cidadania e meio ambiente

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e artigos técnicos, sempre discutindocidadania e meio ambiente, de forma

transversal e analítica.

A revista Cidadania & Meio Ambienteé uma publicação da Câmara de CulturaRua São José, 90, 11o andar, grupo1106Centro – 20.010-020 – Rio de Janeiro/RJTelefax (55-21) 2432-8961 • 2487-4128

[email protected]

Editado e impresso no Brasil.

A Revista Cidadania & Meio Ambiente não seresponsabiliza pelos conceitos e opiniões emitidos

em matérias e artigos assinados. É proibida areprodução dos artigos publicados nesta edição sem

a devida solicitação por carta ou via e-mail aosrespectivos autores.

Caros Amigos,

A ausência de políticas públicas capazes de equacionar desenvolvi-mento sustentável e preservações ambiental e humana tem garantidoa nós, brasileiros, tanto no plano interno quanto no internacional, apecha de “irresponsáveis e incapazes” de gerir a diversidade de bio-mas – em especial o complexo acervo concentrado na Floresta Ama-zônica. Como a irresponsabilidade está a um passo da tutela, nada aestranhar que surjam – como agora, após a ruidosa demissão da em-blemática Marina Silva do Ministério do Meio Ambiente – vozes aclamar contra a soberania do Brasil sobre a Amazônia.

Claro que a Amazônia é nossa. Mas não podemos negar que patrocina-mos sua destruição ao aceitarmos os irreversíveis impactos ambientaisprogramados, a expansão desmesurada das monoculturas pelo agrone-gócio, a predação dos recursos naturais renováveis e não-renováveis, oaniquilamento das comunidades indígenas e a fixação não-planejadade colonos em busca de sobrevivência. Ademais, ao nos rendermos aomodelo de desenvolvimento insustentável gerador de fome, de iniqüi-dades e de desintegração do sentimento de nacionalidade.

É tempo de articularmos projetos regionais – na Amazônia e emtodo o território nacional – que integrem as populações locais aações construtivas, participativas e consolidadoras do exercício dacidadania plena e da responsabilidade coletiva. Sem inclusão soci-al, a pura e simples repressão, como vimos experimentando desdeos tempos coloniais, é passaporte para o pernicioso e individualista‘salve-se-quem-puder’.

Ou construímos uma sociedade solidária alicerçada em projetos deamplitude nacional ou manteremos a histórica relação de maus tra-tos e de desprezo pelo meio ambiente e por nós mesmos, comoespelham as observações do naturalista Johannes Pohl ao descrevero comportamento do brasileiro – colonizador e colonizado – doséculo 19. E para exorcizarmos tal comportamento, esta Cidadania& Meio Ambiente oferece elementos de reflexão sobre a situaçãoatual do Brasil e do mundo.

Hélio Carneiro

Editor

E D I T O R I A L

Colaboraram nesta edição

Marijane Vieira LisboaMiguel A. Altieri

Nelson Batista TembraMarcos Sá Correa

Informe Ensp/Agência Fiocruz de NotíciasStéphane FoucartJoão SuassunaLeonardo Boff

Flávia DouradoRogério Grasseto Teixeira da Cunha

Diretora

Editor

Subeditor

Projeto Gráfico

Revisão

Regina [email protected]

Hélio [email protected]

Henrique [email protected]

Lucia H. [email protected]

Vanise Macedo

Page 3: Cidadania e meio ambiente

Nº 15 – 2008

Capa: Earth Observatory Nasa - Amazon

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Transgênicos no governo Lula: liberdade para contaminarAs medidas provisórias visando a legalização do plantio clandestino de soja transgênica,a promulgação de uma nova lei de biossegurança e a política de estímulo ao agronegócioexportador representam retrocesso em nossa legislação ambiental. Por Marijane Vieira Lisboa

Agricultura sustentável: soberania alimentarSomente desafiando o controle que as multinacionais exercem sobre o sistema de produção dealimentos e o modelo agroexportador patrocinado pelos governos neoliberais é que se poderádeter pobreza, fome, migração e degradação ambiental. Por Miguel A. Altieri

Amazônia: o combate ao desmatamentoAlém do esgotamento da Mata Atlântica e das florestas da Ásia, a devastação da coberturavegetal da Amazônia também é conseqüência do desemprego de milhares de famílias deagricultores que para lá migram em busca de sobrevivência. Por Nelson B. Tembra

Amazônia: 17% já desmatadaO sistema de monitoramento DETER, do Inpe, revela que apenas em abril último a AmazôniaLegal sofreu desmatamento em 1.123 km2. Dos 4 milhões de km2 de floresta amazônica, cercade 700 mil km2 já foram derrubados, situação que só tende a se agravar.

A Mata Atlântica virou souvenirEm seus últimos 97,5 mil km2, incluindo os retalhos de 100 hectares, pequenos demais parater futuro, a Mata Atlântica continua sendo desmatada em SC, MG, GO e BA, embora suarelevância venha alavancando a economia do setor hoteleiro. Por Marcos Sá Correa

Saúde pública e mudanças climáticasMarcelo Firpo e Bruno Milanez discorrem acerca da saúde pública ante os efeitos das mudançasclimáticas, do mercado de carbono e do modelo de desenvolvimento econômico que geradesigualdades entre países ricos e pobres. Por Informe Ensp/Agência Fiocruz de Notícias

CO2: a Terra já ultrapassou o limiar do perigo?O limiar do perigo de CO2 estaria fixado num nível muito elevado, conforme indicam novosestudos de climatologistas, para quem o nível tolerável deveria ser de 350ppm e não de 550.Se assim fosse, ele já teria sido atingido essa situação crítica em 1990. Por Stéphane Foucart

Sobradinho: reservatório estratégico e desconhecidoSem essa represa seria muito difícil equacionar os problemas de geração de energia elétrica noNordeste. Também fundamental para o projeto de transposição, a represa vem passando porsituações volumétricas críticas. Por João Suassuna

A fome sempre existiu, mas hoje resulta do consumoA fome é uma constante em todas as sociedades históricas. Mas hoje, suas dimensões vergo-nhosas e cruéis revelam uma humanidade que perdeu a compaixão e a piedade. Erradicar afome configura-se como imperativos humanístico, ético, social e ambiental. Por Leonardo Boff

Raposa Serra do Sol – divisor de águas na política indigenistaDemarcar as terras indígenas sem incorporar espaços indispensáveis aos povos que nelasvivem significa condenar os indivíduos e as identidades socioculturais à extinção – fato queconfigura etnocídio. Por Flávia Dourado

Nada mudou desde PohlRelato de um naturalista do século 19 revela nossa histórica relação de maus tratos e dedesprezo pelo meio ambiente. Por Rogério Grasseto Teixeira da Cunha

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Entre as diversas decepções que o governo Lula reservou ao seu eleitorado, a política ambiental foi uma das mais notáveis. Capitaneado por umafigura emblemática como Marina Silva, fortemente apoiada por organizações ambientalistas e

pelos movimentos sociais como o MST e a CUT, tudo indicava que o Ministério do Meio Ambienteassumiria um papel destacado no conjunto das políticas públicas dessa administração

Surpreendentemente, não só a atuação do Ministério do Meio Ambiente (MMA) foi medíocree apagada, como em algumas questões o governo Lula significou um real retrocesso frente aogoverno FHC. Uma dessas foi o fato de ter retirado da gaveta o projeto de transposição do rioSão Francisco que, no governo FHC contou com a forte oposição do Secretário Executivo doMinistro Sarney Filho, Dr. José Carlos de Oliveira, mais tarde, Ministro do Meio Ambiente.

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TRANSGÊNICOS NO GOVERNO LULA:

CONTAMINAR LIBERDADE PARA

As Medidas Provisórias

visando “legalizar”

o plantio clandestino de

soja transgênica,

a promulgação

de uma nova lei

de biossegurança,

e a política de estímulo

ao agronegócio

exportador representam

inaceitável retrocesso em

nossa legislação

ambiental.

por Marijane Vieira Lisboa

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Cidadania&MeioAmbiente 5

Mas o retrocesso mais notável foi na áreade biossegurança, ao se editarem Medi-das Provisórias para “legalizar” o plantioclandestino de soja transgênica e promul-gar uma nova lei de biossegurança com ointuito explícito de retirar do IBAMA seuspoderes constitucionais para avaliar es-tudos de impacto ambiental e concederlicença ambiental. Em seu tempo de Mi-nistro, Sarney Filho refutara energicamen-te propostas nesse sentido, pois consi-derava que tal medida significaria um re-trocesso inaceitável para à legislação am-biental do país.

O objetivo desse artigo, portanto, é anali-sar as razões pelas quais tal tour-de-forceaconteceu e dele extrair algumas conclu-sões a respeito da cultura política do PT edo governo Lula. Comecemos por umarecapitulação dos fatos relativos à ques-tão da política sobre transgênicos no Bra-sil, até o momento da posse de Lula apósa sua primeira eleição.

TRANSGÊNICOS:

POLÍTICA NADA TRANSPARENTE

As problemáticas da biotecnologia e dabiossegurança já vinham merecendo aten-ção de setores do governo federal desdeo começo dos anos 1990. Em 1995 foi apro-vada uma lei de biossegurança – de nº.8974 –, que estabeleceu normas para ouso de técnicas de engenharia genética epara a liberação no meio ambiente de or-ganismos geneticamente modificados.

Apesar de diversos problemas técnicos ede passagens confusas, a lei mantinha asatribuições constitucionais do IBAMA e daAgência Nacional de Vigilância Sanitária(ANVISA), para concederem licenciamen-to ambiental e registros de saúde. No en-tanto, o fato de a comissão constituída paraavaliar a biossegurança de transgênicos –composta por funcionários de governo ecientistas – estar sob a égide do Ministérioda Ciência e Tecnologia mostrava que a pre-ocupação central era de ordem tecnológica,e não de biossegurança. E isso se refletiano fato de que a maioria dos cientistas es-colhidos pelos sucessivos ministros de Ci-ência e Tecnologia era especialistas em bio-tecnologia, e pouco ou nada entendia debiossegurança ambiental e de saúde.

O investimento do país em pesquisa comtransgênicos datava do começo da décadade 1990, quando a EMBRAPA assinara pro-

tocolos de cooperação com a empresa Mon-santo para desenvolver plantas transgêni-cas, em particular variedades de soja, queseriam mais tarde as variedades de soja trans-gênica Roundup Ready, liberadas no Brasil.Tais espécies tinham sido desenvolvidas pelaEMBRAPA, enquanto a técnica da transge-nia pertencia e continuava sendo segredoindustrial da Monsanto, segundo regia o con-trato entre as duas empresas. Mas foi so-mente em 1998, quando a Comissão TécnicaNacional de Biossegurança (CTN-Bio) deci-diu liberar o cultivo e o consumo da sojatransgênica no Brasil, que a questão dostransgênicos veio atrair a atenção do públi-co. O Instituto de Defesa do Consumidor(IDEC) e o Greenpeace entraram na justiçacom uma ação cautelar. Obtiveram liminar,mais tarde seguida de sentença judicial, proi-bindo a Monsanto e a União de liberarem oplantio e o consumo de soja transgênica nopaís antes que fossem feitos os necessáriosestudos de impacto ambiental e de seguran-ça dos alimentos.

AS BATALHAS JURÍDICAS

A batalha jurídica que daí se seguiu aindanão terminou. Mantida a cautelar peloTRF, em 2001, em 2002 a Monsanto e aUnião obtêm uma vitória no TRF, cuja re-latora lhes concede razão, mas cujo votonão será unânime, permitindo que o IDECe a Greenpeace recorram da decisão.

Enquanto se desenrolava essa batalha jurí-dica, outra luta acontecia no Conselho Na-

cional de Meio Ambiente (CONAMA), ór-gão máximo do Ministério do Meio Ambi-ente para políticas ambientais. Ali se trata-va de elaborar uma resolução que regula-mentasse a forma como se faria o licencia-mento ambiental de transgênicos. Formara-se um Grupo de Trabalho aberto, com am-pla participação de representantes de di-versos ministérios, empresas e organizaçõesnão-governamentais, cujos trabalhos de-senvolveram-se com lentidão. Razão: os re-presentantes do Ministério da Ciência e Tec-nologia, do Ministério da Agricultura e daIndústria e Comércio, bem como os repre-sentantes das empresas de biotecnologia,fazerem questão de retirarem do IBAMA eda ANVISA as atribuições para a avaliaçãode impacto no meio ambiente e na saúde.

Era freqüente os representantes dos di-versos ministérios serem chamados à CasaCivil de modo a pressionarem o Ministé-rio do Meio Ambiente a apoiar as posi-ções pró-transgênicos nas questões po-lêmicas do Grupo de Trabalho. Um dosinquestionáveis méritos do mandato doex-ministro Sarney Filho foi o de ter finca-do pé na defesa das atribuições doIBAMA em realizar o licenciamento ambi-ental. A resolução 305, aprovada já nomandato do ministro José Carlos Carva-lho, que sucedeu Sarney Filho nos últi-mos seis meses do governo FHC, mante-ve, portanto, a prerrogativa do IBAMApara o licenciamento, fornecendo uma re-gulamentação detalhada de como deveri-am ser realizados os estudos de impactoambiental para transgênicos.

COMPROMISSO

DE CAMPANHA ESQUECIDO

O fato de o programa político da campa-nha Lula à presidência insistir explicita-mente que não se permitiria a liberação detransgênicos caso não se pudesse afas-tar a preocupação com possíveis danosao meio ambiente e à saúde, e o apoioamplo que sua candidatura recebeu dosmovimentos sociais e das organizaçõesambientalistas, levavam a supor que aquestão dos transgênicos mereceria umtratamento transparente e conscienciosopor parte do Executivo. Esperava-se queem vez da insuperável luta interna entreos Ministérios do Meio Ambiente e osdemais, o governo Lula fosse capaz deadotar uma posição de governo, clara ecoerente com seus princípios e compro-missos assumidos.

A nova lei de

Biossegurança

retira do IBAMA

seus poderes

constitucionais

para avaliar

estudos de impacto

ambiental e

conceder licença

ambiental.”

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Ainda antes de Lula receber a faixa presi-dencial na Praça dos Três Poderes, em Bra-sília, um fato insólito chamou a atençãodas organizações que integravam a RedeBrasil Livre de Transgênicos. Vários de-putados do PT haviam aceitado um convi-te da Monsanto para visitarem sua sedeno Mississipi e também as plantações detransgênicos na Índia e na África do Sul.Embora mais tarde e convenientemente oconvite da Monsanto tenha se transfor-mado em convite da Embaixada dos Esta-dos Unidos, o resultado do tour foi a mu-dança de opinião de vários deputados pe-tistas; eles passaram a defender aberta-mente os transgênicos, como o DeputadoPaulo Pimenta, do Rio Grande do Sul. Comisso, houve a conseqüente racha da ban-cada petista em torno do tema.

