU). As fontes da
Organização negaram que a decisão de ocultar a reprodução da obra estivesse
ligada ao fato de ser um constrangimento diplomático ter embaixadores falando
sobre uma possível guerra em frente a uma obra que teve por finalidade denunciar
os horrores bélicos.
A “Guernica”, de Picasso, retrata um pequeno vilarejo basco ao norte da
Espanha que foi bombardeado pela Alemanha como exercício preparatório para a
guerra por mais de três horas em 27 de abril de 1937. O ataque matou mais de
1.600 civis e deixou o vilarejo em chamas por três dias. Mas por que “ocultar” uma
obra de arte? O que poderia fazer uma imagem comparada ao poderio bélico das
12
nações? O que a “Guernica” carrega de tão ameaçador? Após essas questões
retóricas, as respostas são quase evidentes: pode-se inferir com segurança que os
historiadores Aby Warburg e Didi Huberman trilhando os ditirambos de Nietzsche,
compreenderam o motivo de a “Guernica” ser tão “temida”: Ela é uma ferida no
tempo. Um sintoma trans-histórico e supra-histórico, que carrega a carne e o sangue
da cultura. As obras de arte possuem fantasmas, espectros e espelhos que refletem
nossas tragédias culturais. A denúncia de Picasso não está confinada ao evento da
guerra civil espanhola, nem ao nazismo: trata-se de uma denúncia de todas as
guerras, assim como a ferida de Filoctetes1, imortalizada na tragédia de Sófocles, é
sentida e lamentada por homens e mulheres de todos os tempos e nações, pois algo
na arte sobrevive.
O estudo da história da arte é um importante caminho nas ciências humanas.
A hermenêutica do significado das obras de arte possibilita-nos uma compreensão
mais amalgamada da própria existência humana. Um dos historiadores da arte que
veio ter grande destaque na virada do século XIX para o século XX foi o alemão Aby
Warburg. Segundo Warburg, o historiador da arte precisava investigar os sinais de
força vital que toda obra artística “fossiliza” em suas formas registradas.
[...] A sobrevivência, portanto, abre a história – o que era a vontade de Warburg quando ele falava de uma 'história da arte no sentido mais amplo' [wohl zum Boebachtungsgebiet der Kunstgeschichte im weitesten Sinne]: uma história da arte aberta para os problemas antropológicos da superstição, da transmissão das crenças. Uma história da arte informada pela 'psicologia da cultura' pela qual Warburg começara a se apaixonar junto a Hermann Usener e Karl Lamprecht (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 69)
Segundo George Didi-Huberman, historiador que propôs um novo método
para a pesquisa e compreensão dos estudos das obras de arte, nós deveríamos nos
debruçar sobre as imagens-sobreviventes que habitam as criações artísticas.
Influenciado pelo também historiador Aby Warburg, Didi-Huberman aprende o
conceito da fantasmagoria. De acordo com esta perspectiva, as obras de arte
carregam fantasmas capazes de assombrar, mas também de revelar aspectos de
um passado que habita simultaneamente o mundo dos vivos e dos mortos:
1 Herói grego na Guerra de Troia, único homem capaz de erguer o arco e flecha de Hércules, foi personagem de
uma famosa narrativa trágica na qual é acometido por uma ferida terrível. Segundo a tradição mitológica, após
sua recuperação, foi o responsável pela morte de Páris, o príncipe troiano e raptor de Helena.
13
Warburg mostrou que a antiguidade havia criado, para certas situações típicas e incessantemente recorrentes, diversas formas de expressão marcantes. Certas emoções internas, certas tensões, certas soluções são não apenas encerradas nelas, mas também como que fixadas por encantamento. Em toda parte em que se manifesta um afeto da natureza, em toda parte revive a imagem que a arte criou para ele, segundo a própria expressão de Warburg, nascem “fórmulas típicas do páthos “que se gravam de maneira indelével na memória da humanidade. E foi através de toda a história das belas-artes que ele perseguiu esses “estereótipos”, seus conteúdos e suas transformações, sua estática e sua dinâmica” (HUBERMAN, 2014, p. 175).
“História de fantasmas para gente grande”, assim Warburg define seu
método, um olhar para os fantasmas de um passado morto, mas que, como todo
espectro, insiste em habitar o presente vivo. A imagem-fantasma é uma ferida, que
guarda sinais de um evento. Ela surge como um sintoma, uma febre que indica
algum quadro infeccioso. Qual seria a infecção que este trabalho, que olha para os
sintomas da contemporaneidade, pretende diagnosticar? Para tal tarefa que objetiva,
por meio de uma obra de arte, desvelar qual fantasma nos assombra, utilizaremos o
martelo nietzschiano. A filosofia labiríntica nietzschiana, muito mais acostumada a
problematizar do que pavimentar estradas seguras para o pensamento, foi evocada
justamente pelo seu potencial diagnóstico e sua intimidade com a arte.
Em o Crepúsculo dos ídolos ou Como Filosofar com o Martelo, Nietzsche
propõe uma filosofia a “golpes de martelo”. Mas o que ele queria dizer com isso? A
imagem do pensador intempestivo colore o ideário sobre o filósofo alemão, e a figura
do martelo, como arma de destruição dos falsos ídolos, foi imortalizada. Todavia é
necessário que tenhamos cuidado com tal perspectiva, pois o filósofo alemão,
famoso por sua habilidade como escritor, não entregaria uma imagem tão óbvia ao
seu público. Nietzsche, filósofo amante da diferença, sabia da multiplicidade de
sentidos imagéticos que o martelo carregava, e, como todo bom escritor, brincou
com tais significados.
De todas as características do martelo, sem dúvida, a vinculada ao
instrumento de avaliação clínica é a mais ajustada ao “olhar de suspeita”
Nietzschiano. A filosofia do martelo não estava baseada na pura destruição dos
falsos ídolos; o “martelo nietzschiano”, comumente, reduzido a simples arma de
destruição, possui aqui a função de instrumento médico de ausculta, utilizado para
14
reconhecer as partes ocas, as fraturas e os defeitos congênitos da genealogia
contemporânea.
Dentro desta nova perspectiva, no primeiro capítulo, efetuaremos uma
reflexão “a marteladas” sobre a Imagem-fantasma da obra A Criação de Adão, de
Michelangelo; objetivando atualizar a icônica obra do Renascimento, para “os dias
da pós-modernidade”; articulando com a proposta Nietzschiana em busca de novos
sentidos: O que poderia nos dizer, ainda, essa obra de arte sobre a criação, em um
mundo marcado pela morte de Deus?
“Minha preocupação mais íntima sempre foi a decadência”, diz Nietzsche
(2006, p. 61) sobre o fenômeno da nadificação. Qual imagem poderia ter sobrevivido
ao avanço do niilismo? Qual a nossa imagem e semelhança com o Criador, agora
ausente? Pode uma obra de arte carregar em seu seio uma mensagem supra-
histórica? Todas estas perguntas serão devidamente respondidas, dentro da
perspectiva adotada por este trabalho, pois todas estão vinculadas a pergunta fulcral
do tema: Qual a Imagem-sobrevivente da obra A Criação de Adão?
Ao retratar o desencantamento do mundo, Nietzsche, em “A Gaia Ciência”,
demonstra que toda discussão em torno da necessidade de uma vida tomada como
obra de arte está justificada pelo fenômeno testemunhado e imortalizado pelo
filósofo como: A morte de Deus.
Entender o percurso do papel da arte na obra nietzschiana é de suma
importância em seu projeto, uma vez que a possibilidade de invenção da vida dentro
de uma perspectiva estética só tem sentido quando reconhecemos que Deus, o
inventor e criador supremo em nossa tradição, não está mais presente em nosso
mundo. O motivo causador da ausência divina é tão espantoso que assombrou o
filósofo alemão: “Deus morreu! E nós o matamos! ”.
O avanço do nada carregou em seu ventre meios de destruir e por fim matar
sua concepção mais sagrada, gerando inúmeros efeitos relacionados à Morte de
Deus. Entre estes desdobramentos, encontramos e identificamos a luta dos
aspirantes à sucedâneo ao trono divino, agora esvaziado: Razão, Ciência, Classes,
Pátria e por fim a própria História (que ascenderia no século XIX como o grande
15
discurso, principalmente após os trabalhos de Hegel e Marx). Nietzsche, no entanto,
percebe que o excesso de história tornou-se uma enfermidade paralisante.
A Doença Histórica obriga o ser humano a carregar o fardo de inúmeras
culturas e fatos fantasmáticos que inutilizaram a criatividade e espontaneidade,
crivando a consciência em um processo de tribunalização, no qual o homem provoca
a inquisição da própria consciência. O diagnóstico dado por Nietzsche encontrou,
na doença histórica, o câncer que adoece o pensamento criativo, a própria antítese
da espontaneidade, e o sintoma mórbido manifestado por legiões de mortos que
impedem a humanidade de viver de forma espontânea.
Deveria haver necessariamente uma raça de eunucos como guardiões da história universal? Sem dúvida, a pura objetividade lhes cairia bem. Isto pareceria sua tarefa de vigiar a história, para que dela nascessem apenas histórias, mas não acontecimentos [...] pouco importa o que pretendeis fazer, contanto que a história se mantenha preservada em sua bela objetividade, particularmente por aqueles que jamais poderão fazer história (NIETZSCHE, 2001, p. 76).
Para Nietzsche a Metafísica e suas variações nada mais são do que
sucedâneos para o Deus judaico-cristão. A principal função da metafísica seria
garantir certezas ao conhecimento e por consequência garantir ao homem controle e
alívio do medo advindo pelo absurdo da existência. Por meio de conceitos como:
Presença, Eternidade, Consciência, História e Sujeito o pensamento metafísico
tentou avaliar a vida e corrigi-la, apresentando-se como forma de saber extra-físico e
suportivo da realidade. Ao esse avanço da nadificação será dedicado o segundo
capítulo deste projeto.
Se a compreensão de que a falta de um sentido prévio para vida é a
conclusão do niilismo – e o registro da derrota metafísica em sustentar suas
heurísticas –, poderá a vida, por meio de uma postura artística criar novos sentidos?
A urgência desta questão justifica e convida a apostar na criação de um viver
experimental, sempre novo e perigoso, livre das amarras metafísicas. Um viver
trágico que tudo abriga, sem exclusões ou sistematizações. Agora, em um mundo
sem um “Criador”, será necessário, a partir da tela em branco do nada, assumir o ato
de criar e, assim, pintar novas telas existenciais do viver como obras de arte.
16
A hipótese deste labor é de que a expansão da postura artística, baseada no
ato de criação, transcende as obras de arte e imprime a sua marca em qualquer
atividade da vida humana; podendo servir, desta forma, de antídoto contra o niilismo,
pois a criação artística é a própria produção da vida, não uma forma de
conhecimento confinada a um determinado campo ou esfera de estudos. Sua
criação é sempre um momento de liberdade, uma forma de manifestação da própria
vontade de poder ou dominação, entendida não apenas como forma de dominar e
controlar, mas também como forma de lutar por objetivos mais elevados do que a
mera sobrevivência dos animais.
O intento deste trabalho é ilustrar como a obra de arte sobrevive no decorrer
do tempo, por meio de seus fantasmas, e o que ela pode dizer sobre o
contemporâneo. A obra Criação de Adão, de Michelangelo, será a ferida aberta no
tempo, para que possamos compreender como deter o avanço do niilismo, após a
morte de Deus.
Tacitamente, o terceiro capítulo objetiva demonstrar a criação como a imagem
sobrevivente; pois o artista, ao criar, não visa nada fora da própria atividade, pinta
por pintar e toca por tocar, assim como a vida deve ser vivida pelo viver, sem
sentidos dados a priori, pois tal condição oferece um sem Sentido-metafísico e
possibilita novos e múltiplos significados ao inventar a vida.
É imprescindível ressaltar neste trabalho o aspecto da multiplicidade e da
diferença, pois ao desejá-las nos livramos da moral de rebanho, do inautêntico, e
alçamos ao status de criadores, tornando o ser humano aquilo que é, dentro da
dimensão do trágico, de um mundo sem Deus, e livre, principalmente, de todos os
utilitarismos e fanatismos religiosos-políticos, e mesmo científicos que visam, de
forma atávica, suceder ao trono como novas divindades universais e de rebanho.
A arte é tomada como postura estética existencial, que antecede a obra, não
se resume a quadros, músicas, poemas, esculturas; assim, como não pode ser
confundida com teorias políticas, metafísicas e estéticas. A arte expande-se ao fazer
do cirurgião, do engenheiro, do professor, do atleta, ou mesmo de um trabalho
acadêmico, embora isso seja extremamente raro. A arte tem a ver com estilo, não se
trata de movimentos históricos, como o Renascimento, o Barroco, o Romantismo, -
17
meras generalizações didáticas-, mas do estilo único do autor que resiste a
normatização e a comunidade com suas regras acordadas.
O artista carrega o epíteto de gênio e de louco, ao artista tudo e possível e
desculpável, ele carrega a marca de Caim, que o amaldiçoa, e ao mesmo tempo o
protege, como prova da existência de que um dia Deus passou por este mundo; esta
é sua herança, sua marca, sua aura profana e mundana, mas capaz de
experimentar o sagrado no calor da invenção da obra, sempre em agonia e êxtase.
Nietzsche sonha com esta experiência inaudita e evoca novamente o mito, desta vez
inspirado na música wagneriana e no lendário herói nórdico - germânico Siegfried,
no final de seu livro “O Nascimento da Tragédia”:
Um dia, esse espírito se encontrará desperto no fresco vigor da manhã de um sonho inaudito, então haverá de matar dragões, aniquilará os anões pérfidos e despertará Brunilda – e a lança do próprio Wotan não poderá lhe barrar o caminho! (NIETZSCHE, 2002, p. 169).
Como o louco, que carregava uma lanterna em plena luz do dia,
procuraremos os “rastros do divino”, outrora luz do mundo, e faremos uma pesquisa
genealógica para descobrir qual a mensagem fantasma da obra “A Criação de Adão”
e, assim, contaremos uma “história de fantasmas para gente grande. ”
18
Figura 1. A Criação de Adão / fonte: www.rome-museum.com
19
2. UMA PINTURA SEM DEUS: O Luto pelo Divino.
É curioso começar um texto pelo tema do luto, é como iniciar uma história
pelo final. Em certa medida, o processo do presente trabalho está baseado na lógica
da retrospectiva. E ele começa por um luto; não um luto qualquer, mas o
enlutamento pelo divino. “Deus morreu”, diz o famoso, e polêmico, postulado de
Nietzsche. Mas como Deus morreu? Qual a causa mortis? Como matamos “aquilo
que havia de mais sagrado”? Sabemos, pelo menos, que nós o matamos, mas por
quê?
Michelangelo, por meio de sua arte, imortalizou a criação do universo. A
Capela Sistina foi aberta ao público no dia 1° de novembro de 1512. O artista levara
cinco anos para criar sua obra. O arquiteto Bramante sugeriu ao papa Julio II
entregar a pintura do teto da capela a um escultor. Sozinho, Michelangelo pinta
heroicamente mil metros quadrados, mais de trezentas figuras. Criou tanta beleza
quanto àquela do universo que o inspirou. No centro da gravura um Deus-homem e
um homem-deus, tão semelhantes que poderiam ser confundidos; tão diferentes que
dificilmente poderiam ser vinculados. Pintar a Capela Sistina foi uma empresa
solitária, o artista quis ser semelhante ao criador. Apagou seus afrescos iniciais e
recomeçou tudo, em uma estranha coincidência com seu antecessor divino. Do
nada, Michelangelo havia criado um universo repleto de luzes e sombras. O público
ficou atônito, haviam visto uma fenda no tempo; contemplado um portal para a
eternidade; testemunharam a criação.
Muito tempo passou, a Capela Sistina tornou-se um ponto turístico, as cores
ficaram pálidas com o avanço dos anos. Continuamos a olhar, espantados, para o
teto, mas vemos a mesma cena na abóbada e na parede de alto-Mor? As ciências
estão avançando; o mundo contemporâneo é explicado por “leis mecânicas” e
inflacionado por informações. Não se procura mais significado e sentido, mas sim
como tudo funciona como se pode entender e utilizar os modos de funcionamento.
Vivemos em um mundo “desencantado” e “burocratizado”.
20
Segundo o filósofo alemão, nós, assassinos de todos os assassinos,
eliminamos a “corrente que nos unia ao Céu”, desde então, pairamos à deriva, sem
um centro solar para gravitarmos. É verdade que muitos sucedâneos apareceram,
afinal, o trono estava esvaziado, mas, como será analisado no decorrer do trabalho,
eles fracassaram em sustentar suas heurísticas.
Para Nietzsche, a morte de Deus é uma expressão poética do
desaparecimento do horizonte metafísico2. Isso significa que não se pode mais
sustentar a crença num conhecimento objetivo, que nos traga seguranças imutáveis.
Como Deus morreu e, com isso, nenhum sentido existe a priori no mundo,
seja para vida ou para a história, os homens são impelidos a criar esse sentido eles
próprios. Sobre tal condição, o filósofo questiona: “mas queremos tornar-nos aquilo
que somos: os novos, os únicos, os incomparáveis, aqueles que determinaram as
próprias leis, aqueles que criaram a si próprios?” (NIETZSCHE,2001, p. 335). Em
face da Morte de Deus tem início o nosso luto, nesse ponto as verdadeiras
dificuldades começam. Nietzsche dá sinais de insatisfação aguda com o que o
homem moderno se tornou.
O homem moderno arrasta, em última análise, uma imensa quantidade de pedras de saber não digeridas, que eventualmente fazem um grande ruído em seu ventre, como diz a lenda. Com esse rumor, revela-se a quantidade mais pessoal desse homem moderno: o singular contraste de um interior ao qual nenhum exterior corresponde, e um exterior ao qual não corresponde um interior, contraste que os povos antigos não conheciam (NIETZSCHE, 2001, p. 178).
O desencantamento provocado pela expulsão do sagrado no mundo moderno
retrata a falência de seus derivados metafísicos, por serem incapazes de suprir o
vazio existencial causado pela morte divina que gerou náusea e a sensação de
absurdo.
Com a morte do criador, pelas nossas próprias mãos, retiramos do mundo
aquilo que nos sustentava e fornecia sentido para a nossa existência. O filósofo
alemão descreveu este evento cultural que, ao procurar explicações matematizadas
2 Metafísica: “ciência primeira”, ou “ciência do ser enquanto ser”. Em grego, “depois da física”. É o campo da
filosofia que investiga uma teoria sobre o Real. Na filosofia de Nietzsche, o termo é vinculado diretamente à
filosofia de Platão, vista como uma tentativa de negação e escape do mundo natural.
21
e cientificistas para todos os fenômenos da vida e do mundo, acabou por
desautorizar o papel de Deus em nossa sociedade.
Nietzsche sintetizou em um telúrico aforismo sua constatação; mantido na
íntegra neste presente trabalho, devido a sua beleza estética:
Não ouviram falar daquele homem louco que em plena manhã acendeu uma lanterna e correu ao mercado, e pôs-se a gritar incessantemente: “Procuro Deus! Procuro Deus!? – E como lá se encontrassem muitos daqueles que não criam em Deus, ele despertou com isso uma grande gargalhada. Então ele está perdido? Perguntou um deles. Ele se perdeu como uma criança? Disse outro. Está se escondendo? Ele tem medo de nós? Embarcou num navio? Emigrou? – Gritavam e riam uns para os outros. O homem louco se lançou para o meio deles e trespassou-os com seu olhar. “Para onde foi Deus?, gritou ele, já lhes direi! Nós o matamos – vocês e eu. Somos todos seus assassinos! Mas como fizemos isso? Como conseguimos beber inteiramente o mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte inteiro? Que fizemos nos quando desprendemos esta terra de seu sol? Para onde se move ela, então? Para onde nos movemos? Longe de todos os sois? Não nos precipitamos sem cessar? E para trás, para os lados? Há ainda um alto e um baixo? Não erramos como através de nada infinito? Não nos bafeja o espaço vazio? Não ficou mais frio? Não vem, sem cessar sempre a noite e mais noite? Não se tem que acender candeeiros pela manhã? Não ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus? Não sentimos o cheiro da putrefação divina? – também os deuses apodrecem! Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matamos! Como nos consolar, a nós, assassinos entre os assassinos? O mais forte e mais sagrado que o mundo até então possuíra sangrou inteiro sob nossos punhais – quem nos limpará este sangue? Com que água poderíamos nos purificar? Que cerimônias de expiação, que divinos jogos deveríamos inventar? A grandeza desse feito não é demasiado grande para nós? Não teríamos que nos tornar, nos mesmos deuses, para apenas nos parecer dignos dele? Jamais houve um feito maior – e sempre que tenha apenas nascido depois de nos pertence, por causa desse feito, a uma história até agora. — Aqui, calou-se o homem louco e mirou de novo seus ouvintes. Também estes silenciavam e olhavam-no com estranhamento. Finalmente, ele arrojou o candeeiro ao solo, de modo que esse se estilhaçou e apagou. ‘chego cedo demais’, disse ele então; ‘não estou ainda no tempo oportuno’. Esse acontecimento formidável ainda está a caminho e peregrina – ele ainda não penetrou nos ouvidos dos homens. Relâmpago e trovão precisam de tempo, feitos precisam de tempo, a luz dos astros precisam de tempo, mesmo depois de consumados, para que serem vistos e ouvidos. Este feito, está ainda mais distante deles do que os astros mais remotos -, e todavia eles o consumaram. Conta-se ainda que, no mesmo dia, o homem louco teria entrado em diversas igrejas e nelas entoado seu réquiem aeternam Deo. Conduzido para fora e incitado a falar, teria ele replicado sempre apenas isto: “O que são as igrejas, então, se não criptas e mausoléus de Deus?” (NIETZSCHE, p.147-148).
22
O aforismo retratado é um dos momentos mais célebres da filosofía e da
literatura do ocidente. É possível notar a presença de um ex-cristão que
experimentou as consequências emocionais provocadas pela morte de Deus como o
evento decisivo que afetará o contemporâneo de forma irreversível. A constatação
“traumática” da morte divina tornará possível uma nova elaboração da perspectiva
sobre o passado e o futuro da civilização ocidental, por meio de uma “escola da
desconfiança” ou “olhar da suspeita”. Em relação a isso, Nietzsche faz a seguinte
observação: “De fato, eu não mesmo acredito que jamais alguém tenha visto o
mundo com uma desconfiança tão profunda” (NIETZSCHE, 2003, p.112).
A desconfiança nietzschiana é dirigida a todos os domínios da tradição
cultural: Religião, História, Arte, Filosofia, Direito, Ciências; ou seja, para todas as
construções culturais que os homens desenvolveram em seu convívio.
Os homens frequentemente acreditaram em uma Verdade fixa, fosse ela
denominada Deus, Razão, Ciência ou História. Confinados a essa ilusão produzida
pela linguagem, não perceberam que não há “Verdade” alguma, mas apenas
verdades convencionadas que foram criadas e produzidas por eles próprios, assim
como os deuses ou as fadas. Nietzsche foi um dos primeiros filósofos a perceber o
processo de feitiço da língua ou da ontologização da linguagem. “Enquanto houver
a gramática, ainda haverá Deus” (NIETZSCHE, 2008, p. 122). De acordo com o
filósofo, quando falamos sobre algo, não falamos sobre um mundo objetivo, mas
sobre uma teia inflacionada de sentidos e perspectivas que lutam entre si, efetuando
acordos simplórios para o entendimento, viabilizando, desta forma, a comunicação.
Portanto, esse foi o maior erro da civilização ocidental: sua busca
desenfreada e determinada pela comunicação da verdade, mesmo quando ela
poderia comprometer e matar a crença da qual teve origem. O filósofo reflete sobre
esse ”ascetismo da veracidade”:A verdade tornou-se em nós uma paixão que não
recua diante de nenhum sacrifício e nada teme, no fundo senão sua própria extinção
e talvez a humanidade até chegue a perecer por esta paixão do conhecimento!
(NIETZSCHE, 2003, p. 121)
O homem moderno herdou a fé e o otimismo na razão dialética socrática e
tenta suportar as dores do existir por meio da racionalidade que promete desvendar
23
os segredos mais “profundos” da realidade. O homem teórico continua a apostar na
ciência como antídoto universal para a eterna ferida existencial e atribui ao erro (ao
falso, a mentira, a ignorância, a ilusão) a causa de todo os males do mundo; hostil a
arte, a imaginação criativa e ao mito, entendidos como formas infantis ou obsoletas
de compreensão da realidade - incapazes de explicar, verdadeiramente, as leis
causais do mundo.
Enquanto a apologia da razão bafeja as suas promessas inalcançáveis de
emancipação do sujeito e felicidade prática por meio da técnica, os moralistas,
racionalistas, empiristas, socialistas, iluministas e positivistas, todos herdeiros da
doença socrática, excluem a dimensão do trágico e afirmam e polarizam conceitos
fixos dicotomizados como o belo, o feio, o bem, o mal, a verdade e a mentira o real e
o falso. A meta é revelar o que está oculto, esclarecer por meio da razão, e dissipar
o mundo das sombras ou das ideologias que ocultam. Como diria Nietzsche: Oh,
verdade! Circe dos intelectuais! (NIETZSCHE, 2006, p. 99).
Sim, Deus morreu! Mas está morto para a cultura. E esta é a meta da
genealogia nietzschiana; compreender as consequências desse fenômeno,
especialmente para a contemporaneidade, como exemplifica Oswaldo Giacóia
Junior:
Se, como resultado do desenvolvimento das ciências e do aprofundamento do esclarecimento, nós chegamos à experiência da morte de Deus, então é licito colocar também em questão o único valor absoluto que ainda continua reconhecido pela consciência cientifica contemporânea: o valor absoluto da verdade. A morte de Deus implica, portanto, a possibilidade de colocar em questão a crença na origem divina e no valor absoluto da verdade (GIACÓIA, 2008, p. 25).
George Didi-Huberman, o historiador das imagens, buscou em Aby Warburg,
provavelmente o mais Nietzschiano dos historiadores, um novo método para sua
pesquisa no campo da arte. Os “fantasmas de Warburg’’ ofereceram esse novo
caminho para os estudos. Não mais uma história sequencial, ordenada e linear, mas
um historiar que logra investigar os sintomas de uma obra de arte:
Movimentos, emoções “como que fixadas por encantamento “e atravessando o tempo: é bem essa magia figural das Phatosformeln, segundo Warburg. Mais uma vez, sua exumação foi comandada pela aguda percepção de um paradoxo constitutivo no renascimento italiano: foi nas paredes dos antigos sarcófagos que os movimentos
24
da vida, do desejo, das paixões sobreviveram até chegar a nos, até nos emocionarem e transformarem a nossa visão do presente (HUBERMAN, 2010, p. 175).
A obra de arte carrega Imagens-fantasmas, ou imagens-sobreviventes que
insistem em nos assombrar. Como diria Warburg, “essa história de fantasmas para
gente grande” é a meta deste escrito: por meio da genealogia nietzschiana,
vasculharemos as antigas imagens fantasmas que sobreviveram, mais
precisamente, em uma obra de arte, – “a obra de arte” para muitos – A Criação de
Adão, imortalizada na capela Sistina, pelas mãos de Michelangelo.
Luto e criação devem parecer figuras que representam momentos opostos, o
início de algo, pela criação e o efeito do fim, pelo luto. Todavia, como nos lembra
Nietzsche (2004, p. 165), “um pesquisador precisa ter um olho de artista e o outro de
médico; o nascimento e a morte são como o símbolo de Ouroboros3, uma serpente
devorando a própria cauda em um movimento circular e infinito”.
A Criação de algo novo não só carrega a possível destruição do antigo, como
possui o princípio de sua própria ruína, nos apontava Nietzsche. O afresco que
registra a Criação de Adão, também, registra a Morte de Deus. Seguindo o insight
nietzschiano: enquanto Michelangelo pintava a criação com uma de suas mãos, o
que fazia a outra? Provavelmente, a outra mão pintava a morte de Deus
simultaneamente.
A Criação de Adão é o início de uma elaboração sobre o luto do divino,
tentativa esta que nunca foi concluída. Evocaremos a formulação Psicanalítica: um
trauma mal elaborado gera um sintoma e esse sintoma nos assombrará como um
fantasma, até que ele seja exorcizado por meio de uma nova ressignificação. De
certa forma, a história do ocidente, pós-morte de Deus, é a história da elaboração
desse luto.
Conforme Nietzsche postulou, sabemos que o homem elaborou a arte para
que não morresse de “Verdade” (NIETZSCHE, 2001, p. 98). A Renascença foi a
“grande época da Arte”, não podemos dizer que seus esforços foram mentiras,
exceto no sentido nietzschiano, de mentir contra o tempo, contra o inexorável e cruel
3 Símbolo representando uma serpente, ou um dragão, devorando a própria cauda. Ícone comumente associado à
alquimia e ao movimento cíclico do eterno retorno do tempo mítico.
25
“já passou”. A natureza hibrida do Renascimento anuncia essa “estranha-nova”:
Deus morreu; aconteceu; passou; mas teremos que lidar com isso; nem que seja
necessário que novos deuses sejam pintados.
Daí a importância desempenhada pelo Renascimento, pois o movimento
demarcou a momento fronteiriço, situado entre a Idade-Média e a Modernidade, no
qual o ocidente começou a elaborar o luto pela morte de Deus. Perante a ausência
do “centro-divino”, o ocidente começou a forjar novos sucessores. A razão e a
História são, sem dúvida, os grandes discursos “consoladores” característicos da
modernidade. Constataremos no decorrer do trabalho, que muitos “consoladores” e
usurpadores serão entronizados – afinal, a dor do luto foi insuportável –, mas foi o
Humanismo Renascentista o primeiro esforço de “reparação”4 desenvolvido por
nossa cultura, na tentativa de alçar o homem ao trono vazio de Deus.
Renascimento, Humanismo, Reforma, Iluminismo, Romantismo, Positivismo e
Comunismo, para citar os movimentos mais importantes, carregaram todos a
imagem-fantasma da morte de Deus. A afirmação pode parecer arbitrária, todavia,
será devidamente explicitada no decorrer do capítulo; por ora, o objetivo desta
formulação é a de inferir a proposta de que o homem buscou novos sucessores para
a ausência de Deus, em uma tentativa falimentar de, na ausência do Criador,
encontrar um novo fulcro para a cultura.
Infelizmente, o projeto ocidental ignorou que todo princípio carrega em si
mesmo a própria ruína. A morte de Deus, automaticamente, decretou a eminente
morte do homem. Não só do ponto de vista narrativo (seguindo as escrituras, afinal,
se não há um criador, não pode haver uma criatura) como do ponto de vista
filosófico, que culminará em interpretações como as da “morte do sujeito”, (Foucault)
ou a “morte do autor” (Barthes).
Por quem os sinos dobram? A resposta é simples: pelo próprio homem. O
homem enlutado, na sua busca por elaboração do trauma de todos os traumas, não
levou em consideração que a morte de Deus não ocorreu por um ataque externo ao
divino, uma explosão, mas a derrocada celestial foi ocasionada por uma implosão.
4 Utilizado no texto no sentido “psicanalítico”. Segundo Melanie Klein, a reparação surge como uma tentativa de
“consertar” um objeto- internalizado; danificado pela pulsão de morte.
26
Nietzsche percebe que uma civilização não pode ser conquistada por forças
externas até que tenha destruído a si mesma a partir de dentro.
Mas que doença é esta que nos corroeu por dentro? Que levou aquilo que
tínhamos de mais sagrado e nos deixou enlutados? Seguindo a perspectiva
nietzschiana, a grande doença que avança sobre a cultura ocidental é o Niilismo, a
nadificação da potência.
O fenômeno do niilismo, que também será esmiuçado com mais precisão no
decorrer deste trabalho, não só causou a morte de Deus, como esvaziou nossa
potência para a elaboração do luto divino. O homem cansado, profetizado por
Nietzsche, encontra-se no limiar da encruzilhada ocidental: como viver sem um
centro referencial? Sem um sentido? Sem encantamento? A descrição de Nietzsche
é terrível:
A terra terá se tornado tão exígua então, nela veremos saltitar o derradeiro último homem, que apequena toda e qualquer coisa. Sua laia é indestrutível quanto às pulgas; o Derradeiro Homem é aquele que viverá mais tempo [...] Eles terão abandonado as paragens em que a vida é dura; pois precisam de calor. Ainda amarão o próximo e dele se aproximarão, pois precisam de calor [...] Um pouco de veneno, de tempos em tempos; isso proporciona sonhos agradáveis. Ainda trabalharão, pois o trabalho distrai. Mas tomarão cuidado para que distração jamais se torne cansativa. [...] Serão espertos, e saberão tudo que se passou outrora, assim, terão com que fazer zombarias sem fim. Ainda brigarão, mas logo se reconciliarão, com medo de atrapalhar a digestão. Terão seu pequeno prazer para o dia e seu pequeno prazer para a noite; mas venerarão a saúde. “Inventamos a felicidade”, dirão os derradeiros últimos homens, e piscarão os olhinhos (NIETZSCHE, 2001, p. 61; 63).
Dentro da perspectiva nietzschiana, o pensamento ocidental sempre procurou
pontos “fixos” para poder erguer seus edifícios teóricos: “Deus, Substância, Razão,
Absoluto, História, o Outro, e mesmo o Ser de Heidegger, não passavam de
tentativas de encontrar uma terra não movediça, uma ilha no mar revolto de
multiplicidades sem fim. Toda a história da metafísica ocidental5, desde Platão,
resumida à procura por uma essência originaria e atemporal.
5 Segundo Nietzsche, somente os filósofos pré-socráticos teriam escapado da influência da metafísica Socrático-
Platônica. O Idealismo Alemão, o Socialismo, a Filosofia-Teológica Cristã, o Racionalismo, o Romantismo
seriam só alguns dos desdobramentos da “metafísica”, (mesmo o cientista é visto como um “desenrolar do
27
Agora, sem em cima ou embaixo, direita ou esquerda o homem prossegue
sua suposta jornada histórica, mas para onde? A questão é relativamente simples:
sem um ponto fixo, sem uma referência, sem um princípio, consequentemente o
homem perdeu seu destino. Não há mais um final feliz, nem finalidade, nem para
onde ir, como nos alertou Nietzsche.
Outro autor profundamente inspirado por Nietzsche foi o sociólogo alemão
Max Weber, estudioso do processo de desencantamento do mundo e do seu modo
de racionalização e burocratização. Weber chegou a declarar que:
Depois da devastadora crítica feita por Nietzsche aos últimos homens que inventaram a felicidade, posso deixar totalmente de lado o otimismo ingênuo no qual a ciência –isto é, a técnica de dominar a vida que depende da ciência – foi celebrada como o caminho para a felicidade. Quem acredita nisso – à parte de algumas poucas crianças grandes, que ocupam cátedras universitárias ou escrevendo editorias (WEBER, 1995, p. 443).
A observação do sociólogo alemão demonstra como a crítica de Nietzsche
explicitou que não há mais um “final feliz” para a trajetória da civilização ocidental.
Nada de Reinos Celestiais, Paraísos comunitários ou a solução científica para todos
os males; não há final, nem luz no fim do túnel -- a não ser para algumas “crianças
grandes”. Em um mundo desencantado, sem finalidade ou princípio, nosso luto pelo
divino é ao mesmo tempo um luto pelo homem.
Em seu ensaio “A Ciência como Vocação”, Weber postula que toda a teologia
pressupõe que o mundo tem significado e que só uns poucos corajosos são capazes
de reconhecer que esse significado inato não existe. Segundo o sociólogo, o “super-
homem”, profetizado por Nietzsche, capaz de lidar com a aspereza do mundo é o
cientista social. Para aqueles incapazes de lidar com a “perigosa verdade de
Nietzsche”, não podendo viver sem um consolo, Weber registra, “as portas das
velhas igrejas estão ampla e compassivamente abertas” (WEBER, 1995, p. 136).
Retornemos mais uma vez a obra de Michelangelo e o que ela poderia nos
dizer sobre o contemporâneo. Qual imagem poderia ter sobrevivido à tamanha
devastação de sentido? No afresco de A Criação de Adão, temos um deus vigoroso,
sacerdote”) entendida pelo filósofo como um sustentáculo ficcional para o mundo real, que teria, então, sido
transformado em uma “fabula”.
