civilizaÇÃo e barbÁrie: a alemanha nos boletins semanais de jÚlio mesquita (1914 … seminarios...
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CIVILIZAÇÃO E BARBÁRIE: A ALEMANHA NOS BOLETINS
SEMANAIS DE JÚLIO MESQUITA (1914-1915)
Carlos Roberto de Melo Almeida (UNESP/FCL-Assis), [email protected]
Resumo: O jornal O Estado de S. Paulo, importante lugar de sociabilidade entre intelectuais
durante as décadas de 1910-1920, acompanhou a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) por
meio dos artigos semanais do seu diretor. Os Boletins Semanais construíram uma dada
imagem da guerra e dos países envolvidos compartilhadas por leitores e assinantes. Objetiva-
se, em pesquisa de mestrado financiada pela FAPESP e sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Tania
Regina de Luca, efetuar a análise sistemática do conjunto dos artigos publicados pelo diretor
d’O Estado. Os resultados parciais da pesquisa indicam que a transição dos anos 1914-1915
marcou a sedimentação das imagens relativas às duas principais potências envolvidas no
conflito: França e Alemanha. O presente texto, síntese do primeiro capítulo da dissertação,
visa apresentar os elementos utilizados para a constituição da identidade conferida à
Alemanha e aos alemães ao identificá-los com a barbárie, bem como as conseqüências sociais
e econômicas decorrentes desta posição editorial do matutino paulista frente à pátria de
Goethe.
Palavras-chave: Imprensa, Júlio Mesquita, Alemanha.
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Introdução: de Sarajevo à Guerra de 1914
A Primeira Guerra Mundial (1914-1918), cujo centenário tem sido celebrado entre as
diversas nações que nela se envolveram, foi causada, entre outros motivos, pelo acirramento
das disputas entre as principais potências europeias do período: a questão marroquina, o
revanchismo francês em torno da Alsácia-Lorena, as disputas colônias e as então recentes
guerras balcânicas subiram cada vez mais o tom dos discursos diplomáticos e provocaram
atritos para os quais a imprensa da época permaneceu atenta.
Contudo, foi somente a partir do assassinato do herdeiro do trono austro-húngaro, em
28 de junho de 1914 em Sarajevo, que as potências da Europa efetivamente ativaram suas
alianças para evitar a explosão de um novo conflito. Em razão delas, todavia, a Europa
marchou para a catástrofe (HASTINGS, 2014): no final de julho o Império Austro-Húngaro
declarou guerra contra a Sérvia, a qual recebeu o apoio russo. Na Europa ocidental, aliança
entre os impérios Austro-Húngaro e Alemão trouxeram à cena a República francesa, contra a
qual Guilherme II aplicou o plano Schlieffen, que propunha a invasão da Bélgica, cuja
neutralidade estava garantida por tratados estabelecidos entre as principais nações do
continente, como estratégia para alcançar Paris (TUCHMAN, 1994).
A violação do território belga, por sua vez, foi a justificativa da entrada da Inglaterra
ao lado da Rússia e da França no dia 2 de agosto, conduzindo o conflito à proporções
continentais. Decorre dessa dimensão o epíteto utilizado pelas gerações que vivenciaram o
evento: a Grande Guerra.
A guerra e a imprensa brasileira: Júlio Mesquita e os Boletins Semanais
A crescente tensão nas relações internacionais a partir do atentado de Sarajevo e as
posteriores declarações de guerra foram acompanhadas pela imprensa da época. No Brasil, o
jornal O Estado de S. Paulo, que nas décadas anteriores empreendeu um esforço
modernizador (LUCA, 1999, p. 37-38), passou a cobrir as notícias sobre o conflito europeu
sob o título “A situação na Europa: o conflito austro-sérvio”,1 que se alterou para “A
conflagração”.
