cinema e cidades

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1 MARGENS DO MUNDO: A PERIFERIA NAS TEORIAS DO CONTEMPOR´NEO * Angela Prysthon Doutora em Teoria Crtica e Estudos Hispnicos e Latino-Americanos pela Universidade de Nottingham, Inglaterra Professora da Universidade Federal de Pernambuco [email protected] RESUMO O propsito deste trabalho Ø discutir o conceito de periferia a partir da moldura terica dos Estudos Culturais contemporneos. Se na contemporaneidade nªo hÆ mais dentro e fora, em que lugar ficaria a periferia? Pode-se, ainda, falar de fronteiras, de lugares, de identidades? Se Ø certo que hÆ uma crise de centralidade, que hÆ um processo de descentramento em curso, Ø certo tambØm que essa crise afeta e modifica a prpria idØia de periferia. Temos, pois, uma crise (ou um conjunto de crises) que precipita um jogo de graus e intensidades, de hibridismo, e artificialidade. A cultura contempornea compıe a operacionalizaªo do jogo. Este artigo vai, precisamente, discutir alguns dos mecanismos e reflexos dessa operacionalizaªo no mbito do que se convenciona chamar de cultura perifØrica. (...)entªo o lado mais positivo da cultura global revelaria a possibilidade de uma encenaªo, por mais fugaz que seja, da diferena singular dentro da totalidade. Esses sonhos singulares nªo sªo apenas os sonhos * Este trabalho forma parte de reflexıes mais gerais acerca da natureza da periferia na cultura contempornea e foi enriquecido pelos debates nas reuniıes da pesquisa Representaıes Urbanas: Recife e suas expressıes midiÆticas do grupo Comunicaªo, Tecnologia e Estudos Culturais do Programa de Ps-graduaªo em Comunicaªo da UFPE. .

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Artigo da revista famecos

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    MARGENS DO MUNDO: A PERIFERIA NAS TEORIAS DO CONTEMPORNEO *

    Angela Prysthon Doutora em Teoria Crtica e Estudos Hispnicos e

    Latino-Americanos pela Universidade de Nottingham, Inglaterra

    Professora da Universidade Federal de Pernambuco

    [email protected]

    RESUMO

    O propsito deste trabalho discutir o conceito de periferia a partir da moldura terica dos

    Estudos Culturais contemporneos. Se na contemporaneidade no h mais dentro e fora, em

    que lugar ficaria a periferia? Pode-se, ainda, falar de fronteiras, de lugares, de identidades?

    Se certo que h uma crise de centralidade, que h um processo de descentramento em curso,

    certo tambm que essa crise afeta e modifica a prpria idia de periferia. Temos, pois, uma

    crise (ou um conjunto de crises) que precipita um jogo de graus e intensidades, de hibridismo,

    e artificialidade. A cultura contempornea compe a operacionalizao do jogo. Este artigo

    vai, precisamente, discutir alguns dos mecanismos e reflexos dessa operacionalizao no

    mbito do que se convenciona chamar de cultura perifrica.

    (...)ento o lado mais positivo da cultura global revelaria a possibilidade

    de uma encenao, por mais fugaz que seja, da diferena singular

    dentro da totalidade. Esses sonhos singulares no so apenas os sonhos * Este trabalho forma parte de reflexes mais gerais acerca da natureza da periferia na cultura contempornea e foi enriquecido pelos debates nas reunies da pesquisa Representaes Urbanas: Recife e suas expresses miditicas do grupo Comunicao, Tecnologia e Estudos Culturais do Programa de Ps-graduao em Comunicao da UFPE. .

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    dos posseiros urbanos de Buenos Aires e das feministas de La Morada,

    dos homossexuais americanos ou dos fundamentalistas muulmanos,

    dos lderes guerrilheiros neozapatistas ou dos cyberpunks alemes, dos

    greenheads catales, dos roqueiros galegos ou dos praticantes do S & M

    em Bangkok: eles so tambm os sonhos dos intelectuais dos estudos de

    rea acadmicos, enquanto resistem a se reconverter em intelectuais

    corporativos no prprio instante de sua absoro universidade global.

    (MOREIRAS, 2001, 91)

    A produo cultural da periferia e o debate sobre ela tm consolidado uma tendncia

    na teoria crtica: o discurso da diferena estabelece uma espcie de poltica das minorias. As

    diferenas culturais precipitam um imperativo para o terico da cultura, que preparar uma

    moldura conceitual que redefina o papel das minorias, dos subalternos, dos deserdados da

    terra (lembrando Fanon), do que era chamado de Terceiro Mundo na reordenao global

    da cultura. Podemos ver no corpus dos Estudos Culturais contemporneos e das teorias ps-

    colonialistas as anlises mais agudas dos processos dessa reordenao.