28
voltado para sua criação, enquanto Adão experiência a potência da vida por meio do
vir a ser. Agora, sabemos que este Deus morreu e, com ele, um tipo de mundo
também desapareceu. Sinteticamente: em um mundo desencantado, sem finalidade
ou princípio, nosso luto pelo divino é ao mesmo tempo um luto pelo homem.
Nossa primeira imagem-fantasma nos assombrou com um cenário
contemporâneo desencantado e caótico. Percebemos que a morte de Deus não
estipulou o renascimento do homem, mas sim o seu desaparecimento.
Os homens tornaram-se atheos, não como um ateu, alguém que não acredita
em Deus, mas no sentido de que abandonamos o divino. A tragédia do homem
moderno está configurada no desamparo, no enlutamento. A palavra alemã para
tragédia é trauesrpiel, que pode ser compreendida como jogo ou espetáculo do luto.
Há uma “estranha” semelhança entre a época que os gregos formularam a
tragédia e o século XVIII, quando Nietzsche constata a morte de Deus: não há mais
lugar para a consolação das ilusões. Os gregos importaram Dionísio, um deus da
Ásia menor, e viram florescer o período trágico, após a insuficiência do padrão
épico-apolíneo em sustentar todos os dramas da vida. Nós, no entanto, vimos o
declínio de um Deus – também vindo do oriente- e o levante de uma nova tragédia6,
similar a de Édipo7, narrativa na qual o herói sobrevive ao evento trágico e, desde
então, precisa vagar cego pelo mundo.
Nós sobrevivemos à tragédia do luto divino, esse evento cultural catastrófico,
e continuamos a vagar cegos pelo mundo, sem um centro, sem um sentido, sem
garantias e sem amparo. Nossa tragédia, como a de Édipo, não consiste tanto no
evento aversivo, mas em termos sobrevivido a ele.
Segundo Nietzsche, Sócrates surge em um momento de declínio do período
heróico da tragédia ática. Esta “era da cegueira”, (pós-predomínio do mito), foi o
marco da ascensão do pensamento socrático e da supervalorização do pensamento
lógico e dialético. Com a “Mosca de Athenas” ocorreu uma ruptura radical em
relação à Grécia pré-socrática, mas tal mudança não representou uma evolução ou
6 Tragédia: gênero poético grego, especialmente vinculado aos cânticos religiosos em culto a Dionísio
7 Édipo: Herói grego, famoso por ter derrotado a Esfinge, após ter decifrado seu enigma. Segundo a lenda teria
matado seu pai e casado com sua própria mãe. Curiosamente, Édipo não morre ao final da narrativa, tendo um
desfecho diferenciado da maior parte dos heróis trágicos, como Aquiles, Heitor, Hércules, Ajax, etc.
29
aperfeiçoamento, como somos ensinados a acreditar pela tradição ocidental, pelo
contrário, a racionalidade socrática, progenitora do cientificismo moderno tem como
premissa a negação do saber trágico e de sua experiência arcaica do mito.
Podemos encontrar esta atitude nos já adoentados seguidores de Sócrates que, por
não terem conseguido suportar o absurdo da existência, negaram o trágico e
promoveram a razão como ideal. Lembremos, no entanto, que o próprio Sócrates
dedica o final de sua vida às artes, como a poesia e a música o que ilustra o
fracasso de sua proposta. Nietzsche questiona: “Quem é esse que sozinho ousa
aventurar-se a negar este ser grego que com Homero, Píndaro e Ésquilo, com
Fídias, Péricles, Pítia e Dionísio, com seus abismos profundos e seus picos mais
altos, conquistaram nossa admiração e nossa adoração?” (NIETZSCHE, 2001, p.
93).
É preciso ressaltar, contudo, que diferentemente de nossa tragédia, os gregos
arcaicos (pré-socráticos), para Nietzsche, souberam integrar as dimensões
apolíneas e dionisíacas, dando a vida elevação e beleza, em todos os aspectos da
cultura, mesmo perante a violência, os horrores, paixões, guerras e sofrimentos.
Enquanto nós, pós-socráticos, no máximo, desenvolvemos uma mente bicameral,
que vive simultaneamente a morte do divino e a crença em sua presença, ainda que
travestido de razão, história ou outro sucedâneo qualquer. Passamos pelo evento da
morte de Deus, mas escondemos o corpo e continuamos vivendo como se nada
tivesse acontecido.
Nietzsche conheceu o livro “O Mundo como Vontade de Representação”
(1818), de Arthur Schopenhauer (1788-1860), por acaso, em uma livraria. Nesta
obra encontrou as bases para as ideias que forjaria posteriormente: que o mundo
não é racional em si mesmo e que a moralidade e significado histórico são relativos.
Tudo isso fez com que Nietzsche concluísse que Deus estava morto. Mas o que
queria dizer com isso?
Nietzsche não matou Deus, apenas constatou um fenômeno da cultura
ocidental. A morte de Deus talvez tenha tido origem nas “feridas narcísicas”8
8 Segundo Freud, o homem foi ferido por suas próprias descobertas cientificas: a terra não é o centro do
universo, a teoria da evolução das espécies e a descoberta do inconsciente como força responsável por
determinar o comportamento humano.
30
propostas por Freud, ou dentro dessa perspectiva, agora, “chagas divinas”.
Copérnico “desatou o sol da terra” e Darwin nos mostrou uma origem menos
“gloriosa”, enfim, não somos mais o centro da criação divina. Mas a genealogia
nietzschiana nos revela algo mais sutil e espantoso:
O cristianismo chega ao fim, destruído por sua própria moralidade que acaba por se ver obrigada a negar até mesmo a existência do seu próprio Deus. O senso de veracidade, desenvolvido ao máximo pelo cristianismo, deixa-se contaminar pelas falsidades e pela desonestidade de todas as interpretações cristãs do mundo e da história. Salta de “Deus é a verdade” para “tudo é falso” (NIETZSCHE, 2006, p. 98)
O melhor trabalho de “demolição do divino” teve origem no seio do próprio
Cristianismo. Em a Gaia Ciência, Nietzsche pergunta “o que fizemos quando
desatamos a terra do seu sol?” Para onde ela se move agora? Copérnico (1473-
1543) foi um cônego católico que promoveu essa “chaga divina”, antes mesmo que
narcísica.
A constatação da morte de Deus não é um mero ataque a religião, mas algo
mais abrangente. Deus, agora, não significa somente o deus para o qual os
religiosos oram e os filósofos refletem: Deus é compreendido como a soma total dos
valores que a civilização ocidental havia produzido. Logo, a morte de Deus decretou
o fim de todos os valores elevados que havíamos herdado da tradição.
O cristianismo, em sua busca obcecada pela verdade, procurou na natureza
as leis universais e imutáveis criadas por Deus. Diferentemente da imagem
equivocada e amplamente divulgada sobre o cristianismo como “inimigo da ciência” -
herança da propaganda iluminista -, o cristianismo motivava o conhecimento das
supostas obras divinas, até mesmo como comprovação de sua origem arquitetada,
ocorreu que um problema surgiu em sua própria demanda: Ao procurar um Deus por
trás das “leis naturais”, nada encontraram; a não ser uma natureza indiferente e as
futuras bases para um mecanicismo autossuficiente. Mesmo teologias residuais,
como a do protestante unitário, a do filósofo deísta das luzes, o Deus relojoeiro e a
do racionalista integral, o Deus-natureza –são todas descendentes do platonismo e
filhas do cristianismo – como nos adverte Nietzsche:
Nos últimos séculos promoveu-se o avanço da ciência, em parte porque se esperava compreender melhor com ela e por ela a
31
bondade e a sabedoria de Deus – o motivo principal na alma dos grandes ingleses, como Newton; em parte porque se acreditava na utilidade absoluta do conhecimento, particularmente na intima união da moral, do conhecimento e da felicidade- o motivo principal dos grandes franceses, como Voltaire; e em parte por que na ciência se acreditava possuir e amar alguma coisa que não tinha nada a ver com os maus impulsos humanos, alguma coisa desinteressada e inofensiva que se bastava a si mesma, algo verdadeiramente inocente o motivo principal da alma de Spinoza que se sentia divino pelo conhecimento, isto é, em razão de três erros (NIETZSCHE, 2001, p. 37).
O cristão Descartes (1596-1650), que escrevera um tratado sobre o universo,
acreditara que poderia desenvolver um sistema que não apenas englobaria todo o
conhecimento, mas também o unificaria. Estendendo seus estudos sobre um amplo
leque de temas, como astronomia, geometria, e dioptria, o filósofo Francês decidiu
estudar anatomia e passou a visitar diversos matadouros locais. Destas visitas,
nasceu uma famosa anedota: segundo a historieta, Descartes notou um jovem
desenhando a carcaça sem pele de um boi e perguntou-lhe por que escolhera
aquele tema. “Sua filosofia arrebatou nossas almas”, respondeu o artista. E em
meus quadros, eu a devolverei, mesmo aos animais mortos. Dizem que o jovem era
o famoso pintor Rembrandt (1606-1669)9.
Independentemente da veracidade do encontro, é inegável que tal “lenda”
nos relata uma verdade sobre a pretensão cartesiana e cristã: a alma do mundo
havia sido arrebatada para algum lugar distante, enquanto a arte, talvez pudesse
salvá-la.
Essa rápida digressão serviu para demonstrar que a morte de Deus teve
início pelas mãos de seus próprios fiéis, em uma curiosa repetição narrativa, já
conhecida entre judeus e cristãos.
Nietzsche foi educado em um ambiente pietista10 e, de certa maneira,
manteve seu temperamento religioso. Autenticamente angustiado pela constatação
da morte de Deus, o filósofo relatou: “O maior acontecimento dos últimos tempos – a
saber, Deus morreu; que a crença no deus cristão perdeu o crédito – já começa a
9 Rembrandt Harmenszoon van Rijn, pintor e gravador holandês, expoente máximo do “Século de Ouro dos
países baixos”, considerado por muitos como o “maior pintor da história”, justamente, por causa do seu domínio
técnico sobre as luzes; comparadas pelo artista à alma humana. 10
Nietzsche viveu sua infância em um ambiente Pietista, educado por sua mãe e irmã. Em 1849, ficou órfão do
pai, um pastor Luterano.
32
projetar suas primeiras sombras sobre a Europa”. Uma crise sem precedentes dos
valores ocidentais era eminente, principalmente quando a humanidade tomasse
consciência disso:
As verdades e os valores são ilusões, mas esquecemos que eles o eram, que são usados e não tem mais força na experiência sensível, moedas que perderam sua imagem e que agora só são levadas em consideração como metal e não mais como moedas (NIETZSCHE, 2001, p. 84).
Desde então, vivemos esse espetáculo que configura a nossa tragédia, um
teatro sem protagonista e um palco no qual os atores restantes gritam e se
engalfinham pelo papel principal.
Após a morte de Deus para a cultura, tivemos que lidar com a elaboração do
“luto de todos os lutos”. A modernidade herdará tal enlutamento e sua busca ávida
por um novo sucessor. Mas antes, precisaremos compreender: Por que o
Renascimento produziu a arte mais elevada do cânone ocidental, justamente
quando Deus estava prestes a morrer? O Renascimento irá configurar para a
história do ocidente o início ambivalente da elaboração do luto pelo divino, uma
espécie de supernova, uma luz intensa que antecederá as sombras confusas e
erráticas do niilismo no contemporâneo.
2.1 O RETRATO DO CÉU ESVAZIADO: O Trono Vazio e os Vice-
reis
Se Michelangelo fosse contratado para retratar a obra a Criação de Adão nos
dias atuais, quem estaria no lugar de Deus no afresco? No decorrer da história
ocidental os candidatos foram muitos: Razão, História, Ciência, Absoluto, entre
outros. Kierkegaard – como Nietzsche - percebeu que “um rei sem país, na verdade,
não governava nada” (KIERKEGAARD,2001, p.68), o pensador dinamarquês
atacava a filosofia do Eu e do Absoluto, tão difundida em sua época, especialmente
por filósofos como Hegel, Shelling e Fitche, todavia o mais interessante é a
conclusão óbvia de que sem uma terra, não há nada para reinar.
Após o Renascimento Humanista, que colocou o homem no centro do
universo, o ocidente passou por inúmeras convulsões culturais: a reforma
protestante, que libertou a consciência individual do monopólio da Igreja; as
33
revoluções científicas, que conferiram ao homem a capacidade de investigar e
controlar os antigos mistérios da natureza; o Iluminismo e sua aposta em um homem
racional, libertado da ignorância, do dogma e da intolerância; as utopias socialistas;
psicanálise e assim por diante. Todos estes movimentos contribuíram para o
nascimento de novas concepções sobre o homem, mas, ainda, havia um problema
pendente.
Temos aqui outro aspecto basal da constatação nietzschiana: a civilização
ocidental não está ciente da morte divina. Embora o crime tenha sido consumado, o
que gera a perplexidade de Nietzsche é que todos os valores morais e metafísicos
ligados ao cristianismo sobreviveram. A morte de Deus foi em vão. Apenas trocamos
de religião e de sucedâneos.
A ausência do Criador inutilizou a criatura, não havia mais terra para ser
governada. Logicamente, o processo foi gradativo. Como a erosão de uma
montanha no decorrer das eras pela força dos ventos, a pretensão ao divino foi
ruindo. O excesso de racionalização foi o “sopro do vento” que aos poucos arruinou
o mundo no qual Deus habitava.
Comumente a modernidade é associada ao período da História e da Razão.
Elas tentaram, heroicamente, suceder o divino. Mas se Deus morreu, para nossa
cultura, quem possuiria tamanha força para sustentar uma narrativa que abrigasse a
todos os aspectos da existência?
Adversário vigoroso de Nietzsche, o escritor britânico G.K. Chesterton11 dizia
reconhecer a Morte de Deus para a cultura; só não podia aceitar que qualquer
“coisa” assumisse seu lugar (CHESTERTON, 2008, p. 73). Neste aspecto,
concordava com seu desafeto alemão.
Como já foi mencionado neste trabalho, inúmeros foram os sucessores
divinos: Razão, História, Outro, Cérebro, Genoma, Progresso, Absoluto, Luta de
Classes, Amor, Natureza, Nação, Cultura, Força Vital, Estado, Inconsciente, Moral,
Sujeito, Consciência, Totalidade, Ser, Vontade, Estrutura ou mesmo a Arte, em
11
Gilbert Keith Chesterton, conhecido como G.K Chesterton, foi poeta, historiador, economista, desenhista e
teólogo britânico. Autor de livros como “O Homem Eterno” e “Ortodoxia”, famoso por colocar em debate crítico
as idéias de Nietzsche.
34
formulações metafísicas que procuravam o Belo e o Sublime. Todas essas próteses
divinas, de alguma forma, operavam nos discursos como um centro, aquele mesmo
perdido com a Morte de Deus.
Heidegger foi o pensador que reconheceu Nietzsche como o “filósofo
decisivo”. Diferentemente de outros comentadores, o pensador da floresta negra
problematizou a obra nietzschiana de forma original, como comenta Giacoia Junior:
Heidegger se ocupou com o estudo do pensamento de Nietzsche por um período que vai do final dos anos 30 a meados dos anos 50. A publicação de seus estudos constitui um divisor de águas e uma referência obrigatória para qualquer interpretação da obra de Nietzsche (GIACÓIA, 2005, p. 32)
Mas por que a interpretação da obra de Nietzsche por Heidegger é tão vital?
Segundo Heidegger o pensamento de Nietzsche foi um marco decisivo para a
filosofia ocidental:
Nietzsche é o primeiro pensador que, perante a história universal pela primeira vez aflorada em seu conjunto, coloca a pergunta decisiva e a reflete internamente em toda a sua extensão metafísica. Essa pergunta reza: como homem, em sua essência até aqui, está o homem preparado para assumir o domínio da terra? (Heidegger, 2012, p. 102).
A crítica mais ampla de Heidegger ao pensamento de Nietzsche exigiria um
trabalho à parte, mas um aspecto desta crítica, complexa e ambivalente, nos
interessa: O traço ontoteológico do pensamento ocidental.
Ontologia12 é a disciplina filosófica que estuda o ser dos entes. A palavra
“ente” traduz o termo grego Onta, que designa entidades, aquilo que é ou que existe.
Ontologia, portanto, é a ciência ou estudo metódico (logia) daquilo que é – o ente-,
visando determinar sua essência ou seu ser. Teologia é o estudo sobre Deus, ou
ciência que trata do divino.
Heidegger levantou a velha questão sobre o Ser a partir da distinção entre o
“ente”, esta ou aquela realidade que existe empiricamente, e o “Ser”, misteriosa
fonte da presença de todo ente. Segundo o pensador da floresta negra, a filosofia
teria ignorado a diferença e reduzido o Ser a um ente superior e absoluto: Deus.
12
E necessário reportar que o filósofo alemão Heidegger propõe a distinção de duas palavras: Ôntico e
Ontológico; ôntico se refere à estrutura e a essência própria do ente; enquanto ontológico seria o estudo
filosófico do ser dos entes.
35
Para fugirmos desse “erro”, precisamos abordar o sentido do ser a partir da
diferença, e não à eternidade e à totalidade, como foi no caso da história do
pensamento ocidental.
Para Heidegger, o pensamento ontoteológico fica evidente quando
perguntamos sobre o mundo sempre da mesma maneira; procurando um
fundamento absoluto, ignorando a temporalidade para que seja possível assegurar a
fixidez como centro que garanta a identidade, o controle, a mensurabilidade e a
funcionalidade do ente.
Os vice-reis retratados nesse capítulo, Razão, Absoluto, História, Ciência, são
apenas próteses de um Deus Morto; uma maneira velha de perguntar sobre novas
questões. Deus pode ter morrido para a cultura, mas continuamos a perguntar da
mesma forma sobre ele, ainda que com outros nomes.
Esta forma de pergunta é o que caracterizou o pensamento ocidental, desde
Platão. A própria natureza desta pergunta antecede Deus na cultura ocidental. O
outrora Deus oriental e vingativo tornou-se uma necessidade da lógica, habilmente
miscigenado pelos cristãos a filosofia platônica. Daí, Nietzsche afirmar que:
“Cristianismo era Platonismo para o povo” (NIETZSCHE, 2004, p. 133). As ideias de
Platão, as causas de Aristóteles, as mônadas de Leibniz, a substância pensante de
Descarte ou Deus como ens supremo na filosofia medieval. A Ontologia foi
determinada por uma espécie de pergunta caracterizada pela busca do ser dos
entes, por sua essência; sempre respondendo a essa pergunta com a identificação
de um ente supremo.
Por isso a importância em mudarmos a pergunta. Desde Platão, não
reformulamos a questão, mesmo que as respostas tenham sido insuficientes.
Precisamos indagar: qual o sentido do Ser? Heidegger conclui posteriormente que
só os artistas poderiam demonstrar tal pergunta, especialmente a poesia, pois ela “é
a linguagem do ser, o poeta faz a experiência de um poder, de uma dignidade da
palavra, que não consegue ser pensada de maneira mais vasta e elevada”
(HEIDEGGER, 2012, p. 77).
36
O papel da arte é lócus de outra aproximação entre Nietzsche e Heidegger,
pois cabe à postura artística propor “alternativas ao pensamento ocidental”, viciado
em uma forma de questionamento, que acabou por nos condenar ao niilismo.
Nietzsche e Heidegger percebem a urgência da questão para a própria
salvação do cenário ocidental. Heidegger, em um momento nietzschiano, expõe sua
leitura sobre o contexto do contemporâneo:
Quando a tecnologia e o dinheiro tiverem conquistado o mundo; quando qualquer acontecimento em qualquer lugar e a qualquer tempo se tiver tornado acessível com rapidez; quando se puder assistir em tempo real a um atentado no ocidente e a um concerto sinfônico no Oriente; quando tempo significar apenas rapidez online; quando o tempo, como história, houver desaparecido da existência de todos os povos, quando um desportista ou artista de mercado valer como grande homem de um povo; quando as cifras em milhões significarem triunfo, – então, justamente então — reviverão como fantasma as perguntas: para quê? Para onde? E agora? A decadência dos povos já terá ido tão longe, que quase não terão mais força de espírito para ver e avaliar a decadência simplesmente como… Decadência. Essa constatação nada tem a ver com pessimismo cultural, nem tampouco, com otimismo… O obscurecimento do mundo, a destruição da terra, a massificação do homem, a suspeita odiosa contra tudo que é criador e livre, já atingiu tais dimensões, que categorias tão pueris, como pessimismo e otimismo, já haverão de ter se tornadas ridículas (HEIDEGGER, 1987, p.57).
“As perguntas reviverão como fantasmas” anuncia Heidegger. Mas quais
perguntas? Aquelas que ofereçam um antídoto contra o “esquecimento do ser13”:
capazes de mudar a forma de pensar ontoteológica, característica da própria
constituição do pensamento ocidental, condicionada a: criar centros para a
gravitação de todos os elementos restantes e forjar – palavra, etimologicamente,
parente de fingir – fundamentos que sirvam de alicerces para grandes sistemas.
Nietzsche compara, metaforicamente, a metafísica ocidental a uma aranha,
que tudo captura com sua grande teia, para depois devorar. Deus está morto e
continuamos a nos comportar como se ele estivesse vivo, procurando a velha
Verdade estática e segura; prosseguimos fingindo e forjando vice-reis, presos na
mesma teia:
13
A diferença ontológica será tratada por Heidegger como a razão do esquecimento do Ser legado pela tradição
filosófica ocidental. Desde Platão, a filosofia passou progressivamente para uma investigação do ente. Ao
ocupar-se com o ente, a questão do sentido do ser teria caído em esquecimento.
37
Atravesso com sombria prudência essa casa de loucos que é o mundo há milhares de anos; pouco importa que se chamem de cristianismo, fé cristã, Igreja cristã – abstenho-me de responsabilizar essa humanidade por suas enfermidades mentais. Contudo, meu sentimento muda, explode assim que entro na era moderna, em nossa época. Nossa época não é ignorante [...] o que outrora não passou de enfermidade tornou-se um inconveniente. É inconveniente ser cristão hoje. E aqui começa meu desgosto: - volto-me: não resta nos lábios uma só palavra daquilo que outrora se chamava verdade. [...] Não é mais permitido mentir por “inocência”, por “ignorância” [...]. Todo mundo sabe disso e, no entanto, nada muda (NIETZSCHE, 2006, p. 126).
Nietzsche propõe a compreensão da lógica desse movimento contraditório, do
qual o progresso do conhecimento leva à perda de consistência dos valores
absolutos; a partir daí, denunciar todas as formas de sucedâneos pelas quais o
homem moderno esconde sua consciência dos perigos de sua condição; por fim,
após destruir os falsos ídolos, e esses são os valores mais adorados pelo homem
moderno, assumir corajosamente e tragicamente o risco de forjar valores autênticos
e criar novos horizontes para experiência humana na história.
No livro de Terry Eagleton “A Morte de Deus na Cultura”, de forma precisa o
autor expressa a condição de nosso tempo:
Nietzsche refere-se com desdém aos livres-pensadores franceses, de Voltaire a Comte, por tentarem “descristianizar” o cristianismo com um covarde culto do altruísmo e da filantropia, virtudes tão repugnantes, para ele, quanto a compaixão, a piedade, a benevolência e toda a bobajada humanitária [...] São tantas outras maneiras de negar o desaparecimento de Deus, Deus de fato está morto e somos nós os seus assassinos, mas nosso verdadeiro crime não é tanto o deicídio, mas a hipocrisia. Depois de matar o Criador na mais espetacular das revoltas edipianas, tratamos de esconder o corpo, recalcamos toda lembrança do acontecimento traumático, arrumamos a cena do crime e, como Norman Bates em Psicose, nos comportamos como inocentes. Também nós dissimulamos nosso deicídio com várias formas de pseudo-religião. Como se quiséssemos expiar nossa culpa inconsciente (EAGLETON, 2014, p. 146).
Mas essa culpa não é somente em relação ao deicídio cometido por todos
nós, ela também diz respeito ao peso da consequência pela morte de Deus. O ponto
de partida do problema é aquilo que Leibniz chamou de “questão da Teodiceia “A
questão de como justificar Deus, em vista do mal no mundo. O filósofo e matemático
propôs a solução que chamou de “compensação”. Segundo o conceito proposto por
38
Leibniz, Deus teria compensado as carências e o mal com comodidades. Mas se
Deus morreu, e o ser humano assume seu lugar como senhor da História, então o
novo réu não é mais Deus, mas o próprio Homem. Isso significa que o homem se
encontra nos dois lados da acusação: é o acusador e, ao mesmo tempo, o acusado.
Desde então, o homem encontra-se em uma situação de tensão completa. Essa
pressão tornou-se insuportável, o homem precisou se justificar perante um “tribunal
da consciência”. Dentro desta perspectiva, o homem passou a procurar formas de
alívio para a tensão – a filosofia do século XVIII apresentou vários escapes
compensatórios – surgiram duas posturas em busca de alívio diante da nova
condição: a da inacusabilidade e da maximização do júri. A primeira opção oferece
uma postura de inacusabilidade, dentro dessa “tradição” encontramos a estética, a
psicologia e a antropologia, locais nos quais a relatividade impõe limites a jurisdição.
Ou podemos nos esconder por trás do papel do júri carrasco, potencializando a
tribunalizacão da consciência, como na filosofia Kantiana de autonomia da
consciência moral e a filosofia da história. Essa nova “teodiceia”, por exemplo,
pergunta não mais: como pode haver mal em um mundo criado por um Deus bom,
mas como podemos fazer arte em um mundo tomado pelo mal? Podemos identificar
essa “potencialização da tribunalização” como característica basal da Hipertrofia do
conhecimento histórico, sucedâneo do divino típico da cultura moderna, ou nos
termos do próprio Nietzsche: da “barbárie civilizada”, assolada por culturas de todas
as épocas.
“Esse modo de ver as coisas colocou a história em lugar de outros esforços espirituais, arte e religião, como única soberana, na medida em que ela é” o conceito que realiza a si mesmo”, na medida em que ela é “a dialética dos espíritos dos povos” e o “tribunal do mundo” (NIETZSCHE, 2001, p. 93).
Nietzsche, mais simpático a inacusabilidade da arte, percebe a hipertrofia do tribunal, e toma as dores da Arte:
Que lugar ainda resta para a arte? Antes de tudo, ela ensinou, através de milênios, a olhar com interesse e prazer à vida, em todas as suas formas, e alargar tanto nosso sentimento que por fim brademos: Como quer que seja a vida é boa. Essa doutrina da arte — sentir prazer na existência e considerar a vida humana uma parte da natureza (NIETZSCHE, 2001, p. 89).
Sem cair no equívoco típico do século XVIII, da busca e contemplação pelo
Belo, – somente outra postura em busca de uma nova prótese divina – ou na
elaboração de uma metafísica da arte, como encontramos na obra primogênita do
39
filósofo alemão, “O Nascimento da Tragédia”, Nietzsche passará a propor a
invenção da vida como uma obra de arte, por meio de uma estética existencial
capaz de sublevar o tribunal.
Seria a proposta de elaboração de uma “estética existencial” a imagem-
fantasma que procuramos? Será que a obra A Criação de Adão deixou de significar
a criação do homem pelas mãos de Deus, para assumir no contemporâneo o sentido
da criação como exercício do próprio Adão? Essa questão será esquadrinhada no
último capítulo deste trabalho, todavia, podemos adiantar que o homem está
condenado sem Deus, e aquele que assumir o título de criador precisará, no mínimo,
ser para “além-do-homem”14.
Como Deus morreu? Terá sido somente pelo excesso de racionalização?
Certamente que não; foi também de compaixão, de caridade, de uma moral que
tornou a existência intragável; a insuportável ideia de um deus criador, responsável
por esse mundo e ao mesmo tempo culpado pelo crime de omissão pelos males do
mundo. Não se trata de um momento de negatividade dialética, caminho para o devir
absoluto, não se trata de um tratado teológico e seus malabares, como diria Milton,
em sua obra-prima, O Paraíso Perdido, “a teologia, muitas vezes, é o jogo preferido
dos demônios” (MILTON,2002, p.96). Temos, aqui, apenas a constatação do fim de
uma crença humana, demasiadamente humana. Desta forma, Zaratustra, o profeta
encontra o último papa e lhe pergunta como Deus morreu. A resposta do papa é
surpreendente:
Quando era jovem, esse Deus vindo do oriente era duro e vingativo e construiu um inferno para o deleite de seus prediletos. Mas ele ficou velho e fraco, mole e compassivo, mais semelhante a um avô do que a um a um pai, e, sobretudo semelhante a uma avó velha e trôpega. Ficava sentado, murcho a um canto no fogão, queixando-se da fraqueza de suas pernas, cansado de ter uma vontade e um dia morreu sufocado por sua excessiva compaixão (NIETZSCHE, 2000, p. 90).
Zaratustra, o sem deus, diz então: Chega de um deus como este! É melhor
não termos nenhum deus, é melhor forjarmos, nós mesmos, nosso destino, melhor
14
O termo original, empregado por Nietzsche, é Ubermensch, comumente traduzido por “Super-Homem”.
Preferimos a tradução, Além –do -homem, proposta por Rubens Rodrigues Torres Filho: Obra incompleta.
40
sermos palhaços, é melhor sermos deus nós mesmos. Assim, os homens matam os
deuses “de diversas formas”. Finaliza o profeta.
O próximo encontro de Zaratustra é com o “mais-feio-dos-homens”, aquele
que tem forma humana, parece humano, mas que só pode ser reconhecido por sua
voz, pois todo o resto foi corrompido, o mais “doentio dos animais”.
O que gentalha chama de virtude é a compaixão – enquanto que eles não têm nenhum respeito por uma grande desgraça, uma grande feiura, pelo grande fracasso. De todos eles desvio meu olhar, como um cão não olha mais por cima das costas fervilhantes dos carneiros. Trata-se de gentinha tristonha, benevolente e bem lanzuda. [...] essas pequenas almas sombrias. Foi preciso que Deus morresse. Ele que via com seus olhos tudo, via profundezas e os motivos do homem, toda a sua dissimulada vergonha. Era preciso que morresse esse indiscreto, ultra compassivo. [..] Ele me via sempre, de uma tal forma que quis vingança – ou então preferia não viver. O deus que via tudo, também o homem, esse deus era preciso que morresse! O homem não suportava que tal testemunha sobrevivesse (NIETZSCHE, 2000, p. 220).
A necessidade de escolhermos sucedâneos para Deus é compreensível, não
se trata apenas de “burocracias do pensamento”, há algo muito mais importante em
jogo: o avanço do nada. A morte de Deus, como já foi dito no presente trabalho,
envolve a morte do homem; essa curiosa conclusão não era desconhecida dos
cristãos, a semelhança é inegável: Os teólogos utilizam o termo Kenosis para
nomear esse processo: O homem passa pelo evento de aceitação da vontade de
Deus, no qual acontece o esvaziamento da vontade própria de uma pessoa. Ocorreu
que nos esvaziamos; de certa maneira, o homem buscou a objetividade, até que no
século XIX ele a conseguiu. O problema é que Deus, agora ausente, não preencheu
o vazio, e em seu lugar não havia nada.
A racionalização iluminista, o sentimentalismo romântico, a ambição idealista
de totalidade, o materialismo dos comunistas, a aposta no progresso dos
positivistas, são só alguns exemplos das tentativas do homem de impor um novo
epicentro para a cultura ocidental.
Kierkegaard, em sua obra Ou...Ou, percebeu os perigos de uma cultura
racionalizada; intuiu a sabotagem prestes a ser operada, afinal, se a Razão é o
41
desígnio racional do universo, não há motivo para obedecê-la, de viver em
conformidade com ela, não há porque se preocupar (KIERKEGAARD,2001, p.52). O
pensador dinamarquês, que descreveu a Razão como um Vice-rei que não governa
terra alguma, sabia que a única alternativa a Deus era o Nada, seu livro poderia ter o
título “Ou Deus...Ou o Nada” Parece que o Nada triunfou, e sobre esse avanço do
niilismo serão dedicados os próximos capítulos desta obra.
Próximo do término deste primeiro capítulo, dedicado ao tema da Morte de
Deus e de seus sucessores menores, é necessário abordar o próprio “Nada” como
um possível usurpador do trono vazio. É verdade que abordamos o Nada como a
ausência deste fulcro que garantiria a segurança e a validade de todos os discursos
restantes; mas não podemos negar a tentativa do próprio Nada de ascender a
pretensão de centro gravitacional da cultura.
A empreitada atual trabalhará a questão do niilismo no capítulo seguinte,
inclusive, a conclusão do próprio “Nada”, como manifestação do avanço do niilismo.
Neste ponto do trabalho é necessário mostrar que o Nada se tornou o “outro lado da
moeda” divina. A incapacidade da razão de demonstrar sua origem, problema
encontrado em quase todos os sucessores, não afeta o Nada, assim como não
afetava o divino. É provável que Deus tenha encontrado no Nada seu maior rival?
Um pensamento sedutor, mas não parece haver uma rivalidade, apenas uma
oposição aparente – como vimos em Kierkegaard – um problema menos dialético e
mais de contraste, como as luzes e as sombras que compõem um quadro.
O Nada é um sucedâneo diferenciado; mas a morte de Deus parece ter
condenado igualmente suas possibilidades de promoção. A grande confusão
conceitual, que entronizou o Nada, foi em relação a outro conceito: o Absurdo. Esse,
sem dúvidas, o verdadeiro adversário do pensamento, afinal, Deus pode resistir ao
Nada, mas não ao absurdo. O que gerou o problema teodiceico nunca foi o “mal”
propriamente dito, mas o absurdo de um “Deus bom” não tomar uma atitude
contundente perante, por exemplo, a morte de uma criança atropelada
acidentalmente pelo próprio pai, enquanto esse saía para trabalhar e garantir o
sustento de seu filho. O Nada é um sucessor vazio, esperando que algo o preencha,
como nos grandes mitos antigos, nos quais o oceano, representado sempre pelo
42
feminino, aguarda a penetração e o preenchimento da “espada fálica” do deus
celestial masculino.
A Nadificação é o problema de nossa cultura, é verdade, mas justamente por
não ter nenhum pretendente divino capaz de preenchê-la. A experiência do absurdo
reinou sobre todos os vice-reis menores, e por este motivo eles nunca governaram
terra alguma. Nietzsche expressa esse dilema final, em um momento quase
autobiográfico de sua obra:
Dai-me pois a loucura, oh vós, mestre celeste, a loucura a fim deque eu creia finalmente em mim mesmo [...] A dúvida me devora; matei a lei e a lei me atormenta como um cadáver atormenta os vivos; se não sou mais do que a lei, então sou o mais rejeitado de todos” (NIETZSCHE, 2003, p. 73).
Há algo muito mais sério em torno do niilismo. Iniciamos o texto questionando
qual vice-rei seria retratado por Michelangelo, caso ele fosse contratado para pintar
seu mais famoso afresco nos dias atuais. Espantosamente, é muito provável que no
lugar da imagem de Deus não houvesse nada; ou pior, não houvesse nem mesmo
obra, pois o avanço do niilismo é a própria nadificacão da potência. Michelangelo
seria mais um dos últimos-homens, impotente, cansado demais para criar. Sobre o
fenômeno da nadificação, dedicaremos um dos futuros capítulos para que possamos
compreender como a tela da criação foi apagada; como Deus, o homem, os anjos e
até as nuvens desapareceram, dando lugar a uma tela em branco, sem gravura,
tintas ou pintor.
2.2 OS FANTASMAS DA OBRA: A Ferida no Tempo de Warburg
Após a exposição conceitual sobre a morte de Deus, iremos abordar um
conceito fundamental para a empresa atual: A Imagem-fantasma. Mas antes
visitaremos um personagem ilustre da cultura grega: Quíron.
Warburg pesquisou, aos 22 anos, ao lado de seu professor de arqueologia
clássica, Kekulè Von Stradonitz, a “força animal” dos centauros. As criaturas
mitológicas foram objetos de fascínio do historiador alemão: “A força animal” com
que o centauro aperta sua vítima, o desejo selvagem, que nem mesmo a morte que
43
se avizinha consegue reprimir, tudo isso é perfeitamente mostrado (WARBURG,
2015, p 82).