O TORNIQUETE DA PRESSÃO POLÍTICA

Os fatos que se seguiram permitem enten-der o tal tour como a manobra inicial deuma estratégia montada para justificar umadrástica mudança de posição do PT e dogoverno Lula na questão dos transgêni-cos. A criação de uma facção pró-transgê-nicos no PT punha o Presidente na cômo-da posição de respeitar o debate interno,da mesma maneira como urgia a seus mi-nistros chegarem a uma posição conjunta.Isso, matematicamente, significava a su-jeição do Ministério do Meio Ambiente deMarina Silva, e do Ministério de Desen-volvimento Agrário, de Miguel Rossetto,à maioria dos ministérios pró-transgênicos:o de Ciência e Tecnologia, o da Agricultu-ra e, por fim o da Indústria e Comércio.

Aliados iniciais como o Ministério da Saú-de e da Justiça discretamente afastaram-

se do debate, deixando Marina Silva iso-lada. A Casa Civil, embora adotando pos-tura aparentemente neutra, tomava todasas medidas para que o torniquete das pres-sões políticas dobrasse a resistência doMinistério do Meio Ambiente. Essa estra-tégia manifestou-se claramente na publi-cação de uma Medida Provisória que veioa permitir a colheita e o consumo da sojatransgênica plantada ilegalmente no RioGrande do Sul.

Todos os esforços para buscar uma solu-ção que não legalizasse a posteriori o plan-tio ilegal frustraram-se frente aos argumen-tos políticos do Presidente da Repúblicae do então Ministro da Casa Civil, JoséDirceu. A alegação foi não se declararguerra aos agricultores sublevados do RioGrande do Sul e a seu Governador – doPMDB –, partido cortejado para ingressarna base de sustentação do governo.

Basta recordar um chocante episódio:enquanto a Ministra Marina Silva nãopôde participar das negociações finaisem torno daquela Medida Provisória porse encontrar em visita ao Xingu, a CasaCivil enviou um jatinho a Porto Alegrepara buscar o Governador peemedebis-ta. Nos acontecimentos que se segui-ram, como a outra Medida Provisóriaautorizando que os agricultores plantemsoja transgênica ou, mais tarde, a nego-ciação e o encaminhamento pelo Execu-tivo de um projeto de lei para uma novalei de biossegurança, a rigor, as mesmasmanobras repetiram-se.

Procura-se sempre poupar o Presidente daRepública e a Ministra do Meio Ambiente

do constrangimento de um embate públi-co, ao qual forçosamente deveria se se-guir a renúncia da Ministra ao cargo. Emvez disso, provoca-se uma situação emque se torna politicamente justificável erecomendável – em nome da democraciainterna e da governabilidade – que Lulaceda às tendências majoritárias, tantodentro do seu ministério como no PT e nabase parlamentar do governo.

Para tal, é importante cuidar da composi-ção dos grupos de trabalho internos, demodo que a facção pró-transgênicos te-nha sempre a maioria. É importante tam-bém afastar aqueles funcionários dos mi-nistérios que resolvam levar a sério asquestões de biossegurança e não os in-teresses partidários, para o quê basta umareclamação junto aos ministros em ques-tão. Fundamental, sobretudo, é garantirque a relatoria das Medidas Provisórias eos projetos de lei caiam em mãos de de-putados e de senadores pró-transgêni-cos do PT: vendo-se dessa forma dividi-do, o partido não tem condições de fe-char posição de bancada.

Finalmente, enquanto os ministros daAgricultura e da Ciência e Tecnologiasaem a público criticando os ambienta-listas “fanáticos e obscurantistas”, Ma-rina Silva fecha-se em um silêncio obse-quioso. Talvez por acreditar que seucomportamento leal a Lula seja-lhe de al-gum valor, Marina Silva contenta-se eminserir nos textos negociados, dispositi-vos que não serão jamais obedecidos –como foi o caso da necessidade de rotu-lagem de alimentos transgênicos, na pri-meira Medida Provisória.

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A administração Lula foi incapaz de adotar uma posição

de governo clara e coerente com os princípios e compromissos

assumidos durante a campanha presidencial.”

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A defesa

de uma agricultura

ambientalmente

sustentável está

estreitamente

relacionada

à preservação da

biodiversidade,

à busca da

soberania alimentar,

à proteção da

agricultura familiar,

à geração de renda

para populações

rurais e a uma

política de reforma

agrária

conseqüente.

TRANSGÊNICOS

E UNIDADES DE CONSERVAÇÃO

A recente aprovação pelo Congresso de umaMedida Provisória que regulamentava a plan-tação de transgênicos nas proximidades deUnidades de Conservação, na qual a ban-cada ruralista inseriu duas emendas, seguiuo mesmo roteiro bem conhecido. Uma per-mitia a comercialização de algodão, ilegal-mente plantado; a outra reduzia o quorumda CTN-Bio, necessário à liberação comer-cial de cultivos transgênicos.

Primeiramente, a Ministra do Meio Ambienteenviou ao Executivo um texto original, com apromessa de que o presidente Lula vetariatodas as emendas oriundas da bancada rura-lista, caso estas fossem aprovadas pela duascasas. Como era de se esperar, a bancada rura-lista introduziu as duas emendas acima co-mentadas e a relatoria – que surpresa! – foidada ao Deputado do PT, Paulo Pimenta, ogrande defensor dos transgênicos. Levada àvotação, a bancada do PT rachou, embora olíder do partido na Câmara tenha se manifes-tado contra a emenda. Rachada, e sem que ogoverno fizesse quaisquer esforços para ob-ter apoio de outros partidos – as emendasforam aprovadas.

No Senado, a farsa repetiu-se. O SenadorDelcídio Amaral, muito sensível ao agro-negócio em seu estado do Mato Grossodo Sul, foi designado como relator e mani-festou-se favorável a apoiar as emendas.A liderança de governo instruiu os parti-dos da base aliada a votarem da mesma

Essa resumida descrição das estratégiasadotadas pelo governo Lula para aprovara liberação de transgênicos – sem ter que,publicamente, renegar suas posições an-teriores nem incompatibilizar-se frontal-mente com os movimentos sociais de suabase de apoio ou expor sua Ministra doMeio Ambiente à humilhação política –,permite-nos agora analisar as razões pe-las quais o PT teve de empreender tama-nha mudança de rumos.

MMA: SEM FORÇA FRENTE AO PT

E À BANCADA RURALISTA

Em primeiro lugar, é evidente que o go-verno Lula, mais ainda do que o de seuantecessor, FHC, enfrenta dificuldadespara reunir e garantir uma ampla base deapoio tanto partidária, quanto social. En-quanto o apoio da bancada ruralista a FHCera um fato inconteste, o governo Lulanecessita cortejá-la a todo tempo, semnunca alcançar a graça de conquistá-ladefinitivamente.

Extremamente forte na Câmara e no Con-gresso – com representantes distribuí-dos entre o oscilante PMDB e todos osdemais partidos de oposição –, a banca-da ruralista soube utilizar-se dessa mai-or vulnerabilidade política do governoLula para cobrar, a preço de ouro, seuapoio, senão mesmo sua neutralidade.Um exemplo extraordinário desse rega-teio foi o fato de o Governador eleito doMato Grosso, Blairo Maggi, em troca deseu apoio a Lula no 2ª turno da eleição”

forma. Assim, a Senadora Ideli Sal-vati, líder do partido no Senado, sen-tiu-se “forçada” a liberar a bancadapara votar como quisesse, o que re-sultou na folgada aprovação do textocom as emendas.

Uma carta assinada por maisde 80 entidades e por movimen-tos da sociedade civil, e porquase 80 deputados federais esete senadores, pediu então aopresidente da República quevetasse os dois artigos emen-dados. No dia 22 de março,Lula sancionou a lei, vetandoapenas o artigo que legalizavao plantio ilegal de algodão. Oquorum necessário para apro-var a introdução de um trans-gênico no meio ambiente redu-ziu-se a 14 conselheiros.

presidencial, ter negociado “a li-beração de algodão e dos milhostransgênicos”, como se tais libe-rações fossem prerrogativas dapresidência da República e nãoatribuições da CTNBio, especi-almente constituída para tal.

O ex-Ministro do Meio Ambien-te do governo FHC, Sarney Fi-lho, encontrava-se em uma situ-ação muito mais confortável, poisnão pertencendo ao partido doPresidente e sim ao PFL e sendofilho do Senador Sarney, doPMDB, desfrutava de uma liber-dade e também de uma conside-ração muito maior por parte dapresidência. Foram muitas asocasiões nas quais Sarney Filhorecorreu e obteve de FHC apoiopara às suas políticas.foto:yoshiko314

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Talvez o mais marcante desses episódiostenha sido o momento em que uma comis-são mista de deputados e senadores apro-vou uma Medida Provisória que reformavao Código Florestal e reduzia a extensão dematas nativas a serem preservadas em pro-priedades particulares. A comissão mista eracomposta majoritariamente por ruralistas deamplo espectro partidário, o que fez comque a o mecanismo legal fosse aprovadocom apenas dois votos contrários – o doDeputado Federal Fernando Gabeira e o daentão Senadora Marina Silva.

Sarney Filho, que fora achincalhado pelosparlamentares em visita que lhes fizera nasemana anterior, pediu e obteve o apoio deFHC: logo após a votação, o líder do gover-no, o Deputado Federal Artur Virgílio, comu-nicou a seus correligionários e aos membrosdos partidos aliados que o Presidente nãoenviaria a MP ao Congresso enquanto elanão fosse modificada. No governo Lula, nãosó as posições defendidas por Marina Silvaem assuntos ambientais vêm sendo sistema-ticamente desprezadas em favor daquelas ad-vogadas por ministros de outras pastas, comosão freqüentes os ataques públicos à suapessoa e a seu ministério, sem que o Presi-dente erga a voz em sua defesa.

Em suma, é perfeitamente lógico afirmar quea principal razão pela qual o governo Lulalegalizou o cultivo comercial da soja planta-da ilegalmente no país foi, estritamente, ooportunismo político. Com o mesmo intuitoforam dispensados os devidos estudos ci-entíficos sobre biossegurança e, mais tar-de, modificada sua legislação de biossegu-rança, de modo a facilitar liberações futurasde outros cultivos. É bem provável que amaioria dos deputados, senadores e minis-tros que teve de se manifestar ou votar arespeito não tenha despendido mais quealguns minutos para tentar entender a ques-tão. De fato, em assuntos considerados se-cundários, o colégio de líderes negocia esuas bancadas seguem a orientação doslíderes, sem questioná-la.

POLÍTICA AGRÁRIA:

DECEPÇÃO E PERPLEXIDADE

Para os movimentos sociais que constituema base do governo Lula, no entanto, foi ex-tremamente decepcionante o fato de o PTconsiderar esse tema tão irrelevante a pontode negociá-lo com a bancada ruralista, com oPMDB e com outros setores políticos comomoeda de troca para outros assuntos.

A defesa de uma agricultura ambientalmen-te sustentável está estreitamente relacio-nada à preservação da biodiversidade, àbusca da soberania alimentar, à proteçãoda agricultura familiar, à geração de rendapara populações rurais e a uma política deReforma Agrária consequente. Soma-se aesse complexo de temas interligados a vi-são das seguranças dos alimentos e ali-mentar como direitos humanos, defendi-dos por entidades de consumidores e pormovimentos ligados à área da saúde.

Assim, a temática dos transgênicos tem acapacidade de aglutinar segmentos dife-renciados da Sociedade Civil, o que sepode constatar facilmente no amplo es-pectro de movimentos e de organizaçõesreunidas na Rede Brasil Livre de Trans-gênicos. Tratando-se de um governo for-temente comprometido com bandeiraspolíticas como a luta contra a fome, a Re-forma Agrária e o combate à miséria, erade se esperar que tal administração per-cebesse a extrema importância de promo-ver uma agricultura sustentável, ecológi-ca e socialmente justa, apoiada nos mo-vimentos de pequenos agricultores.

Os primeiros meses do governo Lula dei-xaram claro, no entanto, que suas prefe-rências e preocupações no que tangem àsua política agrária voltavam-se antes detudo para o agronegócio de exportação:soja, carne, açúcar. Isso não deve ser atri-buído apenas à necessidade de comporsua base de sustentação parlamentar econquistar apoio político de setores in-fluentes da sociedade, mas correspondetambém à concepção de desenvolvimen-to predominante nesse governo.

Embora o PT e o programa político dacandidatura Lula afirmassem estaremcomprometidos com políticas de sobe-rania alimentar, com o desenvolvimentosustentável e com a Reforma Agrária, taisquestões nunca foram encaradas comoelementos centrais, estruturantes de umnovo paradigma de sociedade. Eram vis-tos, no máximo, como políticas subsidiá-rias a serem adotadas na medida em quenão prejudicassem aquilo que se consi-dera como essencial ao desenvolvimen-to: o crescimento econômico.

E, tratando-se de crescimento econômico,o PT abraçava o que havia de mais tradici-onal no país: o estímulo ao agronegócioexportador. Isso significava ignorar os im-pactos ambientais negativos de uma agri-cultura baseada na monocultura, no usointensivo de agrotóxicos, fertilizantes eágua, o que leva forçosamente ao empo-brecimento da biodiversidade, à perda dafertilidade dos solos e ao esgotamento dosrecursos hídricos. Também significa optarpor uma agricultura cuja mecanização cres-cente conduz a um aumento do desempre-go rural, arruína o pequeno agricultor e,conseqüentemente, fomenta a expansão dafronteira agrícola em terras do Cerrado eda Floresta Amazônica.

A INCONSISTÊNCIA DO DISCURSO

DESENVOLVIMENTISTA

Nada mais ilustrativo dessa concepçãodesenvolvimentista do PT do que o infe-liz improviso do Presidente da Repúblicaao visitar Blairo Maggi, o Governador so-jeiro de Mato Grosso, e declarar que “ín-dios, quilombolas e a legislação ambien-tal eram os maiores obstáculos ao desen-volvimento do país”. O caráter de impro-viso da fala presidencial é testemunha desua sinceridade. É assim que pensa a am-pla maioria dos quadros do PT. E quantomais alta a posição na hierarquia, mais

O governo Lula

necessita cortejar

a bancada ruralista

o tempo todo,

sem nunca alcançar

a graça de

conquistá-la

definitivamente.”

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Cidadania&MeioAmbiente 9

esses quadros interiorizaram o discurso ea prática “desenvolvimentista”, identifi-cando desenvolvimento social com cres-cimento econômico. Em nome deste, jus-tifica-se sacrificar o meio ambiente e a jus-tiça social em prol dos ganhos econômi-cos de curto prazo para uma reduzida eli-te de brasileiros.

Dos propósitos socialistas do passadorestam “as políticas compensatórias”, emque o Estado tenta corrigir os piores ex-cessos advindos desse crescimento eco-nômico logicamente excludente do pontode vista social. O mérito de Lula é deixarescapar o que pensa, enquanto a lideran-ça do PT aprendeu a esconder de suasbases o que realmente pensava. Não po-dendo sustentar-se sem o apoio dos mo-vimentos sociais, o PT e o governo Lula,portanto, sustentam um discurso que nãocorresponde à sua prática; assim, tentamesquivar-se às críticas que se avolumamem sua base social e garantindo que aslideranças de entidades e os movimentossociais continuem prestando-lhes apoio.É óbvio que não se trata de um fenômenorecente essa mudança de mentalidade noseio da elite dirigente do PT, de que é pro-va o desligamento de figuras históricasdesse partido já em meados dos anos 1990.

