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Revista Pensar Direito, Vol. 8, No. 2, JUL/2017 CITAÇÃO COM HORA CERTA NO PROCESSO PENAL E O PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO 1 Guilherme Rosa Pinho 2 RESUMO O princípio do contraditório, importante garantia de democracia no processo, possui duas facetas: a comunicação e a participação, sendo aquela a porta de entrada para esta. Dentro do viés comunicativo, ganha relevo a citação, ato de integração do acusado ao processo. A última reforma do Código de Processo Penal introduziu nova espécie citatória na seara criminal, a citação com hora certa, que precisa ser analisadaà luz do supradito princípio,com a cautela de não se permitirque ela lhe negue o sentido. PALAVRAS-CHAVE:Citação com hora certa; princípio do contraditório; processo penal; participação; consequências. ABSTRACT The adversarial principle, important assurance of democracy in procedure, has two aspects, information and participation: the former is the access point to the latter.In the informative attribute,the notification becomes relevant because it is the act of integration of the defendant to the procedure. The most recent change in Criminal Procedure Code introduced a new informative species on criminal field, the time- defined notification, whose study must be done in perspective of the aforesaid principle, for not be permitted its denial. KEY-WORDS:Time-defined notification; adversarial principle; criminal procedure law; participation; consequences. INTRODUÇÃO A sociedade brasileira vive cada dia mais aflita com os crescentes índices de criminalidade. A ineficácia da persecutio criminis é com frequência apontada como fator determinante para o aumento da prática de crimes. O legislador, como tentativa de responder às exigências sociais, vem buscando em reformas do Código de Processo Penal saídas para resolver a crise de impunidade. 1 Artigo escrito para conclusão da disciplina DIR-813 ‘Temas de Direito Processual Penal: Teorias da verdade no Processo Penal’ do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFMG, cursada no primeiro semestre de 2014. Com a entrada em vigor do CPC de 2015, o artigo foi atualizado com as regras do Novo Código. Como o Novo CPC não alterou a redação do CPP, manteve-se também neste artigo referência às normas do CPC/73. 2 Bacharel em Direito-UFV, Especialista em Direito Público-UCAM e em Direito Tributário-UGF, Mestre em Direito-UFMG e Doutorando em Direito-UFMG. Analista Judiciário do TRT-MG.

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Revista Pensar Direito, Vol. 8, No. 2, JUL/2017

CITAÇÃO COM HORA CERTA NO PROCESSO PENAL E O PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO1

Guilherme Rosa Pinho2

RESUMO O princípio do contraditório, importante garantia de democracia no processo, possui duas facetas: a comunicação e a participação, sendo aquela a porta de entrada para esta. Dentro do viés comunicativo, ganha relevo a citação, ato de integração do acusado ao processo. A última reforma do Código de Processo Penal introduziu nova espécie citatória na seara criminal, a citação com hora certa, que precisa ser analisadaà luz do supradito princípio,com a cautela de não se permitirque ela lhe negue o sentido. PALAVRAS-CHAVE:Citação com hora certa; princípio do contraditório; processo penal; participação; consequências. ABSTRACT The adversarial principle, important assurance of democracy in procedure, has two aspects, information and participation: the former is the access point to the latter.In the informative attribute,the notification becomes relevant because it is the act of integration of the defendant to the procedure. The most recent change in Criminal Procedure Code introduced a new informative species on criminal field, the time-defined notification, whose study must be done in perspective of the aforesaid principle, for not be permitted its denial. KEY-WORDS:Time-defined notification; adversarial principle; criminal procedure law; participation; consequences. INTRODUÇÃO

A sociedade brasileira vive cada dia mais aflita com os crescentes índices

de criminalidade. A ineficácia da persecutio criminis é com frequência apontada

como fator determinante para o aumento da prática de crimes. O legislador, como

tentativa de responder às exigências sociais, vem buscando em reformas do Código

de Processo Penal saídas para resolver a crise de impunidade.

1 Artigo escrito para conclusão da disciplina DIR-813 ‘Temas de Direito Processual Penal: Teorias da verdade no Processo Penal’ do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFMG, cursada no primeiro semestre de 2014. Com a entrada em vigor do CPC de 2015, o artigo foi atualizado com as regras do Novo Código. Como o Novo CPC não alterou a redação do CPP, manteve-se também neste artigo referência às normas do CPC/73. 2Bacharel em Direito-UFV, Especialista em Direito Público-UCAM e em Direito Tributário-UGF, Mestre em Direito-UFMG e Doutorando em Direito-UFMG. Analista Judiciário do TRT-MG.

Revista Pensar Direito, Vol. 8, No. 2, JUL/2017

Ao longo deste caminho, vez por outra, o Parlamento esquece-se de que

a Constituição Federal de 1988 estabeleceu um sistema de Processo Penal pautado

por princípios como a ampla defesa e o contraditório e termina por, quando pouco,

relativizar tais princípios em nome de um processo penal mais efetivo.

Em 2008 o Código de Processo Penal passou por uma destas reformas,

que, dentre outras inovações, introduziu no processo penal a citação com hora certa.

O presente artigo é fruto de reflexão acerca da utilização de mecanismo

citatório já conhecido do processo civil no processo penal.

O enxerto de instituto civilista na senda criminal pode não ser tão

compatível quanto se espera. O risco de rejeição é relevante, mormente porque

lidam os processos penal e civil com interesses de feição distinta, e por isto

rodeados de garantias diversas.

Neste trabalho, o recém chegado instituto, a citação com hora certa, será

analisado sob o foco do princípio do contraditório, o que, naturalmente, não impede

que seja repelido ou abraçado por outros baluartes do processo penal.

Em outras palavras, estas são as perguntas que se pretende responder com o

presente estudo: haveria desrespeito ao princípio do contraditório no uso da citação

com hora certa no processo penal? O status libertatis seria ameaçado pela utilização

da citação com hora certa na seara criminal? A citação com hora certa é compatível

com o processo penal?