Quíron, na mitologia grega, era um centauro. Ao contrário do resto dos
centauros, que eram famosos por serem beberrões e violentos, Quíron era
inteligente, justo, nobre e célebre por seus conhecimentos bélicos e médicos. De
acordo com os mitos arcaicos, foi filho de Cronos, titã do tempo, e da ninfa Filira.
Quíron teve como tutor Apolo que lhe ensinou música, poesia, artes divinatórias,
profecias, astrologia, medicina e a peleja mortal. Quíron foi o preceptor máximo de
inúmeros heróis, como Hércules, Jasão, Teseu, Aquiles e do próprio Dionísio.
Quíron será uma figura vital para dois importantes eventos mitológicos: A Guerra de
Troia e a libertação de Prometeu.
Segundo o mito, foi ferido acidentalmente por uma flecha de Hércules,
banhada pelo veneno da Hidra de Lerna15. A seta não matou Quíron, pois era
imortal, porém provocou-lhe uma ferida incurável. O curandeiro ferido é uma imagem
irônica: um curandeiro talentoso, mas incapaz de curar a si mesmo.
Mas voltemos, agora, aos dias da contemporaneidade. O cenário
contemporâneo já foi chamado de pós-moderno; há quem prefira “modernidade
líquida”; há ainda os que considerem que vivemos em uma sociedade do
espetáculo; em qualquer um dos casos, a única certeza é a constante mudança,
perenidade, transitoriedade e virtualidade do cenário atual. Exatamente por isso não
poderia haver momento mais oportuno para o redescobrimento de Aby Warburg, e
sua história de fantasmas.
Como Quíron, Warburg foi discípulo de grandes mestres e preceptor de
grandes nomes. Também foi um articulador de diversos saberes, história, filosofia,
arte, antropologia e psicologia. Embora não fosse filho de Cronos, como seu
antecessor, era um pesquisador dedicado ao tempo. Foi “aluno” de Apolo, pois
versava de grande erudição, e “tutor” de Dioniso, pois conduziu a divindade dos
ditirambos novamente para os caminhos da história. Por fim, Warburg também era
diferente dos outros membros de sua “raça”: os historiadores.
15
Monstro mitológico, filho de Tifão e Equidna. Habitava o pântano de Lerna. Segundo o mito, A Hidra tinha
três cabeças e corpo de dragão; era tão venenosa que matava os homens apenas com seu hálito. Foi morta por
Hércules, em seu segundo trabalho.
44
Warburg foi um intelectual à frente de sua época. Enquanto historiadores
baseavam seus grandes edifícios teóricos na idolatria do fato, no longevo, no
concreto, no duradouro, no perpétuo ou linear, Aby Warburg propôs a leitura da
história por meio da iconologia, multiplicidade, da diferença e dos anacronismos
trans-históricos. Obviamente, ele foi criticado, desacreditado, rechaçado e, na
melhor das hipóteses, ignorado pelos pares de sua época. Sem dúvida, a proposta
do historiador alemão ameaçava a ambição das grandes narrativas.
Pesquisador do Renascimento, Aby Warburg acreditava que o período
vivenciado por Michelangelo e Leonardo da Vinci havia recuperado as forças
pulsionais dionisíacas, uma espécie de novo paganismo fundido a austeridade
cristã. Mas desse período parece que só os fantasmas sobreviveram.
A cultura italiana do renascimento preservou e revitalizou, no sul e no norte, alguns tipos de profecia da antiguidade pagã, cuja essência é composta de uma mistura tão intensamente viva de elementos heterogêneos - de racionalismo e mitologia, de matemática calculista e augúrio profético (Warburg, 2015, p. 138).
O Renascimento foi o centro gravitacional do pensamento de Warburg. Ele
considerava o período um grande turbilhão de ideias, local de uma reaparição da
cultura pagã, que havia sobrevivido de forma fantasmática. A partir do Renascimento
o autor avançou em direção as mais variadas formas de manifestações culturais da
antiguidade, pesquisou a Reforma Protestante, passou pelo Humanismo, pesquisou
culturas orientais e indígenas norte-americanas.
Entre seus discípulos mais destacados estão: Ernst Gombrich (1909-2001),
que foi biógrafo de Warburg e abordou problemas específicos de historiografia,
Erwin Panofisky (1892-1968), e George Didi Huberman (1963). O último dedicou a
Warburg o livro “A Imagem Sobrevivente”, no qual explora as principais noções de
Warburg, especialmente a noção de “fantasmagoria” ou imagem sobrevivente.
Mas existiria um grande tema na obra de Warburg? Repleto de análises
inusitadas, livre de escolas, doutrinas e áreas específicas do saber, Warburg criticou
o caráter estetizante dos estudos da História da Arte pautados em gêneros, estilos e
datações. Cada questão demandava um método de pesquisa. Comumente o
45
historiador alemão partia de um assunto especifico e caminhava para elementos
mais genéricos e enciclopédicos.
Suas principias influências foram Jacob Burckhardt, historiador da arte,
famoso por articular as obras com outros elementos culturais (rituais, festividades) e
Nietzsche. Não há citações diretas a Freud, mas a noção de sintoma é
frequentemente abordada na obra de Warburg.
Com Nietzsche, Aby Warburg aprendeu as concepções de eterno retorno e
das pulsões dionisíacas e apolíneas. A concepção de “ciclos de retorno da
diferença” será decisiva para obra do historiador alemão. Warburg combateu a
forma de compreensão da história como um processo progressivo, sucessivo,
evolutivo e linear. De acordo com a proposta do pesquisador, a história era um
mosaico repleto de anacronismo, imagens impuras e fantasmas. Como Didi
Huberman- o “Aquiles de Warburg” - frisou: “As intricações mais inquietantes, porém,
concernem a história e a temporalidade, elas mesmas: pilhas de trapos do tempo, se
me atrevo a dize-lo. Amontoados de tempos heterogêneos (DIDI HUBERMAN, 2013,
p. 175).
Para melhor compreensão do “fenômeno histórico”, era preciso articular outro
importante aspecto do pensamento nietzschiano: a “dança” entre o dionisíaco e o
apolíneo. A história não seria um processo harmonioso, mas uma narrativa de
tensão entre os instintos e a cultura. Tradicionalmente, os estudos históricos teriam
valorizado apenas a dimensão apolínea e ignorado o lado dionisíaco da civilização.
Somente a articulação das duas dimensões poderiam produzir um processo
hermenêutico adequado para história: “toda a humanidade é o tempo todo e para
sempre esquizofrênica” (WARBURG, 2015, p. 271).
Na época de Warburg, os estudos de arte eram baseados nas concepções
iluministas; as principais bases dos estudos sobre arte estavam concentradas na
Estética (Alexander Baumgarten-1714-62), História da arte (Johan Winckelmann) e a
Crítica (Denis Diderot 1713-84). Havia, também, um fervor com produção de arte
Neoclássica.
46
Intelectual independente, criador de textos fragmentados e assistemáticos,
Warburg, assim como Nietzsche, Benjamin e Kierkegaard, provavelmente, se
estivesse vinculado a uma universidade, talvez, não tivesse produzido uma obra
com teor original.
Dissertação direta e sucinta, em “O Nascimento de Vênus e A Primavera” de
Sandro Botticelli: uma investigação sobre as concepções de antiguidade no início do
Renascimento Italiano. (1891), o jovem Warburg lança as bases de seu
pensamento: o exame dos mecanismos de transmissão e a sobrevivência da
memória cultural na antiguidade por meio de uma psicologia cultural da imagem.
Após uma série de análises sobre a obra de Botticelli, Warburg postula que o
Renascimento era um caldeirão cultural, caracterizado pela erudição e a reaparição
do antigo. (Astrologia, adivinhação, magia). O Renascimento era um período de
transição para Warburg, tensão psicológica que “produziu” homens como
Michelangelo e Da Vinci.
É possível acompanhar passo a passo como os artistas e seus conselheiros viam na antiguidade, um modelo que requer movimento aparente e acentuado, e como se apoiavam nos modelos antigos quando se tratava de representar partes acessórias-como o traje e os cabelos-cujo movimento é aparente. Diga-se, de resto, que, se tal demonstração é digna de nota para a estética psicológica, é porque permite observar em seu devir, nos círculos de artistas criadores, o sentido para o ato estético da empatia como uma “força formadora de estilo” (WARBURG, 2015, p. 27).
A cultura renascentista teria reativado as forças psíquicas pagãs e exposto a
sobrevivência das imagens. Mas o que são essas imagens-fantasmas? A imagem
seria como um índice cultural. Desta forma as Imagens não são “só imagens”, mas
formas de pensamentos, feridas abertas no tempo-espaço. Produzir imagens é um
comportamento simbólico e primitivo, basal na cultura humana, frente ao cosmos.
Daí a necessidade de uma Psicologia das imagens (psicologia da expressão
humana), para o estudo e compreensão das pulsões externalizadas por ações
imagéticas: por que o homem cria imagens? Porque tem necessidade de criar; para
dar sentido ao mundo. A imagem criada migra no tempo, não acompanhando o
tempo cronológico, ela é um caldeirão de passados, presentes e futuros; formas
reinterpretadas, ciclos de tensão na linha “harmoniosa” da História racional de
síntese e norma.
47
A lógica, que cria o espaço reflexivo (entre o ser humano e o objeto) por meio da designação conceitualmente especificadora, e a magia, que novamente destrói esse mesmo espaço reflexivo entre o ser humano e o objeto por meio do vínculo (ideal ou prático) supersticiosamente agregador –observamos ambas no pensamento profético da astrologia. Formando ainda um aparato unitariamente primitivo, com o qual o astrólogo pode de uma só vez medir e conjurar magia. A época em que a lógica e a magia, como o tropo e a metáfora, “florescem enxertadas num mesmo tronco” é propriamente atemporal (WARBURG,2015, p.86).
Como o homem desenvolve símbolos, desde as imagens nas cavernas, o
gesto expressivo é ressignificado (não é o mesmo), muitas vezes é até invertido. Por
isso, estudos de gêneros e escolas não servem para compreender influências tão
dispares e distantes da arte. A dimensão mágica é potente e criadora de imagens,
mas perdemos gradativamente a capacidade de compreendê-las. Warburg entendia
que a razão tentou eliminar o mito, a magia e a astrologia (elementos pagãos) por
meio da reflexão lógica, racionalizada; um projeto programático que tentou silenciar
teorias herméticas. Qualquer semelhança com a “História da Loucura”, de Foucault,
tem origem na mesma raiz: Nietzsche.
Quer dizer: no império da mitologia, não reina a lei da menor quantidade de força, não se busca a causa mais simples possível para a legalidade verificada no curso regular da natureza. Em vez disso, é instituído, em prol da possibilidade de apreensão, um ser saturado com um máximo de força demoníaca, para que assim se possa realmente criar (WARBURG, 2015, p. 248).
Mas qual seria a alternativa aos estudos “tradicionais”? O modelo de
Warburg é contemporâneo e transdisciplinar; abriu a história da arte para a
antropologia, psicologia social e outras áreas do saber, mas não há um método
fechado em Warburg, pois não há síntese em sua concepção histórica. O historiador
alemão pesquisava objetos ordinários (moedas, selos postais, etc.), imagens que de
forma insistente reapareciam; levava elementos não artísticos para o estudo da arte,
em uma época que tentava estabelecer e estipular fronteiras bem demarcadas.
Um exemplo de seu trabalho, foi a tentativa de elaborar o “Atlas Mnemosine”:
um projeto que iria expor Imagens próximas em diferentes épocas (fantasmagoria),
uma espécie de “tese da cultura por imagens”. Warburg não concluiu tal obra,
morreria vítima de um ataque cardíaco, no ano de 1929. Sobre ela comentou:
48
“A Mnemosine”, com seu alicerce de imagens (caracterizada no Atlas
por meio de reproduções), a princípio pretende ser apenas um inventário das pré-formações de inspiração antiga que verificadamente influenciaram a representação da vida em movimento na época do Renascimento, contribuindo assim para a formação do estilo (WARBURG, 2015, p. 366).
Os textos de Warburg são bem diversos, escritos para cumprir requisitos
universitários ou para congressos, palestras, ou mesmo anotações dispersas para
uso pessoal. Apesar dos temas muito específicos no primeiro contato, eles logo são
abordados e moldados de forma bastante ampla. Essas são algumas das
dificuldades, que resultam do seu “estilo de pesquisa”. Seu trabalho, no entanto, não
deixou de provocar e suscitar reações em diversas áreas do saber, como a
sociologia, psicologia, artes, antropologia, filosofia. Robert Klein dizia que “esse
historiador havia criado uma disciplina que, ao contrário de muitas outras, existia,
mas não tinha nem nome” (KLEIN, 1970, p. 46).
Aby Warburg desenvolveu, assistematicamente, três conceitos para o que
chamava de sua “ciência sem nome” ou ciência da cultura, que teria como meta
compreender como as imagens e os símbolos são constituídos, conservados e
transmitidos:
Nachlenben (sobrevivência do antigo) circunscreve essa metamorfose, que
implica plasticidade, maleabilidade, mudança das formas. As formas são forças:
ativas, reativas, dominantes, pálidas. O conteúdo que ficou culturalmente morto,
passado, perdido, não se perderá jamais. Ele reaparecerá em situações
significativas, pois só estava “recalcado”.
Pathosformeln (formas carregadas de energia; paixão expressiva), uma de
suas concepções mais problematizadas, a “fórmula de páthos16” carrega o modelo
ou motivos oriundos da antiguidade utilizados por artistas para criar forma e
movimento.
Engrama (memória social e coletiva) é uma forma de memória social e
coletiva Ele se enraíza em experiências e comoções muito intensas e significativas,
16
Páthos é uma palavra grega que significa paixão, passividade, sofrimento. No contexto artístico, significa uma
experiência humana (ou representação) que evoca dor, sentimento de compaixão ou simpatia no espectador.
49
que permanecem “armazenadas”, podendo ressurgir posteriormente em obras de
arte, rituais e objetos ordinários.
Em Warburg persistiu a crença fundamental comum a Nietzsche e a Freud: o que sobrevive em uma cultura é o mais recalcado, o mais obscuro, o mais longínquo e mais tenaz dessa cultura. O mais morto, em certo sentido, por ser o mais enterrado e o mais fantasmático; e igualmente o mais vivo, por ser o mais vivo, por ser o mais móvel, o mais próximo, o mais pulsional. É essa, de fato, a estranha dialética da Nachlenben (DIDI HUBERMAN, 2013, p. 136).
Para Warburg, os fantasmas habitam as imagens, que são tanto objeto
materiais como formas de pensamento. Desta forma, a produção de imagens pelos
seres humanos vincula-se à sua capacidade de simbolização; elemento fundamental
para a constituição e manutenção da civilização. O efeito de tudo isso é que a
análise precisa incorporar o complexo jogo de forças históricas e sociais atuante na
constituição dessas feridas abertas no tempo.
Mas por que apresentamos o centauro Quíron no início desse texto? O
presente trabalho trata a morte de Deus como a ferida quironica da modernidade e o
contemporâneo como a terra devastada pela seta do niilismo. Quíron e Warburg são
metres, e descobriam a mesma “fórmula” que será fulcral para o desenrolar deste
trabalho: o fenômeno do curador ferido.
Impotente para curar seu próprio ferimento e não podendo morrer, por ser
imortal, Quíron começou a sofrer intensamente; recolhendo-se em uma gruta no
monte Pélion onde, porém, continuou curando inúmeras enfermidades e
transmitindo seus conhecimentos aos discípulos. Ocorreu que Prometeu havia
roubado o fogo dos deuses e dado para os homens e por este motivo foi castigado
por Zeus. Tomado pela pena e cansado de sofrer, Quíron disse que assumiria a
pena do Titã acorrentado. Zeus concordou, liberando Quíron de seu sofrimento, para
morrer em paz. De acordo com o mito, Zeus homenageou Quíron, colocando-o no
céu como a constelação de Sagitário.
Warburg também foi, ao seu modo, um centauro, meio historiador, meio
antropólogo. Assim como Quíron, foi portador de uma grave enfermidade17, todavia,
17
Warburg sofria de depressão e apresentava sintomas de esquizofrenia. Internou-se na clínica Belleuve (a
mesma clínica que Nietzsche havia sido internado). Apesar de ter recebido alta em 1924, a saúde de Warburg
piorou no decorrer dos anos.
50
continuou seu trabalho como “curandeiro ferido”. Estudioso da astrologia, Warburg
também foi imortalizado na constelação dos grandes pesquisadores. O historiador
alemão descobriu as feridas abertas no tempo, esse paradoxo anacrônico, essa
força fantasmática que atravessa as eras; livre de relações causais.
Vivemos na época da “dominação planetária’’ pela técnica; parece que
Prometeu continua acorrentado. Contudo Warburg nos mostrou um caminho similar
ao de Quíron: Só somos capazes de curar, porque fomos e estamos feridos. Nossa
ferida temporal é a marca da “morte de todas as mortes”. Eis a nossa tragédia: lidar
com a nossa ferida, provavelmente, será a única forma de encontrarmos uma cura
para “a seta envenenada do niilismo”. “Não há superfície bela sem uma
profundidade assustadora” escreveu Nietzsche, em o Nascimento da Tragédia
(NIETZSCHE, 2013, p. 96).
51
3. LUZES DO AFRESCO: O Renascimento como uma Supernova
(Último Sopro Divino)
Após a morte de Deus para a cultura, tivemos que lidar com a elaboração do
“luto de todos os lutos”. A modernidade herdará tal enlutamento e sua busca ávida
por um novo sucessor. Mas antes, precisaremos compreender: Por que o
Renascimento produziu a arte mais elevada do cânone ocidental, justamente
quando Deus estava prestes a morrer? O Renascimento irá configurar para a
história do ocidente o início ambivalente da elaboração do luto pelo divino, uma
espécie de supernova, uma luz intensa que antecederá as sombras confusas e
erráticas do niilismo no contemporâneo.
Supernova é um termo utilizado pela astrofísica para descrever um fenômeno
referente à morte de estrelas. Antes de “morrer” uma estrela libera uma vasta
quantidade de energia, semelhante à chama de uma vela, que antes de apagar
emite sua luz mais intensa. Longe de um tratado de física ou da utilização
inadequada de um termo técnico de outra área, evocamos tal imagem poeticamente,
apostando na força do argumento estético – tão utilizado por Nietzsche -, com a
intenção de produzir uma analogia: o Renascimento como uma supernova.
A imagem de uma estrela que, durante o processo de sua extinção, libera sua
luz mais intensa é um bom exemplo para a próxima imagem-fantasma deste projeto.
Como em O Avarento: Um Conto de Natal, de Charles Dickens18, nós iremos ser
assombrados por fantasmas no decorrer deste escrito. Se o fantasma do Futuro
marcou a tonalidade sobre o luto causado pela morte de Deus, seremos guiados,
agora, pelo fantasma do passado ao Renascimento.
O Renascimento não só foi o período no qual a obra a Criação de Adão foi
elaborada, ele desempenha um papel de suma importância para a cultura ocidental.
18
Obra do escritor inglês Charles Dickens, com o título original “A Christmas Carol”. O livro apresenta o
personagem Ebnezer Scrooge, um homem avarento, que durante o natal acaba sendo visitado por três fantasmas.
Após a visita dos três espíritos, Scrooge passa por uma transformação pessoal e passa a amar o natal.
52
Segundo a maioria dos livros didáticos sobre a história da arte: o Renascimento foi
um marco por ter decretado o fim da idade média e por ter recuperado a arte
clássica, inspirados pela cultura greco-romana. O próprio termo “renascimento” diz
respeito ao “renascimento do homem”. O renascer do humano, também, diz respeito
a outro fenômeno: A Morte de Deus.
A concepção de que o Renascimento foi o golpe inicial contra um pensamento
que tinha Deus como centro de produção de sentido é amplamente difundida, assim
como sua importância ancestral em relação aos movimentos que determinariam a
história do ocidente, como o Iluminismo:
A renascença – um renascimento cultural de extraordinária criatividade na Europa – teve início no século XIV em Florença. Espalhou-se pela Europa, durando até o século XVII, e hoje é
considerada a ponte entre o período medieval e o moderno. Marcada por um renovado interesse no conjunto da cultura clássica grega e latina – não apenas textos filosóficos, matemáticos assimilados pela escolástica medieval -, foi um movimento que considerou os humanos, e não Deus, como seu centro [...] um pensamento puramente secular estava por surgir (GOMBRICH, 2006, p. 97).
Um possível questionamento pode surgir: Por que, em um movimento que
promovia o renascimento do homem, temos a profusão de obras abordando o
universo do sagrado? O juízo final, de Michelangelo; a Santa Ceia, de Leonardo da
Vinci; Transfiguração de Rafael; Adoração dos magos de Botticelli; são só alguns
exemplos da produção renascentista. Seguindo a linha de raciocínio sobre a imagem
da “supernova”, podemos deduzir que a luz do sagrado brilhou tão intensamente,
justamente porque seu fim estava próximo.
A monumental obra de Michelangelo, eternizada na Capela Sistina, era muito
mais uma elegia ao sagrado, do que um canto de exaltação. Talvez, possamos, por
meio dessa imagem-fantasma, interpretar que a Criação de Adão esteja relacionada
à despedida entre o homem e o divino. Mãos que se tocaram em um passado, agora
se despedem; o hiato entre a mão de Adão e de Deus só aumentará no decorrer da
história da civilização ocidental.
Ao estudarmos as obras do Renascimento, especialmente as relacionadas às
artes pictóricas e formais, nós ficamos sempre com a impressão de que dificilmente
53
elas poderão ser superadas, assim como a luz das estrelas moribundas - há luz
mais intensa na história da arte do que a produzida pelo Renascimento?
Sabemos, ao estudar a história da Arte, que todos os movimentos artísticos
posteriores serão reações, de uma forma ou de outra, ao Renascimento. Seja o
Cubismo, e suas múltiplas perspectivas; o onírico Surrealista, as cores da arte
impressionista ou a arte abstrata. Parece que a desconstrução do Renascimento
sempre será a pauta, como o “pai” descrito por Freud; amado ou odiado, ele será
sempre a nossa referência. Amantes ou detratores da arte contemporânea
frequentemente utilizam o Renascimento como parâmetro, ora como expressão
máxima do cânone ocidental, ora como mera representação anatômica da realidade,
desprovida de criatividade.
Longe das intermináveis polêmicas sobre o mundo da arte, focaremos nossa
atenção na Imagem-fantasma da obra “A Criação de Adão”. Já sabemos que, dentro
da perspectiva deste escrito, o contemporâneo vive o luto pela “morte do divino”,
agora, entendemos o Renascimento como o início da Morte de Deus, um sintoma do
que viria adiante no ocidente: o desencantamento do mundo pelo excesso de
racionalização e objetivação. O homem objetivo, “desinteressado” acaba por não ter
experiência própria:
Sua alma espelho, eternamente ocupada em polir-se, já não sabe mais aquiescer, não sabe mais negar, não comanda, nem tampouco destrói [...]. O homem objetivo é um instrumento, um instrumento de medida, uma obra-prima em espelharia, fácil de quebrar ou turvar, que se deve tratar com cuidado e honrar; mas ele não é um fim, um resultado, um impulso, nem mesmo um homem completo, no qual se justifica a existência inteira, nem uma conclusão – menos ainda um começo, um procriador, uma causa primeira, nada de rude, de poderoso, que encontra seu apoio em si mesmo que queira ser chefe (NIETZSCHE, 2004, p. 207).
Michelangelo, em uma artimanha visual, retratou Deus em meio a seus anjos,
embora, possamos perceber, com certa clareza, o formato de um cérebro na
imagem mencionada. Seria só mais um estudo anatômico do artista, ou há uma
provocação subjacente: a ideia de que Deus é uma mera criação da mente humana?
Para o propósito deste trabalho, não importa a intenção oculta de Michelangelo,
deixamos tal discussão para os críticos de arte; a intenção deste projeto é produzir
uma interpretação que possa desvelar a imagem-sobrevivente da obra. Mas será
54
que esta é a imagem sobrevivente? Deus, outrora todo-poderoso, confinado em um
cérebro? Seria o máximo que tal afresco poderia nos dizer sobre o contemporâneo?
Embora alguns pesquisadores insistam nessa “tese”, partimos do princípio
que a Morte de Deus parece mais digna – a Morte é sempre mais charmosa do que
o cárcere. Michelangelo, assim como outros artistas do Renascimento, talvez
procurasse recuperar parte da dignidade do homem ao representá-lo de forma
simétrica e bela, mas ainda não é a imagem que procuramos.
Nietzsche via no Renascimento o retorno dos deuses gregos, agora
disfarçados, como em uma festa à fantasia, de santos, anjos, mártires e da própria
Trindade. Seguindo a lógica de Warburg e Didi Huberman, provavelmente as obras
de arte carregavam durante sua produção outros fantasmas, de épocas mais
remotas, que assombravam aquela época. Mas tal “vingança dos deuses gregos”,
não parece ter perdurado até a contemporaneidade. O vigor grego “esse povo
estranho a todos nós”, como diria Nietzsche, não combina com o avanço da
nadificação.
[...] o Renascimento tinha forças positivas que, até o presente, ainda não encontraram a mesma potência em nossa civilização moderna. Foi a fase áurea deste milênio, a despeito de todos as suas máculas e todos os seus vícios. [...] algum dia compreendemos, queremos enfim compreender o que foi o Renascimento? Inversão dos valores cristãos: uma tentativa empreendia com todos os meios, todos os instintos, todos os talentos possíveis, de fazer triunfar os valores contrários, os valores aristocráticos. Não houve, até o presente, senão uma grande guerra: esse; não houve questão mais crucial do que a formulada pelo Renascimento – a minha questão é exatamente a mesma que ele formulou (NIETZSCHE, 2001, p. 45).
O filósofo alemão considerava que a “força” pagã teria atravessado a história,
rastro esse que será devidamente estudado por Warburg. Nietzsche defendeu o
Renascimento italiano como uma “repetição anticristã da antiguidade e o despontar
da modernidade”.
Segundo Nietzsche, o Renascimento foi um tempo “em que tudo foi
desperdiçado, em que se desperdiça até a própria força que é preciso para
acumular, para entesourar, para amontoar riqueza em cima de riqueza” (2001, p.36).
Warburg, historiador do Renascimento, foi um profundo leitor da obra nietzschiana,
especialmente “O Nascimento da Tragédia”, desta obra o historiador aprendeu o
55
conceito de “carne histórica”, desenvolveu e elencou quatro aspectos vitais para o
entendimento não só do Renascimento, como da própria constituição da civilização
ocidental:
a) Ethos versus Pathos: Warburg renuncia a visão, comum de sua época, sobre
uma arte essencialmente harmônica, ele compreende a dimensão dionisíaca
que compõe a obra de arte; sem recusar a harmonia apolínea, o historiador
entende que a “dança da cultura” está baseada em dor e prazer, luz e sombras,
agonia e êxtase. O Renascimento ganha “novas cores” e tal perspectiva
permite ao pesquisador perceber algo que havia escapado dos estudos sobre
arte renascentista: o “movimento”; enquanto observamos e experienciamos A
Criação de adão, aguardamos o toque entre o criador e a criatura, do mesmo
modo, quando vemos a escultura de Davi, com seus tendões retesados e a
funda19 em sua mão; aguardamos o momento do ataque letal contra Golias. Os
exemplos são inúmeros, quem não espera testemunhar o famoso e enigmático
sorriso da bela Mona Lisa ou o beijo fatal e vil de Judas no pobre Cristo de a
Santa Ceia, de Leonardo da Vinci? -- podemos quase ouvir o barulho dos
copos e pratos, das conversas em uma língua antiga e sentir a agonia do
protagonista ao centro da tela apenas aguardando o término do banquete que,
de certa maneira, representa ele mesmo -- Enfim, se os espectadores e
coautores sentem essas sensações, o criador em sua produção evoca todo
redemoinho da cultura e forja sua arte. A Civilização é feita de luzes e forças
obscuras, reconhece o historiador.
b) A Tragédia como centro motriz da cultura: Warburg parece ter aprendido a
“graça do terrível”, e as identifica na arte renascentista, tanto nas obras devotas
quanto nas pagãs. O historiador segue a fórmula nietzschiana de que arte
pictórica não move somente o olhar apolíneo, mas também as sensações
dionisíacas. O Renascimento ganha nova força graças a esta perspectiva, ele
deixa de ser apenas uma arte representativa- de que tantas vezes é acusado-
para ganhar novo fôlego e relevância. Dentro desta nova proposição, o
19
Funda ou fundíbulo é uma arma de arremesso composta por uma correia ou corda dobrada, em cujo centro é
colocado um objeto, comumente uma pedra. Na tradição, esta arma ficou famosa por ter sido utilizada por Davi
para abater o gigante Golias.
56
Renascimento seria o “motor” que deu origem a modernidade, justamente por
conter em seu seio a tragédia de nosso tempo: A morte de Deus.
c) O que sobrevive na cultura é a ferida desta tragédia: Nietzsche recusa todo o
“rancor da tradição estética clássica contra a sensualidade” (NIETZSCHE,
2002, p.48). Já compreendemos que a Arte é composta do sonho apolíneo e
da embriaguez dionisíaca, assim como reconhecemos que a cultura é fundada
pela “dor originaria”, no nosso caso a Morte de Deus; a terceira premissa
extraída por Warburg da obra nietzschiana é a de que aquilo que sobrevive na
arte, no seu caráter trans-histórico, está relacionado às feridas no tempo do
qual ela emergiu.
d) A exuberância trágica da vida: Nietzsche comparava “as dores do parto”, ao vir
a ser de uma cultura; nascida da dor; originada da morte de outra, no meio de
sangue e carne. Depois contamos histórias de “cegonhas” sobre o nascimento
delas; mas para o filósofo “saber” como elas são geradas é vital. Para isso,
segundo o pensador alemão, era preciso uma “psicologia da cultura”20 que
investigasse a morfologia dos valores de determinado aspecto cultural. A vida
trágica reconhecia os excessos, por isso Nietzsche desenvolveu a teoria da
jovialidade grega (Heiterkeist)21, em outras palavras, ela aceitava a guerra, o
sangue, a derrota, o butim, a dominação entre outros aspectos renegados pela
“parvoíce” do classicismo.
Após esta síntese sobre a interpretação de Warburg em relação ao trabalho
de Nietzsche – cada item mereceria um trabalho a parte- chegamos a um ponto
essencial do presente trabalho: o eterno retorno. Existem inúmeras discussões
sobre esse conceito proposto por Nietzsche; basicamente, o eterno retorno é
interpretado como uma visão cosmológica, semelhante ao tempo do mito. Outra
corrente importante, liderada por Walter Kaufmann22, compreende o eterno retorno
como um estado psicológico. Ficaremos com a última “linha interpretativa”, calcada
20
O termo “psicologia da cultura” não diz respeito à ciência particular, formalizada no século XVII, mas ao
estudo do campo filosófico e literário responsável por avaliar os motivos que mobilizam a construção de
personagens e valores. 21
“Serenojovialidade”, na excelente tradução brasileira, feita por Jacó Guinsburg, de O nascimento da tragédia.
São Paulo: Campainha das Letras, 1992, p. 145. 22
Walter Kaufmann: filósofo e poeta alemão, eminente pesquisador da obra de Nietzsche; famoso por sua
interpretação do eterno retorno como um fenômeno psicológico.
57
no fenômeno psicológico; a razão é simples: Warburg reconhecia o trabalho
nietzschiano como uma “psicologia da cultura”. Seguindo essa interpretação, o
eterno retorno, agora envolto em ares pré-existencialistas-- é o retorno ao “eterno
momento do presente”. O presente passa a ser o encontro entre o passado e o
futuro.
Santo Agostinho (354-430), em sua obra “Confissões”, havia caído no mesmo
problema (ou tentação?) muito antes de Nietzsche, “o presente do passado é a
memória; o presente do presente é a intuição; o presente do futuro é a expectativa”
(XI, 20), mas tinha sua alma vinculada a Deus para salvá-lo “é em ti, meu espírito,
que meço o tempo” (XI, 20) - do demônio que nos castiga com o eterno retorno do
momento, mais uma vez e mais uma vez. Nietzsche havia constatado a morte de
Deus, e não tinha o mesmo recurso da “maior raposa cristã”23. Essa perspectiva
presentista era a arma que Warburg precisava contra a escola historicista
predominante em sua época.
O Renascimento só mereceria atenção novamente, caso ele nunca tivesse
“passado”. Sabemos que Nietzsche não compreendia a história como um processo
linear e monocórdico, mas como uma “sucessão-simultânea” de eventos plurais e
acidentados. Nunca saímos de nossa infância, -Freud aprenderia bem esta lição-
vivemos com nossos fantasmas, melancólicos pelo passado e ansiosos pelo futuro;
confinados, entretanto, na prisão do presente. Graças à essa interpretação sisífica
do tempo, Warburg pode produzir sua “história de fantasmas para gente grande. ”
A Renascença sempre esteve entre nós, mesmo que como um espectro, as
feridas de sua época também são nossas, especialmente a referente à morte de
Deus, mãe de toda a modernidade. Daí a importância desta “concepção” para a
nossa pesquisa: Graças ao eterno retorno, podemos retornar ao Renascimento para
reconhecermos o que nos assombra no presente. A Criação de Adão carrega um
fantasma, uma imagem sobrevivente portadora de uma mensagem oriunda do “além
do tempo histórico”: O importante na história não está no que passou, mas
justamente naquilo que não passou.
23
“Raposa cristã” é a forma como Nietzsche, em sua obra, costumava a se referir ao filósofo Santo
Agostinho/Agostinho de Hipona, um dos maiores nomes da teologia e filosofia dos primeiros séculos cristãos
58
Nietzsche designou de perspectivismo sua proposta para uma “teoria do
conhecimento”, não mais baseada na progressão prudente da dialética, mas como
uma forma de relacionar ambivalências, colocar em perspectivas, determinar
proveniências, hierarquias, estudar suas ramificações, elencar e articular múltiplos
aspectos de um fenômeno. Afinal, “toda a vida supõe aparência, artifício, engano, e
necessidade de colocar em perspectiva, inclusive o erro”. (NIETZSCHE, 2002, p.
45).
O termo perspectivismo foi emprestado da teoria da criação artística; aqui, é
importante ressaltar que a noção de perspectiva é uma herança e uma conquista-- a
mais marcante, provavelmente- da Renascença italiana: ela permitiu ao artista
apropriar-se da representação do espaço, de situar nele o objeto segundo relações
espaciais que correspondam a um único ponto de vista, o do artista criador e ao
mesmo tempo espectador da obra. A teoria do perspectivismo não diz respeito
apenas à arte do desenho, mas a possibilidade de representar a profundidade e a
sucessão múltipla dos planos sobre uma superfície simples. Precisamos, no entanto,
excluir do pensamento de Nietzsche a ideia Renascentista sobre um ponto de vista
único, determinado, privilegiado e imparcial da geometria. Segundo o filósofo - que
postulou que não existiam fatos, mas somente interpretações - só podemos deduzir
que possuímos perspectivas infinitas, “nosso novo infinito” (NIETZSCHE, 2003, p.
111).
Até onde vai o caráter perspectivista da existência? Tem ela ainda outro caráter qualquer? Uma existência sem interpretação, sem sentido, não se torna precisamente “absurda”? Aliás, toda a existência não é uma existência interpretante?-Como é justo, isto não pode ser decidido mesmo por uma análise introspectiva mais precisa e mais cientificamente minuciosa do intelecto; pois o intelecto humano durante esta análise não pode impedir-se de ver a si mesmo em suas formas de perspectivas e somente nelas (...), Mas penso que hoje estamos tão longe quanto possível da ridícula pretensão de decretar, a partir de nosso ângulo de vista, que não é permitido ter outra perspectiva senão a partir deste ângulo. O mundo tornou-se novamente “infinito” para nós; mais ainda porque não podemos rejeitar a possibilidade de que ele encerre em si interpretações infinitas (NIETZSCHE, 2001, p. 274).
