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Cinco Grandes Figuras do Feminismo Revol ucionário Christine Rufino Debati Por quê tratar do feminismo revolucionário entre tantos outros assuntos mais clássicos a respeito do pensamento socialista e libertário? Uma resposta simples seria: para vencer um silêncio histórico que não se desmente, mesmo hoje. Significativamente, a charge que inspirou o cartaz deste curso não comportava mulher alguma, na sua versão européia original dos anos 1970.Tomamos a liberdade de acrescentar, junto com pensadores latino- americanos e africanos, ausentes também, figuras femininas entre as mais conhecidas: Clara Zetkin, Rosa Luxemburgo, Frida Kahlo e Emma Goldman. Mais uma vez, comprova-se que há muito a desbravar no pensamento socialista e libertário em toda a sua riqueza e multiplicidade. Pois a faceta feminista revolucionária - entre outras - ainda está calada.' 1 Professora no Departamento de História da UFPE. Agradeço a Isabelle Velay Rufino pela revisão do presente texto. 2 A capa do Dicionário do pensamento marxista, editado por Tom Bottomore (Rio de Janeiro: Zahar [1983]1988*),mostra os retratos de grandes pensadores marxistas entre os quais só há uma mulher: Rosa Luxemburgo. O pequeno artigo "feminismo" está espremido ("religião", "raça" e "nacionalismo" merecem o dobro de espaço) entre "fases do capitalismo" e "fetichismo". e conta apenas cinco referências bibliográficas, todas muito recentes. Curiosamente, a autora do artigo não cita sequer uma obra das feministas históricas evocadas no texto, Clara Zetkin e Alexandra Kollontai. Da mesma forma, os doze volumes da História do Marxismo, organizados com esmero por Eric Hobsbawm, não tratam detalhadamente do feminismo revolucionário, nem antigo, nem recente: os tomos XI e XII, intitulados O marxismo hoje, evocam, no entanto, o "pós-marxismo", o "neo-leninismo" etc. e tratam da cultura, da ciência, do Terceiro Mundo, da nova esquerda, de 68, Marcuse, Sartre e Althusser, do estruturalismo e do anti- marxismo. 127

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  • Cinco Grandes Figuras do FeminismoRevol ucionrio

    Christine Rufino Debati

    Por qu tratar do feminismo revolucionrio entre tantosoutros assuntos mais clssicos a respeito do pensamento socialistae libertrio?

    Uma resposta simples seria: para vencer um silnciohistrico que no se desmente, mesmo hoje. Significativamente, acharge que inspirou o cartaz deste curso no comportava mulheralguma, na sua verso europia original dos anos 1970.Tomamosa liberdade de acrescentar, junto com pensadores latino-americanos e africanos, ausentes tambm, figuras femininas entreas mais conhecidas: Clara Zetkin, Rosa Luxemburgo, Frida Kahlo eEmma Goldman. Mais uma vez, comprova-se que h muito adesbravar no pensamento socialista e libertrio em toda a suariqueza e multiplicidade. Pois a faceta feminista revolucionria -entre outras - ainda est calada.'

    1 Professora no Departamento de Histria da UFPE. Agradeo a Isabelle VelayRufino pela reviso do presente texto.2 A capa do Dicionrio do pensamento marxista, editado por Tom Bottomore (Rio deJaneiro: Zahar [1983]1988*),mostra os retratos de grandes pensadores marxistasentre os quais s h uma mulher: Rosa Luxemburgo. O pequeno artigo"feminismo" est espremido ("religio", "raa" e "nacionalismo" merecem odobro de espao) entre "fases do capitalismo" e "fetichismo". e conta apenascinco referncias bibliogrficas, todas muito recentes. Curiosamente, a autora doartigo no cita sequer uma obra das feministas histricas evocadas no texto, ClaraZetkin e Alexandra Kollontai. Da mesma forma, os doze volumes da Histria doMarxismo, organizados com esmero por Eric Hobsbawm, no tratamdetalhadamente do feminismo revolucionrio, nem antigo, nem recente: os tomosXI e XII, intitulados O marxismo hoje, evocam, no entanto, o "ps-marxismo", o"neo-leninismo" etc. e tratam da cultura, da cincia, do Terceiro Mundo, da novaesquerda, de 68, Marcuse, Sartre e Althusser, do estruturalismo e do anti-marxismo.