Para responder a estes questionamentos, analisar-se-á o conjunto

normativo que regulamenta o instituto no Código de Processo Civil e no Código de

Processo Penal paraser confrontado com os contornos que a Doutrina põe para o

princípio do contraditório.

1. A CITAÇÃO COM HORA CERTA

1.1. A citação com hora certa no processo penal

Até o advento da lei 11.719 de 20 de junho de 2008, o processo penal

desconhecia a citação com hora certa. Esta forma de citação ficta foi nele

introduzida pelo artigo 362, verbis:

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Art. 362. Verificando que o réu se oculta para não ser citado, o oficial de justiça certificará a ocorrência e procederá à citação com hora certa, na forma estabelecida nos arts. 227 a 229 da Lei n

o 5.869, de 11 de janeiro de

1973 - Código de Processo Civil.

Antes da lei reformadora, não localizando o réu para ser citado,

independentemente do motivo, seja por ocultamento ou não, o Oficial de Justiça

devolvia o mandado, acompanhado de certidão negativa, e o juiz determinaria a

citação por edital, com todos os seuscorolários, ou seja, a suspensão do processo,

do prazo prescricional e a adoção de medidas cautelares, como, por exemplo, a

prisão, etc., caso o réu se mantivesse inerte3. Agora, a citação com hora certa surge

como uma novidade para casos em que o réu não é encontrado em razão de

ocultamento.

Observe-se que o Código de Processo Penal não se ocupou de

regulamentar a citação com hora certa, remetendo o assunto ao Código de Processo

Civil, onde o tema historicamente encontrou guarida. O Código sequer se deu ao

trabalho de estabelecer os requisitos, dizendo apenas que o Oficial de Justiça,

verificando que o réu se oculta para não ser citado, certificará a ocorrência e

procederá à citação com hora certa nos termos do CPC. Esta disposição do Código

de Processo Penal é bastante lacônica, pois o CPC, ao estabelecer os requisitos

não fala em “verificação de ocultamento” mas em simples “suspeita de ocultamento”,

o que traz consequências distintas. O mesmo se pode dizer da expressão “certificará

a ocorrência”, o que não acrescenta nada de novo; evidente que o Oficial certificará

o ocorrido, porém na prática processual civil é imperioso que o Oficial descreva, ao

certificar, os motivos de sua suspeita. De certo que ao determinar seja a citação com

hora certa procedida “na forma estabelecida nos arts. 227 a 229 da Lei no 5.869, de

11 de janeiro de 1973 - Código de Processo Civil.” a lei processual penal desloca

para o Código de Processo Civil toda a disciplina da matéria, quase que tornando

sua previsão mera autorização remissiva.

No parágrafo único do art. 362, ficou consignado resultado da citação com

hora certa: “Parágrafo único. Completada a citação com hora certa, se o acusado

não comparecer, ser-lhe-á nomeado defensor dativo.”

3“Art. 366. Se o acusado, citado por edital, não comparecer, nem constituir advogado, ficarão

suspensos o processo e o curso do prazo prescricional, podendo o juiz determinar a produção antecipada das provas consideradas urgentes e, se for o caso, decretar prisão preventiva, nos termos do disposto no art. 312.”

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Apenas a título de curiosidade, a reforma do CPP, além da inovação

citatória, gerou ainda um instituto desconhecido até então, inclusive para o processo

civil: a intimação com hora certa. Isto se deve ao fato de o artigo 370 prever a

aplicação das disposições referentes à citação, no que couberem, às intimações:

Art. 370. Nas intimações dos acusados, das testemunhas e demais pessoas que devam tomar conhecimento de qualquer ato, será observado, no que for aplicável, o disposto no Capítulo anterior.

Ora, não parece razoável adotar-se toda a solenidade da citação com

hora certa (que como se verá, é um ato bastante formal) para um ato tão corriqueiro

como a intimação. É mais coerente a prática dos Oficiais de Justiça em presumir

ciente aquele que se oculta para ser intimado. Imagine-se intimar testemunhas

comhora certa!

1.2. Conceito

O Código de Processo Penal não conceitua o que seja a citação. Pega-se

emprestado o conceito trazido pelo Código de Processo Civil: o art. 213,

CPC/73dispunha que “Citação é o ato pelo qual se chama a juízo o réu ou o

interessado a fim de se defender.”; o novo CPC (Lei 13.105 de 16/03/2015)

conceituou de maneira mais ampla: “Art. 238. Citação é o ato pelo qual são

convocados o réu, o executado ou o interessado para integrar a relação processual.”

Assim sendo, é o ato comunicatório por excelência, que integra o réu ao processo4 e

cuja nulidade gera a nulidade de todo o procedimento a partir dela produzido.

Este “chamamento” à defesa deve ser entendido de maneira diferente no

processo civil e no processo penal. Enquanto naquele a defesa é um ônus, vale

dizer, o réu pode permanecer inerte, no processo penal, pela sua natureza, existe

também um dever na defesa do réu (pelo menos em termos de defesa técnica).

A citaçãono processo penal se classifica conforme dois critérios, o

instrumental (qual o meio de que se vale o Estado-Juiz para citar o réu) e o real (se a

citação ocorre de fato ou se é presumida). Quanto ao instrumento, a citação pode

ser por mandado, por carta precatória, rogatória ou de ordem ou por edital. Pelo

segundo critério, ela será ficta ou presumida (quando o ato de comunicação não

4“Art. 363. O processo terá completada a sua formação quando realizada a citação do acusado.”

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consiste em contato direto com o réu) ou será real ou pessoal (quando há contato

com a pessoa do réu). A citação por edital sempre é ficta. A citação por mandado

pode ser pessoal, quando o Oficial de Justiça encontra-se com o réu; será

presumida quando houver ocultamento do réu, procedendo o Oficial de Justiça à

citação com hora certa. A citação por carta (rogatória, precatória ou de ordem)

resulta na expedição de um mandado, e por isto segue a mesma classificação da

citação por mandado.

Por fim, é preciso que se fale da citação por correio (espécie de citação

pessoal do processo civil). Tradicionalmente, o processo penal rechaçou a

comunicação processual por correio. Com a reforma, continua inexistindo no

processo penal citação por correio. Entretanto, tendo sido inserida a citação com

hora certa no CPP, a comunicação via correio passa a existir no processo penal

como fase complementar à citação com hora certa, conforme se verá.