Quando trazemos uma obra do Renascimento para o presente, parece que
ela pouco pode nos dizer sobre o contemporâneo “desinteressado”. Uma obra que
retrata a Criação do homem pelas mãos divinas, então, é como um anacronismo
59
absurdo – afinal, Deus morreu – mas a genealogia nietzschiana, ao investigar as
imagens fantasmas de Warburg, nos mostra que alguns fantasmas insistem em
assombrar nossa época; mais do que sustos, como nos contos e filmes de terror,
possivelmente, eles desejam nos revelar algo maior, algum segredo oculto. Como o
espectro paterno de Hamlet, que acabou por revelar mais do que intrigas palacianas
de um assassinato, contribuiu para o desenvolvimento de seu próprio rebento, – e
de todos nós – Hamlet é um “Adão pós-queda”, que tenta lidar com o assassinato de
seu pai, agora ausente.
Senhor, em meu coração havia uma espécie de luta Que me não deixava dormir. Sentia a mim próprio jazer Pior do que os amotinados presos aos ferros irrefletidamente– E louvada seja a irreflexão: saibamos. Ouves? Desde que minha alma querida foi senhora da própria vontade, E pôde dentre os homens escolher o seu eleito, Selou-te para si mesma: pois foste Como alguém que, sofrendo tudo, nada sofre [...] (SHAKESPEARE, Hamlet, 2002, p. 77)
Abençoada seja a irreflexão; quão duro foi para o homem ser senhor de sua
própria vontade? Desde então, sofremos tudo, e nada mais sofremos graças ao
niilismo. Mas o tema da nadificação será abordado nos próximos capítulos.
Curiosamente, como nos alertava Freud, três das grandes obras máximas da
literatura ocidental tratam o tema do parricídio: Édipo Rei, Hamlet e os Irmãos
Karamazov. Todas essas obras lidam com a morte da figura paterna e personagens
que tentam lidar com os enigmas oriundos desse assassinato. Nenhuma conclusão
é tão evidente como o desfecho de os Irmãos Karamazov, de Dostoievsky (1821-
1881); o autor, que tanto impressionou Nietzsche, percebeu que “sem Deus tudo é
possível”. (DOSTOIEVSKY, 2001, p. 578).
A morte de Deus foi o parricídio de nossa cultura; ela nos revelou que “tudo
era possível”, não havia mais um caminho seguro e pavimentado e a vertigem
existencial era uma consequência inevitável de tal ato. Eis a ironia: mal havia
renascido, e os dias do homem já estavam contados. Sem um Deus, o Adão de
Michelangelo apontaria para o nada, e foi o que aconteceu.
Deus, suspenso pelos anjos, talvez estivesse se esforçando para não
abandonar o mundo de sua criação. Ele “estica” seu corpo em direção ao homem
60
prostrado que, passivamente, ergue a mão. O último suspiro do sopro que deu a
vida, um deus tomado pela velhice, outrora senhor dos exércitos, agora, um pai
distante. Quanto mais belo Deus for retratado, mais longe do mundo ele estará. Esta
é a equação inquietante imortalizada por Michelangelo em sua época fronteiriça:
Deus foi expulso para o céu, enquanto seus fantasmas começaram a assombrar o
mundo.
3.1 SOMBRAS DO AFRESCO: O Coração do Buraco Negro
(Um Poema Primordial)
Segundo a astrofísica, um buraco negro é uma região do espaço da qual
nada pode escapar, nem mesmo partículas que se movem na velocidade da luz.
Causado por uma deformação do espaço-tempo, resultado do colapso gravitacional
de uma estrela (supernova), que ao desaparecer gera uma singularidade, o “coração
do buraco negro”, onde o tempo para e o espaço deixa de existir. O buraco negro
começa a partir de uma superfície denominada horizonte de eventos, que marca a
região a partir da qual não se pode mais voltar. (WEINBERG,1972, p. 52).
No capítulo anterior, comparamos o Renascimento a uma supernova; o último
e intenso brilho da estrela do sagrado. O que aconteceu depois na cultura ocidental?
“Nada pode escapar”, “onde o tempo e o espaço deixam de existir” ou “região
da qual não se pode mais voltar” todas essas notas científicas parecem ter sido
extraídas de um poema de T.S Eliot, como “O Homem-oco”, e são uma boa metáfora
para o fenômeno do niilismo.
O Niilismo já foi mencionado no presente trabalho, e algumas ilações já foram
expostas. O intuito deste capitulo é responder a questão: afinal, o que é o niilismo?
Se o Renascimento foi a supernova do sagrado na cultura ocidental, o que
aconteceu depois do colapso? O buraco negro, metáfora utilizada neste capítulo, é
uma boa imagem para o processo posterior ao Quatrrocento. O cânone ocidental
passou por um processo de desmanche, tragado pela força de um buraco negro: o
Niilismo. Assim como o fenômeno da astrofísica, o Niilismo possui uma atração
irresistível, dimensões assustadoras e a capacidade de findar o tempo e o espaço. A
61
morte de Deus foi a ruptura da grande represa que continha o oceano do niilismo:
Sem Deus tudo era possível!
Segundo Nietzsche, Deus era a ideia sustentáculo para todos os valores
supremos do ocidente, e sem Deus eles não poderiam existir. Por este motivo, a
morte de Deus era “o evento mais importante de nossa época” (NIETZSCHE, 2002,
p. 107). A concepção de Deus, para o filósofo alemão, não era simplesmente a do
Deus teísta, mas, antes, a concepção que representava e sustentava todas as
crenças e valores metafísicos que davam ordem e significação ao mundo ocidental.
Nietzsche iniciou um projeto de diagnóstico da cultura, identificando as
“sequelas” da morte de Deus. Sumariamente, percebeu a fragilidade de todas as
crenças metafísicas posteriores, revelou a impossibilidade de novas crenças
pautadas em valores metafísicos e expôs a desvalorização deste mundo.
O niilismo tem sua origem na palavra latina nihil, que significa nada. Na
filosofia, embora alguns acusem Nietzsche de ser um niilista, ele é, provavelmente,
seu maior adversário e crítico. Para o filósofo alemão, o niilismo é uma espécie de
“grande doença da humanidade”, uma forma de cansaço e negação da vida, fruto do
medo e do ódio reativo a própria existência. Mas, se o niilismo é como uma doença
diagnosticada, qual a sua causa? Nietzsche constata que a causa da enfermidade é
o caráter fraco, apático e debilitado do homem para suportar a vida: “perdemos o
sentido da terra”; não somos mais o “sal da terra”.
Na modernidade os valores supremos se desvaloram por meio do
desenvolvimento e proliferação de inúmeros valores, especialmente o da História. É
importante clarificar que o diagnóstico de Nietzsche sobre o niilismo na Modernidade
não consiste em afirmar que todos os valores já foram desvalorizados, mas que o
pensamento moderno já plantou as sementes para tal desvalorização:
Narro aqui a história de dois séculos que virão. Descrevo o que virá, o que não mais deixará de vir: a ascensão do niilismo [...] O futuro fala desde de já pela voz de cem signos, a fatalidade anuncia-se em toda a parte (NIETZSCHE, 2010, p. 2).
Na história do pensamento ocidental é possível identificarmos, em alguns
autores, o niilismo como a descrença máxima nos valores superiores (niilismo
62
moral), mas também a descrença na própria existência do mundo (niilismo
metafisico), ou a atitude pessimista diante do conhecimento (niilismo
epistemológico), no qual nenhum conhecimento é seguro.
Na literatura e na poesia, é possível detectarmos frequentes manifestações
do niilismo, especialmente com os grandes literatos russos (Dostoievski e
Turgueniev).
A ideia que estamos imersos em um vasto nada, e de que a vida não possui
nenhum sentido ou valor - o homem sequer deveria ter nascido- é poderosa. A
negação da realidade concreta, da realidade substancial, assim como a concepção
do homem como um proscrito, um nascido para morrer, gera a sensação de que a
vida é inútil, dolorosa e sem sentido.
Resta demonstrar que esse “tudo é vão” caracteriza nosso niilismo atual. Nossa desconfiança, em nossos antigos juízos de valor chega até a formular esta pergunta: todos os valores não seriam astúcias destinadas a fazer perdurar a comédia sem aproximá-la de uma solução? Se é verdade que “tudo é vão”, se não há nem objetivo nem fim, a duração torna-se o pensamento mais paralisante que possa haver, sobretudo se nos sentirmos enganados e sem força necessária para não nos deixarmos enganar (NIETZSCHE, 2010, p. 21).
É muito provável, que o termo niilismo tenha sido introduzido pela primeira
vez na filosofia por Friedrich Jacobi (1743 – 1819). O conceito também aparece na
obra de William Hamilton (1788-1856). Porém, o termo “Niilismo” ganhou força
associado ao movimento revolucionário russo, conhecido por suas rebeliões
violentas. Nos jornais russos o termo era utilizado desde de 1829, e na literatura ele
teria aparecido inicialmente na obra ‘‘Pais e Filhos’’, de Turgueniev (1892).
Nietzsche, como de costume, reinterpreta o conceito radicalmente. Com o
filósofo, o niilismo é apresentado como uma doença. Esta doença não foi contraída
recentemente: ela faz parte de uma narrativa trágica, um drama da humanidade, um
problema da civilização que teria, gradativamente, perdido suas forças criativas.
Socratismo, platonismo, estoicismo, epicurismo, ceticismo, escolástica,
iluminismo, idealismo, utilitarismo, naturalismo, socialismo, positivismo, anarquismo
são todos esforços, segundo a genealogia nietzschiana, vítimas de suas próprias
63
fórmulas. Os valores enfraquecidos, idealizados e segregados, em vez de levar o
homem à ação de dominar a própria ação, voltaram-se contra ele próprio,
condenando a ação. Em outras palavras, a busca pelo nada culminou na frustração
da própria nadificação da potência. “Minha afirmação é que em todos os valores
superiores da humanidade esta vontade é deficiente – que os valores de declínio, os
valores niilistas comandam sob os nomes mais sagrados” (NIETZSCHE, 2010, p. 6).
Essencialmente variado, o niilismo é múltiplo e suas “digitais” estão em toda
parte: política, arte, história e na própria ciência. A história humana é a história do
niilismo. Não uma história no sentido hegeliano, não há progressão, não há
negatividade dialética, mas só um empobrecimento, uma desvalorização, perda de
força gradativa e a depreciação da vida. Quantas máscaras criamos para dissimular
nosso ressentimento contra a vida.
Não se abandona uma posição extrema por uma posição média, mas por outro extremo, inverso, é verdade. E é assim que a crença na imoralidade absoluta da natureza, por sua ausência de sentido e de fim, nos apreende como uma paixão psicologicamente necessária, logo que a crença em Deus e numa ordem essencialmente moral do universo cessar ser sustentável. O niilismo aparece então, não que o desgosto da vida seja maior que anteriormente, mas ficamos desconfiados de toda espécie de “sentido” atribuído ao mal ou mesmo a existência. Uma interpretação entre outras naufragou, mas como passava por ser a única interpretação possível, parece que a existência não tinha mais sentido, por mais vazia que fosse (NIETZSCHE, 2010, p. 21).
Nietzsche conclui que a “forma extrema do niilismo é: o Nada (o absurdo)
eterno! ” (NIETZSCHE, 2010, p. 21). No capítulo anterior, já abordamos o Nada e o
vínculo com o absurdo; cabe, no entanto, pontuar o niilismo como a conclusão da
cultura ocidental; não um resultado de uma “teleologia maior”, mas algo semelhante
as consequências de um incêndio devastador, incontrolável e incerto; cujo os únicos
“resultados” não programados, embora certos, sejam as ruinas.
O absurdo é a noção da ausência final de valor. Nietzsche parece profetizar o
existencialismo, segundo o qual a consciência “humana aniquilante” é
simultaneamente destruidora e criadora de valores cujo o único fundamento é a
vontade de nada.
64
O espetáculo do nada levou Nietzsche a denunciar a doença letal dos tempos
modernos. É sabido que o niilismo, para ele, é um tema multifacetado, avaliado por
camadas, formado, assistematicamente, por noções que possuem um grau de
parentesco. As aparentes contradições são enigmas jocosos: “O último termo seria o
niilismo, mas o primeiro também não seria o niilismo? ” (NIETZSCHE, 2001, p. 23).
De forma geral, o niilismo designa a crise que afeta nossa civilização,
caracterizado pelo esvaziamento dos instintos e pela vitória dos tipos fracos. O
niilismo é, portanto, a vida depreciando a própria vida. Uma inversão radical dos
valores vitais, o momento em que a vida se torna reativa ao pensamento.
Paradoxalmente, o niilismo também é uma denúncia do fracasso dos valores
tradicionais, por isso o último niilismo, aquele marcado pela morte de Deus, é
também a “revelação” mais assombrosa sobre o nada e o fracasso de todas as
formas de idealidade.
Neste ponto, toda a acurácia de Nietzsche como psicólogo aparece: Que
significa o niilismo? O niilismo avança quando o homem toma a consciência de que
esses ideais não passam de fantasmas, aqueles mesmos que Warburg irá conjurar,
sintomas de uma vida decadente, que não tem outra função senão o de mascarar o
nada (negação da vida) que assombra os medos mais íntimos da humanidade.
O “niilismo psicológico”, como chamou Nietzsche, ou a perda de todos os
sentidos é o reconhecimento da depreciação dos valores superiores, a falta de télos,
a conclusão que não há respostas para a pergunta: para que? O vazio do nada
expõe o absurdo e a ausência de objetivo.
A narrativa metafísica ao almejar a Verdade além das aparências, em um
mundo suprassensível, deprecia o real sensível que se vê reduzido a uma pura
ilusão, abrindo, desta forma, o caminho para o nada. Por este motivo, a crítica
genealógica de Nietzsche é tão dura com o discurso metafisico. O autor denuncia os
“alucinados do além-mundo”, e seus “delírios” como fruto da fraqueza.
Somos os herdeiros de certos hábitos de dissecação da consciência e crucificação de si próprios, que foram praticadas durante dois mil anos; esse é nosso domínio talvez, nosso refinamento em todo o
65
caso; associamos estreitamente as inclinações naturais e a má consciência (NIETZSCHE, 2010, p. 25).
Consequentemente, os valores morais, forjados pelos negadores da vida, são
produtos do ressentimento, sentimento de rancor vivenciado pelos incapazes de
criar, esquecer, lutar e dominar. Um conjunto de valores negativos e reativos. Daí a
importância do papel da moral no pensamento de Nietzsche, pois a moral tradicional
requer superação.
A moral não é imutável, nem dada historicamente. Ela é resultado de um
longo processo interpretativo: o das violências impostas a vida para impor-lhe
sentido. Por isso, primeiramente, precisamos interpretar as necessidades
específicas (fisiológicas e psicológicas) que forjaram esta ou aquela “preferência
axiológica” para em seguida analisá-las no sentido extramoral. Não mais em termos
de bem ou mal, verdadeiro ou falso, mas de doença e saúde, potência e impotência.
A questão final para Nietzsche será interpretar o “ideal ascético”, valor supremo das
tipologias fracas.
De forma sucinta, no pensamento moral-ascético é o instinto que se volta
contra si mesmo, e desta forma não se deseja mais viver, mas morrer. É necessário,
alega Nietzsche, ir além dessa “vontade de nada” que tem sido a base da cultura
ocidental.
Curiosamente, a superação do niilismo encontra-se no próprio niilismo, na sua
radicalização, em função do próprio absurdo que constitui a vida de chegar a negar
a si mesma.
Mas será que o niilismo não é só um prolongamento do pessimismo?
Comumente, o pessimismo é associado à filosofia de Schopenhauer. Nietzsche, que
foi influenciado por Schopenhauer, chega a considerar o niilismo como uma
evolução do pessimismo. Nietzsche constata que Schopenhauer opôs o
“pessimismo indiano” – tudo é uma ilusão – ao otimismo cristão, confiança em um
Deus bom, que não iria nos iludir. Nietzsche utiliza, mais uma vez, sua psicologia
dos valores para demonstrar que o anticristianismo de Schopenhauer não era uma
oposição a teologia cristã, nem uma alternativa, pois o ideal ascético continuava
presente, apesar da manobra de inversão produzida por Schopenhauer, o espírito
66
de vingança contra a vida (ascetismo) continuava sendo o motor das duas tipologias
religiosas; filhas do mesmo niilismo. “O niilismo de Schopenhauer continua sendo a
consequência do mesmo ideal criado pelo teísmo cristão” (NIETZSCHE, 2010, p.
126).
Mas, paradoxalmente, o niilismo também designa o pessimismo radical, que
consiste em denunciar esses mesmos valores adoentados, que, rejeitando todo o
dogma, toda a moral, todo o medo, toda ortodoxia, dispensando toda a crença, tem
a coragem de reconhecer a condição trágica do homem contemporâneo: o homem
sem Deus. É esse paradoxo, que postula a morte de Deus, que coloca fim a
metafísica, que subverte a moral, que retrata a insuficiência da religião, ciência, da
filosofia, é o mesmo que reabilita as condições para a vida, e todas as suas
expressões como “ilusões úteis” necessárias a vida.
Podemos inferir que os sintomas do niilismo são: perda da vontade de viver; a
sublimação dos instintos por valores ideais; a crença em um mundo superior (futuro
melhor, utopia, etc.) e, notoriamente, a vida depreciando a própria vida.
É necessário explicitar que Nietzsche atribui valor a experiência dessa
enfermidade, pois tal condição patológica possui um lado positivo: o de conferir uma
perspectiva superior; afinal ela permite o discernimento entre os valores vitais,
àqueles que promovem o “florescimento da vida” e os valores negativos e reativos,
responsáveis pela decadência dos instintos e, consequentemente, da civilização.
Desta forma, o niilismo é “sempre ainda vontade de poder”. Portanto, não há
oposição dialética entre a vontade de poder e a vontade de nada, entre as quais o
homem seria obrigado a escolher, mas uma diferença hierárquica. Seja qual for a
camada que se manifesta o niilismo, ele mesmo é avaliação e edificação de valores.
O niilismo não está resumido ao ressentimento, nem mesmo a morte de Deus.
O niilismo, exposto pelo absurdo, precisa ser o novo ponto de partida do
pensamento, o equivalente a outrora “dúvida sistemática”. Mas a verdadeira
dificuldade será criar um novo mundo que não reintroduza um novo candidato ao
divino na história da civilização.
67
Seria o niilismo uma “divinização da história?” Com exceção de um punhado
de pensadores, como Schopenhauer, Kierkegaard e Nietzsche, os filósofos
modernos herdaram de Hegel, em diferentes níveis e formas, a preocupação em
articular a ética a história.
Gilles Deleuze (1925-1995) considerava Hegel –ou o hegelianismo- o
adversário natural de Nietzsche. O filósofo francês argumenta que “o anti-
hegelianismo atravessa a obra de Nietzsche como seu fio condutor” (DELEUZE,
1983, p. 83).
A principal expressão filosófica do historicismo do século XIX foi o
historicismo de Hegel e dos hegelianos, como Hartmann (1842-1906). O
hegelianismo postula que todo pensamento faz parte de um enorme processo
dialético. Dito de outra forma, ideias fundamentalmente opostas, e sua síntese
superior, são o motor que mantem o pensamento vivo ao longo da história. Deleuze
considera a dialética hegeliana como um processo reativo e niilista em um sentido
nietzschiano. Não há, segundo o filósofo, uma oposição entre ideias, mas apenas
contrastes e diferenças. A lógica da diferença, de Deleuze, está baseada na crítica
empreendida por Nietzsche a dialética metafísica e a história.
Esta visão da história carregava consigo o que Nietzsche chamava de “idolatria do Real”, quer dizer, o culto da objetividade dos fatos, a crença no sucesso como necessidade racional, enfim, a conformidade com o “poder da história”. O historicismo hegeliano é, nesse sentido, a religião do poder da história, o culto dos fatos como objetivações do “espírito do mundo”. Porém, na opinião de Nietzsche, mas não somente dele, tudo o que os historiadores descrevem são fatos inventados, todas as relações presumidas; eles reduzem teoricamente o enigma à compreensão, colocam uma finalidade onde ela não existe, descobrem acasos onde várias causas agiram. Contra essa idolatria dos fatos, Nietzsche afirma que a virtude do sentido histórico deveria residir exatamente na revolta contra o poder cego dos fatos, contra a tirania do real, contra o determinismo histórico (DELEUZE, 1995, p. 23).
A cultura ocidental perdeu sua vitalidade, em razão de um excesso de
“formação histórica”. Este diagnóstico, psicológico e médico simultaneamente, levará
Nietzsche a buscar um antídoto para a “doença histórica” que aflige toda cultura
moderna, pois toda cultura não pode olhar para o passado sem perder sua potência
criativa.
68
Qual o elo entre o niilismo e a história? Para responder esta questão,
precisamos tentar desvendar outra pergunta: Para que serve a história? Já foi dito,
no presente trabalho, que a História foi o sucedâneo do divino na Modernidade. A
Modernidade idealizou o conhecimento histórico como se ele oferecesse um domínio
sobre a vida e seu sentido (história universal e a ideologia da progressão). Ocorre
que a história se voltou contra a vida: a “febre histórica”. Não utilizamos mais a
história como matéria-prima para a civilização, mas como uma “causa mecânica”. A
vida tornou-se subordinada à história: “Há um grau de insônia de ruminação e de
sentido histórico onde o que vive se destrói e acaba por perder-se, quer se trate de
um ser humano, de um povo ou de uma civilização” (NIETZSCHE, 2002, p. 16).
Ao contrário do animal que vive de maneira a-histórica, o homem se lembra, e
aí começa sua dependência do passado. É verdade que o homem também possui a
faculdade do esquecimento – que anda meio esquecida – e esta faculdade positiva é
vital, pois liberta o homem do passado. As civilizações antigas, perante o problema
do niilismo, criaram o tempo mítico, a-histórico por natureza em sua dimensão
cíclica. Para Nietzsche, psicólogo da civilização, precisamos reaprender a converter
o conhecimento histórico em benefício à vida: é necessário recuperar a noção (não
dialética) de Hierarquia.
Não é necessário, no entanto, perdermos a dimensão histórica; precisamos
utilizar ao mesmo tempo o sentido histórico e a-histórico. Esse aspecto de equilíbrio
é de suma importância para a vitória sobre o niilismo.
A obra nietzschiana demonstra três formas de utilizar a história ou as três
tipologias psicológicas de homens: a forma monumental, no qual o homem utiliza o
passado como exemplo; a antiquária, utilizada pelo tipo conservador enraizado nos
valores passados e a forma crítica, utilizada pelo reformador para negar e superar o
passado. As três formas podem ser tanto úteis como nocivas à vida, dependendo de
sua hierarquia.
O niilismo avança sobre várias dimensões, e devora os seus filhos como
Cronos no mito grego. A história, concepção supervalorizada em nosso tempo, foi
absorvida pelo niilismo e transformada na sua própria divinização. Dito de outra
69
forma, crer na onipotência histórica, -hábito comum nas ciências humanas- é coroar
o niilismo e aumentar a tração do buraco negro.
O trabalho atual não tem a ambição de elaborar um tratado sobre a história-
deixamos a missão para os historiadores- mas almejamos expor os aspectos de sua
relação com o niilismo. Nossa função é a de denunciar e evidenciar a “doença
histórica”, combatida tanto por Nietzsche quanto por Warburg, e os seus sintomas
como: a perda da unidade da cultura; o culto da objetividade, a negação da
jovialidade (aquela tão importante para os gregos), o peso insuportável das pedras
sisíficas do passado, e enfim o desgosto de si mesmo. Neste ponto, a semelhança
sintomática com o niilismo fica evidente; o motivo é simples: a infecção é o niilismo,
enquanto a história é só uma febre.
Assim como a febre é útil para o médico identificar a causa da doença, a
história nos levou ao Niilismo. Para combater o sintoma da doença histórica,
Nietzsche propõe a postura “supra-histórica” da arte; (a mesma evocada por
Warburg) trata-se de aprender a viver antes de aprender a história, e utilizar os
poderes eternizantes da arte.
Se o modo a-histórico coloca-se fora do processo histórico, os homens supra-
históricos estão para além da história, não a negam, embora olhem sempre para o
horizonte, para o devir, focados no presente, como apaixonados que perderam a
noção do tempo, presos no eterno momento do instante. Oposto do eterno “olhar
para trás” da perspectiva historicista; sempre em busca de um totem originário para
adorar e conservar na memória, pois o atual é “falta” e precisa ser reparado. Ora, só
o niilismo poderia convencer os homens que a atualidade da vida é algo vazio, ruim
e sem sentido.
Como é possível criar uma memória histórica para o animal humano? Como é possível imprimir algo nessa mente tão obtusa quanto volúvel, afinada apenas com o momento que passa, e conseguir com que a impressão ali permaneça? É bem provável, que as respostas e os métodos para se solucionar esse problema primevo não fossem dóceis; talvez não tenha havido nada mais temerário e sinistro em toda a pré-história do homem, do que a sua mnemotécnica. Para que algo se aloje na memória preciso que seja ali marcado pelo fogo; somente aquilo que jamais para de doer fica na memória, - eis a oração da mais antiga (infelizmente, também, a mais durável) psicologia existente na terra. -se até dizer que em qualquer lugar onde a cerimônia, a serenidade, o mistério e
70
um colorido lúgubre ainda distinguem a vida do homem e de um povo, uma parte do terror que outrora estava a serviço de todas as promessas, juramentos e votos feitos na Terra ainda é eficaz; o passado, o passado mais remoto, mais profundo e mais severo, exala sobre nós e surge dentro de nós, sempre que nos tornamos “sérios”. O homem jamais poderia viver sem sangue, tortura e sacrifício, depois que sentiu a necessidade de criar para si uma memória histórica; os juramentos mais terríveis (inclusive o sacrifício dos primogênitos) os ritos mais cruéis dos cultos religiosos (e toda as religiões são, no fundo, sistemas de crueldade) – tudo isso tem origem no instinto que identificou a dor como o auxílio mais poderoso à mnemônica (NIETZSCHE, 2010, p. 56).
Eis o ensinamento mais contundente de Nietzsche: o significado autêntico é
doloroso; e que a dor é o significado: “Não será a realidade apenas a dor, talvez, a
representação não teria nascido daí?” (NIETZSCHE, 2002, p. 53). Entre a dor e o
significado surge a memória da dor que, então, passa a ter um significado realmente
memorável e digno da história. Origem e Finalidade – o coração da História –, pela
saúde da vida, devem ficar afastadas; esse é o ensinamento cabal de Nietzsche.
A dor é o fundamento do significado. Por isso o mundo é tão rico em
significado: porque é rico em dor. Nietzsche foi um psicólogo refinado, – em
oposição a matemática24 de Platão – sua maior descoberta foi o vínculo entre dor,
significado, memória e história. Atribuir significado a dor não significa aliviar o
sofrimento, mas permitir que o sentido se origine, sem que a dor seja vazia de
sentido. O homem sofreu com o problema do seu próprio significado, e então se
entregou ao ideal ascético, fenômeno que transformou em significado o sofrimento
em si, e assim abriu a perspectiva da vida como culpa, erro, sombra e, por fim, ao
nada.
Nietzsche nos diz que não conseguimos distinguir entre a dor e o significado.
A associação feita pelo filósofo alemão é uma terrível arqueologia do significado,
mas também um presságio mórbido de um niilismo passivo e sinistro. Há uma
semelhança instigante entre a perspectiva nietzschiana e o mito científico da horda
primeva, elaborado por Freud, em Totem e Tabu (1913); nós criamos uma narrativa
poética para ocultar a dor (ou o crime), um poema que repete, comemora e
rememora a dor primordial. Ou para ser mais objetivo: uma mentira poética
substituiu o mundo, pois o homem não suportou a dimensão terrível da vida; desde 24
Desde Menon, com a celebre interrogação do escravo por Sócrates, a matemática é usada como modelo do
tipo de idealidade da qual se considera que a alma se relembra.
71
então, criamos narrativas que se constituem de dor, produzem dor e, portanto, criam
significado para ocultar o nada. Religião, Arte, Filosofia e Ciência são “grandes
sistemas de dor”.
O “poema primordial” que substituiu o mundo real e inaudito, cheio de “som e
fúria”, foi criado para não perecermos de verdade, mas qual verdade? A de que não
há sentido para a vida. Essa é a conclusão de Nietzsche, o poema primordial da
humanidade mente, mas aceitar a realidade nua e crua é, consequentemente,
morrer de verdade. “Temos a arte para não morrer de verdade” (NIETZSCHE, 2002,
p. 23).
Desassociado do ideal ascético, o homem, animal humano não tinha sentido até então. Sua existência na terra não continha um propósito; “por que homem? ” - Era uma pergunta sem resposta; a vontade para o homem e para a terra faltava; atrás de cada grande destino humano soava um refrão ainda maior: “Em vão! É isso, precisamente que significa o ideal ascético: que algo estava faltando, que o homem estava cercado por um vazio assustador- não sabia como justificar, como explicar, como se auto afirmar; e sofria pelo problema de seu significado. E sofria de outra maneira também; era, essencialmente, um animal debilitado: mas seu problema não era o sofrimento em si, mas o fato de não haver resposta para a questão flagrante: por que sofro? (NIETZSCHE, 2010, p. 22).
A falta de sentido para o sofrimento, não o sofrimento em si; o homem pode,
até mesmo, buscar o sofrimento, desde que ele encontre um sentido. Assim o
homem foi salvo, passou a ter um sentido, já não era um navio à deriva em um
oceano feroz de doença, velhice e morte.
Já não podemos esconder de nós mesmos aquilo que é expresso por todo esse querer direcionado a partir do ideal ascético; esse ódio ao humano, e ainda mais o animal, e mais ainda ao material, esse horror aos sentidos, à própria razão, esse medo de felicidade e da beleza. Esse desejo de se afastar da aparência, da mudança do devir, da morte do próprio desejo- tudo isso significa –ousemos compreender – uma vontade de nada, uma aversão à vida; mas é e continua a ser uma vontade! ... E para repetir, na conclusão, o que disse no início: o homem prefere “nada” querer a não querer (NIETZSCHE, 2002, p. 97).
Salvamos o querer; querendo o nada: deuses, utopias, paraísos, almas
gêmeas, qualquer coisa, menos a vida como ela era: cheia de nonsense.
Em suma, criamos mitos, lendas, contos, narrativas e, finalmente, a História.
A mentira da objetividade; -quase poética- nos anulamos, como em um “crime
72
perfeito”. A história objetiva substituiu o mundo, mas o poema primordial da
humanidade perdeu força pelo mesmo motivo. Daí a conclusão de que a cultura
histórica é a divinização do niilismo: a ideia de um processo, de pessoas como
peças de uma engrenagem maior, a neutralidade, o culto ao fato; primeiro, negamos
o mundo e o substituímos por uma criação, e depois acabamos por anular o criador,
dito de outra forma: fomos nadificados.
É verdade que ainda esperamos a salvação messiânica, a utopia social, a
cura científica para todos os males, o amor encantado; mas eles estão sempre
prometidos para o amanhã – e nós sabemos que o amanhã é uma eterna promessa.
Crer na História e nas historietas de todos os dias está ficando cada vez mais difícil.
O tempo cíclico do Mito negava a degradação do mundo e dizia: sim! Quantas
vezes fosse necessário. Já o tempo Histórico, fundamentado no “já passou”, diz:
Não! Habita a lógica da linearidade, origem, finalidade, peregrinação e se precipita
ao nada. A crença na História é o caminho para o niilismo e a sua consagração.
Voltemos a questão inicial de Nietzsche: O niilismo não será o princípio e o
fim? Sim, ele estava lá no começo e nós reagimos, criamos o mito, a arte, a filosofia
a ciência; criamos um grande poema; negamos o mundo, muitas e muitas vezes.
Mas o nada é voraz como um buraco negro. O Niilismo é o grande fantasma da
nossa história.
Como um buraco negro, o niilismo avançou graças ao colapso do “poema
primordial”, (sendo Deus nosso verso poético mais poderoso). Estamos no coração
do buraco negro, o ciclo hermenêutico parece esgotado, ou embaralhado demais
para nos dizer algo.
O herdeiro do niilismo é o “último homem”, aquele que se arrasta em uma
terra devastada, onde sempre é Abril25.
25
:Referência ao poema de T.S Eliot “A Terra Devastada” (1922): “Abril é sempre o mais cruel dos meses,
germinam lilases da terra morta”. No mês de abril, na Europa, não há lavouras para a colheita.
73
3.2 ADÃO NA TERRA DEVASTADA: O Último Homem e
Tipos de Niilismo.
A primeira parte deste trabalho aspirou responder à pergunta: o que é o
niilismo? A resposta identificou o niilismo como a nadificação da potência, cujo
caminho foi consagrado pelo culto da História, na modernidade. Agora iremos nos
debruçar sobre os tipos de niilismo. Já citamos o aspecto múltiplo do niilismo.
Também, retratamos alguns exemplos de niilismo como: o niilismo epistemológico,
niilismo na literatura, niilismo ontológico e o niilismo psicológico.
Mas iremos tratar o niilismo como um desdobramento, um processo de
decadência, na “estrada da história”; processo que alcançou seu acabamento no
objetivismo historicista.
Didaticamente, abordaremos o niilismo em três estádios distintos, embora
eles se sobreponham. Começaremos pelo Niilismo Negativo; onde este mundo se
torna um local de peregrinação.
Os dois maiores expoentes do niilismo negativo são: o Platonismo e o
Cristianismo. Sabemos que Nietzsche via o Cristianismo como um desdobramento
do platonismo: “o cristianismo é platonismo para o povo” (NIETZSCHE, 2002, p.
102).
É muito possível que a filosofia nietzschiana seja, em muitos aspectos, uma
inversão da filosofia platônica. Platão é um filósofo muito complexo para ter sua
doutrina resumida em alguns poucos parágrafos. Mas iremos focar na crítica
efetuada por Nietzsche –boa parte já exposta neste trabalho- sobre o postulado do
filósofo grego.
Para não sermos repetitivos, sobre a crítica direcionada a metafisica, iremos
expor o niilismo negativo de Platão e do platonismo por um ângulo mais audacioso:
sua rivalidade com Homero.
Quanto maior e mais sublime um homem grego, maior a claridade com que emana dele a chama da ambição, consumido todos os que seguem pelo mesmo caminho. Aristóteles fez uma lista, em grande estilo de tais disputas hostis: nela, encontra-se o exemplo mais acentuado de que mesmo morto pode provocar em um vivo o ciúme que o consome. Assim, Aristóteles aponta a relação de Xenófones de
74
Cólofon para com o Homero. Não entendemos, em seu vigor, este ataque ao herói nacional da poesia – também aquele posterior em Platão- se não pensarmos que em sua raiz está uma imensa cobiça de ocupar o lugar do poeta abatido e de herdar sua fama (NIETZSCHE, 1996, p. 80).
Nietzsche tinha um, aparente, problema inicial em sua crítica contra o niilismo
negativo de Platão26: como um nobre poderia ter elaborado o maior e mais refinado
constructo do niilismo? Nietzsche atacou ferozmente Sócrates, mas seu ataque
estava direcionado a “interpretação da vida de Sócrates por Platão”. Sócrates foi a
máscara inicial de Platão, assim como Schopenhauer foi a de Nietzsche. Platão
herdou de Sócrates a ética, mas ambicionava mais do que inquerir pessoas na rua:
ele queria demonstrar a Verdade.
Platão era um escritor hábil, seus textos influenciaram a cultura ocidental,
tanto os teólogos cristãos (Santo Agostinho e Santo Tomás) como a literatura
(Dante) e, até mesmo, a psicanálise (Freud). Comumente, o filósofo grego evitava a
primeira pessoa do singular em seus textos, procurando sempre o distanciamento
(como se os seus escritos fossem neutros por terem captado a Verdade), ele criou a
“persona de Sócrates”. Nietzsche não aborda o problema da existência de Sócrates,
mas o fato de Platão, um esteta, ter criado o Sócrates vitorioso. Platão imortalizou a
vida de seu mestre em belos textos e, agora, tinha um personagem que podia
desafiar o grego mais imponente da história ocidental: Homero.
Homero foi (junto com Shakespeare) o poeta maior da tradição ocidental. A
Ilíada e a Odisseia são obras fundacionais do ocidente. Platão, no entanto, atacou
Homero: considerava os deuses imorais, a coragem dos heróis questionável, uma
fantasia poética perigosa para a moral grega: “Toda essa poesia provavelmente
distorce o pensamento de qualquer pessoa que a ouça, a menos que possua o
conhecimento de sua verdadeira natureza que atue como um antídoto” (PLATÃO,
2012, p. 397). Nietzsche, para quem o impulso de dominação é a base genuína da
argumentação filosófica, percebe que Platão utiliza a moral para atacar Homero.