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  • Tentar-se- aqui mostrar a riqueza das correntes feministasr volucionrias incitando a reflexo e debates - alis, sempreatuais e no ultrapassados como tantos outros. Correntesfeministas revolucionrias, no plural, pois h tendncias muitodiferentes que agrupamos sob este ttulo, Para fixar melhor empoucas pginas tamanha temtica, foram escolhidas algumasgrandes feministas e revolucionrias que escreveram, como FloraTristan, Clara Zetkin, Emma Goldman, Qiu Jin e AlexandraKollontai. Sua contribuio aos movimentos revolucionrios tomanifesta que ela evidencia o quanto o silncio acima mencionado injusto e empobrecedor. A escolha destes nomes no d conta dogrande nmero de mulheres (e homens) que trabalharam nos eescreveram para os movimentos revolucionrios dos XIX e XXsculos com o propsito de formular reivindicaes para a metadefeminina da populao.

    Cada uma de nossas convidadas foi expoente de umatendncia marcante dentre desses movimentos: socialistas ditosutpicos; marxistas da social-democracia alem; anarquistas;republicanos chineses e bolcheviques, respectivamente. Algunsdados sobre suas vidas podem conferir uma colorao maishumana a esta evocao das obras e principais idias que essasfeministas revolucionrias defenderam quanto condio dasmulheres, particularmente das trabalhadoras.

    Definies

    O que so os movimentos feministas revolucionrios? Estaquesto de definio importe para cemir o assunto e distingu-lode outras correntes ditas feministas burguesas, embora taldistino no seja sempre bvia, na medida em que houve dilogo,s vezes conflituoso, entre elas. Da mesma forma, a temticaacompanha de maneira singular a histria dos movimentos sociaisrevolucionrios mais amplos: Revolues, movimento operrio,movimentos de libertao nacional.

    A linhagem feminista revolucionria conhece tambm umaligao estreita com a condio concreta das mulheres, pois elaavana tanto propsitos de transformao total da sociedade,como reivindicaes concretas para elas, sobretudo astrabalhadoras. Portanto, acompanha, nas suas temticas como nas

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    suas tticas, a condio social, econmica, poltica e cultural dasmulheres que mobiliza. O feminismo revolucionrio no visaapenas a subverso de uma ordem que se costuma chamar hoje emdia de patriarcal, mas a sociedade de classes capitalista que cultivaa discriminao contra as mulheres como uma das suas estratgiasde dominao e explorao.

    Com o propsito de incitao leitura, uma amostragemdas temticas principais deste movimento feminista revolucionriopode ser proposta luz dos escritos de vrias de suas expoentesmais destacadas. Suas obras pontuam a paisagem do feminismorevolucionrio ao longo dos sculos XIX e Xx. Elas no sanimaram alas dinmicas dos movimentos revolucionrios comoserviram de referencial para o movimento feminista mais recente,dos anos 1960em diante. Por ser um feixe de tendncias mltiplas,presente em muitos pases, as figuras emblemticas evocadas aquido apenas uma pequena idia de um universo muito vasto,ressaltando os enfoques privilegiados por cada tendncia citada,seu mbito organizativo, seus mtodos de trabalho.

    Pois, tratar do feminismo conduz ao estudo de gruposmuito diversos na sua composio social, bem como nos seuspropsitos e tipos de ao. De modo geral, os movimentosfeministas lutaram por objetivos especficos que dizem respeito smulheres: particularmente contra leis, costumes e preconceitos quevisavam limitar, canalizar e controlar estreitamente seu papelsocial. Por vrios sculos, suas ricas e variadas trajetriasemergiram, alm dos esteretipos, numa grande diversidade:objetivos mais ou menos radicais - por exemplo, pedir o direito devotar vs transformar toda a sociedade em termos de classe -formas de ao e de organizao que iam dos clubes bemcomportados at comandos de ao direta, s vezes violenta,investidas coletivas no mbito pblico, at iniciativas pessoais nomais ntimo como 'a luta pela contracepo. As personagensevocadas aqui tm histrias de vida que ilustram a profundidade ecomplexidade dos desafios assim como a coragem que eraindispensvel para sequer pensar em se mobilizar para esta causa.