Compreende-se, portanto, por citação com hora certa, o ato de

comunicação processual que chama o réu a se defender nos casos em que o

contato direto com ele é obstacularizado pelo seu ocultamento.

1.3. Procedimento

Como antes referido, o procedimento da citação com hora certa está

previsto nos artigos 252 a 254 do CPC/20155:

Art. 252. Quando, por 2 (duas) vezes, o oficial de justiça houver procurado o citando em seu domicílio ou residência sem o encontrar, deverá, havendo suspeita de ocultação, intimar qualquer pessoa da família ou, em sua falta, qualquer vizinho de que, no dia útil imediato, voltará a fim de efetuar a citação, na hora que designar.

5No CPC/73, eram os artigos 227 a 229:

“Art. 227. Quando, por três vezes, o oficial de justiça houver procurado o réu em seu domicílio ou residência, sem o encontrar, deverá, havendo suspeita de ocultação, intimar a qualquer pessoa da família, ou em sua falta a qualquer vizinho, que, no dia imediato, voltará, a fim de efetuar a citação, na hora que designar. Art. 228. No dia e hora designados, o oficial de justiça, independentemente de novo despacho, comparecerá ao domicílio ou residência do citando, a fim de realizar a diligência. § 1o Se o citando não estiver presente, o oficial de justiça procurará informar-se das razões da ausência, dando por feita a citação, ainda que o citando se tenha ocultado em outra comarca. § 2o Da certidão da ocorrência, o oficial de justiça deixará contrafé com pessoa da família ou com qualquer vizinho, conforme o caso, declarando-lhe o nome. Art. 229. Feita a citação com hora certa, o escrivão enviará ao réu carta, telegrama ou radiograma, dando-lhe de tudo ciência.”

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Parágrafo único. Nos condomínios edilícios ou nos loteamentos com controle de acesso, será válida a intimação a que se refere o caput feita a funcionário da portaria responsável pelo recebimento de correspondência. Art. 253. No dia e na hora designados, o oficial de justiça, independentemente de novo despacho, comparecerá ao domicílio ou à residência do citando a fim de realizar a diligência. § 1o Se o citando não estiver presente, o oficial de justiça procurará informar-se das razões da ausência, dando por feita a citação, ainda que o citando se tenha ocultado em outra comarca, seção ou subseção judiciárias. § 2o A citação com hora certa será efetivada mesmo que a pessoa da família ou o vizinho que houver sido intimado esteja ausente, ou se, embora presente, a pessoa da família ou o vizinho se recusar a receber o mandado. § 3o Da certidão da ocorrência, o oficial de justiça deixará contrafé com qualquer pessoa da família ou vizinho, conforme o caso, declarando-lhe o nome. § 4o O oficial de justiça fará constar do mandado a advertência de que será nomeado curador especial se houver revelia. Art. 254. Feita a citação com hora certa, o escrivão ou chefe de secretaria enviará ao réu, executado ou interessado, no prazo de 10 (dez) dias, contado da data da juntada do mandado aos autos, carta, telegrama ou correspondência eletrônica, dando-lhe de tudo ciência.

Analisa-se agora as etapas do procedimento:

1.3.1. Requisitos:

O Oficial de Justiça parte, em cumprimento a um mandato, com intuito de

efetuar uma citação pessoal. Dirige-se, portanto, ao endereço6 constante do

mandado.Havendo procurado o réu, não o encontra. E esta situação se repete por

duas vezes. Esta procura será minuciosa: deve o Oficial buscar pelo réu em horários

e dias diferentes, contudo, a simples dificuldade em encontra-lo não lhe permite citar

com hora certa. Este é apenas o “requisito objetivo”: duas tentativas sem êxito em

encontrar o réu.

Segue-se então a observância do “requisito subjetivo”: a suspeita de

ocultamento. Esta suspeita decorre de uma série de indíciosque o Oficial reconhece

nas tentativas de encontrar o réu: a verificação de que o imóvel está habitado,

principalmente por haver nele movimentação, ruídos e luzes acompanhado da

recusa em se atender à porta; o porteiro do edifício informa que o réu não atende a

Oficiais de Justiça; até mesmo quando o Oficial tenta contato telefônico com o réu e

este atende o meirinho sem a devida cortesia, deixa implícito ou fala às claras que 6Art. 352 do CPP: “O mandado de citação indicará:

(...) IV - a residência do réu, se for conhecida; (...)”

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não receberá o mandado (como não existe citação por telefone no processo penal, a

saída é proceder com hora certa).

A primeira questão que se coloca é: suficiente a suspeita de ocultamento

ou é necessária a verificação do ocultamento. Vale dizer, as expressões são

sinônimas, ou o processo penal exige algo além de simples suspeita. A quaestio

exsurge da redação do CPP, que fala em “Verificando que o réu se oculta”, mas logo

após determina “na forma estabelecida nos arts. 227 a 229 da Lei no 5.869, de 11 de

janeiro de 1973 ...” e o CPC fala em “suspeita”. A resposta a esta questão depende

muito da solução de outra, sobre se a citação com hora certa é ou não ato do Oficial

de Justiça.

Enfim, a quem cabe decidir pela citação com hora certa, o Juiz ou o

Oficial de Justiça? Pela redação do CPC, a citação com hora certa é ato do Oficial

de Justiça, ao verificar estarem presentes os requisitos, realiza por conta própria

esta forma de citação. É o que estava descrito no art. 228 CPC/737 e está descrito

no art. 253 do Novo CPC8, especialmente pela expressão “independentemente de

novo despacho”, o que significa ser desnecessária a apreciação judicial. A

dificuldade surge no art. 355, §2º CPP: “Certificado pelo oficial de justiça que o réu

se oculta para não ser citado, a precatória será imediatamente devolvida, para o fim

previsto no art. 362.” Ora, o fim previsto no art. 362, CPP é a citação com hora certa.