Portanto, tanto o governo de FHC quantoo de Lula são muito próximos no que tan-ge à concepção do que seja “desenvolvi-mento”: crescimento do PIB, balança co-mercial positiva graças às exportações,política de favorecimento de produtos depouco valor agregado e externalização doscustos ambientais e sociais, como é o casoda soja, da carne, do minério de ferro e deoutros. Visa-se angariar divisas em curtoprazo; investimento público em infra-es-trutura como vetor de crescimento econô-mico e financiamento público do investi-mento privado; crenças essas em que asbenesses do crescimento econômico aca-bam por mitigar a miséria social, gerandoemprego, renda e receita para o Estado.

Não importa que a realidade desminta es-sas crenças, nem que a desigualdade socialpermaneça ou sofra ridículas reduções, oudesmatamento da Floresta Amazônica sigaimpávido – ainda que em ritmo menor, tal-vez devido ao momentâneo despencar dopreço da soja no mercado externo. Tambémnão interessa que o Cerrado esteja se tor-nando um mar de soja, que terras agricultá-

veis tornem-se imprestáveis, que novasvagas de trabalhadores sem terra venham aengrossar as fileiras do MST, que a misérianas cidades aumente e, junto a ela, as maze-las da criminalidade e da insegurança.

A força das ideologias está em sua expli-cação simples e confortante da realida-de, e não em sua lógica ou veracidade. OPT que chegou ao poder já havia sidoganho para essa concepção desenvol-vimentista, que substituiu seus ideais so-cialistas insustentáveis após a queda doMuro de Berlim.

O lamentável desempenho do governoLula, na questão dos transgênicos, bemcomo em outros temas ligados à questãoambiental e de política agrícola deve-seantes de tudo à sua vulnerabilidade polí-tica, a qual lhe exigiu fazer grandes con-

cessões à bancada ruralista e a partidosda base aliada, como o PMDB. E o quetentei argumentar aqui é que tais conces-sões não contrariam nem os princípiosnem as concepções de desenvolvimentodos seus quadros dirigentes. Opõem-seapenas àqueles dos movimentos popula-res que constituíam a sua base social maisaguerrida e que ainda lhe garantiram umsegundo mandato.

Até quando o governo Lula continuaráenganando suas bases, e estas se deixa-rão enganar, é uma questão a ser elucida-da nos próximos anos. De definitivo paraa História fica o fato de que foi no “go-verno popular” de Lula e no ministério deMarina Silva que a resistência da Socie-dade Civil foi vencida; assim, fez-se a von-tade do agronegócio e das multinacionaisda biotecnologia, autorizando o cultivo eo consumo de soja transgênica por meiode Medidas Provisórias, e “flexibilizando-se” a legislação de biossegurança, já porsi bastante permissiva, de modo a permi-tir que outros transgênicos (como o mi-lho e o algodão) venham a ser liberadosem um futuro próximo.

Com isso, o governo Lula desmontou todoum arcabouço legal em biossegurança quefora sendo paulatinamente construído naúltima década pelo governo e por movi-mentos sociais.Formou-se um perigosoprecedente para que novas tecnologiaspossam igualmente vir a se furtarem dolicenciamento ambiental e da adoção doPrincípio da Precaução e, com isso, da vi-gilância e do controle social. ■

Marijane Vieira Lisboa - Doutora emciências sociais, professora da Fac. deCiências Sociais da PUC-SP e ex-Secretáriade Qualidade Ambiental do Ministério doMeio Ambiente entre 2003 e 2004.E-mail: [email protected] artigo foi originalmente publicado pelaRevista PUCviva, ano 8, nº 29, jan./março 2007

As posições

defendidas por

Marina Silva em

assuntos ambientais

vêm sendo

sistematicamente

desprezadas

em favor das

advogadas

por ministros de

outras pastas.”

foto: Marcelo Casal Jr/ ABr

Page 10: Cidadania e meio ambiente

10

SEGURANÇAALIM

ENTAR

Somente desafiando

o controle que as

multinacionais exercem

sobre o sistema de

produção de alimentos

e o modelo

agroexportador

patrocinado pelos

governos neoliberais

poder-se-á deter a

espiral de pobreza,

fome, migração rural e

degradação ambiental.

AGRICULTURA INDUSTRIAL:

MODELO NÃO-SUSTENTÁVEL

A agricultura mundial está numa encruzi-lhada. A economia global impõe deman-das conflitantes sobre os 1.500 milhõesde hectares cultivados. Não apenas seexige que a terra agricultável produza ali-mento suficiente para uma população emcrescimento, como também que forneçabiocombustíveis, e que o faça de modoambientalmente correto, preservando a bi-odiversidade, diminuindo a emissão degases de efeito estufa e ao mesmo tempogarantindo aos agricultores uma ativida-de economicamente viável.

Essas pressões desencadeiam uma criseno sistema de produção de alimento emescala planetária sem precedentes: a cri-se já se manifesta nos protestos contra aescassez de alimentos em muitos paísesda Ásia e da África. Afinal, 33 deles estãoà mercê da instabilidade social devido àcarência e ao preço dos alimentos. Tal cri-

SOBERANIA ALIMENTAR

AGRICULTURA SUSTENTÁVEL:

se, que ameaça a segurança alimentar demilhões de indivíduos, resulta diretamen-te de um modelo de agricultura industrial,que não só depende perigosamente doshidrocarbonetos como também se conver-teu numa das maiores forças entrópicasda biosfera. As crescentes pressões sobrea área agrícola em retração estão solapan-do a capacidade de a natureza suprir asdemandas de alimentos, de fibras e de ener-gia para a humanidade. E o impasse decor-re do fato de o contingente humano de-pender dos serviços ecológicos (ciclos deágua, agentes polinizadores, solos férteis,clima local benevolente etc.) que a agricul-tura intensiva continuamente empurra paraalém de seus limites.

Antes mesmo do final da primeira décadado século 21, a humanidade conscientiza-se de que o modelo industrial capitalistade agricultura dependente do petróleo jánão é capaz de garantir o suprimento dealimentos. O desafio imediato de nossa ge-

Por Miguel A. Altieri

foto

: Luc

Leg

ay

Page 11: Cidadania e meio ambiente

Cidadania&MeioAmbiente 11

Miguel A. Altieri – Professor da Universityof California, Berkeley e da Sociedad Científi-ca Latinoamericana de Agroecología (SOCLA).Artigo publicado originalmente emwww.cadtm.org e nos sítios EcoPortal.net,http://ecoportal.net/content/view/full/78323 eEcoDebate (12 Maio 2008).

ração é iniciar a transição nos sistemas deprodução de alimentos para que eles nãodependam mais do petróleo.

SEGURANÇA ALIMENTAR

Os preços inflacionários do petróleo ine-vitavelmente incrementam os custos deprodução; os preços dos alimentos che-garam a tal ponto que um dólar hoje com-pra 30% menos produtos que há um ano.Na Nigéria, uma pessoa gasta 73% de seusrendimentos em alimentos; no Vietnã,65%; e na Indonésia, 50%. Essa situaçãoagudiza-se rapidamente na medida em quea terra agrícola é destinada à produção debiocombustíveis e que as alterações cli-máticas reduzem a produtividade agríco-la via secas ou inundações. Expandir ocontingente de terras agricultáveis aos bi-ocombustíveis ou aos transgênicos – quejá alcançam mais de 120 milhões de hecta-res – exacerbará os impactos ecológicosdas monoculturas, que continuamentedegradam os ciclos da natureza.

Além disso, a agricultura industrial atual-mente contribui com mais de 1/3 das emis-sões globais dos gases de efeito estufa, emespecial o metano e os óxidos nitrosos.Continuar com esse processo degradantepromovido pelo sistema econômico neoli-beral não é uma opção viável nem ecologi-camente honesta, pois não reflete as exter-nalidades ambientais. O desafio imediato denossa geração é iniciar a transição nos sis-temas de produção de alimentos para queeles não dependam mais do petróleo

AGRICULTURA SUSTENTÁVEL

E SOBERANIA ALIMENTAR

Necessitamos de um paradigma alternati-vo de desenvolvimento agrícola que pro-picie formas de agricultura ecológica, sus-tentável e socialmente justa. Redesenharo sistema de produção de alimentos a for-mas mais equitativas e viáveis para osagricultores e consumidores requererámudanças radicais nas forças políticas eeconômicas que determinam o que pro-duzir, como, onde e para quem. O livrecomércio sem controle social é o princi-pal mecanismo que desaloja os agriculto-res de suas terras e vem a ser o principalobstáculo à garantia do desenvolvimen-to e da segurança alimentar regionais. So-mente desafiando o controle que as em-presas multinacionais exercem sobre o sis-tema de produção de alimentos e o mode-lo agro-exportador patrocinado pelos go-

vernos neoliberais é que se poderá detera espiral de pobreza, fome, migração rurale degradação ambiental.

O conceito de soberania alimentar – comoo promovido pelo movimento mundial depequenos agricultores, a Via Campesina –constitui a única alternativa viável ao sis-tema alimentar em colapso, totalmente fa-lho ao postular que o comércio livre inter-nacional seria a chave para solucionar oproblema alimentar em escala mundial. Asoberania alimentar enfatiza os circuitoslocais de produção-consumo e as açõesorganizadas para se ter aceso à terra, àágua, à agrobiodiversidade etc., recursos-chave que as comunidades rurais devemcontrolar para poderem produzir alimentoscom métodos agroecológicos.

AGRICULTORES E CONSUMIDORES:

ALIANÇA ESTRATÉGICA

Não há dúvida de que uma aliança entre agri-cultores e consumidores é de importânciaestratégica. Ao mesmo tempo em que os con-sumidores devem interferir na cadeia alimen-tar ao consumirem menos proteína animal,também precisam se conscientizar de que suaqualidade de vida está intimamente associa-da ao tipo de agricultura praticada nos cintu-rões verdes que circundam povoados e ci-dades. E isso não ocorre apenas pelo tipo epela qualidade dos cultivos ali produzidos,mas igualmente pelos serviços ambientais,como a qualidade da água, o microclima e aconservação da biodiversidade etc. que essaagricultura multifuncional gera.

Porém, a multifuncionalidade somente trans-parece quando a paisagem é dominada porcentenas de pequenas propriedades biodi-versas que, como demonstram os estudos,podem produzir entre duas a dez vezes maispor unidade de área que as propriedadesem escala industrial. Nos Estados Unidos,a agricultura sustentável – em sua maioriagarantida por pequenos e por médios agri-cultores – gera uma produção total maiorque os monocultivos extensivos, ainda sen-do capaz de reduzir a erosão e conservandomais a biodiversidade. As comunidades noentorno das pequenas propriedades apre-sentam menos problemas sociais (alcoolis-mo, dependência de drogas, violência fami-liar, etc.) e exibem economias mais fortes queaquelas cercadas por propriedades grandese mecanizadas.

No estado de São Paulo, as cidades cerca-das por grandes plantações de cana-de-açú-car são mais quentes que as rodeadas porpropriedades agrícolas médias e diversifica-das. Portanto, deveria ser óbvio para um con-sumidor urbano que comer constitui a um sótempo um ato ecológico e político. Ao com-prar alimentos em mercados locais ou em fei-ras de agricultores vota-se por um modelode agricultura adequada à era pós-petróleo.Por outro lado, ao comprar em grandes ca-deias de supermercados perpetua-se o mo-delo agrícola não-sustentável.

A escala e a urgência do desafio que a hu-manidade enfrenta são sem precedentes, eas providências a serem tomadas são deordens ambiental e social, politicamenteexeqüíveis. Erradicar a pobreza e a fomemundiais exige um investimento anual de,aproximadamente, 50 bilhões de dólares –uma migalha se comparado ao orçamentomilitar mundial que abocanha mais de umtrilhão de dólares por ano. A velocidade comque se deve implementar a mudança deveser urgente. No entanto, será que existe von-tade política para transformar radical e ve-lozmente o sistema nutricional, antes que afome e a insegurança alimentar alcancemproporções planetárias e irreversíveis? ■

Um dólar compra

hoje 30% menos

alimentos do que

há um ano.”

foto:Gustavo Ferri

Page 12: Cidadania e meio ambiente

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O aumento do desmatamento naregião amazônica resultou,inicialmente, da exaustão das

florestas da Mata Atlântica e do esgota-mento progressivo das florestas tropicaisda Ásia. Além disso, o desequilíbrio es-trutural nas outras regiões do país contri-buiu e continua corroborando, direta ouindiretamente, para que milhares de famíli-as de agricultores e de desempregados mi-grem para o Pará e outros estados da Ama-zônia. Piorando a situação dessas pesso-as, há que se mencionari ainda a implan-tação de grandes empreendimentos – aber-tura de estradas, construção de usinas hi-drelétricas, implantação de grandes proje-tos de mineração e de assentamento e areforma agrária do governo.

Não podemos confundir os impactos pri-mários – qualquer que seja o tipo de ex-ploração – com os secundários da colo-nização espontânea e o desmatamentototal associados à agricultura de corte eà queima. Esses são problemas secularesde origem socioeconômica, agravados

com a inoperância e, até mesmo, pela omis-são do Estado com relação à exigência decompensações no processo de licencia-mento ambiental de grandes empreendi-mentos.

AS CAUSAS DO DESMATAMENTO

As causas do desmatamento são conhe-cidas há bastante tempo. Em 1990, porexemplo, a revista Forest publicou um ar-tigo emblemático de Christopher Uhl etalii, sob o título Impactos Sociais, Econô-mico e Ecológico da Exploração Seletivade Madeiras, numa Região de Fronteirana Amazônia Oriental: O caso de Tailân-dia (PA). O estudo cita o exemplo da cons-trução da Rodovia PA-150, aberta na dé-cada de 70, asfaltada em 1986, com objeti-vo de servir de ligação entre a cidade por-tuária de Belém e a rica província mineraldo sul do Pará.

Para compreender a importância da ma-deira na vida de quem fugiu da miséria,atraído pela esperança de melhores dias,Uhl afirma que é necessário entender o

contexto em que as pessoas são inseri-das. Urge considerar as dessas corres-pondentes à cesta básica e às necessida-des sociais, incluindo roupa, calçado,saúde, transporte etc.

Estimemos que o custo anual mínimo dacesta básica requerida a uma família de oitopessoas – tamanho médio na região – sejade R$3.500,00. Essa estimativa não inclui oconsumo de arroz e de farinha de mandiocaproduzidos na roça para a alimentação daprópria família. Considerando gastos soci-ais correspondentes a 40% do valor da ces-ta básica, ou seja, R$1.400,00, a despesaanual de uma família de oito pessoas ficariaem torno de R$ 4.900,00.