Essas considerações não são frívolas e irrelevantes quanto podem parecer: Platão,
o aristocrata, queria derrotar Homero.
26
O pai de Platão era Aristo, descendente de Codro, último rei de Atenas, e sua mãe tinha como ascendente o
grande legislador ateniense Sólon.
75
Por exemplo, nos diálogos de Platão, aquilo que possui um destacado sentido artístico é, na maior parte das vezes, o resultado de uma rivalidade com a arte dos oradores, dos sofistas, dos dramaturgos de seu tempo, descoberta por aquele que pudesse dizer por fim: “vejam, também posso fazer o que meus maiores adversários podem; sim, posso faze-lo melhor do que eles. Nenhum Protágoras criou mitos tão belos quantos os meus, nenhum dramaturgo, um todo tão rico e cativante quanto o “Banquete”, nenhum orador compôs discursos como aqueles que eu apresento no Górgias – e agora rejeito tudo isso junto, e condeno toda a arte! Apenas a disputa fez de mim um poeta, um sofista, um orador! (NIETZSCHE, 1996, p. 84).
Para isso, o filósofo grego criou as mais belas obras filosóficas, para propagar
sua ideia central: filosofar é aprender a morrer. Eis uma fórmula contra a “mentira
poética” dos artistas, como Homero. Sob a máscara de Sócrates, a opinião de
Platão sobre os artistas é famosa:
Porque seriamos obrigados a dizer segundo creio, que a respeito dos homens tanto os poetas como os oradores cometem os mais graves erros, quando afirmam terem sido felizes muitos homens injustos, e infelizes muitos homens justos; que a injustiça é proveitosa, quando não descoberta, e que a justiça, por sua vez, implica dano ao próprio e vantagem alheia. Teríamos de proibir-lhes tudo isso e recomendar-lhes que cantem e digam o contrário, não te parece (PLATÃO, 2012, p. 65).
Resumindo: eles não podiam entrar na sua idílica “República”. Por que um
esteta da língua carregava tanta animosidade contra a arte?
A filosofia grega aparece em um momento de declínio da tragédia. Platão, um
“poeta corrompido”, utilizou a arte contra a própria arte, assim como faria Nietzsche-
outro poeta corrompido- destruindo a filosofia por dentro. Platão, o artista,
desenvolveu um gênero literário que ambicionava tocar a Verdade. Nenhuma forma
de arte almejou tamanha façanha; a arte era uma forma de tornarmos a vida
suportável: a arte era uma forma de aprender a viver.
Quem foi Homero? O homem que nos conduziu até os horrores da guerra,
das paixões, da jornada, do anseio pelo retorno ao lar; o poeta do épico que
antecipou a tragédia e a comédia. Um artista que conduziu o ocidente ao mundo
violento e sombrio dos gregos antigos, adoradores de serpentes. Homero cantava a
vida, não a negava; tornava os horrores suportáveis, pois os embebecia de sentido.
O niilismo encontrou em Homero- mais do que em Nietzsche- o seu maior rival.
76
Mas o que se encontra por trás o mundo Homérico, como local de nascimento de tudo o que é Helênico? Neste mundo, somos elevados pela extraordinária precisão artística, pela tranquilidade e pureza das linhas, muito acima da pura confusão material: suas cores aparecem mais claras, suaves, acolhedoras, por meio de uma ilusão artística, seus homens, nesta iluminação colorida e pacífica, parecem mais acolhedores, e mais simpáticos; mas para onde olharíamos, se nós caminhássemos para trás, para o mundo pré-Homérico, sem a condução e a proteção da mão de Homero? Olharíamos apenas para a noite e o terror, para o produto de uma fantasia acostumada apenas ao horrível (NIETZSCHE, 1996, p. 75).
Mas o nada é uma Hidra, e Platão sua cabeça mais poderosa. Era impossível
derrotar Homero em seu mundo, cheio de cor e dor, então, Platão criou um novo
mundo, um lugar suprassensível. Ascético, como um bom matemático deve ser,
desenvolveu o “mundo das ideias”, aprimorando a inversão de Sócrates, que
colocou a vida a serviço de ideias, a vida tornou-se uma sombra pálida de um
mundo eterno e não corruptível. O casamento com o cristianismo era questão de
tempo, e de Agostinho, a supervalorização do espirito, o dualismo, a desvalorização
da experiência sensorial, o culto idólatra da Verdade.
Tacitamente, o niilismo negativo procura a “Verdade”; um mundo sem
enganos, sem sofrimentos, sem mudanças, sem contradições. Ele não duvida que
exista um mundo como deveria ser (puro, imutável, eterno); o mundo, tal como
deveria ser, existe; este mundo no qual vivemos é um erro; não deveria existir. É
visível que a vontade de encontrar a verdade é apenas a aspiração de um outro
mundo.
Quais são os homens que refletem desse modo? Uma espécie humana improdutiva, sofredora e cansada de viver. Imaginem a espécie de homens oposta: não teria necessidade de crer no ser; melhor ainda, desprezá-lo-ia como morto, fastidioso, indiferente... A crença que o mundo deveria ser, existe, é realmente, é uma crença de improdutivos que não querem criar um mundo como deve ser. Eles o supõem dado, procuram os meios e os caminhos que a ele conduzem. Querer “o verdadeiro” – é confessar-se impotente em criá-lo (NIETZSCHE, 2010, p. 19).
Para Nietzsche a arte deve curar-nos da ferida da existência, e ninguém fez
isso como Homero; ele produziu o véu apolíneo que, cobrindo a crua realidade
dionisíaca, permitiu que aceitássemos a virulência do mundo. Nietzsche recrimina
Platão por ter inventado, com as Ideias, “os mundos de trás”. Por este motivo, O
77
Cisne de Apolo27 seria a fonte de corrupção metafísica e niilista que contaminou o
pensamento ocidental. Essa tendência doentia de fugir da realidade em nome de
realidades superiores alimentou a primeira grande manifestação niilista: o niilismo
negativo. Para Nietzsche, Deus está morto; não há mais um centro; o mundo é palco
de forças e vontades múltiplas em constante embate. Platão, ao contrário, acredita
que há um deus escondido por toda a parte.
Digo de antemão, pois um dia pretendo abordar esse tópico mais detidamente-, a arte, em que, precisamente, a mentira é santificada e a vontade de iludir tem boa consciência. Opõe-se de modo mais fundamental ao ideal ascético do que a ciência: isso foi percebido instintivamente por Platão, o maior inimigo da arte até hoje produzido pela Europa. Platão versus Homero: eis o antagonismo completo, genuíno- ali, o advogado mais sincero do além, o grande difamador da vida; aqui, o deificador instintivo da natureza de ouro. Colocar-se a serviço do ideal ascético é, por conseguinte, a corrupção mais evidente possível de um artista; infelizmente, ‘também uma das formas mais comuns de corrupção, pois nada é mais facilmente corrompido do que um artista (NIETZSCHE, 2010, p. 252).
Platão, o maior adversário de Nietzsche, era filho de uma Grécia ferida pela
Guerra do Peloponeso e que sonhava, nostalgicamente, com as glórias de tempos
passados. O mestre de Aristóteles encontrou em Homero, um fantasma poderoso, o
único rival digno; pois se pudesse derrotá-lo, então, teria derrotado a mesma Grécia
que havia condenado e matado seu querido mestre.
Platão não podia derrotar Homero; não importa quão belas fossem suas
imagens poéticas, mas ainda havia uma alternativa: fugir para o outro mundo. E foi
isso que todos nós, notas de rodapé de Platão, fizemos; especialmente o seu maior
herdeiro: A raposa Cristã.
Santo Agostinho foi o grande cirurgião da cultura ocidental; a operação
efetuada por ele foi um sucesso (ou não?). Platão era um pagão, mas, segundo
Agostinho de Hipona, o melhor deles. Agostinho foi sensibilizado pelos elementos
místicos do neoplatonismo e pela ideia de que o espírito interior do homem liga-o à
uma realidade suprema e superior. Ele procurou reconciliar a doutrina de Platão
(através de Plotino) com o cristianismo:
27
Diz-se que, segundo uma anedota de Diógenes Laercio, Sócrates sonhou com um cisne adulto. No dia
seguinte, Platão foi apresentado como seu aluno, imediatamente reconheceu nele o cisne de seu sonho.
78
Por conseguinte, lancei-me avidamente sobre o venerável estilo (sagrada escritura) ditado pelo vosso Espírito, preferindo, entre outros autores, o apostolo São Paulo[...]. Compreendi e notei que tudo o que de verdadeiro tinha lido ali (nos livros platônicos) se dizia aqui realçado com a tua graça (AGOSTINHO, 1987, p. 27).
A simbiose dessas duas doutrinas, nem tão similares, seria a maior
contribuição de Agostinho para o Ocidente. A doutrina neoplatônica deu bases
filosóficas sólidas ao cristianismo. Algo que possibilitou a fusão entre a filosofia e o
cristianismo é o fato de este último não ser, em si mesmo uma filosofia. Suas
crenças basais são fundamentadas na fé de um “fato histórico” mais do que
filosóficas.
A relação complexa entre o cristianismo e o platonismo não é o objetivo deste
trabalho. Mas o tema não pode ser ignorado, pois Nietzsche identifica de forma clara
tal fusão como um dos eventos mais importante da história do ocidente e do niilismo
negativo. Os cristãos teriam “popularizado” o platonismo: O divino impessoal foi
identificado ao Deus pessoal; o paraíso ao mundo das ideias, o mundo das sombras
erráticas ao mundo corrompido pelo pecado; a desconfiança dos sentidos corporais
em prol do espírito. As semelhanças são inegáveis, embora existam diferenças
consideráveis – mais de conteúdo do que de estrutura narrativa. O que chama a
atenção de Nietzsche é a natureza da narrativa: a verdade está em outro mundo:
“No cristianismo, nem a moral nem a religião tem qualquer ponto em comum com a
realidade. Nada além de causas imaginarias (Deus, almas, livre-arbítrio, pecado,
redenção, graça, punição) (NIETZSCHE, 2003, p. 34).
Já respondemos à questão sobre o que é o niilismo para Nietzsche – ou
tentamos-, também abordamos a crítica virulenta de Nietzsche a metafísica, como
uma forma de depreciar a vida e o mundo sensível. Vamos nos ater, agora, sobre a
tipologia psicológica do niilismo negativo. Nietzsche não pergunta sobre o que eles
acreditam, (Paraíso, mundo das ideias, etc.) mas como chegaram a formular tais
questões? O questionamento de Nietzsche, avesso a ontologias, é de
fundamentação psicológica.
Psicologia da metafísica: influência do medo. O que mais receamos, a causa das mais poderosas dores (a ambição de dominar, a volúpia, etc.) é o que os homens trataram com mais hostilidade e eliminaram do “mundo verdadeiro”. É assim que passo a passo suprimiram todas as paixões, fizeram de Deus o oposto do demônio, isto é,
79
transferiram a realidade para a negação das necessidades e das paixões (dito de outra forma, para o nada) (NIETZSCHE, 2010, p. 127).
O cristianismo, especialmente com Santo Agostinho, desenvolveu a noção de
História, aquela mesma que divinizará o niilismo. Para Nietzsche o tempo histórico
carregava um problema desconhecido pelo tempo mítico: o reconhecimento da
corrupção natural do mundo. O homem mítico não aceitava o passar do tempo;
acreditava que ele retornava infinitamente. Os paraísos encontrados nas narrativas
míticas são extensões do mundo sensível, não negações dele. O Valhalla28 não era
uma “Cidade de Deus” oposta a cidade dos homens, mas a confirmação deste
mundo: um lugar repleto de guerras, sexo, violência, coragem e dominação... ad
infinitum.
Para Nietzsche, uma vez inventada a ideia de natureza para opô-la aquela de
Deus, era preciso que a palavra “natural” fosse condenável; esse universo de pura
ficção tem origem no ódio contra o natural e a realidade.
Em minha genealogia da moral apresentei pela primeira vez psicologicamente a noção antitética “nobre’ e de uma moral do “ressentimento”, a segunda sendo um mero produto da negação da primeira: ora, nada mais é que a moral judaico-cristã. Para poder dizer não a tudo o que representa na terra o movimento ascendente da vida, o sucesso, a potência, a beleza, a autoafirmação instinto tornado gênio do ressentimento devia então inventar outro mundo, a partir do qual toda afirmação da vida aparece como um mal-entendido, condenável em si (NIETZSCHE, 2013, p.49).
A relação do cristianismo com a verdade, para Nietzsche, foi a causa de sua
autodestruição. O embraço teológico da teodiceia e da parúsia agravaram a ruina
que culminaria com a morte de Deus. O Cristianismo não saiu impune por tentar
articular o deus dos filósofos com a divindade tribal e temperamental dos Hebreus. O
humanismo começou a nascer no seio do cristianismo –um rei sempre é morto por
seus discípulos-, os homens cansaram de esperar o “retorno do rei” e decidiram
assumir o cargo. O Renascimento foi a cobrança de uma dívida -contraída por
agiotagem- com os gregos.
28
Na mitologia nórdica, era o salão dourado dos mortos; destinado, somente, aos heróis que morreram em
batalha. Segundo a lenda, é um majestoso salão com 504 portas, situados em Asgard.
80
Diferentemente do niilismo negativo, o niilismo reativo não deseja um mundo
supersensível: ele almeja um futuro utópico. O problema da nadificação reativa não
e tanto de natureza geográfica, como o dos niilistas negativos (outros mundos), mas
de caráter temporal: quando a utopia acontecerá?
É verdade que terras utópicas sempre existiram no imaginário popular ou nas
altas esferas do pensamento reflexivo, como Atlântida de Platão; os cristãos,
Tommaso Campanella (1568 -1639) e Thomas Morus (1478-1532) também
formularam seus paraísos terrestres. Mas havia uma diferença fulcral em suas
utopias: elas eram lugares construídos pela imaginação, para demonstrar a pobreza
do mundo concreto. A palavra Utopia significa um “não lugar”. Mas, dos socialistas
originados no seio do cristianismo aos revolucionários posteriores, surgiu um novo
paradigma: a utopia tornou-se um “ainda não”.
Os socialistas utópicos não acreditavam na concretização de suas “fantasias”,
- pelo menos não literalmente - elas eram mais exemplos imagéticos, avisos de
cuidado, referencias ideais; não projetos de engenharia social.
Nietzsche identificou em Rousseau, “o verme da maçã”29, aquilo que ele
considerava a perda total da dimensão trágica pela história. Apesar do cristianismo
possuir a comédia em sua alma – Deus nos salvará no final – ele não havia perdido
a dimensão trágica em seu coração (a queda). Os cristãos não acreditavam que o
mundo seria um novo paraíso. Santo Agostinho reforçou, ao homem de fé, que a
Cidade de Deus aguardava aqueles que viviam segundo o espírito; não podia haver
salvação na cidade dos homens. Mesmo a Atlântida, relatada por Platão nas obras
Timeu e Crítias, servia apenas como uma narrativa para moralizar: “olhem o que
aconteceu a poderosa cidade de Posseidon, por causa de sua degradação moral...”
O fruto da árvore do conhecimento, responsável pela queda, ainda guardava um
“verme” oculto para Nietzsche:
Contra Rousseau: infelizmente o homem não é mais bastante mau. Os adversários de Rousseau, que dizem “o homem é um animal de rapina”, infelizmente, para ele, não tem razão. A desgraça não é que o homem esteja corrompido, mas que tenha sido moralizado e debilitado. É justamente na esfera que Rousseau combateu com
2929
Assim como Nietzsche tratava Agostinho de Hipona como a “Raposa Cristã”; Rousseau é chamado de “o
Verme”, pelo autor alemão.
81
maior violência que se encontra a espécie de homens ainda relativamente vigorosa e bem-nascida (aquela que tinha ainda estas paixões intactas: a vontade de potência, a vontade de desfrute, a vontade e a capacidade de comandar). É necessário comparar o homem do século XVIII com o da Renascença (e também com o do século XVII, na França), para compreender de que se trata: Rousseau é um sintoma de desprezo de si e de vaidade escaldante – dois sinais de que a vontade de dominação faz falta; ele moraliza e, como homem rancoroso, procura nas classes dominantes a causa de sua própria miséria (NIETZSCHE, 2010, p. 36).
Mas os herdeiros de Rousseau, apesar da influência indireta do cristianismo,
efetuaram uma inversão contundente em toda tradição cristã. O homem não sofria
por causa de sua natureza trágica, pelo contrário, a humanidade vivia feliz em um
estado natural, até a corrupção social destruir sua inocência. O resto da história nós
conhecemos; em uma tacada só, Rousseau havia acabado com a dimensão trágica
da vida. Nietzsche não iria perdoá-lo.
O niilismo reativo não nega o mundo; ele só reage. Enquanto o senhor
conquista, domina, mas não se vinga propriamente falando, mesmo quando usa de
represálias, da força; sua ação é espontânea, o que quer dizer que ela não tem por
origem uma reação, não se trata de inverter uma inferioridade ressentida.
Iluminismo, Romantismo, Marxismo e mesmo o Positivismo haviam herdado o
otimismo de Rousseau. Não podemos culpá-lo pelos crimes históricos posteriores,
mas a virtude da prudência, com o filósofo suíço, deu lugar a promessa de uma
revolução iminente. O que se admira em Rousseau é o que ele tem de mórbido
(NIETZSCHE, 2010, p. 37).
O Niilista reativo –lembremos que o “revolucionário russo” foi o primeiro a
herdar esse título – não almeja mais “extramundos”: ele deseja um futuro melhor.
Sua “negação” não está no mundo sensível, mas no mundo presente. A lógica do
escravo permanece, afinal, só alguém infeliz desejaria estar em outros lugares.
Contudo, o niilismo reativo não oferece oposição ao niilismo negativo. Os
niilistas reativos ainda são devotos, embora suavizem as religiões e as ciências. O
problema não é o conhecimento, mas a busca pela verdade em si, como um
desvelamento do mundo. Esta busca intensa, tal como Nietzsche a compreende,
ainda parece divina e perdura no niilista reativo.
82
Quando Maximilien de Robespierre (1758-1794) contribuiu para a instauração
da “república francesa”, após a revolução de 1789, instituiu-se o culto à razão e ao
terror. O homem tomou para si o que era de Deus, mas a Verdade entrou,
sorrateiramente, pela porta dos fundos. Mudaram apenas a metafísica por trás, mas
a moral continuou a mesma.
O homem do niilismo ainda precisa de fundamentos, e Deus se esconde
neles. Ainda se crê no progresso, na ciência, na luta de classes, no humanismo, etc.
Novas lutas – Depois que Buda morreu, sua sombra ainda foi mostrada numa caverna durante séculos – uma sombra imensa e terrível. Deus está morto; mas, tal como são os homens, durante séculos ainda haverá cavernas em que sua sombra será mostrada. – Quanto a nós – nós teremos que vencer também a sua sombra” (NIETZSCHE, 2001, p. 108).
Mas Nietzsche, frequentemente profético, percebe uma diferença sutil no
ressentimento do niilista reativo: diferentemente do cristão, que reconhece os seus
pecados como fonte do sofrimento, o socialista, por exemplo, melhor espécime
desta modalidade, culpa o outro pela sua desgraça. Automaticamente, o outro passa
a ser o inimigo jurado (o judeu, o burguês), enquanto “a causa justa” liberta a “vítima
histórica” do peso da culpa pelas faltas; tudo por um futuro melhor, a História
(sempre ela) nos julgará, pois somos a sua própria conclusão!
O socialismo – tirania extrema dos medíocres e dos tolos, isto é, dos espíritos superficiais, dos invejosos, daqueles que tem três quartas partes do comediante-é na realidade consequência do niilismo, as ideias modernas e de seu anarquismo latente; mas na atmosfera morna do bem-estar democrático, a faculdade de concluir, de acabar-se relaxa. Segue-se, sem prever consequências. Por isso o socialismo é, no final de contas, uma coisa azeda e sem futuro; e nada é mais risível do que a contradição nos rostos venenosos e desesperados de nossos socialistas (NIETZSCHE, 2010, p. 255).
Os últimos dois séculos conheceram bem o impacto dessa “crença no nada
cheia de boas intenções” (Stalinismo, Nazismo, etc.); cabe, contudo, ao nosso
trabalho investigar a tipologia psicológica desta forma de niilismo. A modernidade,
mãe de todos os niilismos reativos, prometeu futuros melhores para a humanidade,
mas fracassou. Enquanto o niilismo negativo possuía um mundo “encantado”,
embora tragicômico, o niilismo reativo vivia em um mundo já desencantado. Agora, o
83
salto para o nada será mais cruel; pois percebemos que a nossa própria força
fracassou em mudar o mundo. O que nos restou, então?
Essa mesma variedade de homens, empobrecida ainda de um grau, que não possui mais a força de interpretar, de criar ficções, produto do niilista. Um niilista é um homem que julga que o mundo como é não deveria existir e que o mundo como deveria ser não existe. Por conseguinte, viver (agir, sofrer, querer, sentir) não tem sentido: o que há de patético do niilismo é saber que “tudo é vão”. O homem incapaz de impor seu querer as coisas, o homem sem vontade e sem força, impõem-lhes pelo menos um sentido, ou seja, a crença que elas implicam um querer (NIETZSCHE, 2010, p. 19).
A constatação de Nietzsche não basta para libertar o homem; o filósofo
perplexo demonstra que sob um céu esvaziado, em um mundo terrível e cruel,
desprovido de seguranças e certezas, estamos abandonados, órfãos sem um
refúgio, destinados, em um primeiro momento, ao nada, em sua pior acepção.
Dentro deste contexto de desamparo, o niilismo passivo surge caracterizado pela
ausência do querer, que o difere de seus antecessores, pois ele é a conclusão do
próprio niilismo: a ausência de Vontade.
O último adorador do nada, não deseja mais mundos paradisíacos, tão pouco
almeja futuros melhores, ele apenas paralisa e esvazia nossa potência, fazendo com
que reconheçamos que não há um sentido oculto, grandioso ou racional para nossa
existência.
O fracasso dos niilismos anteriores em suportar e justificar a existência
ocorreu por dois motivos: a incapacidade de sustentar suas heurísticas perante a
dinâmica da vida e devido a sua eficácia em buscar o nada. O segundo motivo
citado pelo fracasso dos niilismos anteriores é o mesmo pelo qual o terceiro dos
niilismos triunfará: o sucesso em busca do nada, que acabou por garantir que “nada”
encontrassem; nem o paraíso no além, tão pouco a sociedade perfeita, o que
acabou por gerar a sensação de frustração e absurdo que abalou e corroeu
gradualmente a fé nos pensamentos baseados na metafísica.
O niilismo negativo, manifestado na filosofia platônica e na teologia cristã, tem
como característica a negação do mundo em prol de uma realidade suprassensível,
ideal ou paradisíaca, enquanto o niilismo reativo representado pelos movimentos
iluminista, socialista e positivista tem como principal marca a recusa do mundo
84
presente em busca do aperfeiçoamento social projetado em um futuro melhor ou, em
termos técnicos, em uma utopia. A diferença entre os dois primeiros niilismos e o
terceiro, e derradeiro arauto do nada, é instituída pela qualidade e inferioridade do
tipo de força empregada pelo último, o mais traiçoeiro dos niilismos; por representar
a total ausência de Vontade, “pois era melhor querer o nada do que nada querer!”
(NIETZSCHE, 2002, p. 174).
Diante deste cenário, Nietzsche adota a postura de um médico da civilização
que identifica, em seu diagnóstico, o perigo do niilismo passivo, no qual tudo é vão e
nada vale a pena, e procura um antídoto frente ao avanço do deserto, (afinal o
deserto ainda cresce) algo que possibilite novos sentidos ao cotidiano perante o
absurdo da existência.
O niilismo passivo corresponde a um estado estável, terminal, quando uma
cultura reconhece definitivamente que a existência é carente de sentindo. Mesmo o
ressentimento perde potência. É importante ressaltar que este estádio não pode ser
confundido como pessimismo filosófico, pois não há mais um “processo em
andamento” para ser desacreditado; nenhum valor superior para ser colocado sob
suspeita.
Nietzsche impõe a nadificação da vontade como limite para o niilismo. Esta é
a marca dos “últimos homens”. O último dos niilismos é o mais terrível, não por sua
violência, mas por sua lassidão.
O niilismo passivo não é caracterizado por sua vontade de nada, mas por um
nada de vontade. Mas quais seriam seus exemplares na história?
O budismo é um exemplo perfeito de niilismo. Embora antigo, o budismo faz
parte do fenômeno do niilismo. O niilismo, como já foi dito, é um fenômeno da
humanidade. O mais significativo de tudo isso é que a filosofia ocidental e o
pensamento oriental tenham, por muito tempo, percorrido, em completa
independência uma da outra, trilhas totalmente diferentes e, no entanto, tenham
chegado à mesma conclusão acerca da realidade: o mundo empírico não tinha
significado nem propósito e que, ao fim, não era, em si mesmo, absolutamente nada;
85
embora tenhamos o hábito de pensar nele como algo independente; em certo
sentido ele é todo ilusão.
A negação budista da própria realidade (aparência=dor) é de uma lógica perfeita; é a ideia de que não somente o ‘mundo em si” é indemonstrável, inacessível, não tem categorias, mas que os procedimentos que levam a toda concepção estão repletos de contradição. Num mundo que em devir, a “realidade” é sempre uma simplificação para fins práticos ou uma ilusão de órgãos grosseiros, ou uma alteração no ritmo do devir. Chega-se logicamente a negar o universo e a aniquila-lo se for o caso de se sentir obrigado a opor o ser ao não-ser e negar a noção de devir (NIETZSCHE, 2010, p. 127).
Schopenhauer foi um dos introdutores dos textos hindus e budistas no
ocidente, frequentemente referia-se a eles traçando paralelos coma sua própria
filosofia. Antes de sua época, os textos clássicos orientais eram praticamente
desconhecidos ou propositalmente ignorados. Somente no século XIX eles
começaram a ser traduzidos para diversas línguas europeias. Schopenhauer ficou
impressionado ao descobrir que algumas premissas básicas dessas doutrinas
convergiam com as conclusões de Kant.
Kant, Hume e Schopenhauer estavam engajados em investigar os limites da
capacidade humana em conhecer. Todos haviam estudado a tradição filosófica
ocidental (Platão e Aristóteles) e estavam familiarizados com ela. Ocorre que a
“filosofia oriental” havia passado por um processo histórico distinto. O que
assombrou Schopenhauer foi o fato de que, apesar do abismo entre línguas,
culturas e eventos históricos, os “sábios e iluminados” orientais haviam chegado a
uma conclusão semelhante aos pensadores mais recentes ocidentais. Como
Schopenhauer expõe em sua obra máxima:
O essencial dessa visão é antigo: Heráclito lamentava nela o fluxo eterno das coisas; Platão desvalorizava seu objeto como aquilo que sempre vem-a-ser, sem nunca ser; Espinosa o nomeou meros acidentes da substância única, existente e permanente; Kant contrapôs o assim conhecido, como mero fenômeno, à coisa em si, por fim, a sabedoria milenar dos indianos diz: trata-se de Maya, o véu da ilusão, que envolve os olhos dos mortais, deixando-lhes ver um mundo do qual não se pode falar que é nem que não é, pois se assemelha ao sonho, ou ao reflexo do sol sobre a areia tomada à distância pelo andarilho como água, ou ao pedaço de corda no chão que ele toma como uma serpente (SCHOPENHAUER, 2001, p. 49).
86
O mundo era uma ilusão, um lugar aterrador; cheio de violência e injustiça.
Todos os esforços humanos pareciam inúteis perante a tragédia da vida que termina
com uma morte insignificante. Sofremos porque somos escravos do desejo – um
senhor nunca satisfeito –, a existência é a própria fonte de sofrimento para nós.
Essa concepção sombria sobre a vida não é semelhante aos sintomas do niilismo
descrito por Nietzsche: ela é o próprio niilismo.
Voltemos a questão de Nietzsche: O niilismo não estava presente do começo
ao fim? Nietzsche dizia que a leitura de Schopenhauer o fez tornar-se filósofo. De
certa forma, sua filosofia começa do ponto de partida que lhe foi dado por
Schopenhauer; sempre com uma reinterpretação violenta, outra lição bem aprendida
com seu mestre torto. Nietzsche percebe que a filosofia ocidental havia chegado em
uma encruzilhada: sem um Deus transcendente, que pudesse garantir as regras do
jogo de forma arbitrária, estávamos a mercê do nada; A morte de Deus nos levou a
mesma conclusão, por exemplo, do nirvana budista. Chegamos tardiamente a esta
constatação, a notícia da morte de Deus demorou muito tempo para espalhar-se,
embora haja uma sutil diferença.
O que é búdico exprime um belo entardecer, uma suavidade, uma doçura completa – a gratidão com tudo que se deixou para trás, sem traço de amargura de decepção ou de rancor; o sublime amor espiritual, o refinamento da contradição filosófica está por trás dele; o budismo repousa nisso, mas ele tira a auréola espiritual e seu brilho purpura do sol poente; sua origem está nas mais altas castas (NIETZSCHE, 2010, p. 135).
Qual a diferença capital? O budismo, para Nietzsche, havia nascido nas
castas aristocráticas. O Buda era uma figura serena; herdeiro das concepções dos
xátrias30, diferentemente do cristianismo, oriundo dos escravos. O contraste entre o
niilismo passivo do budismo e o niilismo negativo do cristão será mostrado pela
crítica genealógica nietzschiana: “o budismo, repito, é cem vezes mais frio, mais
verídico, mais objetivo” (NIETZSCHE, 2013, p. 46).
Entretanto, o mais relevante para o presente trabalho é a diferença de
qualidade entre o niilismo passivo dos budistas e o niilismo passivo do último
homem.
30
Xátrias: Casta de guerreiros na sociedade védica, que formam uma das quatro castas no hinduísmo.
87
A cultura ocidental passou pelo trauma da morte de Deus, desde então
vivenciamos um luto sem fim. Essa experiência traumática é desconhecida do
pensamento oriental; embora o desencantamento do mundo possa se alastrar para
tais terras, a morte de um ente querido é algo de proporções inimagináveis. Após a
morte do “Pai de todos os pais”, o sentimento de desemparo foi intensificado.
A morte do criador fez a criação ruir, em uma velocidade espantosa. Vivemos
a síndrome do “Rei Pescador”31. No mito do Ciclo Arturiano, um rei adoece e, com
ele, seu reino, outrora fértil, fica igualmente devastado. Um leitor de Schopenhauer,
assim como Nietzsche, T.S. Eliot ficou tocado com o mito de um reino que adoece
na ausência do rei. Não haveria melhor alegoria para a situação de nossa cultura: na
ausência de Deus, o reino tornou-se uma terra devastada; habitada pelos últimos
homens.
O Homem Oco Nós somos os homens ocos Os homens empalhados Uns nos outros amparados O elmo cheio de nada. Ai de nós! Nossas vozes dessecadas, Quando juntos sussurramos, São quietas e inexpressas Como o vento na relva seca Ou pés de ratos sobre cacos Em nossa adega evaporada Fôrma sem forma, sombra sem cor Força paralisada, gesto sem vigor; Aqueles que atravessaram De olhos retos, para o outro reino da morte Nos recordam - se o fazem - não como violentas Almas danadas, mas apenas Como os homens ocos Os homens empalhados.
“Assim expira o mundo, não com uma explosão, mas com um suspiro”32
(ELIOT, 1987, p. 23). Uma terra devastada, murcha – não haveria melhor imagem
para o niilismo passivo – habitada pelo homem oco de Eliot, que é o mesmo último-
homem descrito por Nietzsche. T.S. Eliot era um cristão conservador; esperava
ansioso o “retorno do rei”. Já Nietzsche, um ex-cristão, postulava que precisávamos
31
O poema se refere a lenda arturiana do rei pescador: um rei incumbido de encontrar o Graal, cuja impotência
afeta não só a possibilidade de ter filhos, mas a fertilidade de todo reino, que acaba por se tornar uma terra árida
e desolada. T.S Eliot ficou tão impressionado com a narrativa que batizou sua obra magna de “Terra Devastada”. 32
Outro verso De T.S. Eliot. Do poema “O Homem oco “.
88
lidar com a ausência do rei; e, para isso, a única solução seria a superação da
condição adoentada do último-homem, o sem Deus; precisaríamos de um novo ser:
um além-do-Homem.
89
4. A MENSAGEM DE “MIGUEL ÂNGELO”: Em Agonia e Êxtase.
No dia 18 de fevereiro de 1564, enquanto os sinos tocavam Ave-Maria,
Michelangelo abandonava esse mundo. Morreu tal como vivera: com a macêta na
mão, ocupado em esculpir, a obra inacabada, “O Cristo baixando da cruz”. Foi,
realmente, uma morte digna de um artista genial.
Na religião romana antiga o genius33 era o espírito que perpetuava uma casa,
família ou tradição. Na idade média - nós sabemos -, a “originalidade” não era um
aspecto almejado com fervor. Se Michelangelo tivesse “copiado” suas obras, isso,
provavelmente, só teria servido para aumentar o respeito pelo saber do pintor e
escultor; afinal o saber estava fundamentado, primordialmente, na autoridade.
A noção de gênio é comumente – e equivocadamente – associada,
exclusivamente ao Romantismo. Os românticos potencializaram a figura do gênio,
todavia sua genealogia é mais antiga. Uma das heranças do Renascimento foi a
crença na figura do “Gênio”. A genialidade é um aspecto mais distinto e raro do que
o talento e a habilidade. Essa crença irá contribuir diretamente para a transformação
das artes. O gênio não buscava o talento adestrado, que opera a experiência
adquirida. O seu saber não está ao alcance de todos, não foi fruto somente do
esforço e do treino; sua fonte é quase divina: a inspiração.
Embora seja verdade que na Idade Média a palavra “criação” fosse utilizada
somente para as obras de Deus e dos artistas, o homem das artes, nesse período,
era um ser de habilidade domesticada. As primeiras corporações de artistas,
oriundas dos séculos XIII e XIV, vigiavam a vida e a obra de seus membros.
A Reforma Protestante, contrária a reprodução de imagens em igrejas, privou
os artistas de seus melhores patronos. No entanto, quase na mesma época,
banqueiros mercantis, como os Médici, criaram uma nova demanda mais variada,
possibilitando aos artistas a experiência da originalidade.
33
Genius (do latim, o procriador) era um espírito guardião de uma família. Depois passou a representar um
protetor pessoal, cada homem tinha um gênio, e cada mulher uma juno. Era um espírito capaz de conceder
grandes talentos ao protegido. No decorrer da história, o termo foi associado aos Djins , espíritos da cultura
árabe, como o “gênio da lâmpada” de “Mil e Uma Noites”. No Renascimento e no Romantismo, os gênios foram
associados, diretamente, aos “homens de grande talento”. A cultura popular, a linguagem e o imaginário parecem
ter herdado tal conotação: Einstein, gênio da física, Pelé, gênio do futebol, etc.
90
Mesmo depois de isentos das obrigações e restrições das corporações, os
artistas não podiam aceitar qualquer trabalho sem autorização. Como outros
artesãos, trabalhavam por encomenda e eram pagos por hora. Mas já no final do
século XV, os grandes artistas italianos, como Leonardo e Ticiano recebiam altos
salários.
Em um cenário mais favorável, no qual o artista já não precisava só reproduzir
o estipulado pela autoridade, surgirá Michelangelo, o Divino. Antes dele Giotto,
Ucello, Botticelli e Mantegna já haviam imortalizado obras imponentes e ditado os
principais aspectos do cânone Renascentista. Mas na fase derradeira do
Renascimento, uma nova trindade rivalizará em criações com a anterior: Leonardo
da Vinci, Rafael e Michelangelo.
Não é foco do presente trabalho um estudo detalhado sobre a vida dos
grandes artistas do Quattrocento. A obra de Giorgio Vasari34 (1511-1574), “Vidas
dos Mais Eminentes Pintores, Escultores e Arquitetos” (1550), continua legível e
didática para o estudo do período.