É inimaginável que o Oficial de Justiça do foro deprecante venha ao foro deprecado

para efetuar a citação com hora certa; o próprio Oficial do juízo deprecado que a

deverá proceder. Então, por que há a necessidade de se devolver a carta

precatória? Por que o Oficial de Justiça do foro deprecado não já procede a citação

com hora certa? A única interpretação possível do dispositivo é a de que o juízo

deprecante deverá solicitar a medida, determinando a citação com hora certa. Isto

permitiria concluir-se que no processo penal a citação com hora certa dependeria de

ordem judicial, pelo menos quando se tratasse de citação por carta precatória.

Contudo, o artigo 362 do CPP não faz esta ressalva, remetendo apenas aos artigos

227 a 229 do CPC/73.

Não se vê aqui razão na distinção, o que leva a crer que o art. 355, §2º,

CPP seja desnecessário, e sem sentido a devolução da carta precatória para fins do

7“Art. 228. No dia e hora designados, o oficial de justiça, independentemente de novo despacho, comparecerá ao domicílio ou residência do citando, a fim de realizar a diligência.” 8“Art. 253. No dia e na hora designados, o oficial de justiça, independentemente de novo despacho, comparecerá ao domicílio ou à residência do citando a fim de realizar a diligência.”

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artigo 362 doCPP, devendo a citação com hora certa ser feita de imediato e

independentemente de novo despacho, como preconiza o CPC. Sendo a citação

com hora certa ato do Oficial de Justiça, é ele quem deve concluir pelo ocultamento,

decidindo se os elementos existentes, independentemente de constituírem suspeita

ou não, são suficientes a justificar, de ofício, a adoção da medida.

A previsão da citação com hora certa no processo civil já é criticável. E

não pode passar isento de críticas seu requisito objetivo, que exige duas tentativas

prévias. Se o oficial de justiça já possui formada sua suspeita de ocultação já na

primeira tentativa, o que justifica tentar mais vezes localizar o réu? De qualquer

modo, para evitar futura arguição de nulidade, realizará outratentativa, para só na

segunda dar continuidade ao procedimento citatório.

1.3.2. Intimação da hora certa

Estando presentes os requisitos acima, o Oficial de Justiça irá cientificar

pessoa da família, ou na sua falta, qualquer vizinho, de que, no dia imediato, voltará,

a fim de realizar a citação, na hora que designar, ficando esta pessoa intimada a

comunicá-lo ao réu. Eis aqui o núcleo do instituto e a razão de sua denominação.

Qual é a natureza jurídica desta pessoa que é intimada do retorno do

Oficial no dia e hora designados? Na verdade, esta pessoa, que em princípio deve

ser da família, e só ante a falta será um vizinho (já que toda a família pode estar

mancomunada com o que se oculta), atua como um intermediário entre o Meirinho e

o citando, dando-lhe um aviso: o dia e horário que deverá estar presente

aguardando a visita do Oficial de Justiça. Presume a lei ser difícil o réu se ocultar de

membro da própria família ou vizinhança. É uma última oportunidade para o réu, de

demonstrar que não está tentando escapar da jurisdição. Assim sendo, esta pessoa

age como um colaborador (art. 378, CPC)..

E se esta pessoa nada comunicar ao réu? É irrelevante para a citação

com hora certa. Deve-se entender que esta modalidade de citação é apenas uma

tentativa de aproximação, sem garantias de certeza. É o mais próximo que o Oficial

consegue chegar do citando. A lei fala em “intimação” porque se trata de uma ordem

do Oficial à pessoa da família/vizinho; mas seu descumprimento não gera nenhuma

consequência, nem crime de desobediência, por falta de previsão legal.

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A lei exige que o dia em que Oficial deva comparecer seja o imediato. Não

há nenhuma razão especial para isto, senão a celeridade do ato. Nada impede que

por motivo justo o Oficial designe dia diverso (por exemplo, se o dia imediato for

domingo).

A citação recebe o nome de hora certa porque a citação, em regra, é ato

processual que não possui hora determinada, podendo ser realizada a qualquer

momento, tanto no processo penal como no processo civil9.Não há uma hora pré-

definida para a realização da citação, salvo neste caso, em que a citação possui dia

e hora marcados.

Quem designa a hora certa é o Oficial de Justiça. O réu deverá estar

presente no horário que ele fixar. Normalmente o servidor do judiciário decide por

um horário situado dentro de sua jornada habitual de trabalho.

1.3.3. Comparecimento do réu

No dia e hora designados o Oficial se dirige (volta) ao endereço do

domicílio ou residência do citando. Caso o réu compareça, será citado

pessoalmente.

1.3.4. Ausência do réu

A lei dispõe que se o citando não estiver presente, o Oficial de Justiça

procurará informar-se das razões da ausência com indivíduos que venha a encontrar

na localidade, dando por feita a citação, ainda que o citando se tenha ocultado em

outra comarca.

É um ônus do réu comparecer para ser citado. Se não comparecer,

presumir-se-á citado. Naturalmente que as razões da ausência, se justas, podem

fazer com que a citação seja suspensa, principalmente se o réu manda comunicar

ao Oficial onde pode ser encontrado e, de fato lá o é, sendo citado pessoalmente. 9 Não há no CPP disposição semelhante à do art. 172 do CPC, especialmente a do seu §2º. A única

exigência do CPP é que o Oficial conste na contrafé que entrega ao réu o dia e horário da citação, verbis: Art. 357. São requisitos da citação por mandado: I - leitura do mandado ao citando pelo oficial e entrega da contrafé, na qual se mencionarão dia e hora da citação; (...) Com o novo CPC, aquele impedimento do art. 172, § 2º é removido em razão do que dispõe o art. 212, §2º: “§ 2

o Independentemente de autorização judicial, as citações, intimações e penhoras poderão realizar-se

no período de férias forenses, onde as houver, e nos feriados ou dias úteis fora do horário estabelecido neste artigo, observado o disposto no art. 5

o, inciso XI, da Constituição Federal.”