Cada hectare recém-desbravado de mataproduz, em média, no sistema primitivoconvencional, R$1.400,00 de produtos agrí-colas de subsistência – milho, arroz, feijãoe mandioca – antes de ser abandonado.Isso significa que uma família, depois devender as árvores de tamanho e de valorcomercial por preço de banana, precisa

por Nelson Batista Tembra

Além doesgotamentoda Mata Atlânticae das florestastropicais da Ásia,a devastação dacobertura vegetalda Amazôniatambémé conseqüênciado desemprego demilhares de famíliasde agricultoresque para lá migramem busca desobrevivência.

foto: ©Greenpeace/Rodrigo Baleia

AMAZÔNIA

DESMATAMENTOO COMBATE AO

CR

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Page 13: Cidadania e meio ambiente

Cidadania&MeioAmbiente 13

Frente à inevitável ocupação e à exploração econômica da Amazônia, no últi-mo 8 de maio foi lançado o PAS. Trata-se de uma política de desenvolvimentoregional baseada no uso sustentável dos recursos naturais com estratégias vol-tadas à geração de emprego e renda e à redução das desigualdades sociais.Assinado pelo Presidente Lula, em conjunto com governadores de oito estadosamazônicos, o documento estabelece compromissos com a Amazônia, a saber:

1. Promover o desenvolvimento sustentável com valorização das diversidades sócio-cultu-ral e ecológica e a redução das desigualdades regionais.

2. Ampliar a presença democrática do Estado, com integração das ações dos três níveis degoverno, da sociedade civil e dos setores empresariais.

3. Fortalecer os fóruns de diálogo intergovernamentais e esferas de governos estaduais afim de contribuir para uma maior integração regional, criando o Fórum dos Governadoresda Amazônia Legal.

4. Garantir a soberania nacional, a integridade territorial e os interesses nacionais.

5. Fortalecer a integração do Brasil com os países sul-americanos amazônicos, fortalecen-do a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA) e o Foro Consultivo deMunicípios, Estados, Províncias e Departamentos do Mercosul.

6. Combater o desmatamento ilegal, garantir a conservação da biodiversidade, dos recur-sos hídricos e mitigar as mudanças climáticas.

7. Promover a recuperação das áreas já desmatadas, com o aumento da produtividade ecom a recuperação florestal.

8. Implementar o Zoneamento Ecológico-Econômico e acelerar a regularização fundiária.

9. Assegurar os direitos territoriais dos povos indígenas e das comunidades tradicionais epromover a eqüidade social, considerando gênero, geração, raça, classe social e etnia.

10. Aprimorar e ampliar o crédito e o apoio para atividades e cadeias produtivas sustentáveis.

11. Incentivar e apoiar a pesquisa científica e a inovação tecnológica.

12. Reestruturar, ampliar e modernizar o sistema multimodal de transportes, o sistema decomunicação e a estrutura de abastecimento.

13. Promover a utilização sustentável das potencialidades energéticas e a expansão dainfra-estrutura de transmissão e de distribuição com ênfase em energias alternativas lim-pas e garantindo o acesso das populações locais.

14. Assegurar que as obras de infra-estrutura provoquem impactos socioambientais míni-mos e promovam a melhoria das condições de governabilidade e da qualidade de vida daspopulações humanas nas respectivas áreas de influência.

15. Melhorar a qualidade e ampliar o acesso aos serviços públicos nas áreas urbanas e rurais.

16. Garantir políticas públicas de suporte ao desenvolvimento rural com enfoque nas dimen-sões das sustentabilidades econômica, social, política, cultural, ambiental e territorial.

Fonte: Daniela Mendes, MMA

derrubar aproximadamente quatro hecta-res de floresta por ano. Destrói, assim, umenorme volume de biodiversidade comvalor potencial, tanto no presente quantono futuro, somente para atender às suasnecessidades básicas de subsistência.

Quando esgotados o solo e os recursosflorestais, resta ao colono trilhar o cami-nho inverso ao da reforma agrária, ven-dendo a terra de volta ao grande proprie-tário, ou abandonando sua área, seguin-do para novas regiões de fronteira a fimde repetir o ciclo vicioso.

Todo o processo também abre espaço àmarginalização, à grilagem, à invasão deterras, à exploração ilegal de madeira e àbiopirataria. O Brasil possui uma das le-gislações ambientais mais completas doplaneta. No entanto, embora os impac-tos primários da exploração seletiva demadeiras sejam pequenos, a presença daeconomia madeireira nas regiões de fron-teira – atraída pela abertura das estradase pela implantação dos grandes proje-tos – continua a contribuir para o des-florestamento.

Mas são os impactos secundários da co-lonização espontânea associados à au-sência de políticas públicas ou a políti-cas públicas deficientes ou mal aplicadasque comprometem a ecologia da regiãono presente e no futuro.

A ação do Exército e da Polícia Federal énecessária enquanto medida curativa aocrescente desmatamento. Mas o combatevai além da fiscalização: é preciso acima detudo agir pela prevenção e separar o joiodo trigo. Estudos demonstram que o go-verno brasileiro, agora sob o comando doPT, deve ser adequadamente estruturadopara enfrentar os sérios problemas histó-ricos que se arrastam desde a invenção doBrasil. Afinsl, não é de hoje que dadosestatísticos demonstram o aumento dataxa de desmatamento anual e a degrada-ção do ambiente, apontando historicamen-te para uma relação direta com o desequi-líbrio socioeconômico e com as desigual-dades sociais. ■

Nelson Batista Tembra –Engenheiro agrônomo e Consultorambiental. Tem 27 de experiência naprofissão. É colaborador e articulista doEcoDebate.

Brasília - O presidente Luiz Inácio Lula da Silva discursa durante o lançamentodo Plano Amazônia Sustentável . Foto: Roosewelt Pinheiro/ABr

Cidadania&MeioAmbiente 13

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Mesmo antes de terminar o período de observação da coberturaflorestal da Amazônia Legal –

que vai até julho –, dados do sistema demonitoramento por satélite DETER (Detec-ção do Desmatamento em Tempo Real) apon-tam forte aumento do processo de desflo-restação. O desmatamento passou de 4.974km2, entre 2006 e 2007, para 5.850 km2 de agos-to de 2007 até abril deste ano. Uma consta-tação alarmante já que nos últimos três anoso ritmo de desmatamento na região vinhadiminuindo. Segundo dados apresentadospelo diretor do Inpe, Gilberto Câmara, dos700 mil km2 devastados, 300 mil ocorreramnos últimos 20 anos. E no atual passo dedesflorestamento, a cada dez segundos édesmatada na Amazônia uma área equiva-lente a um campo de futebol.

O Ministro do Meio

Ambiente Carlos

Minc comprova nas

imagens do sistema

de monitoramento

espacial DETER

que em abril último

foram desflorestados

1.123 km2 – área

equivalente a

da cidade do

Rio de Janeiro.

Dos 4 milhões

de km2 de floresta

amazônica,

700 mil km2 já

foram desmatados.

foto

:Wil

son

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AMAZÔNIA

Do total dos 5.850 km2 de área em que severificou corte raso ou degradação pro-gressiva, Mato Grosso foi – como já ha-via antecipado Carlos Minc, ministro doMeio Ambiente – o campeão em desma-tamento no período, com 794,1 km2, ou70,7%. Com 284,8 km² de área desmata-da, Roraima ocupa o nada honroso se-gundo lugar. Embora Rondônia, com34,6 km2, tenha sido o terceiro coloca-do, este estado é, proporcionalmente, omais degradado, enquanto o Amazonasé o mais preservado.

O DESMATAMENTO VIA SATÉLITE

Em operação desde maio de 2004, o DE-TER foi concebido como um sistema delevantamento de alerta para suporte à fis-calização e controle de desmatamento.

As imagens obtidas são processadas di-gitalmente pela Metodologia PRODES, eo conjunto de dados são apresentadospor município, estado, base operativa eunidades de conservação, buscando fa-cilitar as operações de fiscalização.

O Sistema DETER, no entanto, detectaapenas polígonos de desmatamento comárea maior que 25 hectares por conta daresolução dos sensores espaciais de quese vale, a saber: dados do sensor MODIS(satélite Terra/Aqua) e do sensor WFI (sa-télite sino-brasileiro CBERS), com resolu-ção espacial de 250 metros. Mas devido àcobertura de nuvens que podem obstruiros olhos dos satélites na varredura realiza-da, nem todos os desmatamentos são ime-diatamente identificados pelo sistema.

DESMATADA17%JÁ

14

Page 15: Cidadania e meio ambiente

Cidadania&MeioAmbiente 15

A menos de dois meses do prazo previsto para o Ministério da Agricultura con-cluir proposta de zoneamento agrícola que bloquearia o avanço da cana-de-açúcar na Amazônia, documento oficial aponta crescimento da cultura dentro dobioma amazônico nos Estados do Acre, de Roraima e do Pará.

Até 2012, um único município do Acre deve multiplicar quase dez vezes a áreaplantada, alcançando o equivalente a 30% da cidade de São Paulo, apontadocumento produzido pela Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuá-ria), vinculada ao Ministério da Agricultura, e cujos estudos têm pesado nasanálises do presidente Luiz Inácio Lula da Silva sobre a Amazônia.

O documento desautoriza as declarações de Lula em fóruns internacionais. Opresidente insiste que a Amazônia não é propícia ao cultivo da cana, e que asáreas plantadas estão “muito distantes” da floresta. O documento é um subsídioao PAS (Plano Amazônia Sustentável).

Segundo a Embrapa, projeto que conta com financiamento do governo do Acre –comandado pelo PT – já teria plantado 45 km2 de cana no município de Capixa-ba, a apenas 60 km da capital Rio Branco.

Em Roraima, dois empreendimentos implantados em 2007 planejam ocupar90 km2 com a cultura da cana até 2009. O destino da produção, indica docu-mento da Embrapa, seriam os mercados da Amazônia e da Venezuela, queintroduziriam o álcool como aditivo à gasolina.

Ao deixar o governo, a ex-ministra do Meio Ambiente Marina Silva voltou adefender que as culturas de cana se mantivessem distantes da Amazônia, comoforma de viabilizar o selo ambiental ao álcool brasileiro. Marina descartava até ouso de áreas já desmatadas e preferia acreditar que as culturas existentes eram“projetos senis”.

Dados da Conab (Companhia Nacional de Abastecimento) registraram o au-mento em 9,6% na última safra de cana na Amazônia Legal – de 17,6 para 19,3milhões de toneladas –, com crescimento da área plantada em Mato Grosso,Tocantins e Amazonas.

Embora eficiente na detecção de ocorrênciade desmatamento por corte raso, o sistemanão é o mais adequado para mapear o pro-cesso de degradação florestal, pois subes-tima e detecta, em geral, processos já nosestados finais de degradação. Mesmo as-sim, o Inpe prova que o sistema DETER éeficiente e confiável, já que a proporção dealertas não confirmados como desmatamen-to é menor do que 6%. A partir de 2011 no-vos satélites serão incorporados ao siste-ma. Para otimizar o monitoramento atual, oInpe já pensa em recorrer, de forma comple-mentar, aos dados do satélite japonês Alos,que não sofre influência das nuvens.

BANCO DE DADOS VEGETAL: NOVO

ALIADO CONTRA O DESMATAMENTO

A Amazônia Legal ganhou em 2 de junhoúltimo um banco de dados que servirá desubsídio à formulação de políticas públi-cas para a região (Acre, Amapá, Amazo-nas, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Rorai-ma, Tocantins e parte do Maranhão). Comnível de detalhamento inédito, o sistemamostra que as áreas modificadas pelo ho-mem, de 748.698 km2, já correspondem a17% do total da região –, as pastagens res-pondendo por 7,8%. Com 3.016.363 km2, afloresta ocupa 61,07% da área total.

“Essa é uma ferramenta poderosa paraque se conheça um pouco mais dessa re-gião e para orientar as políticas públicas”,diz Ricardo Braga, gerente de RecursosNaturais do IBGE, responsável pelo ban-co de dados. Segundo Braga, a escala de1:250.000 (1 cm no mapa corresponde a2,5 km de território) permite uma aborda-gem com baixo nível de generalização.

Os dados começaram a ser coletados nadécada de 70 e foram revisados e atualiza-

Marta Salomon – Publicado no jornal Folha de S. Paulo (02/6/2008) e peloportal EcoDebate em 03/5/2008).

dos através de imagens de satélites e traba-lho de campo realizado por cerca de 20 fun-cionários do IBGE. Eles foram a 2.500 pon-tos de inventários florestais, regiões de umhectare quadrado, onde coletaram a vege-tação local e fizeram a medição das árvorescom potencial comercial – aquelas com maisde 30 centímetros de diâmetro. Isso permiteprecisar com bastante credibilidade a ocor-rência de determinada espécie de árvore.“Quanto mais conhecimento o governo e asociedade tiverem dos biomas, maiores ascondições políticas para adotar medidascoerentes com o desenvolvimento susten-tável”, infoma Roberto Ricardo Vizentin, di-

A CANA DE AÇÚCAR

SE EXPANDE NA AMAZÔNIA

Mosaico das imagens MODIS do mês deAbril/2008 usadas no DETER, para visuali-zação da cobertura de nuvens e áreas de aler-ta. Foto: Inpe

retor de zoneamento territorial do Ministé-rio do Meio Ambiente.

Apesar de não ser atualizado constante-mente, o banco de dados permite acom-panhar a evolução do desmatamento naregião e apontar a vegetação mais afeta-da no processo. O sistema pode ser aces-sado gratuitamente no site do IBGE (http://www.ibge.gov.br). Os arquivos estão noformato shape, que demanda programasespecíficos para ser lido. ■

Fontes: Inpe, IBGE, Comunicação Sociale Agência Brasil.

Cidadania&MeioAmbiente15

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O novo Atlas dos Remanescentes Florestais da Mata Atlântica deve estar enganado. Como

esses fragmentos poderiam estar reduzi-dos a 7,26% de seu território original e con-tinuar diminuindo rapidamente em Santa Ca-tarina, na Bahia e em Minas Gerais se elescrescem como nunca ao redor dos hotéis,das pousadas e das agências de turismo,que deram para enxergá-los em toda parte?

Desde o Descobrimento, quando o arvore-do “tanto, tamanho e tão variado” do litoralbaiano não deixou Pero Vaz de Caminha en-xergar a terra propriamente dita do novomundo português, o Brasil não tinha, comotem agora, tanta mata atlântica para dar evender. Ao menos na internet.

Aí está o Google, que não deixa ninguémmentir. Ponha-se na janela de busca aspalavras “mata atlântica” e “hotel”. E eledevolve nada menos de 145 mil respos-tas. Parece muito, mas, substituindo “ho-tel” por um sinônimo mais bucólico, como“pousada”, o Google duplica a oferta deendereços com vista para o cenário pri-mordial da natureza brasileira. Vêm maisde 300 mil registros de hospedagem comfloresta tropical.

PARA TODOS OS GOSTOS

Perde-se a conta na internet dos estabele-cimentos turísticos chamados PousadaMata Atlântica, da Bahia a Santa Catarina.No Estado do Rio de Janeiro, há PousadaMata Atlântica para todos os gostos, na

A MATA ATLÂNTICA

por Marcos Sá Corrêa

serra fluminense e à beira-mar. Existe aindauma Pousada Mata Atlântica que fica apoucos quilômetros de um hotel tipicamen-te alpino de nome Chamonix, “um pedaçoda Europa a seu alcance!” E um “EspaçoMata Atlântica” plantado numa rua queliga duas favelas, dividindo dez mil metrosquadrados com a piscina, a sauna, o cam-po de futebol, a churrasqueira e uma salade convenções para 2 mil pessoas.