Ao lado das reportagens de capa e da publicação dos telegramas das agências de
notícias europeias, foram publicados comentários do diretor e
1 In: O Estado de S. Paulo, 27 jul. 1914, capa.
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proprietário do jornal, Júlio Mesquita, acerca da guerra em curso na Europa. Em 6 de agosto
de 1914, durante a primeira semana da guerra, o texto apareceu pela primeira vez nas páginas
do jornal: sem assinatura e sob um título comum – “A Guerra” –, objetivava comentar as
notícias mais importantes da semana. A primeira crônica foi publicada diretamente, sem os
telegramas que passaram a precedê-la nas semanas seguintes. A partir da segunda publicação,
em 10 de agosto daquele ano, os comentários passaram a sair sob o título “Boletim Semanal
da Guerra (de acordo com os nossos telegramas)”.
A partir desta data a crônica da guerra passou a ser semanal, saindo às segundas-
feiras na terceira página do jornal e precedida pela apresentação cronológica dos telegramas
publicados na última semana. Assim, as notícias consideradas relevantes eram descritas, de
maneira pretensamente neutra, na lista dos telegramas; o texto do diretor do Estado, por sua
vez, procurava explicar as notícias selecionadas, como afirmou no dia 31 de agosto de 1914
ao escrever que seus Boletins “não dão soluções, nem se ditam sentenças, mas somente se
procuram explicações plausíveis”.2
A iniciativa das crônicas se deu quer em razão da relevância do momento
internacional, quer pela oportunidade de empreender, via comentários acerca da guerra na
Europa, as batalhas políticas e intelectuais nas quais estava envolvido o diretor d’O Estado de
S. Paulo: ao assumir em seus Boletins a postura por ele chamada antimilitarista por meio da
qual, como afirmou em 21 de dezembro de daquele ano, se colocava contra qualquer forma de
militarismo – no Brasil ou na Europa – colocou em evidencia que, além da percepção acerca
da relevância do guerra europeia, os comentários permitiriam formar uma nova frente na
batalha contra a política do Presidente Hermes, no bojo das eleições presidenciais de
novembro daquele ano (DUARTE, 1964, p. 139-320).
Sem descuidar, contudo, dos limites intrínsecos a essa escritura que se efetivava no
calor dos acontecimentos. Nesse sentido, Mesquita admitia os limites da sua redação: além da
dependência das notícias via telégrafo ou imprensa internacional, não ocultava a seleção
operada sobre os mesmos, ao mesmo tempo em que declarava suas preferências e
desconfianças.3
2 Idem. In: O Estado de S. Paulo, 31 ago. 1914, p. 3.
3 Assim, procurou justificar aos leitores a preferência pelos telegramas de Paris e Londres lançando mão de dois argumentos: o primeiro se referia à maior freqüência com que eram recebidos, ao passo
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O seu trabalho, portanto, e a especificidade do seu texto, estão no caráter
interpretativo diante do farto material que circulava na imprensa da época. Sua interpretação,
contudo, deitava raízes em sua postura diante do conflito e nos objetivos do jornal.
Acerca do relevo conferido pelos leitores e assinantes aos comentários do diretor do
matutino, afirma Caldeira (2015, p. 209):
Em poucas semanas, a coluna editada pelo proprietário do jornal tornou-se uma mania entre
os leitores: muitos recortavam e colecionavam os artigos, que os ajudavam a entender o
andamento de uma guerra cada vez mais complexa. E a boa cobertura ajudou a aumentar as
vendas, que se aproximaram dos 40 mil exemplares diários.