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Quem pondera se as razões são ou não justificáveis, mais uma vez, é o Oficial de

Justiça. O Juiz só vem a conhecer da citação com hora certa posteriormente,

fazendo o controle, se for o caso, do ato citatório pronto e por inteiro.

Diante da ausência injustificada (seja porque as razões alegadas não são

relevantes, seja porque não há razão nenhuma para a ausência), o Oficial presumirá

(dará por feita) a citação, ainda que o réu esteja em localidade diversa da que é

citado, inclusive se refugiado em jurisdição distinta daquela que o cita.

1.3.5. Certidão da Ocorrência

Quando realiza citação com hora certa, o meirinho lavra certidão (como

nas citações em geral), nunca auto, por mais complexa que seja a citação. Cópia

desta certidão (bem como cópia do mandado e a cópia da denúncia que a

acompanha) será entregue à pessoa da família ou vizinhança que tenha atendido o

Oficial de Justiça em seu retorno.

A lei não dá opção: estes documentos devem permanecer com estes

indivíduos que colaboram com a Jurisdição e naturalmente os receberão. Estas

mesmas pessoas deverão se identificar, já que a lei obriga que o Oficial declare o

nome destes colaboradores. Caso recusem a identificar-se, o servidor da justiça

tentará identifica-los de alguma maneira, podendo valer-se do art. 6810 da Lei de

Contravenções Penais.

1.3.6. Fase complementar

Após cumprido o mandado citatório, será juntado aos autos, devendo o

escrivão que oficia no processo deles extrair uma intimação a ser enviada via correio

(pois não há lógica em ir por mandado, já que, se o Oficial de Justiça tivesse acesso

ao réu, citá-lo-ia pessoalmente) dando ciência ao réu de todo o ocorrido.

10Art. 68. Recusar à autoridade, quando por esta, justificadamente solicitados ou exigidos, dados ou indicações concernentes à própria identidade, estado, profissão, domicílio e residência: Pena – multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis. Parágrafo único. Incorre na pena de prisão simples, de um a seis meses, e multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis, se o fato não constitue infração penal mais grave, quem, nas mesmas circunstâncias, faz declarações inverídicas a respeito de sua identidade pessoal, estado, profissão, domicílio e residência.

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Neste ponto, há uma inovação, pois pela primeira vez se utiliza o correio

como via comunicativa no processo penal. E é uma última tentativa de contato com o

réu.

1.4. Relevância do tema

A citação com hora certa é um conjunto de atos,uma série de

providências, para fazer com que o réu que se esconde seja citado. Permanecendo

oculto, será presumido citado. Contudo, diferente da citação por edital, não gera a

suspensão do processo, que continua com a nomeação de defensor dativo.

No processo civil, talvez esteja justificado este instituto, pois o interesse

individual do autor não pode ficar dependente da boa vontade do réu em se

apresentar à citação. No processo penal não há este interesse contraposto a ser

defendido.

2. O CONTRADITÓRIO

O contraditório é tão importante que a doutrina11 reconhece-lhe o status

de elemento integrante do conceito de processo. Sem descer à minúcia de analisar

cada uma das posições mais aceitas acerca do conceito de processo (procedimento

em contraditório, relação jurídica desenvolvida em procedimento contraditório,

etc.),não se pode pensar o processo sem levar em consideração o contraditório.

2.1. Conceito

A ideia tradicional de contraditório está delineada na fórmula

“comunicação mais reação”. A primeira deve sempre estar presente; a segunda deve

ser, pelo menos, tornada possível. Entre elas há um relacionamento muito íntimo,

pois a reação só é possível se houver comunicação.

11

Por todos, citem-se: TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 9. ed., rev., ampl. e atual. Salvador, Juspodivm, 2014;GONÇALVES, Aroldo Plinio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 1992; CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Candido Rangel. Teoria geral do processo. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 2008; etc.

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Aroldo Plínio Gonçalves (1992, p. 119), fazendo escorço histórico sobre a

evolução do conceito, lembra que Jhering já falava em “justiça no processo” no qual

se garantisse a igualdade jurídica entre as partes:

O conceito de contraditório, entretanto, é bem atual, e ainda não foi totalmente assimilado, embora seu princípio fundamental, "audiatur (...) et altera pars", "audita altera parte", "audi alteram partem", seja bastante difundido, e já esteja presente na Teoria Geral do Direito, com a conotação bastante aproximada da que lhe seria dada pelo Direito Processual Civil (GONÇALVES, 1992, p. 119).

Sobre o conceito de contraditório, Daniel Amorim Assumpção Neves

(2013, p. 66) agrega como elemento “o poder de influência no convencimento do

juiz”. Este significa uma real participação dos envolvidos no resultado do processo,

sob pena de o contraditório se tornar algo apenas formal.

Essa nova visão do principio do contraditório reconhece a importância da efetiva participação das partes na formação do convencimento do juiz, mas a sua real aplicação depende essencialmente de se convencerem os juízes de que assim deve ser no caso concreto. Posturas como a do juiz que recebe a defesa escrita em audiência nos Juizados Especiais e sem sequer folhear a peça passa a sentenciar certamente não vai ao encontro da nova visão do contraditório. O mesmo ocorre quando desembargadores conversam, leem, ou excepcionalmente se ausentam enquanto o advogado faz sustentação oral perante o Tribunal. Como observa a melhor doutrina, somente por meio de um constante e intenso dialogo do juiz com as partesse concretizará o contraditório participativo, mediante o qual o poder de influencia se tomara uma realidade (NEVES, 2013, p. 66).

Neste viés participativo o contraditório assume uma característica

democrática.

A conotação citada como uma aproximação do conceito atual de contraditório explica-se, pois ele exige mais do que a audiência da parte, mais do que o direito das partes de se fazerem ouvir. Hoje, seu conceito evoluiu para o de garantia de participação das partes, no sentido em que já falava VON JHERING, em simétrica paridade de armas, no sentido de justiça interna no processo, de justiça no processo, quando as mesmas oportunidades são distribuídas com igualdade às partes (GONÇALVES, 1992, p. 120).

Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar, ao definirem contraditório,

substituem o elemento reação por participação:

Traduzido no binômio ciência e participação, e de respaldo constitucional (art. 5º, inc.LV, da CF/88), impõe que às partes deve ser dada a possibilidade de influir no convencimento do magistrado, oportunizando-se a

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participação e manifestação sobre os atos que constituem a evolução processual (TÁVORA; ALENCAR, 2014, p. 64).

Desta maneira, a possibilidade de participação se torna o núcleo do

conceito de contraditório, que traz para o processo a mesma característica que o

Estado Democrático de Direito denota.

A participação dos destinatários do provimento é um imperativo da própria estrutura democrática que não pode estar restrita à esfera eleitoral, irradiando seus ditames a todos os segmentos dos poderes estatais. O princípio do contraditório, ao facultar, aos interessados e contra-interessados na decisão final, efetivos mecanismos de participação igualitária, permite a construção democrática do provimento, legitimando o Poder Jurisdicional e assegurando o cumprimento dos conteúdos fundantes da própria natureza estatal (PINTO, 2004, p.26). Ademais, a democracia, enquanto eixo estruturante de um Estado, não se restringe, simplesmente, à forma de seleção dos agentes públicos, compondo-se como critério para o exercício do poder estatal em todos os seus estratos. Diante desta conjuntura, a ordem democrática transpõe-se para o sistema processual que, enquanto vertente do poder estatal, abre o desenvolvimento dos seus trabalhos para a participação dos indivíduos, cujos direitos serão afetados pelo provimento, em simétrica paridade de posições jurídicas, sendo-lhes distribuídas as mesmas oportunidades no decorrer do iter processual (PINTO, 2004, p.38-39).

O contraditório pode ser definido como a democracia no processo e que

se desdobra no poder de participar da formação do ato que a autoridade (o Juiz) irá

praticar e, naturalmente, no conhecimento de que este ato será produzido, já que

para haverparticipação, é preciso que haja ciência.

2.2. Plenitude e efetividade

O contraditório, para gerar democracia no processo, precisa, segundo

Felipe Martins Pinto, ser pleno e efetivo.

Pleno porque o princípio deve informar todos os atos preparatórios do provimento final e efetivo porque, além da previsão formal, é imprescindível a presença de meios que possibilitem condições concretas para as partes poderem atuar na instrução processual em simétrica paridade (PINTO, 2004, p. 39).

O contraditório pleno é aquele que acontece do início ao fim do processo,

em todos os atos. E efetivo será o contraditório quando houver na lei ferramentas,

mecanismos que possibilitem de fato a participação do indivíduo no processo.

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2.3. A citação como ferramenta do contraditório

A citação do acusado é essencial para o contraditório.

Pode-se até pensar: mas e o direito de defesa? Não seria a garantia mais

relevante? Verdadeiramente, de nada adiantaria para o réu a previsão do direito de

defender-se se não fosse chamado a fazê-lo. Contudo, do mesmo modo, de nada

adianta ter conhecimento de um processo, sem possuir o direito de nele intervir.

De fato, o saber e o agir são duas facetas que se complementam. A

citação, no entanto, como porta de entrada do réu no processo, é o ato que viabiliza

a defesa e participação, conduzindo, sua falta ou invalidade, à invalidade de todo o

procedimento. A falta de citação só é sanável com o comparecimento do acusado12

no momento apropriado; se comparece a destempo, os atos praticados sem sua

presença a partir de uma citação inválida são inválidos.

2.4. Posições subjetivas

Segundo Fazzalari, o processo é uma espécie do gênero procedimento13,

e que se define por possuir um elemento distintivo, o contraditório.

O procedimento é apresentado como uma sequência de normas, de atos,

de posições subjetivas.

(...) a estrutura do procedimento se obtém quando se está diante uma série de normas (...), cada uma das quais reguladora de uma determinada conduta (...), mas que enuncia como pressuposto da sua própria aplicação, o cumprimento de uma atividade regulada por uma outra norma da série. O procedimento se apresenta, pois, como uma sequência de “atos”, os quais são previstos e valorados pelas normas. O procedimento é, enfim, visto como uma série de “faculdades”, “poderes”, “deveres”, quantas e quais sejam as posições subjetivas possíveis de serem extraídas das normas em discurso e que resultam também elas necessariamente ligadas, de modo que, por exemplo, um poder dirigido a um sujeito depois que um dever tenha sido cumprido, por ele ou por outros,

12Art. 570 do CPP: “A falta ou a nulidade da citação, da intimação ou notificação estará sanada, desde que o interessado compareça, antes de o ato consumar-se, embora declare que o faz para o único fim de argüi-la. O juiz ordenará, todavia, a suspensão ou o adiamento do ato, quando reconhecer que a irregularidade poderá prejudicar direito da parte.” 13

“(...) o processo é um procedimento do qual participam (...) aqueles em cuja esfera jurídica o ato final é destinado a desenvolver efeitos: em contraditório, e de modo que o autor do ato não possa obliterar as suas atividades” (FAZZALARI,2006, pp.118-119).

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e por sua vez o exercício daquele poder constitua o pressuposto para o insurgir-se de um outro poder (ou faculdade ou dever).

14

Por meio desta conceituação, o procedimento decorre da previsão de atos

por normas, atos cuja prática ou recusa gera consequências, o que define posições

subjetivas aos participantes do processo. Estas posições jurídicas podem ser

faculdades, ônus, poderes, deveres, sujeições, direitos, etc.

A citação é um dever-poder do Estado-Juiz. Quando citado, o réu está

numa posição jurídica de sujeição. Uma vez citadocom hora certa, nasce para o réu

o ônus do comparecimento. Trata-se de ônus, pois uma vez não arque com o

encargo, o acusado suporta uma consequência. E neste caso, a consequência é a

nomeação de defensor dativo15. Isto porque no processo penal, além de direito, a

defesa é também um ônus e dever: a defesa fática, realizada pelo réu, é direito, e é

ônus; a defesa técnica é um dever que, se não desempenhado pelo acusado –

através da constituição de causídico – será desempenhado por advogado nomeado

pelo Juiz.