    Os Estudos Culturais e o ps-colonialismo reafirmam, como antes as teorias e polticas

    terceiro-mundistas, mas de modo muito mais articulado teoricamente, o papel do perifrico na

    Histria e a prpria Histria perifrica. No caso da teoria ps-colonial especificamente, v-se

    uma empresa de des-colonizao, mas no a des-colonizao concreta (algo que j foi mais ou

    menos realizado) das lutas armadas e acordos militares, mas a des-colonizao da Histria e

    da teoria, uma abordagem de fato alternativa do Ocidente. De teoria estritamente relacionada

    com as ex-colnias de lngua inglesa a uma abordagem de muito maior escopo, os estudos

    ps-coloniais reinserem o debate da identidade nacional, da representao, da etnicidade, da

    diferena e da subalternidade no centro da histria da cultura mundial contempornea.

    Comentando a obra de Gayatri Chakravorty Spivak (uma das mais destacadas

    representantes e simultaneamente crticas da teoria ps-colonial), Robert Young considera a

    classificao de subalterno tanto para a historiografia produzida pelo Outro, como o sujeito

    que a produz.

    O historiador subalterno (o subalternista) no apenas localiza instncias

    histricas de insurgncia, mas tambm se alinha subalternidade como

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    uma estratgia para levar a historiografia hegemnica a uma crise o

    que resulta numa boa descrio da estatgia de orientao do prprio

    trabalho de Spivak.(YOUNG, 1990, 160)

    Ou seja, ao contrrio da antropologia clssica ou da historiografia tradicional, a teoria ps-

    colonial e os Estudos Culturais perifricos poderiam representar a periferia, mais do que isso

    j que o ps-colonialismo contesta uma j ultrapassada concepo de representao, a

    prpria voz do subalterno que est em jogo. A reescritura perifrica da Histria, ou a

    desconstruo do Ocidente feita pelos Estudos Culturais contemporneos e pelo ps-

    colonialismo, portanto, implica num constante ataque hegemonia ocidental e, se no uma

    completa inverso, a reacomodao do cnone cultural, o des-centramento anunciado pelas

    teorias ps-modernas, enfim.

    As zonas de contato entre Primeiro e Terceiro Mundos, pois, vo se multiplicando

    nas duas regies e, como seria de se esperar, no destroado Segundo. A existncia de

    bolses de Terceiro Mundo no Primeiro Mundo e seu contrrio, o Primeiro Mundo no

    Terceiro Mundo, so no apenas a confirmao da idia do Espao Hbrido, como tambm

    uma condio sine qua non do capitalismo transnacional e o sinal de que um mundo

    somente est cada vez mais parecido na sua diversidade. Justamente no espao intersticial, no

    fluido territrio intermedirio, nessa zona de negociao entre mundos, que est

    localizado o arcabouo cultural que serve de objeto para a teoria ps-colonial e o instrumental

    terico para analis-lo. Chegamos ao entrelugar.

    A crtica formada nesse processo de enunciao de discursos de

    dominao ocupa um espao que no est nem dentro nem fora da

    histria do domnio ocidental, mas numa relao tangencial com ele.

    o que Homi Bhabha chama de in-between, entrelugar, uma posio

    hbrida da prtica terica, ou o que Gayatri Chakravorty Spivak

    denomina catacrese; a reverso, o deslocamento e a posse do aparato

    dos cdigos valorativos (PRAKASH, 1992, 8)

    O lugar do perifrico na configurao da cultura contempornea e na crtica, anlise e

    teoria dessa cultura, portanto, est muito diferenciado em contraste com as disciplinas mais

    tradicionais. um ponto de observao privilegiado no sentido da multiplicidade desse

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    espao intermedirio. Mesmo que tantas outras teorias e estticas j houvessem

    problematizado conceitos como representao, identidade, outridade, hibridismo, colonizao,

    Ocidente, Oriente; com os Estudos Culturais e com o ps-colonialismo esses elementos so

    colocados num marco de referncias que, ao invs de simplesmente inverter ou descartar

    termos e hierarquias, vai question-los na sua essncia e na sua malha de interrelaes, vai

    pensar as condies de possibilidade, continuidade e utilidade da sua construo.