E um hotel pleonástico, que se declara no“meio de uma floresta de mata atlântica”.Tem até chalé “situado no Bosque dosEucaliptos, um pequeno santuário de mataatlântica”. O Bosque dos Eucaliptos deveestar na floresta que, segundo o historia-dor Cid Prado Valle, sempre cobriu o paísde norte a sul com uma “espessa camadaverde-escura”, na vastidão abstrata do ufa-nismo brasileiro. Se for assim, a mata atlân-tica, em si, pode sumir à vontade. Brotaráde suas cinzas com mais força a mata atlân-tica imaginária, que tem sobre a original avantagem de caber em qualquer lugar.

Cabe, de sobra, nas menores encostas dazona sul do Rio de Janeiro, onde mataatlântica está virando ultimamente tudo oque ainda não é favela. Ali viceja até nasplacas do Jardim Botânico, indicando, naborda do arboreto, com manchas compac-tas de verde-bandeira, as trilhas de umafrondosa mata atlântica de jaqueiras asiá-ticas, descendentes de mudas trazidaspara a colônia por portugueses nostálgi-cos de outros trópicos.

Espremida atualmente nos últimos 97,5 milquilômetros quadrados, incluindo nessecálculo retalhos de 100 hectares, peque-nos demais para ter futuro, a mata atlânti-ca está entrando na moda tarde demaispara salvar a si mesma. Sua popularidadeinspira na hotelaria nacional as mais deli-rantes homenagens póstumas.

Segundo o historiador Warren Dean, de-veria servir pelo menos para ensinar osbrasileiros como se pode perder tambéma Amazônia. Mas não serve nem para lem-brar ao presidente Lula que, como os pa-íses ricos, o Brasil tem uma longa histó-ria de desmatamento. ■

Marcos Sá Corrêa é jornalista e editordo site O Eco (www.oeco.com.br).Artigo originalmente publicado peloO Estado de S.Paulo, 04/06/2008,e no Portal EcoDebate em 05/06/2008.

VIROU SOUVENIR

MATA ATLÂNTICA

DESMATAMENTO PONTUAL

A Mata Atlântica está preservada em234.106 polígonos, dos quais 25 mil sãomenores do que 5 hectares. O biomaabrange 61% dos municípios brasileiros,onde vivem 120 milhões de pessoas, deacordo com dados do Instituto Brasileirode Geografia e Estatística (IBGE).

Embora o ritmo de desmatamento destebioma tenha diminuído em 69%, segun-do estudo da ONG SOS Mata Atlânti-ca, que comparou dados do Inpe paraos períodos de 1995 a 2000 e de 2000a 2005, os remanescentes 7,26% da co-bertura florestal original continuam a so-frer depredação.

A pesquisa divulgada neste 27 de maioavaliou 13 estados. Abaixo, os campe-ões do desmatamento (em hectare):■ Santa Catarina – 45.530 ha (au-mento de 7% no nível de desmate).■ Goiás – 4 mil ha (crescimento de 20%no nível de desmate).■ Minas Gerais – 41.349 ha (dimi-nuição de 66% no nível de desmate).■ Bahia – 36.040 ha.

Outra ameaça apontada pelo estudo éa fragmentação do bioma. Para o coor-denador do estudo Flávio Ponzoni, doInpe, o fato “pode provocar o colapsoda biodiversidade, pois quanto mais frag-mentada a paisagem, maiores as dificul-dade de sobrevivência das espécies”.

Fonte: Agência Brasil

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A Vale é uma mineradora que está presente nos cinco continentes e que transforma recursos minerais em elementos

essenciais para o nosso dia-a-dia. A Vale tem forte compromisso com as comunidades onde atua, respeita

a diversidade cultural, cria parcerias e implementa iniciativas sociais que contribuem para o desenvolvimento de

todos, pois sabe que compromisso, respeito e boas iniciativas são fundamentais para uniões estáveis e duradouras.

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Informe Ensp/ Agência Fiocruz de Notícias

EM 2008, O DIA MUNDIAL DA

SAÚDE APONTOU PARA A NECES-

SIDADE DE PROTEGER A SAÚDE

DOS EFEITOS ADVERSOS DAS MU-

DANÇAS CLIMÁTICAS. O TEMA PÕE

A SAÚDE NO CENTRO DO DIÁLO-

GO GLOBAL SOBRE AS MUDANÇAS

CLIMÁTICAS. COMO A SAÚDE

PODE ATUAR NESSE CENÁRIO?

Bruno Milanez – Entre osvários cenários desenhadoscomo conseqüência do pro-cesso de mudanças climáticassão esperadas alterações nopadrão das chuvas e aumen-to da incidência de eventosextremos, como inundações,furacões e secas. Porém, ain-da existem muitas incertezassobre o que realmente pode-rá vir a acontecer, particular-mente em relação à extensãoe à velocidade dessas trans-formações. Certamente, a áreadas políticas públicas (inclusive políticas em saúde) precisa sepreparar para atuar em um ambiente mais dinâmico, no qual ospadrões serão menos estáveis.

No caso específico das ameaças à saúde, nos locais onde ocorrerintensificação das chuvas e das enchentes poderá haver maior inci-dência de doenças de veiculação hídrica. Se esse processo for acom-panhado de aumento de temperatura, deverá haver também cresci-mento de casos de doenças como malária e dengue. Entretanto, asmudanças climáticas não significam apenas mais chuva e calor; emalguns locais poderá ocorrer redução de quantidade de chuva, afe-

SAÚDE PÚBLICAE MUDANÇAS CLIMÁTICAS

JU

STIÇA

CLIM

ÁTIC

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Os pesquisadores Marcelo Firpo e Bruno Milanez discorrem acerca da saúde

pública ante os efeitos das mudanças climáticas, do mercado de carbono e do

modelo de desenvolvimento econômico que gera e estimula desigualdades

entre países ricos e pobres.

tando a produção agrícola e aqualidade dos alimentos. Re-giões que dependem de águasoriundas de áreas montanho-sas também poderão ser gra-vemente afetadas pelo degelodecorrente do aquecimento.

Portanto, um aspecto centralpara à saúde pública é que de-terminados grupos populacio-nais e regiões do planeta sãomais vulneráveis e precisam servistos com mais atenção, tor-nando o problema mais com-plexo. Em outras palavras, dife-rentes grupos sociais têm ca-pacidades distintas de se pre-caverem ou de remediarem taisimpactos. Esse é o cerne da dis-cussão sobre vulnerabilidadequando falamos de mudançasclimáticas. Populações que vi-vem em ilhas, ou aquelas que

dependem da água dos Andes, serão mais atingidas se não houverrecursos e políticas públicas específicas. A área da saúde deve secolocar em defesa dos grupos mais vulneráveis, pois estes serão osprimeiros a sofrerem as conseqüências dessas alterações. Na verdade,a vulnerabilidade é um fato, mas não é enfrentada de forma eficiente.Em boa parte, o destaque das mudanças globais passou a ocorrer namídia quando os países ricos descobriram que poderão ser bem afeta-dos; assim, a situação tornou-se um risco para todos.

Marcelo Firpo – Em 2004, representantes de movimentos so-ciais reuniram-se em Durban, na África do Sul, para discutirem a

foto: Katakanadian

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Cidadania&MeioAmbiente 19

É questão centralpara as sociedadese a saúde coletivaafirmar o valorético da vida e lutarcontra a suamercantilizaçãoe a da naturezacomo um todo.Marcelo Firpo

questão do aquecimento global a partir da ótica dasorganizações populares. Nesse encontro, consolidou-se o conceito de justiça climática, que assume a visãode que alguns grupos sociais e territórios sofrerãomaior impacto com as mudanças climáticas. Um exem-plo desses grupos são as populações das pequenasilhas da Polinésia, como Tuvalu (um arquipélago cujoponto mais alto fica dez centímetros acima do níveldo mar) que negociou com a Nova Zelândia o direitode migração de toda a sua população caso suas ilhasfiquem inabitáveis (o que poderá acontecer em me-nos de 50 anos).

NOS ÚLTIMOS 50 ANOS, A QUEIMA DE COMBUSTÍVEIS FÓS-SEIS TEM LIBERADO DIÓXIDO DE CARBONO E OUTROS GASESQUE AFETAM, DE FORMA IRREFUTÁVEL O CLIMA GLOBAL. ACONCENTRAÇÃO ATMOSFÉRICA AUMENTOU EM MAIS DE 30%DESDE O INÍCIO DO SÉCULO 20. O RESULTADO DISSO É OAUMENTO DO RISCO DE DOENÇAS E DE MORTES, ALTERANDOO PADRÃO DE DISSEMINAÇÃO DAS DOENÇAS INFECCIOSAS.UMA DAS SOLUÇÕES APRESENTADAS PARA MELHORAR ESSE QUA-DRO É O MERCADO DE CARBONO, UTILIZADO NA EUROPA E NOS EUA.COMO ESTÁ ESSA DISCUSSÃO NO BRASIL?Milanez – O mercado de carbono não chega a ser uma solução para osimpactos das mudanças climáticas, mas uma tentativa de ação paliativa.O Brasil participa do mercado de carbono por meio da implantação dosmecanismos de desenvolvimento limpo (MDLs), que permitem que pro-jetos de baixo carbono em países em desenvolvimento gerem “créditosde carbono” para serem comprados por países industrializados e usadoscomo compensação no cálculo de suas emissões, conforme estabeleci-do pelo Protocolo de Quioto. Dessa forma, há uma transferência derecursos financeiros de países industrializados para países em desen-volvimento, que são direcionados para atividades específicas ligadas aosetor energético, a processos industriais, à agricultura, à gestão de resí-duos urbanos e ao reflorestamento.

Entretanto, diversas críticas vêm sendo feitas a esse sistema. Emprimeiro lugar, porque não reduz a iniqüidade entre países, permitin-do que os mais ricos e industrializados continuem a manter seu mo-delo de desenvolvimento, intensivo em energia (não-renovável) erecursos naturais à custa da degradação socioambiental dos paísesdo Sul e, dessa forma, diminuem a pressão por mudanças culturais etecnológicas mais profundas. Outro problema refere-se às práticasde seqüestro de carbono por florestamento e reflorestamento, já quea quantidade de créditos computados não considera, por exemplo,os possíveis ganhos ou perdas em biodiversidade ao se optar pormonoculturas ou espécies nativas. Ou seja, florestas de eucalipto,também chamadas criticamente de “desertos verdes”, podem valertanto quanto as florestas de verdade.

O Brasil tem posição de destaque no mercado de carbono, sen-do o terceiro maior receptor de projetos de MDL. Entretanto, emtermos efetivos, a participação do país ainda é tímida. Até marçode 2008, o Brasil tinha sido responsável por apenas 6% da redu-ção das emissões enquanto que China participou com 49% e aÍndia, com 23% das reduções. No Brasil, 63% dos projetos deMDL ocorrem no setor energia, que responde por 48% da redu-ção de emissões. Nesse setor, quase metade dos projetos dizrespeito à produção de energia por biomassa, aproximadamente

1/4 por hidrelétricas e 1/5 por pequenas centrais hidrelétricas.Outros setores que vêm recebendo recursos de MDL são o decaptação e tratamento de gases gerados por aterros sanitários(24% da redução) e o de suinocultura (6%).

Firpo – Os movimentos sociais apresentam uma série de críticasà forma como os governos vêm lidando com as mudanças climáti-cas. Na sua visão, o mercado de carbono apresenta-se como umainiciativa de transformar a atmosfera, por definição um bem co-mum, em uma mercadoria que pode ser negociada como outraqualquer. Seguindo essa linha de raciocínio, o mercado de carbo-no legitima o “direito de poluir”, uma vez que empresas ou paísesadquirem o direito de manter atividades de alto impacto, desdeque paguem por isso. Como posto por um economista do gover-no da Austrália em 2001, é mais “eficiente” evacuar as populaçõesdas pequenas ilhas do que exigir que as indústrias australianasreduzam sua emissão de carbono. Portanto, uma questão de fun-do central às sociedades e à saúde coletiva é afirmar o valor éticoda vida e lutar contra a sua mercantilização e da natureza como umtodo, revertendo os níveis insustentáveis e indignos que já acon-tecem em várias áreas, inclusive nas biotecnologias.

O AUMENTO DO NÍVEL DO MAR JÁ NÃO É AMEAÇA, POIS TEM DESALOJADOPOPULAÇÕES RIBEIRINHAS. MAIS DA METADE DA POPULAÇÃO MUNDIAL VIVE AMENOS DE 60 QUILÔMETROS DO LITORAL. AS INUNDAÇÕES AUMENTAM ORISCO DE INFECÇÕES CAUSADAS PELA ÁGUA CONTAMINADA. O BRASIL É UMDOS PAÍSES AFETADOS POR CONSTANTES ENCHENTES. COMO A SAÚDE PÚBLICAE A ENSP (ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA SERGIO AROUCA), ESPECI-ALMENTE, PODEM AJUDAR NA PREVENÇÃO E NA BUSCA DE ALTERNATIVAS?Milanez – As mudanças climáticas vão modificar padrões de cli-ma e de chuvas. Nesse sentido, as enchentes vão aumentar deintensidade em algumas regiões, independentemente da proximida-de com o litoral e do aumento do nível do mar. Atualmente, já vemosgrande quantidade de pessoas sofrendo com enchentes e inunda-ções, principalmente entre os grupos mais vulneráveis.

As enchentes são causadas por fenômenos naturais, mas seusimpactos são intensificados por ações antrópicas, relacionadas ao

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Marcelo Firpo – Pesquisador do Centro de Estudos da Saúde do Tra-balhador e Ecologia Humana da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp)da Fiocruz.

Bruno Milanez – Doutor em Política ambiental pela Lincoln University,atualmente atua na Ensp como bolsista.

Fonte: Informe Ensp/ Agência Fiocruz de Notícias –www.ensp.fiocruz.br/informe Publicado no portal EcoDebate em 07/5/08

Fotos dos entrevistados: Virginia Damas – CCI/Ensp/Fiocruz

O mercadode carbono nãochega a ser umasolução paraos impactosdas mudançasclimáticas, masuma tentativa deação paliativa.Bruno Milanez

modelo de desenvolvimento e às iniqüidades que marcam a vulne-rabilidade de territórios e populações. No campo, há problemascom o desmatamento de matas ciliares, ou pelo uso inadequado dosolo, o que aumenta a erosão e contribui para o assoreamento dosrios, podendo impactar cidades. Nas áreas urbanas, a ocupaçãoinadequada do solo e a precariedade (ou inexistência) de sistemasde macro e de micro drenagem são fatores que ampliam os impactosnegativos das chuvas intensas. Por exemplo, a Fiocruz (FundaçãoOswaldo Cruz) ocupa uma área de mangue que possui maior pre-disposição a inundações, como já é conhecido de muitos morado-res do bairro de Manguinhos (Rio de Janeiro, RJ).