Diferente do que acontece na citação por edital16, na hora certa o

procedimento continua até seu termo final, com o defensor dativo e sem a presença

do réu, sem que haja a certeza de que realmente este teve conhecimento do

processo parasuportar conscientemente o ônus da inércia, como acontece para o

réu citado pessoalmente17.

3. A CITAÇÃO COM HORA CERTA E O CONTRADITÓRIO PENAL

Diante de tudo o que se disse, é preciso que se analise as consequências

da citação com hora certa para o contraditório penal.

14 FAZZALARI, Elio., op. cit., pp.113-114. 15

Art. 362 do CPP:(...) “Parágrafo único. Completada a citação com hora certa, se o acusado não comparecer, ser-lhe-á nomeado defensor dativo.” 16Art. 366 do CPP: “Se o acusado, citado por edital, não comparecer, nem constituir advogado, ficarão suspensos o processo e o curso do prazo prescricional, podendo o juiz determinar a produção antecipada das provas consideradas urgentes e, se for o caso, decretar prisão preventiva, nos termos do disposto no art. 312.” 17

Art. 367 do CPP:“O processo seguirá sem a presença do acusado que, citado ou intimado pessoalmente para qualquer ato, deixar de comparecer sem motivo justificado, ou, no caso de mudança de residência, não comunicar o novo endereço ao juízo.”

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Naturalmente, se citado por edital, ou com hora certa, havendo o

comparecimento do acusado no processo, não haverá prejuízo nenhum para o

contraditório.

Na citação por edital, igualmente não há que se falar em prejuízo, pois a

suspensão do processo e do prazo prescricional permitirá a ampla defesa quando o

acusado aparecer, se não ocorrer a prescrição da infração antes18.

A questão merece atenção quando o acusado mantém-se inerte diante da

citação com hora certa.

3.1. Consequências em termos de proteção ao status libertatis

A previsão da citação com hora certa representa, de certo modo, uma

proteção do status libertatis do réu na medida em que possa evitar a decretação de

uma prisão cautelar.

Como já se disse, antes da inclusão desta modalidade de citação no

sistema processual penal, os casos de ocultamento recebiam o mesmo tratamento

de réu não localizado19: a citação por edital. Se o réu assim citado não comparece (o

que acontece na maioria das vezes, para não se dizer sempre), o juiz poderá

decretar a prisão preventiva20. Agora, com o tratamento distinto do réu que se oculta,

o CPP apenas prevê, caso não compareça ou constitua defensor, a nomeação de

defensor dativo, excluindo-se a possibilidade de prisão.

3.2. Consequências em termos de resposta à sociedade

A citação por edital, acompanhada de suspensão do processo e do prazo

prescricional,gera uma sensação de impunidade, de fracasso do Estado na

concretização da norma penal. Principalmente porque a suspensão da prescrição

18

Súmula 415 do STJ: “O período de suspensão do prazo prescricional é regulado pelo máximo da pena cominada.” Após este prazo, a prescrição começa a correr. 19Art. 361 do CPP: “ Se o réu não for encontrado, será citado por edital, com o prazo de 15 (quinze) dias.“Art. 363.do CPP:“(...)§ 1o Não sendo encontrado o acusado, será procedida a citação por edital.” 20

“Art. 366. Se o acusado, citado por edital, não comparecer, nem constituir advogado, ficarão suspensos o processo e o curso do prazo prescricional, podendo o juiz determinar a produção antecipada das provas consideradas urgentes e, se for o caso, decretar prisão preventiva, nos termos do disposto no art. 312.”

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não é para sempre (súmula 415 do STJ), havendo a possibilidade de a pretensão

punitiva do Estado se esvair enquanto perdura a suspensão do processo.

Por outro lado, a citação com hora certa permite a continuidade do

processo, com prolação de sentença, trânsito em julgado e geração de antecedentes

criminais para o condenado. Assim sendo, o Poder Judiciário dá uma resposta à

sociedade acerca do fato criminoso que lhe é apresentado, não permitindo que o

ocultamento do réu se estabeleça como fuga à Jurisdição.

Contudo, algo deve ser dito: a sentença proferida nestes termos não raro

se reduz a mera estatística processual, pois sua eficácia, na maioria das vezes, não

supera um simples registro na certidão de antecedentes criminais do condenado. De

fato, se o acusado consegue se ocultar para não ser citado, o que fará para não ser

preso! E em geral, o assento condenatório nos antecedentes de certos indivíduos

não lhes traz grande prejuízo, pois se trata de só mais uma condenação para

aqueles cuja CAC possui páginas e páginas de extensão.Esta situação irá, sim,

prejudicar o indivíduo que até então estiver com a “ficha limpa” e que poderá ser

injustamente condenado mediante um contraditório mal feito, do qual não participou

por dele não ser real conhecedor: citado com hora certa, agora se vê às voltas com

um decreto condenatório.

Toda proteção dada ao status libertatis na via de cautela, como se falou

no item anterior, fica perdida, pois é pior sofrer uma condenação definitiva injusta

que uma prisão preventiva.

3.3. Consequências para o contraditório

A previsão de citação com hora certa no processo penal não possui os

fundamentos do processo civil de viabilizar o resguardo do interesse do autor face

ao réu que se oculta para não ser citado. No processo penal não há para o titular da

ação penal qualquer prestação pessoal a ser satisfeita com a viabilização do

processamento.

No processo civil a nomeação de curador especial21 para o citado com

hora certa, que não necessariamente precisa ser advogado, é garantia de defesa.

21

Art. 9º do CPC/73: “O juiz dará curador especial: (...) II - ao réu preso, bem como ao revel citado por edital ou com hora certa.”

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Muitas das vezes, recaindo a curatela especial sobre membro da família ou sujeito

próximo ao réu, o esforço para sair vencedor na demanda pode ser maior do que o

eventualmente realizado pelo réu em pessoa. Imagine-se a demanda que versa

sobre o imóvel no qual habite o réu com sua família: ainda que o proprietário seja o

pólo passivo da demanda, o filho que porventura lá também viva será tão atingido

pelo decisum quanto o demandado.