    A ps-colonialidade representa uma resposta a uma necessidade

    genuna: a necessidade de superar a crise de entendimento produzida

    pela inabilidade das velhas categorias em dar conta do mundo.

    (DIRLIK, 1994, 352)

    O que no corresponde a dizer que o ps-colonialismo e os Estudos Culturais so

    teleologicamente positivos em relao ps-modernidade ou s micropolticas de final de

    milnio. No se trata de simplesmente ser ingenuamente otimista por causa da

    globalizao, por causa do hibridismo cultural e por uma suposta superao da experincia

    colonial, ou, no campo da esttica, de tentar inverter os valores do cnone moda da

    antropofagia brasileira modernista, por exemplo, assim proclamando a superioridade do

    perifrico, do terceiro-mundista. No to simples.

    Porque, sim, de certa forma, a ps-modernidade toma ao p da letra e leva a extremos

    uma interpretao conservadora da modernidade: a racionalizao teleolgica, a tecnologia e

    a modernizao passando por cima dos ideais libertadores do Iluminismo. As formas

    culturais produzidas nesse esquema teriam que se adaptar ao declnio da arte tradicional e das

    hierarquias marcadas entre os diversos tipos de cultura. Mas em outro sentido, o

    contemporneo e os Estudos Culturais e a teoria ps-colonial trabalham justamente com

    essa possibilidade tambm uma superao radical desse esquema no uma inverso , na

    medida em que emergem as polticas da diferena e da subalternidade:

    H mesmo uma convico crescente de que a experincia afetiva da

    marginalidade social como ela emerge em formas culturais no-

    cannicas transforma nossas estratgias crticas. Ela nos fora a

    encarar o conceito de cultura exteriormente aos objets dart ou para

    alm da canonizao da idia de esttica, a lidar com a cultura como

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    produo irregular e incompleta de sentido e de valor, freqentemente

    composta de demandas e prticas incomensurveis, produzidas no ato

    de sobrevivncia social.(BHABHA, 240)

    Exatamente no foco de todo repensar sobre a subalternidade e suas relaes com a

    identidade nacional e as polticas de superao do subdesenvolvimento, vamos nos encontrar

    novamente com a dualidade centro-periferia. Neste sentido, o debate sobre o ps-moderno

    serve, apesar da multiplicidade de encarnaes, propsitos e definies, fundamentalmente

    para designar a crise de centralidade pela qual passa o Ocidente. Insistimos que tal crise a

    pedra de toque da teoria contempornea, que vai repensar as regras do jogo da diferena

    cultural a partir do descentramento ps-moderno. O descentramento vai ser muitas vezes

    tomado como uma inverso de valores. De repente, as margens passam a centro e o centro a

    margem, numa celebrao catrtica das diferenas em desfile.

    A singularidade cultural o campo utpico do subalternista. O

    subalternista por definio deixa-se permanecer preso condio

    problemtica bsica de, ao mesmo tempo, afirmar e abandonar a

    singularidade cultural. O subalternista precisa afirmar e, em seguida,

    encontrar e representar isto , precisamente no construir a

    singularidade cultural do subalterno, tida como diferena positiva diante

    da formao cultural dominante. (MOREIRAS, 2001, 198)

    Os discursos tecidos num entrelugar (ver mais adiante discusso sobre o termo), as teorias

    baseadas nas culturas perifricas, as polticas da diferena apontam para um entrelaamento

    entre experincia cultural, a prtica da crtica e o terreno da poltica, para um transbordamento

    da cultura para fora do campo esttico. Vo sugerindo, assim, um campo fortemente marcado

    pela utopia: a utopia dos discursos da heterogeneidade, dos sonhos singulares, de um

    entrelugar complexo e hbrido. Ou seja, discursos que, num paradoxo sempre intrigante,

    almejam uma certa harmonia nas diferenas. E assim como a utopia depende da

    impossibilidade da sua realizao, o terico perifrico (e da periferia), do entrelugar, sabe que

    est permanentemente denunciando a impraticabilidade de seu projeto.