Considerando que parte significativa das enchentes é resultado deproblemas de infra-estrutura urbana, a margem de manobra da saúdepública é limitada e seu papel fundamental concentra-se na promo-ção da saúde e no estímulo às políticas intersetoriais, combinandoações locais e globais. Em primeiro lugar, podemos trabalhar junto àpopulação, alertando-a sobre pequenas ações que busquem dimi-nuir a pressão sobre os sistemas de drenagem, como a disposiçãoadequada do lixo doméstico. Posterirmente, é preciso orientar sobrecomo agir em casos de enchentes, seja no momento da inundaçãopara evitar acidentes, seja nos dias posteriores para evitar a contami-nação por doenças de veiculação hídrica.

Não menos importante, existe a possibilidade de o campo de promoçãoda saúde assumir a liderança do questionamento sobre a precariedadedo saneamento ambiental no país e liderar a pressão por melhorias nainfra-estrutura urbana, como um requisito à garantia da saúde da popu-lação. Além disso, a Ensp certamente assumirá um papel importantenas ações já iniciadas pelo governo brasileiro, capitaneadas pelo Mi-nistério da Saúde, no sentido de aprofundar o papel do setor no en-frentamento desse problema.

COMO A DISCUSSÃO SOBRE MUDANÇAS CLIMÁTICAS SE DÁ NO ÂMBITO

DO MOVIMENTO DE JUSTIÇA AMBIENTAL, DO QUAL VOCÊ É UM DOS PAR-TICIPANTES E COORDENADOR DE PROJETO NA ENSP?Firpo – No âmbito do Brasil, o movimento por justiça ambiental vem

alertando que a discussão sobre aquecimento global estásendo usada como justificativa para a manutenção de di-nâmicas injustas, dos pontos de vista social e ambiental.Em nosso país, a “preocupação” com as mudanças climá-ticas é usada como justificativa para a ampliação de mo-noculturas em grandes áreas, seja para produzir celuloseou substituir o carvão mineral, como no caso do eucalip-to, seja para produzir agrocombustíveis, como a soja ou acana. A expansão desse modelo de negócio é, então, acom-panhada pela intensificação da degradação de ecossiste-mas, da concentração rural, do uso de agrotóxicos e, emalguns casos, de condições degradantes de trabalho. Alémdisso, ela cria situações altamente contraditórias, comofoi o caso da valorização da terra no Centro-oeste, queempurrou o gado para o Norte, aumentando a pressãosobre áreas de floresta nativa. Uma das ações da RedeAlerta contra o Deserto Verde, em conjunto com à RedeBrasileira de Justiça Ambiental, tem sido denunciar a ten-tativa perversa de transformar monoculturas de árvoresem “florestas” que seqüestram carbono. Em verdade, suaexpansão afeta diversas populações indígenas e rurais.

Outra discussão importante dentro do movimento de justiça am-biental é a competição entre o uso energético e alimentar dosprodutos agrícolas. Por exemplo, em 2007, o aumento da demandapor milho nos Estados Unidos, para a produção de etanol levou àelevação em mais de 10% da tradicional tortilha no México, pro-duto essencial á alimentação popular. Fenômeno semelhante emescala global ocorreu neste ano, quando o Programa de Alimen-tos da ONU anunciou um aumento geral dos preços dos alimen-tos no mercado internacional. Segundo o órgão, a produção deagrocombustíveis era um dos fatores por trás dessa elevação depreços. Mesmo quando os produtos não são desviados da mesadas pessoas para os tanques de combustível dos carros, práticasagrícolas para a produção de energia passam a competir por insu-mos (terra, agrotóxicos, adubo e financiamento) com os produtosalimentares. O resultado direto disso, ao menos no curto prazo, éum aumento geral dos preços dos alimentos.

Esse debate diz respeito não somente às mudanças climáticasglobais, como também ao modelo de desenvolvimento que vemsendo adotado pelo Brasil e por boa parte do mundo num cenáriode globalização injusta e insustentável. Esse modelo está basea-do na perpetuação da divisão do trabalho entre países ricos e osdemais, que são forçados a pensar no desenvolvimento a partirda produção de commodities agrícolas e metálicas (aço e alumí-nio), com um metabolismo social ambientalmente insustentável esocialmente injusto. O desafio é encontrarmos outra forma deglobalização, mais solidária, justa e sustentável. ■

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Cidadania&MeioAmbiente 21

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22

CO2: O VILÃO DO CLIMA

Como avaliar o limite a não ser ultrapassa-do? Para evitar uma “interferência humanaperigosa” no sistema climático, o limiar dedióxido de carbono (CO2) atmosférico égeralmente fixado em 550 partes por mi-lhão (ppm). Esse é, por exemplo, o objeti-vo – ambicioso – fixado pela União Euro-péia. Para James Hansen, um dos pesqui-sadores mais influentes da comunidadedos climatologistas, tal limiar foi estimadocom muito, muitíssimo, otimismo.

Em trabalhos disponibilizados na Inter-net, em 7 de abril último, no servidorArXiv, o diretor do Goddard Institute forSpace Studies, da Nasa, e seus co-auto-res avaliam o limiar de perigo em torno de350 ppm. Ora, esse nível foi atingido em1990. Ele situa-se hoje em 385. E aumentaà razão de uma a duas unidades por ano.

A ultrapassagem do limiar de 350 ppm nãoé, evidentemente, de extremo perigo. Se-gundo os autores, ele o é em longo prazo.

O limiar de perigodo dióxido de carbono(CO2) estaria fixadonum nível muitoelevado, conformeindicam novos estudosde climatologistas.Para os seus autores,o nível toleráveldeveria ser de350 ppm e não 550.Se assim fosse,já teria sido atingidoem 1990, o quenos colocaria numasituação crítica.?

“Se o CO2 for mantido durante um longoperíodo num nível superior a este limite,há um risco de nos situar numa trajetóriaque leva a uma desregulação climática pe-rigosa e irreversível”, descreve a climato-logista Valérie Masson-Delmotte (Comis-sariado para a Energia Atômica, CEA), co-autora desses trabalhos. “É possível re-tornar a uma taxa de 350 ppm”, asseguraHansen. “Faz-se necessária uma morató-ria sobre as centrais nucleares movidas acarvão e, em seguida, suprimir progressi-vamente todos os usos de carvão até2020-2030. Também se faz necessário re-ver nossas práticas agrícolas e florestaisde maneira a seqüestrar carbono”.

QUAL O LIMIAR LIMITE DE CO2?

Para chegar a essas conclusões, os ci-entistas analisaram as séries de dadosque refazem as grandes evoluções cli-máticas do planeta em mais de 50 milhõesde anos. Para determinar um limiar limite,“nós examinamos a velocidade do des-locamento dos isotermos, a retração dos

glaciares – que são muito importantespara a alimentação na água –, a veloci-dade da elevação do nível dos mares, adesestabilização das calotas polares e areação dos recifes de corais”, precisaValérie Masson-Delmotte.

Os pesquisadores também recalcularam a“sensibilidade do clima” ao gás carbôni-co. Essa se traduz pelo aquecimento mé-dio que provocará o dobro de CO

2 em rela-

ção ao seu nível pré-industrial (entre 270 e280 ppm). Os modelos utilizados pelo Gru-po Intergovernamental de Peritos sobre aEvolução do Clima (GIEC) situam-na emtorno de 3ºC. Mas esses cálculos não le-vam em conta o que os climatologistaschamam de “retroações lentas”.

Um exemplo de retroação lenta é a redu-ção progressiva das calotas polares.Quando o efeito estufa aumenta, maximizaa temperatura: as calotas polares diminu-em. A Terra perde, pois, progressivamen-te uma parte dessa capacidade de refletir

Stéphane Foucart

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A TERRAJÁ ULTRAPASSOU

O LIMIAR DO PERIGO

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Stéphane Foucart - jornalista francês,encarregado da cobertura de ciência dojornal “Le Monde”. Publicado pelo “LeMonde” em11/04/2008, (com tradução doCepat); pelo “IHU On-line” (10/05/2008) epelo “EcoDebate” (12/05/2008)

os raios do sol, e ela absorve mais ener-gia luminosa. As temperaturas sobem maisrapidamente, e isso acelera a redução dascalotas polares etc.

“Ao levar em conta esse tipo de retroa-ções, a sensibilidade climática não é maisde 3ºC, como nos modelos utilizados peloGIEC: ela é, na verdade, de 6 ºC”, dizHansen. “Mas a questão de saber quan-to tempo essas retroações levarão paraentrar em ação permanece aberta”. Paraver esses “círculos viciosos” colocarem-se em ação e embalarem a máquina climá-tica, será preciso esperar até o fim desteséculo? Ou o fim do próximo?

A INCERTEZA

DOS MODELOS DE PREVISÃO

As incertezas dos modelos são grandes.Assim, recentes análises sedimentarespublicadas por uma equipe alemã mostra-ram que uma grande calota polar antárti-ca (estimada em torno de 60% da atualcalota) sobreviveu, ainda que brevemen-te, ao longo do cretáceo, a um períodomuito quente em que a temperatura dooceano tropical era mais de 10 ºC superiorà temperatura atual.

James Hansen, 67 anos, gosta de con-trovérsias. Ele é o primeiro cientista ater chamado a atenção, em 1988, dosmeios de comunicação e dos políticospara a questão do clima. Muito compro-metido, ele lançou em 2007 uma campa-nha para solicitar aos governos da Ale-manha e da Grã-Bretanha a interrupçãode todos os programas de construçãode usinas a carvão.

Para além dessas questões, seus traba-lhos abrem uma discussão profunda semrelação com a ciência ou com a política:até quando os homens do século XXI de-vem buscar prever as conseqüências desuas ações? Evocar o futuro do planetabem depois de 2100, como o faz Hansen eseus co-autores, é imaginar o que o cli-matologista Stephen Pacala chamou de“os monstros atrás da porta”. ■

Em 2005, o aquecimento global foi o responsável pelo desaparecimento dageleira Broggi, situada na Cordilheira Blanca, segundo Marco Zapata, diretorda Unidade de Glaciologia do Instituto Nacional de Recursos Naturais (Inrena)do Peru. A leste da cidade de Yungay, na província de Huaraz, a aproximada-mente 400 quilômetros ao nordeste de Lima, a geleira Broggi apresentava umasuperfície superior a 1,8 km2 em 1995.

Além da Broggi, Zapata informa que a geleira Pastoruri também está retrocedendorapidamente e já não é considerada um nevado (montanha com neves permanen-tes), mas uma simples cobertura de gelo devido à perda de 700 km2 de suasuperfície. “O que era apenas uma massa única de gelo dividiu-se em duas, numprocesso contínuo de retrocesso e de diminuição da geleira”, informa o cientista.

A Cordilheira Blanca – cadeia montanhosa coberta de gelo que atravessa ocentro do Peru – tem hoje apenas 535 km2. Ou seja, já sofreu uma diminuição de25% em relação à massa de gelo que apresentava em 1970.

O cientista lembrou que entre 1948 e 1977, a média de retrocesso anual dasgeleiras na cordilheira era de entre oito e nove metros por ano; contudo, a partirde 1977 o retrocesso aumentou para cerca de 20 metros/ano.

“Há 30 anos começou o retrocesso acelerado das geleiras. Evento indubitavelmenteconseqüência do aumento de temperatura ambiente global. São muitos os fatores quegeram o problema, mas todos são conseqüência da mudança climática”, declarou.

Infelizmente, informa Zapata, não há medidas ou técnicas para a recuperaçãodas geleiras. A única providência para salvar o que ainda resta é a adoção deações urgentes que permitam reduzir os fatores geradores do aumento da tempe-ratura global via mudança climática. E isso exige o comprometimento e esforçode todos os países do mundo. Fonte: Agência EFE

AQUECIMENTO GLOBAL DERRETE GELEIRA BROGGI

Cordilheira Blancafoto: Señor Hans

A área congelada do Oceano Ártico vem encolhendo e está cada vez mais vulnerá-vel aos raios do sol no verão, segundo estudo publicado no Geophysical ResearchLetters pelos pesquisadores do Centro Nacional de Pesquisas Atmosféricas (NCAR),dos EUA e da Universidade Estadual de Colorado.

A perda de gelo no Ártico em 2007 bateu o recorde dos tempos modernos, com aextensão gelada encolheu para um mínimo de 4,1 milhões km2 em setembro. Essacobertura foi 43% menor que em 1979, quando começaram as medições confiáveispor satélite. “Em um mundo mais quente, o gelo mais fino sobre o mar torna-se cadavez mais sensível às variações climáticas e das nuvens de um ano para o outro. Umúnico verão mais ensolarado pode, agora, ter um impacto dramático, sentencia apesquisadora Jennifer Kay, do NCAR. Fonte: Geophysical Research Letters

O ÁRTICO TAMBÉM DERRETE

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O Alto São Francisco é o principalresponsável pela formação dasenchentes no rio. Esse fato é ex-

plicado pelas características edáficas epluviométricas da região (solos sedimen-tares e regularidade nas precipitações plu-viométricas), aspectos esses contrasta-dos com a vasta área de clima semi-áridono restante da bacia – principalmente emboa parte do Médio e em todo o Sub-mé-dio – na qual a geologia é cristalina. Esseocasiona poucas chuvas, mal distribuí-das no tempo e no espaço.

O período chuvoso do Alto São Francis-co ocorre entre os meses de novembro eabril, intervalo que não costuma coincidircom a fase das águas das outras regiões,principalmente as de clima semi-árido,onde estão localizadas as usinas da Com-panhia Hidro Elétrica do São Francisco(Chesf). Esse fato resultava, até há pou-co tempo, em deficiências volumétricas

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SOBRADINHO

por João Suassuna

Sem essa obra

seria muito

difícil

equacionar

os problemas

de geração

de energia

elétrica no

Nordeste.

RESERVATÓRIO ESTRATÉGICO E DESCONHECIDO

significativas, quando da ocorrência desecas prolongadas, com prejuízo para osetor elétrico.

Em decorrência desse fato, a Chesf foi obri-gada a construir a Represa de Sobradinho,no Médio São Francisco, com capacidadede 34 bilhões de metros cúbicos – o equi-valente a 14 vezes o volume da Baía daGuanabara, no Rio de Janeiro. O objetivofoi acumular as águas provenientes de suaregião alta para, em seguida, assegurar, empatamares satisfatórios, o funcionamentodo sistema gerador de energia sob sua res-ponsabilidade.

BARRAGEM:

VITAL À GERAÇÃO DE ENERGIA

A idéia era fazer com que o volume acumula-do nessa represa fosse sendo liberado aospoucos, de forma equilibrada. Assim, regula-rizava-se a vazão do Rio São Francisco e ga-rantindo a geração de energia no complexo

de Paulo Afonso e em Xingó, hidrelétricaslocalizadas na parte submédia da bacia.

A medida proporcionou uma vazão regula-rizada de cerca de 2.060 m³/s no trecho en-tre Sobradinho e o delta, principalmente demaio a outubro. Nesse período, o rio cos-tuma apresentar vazões reduzidas, conse-qüência direta de uma época com chuvasirregulares e de baixa contribuição volumé-trica de seus tributários. Atualmente a va-zão regularizada na foz é de 1.850 m³/s.