No processo penal o que o juiz nomeia é defensor dativo22,

necessariamente um técnico da área jurídica, não havendo qualquer vínculo com o

acusado que nem sabe da nomeação. Como o resultado da instância penal não

afeta senão o acusado, os familiares e outros indivíduos próximos a ele podem não

se interessar pelo deslinde da causa.

O instituto mostra-se mais adequado à seara cível, que lida com

interesses em regra patrimoniais e privados. A seriedade e gravidade do direito

público indisponível de liberdade requer maiores cautelas.

O réu não está obrigado a participar do processo. Este é um ônus que

assume, já que, com sua interferência no processo, poderá trazer elementos que

contribuam na formação do ato decisório. Não desejando fazê-lo, é dele todo o risco

por superveniente decisão desfavorável.

Assim sendo, o acusado não pode ser obrigado a praticar nenhum ato processual. No tocante aos atos atinentes à comprovação das alegações da acusação, o acusado pode se eximir de participar diante do direito de não produzir prova contra si – nemo tenetur se detegere. Com relação aos atos destinados a instruir a defesa, o acusado não tem o dever de participar, mas sim o ônus de fazê-lo, ou não, em função de seus interesses e de sua vontade. O Estado Jurisdição tem a obrigação de facultar as situações de defesa e garantir a igualdade de oportunidades entre as partes, mas cabe ao acusado exercer ou não o seu direito, não podendo o mesmo ser compelido a isto. A impossibilidade de o acusado ser obrigado a se defender no processo penal tem, também, um assento na coerência lógica, uma vez que a eficácia da corporificação da defesa, depende estritamente da contribuição e da dedicação do acusado, o que resta inviável diante do seu desinteresse. A partir destas idéias, o acusado não tem a obrigação de depor, de participar de acareação ou de exames periciais. Esta não participação podedificultar aestruturação da defesa do mesmo, sendo apta, inclusive a gerar uma condenação, pois o meio de prova passível de desmontar os

Art. 72 do Novo CPC: “O juiz nomeará curador especial ao: I –(...) II - réu preso revel, bem como ao réu revel citado por edital ou com hora certa, enquanto não for constituído advogado. Parágrafo único. A curatela especial será exercida pela Defensoria Pública, nos termos da lei.” 22 Naturalmente, a disposição do art. 253, § 4º do Novo CPC deve ser aplicada mutatis mutandis, à luz do art. 362, parágrafo único do CPP.

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elementos da acusação pode não ter integrado a esfera processual por uma inércia do próprio acusado (PINTO, 2004, p. 47-48).

A nomeação de defensor para o réu citado pessoalmente não viola esta

prerrogativa de não participar, pois a atividade jurisdicional não pode ficar ao

alvedrio do réu. Situação bastante diferente com relação à suspeita de ocultamento:

naquela o réu cientificado opta por não agir; nesta não há certeza de que está

ciente. E já foi bem ilustrado que no processo penal inexiste contraposição de

interesses individuais a suscitar ponderação entre efetividade do direito do autor

confrontado ao direito à resposta do réu, como no processo civil.

De fato, as consequências da estática do acusado diante de um ônus

devem ser vislumbradas sob o ponto de vista fático, não se admitindo a presunção.

A assunção destas consequências só pode se dar mediante uma clareza de

pensamento obtida da plena ciência dos efeitos decorrentes de sua omissão.

A citação com hora certa, por mais cautelas que exija, é uma forma de

ciência presumida.Ela pode inviabilizar a participação do acusado no processo.

Atinge especialmente o contraditório efetivo, quando se constitui em ferramenta

processual que nega ao sujeito passivo a participação, não de um ato, mas de todo

o procedimento.

Não se está, portanto, impedindo com isto, que a hora certa tenha lugar

na seara processual penal. Ela é viável quando, ante as burocráticas formalidades

que o ato requer, o réu cientificado comparece ao processo. Para isto, a citação

assim realizada mostra-se mais eficiente que o edital. Todavia, se ausente, as

cominações daí decorrentes são inadequadas para um ato de comunicação ficto.

Por fim, o Pacto de São José da Costa Rica (Dec. 678/92), no art. 8, n.2,

“b” estabelece:

Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: a) (...) b) comunicação prévia e pormenorizada ao acusado da acusação formulada; (...)

Fato é que a citaçãocom hora certa inviabiliza esta comunicação prévia e

pormenorizada da acusação. Pena a Convenção Americana de Direitos Humanos

possuir status de lei ordinária e, neste viés, ser afastada pelo CPP reformado.

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CONCLUSÃO

O princípio do contraditório comporta dois elementos conceituais, a

ciência e a participação, de modo que a primeira deva viabilizar a segunda.

A citação é o ato de comunicação por excelência, por dizer respeito à

participação em todo o processo.

Tradicionalmente, a citação no processo penal admitia duas formas, a

pessoal por Oficial de Justiça e a ficta por edital. Enquanto a primeira era a única

modalidade que levava ao regular andamento do feito, a segunda impunha (e ainda

impõe) suspensão do processo.

Com a reforma do Código de Processo Penal realizada em 2008, passou

a integrar o quadro de comunicação processual outra modalidade de citação

presumida, a com hora certa, muito mais formal, da qual decorre o prosseguimento

do feito com nomeação de defensor dativo quando o réu mantém-se inerte.

Este efeito, no entanto, nega à citação (com hora certa) seu papel de

promotora da participação no processo, porque leva adiante a marcha processual

sem certeza de que o réu estava ciente e por isto consentira nos corolários de sua

estática. Em resumo, a citação com hora certa pode se tornar óbice ao contraditório.

Nos moldes delineados pelo CPP, a citação com hora certa viola o

contraditório quando o citado não comparece para se defender. Do mesmo modo,

pode gerar condenação sem que o réu sequer conhecimento tivesse da acusação.

Como no processo penal não existe direito individual do autor cuja realização

pudesse levar à relativização do princípio do contraditório, a citação com hora certa,

tal como regulada pelo CPP, é incompatível com o processo penal.

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