  • 6

    O entrelugar: a esfera do alm

    Homi Bhabha, logo na introduo de O Local da Cultura, afirma que o tropo dos

    nossos tempos colocar a questo da cultura na esfera do alm, onde estaramos vivendo nas

    fronteiras do presente, para as quais no parece haver nome prprio alm do atual e

    controvertido deslizamento do prefixo ps(BHABHA, 1998, 19). A esfera do alm no

    indica uma superao do passado ou uma escalada rumo ao futuro, mas um lugar e um

    momento de trnsito, um processo contnuo que produzem incessantemente as peas do jogo

    mencionado acima. Assim, Bhabha vai comeando a definir um dos tours de force de sua

    teoria, o que ele chama de in-between, o entrelugar da cultura, ponto que estaria

    precisamente nessas fronteiras e que simultaneamente articularia as temporalidades e as

    espacialidades do contemporneo: tempos e espaos mltiplos nos quais vo se confrontar

    permanentemente presente e passado, modernizao e tradio, tecnologia e natureza e nos

    quais vo sendo desafiadas as expectativas normativas de desenvolvimento e progresso

    (IDEM, 21). Ao promover esse confronto, a noo de entrelugar traz tona uma espcie de

    reordenao (poltica e cultural) do mundo, um remapeamento baseado na superao de vrios

    dos pilares da modernidade cultural, como a dialtica da dependncia cultural, a distino

    entre original e cpia, a oposio entre tradio e novidade.

    O conceito de entrelugar vai ser particularmente relevante para entender o que

    acontece com a contemporaneidade perifrica, at porque, em certa medida, ele surge dos

    embates vividos nas margens dos cnones culturais. Embora a idia de periferia sugira uma

    centralidade j proclamada obsoleta, ao mesmo tempo a cultura perifrica emerge no

    contemporneo como o instrumento principal de desestabilizao do centro. Silviano

    Santiago, usando o termo antes de Bhabha, alis, j definia o entrelugar como recuperao

    suplementar da tradio europia, como discurso utpico do eterno retorno em diferena

    (SANTIAGO, 1989, 109), como possibilidade de repensar as vanguardas em relao

    tradio, como ponto de partida para a constituio de um pensamento que desconstrua a

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    histria da dependncia. Em O entre-lugar1 do discurso latino-americano (1978), Silviano

    Santiago lana mo da histria colonial e das relaes entre indgenas e catequizadores para

    chegar a uma proposio talvez por demais generalizante para a contemporaneidade cultural

    da Amrica Latina.

    Entre o sacrifcio e o jogo, entre a priso e a transgresso, entre a

    submisso ao cdigo e a agresso, entre a obedincia e a rebelio, entre

    a assimilao e a expresso, ali, nesse lugar aparentemente vazio,

    seu templo e seu lugar de clandestinidade, ali, se realiza o ritual

    antropfago da literatura latino-americana.(IDEM,1978, 28)

    O entrelugar para Santiago explicaria fundamentalmente a diferena perifrica e subalterna

    (latino-americana) como devendo ao mesmo tempo s idias de progresso e modernidade

    cumprindo uma espcie de pacto com a Histria ocidental e incorporao de elementos

    alternativos das minorias lingsticas, sociais e culturais que compem os tempos e espaos

    multifacetados das culturas da periferia. Com essa mescla, com essa soma imaginria de

    culturas e imaginrios, a Amrica Latina representaria desde o perodo de colonizao no

    somente esses processos de hibridizao em si, mas a sua autoconscincia:

    A maior contribuio da Amrica Latina para a cultura ocidental vem

    da destruio sistemtica dos conceitos de unidade e de pureza: estes

    dois conceitos perdem o contorno exato do seu significado, perdem o

    seu peso esmagador, seu sinal de superioridade cultural, medida que o

    trabalho de contaminao dos latino-americanos se afirma, se mostra

    mais e mais eficaz.(IDEM, 1978, 18)

    A sua proposta, contudo, revela-se aplicvel no s cultura latino-americana, mas ao que ele

    chama de cultura dominada em geral; constituindo ento a desconstruo da hierarquia

    colonizador-colonizado.

    Paradoxalmente, o texto descolonizado (frisemos) da cultura dominada

    acaba por ser o mais rico (no do ponto de vista de uma estreita 1 Na primeira apario do termo, em Uma literatura nos trpicos (1978), Santiago utilizava o hfen. J nos ensaios subseqentes dos volumes Vale quanto pesa (1982) e Nas malhas da letra (1989), ele passa a abolir o hfen de entrelugar.