    Por que houve movimentos feministas revolucionrios?Afinal de contas, os movimentos sociais e polticos que agitaram e

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  • ll"< nsformaram a sociedade nos dois ltimos sculos pretendiam,nas suas alas mais radicais, reparar todas as injustias e promovero bem comum, a igualdade e liberdade para todos .... e todas? Ser?/ Infelizmente, no foi o caso. Durante a Revoluo Francesa,foi negado s mulheres at mesmo o direito de reunio; naComuna de Paris, foi-lhes recusado o direito de votar; durante aRevoluo russa, voltou-se rapidamente a valorizar a famlia nosentido mais patriarcal; e as mulheres de minha gerao tiveramque formar seus prprios grupos para contribuir ao movimentopoltico maior e garantir avanos prprios, culturais e legais. Eminmeras instncias histricas, as mulheres acabaram por sermandadas" de volta cozinha" assim que os homens acharem queseus objetivos - Repblica, independncia, revoluo - haviam sidoatingidos ... com a valiosa contribuio de suas companheiras. Oupior, como foi e ainda na Arglia e no Ir, por exemplo. /'

    Ento, poder-se-ia dizer que as associaes feministasdevem sua existncia incompetncia, ou melhor, estreiteza deviso dos grandes movimentos polticos. S elas foram capazes delevar em considerao - de maneiras s vezes contraditrias -elementos da explorao e opresso de humanos por outroshumanos que foram descartados pelas correntes majoritrias(masculinas, sobretudo): as relaes hierrquicas dentro da famlia- que se refletiam tambm na disparidade nos salrios como omostrou Marx; questes ntimas como a liberdade sexual e acontracepo; at temticas extremamente diversificadas, namedida em que abrangiam e abrangem todos os mbitos da vida.Direitos econmicos, polticos bsicos, direito educao, formao e ascenso profissional, ao salrio igual para trabalhoigual, disposio do prprio corpo, afirmao cultural. Pois,quando comearam os movimentos feministas, na virada dosculo XVIII para XIX, as mulheres eram privadas destes direitosnos pases ocidentais.

    A questo seguinte diz respeito maneira de abordar essatemtica. Que embasamento terico poderia apoiar essas questes?Uma parte das feministas enveredou pelo essencialismo. Por outrolado, as socialistas, anarquistas e comunistas optaram pela via queimone de Beauvoir resumiu de forma to cabal: No se nasce

    I O

    mulher, toma-se mulher. Portanto, o problema e sua soluoencontram-se na sociedade, cujas regras, por serem h istri as,podem ser mudadas no futuro tambm./Ou seja, pr iso re lIS, ra naturalizao das regras sociais, sobretudo das desigualdades ('excluses/

    Mas, mesmo assim, tanto na teoria quanto na pr( Ii ninsistem em ressurgir questes j centenrias sobre priorida H,articulaes, imbricaes destas grandes questes: classe, ra (,gnero. O que deve ser prioritrio? Como devem se poscionar 08movimentos frente aos embates, aos conflitos que envolvem, qua 'sempre, esses diversos aspectos ou dimenses, seno na legislao,mas com certeza nas prticas sociais?

    Os feminismos na histria

    difcil saber onde comear. Tradicionalmente, Olympe deGouges e Mary Wollstonecraft, quase contemporneas na viradado sculo XVIII para XIX, so consideradas como as iniciadoras.Importante lembrar que elas marcam o princpio de umareconquista, aps sculos que tiveram a soberba de seautoproclamar das "Luzes" - contra a chamada "Idade dasTrevas" - enquanto as mulheres perdiam em queda livre direitoaps direito, liberdade aps liberdade, para atingir um nadirhistrico no sculo XIX. Pois, no final da Idade Mdia iniciou-seum processo de rebaixamento da condio feminina que semanifestava desde uma diminuio da mdia dos salrios dasartess, at a privao cada vez mais acentuada de direitoseconmicos, polticos e civis.

    As idias destas pioneiras foram formalizadas em escritoshoje famosos que reivindicavam uma igualdade de direitos.Embora as mulheres tivessem participado ativamente, porexemplo, da Revoluo Francesa, as tendncias consideradas maisradicais, entre as quais as feministas em volta a Olympe deGouges, foram rechaadas pelas autoridades revolucionrias. Aprpria morreu, como muitos outros revolucionrios autnticos,na guilhotina. Mais conservadora em termos de classe, MaryWollstonecraft conheceu a m sorte de tantas parturientes: morreuao dar luz.