Não fosse a construção dessa represa, se-ria muito difícil o equacionamento dos pro-blemas de geração de energia no Nordeste.Para se ter uma idéia, em outubro de 1955 –ano considerado seco –, o São Franciscoregistrou sua menor vazão: 595 m³/s, emJuazeiro/Petrolina. Por outro lado, registra-ram-se enchentes monumentais, como aocorrida em 1979, atingindo uma vazão de18 mil m³/s, causando o vertimento de So-

Também fundamental para o projeto de transposição,

a represa vem passando por situações volumétricas críticas.

fotos:João Zinclar

24

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Cidadania&MeioAmbiente 25

bradinho, fato que assustou boa parte dapopulação local.

O REGIME HIDROLÓGICO

DE SOBRADINHO

Ao se analisar o regime hidrológico da re-presa de Sobradinho desde a época de suainauguração, principalmente no tocante àsua acumulação volumétrica (volumesmáximos e mínimos anuais), pode-se cons-tatar que, no período compreendido entre1978 e 1986, os anos foram hidrologica-mente satisfatórios em termos de precipi-tações. Houve acumulações significativase, em várias delas, a represa veio a sangrar.Igual característica foi observada nos pe-ríodos subseqüentes de 1990 a 1994; de1997 a 1998 e de 2004 a 2007.

Períodos críticos de secas também são re-correntes em Sobradinho. Eles ocorreramde forma marcante entre 1987 e 1989, entre1995 e 1996 e entre 1999 e 2003. Nessescasos, a represa acumulou apenas metadede sua capacidade útil. Em 2001, atingiuapenas 5% desse limite. Este foi conside-rado o ano mais seco da história do SãoFrancisco, tendo resultado nos raciona-mentos e na pior crise energética vivenci-ada até então. Tudo indica que 2008, da-das as características climáticas em curso(choveu abaixo da média na região), tam-bém será seco.

Ao se analisar globalmente o comporta-mento volumétrico de Sobradinho, con-siderando-se principalmente os períodosfavoráveis e os desfavoráveis da pluvio-metria, chega-se à conclusão de que a re-presa enche em 40% dos casos. Dessaforma, em 10 anos ela atinge a cota desangramento em apenas quatro.

OS SINAIS DE ALERTA

No momento atual, o que preocupa éque no mês de janeiro a represa de So-bradinho estava com apenas 15% de suacapacidade útil, motivada pelo uso vo-lumétrico na geração e na distribuiçãode energia do sistema da Chesf para ou-tras regiões do país. A partir de feverei-ro, período no qual a represa deveriaestar com sua afluência volumétrica emestado crescente (volumes que chegamà represa), o que se observou foi umquadro inverso do esperado: sua aflu-ência mostrou-se em estado decrescen-te, o que poderia agravar ainda mais oquadro crítico apresentado.

Nascente: Serra da Canastra em Minas Gerais, estado responsável pelaformação de cerca de 70% de suas águas.Extensão: 2,8 mil km (entre seu nascedouro e sua foz, no pontal do Peba/AL).Vazão média: 2,85 mil m³/s.Característica: períodos de abundância de chuvas entremeados por períodosde secas sucessivas.Bacia hidrográfica: área aproximada de 640 mil km², subdividida em Alto

São Francisco (Serra da Canastra a Pirapora), Médio (Pirapora a Remanso),Submédio (Remanso a Paulo Afonso) e Baixo (Paulo Afonso ao Oceano Atlântico).População residente: estimada em 14 milhões de pessoas.

RIO SÃO FRANCISCO

No portal da Chesf é possível observaresse fato com muita clareza. No dia 22 defevereiro, por exemplo, a afluência da re-presa era de 3.170 m³/s. No dia 27 haviacaído para 2.160 m³/s, numa diminuição decerca de 200 m³/s a cada dia. O fato sugeriuuma falta de entendimento entre os res-ponsáveis pela represa de Três Marias(Furnas) e os de Sobradinho (Chesf). Porrazões que desconhecemos, os volumesdas intensas precipitações ocorridas noSul de Minas, naquele período, foram reti-dos em Três Marias. Dessa forma, a libera-ção para Sobradinho, em quantidades ade-quadas ao atendimento dos múltiplosusos, não foi cumprida satisfatoriamente.

A situação criada acendeu uma luz de aler-ta na Chesf, que agiu com rapidez para mi-nimizar as possibilidades de exaustão quepoderiam existir em Sobradinho, caso nadafosse feito a respeito. A companhia conse-guiu autorização da Agência Nacional dasÁguas (ANA) para liberar da represa cer-ca 1,1 mil m³/s para todo o Submédio e aoBaixo São Francisco. Esse volume deflu-ente (que sai da represa) possibilitou a re-cuperação volumétrica de Sobradinho(hoje, a represa apresenta cerca de 72% deseu volume preenchido), por tratar-se deum valor menor do que aquele registradoem sua afluência, estimado em cerca de 2,6mil m³/s. No entanto, a multiplicidade de

uso das águas do São Francisco com es-ses baixos volumes defluentes tem ocasi-onado grandes transtornos à populaçãoresidente na bacia, principalmente àquelaque sobrevive do rio.

PISCICULTURA E IRRIGAÇÃO

PREJUDICADAS

No dia 26 de janeiro, por exemplo, um ci-dadão em Propriá (SE) havia conseguidoatravessar o Rio São Francisco numamoto. A piscicultura é outra atividade quetem sido seriamente afetada. A retençãode sedimentos no interior das represasgeradoras de energia tem interferido so-bremaneira na turbidez de suas águas,confundindo a fisiologia dos peixes e abor-tando suas desovas. A redução da tem-peratura das águas é outro fator preocu-pante, principalmente nos locais mais pro-fundos das represas; e isso tem trazidosérios transtornos à reprodução eaodesenvolvimento de algumas espéci-es. A falta de escadas ou de canais, quepossibilitem a subida do peixe do rio parao interior das represas, na época da pira-cema, igualmente tem causado o desapa-recimento do pescado no São Francisco.O caso do surubim é um exemplo disso.

A geração de energia elétrica pelo sis-tema da Chesf e sua transmissão paraoutras localidades do país (o sistema

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João Suassuna – Engenheiroagrônomo pela UFPB, pesquisador titularda Fundação Joaquim Nabuco (PE),especialista em Planejamento Florestalpela Fundação Getúlio Vargas (RJ).Artigo originalmente publicado pelaAgência de Notícias Repórter Brasil eno EcoDebate em 8 de maio de 2008.

elétrico brasileiro é interligado) têm re-duzido, com certa rapidez, o nível dosreservatórios das hidrelétricas. Esseproblema interfere, de forma preocupan-te, principalmente na irrigação, pratica-da próxima às represas.

Produtores de cebola em Sobradinho nãoestão conseguindo conduzir os sistemasde irrigação a contento devido à rapidezcom que o nível da represa decresce, afas-tando a área irrigada do ponto de capta-ção da água, com resultados desastrososnas colheitas. O primeiro sinal que de-monstra a ocorrência desse problema é oaparecimento das ruínas das cidades queforam submersas. A velha Remanso, naBahia, freqüentemente volta à tona pelouso continuado das águas de Sobradi-nho na geração de energia.

O esvaziamento de Sobradinho, de formaabrupta, tem intrigado muitos técnicos e,em especial a nós, que estamos envolvi-dos com essas questões há mais de umadécada. É difícil imaginar que Sobradinho– reservatório estratégico para o gover-no na implantação do projeto da transpo-sição e um dos maiores lagos artificiaisdo mundo – venha passando por situa-ções volumétricas críticas tão expressi-vas. Em dezembro de 2007, a represa esta-va com cerca de 15% de sua capacidade,após ter vertido no mês de abril. Esse casoleva-nos a crer na falta de controle no ge-renciamento de suas águas.

O MAIOR LAGO ARTIFICIAL DO MUNDO

Corroborando com as nossas preocu-pações, em nota sobre as questões dosbaixos volumes alcançados nos reser-vatórios do país, Henrique Cortez, co-ordenador da revista eletrônica “EcoDebate”, fez as seguintes considera-ções: “o reservatório de Sobradinhotem cerca de 320 km de extensão, comuma superfície de espelho d´água de4.214 km² e uma capacidade de armaze-namento de 34,1 bilhões de metros cú-bicos em sua cota nominal de 392,50 m,constituindo-se no maior lago artifici-al do mundo, garantindo assim, atra-vés de uma depleção de até 12 m, jun-tamente com o reservatório de TrêsMarias/CEMIG, uma vazão regulariza-da de 2.060 m³/s nos períodos de estia-gem, permitindo a operação de todasas usinas da Chesf situadas ao longodo Rio São Francisco”.

Prossegue a nota: “O reservatório podesuportar até dois anos de estiagem atéchegar a 10% de seu volume útil. Entãocomo foi possível que fosse reduzido de98,62%, em março/2007, para 16,52%, emdezembro/2007 – uma redução de 82,10%do volume útil em apenas nove meses?Nenhuma estiagem, por si só, explica talredução, da ordem de 28 bilhões demetros cúbicos. Alguém mais, além deSão Pedro, deve explicações para tal ina-creditável redução”.

Diante de todo esse episódio, o que cau-sa estranheza é que nosso esforço emalertar as autoridades sobre a gravidadedesses problemas não tem tido a atençãodevida. No nosso entendimento, tem fal-tado sensibilidade aos governantes diantedos graves problemas do Nordeste seco,principalmente quanto a suas questõeshidrológicas.

Seria muito oportuna uma visita do Pre-sidente Lula à região de Porto da Folha(SE), no Submédio São Francisco, como propósito de conhecer de perto a situ-ação de penúria hídrica em que se en-contra o rio, verdadeiro filete de águaserpenteando num leito assoreado.

TRANSPOSIÇÃO DAS ÁGUAS:

PROJETO LESIVO

A concretização dessa visita daria ao Presi-dente uma ótima oportunidade para avaliaras conseqüências dos investimentos a se-rem realizados numa obra de transposiçãoque não resolverá os problemas de abasteci-mento das populações carentes nordestinas.Ademais, sobretudo, alertaria sobre os pre-juízos que certamente serão causados aosprojetos já implantados ao longo da bacia.

Da forma como as questões estão sendo con-duzidas, é de se supor que a inviabilidade douso das águas do rio São Francisco no pro-jeto transpositório em curso venha a ser de-monstrada, não pelos alertas insistentes dostécnicos a esse respeito, mas, e principalmen-te, pela própria natureza nordestina que nãoproverá os volumes necessários ao atendi-mento de suas necessidades. ■

Tem faltado sensibilidade aos nossos

governantes diante dos graves problemas

do nordeste seco.

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FOME

A fome é uma constante em todasas sociedades históricas. Hoje,entretanto, ela assume dimensões

vergonhosas e simplesmente cruéis. Revelauma humanidade que perdeu a compaixãoe a piedade. Erradicar a fome configura-secomo imperativos humanístico, ético, soci-al e ambiental. Uma precondição mais ime-diata e possível de ser posta logo em práti-ca é um novo padrão de consumo.

A sociedade dominante é notoriamenteconsumista. Dá centralidade ao consu-mo privado, sem autolimite, como objeti-vo da própria sociedade e da vida daspessoas. Consome não apenas o neces-sário, o que é justificável, mas o supér-fluo, o que questionável. Esse consumis-mo só é possível porque as políticas eco-nômicas que produzem os bens supér-fluos são continuamente alimentadas,apoiadas e justificadas.

Grande parte da produção destina-se a ge-rar o que, na realidade, não precisamospara viver decentemente. Como se tratade supérfluos, recorrem-se a mecanismosde propaganda, de marketing e de persua-são para induzir as pessoas a consumireme a fazê-las crerem que o supérfluo é ne-cessário e fonte secreta da felicidade.

O fundamental para esse tipo de marke-ting é criar hábitos nos consumidores a

tal ponto que se crie neles uma culturaconsumista e a necessidade imperiosade consumir. Mais e mais se suscitamnecessidades artificiais e em função de-las, monta-se a engrenagem da produ-ção e da distribuição.

As necessidades são ilimitadas por esta-rem ancoradas no desejo que, por nature-za, é ilimitado. Em razão disso, a produ-ção tende a ser também ilimitada. Surgeentão uma sociedade, já denunciada porMarx, marcada por fetiches, abarrotada debens supérfluos, pontilhada deshoppings, verdadeiros santuários doconsumo, com altares cheios de ídolosmilagreiros, mas ídolos; no termo, umasociedade insatisfeita e vazia porque nadaa sacia. Por isso, o consumo é crescente enervoso, sem sabermos até quando a Ter-ra finita aguentará essa exploração infini-ta de seus recursos.

Não causa espanto o fato de o PresidenteBush conclamar a população para consu-mir mais e mais e, assim, salvar a economiaem crise, lógico, à custa da sustentabilida-de do planeta e de seus ecossistemas.

Contra isso, cabe recordar as palavras deRobert Kennedy, em 18 de março de 1968:“Não encontraremos um ideal para a na-ção nem uma satisfação pessoal na meraacumulação e no mero consumo de bens

materiais. O PIB não contempla a belezade nossa poesia, nem a solidez dos valo-res familiares, não mede nossa argúcia,nem a nossa coragem, nem a nossa com-paixão, nem a nossa devoção à pátria.Mede tudo menos aquilo que torna a vidaverdadeiramente digna de ser vivida”.Três meses depois, ele foi assassinado.

Para enfrentar o consumismo urge sermosconscientemente anticultura vigente. Háque se incorporar na vida cotidiana, osquatro “erres” principais: reduzir os obje-tos de consumo, reutilizar os que já te-mos usado, reciclar os produtos dando-lhes outro fim e finalmente rejeitar o que éoferecido pelo marketing com fúria ousutilmente para ser consumido.

Sem esse espírito de rebeldia conseqüen-te contra todo tipo de manipulação dodesejo e com a vontade de seguir outroscaminhos ditados pela moderação, pelajusta medida e pelo consumo responsá-vel e solidário, corremos o risco de cair-mos nas insídias do consumismo, aumen-tando o número de famintos e empobre-cendo o planeta já devastado. ■

Por Leonardo Boff

Leonardo Boff - Teólogo, professoradjunto de Ética, de Filosofia daReligião e de Ecologia na (UERJ).Artigo publicado pelo O Tempo, MG em09/05/2008 e no EcoDebate , 12/05/2008.

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Sempre existiu,mas hoje resulta do consumo.

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Há quase três décadas, o processo dedemarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol (Tirss) – localizada

em Roraima, na fronteira do Brasil com aGuiana e com aVenezuela – mobiliza índios,Forças Armadas, os governos estadual e fe-deral, arrozeiros e ocupantes não-índios. Emabril de 2005, o Presidente Luiz Inácio Lula daSilva homologou a demarcação contínua daTirss e estabeleceu o prazo de um ano para aretirada dos ocupantes não-índios. Entretan-to, estes, sobretudo seis arrozeiros, ainda per-manecem nas terras. Os opositores à demar-cação contínua – o governo de Roraima, agri-cultores, entre outros – resistem à desocupa-ção e defendem a demarcação da Tirss emilhas, conservando, por exemplo, a ocupaçãonão-indígena sobre as áreas de cultivo.