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    economia interna da obra) por conter em si uma representao do texto

    dominante e uma resposta a esta representao no prprio nvel da

    fabulao, reposta esta que passa a ser um padro de aferio cultural

    da universalidade to eficaz quanto os j conhecidos e

    catalogados.(IDEM, 1982, 23)

    Identidades fraturadas e hibridismo

    O entrelugar seria, portanto, um espao-tempo em essncia perifrico, seria o palco

    por excelncia para encenar os mltiplos embates poltico-culturais da contemporaneidade. A

    partir da delimitao desse espao/tempo-mltiplo do entrelugar, fica claro que uma vertente

    importante no discurso da teoria crtica da cultura tem sido a tematizao do descentramento

    identitrio ocorrido na ps-modernidade. Um dos clichs mais recorrentes da teoria

    contempornea parece ser o da quebra das identidades (sejam elas culturais, nacionais ou

    mesmo individuais). A discusso sobre a identidade vai ser fundamental para a prpria

    constituio do conceito de ps-modernidade.

    O ps-moderno (ps-modernidade) relevante para o debate sobre as culturas

    perifricas justamente porque oferece alternativas para a incessante busca de identidade na

    periferia mundial. Tanto as concepes estritamente estticas e estilsticas como as teorias

    mais globalizantes e completas do panorama social e cultural ps-moderno trazem a idia de

    descentramento no seu bojo. Ora, a dualidade margens-centro sempre foi um dos principais

    componentes da identidade perifrica e a quebra (ou mesmo apenas a aparente quebra...) desta

    dualidade coincide com a emergncia do questionamento deste tipo de dicotomia pela cultura,

    arte e teoria dos pases ditos subdesenvolvidos. Para essas regies, principalmente como

    construo simblica em permanente intercmbio com o Ocidente (ou o Nordocentro

    desenvolvido), inquestionvel a importncia e a recorrncia a termos como metrpole,

    cpia, simulacro, deslocamento, nao, alteridade... Presenas por vezes incmodas que o

    pensamento ps-moderno props-se a desafiar, e que a teoria perifrica tambm tem

    desconstrudo atravs de uma crtica s formas mais tradicionais de se colocar teoricamente o

    problema da diferena.

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    Em ltima instncia, a categoria ps-moderno beneficiou um vis de interpretao da

    identidade perifrica que se no essencialmente novo, ao menos parece mais aberto,

    polivalente que os anteriores esquemas binrios (metrpole / colnia, europeu / indgena,

    etc...). Um vis que se caracteriza pela utilizao positiva do termo hbrido e suas derivaes:

    as identidades perifricas vo sendo definidas e discutidas por meio da noo de hibridismo.

    Se no sculo XIX, hbrido, hibridismo e hibridizao eram palavras e noes quase que

    exclusivamente circunscritas ao mbito da biologia e da antropologia e carregadas de um

    sentido extremamente negativo, no final do sculo XX tm ocupado mais e mais destaque nas

    Cincias Humanas, Letras e Estudos Culturais. Um relevo que atinge seu pice na teoria ps-

    colonial, embora uma das primeiras reas alm da biologia e antropologia a focalizarem o

    hibridismo tenham sido a Filologia e a Lingstica, primeiro superficialmente no sculo XIX e

    com mais profundidade e especificidade depois na obra de Bakhtin (YOUNG, 1995, 6-20).

    Na Amrica Latina, o trabalho de Nestor Garca Canclini (1990), por exemplo, tem

    especial ressonncia na teoria ps-moderna, pois redimensiona o hbrido como o dominante

    mais bsico e geral da cultura latino-americana contempornea. O Estado Hbrido passa a

    denominar o carter mltiplo da cultura contempornea mundial, em especial a de regies

    marcadas pela existncia de vrias identidades ou origens: amerndia, europia, africana,

    asitica...; vrias temporalidades: pr-industrial, moderna, tecnolgica; e pela possibilidade de

    abolio das fronteiras entre cultura erudita, popular e de massas. Canclini analisa

    detalhadamente como se deu um esgotamento nos aparatos do Estado e como as polticas

    culturais tradicionais se tornaram obsoletas diante dessa hibridizao. Como o entrelugar, a

    idia do Estado Hbrido pode substituir o ps-moderno em algumas abordagens das teorias

    culturais mais recentes, na medida em que aponta o hibridismo inerente das identidades

    perifricas (em especial das sociedades latino-americanas) como uma espcie de antecedente

    e pressuposto para a constituio dos conceitos de pluralismo, multiculturalismo e ps-

    moderno na metrpole.