Vasari foi amigo pessoal de Michelangelo; sua obra é repleta de fontes,
entrevistas, relatos de viagens e anedotas. Entre as lendas e boatos da obra, está a
declaração de Leonardo da Vinci, rival de Michelangelo, sobre a obra do pintor e
escultor “sua obra é mais nobre do que a natureza” ele é uma espécie de “segundo
Deus” (VASARI, 2016, p. 57). Se as outras anedotas, sobre a querela pessoal entre os
dois pintores, forem verdadeiras; podemos imaginar quão sincero – e difícil – deve
ter sido para Leonardo admitir a “divindade” de Michelangelo e de suas obras.
Se o relato de Leonardo é um fato histórico ou uma narrativa saborosa da
época, dificilmente saberemos; agora podemos afirmar que ela causou certo
impacto; tanto que, no ano de 1538, o pintor português Francisco de Hollanda disse
em Roma que “na Itália não se liga para o nome dos reis e príncipes, para eles só
um pintor pode ser chamado de Divino”.
34
Giorgio Vasari foi um pintor e arquiteto conhecido principalmente por suas biografias de artistas italianos. Foi amigo e admirador da obra de Michelangelo. Sua obra “A Vida dos Mais Eminentes Pintores, Escultores e Arquitetos” dedicou cerca de um terço de suas páginas ao trabalho de Michelangelo.
91
O escritor Vasari retratou uma época marcada pela religião secular da arte.
Em sua obra retratou a vida de mais de 161 artistas, fundando o que, futuramente,
iriamos chamar de História da Arte. O “Divino Michelangelo”, seu mestre e amigo
pessoal, e o período do Renascimento foram retratados pelo “historiador” em um
imagético parágrafo que ilustra bem o “espirito da época”:
Enquanto isso o benigno dirigente do céu olhava com ternura para a
terra, via o desvalor do que estava sendo feito... e decidia salvar-nos
dos nossos erros. Assim resolveu mandar ao mundo um artista com
aptidão em cada oficio para que as pessoas pudessem admirá-lo e
segui-lo como o perfeito exemplar na vida, no trabalho no
comportamento e em todos os esforços, e ele seria aclamado como
divino. Escolheu, então, Michelangelo para nascer florentino a fim de
que um dos cidadãos de lá levassem a perfeição absoluta as obras
pelas quais Florença já era com justiça divina (VASARI, 2016, p. 78).
Se o relato de Vasari é um retrato objetivo e descritivo de um Historiador (nos
moldes modernos); ou um relato fruto da amizade que nutria por Michelangelo; ou,
quem sabe, só uma nota panfletária e caricata da vida de um artista, ficará ao
critério do leitor. Podemos, todavia, afirmar que Vasari, sinceramente acreditava na
concepção renascentista do artista como gênio, criador temperamental, Ser
Soberano e semelhante a Deus; e para o objetivo do presente trabalho é esse
aspecto que será de suma importância.
Nascido no dia 4 de março de 1475 na família de Lodovico Buonarroti,
Michelangelo foi discípulo de Domenico Ghirlandaio. Prodígio, era famoso por
efetuar copias perfeitas de obras dos grandes mestres da pintura. Obcecado pelo
desenho, foi aluno na escola de arte de Lorenzo o Magnífico. Ainda jovem,
demonstrou ser talentoso na arte da escultura. Após a morte de Lorenzo de Médici
em 1542, Michelangelo voltou a morar com o seu pai.
Foi neste período, que Michelangelo conheceria a pregação de Girolamo
Savonarola (1452-1498). O apaixonado – e fanático – monge pregador era inimigo
declarado das artes. Sua famosa “fogueira das vaidades” queimou publicamente
obras de arte, livros, tratados filosóficos e outros objetos considerados produtos da
92
imoralidade humana. Michelangelo parece nunca ter se recuperado do conteúdo
destas “inflamadas pregações”.
Michelangelo retirava das esculturas a compleição simétrica do corpo
humano, que em suas telas estava sempre lutando contra o destino irreversível do
homem: a morte. Assim Michelangelo retratou o “homem sempre vencido”, o pintor
demonstrou em suas obras a dimensão dramática e violenta, rompendo e inovando
a tradição do equilíbrio e da bela forma do Renascimento. Seu trabalho profetizou o
barroco e, de certa forma, anunciou a ferida da morte de Deus.
Sua obra mais famosa da “juventude” foi “David”, um gigante extraído do
mármore. Mas os feitos de Michelangelo na “arte suprema da escultura” seriam
superados por outro de pintura. As narrativas sobre a elaboração e produção dos
afrescos, imortalizados na capela Sistina, são quase míticas, envoltas em “fatos
lendários” e “anedotas reais” que construíram uma mitologia à parte.
Seguiremos a narrativa coroada pela tradição. O Papa Júlio II, impressionado
pelas obras de Michelangelo com o mármore, resolveu encomendar-lhe o próprio
mausoléu: um sepulcro monumental, que devia ser instalado na tribuna de São
Pedro.
Michelangelo apresentou um projeto grandioso: rico de mármores, de
baixos relevos em bronze e de ornamentos arquitetônicos, teria ainda
como embelezamento do sepulcro, mais de cinquenta estátuas, das
quais algumas representando personagens da Bíblia, outras
representando as artes e as ciências (VASARI, 2011, p. 96).
Esse período ficou conhecido como a “tragédia do túmulo”, devido as
enormes dificuldades enfrentadas pelo artista para a concretização da obra. Os
papas que sucederam a Júlio II: Leão X, Clemente VII e Paulo III dificultaram o
trabalho de Michelangelo. Realmente, só quatro estátuas foram terminadas: a de
Moisés, a de Lia, de Raquel e dois prisioneiros. Sobre a obra, Michelangelo
confessaria, mais tarde, para o seu amigo Vasari: “Eu me considero como quem
perdeu sua mocidade, aprisionado a esta sepultura” (VASARI,2011, p.122). Mas a
obra magna de Michelangelo ocorreria na arte da pintura, embora, se considerasse
inferior à tarefa que iriam lhe confiar: a decoração da Capela Sistina.
93
Quatro anos foram necessários para Michelangelo, sozinho, ilustrar, nas
colossais paredes a história dolorosa da humanidade, antes da redenção: gigantes,
heróis, anjos, santos, profetas e uma multidão de personagens bíblicos.
Deixou perplexos o sumo pontífice, os bispos, o povo inteiro que correram
para testemunhar a obra, quando terminada. O próprio Papa Júlio II celebrou a
missa, na capela Sistina35, no dia da inauguração.
Michelangelo, a princípio, não queria o trabalho, pois não se achava um
pintor. O projeto era desafiador; o, até então, escultor nunca havia lidado com as
cores dos afrescos36. Michelangelo procurou mestres da arte pictórica para
aprimorar sua técnica. Dispensou os andaimes tradicionais e fez um à sua maneira.
Contratou alguns auxiliares, mas ele mesmo desenhou e pintou o teto da capela.
Desde de manhã, bem cedo, até o breu da madrugada, ele permaneceu nos
andaimes, em posição desconfortável, enquanto as tintas escorriam pelo seu rosto.
As mesmas tintas faziam brotar cenas bíblicas grandiosas e famosas.
Provavelmente, outro homem teria desistido, mas Michelangelo – como sabemos-
era Divino.
A película de 1969, The Agony and Ecstasy, (A Agonia e o Êxtase), dirigida e
produzida por Carol Reed e estrelado por Charlton Heston, no papel de
Michelangelo, e Rex Harisson, no de Papa Júlio II, foi baseada no romance
homônimo de Irving Stone. O enredo do filme retrata os conflitos do artista com o
sumo pontífice. Outra faceta deste “drama” é a suposta rivalidade entre
Michelangelo e Rafael.
Segundo a “tradição”, Bramante (1444-1514), parente de Rafael, teria se
ofendido com Michelangelo, após o brioso pintor ter apontado erros nas suas obras.
Agonia e êxtase retrata o “melodrama” corroborando para a imagem de um “Rafael
35
A Capela Sistina ou Capela Magna foi inaugurada em 1483, durante o pontificado de Sisto IV (1471-1484).
Entre 1477 e 1480 a capela foi restaurada. Júlio II, sobrinho de Sisto IV, mudou o nome da capela para
homenagear o tio, passando a ser denominada como “Capela Sistina”. A Capela tem aproximadamente 540
metros quadrados e um pouco mais de 20 metros de altura. Desde então, o local tem sido palco das eleições
pontificais. 36
Afresco é uma técnica de pintura mural, executada sobre uma base de gesso ou nata de cal ainda úmida, sobre
a qual se aplica pigmentos puros diluídos somente em água. Assim, as cores penetram no revestimento e, ao
secarem, passam a integrar a superfície em que foram aplicadas. A técnica é complexa e dificultosa, pois não
permite erros e exige velocidade do pintor.
94
invejoso”, que para vingar o parente e ganhar a predileção do pontífice arquiteta um
plano contra o Michelangelo: Convencer Júlio II a entregar a missão de pintar a
capela Sistina, um prédio construído pelo tio de Júlio II, a Michelangelo. A Capela já
tinha sido decorada com afrescos de Botticelli, Ghirlandaio e outros mestres.
Michelangelo deveria decorar o teto e a abóboda do túnel, superfície curva, com oito
janelas que dificultavam o tratamento. Vasari, amigo, (fã e “biógrafo suspeito”), do
Divino Michelangelo, relata:
Bramante e os outros rivais de Michelangelo o desviaram da
escultura, na qual reconheciam que ele era imbatível. Isso,
pensavam, deixaria Michelangelo desesperado porque, não tendo
experiência em lidar com as cores do afresco, Michelangelo acabaria
fazendo um trabalho inferior de pintura. Na certa, pensaram também,
que Michelangelo seria comparado com Rafael e sairia perdendo; e
mesmo que o trabalho fosse bem executado, ter sido obrigado a
fazê-lo deixaria Michelangelo aborrecido com o papa; assim de uma
maneira ou de outra, eles conseguiriam ficar livre dele” (VASARI,
2011, p. 131).
Como sabemos os planos do “maquiavélico Rafael’ foram frustrados pelo
perfeccionista e intempestivo Michelangelo. Historietas pitorescas à parte, a vilania
de Rafael, hoje, é questionada por historiadores modernos – assim como Antonio
Salieri parece ter recebido seu perdão ao lado de Mozart – sabemos que
Michelangelo passava por dificuldades financeiras, e Rafael, um talentoso e
renomado pintor, contribuiu com uma “indicação” de trabalho -leia emprego- para o
“Divino” não passar dificuldades financeiras como qualquer mortal.
Quando um papa como Júlio II manda, deve-se, ainda que forçosamente,
obedecer. Os dois, Papa e artista, possuíam um temperamento parecido. O filme “A
Agonia e Êxtase” retrata a tensão entre as partes, assim como, a amizade
construída entre Michelangelo e Júlio II; parece, nesse caso, não haver discordância
entre a arte e a vida, em relação a essa versão da história. Apesar dos
contratempos, como as sucessivas cobranças do impaciente pontífice, Michelangelo
e Júlio II desenvolveram uma, aparente, admiração mútua. Em uma cena do filme
citado, um Júlio II, atônito pela visão da obra de Michelangelo, vislumbra A Criação
95
de Adão – provavelmente, o afresco mais popular do conjunto de imagens – e diz,
em tom profético: “Eu queria ser uma artista, mas só sou um Papa; afinal, Deus é um
artista!”.
O que Michelangelo e Júlio II conversaram, no momento em que o pontífice
contemplou a obra, provavelmente, nunca saberemos com exatidão. Mas os
exercícios da imaginação, como o diálogo retratado na película, parecem fornecer
bons argumentos para autores posteriores e para o presente trabalho.
Um papa reconhece a semelhança entre o artista e Deus; no momento em
que um homem cria Deus a sua imagem e semelhança. Essa “confissão” do
pontífice poderia sintetizar o espírito do Renascimento, tão admirado e estudado por
Nietzsche e Warburg.
Quatro meses depois, o Papa Júlio II morre. Sua morte foi um duro golpe para
Michelangelo; assemelhavam-se no amor pela Arte. Coube a outro Papa, Paulo III,
determinar a Michelangelo a decoração da parede central, com a imagem do Juízo
final.
Michelangelo, ainda foi incumbido pelo cardeal Júlio de Médici, mais tarde
Papa Clemente VII, de projetar a arquitetura da sacristia de São Lourenço, destinada
a abrigar o túmulo dos Médici. Em 1534, o Papa Paulo III solicitou ao “artista Divino”
que participasse das ciclópicas obras na Basílica de São Pedro.
Já fazia muitos anos que os trabalhos na basílica de São Pedro se
arrastavam. Michelangelo já se sentia esgotado fisicamente, pelo incessante labor.
Em seus últimos anos, um Michelangelo melancólico escreve a um amigo em 1542:
“Teria sido melhor para mim se eu tivesse me dedicado a fazer fósforos na
juventude. A pintura e a escultura, labor e boa-fé foram a minha ruína, e vou de mal
a pior” (VASARI, 2011, p.51). O potencial humano e terrificante do artista, inspirado
pelo gênio, iria deixar marcas profundas na Arte.
Quando nasceu, uma previsão astrológica, comum nos tempos da
Renascença, anunciou que o recém-nascido “alcançaria nobreza, fama e
genialidade, pois Mercúrio com Vênus haviam entrado na casa de Júpiter, e isso
significava que seria um gênio, capaz de vencer qualquer adversidade”. A validade
96
da Astrologia – estudada com afinco por Warburg—não é a pauta do presente
trabalho. Mas é inegável que a atmosfera da Renascença influenciou o imaginário
de um artista que recebeu de sua família o nome de um ser celestial: o anjo Miguel.
Em um trabalho que almeja escavar imagens fantasmas, nos moldes da
iconologia de Warburg, e efetuar genealogias, com requintes do filólogo Nietzsche,
não poderíamos perder a oportunidade de fazer esse breve “trocadilho intelectual”.
O Arcanjo Miguel é nomeado nas escrituras judaicas (Daniel10:13,21; 12:1),
cristãs (Judas 9; Apocalipse12:7), bem como em muitos outros textos antigos do
judaísmo, cristianismo e islamismo. O nome Miguel pode ser “traduzido” como
“quem é como Deus”, e acreditavam ser um grito de batalha. Sem dúvida, é um dos
anjos mais populares da tradição ocidental e sua iconografia militarizada é um bom
exemplo de uma imagem fantasma.
O outro, Miguel-Ângelo, era uma artista sensível e irascível, tão formidável
que foi apelidado de “Divino”. Morreu trabalhando, enquanto esculpia “O Cristo
Descendo da Cruz”.
Do Príncipe Arcanjo ao Putto37 Renascentista, o que poderia haver de
semelhante? A palavra anjo (malach) é a apenas a palavra hebraica para
mensageiro. É a palavra grega angelos que dá origem a palavra anjo. Miguel é um
mensageiro poderoso e belicoso, responsável por expulsar as hordas demoníacas.
Miguel-Ângelo foi um mensageiro do espírito Renascentista. Cada um serviu ao
“divino” à sua maneira. Michelangelo, em um ato quase profético, morreu esculpindo
a cena de um deus morto sendo retirado de sua cruz. O trabalho abordou a morte de
Deus como a ferida que alcançou o contemporâneo; o Arcanjo Miguel viveu o
embate angélico decisivo entre as forças da luz e das trevas. Michelangelo, mestre
das luzes e das sombras, também viveu um momento fronteiriço, o Renascimento,
em que o corpo de Deus começava a cair de sua cruz, dando lugar a um novo “deus
em ruínas”: o Homem.
37
Putto (do latim putus, menino) é um termo utilizado no campo das artes para nomear pinturas ou esculturas de
um menino nu, geralmente gordinho e representado com asas. A compleição da figura é oriunda da imagem do
Cupido.
97
O potencial humano, no Renascimento, tornou-se um valor supremo,
suplantando a fé e o misticismo. As representações míticas deram lugar ao realismo.
Mesmo as representações de temas religiosos, que persistem, são humanizadas.
Pois o homem é o centro do mundo e medida de todas as coisas. Seu corpo não é
inimigo de sua alma, e sim seu interprete, embora, a tensão continue.
O título “Agonia e êxtase” representa de forma precisa a tensão de um
homem que aspira o lugar do divino, cada vez mais ausente do mundo. Já tratamos,
no atual trabalho, o Renascimento como uma “época fronteiriça”. Por isso,
Michelangelo é chamado de “o Divino”, uma “espécie de um Deus”. O Quattrocento
foi a época da supernova, cujo brilho mais intenso foi, provavelmente, a do segundo
Michelangelo, o mensageiro de uma criação à beira do abismo.
4.1 A CRIAÇÃO DE ADÃO À BEIRA DO ABISMO: Como Fazer
Nascer uma Estrela?
“Quando se olha muito tempo para o abismo, o abismo olha pra você”
(NIETZSCHE, 2006, p 101). A sentença nietzschiana precede as análises
fenomenológicas da consciência. Para o autor alemão, instintos fisiológicos,
percepção e a consciência formam uma espécie de continuum. É muito provável,
que Nietzsche compreendesse, em seu projeto “fenomenológico”, a consciência
como uma espécie de texto do ser: “toda a nossa chamada consciência é um
comentário mais ou menos fantasioso sobre um texto não sabido, talvez impossível
de saber, mas sentido (NIETZSCHE,2006, p.37).
O que não sabemos por completo, mas sentimos? Durante o presente
trabalho, apresentamos o fenômeno da morte de Deus como a ferida, por
excellence, da contemporaneidade. Também abordamos a noção de fantasmagoria,
como uma fissura no espaço-tempo, uma chaga que carrega conteúdos trans-
históricos do zeitgeist de uma cultura. Por fim, a agudização do niilismo foi retratada
como efeito da morte divina e o fantasma perene dos dias contemporâneos. Mas
todos esses “postulados”, ainda, não configuram o que procuramos. Qual o nosso
abismo? Não se trata de encontrarmos explicações e construções teóricas, mas de
uma intuição que capta algo que nos escapa, como um fantasma:
98
Aquele que sofre duramente, olha de sua condição para fora,
para as coisas com uma frieza terrível; todas aquelas pequenas
feitiçarias mentirosas em que habitualmente as coisas flutuam
quando o olho saudável as contempla, para ele desaparecem:
sim, ele próprio está diante de si mesmo sem penugem nem
cores. Supondo que até ali ele tenha vivido em alguma fantasia
perigosa: essa máxima lucidez através da dor é o meio de o
arrancar disso: e talvez o único meio [...] A incrível tensão do
intelecto, que quer ser a contraparte da dor, faz com que tudo
o que ele agora contemple brilhe numa nova luz: e o indizível
encanto que todas as novas iluminações conferem é muitas
vezes poderoso o bastante para desafiar todos as seduções do
suicídio [...] Ele pensa com desprezo no confortável cálido
mundo nevoento em que o homem saudável vaga sem
preocupações (NIETZSCHE, 2006, p .124).
O “mundo nevoento” exposto por Nietzsche dificulta o nosso olhar. O
pensamento de Nietzsche é uma tentativa de abrir a consciência para experiências
ilimitadas, múltiplas e de dor. Ele desprezava os sistemas filosóficos, pois era
apaixonado pela singularidade. A própria História, para ele, não passava de um
conjunto de eventos. O inaudito era o montante de todas as coisas, mas não um
todo.
Nesse estranho mundo de fantasmas, o Renascimento foi mais um evento
inconsciente de sua própria “mensagem de dor”, e Michelangelo o maior de seus
mensageiros. Os traçados agressivos, oriundos de sua natureza tempestuosa,
retratavam os próprios conflitos pessoais do artista. Por isso, suas obras eram
carregadas de pessimismo e um leve tom de crueldade. Suas figuras incorporavam
o espírito da tragédia, recuperação direta dos grandes dramaturgos gregos.
O humanismo marcou profundamente a obra de Michelangelo. Mesmo
quando o autor abordava outros temas – desprezava retratar figuras de pedras,
árvores, rochas, flores. Grande conhecedor da anatomia humana, Michelangelo
explorou o corpo masculino de forma minuciosa, desde as suas primeiras obras,
como David e Baco, até Moisés, um de seus últimos trabalhos.
99
Embora fosse igualmente talentoso na arte da escultura, campo privilegiado
por ele, a capela Sistina foi considerada sua magnum opus. Localizada no “palácio”
do Vaticano, em Roma, foi fundada por Sisto IV, foi decorada por artistas como
Botticelli, Ghirlandaio, Cosismo Rosselli e Perugino. Mas foi Michelangelo o
responsável pelos famosos afrescos no teto, principalmente a cena da Criação de
Adão, comovente e dotada de padrões inovadores, mesmo para o Renascimento.
Na figura retratada, Deus é representado como um vigoroso ancião, envolto
em um manto que compartilha com alguns anjos. Seu braço esquerdo está
abraçando uma figura feminina, comumente interpretada como Eva –aguardando a
sua criação. O braço direito está exposto, esticado para alcançar o homem. O braço
esquerdo do homem, quase idêntico ao de Deus, é retratado em uma postura de
relaxamento, ainda ausente de vigor.
Existem inúmeras teorias sobre o significado da composição original da
“criação de Adão”. Alguns estudiosos, como Frank Lynn Meshberger38, defendem
que a obra, olhada por outro ângulo, revela o formato anatômico de um cérebro,
incluindo o lobo frontal, nervo ótico, glândula pituitária e o cerebelo. Também
levantaram a hipótese do manto de Deus representar o útero, e que o lenço verde
que sai de seu ventre um “suposto” cordão umbilical.
Essas hipóteses hermenêuticas não são meros exercícios inofensivos. Se
essa interpretação estiver correta, o sentido da obra é, habilmente, invertido.
Deixamos o reino da homenagem ao famoso episódio bíblico, executado com
perfeição por um cristão sensível e fervoroso, para assumirmos uma nova dimensão:
a da mensagem subliminar.
Agora, Michelangelo é um artista ressentido contra a tirania de séculos da
igreja; que, em uma ousada manobra, retrata Deus dentro de um cérebro,
simbolizando a razão, tentando tocar um homem pós-idade das trevas.
38
Nos anos 90, uma série de artigos foram publicados sobre supostos “segredos” contidos nas obras de
Michelangelo. A maior parte abordava estudos na área de anatomia, Frank Lynn Meshberger publicou no Jornal
da Associação médica Norteamericana artigos sobre como as figuras da Capela Sistina possuíam analogias
anatômicas. Vasari já havia narrado como Michelangelo, com apenas 17 anos, dissecava cadáveres para estudar
a anatomia humana. Entre inúmeros trabalhos, destacamos “Os segredos da Capela Sistina” (2011), de
Benjamin Blech e Roy Doliner; no trabalho os autores articulam a Cabala judaica à obra de Michelangelo.
100
Conhecendo o temperamento, descrito pela literatura, de Michelangelo, não é
impossível imaginar tal artimanha. É muito provável, inclusive, que o gênio de
Michelangelo tenha abrigado as duas dimensões simultaneamente. Mas o presente
trabalho não almeja descobrir a intenção secreta do artista “Divino”. Se a “Criação
de Adão” é obra de um cristão fidelíssimo ou de um ativista humanista, nunca
saberemos. O nosso interesse é na mensagem fantasma registrada na obra de
Michelangelo.
A imagem fantasma não é uma “mensagem intencional”, mas uma ferida
aberta no tempo. Rafael de Sânzio, em sua obra a “Escola de Athenas”, retratou
Platão com o rosto de Leonardo da Vinci. Ora, sabemos a opinião do filósofo grego
sobre as artes pictóricas. Curiosamente – e maldosamente- Rafael imortalizou a
imagem de Platão com o rosto de Leonardo, um pintor – é comum ver livros e
documentários sobre Platão que utilizam, recorrentemente, essa imagem. Todavia a
imagem fantasma não é uma “armadilha intelectual”, como a “vingança” elaborada
por Rafael.
Quando Warburg efetuou a análise das obras O Nascimento de Vênus e a
Primavera de Sandro Botticelli, o historiador alemão não procurava trucagens
intelectuais, buscava ecos de tempos antigos que insistiam em retornar
postumamente. Warburg analisava os cabelos da Vênus, o sopro de Zéfiro, os trajes
e os corpos:
Afinal, na pintura não só temos os dois Zéfiros de bochechas infladas,
“cujos sopros se veem”, mas também os trajes e cabelos da deusa à
espera na praia agitando-se ao sabor do vento, e inclusive os cabelos
de Vênus esvoaçando, bem como o manto com o qual ela deverá ser
coberta. Ambas as obras de arte são paráfrases dos hinos homéricos;
mais o poema de Poliziano ainda temos as três Horas, que na pintura
foram reunidas em uma. (Warburg, 2015, p. 33)
Com isso, Warburg queria nos exemplificar e descrever os “ecos culturais”
que serviram de matéria-prima para Botticelli. Entretanto, o historiador alemão não
queria só compilar uma lista de influências arcaicas e surpreendentes, ele pretendia
demonstrar algo mais profundo: “O retorno das forças dionisíacas” (Warburg,2015, p
76); o reviver das forças pulsionais pagãs”.
101
Nosso “caça-fantasmas” alemão almejava demonstrar o espectro do
paganismo que assombrava a Europa cristã. Da mesma forma, “A Criação de Adão”
carrega sua legião de fantasmas; alguns óbvios, que o mensageiro Michelangelo
nos deixou.
Hoje conhecemos sua obra na Capela Sistina – que inclui, além do teto, a
parede do altar-mor que abriga O juízo final (1534-1541) – como um dos cânones da
arte ocidental. Sua dimensão de “obra de arte magna” deve-se, em parte, ao
fenômeno de ela suscitar leituras sempre originais, ao fato de sempre oferecer o
“encontro hermenêutico” entre o admirador e interprete de cada tempo histórico e a
tradição, que projetam à frente do presente aquele que arrisca deter-se na
contemplação da obra.
O retrato das cenas bíblicas trazia algo novo, além do que evocavam as
imagens que povoaram o imaginário do devoto cristão no medievo. No teto,
separando as cenas bíblicas do Gênesis – que mostravam, em sequência: A
separação da luz e das trevas, A criação do sol e da lua, A separação da terra e das
águas, A criação de Adão, A criação de Eva, A queda e a expulsão do jardim do
Éden, O sacrifício de Noé, O dilúvio e A embriaguez de Noé.
Influenciado pelo pensamento da antiguidade clássica, Michelangelo
organizará, nos afrescos do teto da Sistina, um conjunto de imagens alternadas
entre cinco profetas bíblicos, cinco profetizas pagãs, relacionadas aos grandes
oráculos da antiguidade: as sibilas. A cada profeta católico corresponderá uma
sibila, colocada no lado oposto em relação ao profeta, no teto do vão da nave
principal. A sibila de Delfos oposta ao profeta Joel; a sibila de Eritréia, a Isaías; a
Cumeana, a Ezequiel; a da Pérsia, a Daniel e a da Líbia, a Jeremias. O arranjo de
profetas e de sibilas em igualdade de condições era, certamente, uma forma de o
artista demonstrar, ainda que inconscientemente, a mestiçagem dinâmica dos
valores e símbolos religiosos pagãos e cristãos – especialmente àqueles relativos as
intuições de Warburg, sendo que tanto os profetas como as sibilas apontavam um
futuro almejado – bem como na correspondência entre as revelações divinas nos
mundos judaico-cristão e os oráculos do mundo pagão.
102
É inegável que o deus grego, Zeus, o pai-de-todos, se assemelhava muito,
especialmente no temperamento, ao Deus judaico do Antigo Testamento.
Michelangelo não parece ter usado apenas referências bíblicas, como as do Gênesis
ou de Daniel (7:13); o Deus ancião e vigoroso, de a Criação de Adão, lembra o
olímpico Zeus – menos nos casos amorosos. Essa forma de louvor à mitologia e a
cultura clássica-pagã, assim como a devoção pelos fundamentos do cristianismo,
demonstra como Michelangelo era um espírito do Renascimento.
O “divino artista” era, antes de tudo, um devoto do corpo humano. É
perceptível como o rosto de Adão foi cuidadosamente modelado. A parte do rosto
que tem destaque com essa criação meticulosa são os lábios do homem primordial
que estão obscurecidos e possuem um toque de coral; demonstrando a ausência do
“sopro divino”.
A Face de Deus é representada por meio de contornos fortes e sombras
marcantes, além de ser, propositalmente, iluminada com o objetivo de criar a
escultura facial dentro da moldura de cabelos acinzentados e barba quase alva. O
efeito ainda é agudizado pela luz frontal.
Adão é ilustrado como um humano perfeito em suas formas, ao levantar sua
mão esquerda ele aguarda ser tocado pela mão direita de Deus e este é o clímax do
ato da criação, - que efetivamente não foi representado - se observarmos,
profundamente, podemos ver semelhanças claras entre a figura jovial de Adão e a
imagem anciã de Deus. As posições de Deus e Adão, a pintura do braço direito de
Deus e esquerdo de Adão muito se assemelham sendo, portanto, fiel à passagem
descrita no livro do Gênesis (1:27): "Deus criou o homem à sua imagem e
semelhança".
Na obra, Deus não chega a tocar objetivamente o dedo de Adão. Destaque
para o olhar fixo de Adão aguardando ser tocado por Deus; Michelangelo,
possivelmente, criou este hiato infinito entre as duas figuras para concentrar e
convocar o nosso olhar para a perene questão do “ser ou não ser”, vivido pela
humanidade.
103
A tensão continua, pois, a figura de Deus aparece em uma dimensão espacial
distinta de Adão, uma espécie de espaço interior; por mais que estejam
posicionados no mesmo ângulo, podemos ver a diferença de universos, entre o
criador e a criatura, esta diferença nos representa o humano e o divino; o efeito,
conquistado por Michelangelo, é a figura de Adão e a imagem celestial de Deus em
destaque no centro da obra.
Ao lado da figura que representa Deus, há uma outra imagem sendo
abraçada pelo Criador. A expressão dessa figura reforça a tensão psicológica criada
pela cena. O feminino, sutilmente, habita esse universo de varões.
Esta figura feminina, como já foi dito, é comumente interpretada como sendo
a imagem de Eva, seguindo o relato bíblico. No entanto, algumas interpretações
sugeriram a presença de Lilith39, um demônio da tradição mística judaica; Warburg,
provavelmente, aprovaria tal especulação “alternativa” - embora seja mais
impressionante a “suposta” ousadia de Michelangelo, perante a igreja, do que a
própria presença da figura feminina demoníaca.
A hipótese sobre Lililth não é impossível, é licito lembrar que Rafael –sempre
ele- imortalizou o rosto de Hipátia40 na sua obra “A Escola de Athenas”. A jovem e
bela filósofa e matemática, morta por uma turba de cristãos fanáticos, foi retratada
pelo astuto pintor, e continua altiva e eterna no palácio Apostólico, no vaticano -
templo de seus executores.
Atendo-se ao contexto da obra, o Renascimento (embora o termo tenha sido
usado não pelos contemporâneos, mas tenha sido forjado pelos Iluministas alguns
séculos depois) tinha como principal aspecto o antropocentrismo, a tentativa do
homem conhecer o mundo por meio de sua própria experiência, o que
necessariamente significava romper com algumas “verdades divinas”.
Se os mecenas podiam aparecer ilustrados em cenas sacras, os artistas
poderiam também criar novas perspectivas de mundo. Não se pode negar que os
39
Provavelmente, foi uma deusa adorada na Mesopotâmia vinculada a enfermidades e tempestades. No
misticismo judaico e islâmico, ela aparece como a primeira esposa de Adão e posteriormente como um demônio
feminino. 40
Hipátia (351 -415) foi uma matemática e filósofa, nascida em Alexandria. De acordo com a tradição, ela teria
sido assassinada por uma multidão de cristãos, após querelas políticas.
104
artistas do Renascimento ainda habitavam em um mundo cuja religiosidade era de
suma importância, tampouco se pode negar a capacidade inventiva de indivíduos
como Michelangelo de criar maneiras novas de interpretar e vivenciar o mundo ao
seu redor.
Força, beleza e vigor, valores greco-romanos que voltaram, como fantasmas,
a fazer parte não só da arte renascentista, mas como do universo ocidental. A busca
pela simetria é um traço do Renascimento, seja nas esculturas, seja nas pinturas ou
em outra área do saber.
Sabemos que os séculos XIV e XV simbolizaram a quebra de um paradigma
pautado na religiosidade que há muito tempo imperava na Europa. Este período
representou uma mudança tão drástica no pensar e no representar o mundo, que os
Iluministas, cães de guarda da Razão, reconheceram em Michelangelo, Leonardo,
Rafael ou mesmo Maquiavel os seus predecessores. Denominaram-no, pois,
Renascimento.
Devido a posição geográfica privilegiada, entre o oriente e o interior do
continente, no mar mediterrâneo, as Cidades-estados italianas dominaram o
comércio europeu; O fluxo, oriundo do comércio, de pessoas de origens múltiplas
facilitou as trocas culturais, elemento indispensável para as reviravoltas da cultura.
Foi neste cenário e nessas cidadelas italianas que Michelangelo: foi um criador à
beira do abismo.
O Quattrocento, como já foi supracitado, esteve fundamentado no estilo
greco-romano de arte e técnica, por isso a volta a este estilo foi denominada
Renascimento, uma perspectiva de mundo com base em conhecimentos empíricos,
um antropocentrismo baseado nas experiências humanas, não somente na
reprodução de mensagens religiosas, que era o objetivo da arte sacra. Sobre esse
fenômeno, Nietzsche explanou:
A Renascença. Compreende-se finalmente, será que por fim compreende-se o que era a Renascença? A transmutação dos valores cristãos – uma tentativa com todos os meios, todos os instintos e todos os recursos do gênio para fazer triunfarem os valores opostos, os valores mais nobres…. Até ao presente essa foi a única grande guerra; nunca houve uma questão mais crítica que a da Renascença – que é minha questão também –; nunca houve uma
105
forma de ataque mais fundamental, mais direta, mais violentamente desferida por toda uma frente contra o centro do inimigo! Atacar no lugar decisivo, no próprio assento do cristianismo, e lá entronar os valores nobres – isto é, introduzi-los nos instintos, nas necessidades e desejos mais fundamentais dos que ocupavam o poder… Vejo diante de mim a possibilidade de um encantamento supra terreno: – parece-me que cintila com todas vibrações de uma beleza sutil e refinada, dentro da qual há uma arte tão divina, tão diabolicamente divina, que em vão se procuraria através dos milênios por semelhante possibilidade; vejo um espetáculo tão rico em significância e ao mesmo tempo tão maravilhosamente paradoxal que daria a todas as divindades do Olimpo o ensejo de irromper numa imortal gargalhada – César Bórgia como Papa!… Compreendem-me? (NIETZSCHE, 2005, p. 115).
Compreendemos com Nietzsche e Warburg, que o Renascimento foi o
momento em que forças antigas retornaram “ocultas a olho nu”, nas obras dos
grandes artistas, como Michelangelo. Esses fantasmas puderam retornar de forma
mais “assombrosa” – pois sempre estiveram presentes de uma forma ou de outra-
devido ao desgaste do cristianismo medieval.
Esse “desgaste” ocasionado no medievo, é um dos traços da Morte de Deus,
último mecanismo de defesa da mente ocidental contra o Niilismo. Talvez,
Michelangelo não tenha representado a criação em si, mas a criação do homem
renascentista, que vê na divindade algo comum e imerso na natureza, sendo ele
mesmo, o homem, o agente do saber e do fazer. Na direção contrária, Deus, na
obra, simbolizaria não só o declínio do poder da Igreja, mas a queda do próprio
divino que “sendo o portador de todos os poderes” não consegue mais encantar a
sua principal obra. Michelangelo, convocado pela igreja, acaba por ilustrar não o
momento que antecede o toque entre o humano e o divino, mas a separação de dois
mundos que não voltariam a se reencontrar na história do ocidente. Deus, amparado
por seus anjos, retorna ao céu, após um logo esforço. Nascia neste momento um
abismo intransponível. Michelangelo foi o pintor do abismo.
Este sentido de “abismo histórico” de que fala Warburg apresenta certa
“polissemia positiva”, isto é, um modo de se conceber conexões entre vários tempos
históricos diferentes, várias culturas distintas, (Gregos, Indianos, Chineses, etc.)
numa ou mais obras de arte. Ao compreender as obras de arte como artefatos que
conseguem apresentar múltiplas temporalidades, Warburg derruba o conceito
tradicional de história, caracterizado pela cronologia progressiva, típica do
106
pensamento moderno, em que cada época supera a anterior, seja socialmente ou
culturalmente.