O pesquisador em etnoecologia do Institu-to de Pesquisa da Amazônia (Inpa), Vincen-zo Lauriola, ressalta que a demarcação con-tínua da Tirss representa um modelo impor-tante de gestão sócio-ambiental e de desen-volvimento sustentável, por ser inteiramen-te delimitado por fronteiras naturais. “Na sualuta pela área única ‘de rio a rio’, os índiosdemonstram sabedoria ambiental, buscan-

Demarcar as terras

indígenas sem

incorporar espaços

indispensáveis aos

povos significa

condenar os indivíduos

e as identidades

socioculturais à

extinção – fato que

configura etnocídio.

DIREITOSINDÍGENAS

por Flávia Dourado

RAPOSA SERRA DO SOL

Comunidade Jawari, Terra Indígena Raposa Serra do Sol (RR) - O tuxaua Constantino mostrafoto de índio que teria sido ferido em ataque atribuído a arrozeiros.

do indiretamente evitar problemas queafetam outras áreas indígenas, como oParque Indígena do Xingu, cujas condi-ções ambientais são gravemente amea-çadas pelo desmatamento provocadopela expansão das monoculturas e da pe-cuária nas nascentes dos rios que o atra-vessam, devido ao fato de que ficaramfora da área demarcada”.

O estudioso destaca ainda o valor sim-bólico da demarcação contínua da Tirss,justamente por ela ficar no estado brasi-leiro de ocupação não-indígena mais re-cente e menos povoado, “ou seja, ondeos fatores históricos e demográficos de-veriam definir as premissas mais favorá-veis ao reconhecimento dos direitos ter-ritoriais indígenas”.

Para ele, a decisão em torno da demarcaçãoda Tirss representa um divisor de águasfundamental para os rumos futuros daspolíticas de respeito e de promoção dosdireitos das minorias. “O êxito final da ‘saga’da Raposa Serra do Sol vai nos dizer se osdemais povos indígenas do Brasil queaguardam seus direitos a serem reconheci-

dos ainda podem ter esperança de obtê-los,ou se, mesmo aqueles que já têm suas terrasdemarcadas precisam se preocupar com ame-aças de futuras revisões e reduções”.

Segundo Ana Paula S. Maior, advogadado Instituto Socioambiental (ISA), ceder aesse tipo de pressão seria um retrocesso.A causídica conta que após a identifica-ção da Raposa Serra do Sol, concluída em1992, houve três meses para que pessoasinteressadas contestassem a delimitação.“Questões relativas à soberania nacional,à integridade territorial de Roraima e à ocu-pação dos arrozeiros já foram amplamentediscutidas no bojo desse processo. Sãopreocupações plenamente superadas”.

IDENTIDADE ÉTNICO-CULTURAL

Os defensores dos direitos indígenas ar-gumentam que a demarcação contínua tam-bém é importante do ponto de vista étni-co-cultural. Ana Paula Maior ressalta queos índios precisam de um território mínimopara garantirem suas sobrevivências físi-ca e cultural, que inclui áreas de plantio,de caça e de pesca, além daquelas que ser-vem de referência cultural, como cemitéri-

Divisor de águas na política indigenista

fotos: Roosewelt Pinheiro/ABr

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Flávia Dourado: da ComCiência, RevistaEletrônica de Jornalismo Científico, SBPC/LABJOR. Pub. em EcoDebate de 12 /05/2008.Mais informações: Dossiê Direitos Indígenas(http://www.comciencia.br/reportagens)e Conselho Indígena de Roraima (CIR)(http://www.cir.org.br)

os e locais sagrados. “Isso cria uma uni-dade territorial e viabiliza a manutenção daidentidade indígena”. Para Vincenzo Lau-riola, demarcar terras sem incorporar os es-paços indispensáveis aos povos indíge-nas “significaria condenar não apenas asidentidades sócio-culturais à extinção, mastambém os indivíduos, configurando-se aperspectiva de verdadeiros etnocídios”.

Lauriola cita o exemplo dos Guarani, no MatoGrosso do Sul, que tiveram as terras demar-cadas em ilhas, em meio a áreas de cultivoagrícola. O resultado dessa negação à uni-dade territorial, de acordo com ele, é a deses-truturação dos mecanismos culturais tradi-cionais; e isso tem levado a altas taxas desuicídios coletivos, ao alcoolismo, à desnu-trição infantil e à violência entre os índios.

DIREITOS INDÍGENAS

A demarcação de terras indígenas é pre-vista no artigo 231 da Constituição, quereconhece o direito originário dos índiosao usufruto exclusivo dos recursos natu-rais dos territórios tradicionalmente ocu-padas por eles e necessários às suas ma-nutenções física, social e cultural. A lei nãoconcede, portanto, a propriedade das ter-ras – que continuam pertencendo à União–, mas o usufruto de suas riquezas, excetoas presentes no subsolo.

A Declaração dos Povos Indígenas da ONU– documento assinado por 143 países, in-clusive o Brasil, em 2007 – resguarda osdireitos dos índios, tais como a proprieda-de das terras,o acesso aos recursos natu-rais de seus territórios, a autodeterminaçãoe à preservação de sua identidade cultural ede seus conhecimentos tradicionais.

Segundo Henyo Trindande Barreto B. Filho,antropólogo e ex-membro da Comissão deAssuntos Indígenas da Associação Brasilei-ra de Antropologia (ABA), acordos internaci-onais como esse mostram que assegurar osdireitos dos índios não é uma invenção nemuma pretensão exclusivamente brasileira.“Essa é uma tendência global. Quem estivercontra vai ser atropelado pela História”. ■

0S RIZICULTORES SÃO OS INVASORESO professor do Departamento de Antropologia da Universidade Brasília (UnB), StephenBaines desenvolve uma pesquisa sobre etnologia indígena e Estados nacionais, naqual analisa casos do Brasil, do Canadá e da Austrália – que enfrentam debatescomuns, tais como a demarcação e a exploração das terras destinadas aos índios.Segundo ele, não existe um modelo que possa ser copiado pelos brasileiros, pois asdiferenças entre as condições de cada país são enormes.Isso posto, observa: os aborígines da Austrália têm território maior que o dos índiosbrasileiros; em 1999 o Canadá destinou a indígenas área contínua quase cemvezes maior que a da polêmica Raposa Serra do Sol e isso não causou problemas;e em todas as terras indígenas abertas à mineração empresarial houve empecilhosambientais e culturais. Baines acredita que qualquer decisão no Supremo TribunalFederal (STF) contra a homologação da Raposa atentará contra a Constituição eassegura: “Os rizicultores são os invasores.”

Na polêmica em torno da Raposa Serra do Sol, ninguém se opõe à concessão deterras aos índios. O problema está na forma da demarcação: em terra contínua ouem ilhas, com a permanência de não-indígenas no território.A Raposa Serra do Sol foi demarcada em 1998 e homologada em área contínua em2005. A demarcação e a homologação foram realizadas após estudos detalhados dasnecessidades dos quase 15 mil indígenas que ali vivem e de acordo com a Constitui-ção. Parece óbvio que desfazer agora esse processo seria um ato anticonstitucional euma reversão à prática da justiça. A permanência de não-indígenas na área seria umaafronta aos direitos dos índios, pois os rizicultores são invasores recentes.

QUAL É O PROBLEMA COM A DEMARCAÇÃO DE TERRAS EM ILHAS?Em todos os exemplos que conheço, tem trazido problemas graves, com permanen-tes conflitos fundiários entre índios e fazendeiros. A demarcação em áreas contínuasdá uma garantia aos índios para desenvolverem suas terras da maneira que que-rem, sem pressões.

AFIRMA-SE QUE OS ÍNDIOS DO BRASIL JÁ RECEBERAM TERRAS DEMAIS.Segundo números de 2005, 109.641.763 hectares – 12,7% do território brasileiro –são reconhecidos como terra indígena. Na Austrália, país pouco menor que oBrasil, segundo dados de 1997, aproximadamente 117 milhões de hectares – 15%do território – são terra indígena. Em 1999 o Canadá reconheceu o território deNunavut, no qual 85% dos quase 31 mil habitantes são nativos americanos. Nunavuttem 2.093.190 quilômetros quadrados.

NUNAVUT É QUASE CEM VEZES MAIOR QUE A RAPOSA EM 1,7 MILHÃO DE HECTARES.Correto. Trata-se de uma vasta área no nordeste do país.

O CONGRESSO DISCUTE A EXPLORAÇÃO DE RECURSOS MINERAIS EM TERRAS INDÍGENAS. HÁ

UM MODELO ESTRANGEIRO PARA RESOLVER ISSO?Não. Em geral a exploração de minérios em terras indígenas resulta em destruição doambiente e em impactos negativos, como alcoolismo, doenças e prostituição. Em 2003,o Foro Permanente de Assuntos Indígenas do Canadá revelou que projetos desse tipocausaram a destruição de ecossistemas. Na Austrália, constatou-se que atividades demineração trazem mais prejuízos que vantagens para os povos impactados.

Roldão Arruda para O Estado de S. Paulo (05/05/08).Publicado pelo IHU On-line, 05/05/2008 e pelo EcoDebate em 06/05/08

Lago Caracaranã onde se localiza uma fazenda ocupada há 81 anos por não-índios

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“Em outros declives semelhantes, vimos, com prazer, progressivos indíciosde desbravamento, isto é, matas em fogo ou já destruídas, de cujas cinzascomeçavam a brotar o milho, a mandioca e o feijão”.

“Pode-se prever que em breve haverá falta até de madeira necessária paraconstruções se, por meio de uma sensata economia florestal, não se der fimà livre utilização, ou, melhor dizendo, devastação das matas desta zona”.

“As ervas desse campo, para serem removidas e para fertilizar o solo comcarbono e extirpar a multidão de insetos nocivos, são queimadas anual-mente pouco antes de começar a estação chuvosa (...) assistimos comespanto à surpreendente visão da torrente de fogo ondulando poderosa-mente sobre a planície sem fim”.

“(...) a atividade dos homens que esburacam o solo (...) para a extração demetais. Covas informes e montões de cascalho desfiguram as serras situa-das a oeste e norte da cidade, nas quais corre ouro no xisto argiloso”.

“Infelizmente (...), ávidos de sua carne [tatu galinha], não ponderamsobre essas sábias disposições. Perseguem-no com tanta violência, como sea espécie tivesse de ser extinta.”

“No solo adubado com cinzas das matas queimadas dá boas colheitas (...)Contudo, isso se refere somente à colheita do primeiro ano; no segundo já émenor e, no terceiro, o solo em geral está parcialmente esgotado e em parte tãoestragado por um capim compacto (...) que a plantação é desfeita ...”

“Maiores lucros deram, outrora, as minas de ouro (...). Agora estão esburaca-dos os bancos de areia dos rios de todos os lugares e a superfície da terra”

“Em parte, haviam sido queimadas grandes extensões das pradarias. Assistihoje a este fenômeno diversas vezes e, por um quarto de hora, atravessamoscampos incendiados, crepitando em altas chamas”.

“Subimos então a Serra Garo, que oferecia um aspecto totalmente singu-lar de abandono e devastação pelas inúmeras escavações feitas para aslavras de ouro”.

NADA MUDOU...

por Rogério Grassetto Teixeira da Cunha

Relato de um naturalista do século 19 revela nossa

histórica relação de maus tratos com o meio ambiente.

Pela linguagem pouco usual, você deve ter se perguntado de onde essas citações foram extraídas e a que lugares referem-se. Poderá imaginar que são trechos de publicações

técnicas sobre o meio ambiente. Talvez relato de um membro de umaONG ambientalista, de um viajante de Portugal ou qualquer outra coisado gênero. Pois bem, não é nada disso. As transcrições foram retira-das do livro Viagem no Interior do Brasil (1976, Editora Itatiaia/EDUSP,tradução de Milton Amado e Eugênio Amado), escrito pelo naturalis-ta austríaco Johann Emanuel Pohl; obra que particularmente recomen-do pela riqueza de informações sobre o Brasil da época.

Rogério Grassetto Teixeira da Cunha– Biólogo, doutorem Comportamento Animal pela Universidade de SaintAndrews. E-mail: [email protected]. Artigo originalmentepublicado pelo Correio da Cidadania, em 05/12/2007.

DESDE POHL

Johann Baptist Emanuel Pohl – Médico, geólogo e botânico austrí-aco. Integrou a Missão Austríaca ao Brasil entre 1817 e 1822. Veio comoencarregado da parte de mineralogia, assumindo depois a de botânica.Desligou-se da expedição e empreendeu uma viagem de quatro anospelo interior do Brasil, atravessando o Rio de Janeiro, Minas Gerais eGoiás. A jornada rendeu o livro «Viagem ao interior do Brasil» e a obrabotânica «Plantarum Brasiliae icones et descriptiones hactenus inedi-tae» («Ícones e descrições de plantas do Brasil até agora inéditos»).

Leia, caro leitor, as citações abaixo: MEIO AMBIENTE: ABUSOS ONTEM E HOJE

O detalhe que torna as citações mais interessantes para àquelaspessoas preocupadas com o meio ambiente é a época em que forafeita a viagem ao Brasil: entre 1818 e 1819. Isso mesmo, há quase190 anos! Repito: cento e noventa anos atrás. Triste constatar que,de lá pra cá, não só pouco mudou dessa situação, como retrocede-mos em outros aspectos.

O naturalista viajou pelos estados do Rio de Janeiro, Minas Ge-rais, Goiás e Tocantins e descreveu os caminhos por onde pas-sou, citou detalhes geológicos, aspectos da fauna e da flora, cos-tumes e tradições das cidades, do campo e de agrupamentos indí-genas, além de ter narrado aspectos históricos.

Embora o meio ambiente não seja o foco principal da obra, podem-seextrair da obra de Pohl várias conclusões a respeito da forma como omeio ambiente era tratado. O imediatismo, a destruição pela cobiça, anefanda prática das queimadas, a falta de planejamento e o hábito deesgotar os recursos para posteriormente mudar o local da destruiçãosão facilmente percebidos ao longo do texto. Na verdade, dada aépoca em que o relato fora feito, isso não constitui grande surpresa.O mais impressionante, no entanto, é a analogia com os dias atuais.

No tocante à mineração, basta lembrar Serra Pelada, os acidentescom derramamento de substâncias tóxicas no rio Pomba, as invasõesde terras indígenas e áreas protegidas. Sobre a exploração madeireira,temos a mesma gana exploratória, agora disfarçada sob os auspíciosdas Concessões Florestais de florestas públicas, planos de manejo edo recém-criado Serviço Florestal Brasileiro. No quesito queimadas,continuamos com taxas recordes e com números que beiram ao ridí-culo. Quanto à extinção de espécies e ao desmatamento, bem, é me-lhor não comentar. Quase dois séculos se passaram, o discurso am-bientalista ganhou força, as ONGs são entidades de peso políticoextraordinário, mas tudo indica que, na prática, nada mudou. ■

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