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  • Fruto das idias oriundas das Luzes, este feminismoevoluiu, adotando contornos passveis de ser classificadospoliticamente, embora no se possa simplesmente reduzi-los aqualquer uma das correntes s quais as feministas se associaram,em todo o espectro poltico.

    Assim, a corrente liberal do sculo XIX foi particularmentepoderosa no mundo anglosaxnico. Nos USA por exemplo, elenasceu, por assim dizer, da luta abolicionista, ou melhor dizer porconta dos entraves que as abolicionistas encontraram - enquantomulheres - para conduzir seu trabalho em prol da libertao dosescravos. A experincia como oradoras e organizadoras que SusanB.Anthony e Elizabeth C. Stanton, entre outras, acumularam nestaluta serviu os propsitos do feminismo que, por uma evoluohistrica especfica, tendeu a concentrar-se na questo do voto. Osfeminismos liberais norte-americano e ingls expressaram-se,portanto, em boa parte, no sufragismo, inclusive nas suas formasmais radicais de ao. Mas esta corrente esteve presente em muitosoutros pases, inclusive na China.

    Paralelamente outras tendncias do feminismo associarama luta de classes aos objetivos mais especificamente femininos. SeFlora Tristan fora uma pioneira bastante solitria, Clara Zektin,entre os social-democratas alemes, e Emma Goldman e suascompanheiras anarquistas so um bom exemplo desta correntetraduzida em lutas coletivas. Embora com opes organizativasdiversas, elas no podiam conceber a luta das mulheres comodistinta daquela da classe trabalhadora, cujametade era feminina.

    O universo de organizaes que, alm dos prpriospartidos e sindicatos, tambm tocavam no movimento feministade uma forma ou outra era bem maior. Muitas vezes, elas sonegligenciadas embora contribuissem para um ambiente em quese debatiam calorosamente questes diversas. Muitas mulheresparticipavam delas de forma destacada. Essas "outras frentes"comportavam: a luta pelo planejamento familiar, com MargaretSanger; Josephine Butler e a 'social purity' contra a explorao dasprostitutas e as medidas repressoras das autoridades; osmovimentos de temperana e a cruzada proibicionista queonseguiu impedir o uso de lcool nos USA por alguns anos

    (exemplo que abastece os debates atuais sobre a questo dasdrogas). A luta pela educao era outra frente importante, que sedesdobrava em inmeros segmentos. Tambm os movimentoscontra a segregao racial, em seguida ao abolicionismo tc.;Ainda outro campo importante era a ao no mbito social:muitainiciativas assistencialistas femininas; a filantropia; os movimentpela Paz, que associavam tambm a reivindicao de direitos paraas mulheres, e o feminismo confessional inclusive por parte decertos setores do protestantismo.

    As feministas de todas as tendncias acreditavam numaobra civilizadora da qual seriam os agentes. Elas estavamconvencidas de atuar no sentido do progresso. E afirmavam queum mundo melhor s poderia nascer com a participao dasmulheres em todas as reas.

    O contexto

    Como o lembrou o Professor Dnis Bemardes, o contextoem que surgem esses pensamentos muito peculiar. Um perodomuito intenso e muito denso em termos polticos e sociais, em quese destacam a Revoluo Francesa, a Revoluo Industrial, lutaspela independncia nacional (nos Estados Unidos, mas tambm naAmrica Central - Haiti - e latina) e as exploses revolucionriasda metade do sculo em muitos pases europeus, que sacudiram apoca. O pensamento feminista revolucionrio acompanhava,portanto, eventos maiores. Em cada grande tendncia poltica,algum ia sugerir uma forma feminista de agir, isto , umamaneira de levar em considerao a 'questo da mulher' - como sedizia ento - incorporando-a ao elenco dos assuntos que essesmovimentos queriam enfrentar.

    No caso dos feminismos revolucionrios, isto implicavanum posicionamento em termos de classe. Pois, a condiooperria, no capitalismo de fase dita selvagem, atingia de maneiraextremamente brutal as mulheres. De acordo com o recenseamentofeito na Frana em 1851, a maioria dos proletrios na indstriatxtil, a Grande Coletora de Capital, eram proletrias. Com ascrianas, as operrias constituam uma grande massa detrabalhadores cuja contratao a salrios mais baixos do que osdos homens adultos, fazia presso sobre o conjunto da

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