    Diferenas em desfile

    Se o entrelugar e o hbrido so conceitos que recolocam o problema das culturas

    perifricas no mbito terico, o multiculturalismo (tal como delineado a partir da dcada de

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    80) vai ser a concretizao e em alguns momentos deturpao de alguns dos componentes

    desses conceitos no territrio da produo cultural propriamente dita. O multiculturalismo

    poderia ser brevemente definido como o momento em que a cultura perifrica no apenas

    passa a ser percebida pela cultura central, como passa a ser consumida na metrpole; o ponto

    em que a diferena cultural passa a ser encarada como estratgia de marketing. A diferena

    torna-se ponto de partida para a integrao ao modelo capitalista global, especialmente em

    relao aos bens culturais.

    O mercado de cultura mundial abre-se, ento, ao multiculturalismo e os efeitos de uma

    cada vez maior presena de bens simblicos perifricos junto cultura de massa internacional

    se fazem sentir em todos os cantos do planeta, especialmente desde o incio da dcada de 80.

    William Rowe e Vivian Schelling constatam que:

    Todos os significados esto disponveis e transferveis, de Mozart

    msica folclrica boliviana, de Dallas s telenovelas brasileiras, de

    hamburgers a tacos. A tendncia de produtos de diferentes ambientes

    culturais se mesclarem numa escala global est acelerando enquanto o

    sculo caminha para o fim. (ROWE e SCHELLING, 1992, 1)

    Cabe lembrar que o multiculturalismo, como fenmeno ligado disseminao em

    massa das culturas locais, no pode ser visto sem reservas: mais do que iniciativas

    independentes nacionais & populares ou do que uma utpica rearticulao do local em

    escala global, ele tambm um jogo de interesses recprocos por parte de empresas, grupos

    polticos e indivduos. Outro receio provocado pela disseminao generalizada de culturas

    to diversas e peculiares de que ela tenha um efeito homogeneizador sobre essas culturas.

    Alguns exemplos rpidos: passa-se cada vez mais a consumir o Realismo Mgico j

    consagrado e filtrado pelas academias europias e norte-americanas (mais escritores

    seguidores deste estilo aparecem e se parecem); a cozinha tnica vem a ser o que o

    Ocidente quer que essa cozinha tnica seja (sushies, curries, tacos de sabor

    "internacional"...); a principal preocupao de world musicians se torna adaptar seu trabalho

    aos ouvidos norte-americanos dos big bosses das gravadoras.

    Admitindo todas essas limitaes mercadolgicas, estticas, polticas das

    diferenas em desfile do multiculturalismo contemporneo, inegvel que algo mudou no

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    cnone ocidental. E, como j foi pressentido no incio deste texto, o reflexo dessas

    transformaes vai ser especialmente intenso no debate terico. O multiculturalismo vai

    ultrapassar as fronteiras de um mercado cultural de massas mais sofisticado e acaba por tomar

    conta tambm da academia principalmente dos crculos anglo-americanos como fenmeno

    ps-moderno (visto assim como conseqncia de um dos traos da ps-modernidade o

    descentramento). Por um lado, o debate sobre multiculturalismo resvalou muitas vezes para

    uma oposio extrema entre conservadores e radicais multiculturalistas. Por outro, foi

    reaceso o interesse cultural no Outro para alm da psicologia, antropologia, lingstica e

    etnografia. O Outro que emerge no final dos anos 80 nos cursos universitrios europeus e

    norte-americanos , sobretudo, o Terceiro Mundo (claro, tambm a mulher, os gays e

    lsbicas, os negros...). E em especial assuntos concernentes s relaes entre Imprio e

    Colnias, ou ex-colnias. As teorias culturais contemporneas esto indissoluvelmente

    impregnadas por esse interesse pelo Outro, pela diferena, interesse que tem diversas

    naturezas (cientficas, culturais, mercadolgicas...) e onde todas podem conviver numa

    mesma teoria e num mesmo terico.

    uma espcie de dever do crtico de cultura, do terico da contemporaneidade,

    resgatar o projeto do discurso da diferena, vendo no entrelugar concebido no mais como

    inverso do cnone, como privilgio da periferia as possibilidades de dilogo entre

    culturas. Seria o ato transgressor (no melhor sentido) da traduo cultural, como a define

    Bhabha.

    Se hibridismo heresia, blasfemar sonhar. Sonhar no com o passado

    ou o presente, e nem com o presente contnuo; no o sonho nostlgico

    da tradio nem o sonho utpico do progresso moderno; o sonho da

    traduo, como sur-vivre, como sobrevivncia, como Derrida traduz

    o tempo do conceito benjaminiano da sobrevida da traduo, o ato de

    viver nas fronteiras. (BHABHA, 311)

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    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

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