Por este motivo, um dos objetos de estudo preferidos de Warburg era
o Renascimento Italiano. Warburg queria demonstrar que a arte do Renascimento
não produzia um puro e simples resgate da cultura greco-romana, não era uma arte
“pura”, da perspectiva do resgate histórico. Era uma arte “impura”, “mestiça”, no
sentido de apresentar muito “tempos” e muitas culturas mescladas em uma só peça
artística ou em várias reproduções distintas, que nunca se comunicaram
diretamente, mas que carregavam as mesmas dores, os mesmos fantasmas.
Ainda no reino da iconologia, segundo os moldes de Warburg, oriundo do
extremo oriente, viveu Wu Tao-tzu (618-905), aos nossos olhos, uma espécie de
“Michelangelo Chinês”. Considerado o maior pintor do extremo oriente, infelizmente,
quase todo o seu trabalho foi perdido, com exceção algumas poucas obras e de um
popular tríptico.
Wu Tao-tzu, também conhecido como Wu Tao-hsüan, nasceu em Yang-ti
perto de Loyang, uma Província de Honan, aparentemente em uma família de
poucos recursos. Segundo a lenda, ficou órfão e sem dinheiro; quando menino foi
adotado por monges budistas, e, então, começou o estudo da pintura, orientado por
artesãos empregados para decorar templos budistas. Ainda de acordo com a
tradição, ele também estudou caligrafia com o monge budista Chang Hsü, que era
famoso por seu “traço louco", enfatizando as qualidades aleatórias e cenestésicas
do pincel zen. Wu também parece ter aprendido com espadachins a “arte da visão
sobre as qualidades do movimento”, observando a famosa dança folclórica da
espada de Gen P'ei Min (JANSON, 2002, p. 63).
Wu Tao-tzu foi convocado pela corte do imperador Hsüan-tsung, um
governante, aparentemente, culto, (a versão oriental do Papa Júlio II) e cujos
palácios atraíram um conjunto tão brilhante de poetas, pintores, calígrafos e músicos
que seu reinado é lembrado como a idade de ouro da cultura chinesa. Neste cenário,
Wu Tao-tzu logo adquiriu uma reputação como o pintor mais brilhante da
dinastia. Seu gênio era lendário, assim como seu comportamento desordenado: "Ele
gostava de vinho, o que motivava o seu espírito, antes de empunhar o pincel, ele iria
107
ficar invariavelmente bêbado" (JANSON, 2002, p. 42). Ele é conhecido por ter
pintado, sozinho, 300 paredes de templos na capital e é creditado por ter executado,
em um único dia, um mural que retrata cem milhas de cenário ao longo do rio Chia-
ling.
A “velocidade furiosa” de seu pincel é a marca significativa da arte de Wu
Tao-tzu. Ele foi um dos primeiros pintores a desenvolver um estilo fluido, e a
representar as figuras vagamente e sugestivamente. A história primitiva da pintura
chinesa41 é representada nas realizações sucessivas de três mestres: Ku K'aichih,
cuja pincelada foi "como fio de seda"; Yin Lipen, que pintou como "fio de ferro" e Wu
Tao-tzu, cuja pintura “flutuante” foi a primeira a adquirir qualidades próprias,
separadas das formas descritas (JANSON, 2002, p. 52).
A obra mais importante de Wu Tao-tzu foi um conjunto de três pinturas unidas
por uma moldura tríplice (dando o aspecto de serem uma obra), e essa pintura pode
ser encontrada em um dos mosteiros zen de Kyoto. A ilustração mostra o Buda com
dois famosos Bodhisattvas: Samantabhadra e Manjusri; mas é a figura central de
Buda que atrai a nossa atenção.
Influenciado pelo zen budismo, as linhas que formam as dobras do manto do
buda são recortadas e ousadas, mas a face possui a expressão de uma serenidade
completa que domina todo o quadro. Em sua obra “O Espirito Zen”, Allan Watts, em
um capítulo sobre a contribuição da cultura zen, ilustra:
Essas pinturas foram executadas em um tipo de papel áspero e quebradiço com um pincel macio. O meio usado, a tinta preta chinesa; não havia colorido nem elaboração, em um efeito do papel quebradiço era de que, uma vez feito o traço, nunca poderia ser eliminado; para que não houvesse borrões, o traço teria de ser rápido e firme. Com esse material era necessário ser rápido e firme “como se um turbilhão tivesse se apoderado de sua mão”. Não havia possibilidade de “retocar”. O menor erro seria óbvio, e, caso o artista parasse para pensar no meio de uma pincelada, o resultado seria um feio borrão. Essa técnica era a que se adequava exatamente ao espírito Zen, pois significava que o artista, perante o vazio, tinha de passar sua inspiração para a obra enquanto ela estivesse viva. A técnica de “pintura zen, utilizado por Wu Tao-tzu”, não permitia um
41
Na cultura chinesa, a “via do pincel” continuou sendo a via da pintura e da escrita. Os pintores chineses não
eram artesãos, trabalhadores especializados contratados para executar algum trabalho; a pintura e a caligrafia
eram a arte do sábio. Tardiamente, só depois do ano 1000 d.C. ocorreu a distinção teórica entre pintores
intelectuais e profissionais.
108
esboço tosco, e, a seguir, corrigir, lentamente, os erros, preenchendo os detalhes até que a inspiração morresse em meio ao turbilhão de elaborações e mudanças (Watts, 2008, p.111).
Trechos como: “O artista perante o vazio” e para que “a inspiração não morra
em meio ao turbilhão de emoções e mudanças” são exemplos ideais para o presente
trabalho. Nossa breve digressão ao oriente não foi apenas para ilustrar semelhanças
óbvias entre Michelangelo e Wu Tao –tzu.
Ambos os pintores são envoltos por narrativas lendárias; são mestres
inigualáveis em suas artes; famosos por possuírem gênios tempestuosos e por
retratarem ícones religiosos, captando com maestria os espíritos de suas respectivas
culturas. Mas procuramos algo mais sutil, e esse algo é o Vazio.
É sabido que o Zen budismo impressionou o filósofo alemão Heidegger,
assim como o budismo indiano havia impactado Schopenhauer. Nietzsche, como foi
exposto no capítulo anterior, via o budismo e o cristianismo como fenômenos
sintomáticos do niilismo, embora tivessem genealogias díspares.
Diferentemente do cristianismo que chegou tardiamente ao “abismo do nada”,
o budismo sempre lidou com a dimensão abissal. O zen-budismo, corrente nascida
em resposta aos excessos “metafísicos” do budismo Mahayana, propõe a busca
pela experiência do satori42.
O satori é uma espécie de “salto apoiado no nada”, semelhante ao “salto de
fé” proposto por Kierkegaard. A semelhanças não param: a experiência melancólica
do ser levado ao extremo; um ego falido, incapaz de prover recursos para sua
própria salvação, não pode se apoiar em nada para se salvar.
O cristianismo propõe a entrega total da alma a Deus; todavia já sabemos que
somos “homens sem-Deus”, e não possuímos mais esse recurso- exaurido por
querelas teológicas filosóficas e pelo absurdo. Então, o que fazer?
42
Satori é um termo Zen-budista para iluminação. Pode ser traduzido como “acordar”. Não é um estado de
iluminação eterno, embora seja duradouro. Para acessar o satori, os monges utilizam os koans, perguntas sem
respostas lógicas, para demonstrar a incapacidade da razão para atingir a iluminação.
109
O zen budismo propõe a experiência do Zen, que, em uma tradução literal,
significa “largar o ponto de apoio” ou vazio. Saltar em direção ao abismo, para,
então, experimentar o momento do satori, ou da intuição imediata do Ser.
“Quando você olha para o abismo, ele olha de volta para você”, Começamos
o capítulo citando o aforismo de Nietzsche; chegamos à conclusão de que
Michelangelo, o mensageiro da morte de Deus, intuiu, em sua “A Criação de Adão”,
o avanço do niilismo. Parece que o abismo nos observa fixamente, devemos saltar?
Como Wu-Tao-tzu, “o Michelangelo oriental”, que pintava como um turbilhão,
sem chances para correções, precisamos lidar com o abismo da ausência do
criador, da falta de apoio; e sobre isso será o próximo texto.
4.2 À IMAGEM E SEMELHANÇA: O Niilismo Criativo é
Brincadeira de Criança.
Embora não tenha sido a única referência, o relato bíblico da criação de Adão
foi a maior inspiração para a obra de Michelangelo. Antes do sexto dia, Deus,
segundo tradição Judaico-cristã, havia criado o mundo a partir do “nada”. (GÊNESIS
1.1-7)
Não impressiona que o homem ocidental tenha imaginado o artista como uma
espécie de ser divino - Michelangelo o “Divino”. A crença em um Deus-Criador foi
uma forma de expressar a intuição de que o “novo” estava além das explicações
humanas.
O criador foi deificado; o ocidente adotou essa concepção. O poder humano
de criação estava vinculado à uma atividade divina. Claro que os homens não
passavam de “sub criadores”; no máximo artífices, pois utilizavam materiais já
dispostos.
O Oriente, por sua vez, identificou o cosmos ao divino e criou obras de rara
beleza artística. Gregos e Romanos, que não trabalhavam com a noção direta de um
deus criador, desenvolveram obras de arte monumentais, e fonte de inspirações
110
futuras, como as de Michelangelo. Os muçulmanos, obedientes a um Deus de pura
volição, mesmo com restrições as representações artísticas, elaboraram os
arabescos e uma caligrafia de beleza ímpar. O impulso de criação pareceu vencer
todos os obstáculos.
Mas a cultura ocidental, fundamentada na noção de um Deus criador,
incentivou também a concepção de um homem criador. Podemos dissertar sobre
como ocorreram as grandes criações, quando aconteceram, quem as efetuou, em
que contexto, suas implicações, mas não podemos dissertar sobre o “por que”
criamos, talvez possamos tentar responder a questão do “para que”, mas o ocidente
parece ter recebido um ingrediente novo na poção do mistério que motiva a criação:
O Deus Criador.
O homem percebeu a capacidade de continuar vivo em suas criações. Sua
imagem imortalizada em notas musicais, palavras, pedras talhadas, tintas e pinceis;
o homem havia encontrado materiais para sua imortalidade. Desde então, o homem
tem criado imagens de si mesmo e do mundo. Mas parece que retornamos para o
nada, aquele do “estado de pré-criação –seja lá o que isso for. Dos maiores golpes
de estado, efetuados pelos homens em sua trajetória histórica, o golpe contra o
“Criador” foi o mais contundente; roubamos os seus poderes e o céu do homem
contemporâneo ficou vazio.
“Ó criadores, homens superiores!” É assim que Zaratustra orava. Os
criadores profetizados são homens capazes de, como outrora o Deus Criador, criar a
partir do nada. Cabe aqui alguns esclarecimentos, é inútil buscar uma “filosofia
estética” em Nietzsche, como aquela encontrada em Kant ou Hegel.
A perspectiva de Nietzsche se opõe a tradição dos estéticos, quase todas
elas idealistas, em busca da encarnação da ideia na obra de arte, procurando a
elevação, o belo, etc. A estética em Nietsche dá lugar a fisiologia da Arte.
Nietzsche vai operar segundo a sua própria proposta genealógica, da obra ao
artista e o tipo de vontade que ela expressa. Esta proposta psicológica, como uma
história da tipologia da vontade de poder, busca a “pulsão artística”.
111
“Pergunto em cada caso particular: será que é falta ou superabundância que
se tornou criadora?” (NIETSZCHE, 2001, p. 221). Qualquer teórico que não
compreenda essa “psicologia” é um logógrafo, alguém que não entende nada de
arte, um sistemático, conjunto de letras mortas, afogado em todo tipo de abstrações
e fórmulas.
O divino foi um horizonte, um princípio, uma origem, mas sua ausência pede
para que voltemos para trás. O novo pensador precisa ser não um filósofo que
especula sobre arte, mas um artista filosofante; capaz de reunir os estilhaços do
contemporâneo. Privilegiando o criador, Nietzsche golpeia a estética clássica. Não
devemos mais ouvir os espectadores e críticos; somente o criador tem direito
adquirido para abordar a arte. A estética sempre tomou em primeiro lugar a
perspectiva do “amador”, do ouvinte, e só em segundo lugar do criador.
Sobre esta esfera, Nietzsche sabe do seu pioneirismo: “Sublinharei sobretudo
que Kant, como todos os filósofos, em vez de abordar o problema estético a partir da
experiência do artista, refletiu sobre a arte e o belo somente a partir do espectador, e
fazendo isso, introduziu implicitamente o próprio espectador sob o conceito de belo”
(NIETZSCHE, 2006, p. 102). Certamente esta não é a experiência do artista. A falta
de experiência de Kant e Hegel é visível. Mas e Platão?
Longe da arte do “desinteresse” de Kant ou da arte como “sintoma”, em
Hegel, – meras notas de rodapé – Platão é um artista. E aqui, encontramos a “ferida
do trabalho”. Este último capítulo poderia se chamar “Eros versus Eros”. Mas por
que?
Na mitologia grega dois deuses detinham o nome de Eros43. O mais popular
foi o filho de Marte e Afrodite, divindade do amor erótico. Casado com Psique, era o
Cúpido Romano, um deus irresistível e alado, como o desejo. Platão cantou a
divindade olímpica, mas não sem efetuar modificações em sua história; com o
filósofo grego, Eros tonou-se filho da pobreza e da riqueza, trajava roupas de um
mendigo, todavia era belo e poderoso e sua aparência enganava o tolo, incapaz de
43
Divindade do amor erótico, era um dos “Erotes”. Seu mito passou por três fases: (1) o mito ancestral, os
gregos deviam prestar cultos a uma divindade primordial indo-europeia associada a vida e a morte. (2) fase
mitológica poética, representado por poetas, como Hesíodo, era belo, jovem e alado, filho de Afrodite, deusa da
beleza e do amor, e de Ares, divindade da guerra selvagem. Era casado com Psique. (3) o mito platônico,
utilizado para efeito de estudo, era filho da Poros, a riqueza, e Pínia, a pobreza.
112
reconhecer a “verdadeira riqueza do amor”. A imagem de Platão é uma síntese de
sua filosofia, precisamos reconhecer o princípio; e ele é belo e bom, como a
divindade alada.
Quando nasceu Afrodite, os deuses banquetearam, e entre eles
estava Poros (o Expoente), filho de Metis. Depois de terem comido,
chegou Pínia, (a Pobreza) para mendigar, porque tinha sido um
grande banquete, e ela estava perto da porta. Aconteceu que Poros,
embriagado de néctar, dado que ainda não havia vinho, entrou nos
jardins de Saturno e, pesado como estava, adormeceu. Pínia, então,
pela carência em que se encontrava de tudo o que tem Poros, e cogitando ter um filho de Poros, teve relações sexuais com ele e concebeu Eros. Por isso, Eros tornou-se seguidor e ministro de Afrodite, porque foi gerado durante as suas festas natalícias; e também era por natureza amante da beleza, porque Afrodite também era bela (Platão, 2001, p. 38).
Mas Nietzsche – depois Freud – perceberá que havíamos esquecido do
“antigo Eros”, a divindade primordial. A divindade cósmica era a própria
manifestação do universo, anterior as divindades titânicas e olímpicas. Eros era um
dos primordiais44, e dividia espaço apenas com a Terra, o Céu, a Noite e o Oceano.
Nasceu de suas próprias forças, não tendo sido gerado por nenhuma divindade
externa. O Eros primordial era o deus de Nietzsche e de sua filosofia.
Para Platão, o Eros era definido pela Falta; por isso a continua busca pela
sabedoria. O filósofo grego criou a eterna problemática da filosofia ocidental: “o amor
pela sabedoria” sempre faz com que ela escape. Nietzsche, por sua vez, entendeu
que a arte carrega a sabedoria, ainda que não fale sobre ela de forma explicativa,
mas por meio de imagens, alegorias, analogias, metáforas, paradoxos. Eros, para o
alemão, era o portador da sabedoria da vida, capaz de se auto gerar.
Nietzsche não desdenhava do segundo Eros, o olímpico, pelo contrário, ele
compreendia a divindade como o filho da guerra e do amor. Os gregos, mais uma
vez, haviam forjado um mito capaz de captar a força inaudita do amor fati; da vida
como ela é, e não como deveria ser. Eros, deus da vida, sabia que era fruto de uma
infidelidade; filho da bela Afrodite (deusa do amor e da beleza) e do selvagem Ares
(deus da guerra).
44
Chamados de Protogonos, eram os “nascidos primeiro”, originados no momento da criação; constituem a
própria estrutura do universo. Provavelmente, estão historicamente vinculados a divindades indo-europeias. O
número varia, segundo os poetas, mas há certo padrão que mantem cinco divindades, são elas: Gaia (terra), Nix
(noite), Ponto (águas do oceano), Urano (céu) e Eros (vida).
113
O autor de “Assim falou Zaratustra” defendia que a arte era vontade de poder
na sua dimensão criadora. Para além do bem e do mal, a arte era poesia da vida, e
o criador o único capaz de regenerá-la. Por isso, a arte é excesso de vida, uma
profusão de signos; não falta.
A obra de arte não é fruto da carência, ela é excesso. Temos uma inversão
significativa. Enquanto para Platão, a arte era eco da vida, mera imitação; para
Nietzsche, a arte era o próprio motor da vida, ela produzia os mundos simbólicos,
em que os homens viviam, mas a cultura ocidental, segundo o filósofo alemão, não
matou Eros, embora o tenha envenenado e pervertido (NIETZSCHE,2015, p. 92).
O caminho é sutil. Michelangelo era, sabidamente, um Platônico. Enquanto
Leonardo era o homem da observação, amante da natureza, um aristotélico tardio; o
autor de “A Criação de Adão” era um idealista, o próprio fato de não ser pintor de
formação ilustra a dimensão “platônica de Michelangelo”; ele só precisava acessar a
ideia encarnada da pintura para executá-la com precisão. A escultura é a arte de
capturar o movimento fugidio da vida, e Michelangelo nunca escondeu sua
predileção pelas formas retratadas (e aprisionadas) em puro mármore. O anseio
pela eternidade alcançou o auge durante o Renascimento. Michelangelo exemplifica:
Ainda no berço eu recebi a visita da Beleza, fiel guia da minha
vocação e que para as duas artes me é luz e espelho. Pensar de
outra forma é mentir. Apenas ela eleva os olhos em direção ao
sublime, o qual aqui me preparo para pintar e esculpir
(VASARI, 2001, p. 41).
Temos mais um problema aparente: A criação de Adão é fruto de um artista
platônico? A resposta é: sim. Como efetuar uma leitura nietzschiana de uma obra
indiretamente platônica?
Se é verdade que onde a luz é mais forte as sombras são mais nítidas, eis o
cerne da questão: Justamente por ser uma obra Renascentista, de temática cristã e
de cunho Platônico, ela carrega a ferida máxima estudada pela labuta atual: ela
indica a falência desta forma de pensamento; o início do fim, a morte da reflexão
fixada no ponto de origem. – Embora tenham ocorrido muitas convulsões antes do
114
óbito. As sombras ficaram evidentes, justamente quando a luz do Renascimento foi
mais intensa.
Durante o trabalho, buscamos uma hermenêutica nietzschiana da obra “A
Criação de Adão”. O que ela poderia nos dizer sobre os dias de hoje? Partimos da
sugestão de Warburg que toda a obra de arte possui um pathos, uma ferida aberta
no tempo; as obras carregariam fantasmas, como o rei Hamlet, almas penadas que
carregam mensagens perturbadoras, embora reveladoras.
Desde a cultura mais primitiva, a da tradição dos costumes, encontram-se não
somente regras sociais, mas uma “mnemotécnica”, isto é, a capacidade de desligar-
se do tempo presente, ao qual o animal continua refém para sempre. É assim que o
homem escapa da animalidade, e se faz não somente animal, mas um “supra
animal” capaz de retornar ao passado e especular sobre o futuro. Durante suas
“viagens no tempo”, o homem tomou consciência das mortes passadas e da sua
própria morte futura; daí resulta o surgimento da necessidade metafisica; o homem
passa a ser o único animal que sente tal necessidade e que, por tentar fugir da
morte, morre duas vezes.
Nietzsche percebe que os sistemas morais, religiões, as filosofias, as
ciências, as leis são outros tantos processos de criação que tendem a constituir
pontos fixos. A criação passa a ser a atividade por excelência do homem. O homem
divinizou a criação. Eis o paradoxo da criação: assim como nos encontros de Moises
com o seu Deus –Criador, o profeta hebreu não podia ver a face de Deus. O Deus
sem nome, sem rosto, exigia, no entanto, intimidade e um relacionamento pessoal.
Procuramos a face, o começo, a origem da Criação, mas não a encontramos.
A herança de Platão e da fé cristã começou a demonstrar sinais de desgaste.
Longos debates filosóficos e teológicos; a racionalização e burocratização do
mundo; o processo substituiu o significado. O mundo, anteriormente objeto de
contemplação, começou a ruir, e o niilismo levou a história humana para à beira do
abismo.
Para mim não há passado nem futuro em arte. Se uma obra de arte
não pode existir sempre no presente, não pode ser levada em
consideração. A arte dos gregos, a dos egípcios, a dos grandes
115
pintores que viveram em outras épocas, não são artes do passado;
talvez estejam mais vivas hoje do que nunca (PICASSO,1931, p.
117).
O comentário de Picasso poderia ser muito bem de Nietzsche ou de Warburg.
O que é mais vivo do que nunca na “A Criação de Adão”, um afresco que parece ter
perdido seus personagens principais?
Michelangelo pintou “A Criação de Adão” em um momento fronteiriço da
História: O Renascimento. Nietzsche e Warburg estudaram este período como um
momento fulcral da cultura Ocidental. Fantasmas antigos retornaram e novos
surgiram. O fantasma que interessa ao presente labor é o espectro de Deus.
O espectro divino ronda o abismo; como o fantasma paterno de Hamlet.
Neste ponto do trabalho, já sabemos que “há algo de podre no reino da Dinamarca”.
Um rei morto; sucedâneos ambiciosos; filhos desorientados e ansiosos, e um reino
prestes a ser invadido, por um adversário bem pior do que os noruegueses: o
Niilismo.
Provavelmente, Nietzsche aprovaria essa “grande tragédia” escrita com uma
pena feita de dor e um tinteiro cheio de sangue. É uma narrativa memorável, todavia
o seu vínculo a “crença histórica” exige um desfecho – assim como esse trabalho.
A história de toda a sociedade até aos nossos dias nada mais é do que da
luta de classes: a classe do sagrado contra a classe do Niilismo. Do “vale a pena”
versus “nada tem sentido”. Por isso nietzschiano Albert Camus, vacinado contra
utopias messiânicas, chegou à conclusão de que “a única questão séria da filosofia
é o suicídio” (CAMUS, 2010, p. 58).
Seguindo o “estilo de Warburg”, para ilustrar essa grande tensão entre o
sagrado e o nada, evocaremos uma narrativa bíblica:
E Jacó ficou sozinho; e um homem combateu com ele até o romper do dia. Quando o homem viu que não vencia Jacó, tocou a cavidade de sua coxa, e a coxa de Jacó de deslocou quando combatia com ele. Então ele disse: “deixa-me ir, pois o dia está raiando”. Mas Jacó respondeu: “não te deixarei ir, a menos que me abençoes”. E ele disse: “teu nome não será mais Jacó, e sim Israel, pois lutaste com Deus e com os homens, e venceste. ”
116
Então Jacó lhe pediu: “rogo-te que me digas teu nome”. E ali o abençoou. Assim Jacó deu ao lugar o nome de Peniel, dizendo: “Pois vi Deus face a face, e minha vida foi preservada (Gênesis 32; 24-30).
Este episódio já foi evocado não só por religiosos, mas como por ateus. A luta
de Jacó contra Deus é um símbolo do Ateísmo. O “anjo” desta narrativa não é um
mensageiro ou guardião, ele é um ser sorrateiro, capaz de atacar Jacó durante a
noite, para testar seu espírito e sua coragem. Jacó derrota a figura misteriosa,
sobrevive e vê o sol nascer, no entanto Jacó foi ferido, e passou a mancar pelo resto
de sua vida.
Assim como Jacó, (nome traduzido como “aquele que foi segurado pelo
calcanhar”) parece que vencemos, expulsamos Deus para longe, mas o custo foi
alto, pois fomos feridos, e passamos a caminhar pela história de forma claudicante.
A “ferida de Jacó” foi causada por sua vitória, e o acompanhou pelo resto da
vida. O embate é um tanto misterioso – e deve causar malabares constrangedores
nos meios teológicos -, entretanto o que nos interessa é a ambivalência contida na
força imagética da narrativa.
A analogia é evidente: a luta contra Deus representa o processo de
racionalização e desencantamento do mundo, a ferida é a morte de Deus, o
amanhecer como o Renascimento. Mas a passagem carrega outros elementos,
como o “terror sem nome”, - Jacó termina sem saber o nome de seu adversário
misterioso, mas recebe sua benção e descobre ter contemplado a “face de Deus”,
em uma experiência de temor e tremor.
Afinal, vimos a Face de Deus? Hölderlin, o “poeta da morte de Deus” nos
presenteou com um verso relevante para o atual trabalho: “onde cresce o perigo
também surge a salvação” (HOLDERLIN, 2001, p. 56).
O avanço do niilismo é o perigo, mas também possibilidade de salvação. Mas
como procurar salvação? Nietzsche, profeta do niilismo, aponta uma direção, -
embora, como de hábito, as pessoas olhem para o dedo indicador e não para o lugar
indicado- o filósofo alemão, por meio de seu Zaratustra, indica o “caminho da
criança” ou do niilismo criativo.
117
O discurso sobre as três metamorfoses inicia o livro “Assim falou Zaratustra”,
elaborado por Nietzsche entre 1883 e 1885. A relevância deste primeiro discurso é
vital. Nele, encontrarmos Zaratustra “aquele que possui bravos camelos”, e
referências que nos indicam a trajetória da obra do próprio Nietzsche - que jamais
teve a pretensão de escrever uma obra sistemática-. Precisamos “desconfiar dos
sistemáticos”, postulava ele. É plausível, entretanto, pensar em uma “solução”
nietzschiana a partir deste pequeno texto de duas páginas.
Esta solução se apresenta como uma metamorfose. Metamorfose de quê?
Três transformações do espírito é o que ele simboliza. A perspectiva de espírito está
para além daquela de “espírito livre” contida em “Humano demasiado
Humano” (1878). Se naquela obra ele apontava para um homem-livre, como um
“pássaro audaz”, agora este espírito ganha mais três signos, momentos distintos de
uma mesma libertação. Todavia, é necessário ressaltar a enorme distância entre
o “espírito livre”, simbolizado pelo “pássaro audaz”, e a última compleição do
espírito, simbolizada pela criança. Entretanto, o que os separa?
“O que é pesado? Assim pergunta o espírito resistente, e se ajoelha, como
um camelo, e quer ser bem carregado” (NIETZSCHE, 2008, p. 112). Como um
camelo, o primeiro “estádio” do homem busca carregar o peso do conhecimento; de
todos os saberes a “doença histórica” é o mais pesado dos fardos. Por mais forte
que a tipologia do camelo seja, ela é caracterizada pela necessidade de sujeição,
obediência, humildade e humilhação. Resistente ao clima árido do deserto de
niilismo, o “homem-camelo”, embora tenaz, ao encontrar um montante de cargas,
ajoelha para que coloquem o fardo sobre seus ombros. Ele só sabe “carregar”, e
ruminar a “erva daninha do conhecimento” (NIETZSCHE, 2008, p.118). Ele é pesado
e lento, devido ao peso de inúmeros fardos e, no máximo, servirá para ser um
“animal de montaria”.
“Qual é o grande dragão, que o espírito não deseja chamar de senhor e
deus? “Não farás” chama-se o grande dragão. Mas o espírito do leão diz “Eu quero”
(NIETZSCHE, 2008, p. 121). O tipo psicológico do Leão não é um espírito como o do
camelo, ele é um estádio que não aceita ficar de joelhos. Conserva o “lado
selvagem” da vida, seus instintos vitais ainda estão vinculados ao viver, ele é um
guerreiro, uma fera não domesticada, pura vontade capaz de enfrentar o “dragão do
118
niilismo”. Mas o “homem leonino” carece de um sentido. Esta forma diz: não!
Rugindo a plenos pulmões, mas, assim como o camelo, não é capaz de forjar novos
valores.
“Inocência é a criança, e esquecimento; um novo começo, um jogo, uma roda
a girar por si mesma, um primeiro movimento, um sagrado dizer- sim” (NIETZSCHE,
2008, p. 133). Eis o último estádio. O espírito da criança é capaz de criar novos
mundos, brincar com os ritos sagrados, jogar com a linguagem; não carrega mais o
peso dos inúmeros mortos da história, pois é dotada do bálsamo do esquecimento.
Os olhos observam o “mundo sempre novo” repletos de fascínio. Elas não
conhecem os deuses, a história, as razões, no entanto, giram o próprio corpo e são
o próprio eixo; não dependendo de fulcros externos, no eterno retorno do presente.
“O tempo é uma criança que brinca, movendo as pedras do jogo para lá e
para cá; governo de criança” (HERÁCLITO, 2012, p. 52). Nietzsche era um
admirador da obra de Heráclito. Mas por que? Compreender esta proposição é
imprescindível, pois ela institui não só o próprio método genealógico de Nietzsche,
mas recupera a mais importante de todas as experiências: a do “devir inocente e
assombroso como na representação de um “vir-a-ser” único e eterno na total
impermanência de todo o real que não persiste no agir, no “vir-a-ser” e no não-ser”
(NIETZSCHE, 2003, p. 102).
Como a “criança que brinca”, de Heráclito, pois somente neste momento é
possível uma experiência de liberdade, causada pela arte e por uma vida que
impõem os valores ao mundo e transforma toda a sua matéria, inclusive a história,
nas mais altas esferas do espírito e da cultura; assim fizeram os gregos míticos das
obras de Nietzsche, “este famoso e pequeno povo, no auge de sua maior força, um
sentido não histórico” (NIETZSCHE, 2003, p. 93).
É no presente que atribuímos sentido ao passado e ao futuro, e neste
momento-evento o que já passou encontra o que será, e o ser pode então acontecer
livre de amarras metafísicas, em um eterno retorno, em um imortal “sim” à vida,
afirmando-a a cada instante, pois estes instantes constituem o devir, não por ser
fruto do destino, mas por constituir o próprio ser como temporalidade e destinação.
119
Nietzsche propõe o amor fati45 à vida sem que haja nada para negar, a vida
concebida em todos os seus aspectos, dos mais sublimes aos mais grotescos.
Ora, diferentemente do Camelo e do Leão, o estádio da “criança que brinca” é
o único capaz de criar; justamente, porque não conhece o tempo histórico. Leve sem
as pedras sisíficas da história e livre do conhecimento de Mefistófeles, ela é potente
para “fazer de conta”. Nietzsche utiliza três tipologias psicológicas para expressar
diferentes posturas diante da vida.
Como a borboleta que passa por três metamorfoses, o estádio da criança
precisa “atravessar” as outras duas formas. Nietzsche, inimigo do niilismo, não nega
os estádios anteriores, pelo contrário, os afirma. Qual a relevância da Verdade para
a criança? Nenhuma. Toda busca pela Verdade termina por se render à
intencionalidade: a verdade estará daqui em diante a serviço da vontade, não o
contrário.
Neste mundo, só o jogo do artista e da criança tem um vir a ser à
existência e um perecer, um construir e um destruir sem qualquer
imputação moral em inocência eternamente igual. E, assim como
brincam o artista e a criança, assim brinca também o fogo eternamente
ativo, constrói e destrói com inocência – e esse jogo joga-o o Eão
(Aiôn) consigo mesmo (NIETZSCHE, 2005, p. 49; 50).
No trecho supracitado, Nietzsche, inspirado por Heráclito, demonstra que a
criança não é o fim, uma meta, o resultado final de uma teleologia maior; ela é o
próprio devir, o movimento em toda a sua intensidade. A criança não brinca, ela é o
próprio brincar. Portanto, o devir-criança de Nietzsche é a indiferença perante o que
foi, o que é e o que será. É simplesmente a afirmação do devir; isto é, do ser. O
filósofo alemão conclui: “A maturidade de um homem é encontrar de novo a
seriedade que se tinha quando criança, brincando” (NIETZSCHE, 2000, p. 68).
Zaratustra, o profeta “adestrador de camelos”, deve orientar os seus poucos
discípulos para que passem pelas três metamorfoses do espírito; não como um
rebanho, mas como uma estrela que orienta os marinheiros em alto-mar. Inclusive
outra possível tradução para Zoroastro é a “estrela dourada”.
45
Termo latino (amor ao destino) utilizado por Nietzsche como uma postura de aceitação integral da vida, em
seus aspectos mais belos e horrendos, aceitação que só um espírito superior é capaz.
120
“Eu vo-lo digo: é preciso ter um caos dentro de si para dar à luz uma estrela
cintilante” (NIETZSCHE, 2000, p. 93). Zaratustra não tem seguidores, mas
discípulos. Eles não devem só seguir a estrela do mestre, mas ultrapassá-la;
precisam gerar suas próprias estrelas.
“Fazer nascer uma estrela”; não parece uma das tarefas das mais simples. O
presente trabalho já utilizou outras referências da astronomia: A supernova e o
buraco negro. As imagens celestes não foram só analogias, são uma espécie de
propedêutica para o desfecho desta empreitada.
Os pensadores para os quais as estrelas movem-se em órbitas
cíclicas não são os mais profundos: quem olha para dentro de si e
encontra vastos espaços e galáxias sabe quão irregulares são todas
as galáxias; elas conduzem ao caos e ao labirinto da existência.
(NIETZSCHE,2001, p.49)
A supernova é o momento da “morte de uma estrela”, quando uma grande
quantidade de energia é liberada. O Renascimento foi o testemunho histórico da
morte da “estrela divina”. O Buraco negro é o fenômeno que surge após o colapso
estelar; a modernidade foi a versão cultural deste evento, onde “tudo que era sólido
se desmanchava no ar”.
O próximo passo deste trabalho será em direção ao nascimento de novas
estrelas. Isso mesmo, “estrelas”, no plural. A pluralidade desempenhará um papel
basal nesta jornada.
Depois de falar sobre o estádio da criança, Zaratustra profetiza de que "o
homem é uma corda, atada entre o animal e o super-homem – uma corda sobre um
abismo", surge o equilibrista andando por uma corda suspensa e perseguido por um
palhaço que o faz cair, e é assim relatado (NIETZSCHE, 2000, p. 18). Abordaremos
esse trecho enigmático – no melhor estilo bíblico- capaz de ilustrar a situação do
homem sobre o abismo do niilismo, e a aparição de um ardiloso palhaço.
Esse trecho elaborado por Nietzsche expressa o aspecto humorístico de
Zaratustra e revela a ausência da pomposa gravidade dos escritos bíblicos e
filosóficos ocidentais. A ilusividade e a indefinibilidade são recorrentes nas profecias
121
de “assim falou Zaratustra”; a técnica literária de Nietzsche suscita uma massa de
ideias, reflexões, significados simbólicos, associações, todo tipo de soluções e
pensamentos peregrinos. Todo esse efeito serve para mostrar a inutilidade de
pensamentos lógicos e intelectualizados para o dilema da vida. O filósofo alemão
evoca uma imagem e demonstra a situação: um homem fugindo de um incêndio
chegou à beira do abismo. O que fazer? O risco é iminente perante a sensação de
absurdo; um caminho tem de ser encontrado. Longe de um exercício de pessimismo
ou passividade, a “literatura de Nietzsche” faz do problema um contato com a
realidade imediata, o inaudito – esse deus desconhecido – e, quando o impasse é
alcançado, nada lhe resta a fazer.
Nada?! A resposta pode parecer surpreendente, principalmente em um
trabalho que almeja vislumbrar um antídoto para o niilismo, todavia a resposta é
assertiva. Não há resposta lógica; o dilema final deve ser alcançado pela vontade;
por isso o palhaço derruba o equilibrista; o palhaço é fonte de gargalhada, da arte,
de alegria, de temor. Assim o homem “pendurado à beira do abismo” não sabe o que
fazer a seguir.
Ele precisa largar o ponto de apoio, e “girar como uma criança”, utilizando as
próprias forças. Agora ele alcançará a liberdade de espírito, não uma liberdade de
gozo pleno e metafísico, mas a de alguém que não procura mais pontos fixos para
segurar; ele é capaz de, na escuridão do universo, brilhar como uma estrela.
O Caos (vazio) é a medida necessária para a percepção do brilho estelar.
Não há como burlar, evitar ou escapar da sensação do nada; ela deve ser
vivenciada.
Que lugar ainda resta para a arte? Antes de tudo, ela ensinou, através de milênios, a olhar com interesse e prazer à vida, em todas as suas formas, e alargar tanto nosso sentimento que por fim brademos: Como quer que seja a vida é boa. Essa doutrina da arte – sentir prazer na existência e considerar a vida humana uma parte da natureza (NIETZSCHE, 2001, p. 89).
Nietzsche, como um artista, almeja a paisagem de um “céu estrelado”; vasta
escuridão e luzes cintilantes contrastando. O homem, como outrora o seu Deus
Criador, tem podido fazer algumas coisas do nada. Dos eventos passados ele tirou
consolo, fez da morte uma jornada, e do sofrimento extraiu sentido. Cada
122
experiência terreal, cada desventura, cada vício humano virou material para a
composição de uma existência tragicômica. Viu heroísmo na guerra, amor na dor,
riso na tolice, ressureição na morte. Espectadores surgiram para presenciar artistas
tornarem visível o invisível. A música rompeu o silêncio, o tempo foi capturado pela
pintura, as palavras edificaram mundos.
A experiência fundamental profetizada por Nietzsche é a do niilismo e do novo
tipo do homem capaz de se sustentar em meio ao nada abissal. O homem que
perdeu o centro, centro que se tenta, inutilmente, reaver. Efetivamente, não existe
mais homem. Agora, existem apenas seus sintomas.
No Niilismo criativo, devemos experimentar e desfrutar a sorte niilista da
contemporaneidade, tentando abrir novos caminhos para dela sair. Mas antes de
pretendermos superar o niilismo, precisamos captar-lhe a essência, compreender
algo inerente à sua própria história, nas diversas feridas abertas histórico-culturais.
O Niilismo Criativo é como brincadeira de criança; preparo para o advento de
um novo começo. Nietzsche compreendia que ninguém poderia tomar o lugar do
criador. Dentro desta nova concepção, em “O Crepúsculo dos ídolos”, Nietzsche
esboça uma nova proposta que seria o título de um dos textos de sua obra
inacabada: “A Vontade de potência”. O postulado utilizado pelo autor para substituir
e combater o esteticismo da tradição filosófica foi à noção de fisiologia da arte,
claramente mais coerente com a proposta nietzschiana, por incluir o corpo na
gênese da arte e a arte como manifestação corpórea da natureza.
O ator, o mímico, o dançarino, o músico e o poeta lírico, são aparentados em seus instintos e não constituem mais do que um, mas pouco a pouco se especializaram e se separaram e mesmo até a oposição (NIETZSCHE, 2006, p. 93)
A arte nada mais é do que uma descarga emotiva e dionisíaca que atinge o
corpo inteiro e todos os sentidos, para logo após ser hierarquizada pelo impulso
apolíneo.
Neste estado, o homem transforma as coisas até que elas lhe alcancem a perfeição. Esta necessidade de transformar em perfeição é a arte. Mesmo tudo que ele não é, torna-se para o homem prazer tomado em si mesmo, na arte, o homem desfruta de si mesmo com perfeição (NIETZSCHE, 2006, p. 102).
123
Para que o criador execute esta tarefa hercúlea, é necessário que haja
abundância de vida, e ciência da nova oposição entre valores morais e valores
estéticos, superando a velha tradição hegeliana que separava o “belo da arte e o
belo da natureza”. A ousada proposta nietzschiana prega a união entre o natural e o
artístico, o belo e o horrendo, a sensualidade e a pureza, não mais avessa à vida e
às paixões, diferentemente de como a cultura ocidental se posicionou em prol de um
além do mundo, seja sobrenatural ou futuro, que de nada serviram a não ser para
caluniar o melhor de nosso mundo-presente. A fisiologia da arte concebe toda a vida
como aparência, fenômeno, ilusão, mito, efeito ótico em uma inesgotável produção
de sentidos e perspectivas criadas pela vontade de poder artístico, semelhante à
vontade grega, reabilitada pelo mito de Dionísio e Apolo:
Eles consentiam em viver, para isso é necessário ter a coragem de permanecer na superfície, na dobra, na epiderme, adorar a aparência, acreditar nas formas, nos sons, nas palavras, em todo o Olimpo da aparência! Esses gregos eram superficiais -– por profundidade! E não é precisamente a isso que retornamos, nós os temerários do espírito que escalamos o pico mais alto e mais perigoso ao redor e olhamos tudo lá embaixo? E não somos precisamente nisso gregos? Adoradores de formas, de sons, de palavras? É precisamente por isso – artistas (NIETZSCHE, 1986, p. 35).
Sobre este ponto, Nietzsche evoca outra dimensão vital para a formulação de
sua proposta: A necessidade de Vontade de poder46. A partir do momento que a vida
é postulada como obra de arte, consequentemente, admitimos que a vida é: vontade
de potência. Dentro do labirinto, que constitui o pensamento nietzschiano, viver
agora não é somente uma atividade de adaptação às condições externas, a vida, é
antes de tudo uma ação criadora, que privilegia a criação e a intensifica, buscando a
diferença e a multiplicidade, hierarquizando os impulsos anárquicos e forjando
valores.
Efetivamente, todo o livro reconhece apenas um sentido artista e um sentido artista oculto em tudo que acontece - um deus se quisermos, mas com certeza somente um deus artista inteiramente sem moral, sem escrúpulo, que, ao construir como ao destruir, no bem e como na maldade, não quer conhecer indiferentemente senão seu prazer e seu domínio de si, um deus artista que ao criar mundos se livra da
46
A vontade de Poder é uma perspectiva nietzschiana sobre o impulso mais fundamental do ser. Nietzsche não
concebe como uma vontade de viver, pois a vida não pode desejar viver, mas uma vontade de potência, vigor
que inventa o próprio viver. Interpretada de forma equivocada por nazistas, como uma vontade de ter mais
poder. Para o filósofo alemão, a vontade de potência é caracterizada pela aspiração de uma vida plena, aumento
de energia no processo de criação, a força que contrasta com o niilismo.
124
angustia, de sua plenitude, de sua superabundância, dos sofrimentos e das contradições que o oprimem. O mundo é a cada instante a libertação bem-sucedida do deus com a visão eternamente em mudança, eternamente nova, do ser mais sofredor e mais contraditório, do mais rico em oposições e que não sabe livrar-se senão na aparência, toda esta metafísica de artista pode ser chamada de arbitrária, inútil, fantasia – o essencial e que ela já trai um espírito que tomará posição, correndo seus riscos e perigos, contra a interpretação dos significados morais do ser (NIETZSCHE, 2002, p. 122).
A arte é um dizer “sim” à vida, o próprio ato criador. O essencial em sua
doutrina é que com a morte da verdade absoluta, não precisamos mais descobri-la
ou desvendá-la, mas inventá-la por meio de interpretações que criem valores e
construam a realidade de acordo com a sua perspectiva. Desta forma, ao
interpretarmos, estabelecemos uma relação de poder, muito mais próxima da
violência do que da tradicional concepção de elucidação; em termos nietzschianos o
martelar, tornar senhor de algo, apoderar-se e procurar resistências. A força da
interpretação é caracterizada pela capacidade de sua duração e pela capacidade de
reconhecer novas formas de interpretação que suplantem as velhas. Desta forma:
“Pelo menos estamos distanciados da ridícula imodéstia de decretar, a partir de
nosso ângulo, que somente dele pode-se ter perspectivas” (NIETZSCHE, 2002, p.
140).
Mas o que significa o ato de criação despida de sua acepção teológica,
afinal? Deus morreu para o mundo dos homens, o ato de criar não tem a mesma
conotação religiosa de originar algo do nada e finalizá-lo. Segundo a concepção de
Nietzsche, a criação é invenção constante, projeto sempre inacabado, de
interpretações sobre interpretações mais potentes, criar no sentido de sua palavra
irmã: crescer.
Não podemos confundir a atividade de criação com um simples fazer humano,
prático trabalho ou função, pois criar está ligado a uma concepção psicológica e
antropológica; é uma ação ininterrupta, confirmando a vida constantemente, é
experimentar, no sentido de sair do perímetro, burlar a mesmice, pois “Só na criação
há liberdade” (NIETZSCHE, 2001, p. 85).
A criação artística também não é uma ação de um sujeito pensante,
substancial, pois esta concepção, tão cara ao ocidente, nada mais é do que um
125
feitiço da língua, uma exigência, armadilha da gramática, uma tentativa de substituir
Deus pelo conceito de humano, que teria, em uma nova narrativa; a mesma função
de tentar fixar um sentido e sustentar a presença ou a permanência, seja de quem
conhece ou do objeto conhecido. Nietzsche reage a esta interpretação, conhecida
pela fórmula humanista, que apregoa com ar de modéstia e boa vontade a tão
desejada emancipação do sujeito, mas que de forma hipócrita dissimula a sua,
inflada, vontade de potência e de verdade eterna. Contra tal mitologia do sujeito,
Nietzsche afirma que: “Não há um ser por trás do fazer, do atuar, do devir (...) ação é
tudo” (NIETZSCHE, 2001, p. 88).
Quando o vivente cria, ele não busca o horizonte, ele o inventa, pois o mundo
sensível não é dado para ser descoberto, mas é uma constante construção da
realidade em seu devir.
Um artista da própria existência, não é mais sujeito, mas verbo que abandona
a posição contemplativa e inventa a si mesmo, não mais por meio da reflexão,
cálculo ou análise, mas pela valoração e pela criação de valores superiores que
potencializam o existir, e libertam o viver, concretizando o salto que vai do “conhece-
te a ti mesmo” para o imperativo nietzschiano: “Torna-te aquilo que és”
(NIETZSCHE, 2006, p. 43).
Surge a questão: Qual o papel das obras de arte? Qual a função de obras
artísticas em um cenário no qual a própria vida torna-se um evento artístico do ser?
Nietzsche não se posiciona contra as obras de arte, ele efetua uma crítica à primazia
dada às obras em relação ao processo de criação.
Depois da tarefa alquímica de transformar a vida, com suas dores,
desgostos, desapontamentos, imundices e crises em algo de “bárbaro” - dentro das
duas concepções dadas à palavra, fantástico e terrível- às obras de arte, como os
poemas, música, teatro, dança, escultura, entre outras, são apenas apêndices,
frutos do excedente de força. Nietzsche retrata sua concepção no aforismo: “Contra
a arte das obras de arte”.
A arte deve antes de tudo e primeiramente embelezar a vida, portanto, fazer com que nós próprios nos tornemos suportáveis e, se possível, agradáveis uns aos outros: com essa tarefa em vista, ela nos modera e nos refreia, cria formas de trato, impõe aos indivíduos leis do decoro, do asseio, de cortesia, de falar e calar no momento
126
oportuno. A arte deve, além disso, ocultar ou reinterpretar tudo o queé feio, aquele lado penoso, apavorante, repugnante que, a despeito de todo esforço, irrompe sempre de novo, de acordo com o que é próprio à natureza humana: deve proceder desse modo especialmente em vista das paixões e das dores e angústias da alma e, no inevitável e irremediavelmente feio, fazer transparecer o significativo. Depois dessa grande, e mesmo gigantesca tarefa da arte, a assim chamada arte propriamente, a das obras de arte, é um apêndice. Um homem que sente em si um excedente de tais forças para embelezar, esconder e reinterpretar procurará, por último, descarregar-se desse excedente também em obras de arte (...) – Mas, normalmente, começam a arte pelo fim, penduram-se à sua cauda e pensam que a arte das obras de arte é a arte propriamente dita, que a partir dela a vida deve ser melhorada e transformada – tolos de nós! Se começamos a refeição pela sobremesa e degustamos doces e mais doces, o que é de admirar, corrompemos o estômago e mesmo o apetite para a boa, forte, nutritiva refeição a que nos convida à arte!” (NIETZSCHE , 2003, p. 105).
Nietzsche chega a reconhecer em seu trabalho que está mais próximo dos
artistas do que dos filósofos, pois na arte o encantamento da vida perdura no amor
às coisas do mundo sensível, e provoca afirmando a necessidade de voltar à arte
contra o saber, e seu instinto de conhecimento que desencanta o viver ao forjar
ideais como: o Belo, a Verdade, a Justiça, sempre inalcançáveis, em sua esfera
suprassensível; menosprezando a vida que lhes fornece a condição básica para
serem formulados. Compreender tal processo na obra nietzschiana é entender e
sentir que: o impulso estético da arte é o retorno por excelência à vida. Arte no
sentido amplo do termo, como forma de potência, transformação e valoração das
forças libertadoras da vida, contra um saber teórico que tem por vício, o triste hábito
de reduzir o fenômeno do viver a desencantadas explicações mecanicistas que
visam mais do que entender os processos da vida, almejam corrigi-los. Nietzsche
propõe a postura artística como o antídoto para o pensamento desencantado e aloja
a problemática da própria existência da arte como a atual “teodiceia” de nossa
cultura e questiona: “Até onde alcança a arte o âmago do mundo? E há além do
artista outros ímpetos artísticos? Esta questão, como se sabe, foi o meu ponto de
partida: E eu disse “Sim” à segunda questão, e a primeira, o próprio mundo não é
nada senão arte” (NIETZSCHE, 2001, p. 41).
Para o filósofo, sumariamente, a Ciência e Filosofia garantem o nosso
sobreviver, mas somente a arte poderá oferecer dignidade para um viver autêntico,
127
no qual a vida, o sonho e a embriaguez se misturam; ora como verdade, ora como
ilusão em um infinito jogo do devir, como uma brincadeira de criança.
Michelangelo não retratou só “A Criação de Adão”, ele registrou uma
mensagem, um fantasma que ronda e sussurra: vivemos esta grande época do
nada, da ausência de Deus, onde precisamos, como um artista, renomear e
ressignificar nossas vidas; transformando o niilismo passivo que nos assola e
adoece em um niilismo criativo que usa a “tela branca do nada” para pintar e
inventar a vida como obra arte.
128
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS: A Mão de Adão.
E, como a imaginação dá corpo a
Contornos de coisas ignotas, a pena do poeta Lhes dá forma, e ao etéreo nada
Um lugar de morada e um nome.
(SHAKESPEARE, Sonho de uma Noite de Verão, ato V Cena 1).
O dedo indicador de Adão teve que ser pintado novamente em razão de um
dano provocado pelo desabamento ocorrido no século XVI. A mão de Adão precisou
ser restaurada. Como em um mau presságio, a mão que quase tocou o divino caiu
em ruínas. Mas o terremoto não foi a única ameaça enfrentada pela obra de
Michelangelo.
Os debates em torno da obra do pintor florentino continuaram até o papado
seguinte, de Paulo IV, que chegou a cogitar em destruir toda a obra. Com uma
medida emergencial, Michelangelo conseguiu evitar que seu trabalho fosse
desperdiçado: com “retoques” no afresco, o pintor cobriu as “vergonhas” dos
personagens nus.
Biagio da Cesane, o mestre de cerimonias do papa, ao ver a pintura, relatou
ao sumo pontífice seu descontentamento com a “obra indecente”. O temperamental
Michelangelo não aceitou as críticas direcionadas ao seu trabalho. Em um ato
vingativo, retratou Biagio na obra “o Juízo Final” completamente nu, medonho,
obeso, com o corpo envolto por uma serpente, acompanhado de demônios.
A "Criação de Adão" foi retratada na parte central do teto entre 1508 e 1512
medindo 280 cm por 570 cm, a obra é uma espécie de catarse de um conjunto de
passagens do Antigo Testamento retratadas pelo artista, durante o pontificado de
Júlio II (1503-1513).
Ao retornar para Roma em 1508 Michelangelo recebeu uma encomenda do
Papa Júlio II que não lhe agradou, decorar a abóbada da Capela Sistina.
Michelangelo nunca escondeu sua predileção pela escultura. Felizmente para a
129
história da Arte, o mestre não conseguiu desvencilhar-se dos caprichos de Júlio II e
começou a produzir os afrescos da Capela.
No seu interior deparamos com duas grandes obras: "A Criação de Adão" e o
"Juízo Final". Afrescos que certamente encontram-se em todas as seleções de obras
artísticas mais significativas da história das artes. Ambos concebidos pelo florentino
Michelangelo Buonarroti, nascido no ano de 1475. O artista faleceu 89 anos depois
em Roma. Michelangelo participou de um amplo movimento cultural europeu situado
na passagem do Período Medieval para o Período Moderno, denominado
Renascimento Cultural. O movimento postulava o racionalismo, o antropocentrismo
e o realismo a partir da rejeição aos principais fundamentos da cultura medieval,
concebidos de acordo com as conveniências do pensamento cristão - baseado na
autoridade - a saber; o teocentrismo e o dogmatismo.
No início do presente trabalho, comparamos a atual empreitada à obra “Um
Conto de Natal”, de Charles Dickens. Na narrativa três fantasmas rondam e visitam
Ebnezer Srcooge, o protagonista avarento. Cada fantasma representava um período
temporal: passado, presente e futuro. Começamos anunciando o que seria uma
“história de fantasmas para gente grande”. Nossa empreitada procurava os
fantasmas que habitavam a obra “A Criação de Adão” e o que eles poderiam revelar
sobre o contemporâneo.
Seguimos a mesma lógica: o primeiro fantasma, o passado, abordou o luto
pela morte de Deus. O homem tornou-se um “sem-Deus”, sem centro, despencando
pelo infinito. Apesar de imortal, Deus morreu e gerou uma ferida colossal na cultura
ocidental; desde então, o mundo organizado e racional passou por uma
fragmentação. Essa morte gerou inúmeros fantasmas; sucedâneos ávidos pelo trono
vazio, mas que não tiveram força para sustentar seus respectivos mundos.
Warburg, historiador dos fantasmas, reconhece que o Renascimento
desempenhou um papel basal nesse processo; ele emerge em um momento
fronteiriço para história ocidental, como uma supernova, o movimento demarcou a
morte de uma forma de pensar liberando uma grande quantidade de luz sobre a
cultura.
130
Após a supernova do Renascimento, o niilismo agravou o mal-estar na
cultura. A modernidade foi tragada pelo coração do buraco negro; o poder de tração
e nadificação deixou a terra devastada; e, esse, é o nosso fantasma do presente.
Warburg descobriu no Renascimento uma época habitada por imagens
fantasmas, um momento ambivalente, uma grande ferida aberta no tempo-espaço,
neste contexto nasceu o “mensageiro Miguel-Ângelo”, talvez o último anjo de um
Deus morto e um céu esvaziado. O “divino” retratou o momento da criação de Adão,
sem perceber que havia, simultaneamente, registrado a criação à beira do abismo:
restava ao homem: ruir ou criar.
Eis o fantasma do futuro, aquele que nos mostra a arte como um caminho
alternativo para o sagrado. A ferida causada pela morte de Deus é fonte de dor para
contemporâneo, mas também possibilidade de salvação. A “imagem que cura”,
poderia ser o título deste trabalho. Usando a dor como fonte de significação, na
ausência de um criador a priori, precisamos assumir a postura artística. A imagem-
sobrevivente da obra a criação de Adão foi vinculada a criação da vida como obra de
arte. Tacitamente, o ato de criar é a real imagem e semelhança entre o divino e o
“além-do-homem”; a conclusão e o antídoto contra o niilismo.
Para os “novos criadores”, o mundo futuro só será possível a partir da
transvaloração dos antigos valores morais fundamentados em Deus. Portanto, a pré-
condição necessária aos novos criadores será a "morte de Deus" que desencadeará
assim um abismo, um vácuo, um grande vazio (niilismo) para o nascimento de uma
nova concepção civilizatória. Por meio da morte de Deus será possível o
aparecimento do "Além-do-Homem" como referencial de utrapassamento do próprio
homem: “Companheiros, procurem o criador, e não cadáveres; nem, tampouco,
rebanhos e crentes. Participantes na criação, procurem os criadores, que escrevam
novos valores em novas tábuas" (NIETZSCHE, 2000, p. 77).
Todos convivemos com um abismo na vontade. A passividade exemplifica
nossa condição no contemporâneo, poucos de nós somos capazes de repetir o feito
de Michelangelo, que conseguiu criar em meio à verdade niilista aniquiladora.
Todavia, compartilhamos o dilema de ser tudo e não ser nada, em nós mesmos.
131
O niilismo passivo envenenou de morte todos os valores e ideais, esperanças,
e pulsões metafísicas, todas as tentativas de dar algum sentido e segurança para a
vida, em face do abismo de absurdo que todo momento a ronda e ameaça. As
reflexões de Nietzsche empurram-nos até o ponto de nos sentir completamente nus,
perante uma vida igualmente despida de sentido.
Se Deus no Antigo Testamento é “aquele que é”, o homem contemporâneo é
justamente a sua inversão: “aquele que não é”; um nada consciente de si. Ciente da
sua queda no tempo histórico, o homem vive o dilema de ser livre e, ao mesmo
tempo, confinado na prisão da História. Quer buscar salvação, mas não consegue
afirmar valores positivos, afogado em arrazoados metafísicos – o homem não
acredita mais em Deus, mas continua desejando ser imortal.
O niilismo da cultura contemporânea não é só definido pela crise de valores: é
também a constatação de que o agir humano não pode garantir um final feliz. A
subjetividade, caraterística máxima da modernidade, demonstrou ser incapaz de
sustentar o hiato entre realidade e utopia. Sem Deus, nem História, nem progresso,
nem Revolução o contemporâneo se encontra no abismo do eterno presente.
Assim, à beira do abismo ou na terra devastada dos “pós-qualquer coisa”, por
entre as cinzas de um Deus sem face e assombrado por muitos fantasmas, o
homem corre o risco de ser tragado pelo buraco negro do niilismo.
Aqui, estamos. Muitos caminhos percorridos. Aonde chegamos, afinal? A
nossa frente, o desconhecido, aquilo que ainda não compreendemos. A
contemporaneidade não tem coordenadas. A cultura ocidental criou a imagem de um
Deus invisível, onipotente, onisciente, onipresente e eterno, cuja ausência é
insuportável.
Por ter controlado de maneira tão absoluta a imaginação do ocidente ao longo
dos séculos, o Deus-Criador deixou um sentimento inquietante de vazio, quando sua
influência, por fim, declinou. Não foi por acaso que novos movimentos, do marxismo
à cientologia surgiram para substituir a narrativa bíblica da criação. Cada uma das
“novas religiões” apresentava “provas irrefutáveis” da veracidade de suas
afirmações.
132
É bastante quanto as crenças do passado, distante e recente. Mas o que
dizer sobre o futuro? Certamente, ao menos em algumas partes do ocidente, a
religião é vista com enorme suspeita. Atualmente, muitos desconfiam de todas as
crenças. Muitas pessoas preferem passar pela vida sem acreditar em forças
sobrenaturais. Acreditam que podem “se virar” com o consolo da Ciência. Mesmo
em regiões do mundo consideradas profundamente tradicionalistas, como o Oriente
Médio, o mundo está se tornando mais complexo, e as antigas certezas, mais
escorregadias.
É obvio que as inseguranças mudaram bastante desde o dia dos Homens de
Neandertal, que temiam o mau tempo, animais selvagens, o escuro da noite, a
doença, a seca e a falta de caça. No entanto as inseguranças continuam presentes
em nossas vidas, e é pouco provável que desapareçam no futuro. Suspeitamos,
portanto, que novas concepções de mundos serão criadas. A que medos e anseios
elas responderão? Isso dependerá de nós, de quão seguro nos pareça o mundo.
Em uma última e ligeira digressão, (inspirados por Warburg) não podemos
deixar de notar que a imagem fornecida pelo presente trabalho é semelhante a
algumas interpretações da Cabala47, (seria o presente trabalho mais um eco
fantasma?) começando pela ideia de que Deus não expulsou o homem do paraíso,
mas o homem o expulsou da sua vida.
A Criação de Adão de Michelangelo foi realizada em um período de
transgressão. A natureza transgressora do mito adâmico nos impulsiona. As
inúmeras passagens bíblicas, principalmente as que se referem a personagens,
como Adão e Eva, Abraão, Isaque, Jacó e até Lot e suas filhas, são recursos para
ilustrar a recorrente importância da trapaça. Mostrando que a cultura hebraico-cristã
– e até mesmo a ocidental como um todo – foi construída e desenvolveu-se através
desse artificio.
Adão pode ser traduzido como “o barroso”, “terroso”, “terra vermelha” em uma
possível referência a sua criação. Mas é sabido que línguas antigas carregam
inúmeros enigmas, Adão também pode ser “traduzido”, por meio de um trocadilho,
47
Cabala ou Kabbalah significa, literalmente, “receber tradição”. Compilado de tradições alternativas, é um
método esotérico que se originou no judaísmo. Não é uma denominação religiosa em si, mas uma forma de
interpretação religiosa mística, semelhante ao sufismo islâmico, ou a mística cristã.
133
como “trapaça”. Uma trapaça, a criação como trapaça divina. O primeiro homem não
parece um trapaceiro, carece até mesmo de astúcia. De quem é, então, a trapaça?
Deus é, provavelmente, o maior personagem da literatura ocidental. Possui
inúmeros rostos: temperamental no velho testamento, bom pai para cristãos,
abstrato para filósofos, mas trapaceiro48 é um epíteto surpreendente. Talvez sua
maior trapaça tenha sido a criação do homem.
A narrativa Bíblica, que inspirou Michelangelo, possivelmente contém a maior
trapaça da tradição ocidental. Um Deus trapaceiro pode parecer uma imagem
pejorativa, mas possui um grande potencial hermenêutico.
Em sua vasta solidão, Deus cria o mundo e depois o homem, criado à sua
imagem e semelhança. O mesmo Deus repreende o homem quando ele come do
fruto da arvore do conhecimento; e protesta: “agora ele é como um de nós. ”
A mensagem é dúbia: “seja como eu, mas não ouse ser demasiadamente
parecido comigo”. Pouco importa a “veracidade literal da narrativa”, o que importa
nesta altura é a mensagem fantasma que sobreviveu desde o velho testamento,
passando pela criação de Adão de Michelangelo até os dias contemporâneos.
As religiões monoteístas comumente apresentaram certa ambivalência com
as imagens. Inspirados em sua herança hebraica os homens eram perseguidos pelo
velho medo da idolatria. O segundo mandamento condena imagens. As palavras do
Êxodo são mais incisivas (20:4-6) “não farás para ti imagem de escultura, nem
alguma semelhança do que há em cima nos céus, nem embaixo na terra, nem nas
águas debaixo da terra”; mas se fizer...se ousar...se for capaz de criar...se for capaz
de me alcançar e ultrapassar, de fazer coisas maiores do que as feitas por mim...
faça, então, como eu, trapaceie e transgrida. – um mestre é bem pago, quando
superado.
48
É importante esclarecer o sentido do termo no texto: nas mitologias, especialmente as indígenas, o Trapaceiro
se constitui como um “Herói-Civilizador”. Traço recorrente em demiurgos, sua importância está baseada mais na
continuidade do mundo, do que na tarefa de iniciador. Também conhecido como “Transformador”, a astúcia é
sua característica basal. É comumente denominado como o Velho. As trapaças, geralmente, beneficiam a raça
humana. Não raro, sua presença mitiga a solenidade. São exemplos: Prometeu, Loki, Macunaíma, etc.
134
O fantasma de Deus como o ancião dos fins dos dias, do livro de Daniel, que
Willian Blake transformou em “Velha ignorância” ou “velho pai de ninguém nas
alturas” continua a assombrar o homem (BLAKE, 2013, p. 56). Deus também deve
ter um abismo para si, pois, sem um momento negativo no ato da criação, Deus e o
cosmos se fundiriam. A presença avassaladora de Deus, para todos os efeitos, deve
também se retrair, ou não haveria realidade.
Segundo algumas interpretações cabalísticas, esse momento é denominado
como zimzum49 (contração divina), é a catástrofe-criação inicial de um abismo
primordial operada por Deus. Possivelmente, queda, trapaça e sabedoria sejam a
mesma coisa.
A palavra Elohim50, uma das formas como Deus é denominado, também pode
ser traduzida como “barro”. Essa genealogia indica uma herança dos ícones feitos
com argila. Se Deus transcendeu a forma de barro, o homem, semelhante por ter
sido feito do barro, agora precisa criar seu próprio mundo, honrando o criador
anterior. Talvez em algum lugar do cosmos, Deus, ainda, espere pelo homem,
espere que o homem seja como ele: um criador, à sua imagem e semelhança.
Mas voltando para história do “outro divino”, após quatro anos de agonia e
êxtase, Michelangelo concluiu o seu trabalho. No dia 2 de novembro de 1512, o
artista retirou os andaimes que encobriam a perspectiva completa da obra,
permitindo a presença do papa à capela, para que pudesse ver o resultado. A
pintura ilustrava toda a trajetória humana. Trezentos personagens bíblicos
desfilavam pela abóbada da capela. O papa, Júlio II, foi o primeiro a ter a visão de
um esplendor criativo de beleza e genialidade jamais pensadas até então, imagem
que conquistaria milhões de olhares por mais de cinco séculos, atraindo e
fascinando pessoas de todas as culturas.
No teto da Capela Sistina estão nove cenas do Gênesis, dentre elas “A
Criação de Adão” é a mais popular. Um símbolo da influência desse afresco é o
encontro das mãos de Deus e Adão, reproduzido inúmeras vezes na cultura popular.
49
Zimzum ou Tzimtzum refere-se à noção cabalística de contração ou constrição de Deus no momento da
Criação. Sua função é possibilitar a existência independente do mundo. 50
Elohim é um substantivo que se refere a Deus. Usado no plural significa “deuses”. A compreensão é nebulosa,
mas pode ser traduzida como “argila ou barro”. O termo foi, possivelmente, absorvido por uma influência
estrangeira.
135
A mão de Adão foi retratada, por Michelangelo, à imagem e semelhança a da figura
divina. Após os danos causados pelo terremoto, a mão adâmica foi restaurada; mas
e as nossas mãos?
Se a mão de Adão tocará o divino novamente; se os seus braços serão
capazes de sustentar um mundo nadificado; se os seus dedos conseguirão, a partir
do nada, criar novos mundos, como obras de arte, são questões que escapam do
escopo do atual trabalho. Mas uma coisa é certa: quanto ao indignado Biagio da
Cesena, aquele que recriminou a obra do “artista divino”, ele continua queimando no
inferno criado por Michelangelo; até hoje.
136
REFERÊNCIAS
AGOSTINHO, Santo. Confissões. Trad. Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulus, 1995. (Patrística).
A BÍBLIA SAGRADA. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1998.
BLAKE, Willian. Jerusalém. Trad. Saulo Alencastre. São Paulo: Hedra, 2013.
CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo: ensaio sobre o absurdo. Tradução por Urbano Tavares Rodrigues e Ana de Freitas. [Lisboa]: Edição Livros do Brasil, 2010.
CHESTERTON, G. K., Ortodoxia, Mundo Cristão: São Paulo, 2008.
DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a Filosofia. Trad. Ruth Joffly Dias e Edmundo Fernandes Dias. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976.
DIDI – HUBERMAN, Georges. A Imagem Sobrevivente: História da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Editora Contraponto, 2013.
DOSTOIÉVSKI, Fedor, Os Irmãos Karamázov. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.
EAGLETON, Terry. A Morte de Deus na Cultura.Trad. Clovis Marques. São Paulo: Editora Record,2016.
ELIOT, T.S. Poemas. São Paulo: Editora Nova Fronteira, 1981.
GERMAN, Cano. Dicionário Nietzsche: conceptos, obras, influencias y lugares. Biblioteca Nueva, 2012
GIACÓIA JUNIOR, Osvaldo. Nietzsche como Psicólogo. Editora Unisinos, 2006.
GIACÓIA JUNIOR, Osvaldo. Nietzsche. Editora Unisinos, 2006.
GOMBRICH, E.H. A História da Arte. Trad. Álvaro Cabral. 16 ed. Rio de Janeiro: Editora LTC, 2012.
HEIDEGGER, Martin. Introdução à Metafísica. São Paulo: Editora Tempo Brasileiro, 1987.
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Trad. Fausto Castilho. São Paulo: Vozes, 2012
HERÁCLITO, Fragmentos: Contextualizados. Trad. Alexandre Costa. São Paulo: Editora Odysseus, 2012.
HOLDERLIN, F. Ensaios e Conferências. Trad. Maria Teresa Dias Furtado. Petrópolis: Vozes, 2001.
137
JANSON, H. W. Iniciação à História da Arte. Wmf Martins Fontes, 2002.
KIERKEGAARD, Soren. OU-OU, Um Fragmento de Vida. Editora: Relógio D’agua, 2001.
KAUFMAN, Walter. Nietzsche, filósofo, psicólogo e anticristo. Roma: Editora G. C. Sansoni,1974. KLEIN, Robert. Notes Iconographiques. In: KLEIN, R. La forme et l’intelligible.
Paris: Gallimard, 1970.
LEIBNIZ, G.W. Discurso da metafísica e outros textos. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
MILTON, John. Paraiso Perdido. São Paulo: Editora Martin Claret, 2002.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Além do Bem e do Mal. Trad. Carlos Duarte e Anna Duarte: Editora: Martin Claret, 2015.
________. Assim falava Zarathustra. Trad. Ciro Mioranza. 3. ed. São Paulo: Editora Escala, 2000.
________. Crepúsculo dos ídolos: ou como filosofar com um martelo. Trad. Paulo Cesar de Souza. 2. ed. São Paulo: Editora Escala, 2004.
________. A Gaia ciência. Trad. Paulo César de Souza. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
________. A genealogia da moral. Trad. Carlos Braga. 2. ed. São Paulo: Escala, 2006
________. Humano, demasiado humano. Trad. Paulo César de Souza. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
________. O Anticristo. Trad. Paulo Cesar. 2 ed. São Paulo: Companhia da Letras, 2003
________. O Nascimento da Tragédia. Trad. Paulo César de Souza. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
________. A Vontade de Potência. Trad. Paulo César de Souza. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
PLATÂO, O Banquete, ou, Do amor – Trad. José Cavalcante de Souza. Rio de Janeiro:
DIFEL, 2008.
PLATÂO, A República. Trad. Enrico Corvisieri. São Paulo: Nova Cultural, 2004.
PICASSO, Pablo. La Revue de France - Volume 11 - Página 117, Marcel Prévost,
Joseph Bédier, Raymond Recouly - La Renaissance du livre, 1931.
138
SAFRANSKI, Rudiger. Nietzsche: biografia de uma tragédia. Trad. Lya Luft. São Paulo: Geração Editorial, 2001. SCHOPENHAUER. Arthur, O Mundo como Vontade e Representação. São Paulo: Contraponto. 2001.
SHAKESPEARE, William. Shakespeare de A a Z, livro das citações. Trad. e org. Sergio Faraco. São Paulo: Editora L & PM Pocket, 1998. WEINBERG, Steven. Gravitation and Cosmology. Principles and applications of
the General Theory of Relativity. New York: Wiley,1972.
WARBURG, Aby. História de Fantasmas para Gente Grande: Escritos, esboços e
conferencias. Rio de Janeiro: Editora Companhia Das Letras,2010
WARBURG, Aby. A Renovação da Antiguidade Pagã. Rio de Janeiro: Editora
Contraponto, 2013.
WATTS, Alan. O Espírito do Zen: Um Caminho Para a Vida, o trabalho e a arte no
oriente. Trad. Murillo Nunes de Azevedo. São Paulo: Editora L&PM,2008.
WEBER, Max. A Ciência e Política: Duas Vocações. Trad. Leônidas Hegenberg.
São Paulo: Editora Cultrix,1995.
VASARI, Giorgio. “Vidas dos Mais Eminentes Pintores, Escultores, e Arquitetos” Editora: Martins Fontes,2011.