Agosto de 1914: “inocência” da Alemanha
O primeiro texto parece responder ao espanto provocado pela invasão da Bélgica. O
Boletim seguinte, apesar de já apresentar os telegramas e o título com o qual seria publicado
até o final da guerra, ainda não articulava longos comentários acerca do conflito, figurando à
primeira vista como um mero resumo dos acontecimentos da semana. No entanto, apesar do
caráter resumido dos dois primeiros textos, ambos já revelam algumas das escolhas de Júlio
Mesquita e a estrutura dos artigos seguintes. Assim, o primeiro texto, “A Guerra”, está
dividido em três momentos:
Primeiramente, Júlio Mesquita tratou das mais recentes notícias, com destaque para a
invasão da Bélgica e da França por parte dos alemães e para as quais procurou fornecer uma
explicação sob o critério geográfico. Em um segundo momento, o texto abordou o caráter
imprevisível da guerra: sob a sua perspectiva as nações esperavam uma guerra, todavia, não
naquele momento.
Em sua primeira crônica, portanto, Mesquita destacou duas características sob as
quais interpretou o primeiro conflito mundial: a violência e a imprevisibilidade.
que os telegramas de Berlim apareceriam “de quando em quando”, tornando inviável a sua utilização por parte
de uma seção do jornal que objetivava acompanhar o desenvolvimento da guerra semanalmente. Outro motivo, afirmou, referia-se à natureza dos telegramas alemães: para Júlio Mesquita se tratavam apenas de propaganda de
guerra, ao passo que os telegramas da França e da Inglaterra, embora ressentissem da necessária propaganda dos Aliados, não haviam perdido “o seu caráter de informação”, motivo pelo qual o jornal lhes dava maior crédito: “Apareçam outros ainda mais insuspeitos na
intenção e mais rigorosamente verdadeiros, e serão esses os que adotaremos”,
MESQUITA, Júlio. Boletim Semanal da Guerra. In: O Estado de S. Paulo, 21 dez. 1914, p. 3.
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Após estabelecer estes dois pontos, o diretor do Estado voltou-se para os responsáveis pela
tragédia: sobre quais nações pesaria o ônus da culpa por um conflito de violência inaudita e de
desenvolvimento imprevisível?
A França, a Rússia e a Bélgica teriam sido empurradas para a guerra.4 A Inglaterra,
por sua vez, teria entrado na peleja em defesa da Bélgica. Quanto ao Império Austro-Húngaro,
tratar-se-ia do protagonista da “primeira cena” da guerra, destacando, contudo, a ausência de
desejo bélico por parte do seu povo e do seu imperador:
A própria Áustria, a quem cabe a responsabilidade de protagonista na primeira cena deste
assombroso drama de sangue, a própria Áustria teria previsto uma mínima parcela sequer
das imensas conseqüências do seu “ultimatum” à Sérvia? (...) O velho imperador e
Berchtold mantiveram-se até ao fim no terreno da calma e da prudência.5
Os ultimatos da Alemanha, por sua vez, responsáveis pelo conflito segundo alguns,
teriam sido o meio pelo qual Guilherme II conseguiu manter a paz: “falhou-lhe desta vez,
infelizmente para todos nós, a arma que com tanta felicidade manejou”, segundo Mesquita. A
responsabilidade pelo início da guerra, portanto, não foi atribuída à nenhuma nação em
particular, mas à uma política. Júlio Mesquita imputa ao “militarismo”, presente “como um
capricho da corte e das regiões oficiais” do Império de Francisco José a causa principal da
conflagração de 1914.
A partir do segundo artigo o texto passou a ser precedido pelo resumo dos telegramas
publicados pelo jornal ao longo da semana. Os telegramas publicados nessa segunda
publicação do Boletim tiveram início nas notícias da morte do Arquiduque Francisco
Ferdinando, encerrando-se no dia anterior ao da publicação do Boletim. No texto publicado
Júlio Mesquita se concentrou na frente ocidental, na batalha entre a França e a Alemanha, e
destacou que a resistência francesa se mostrava com maior eficácia se comparada com a
guerra de 1870, indicando mais uma das referências utilizadas pelo diretor do jornal para ler e
interpretar o conflito.
4 Para provar isso, Júlio Mesquita destacou a sessão ocorrida no Senado francês do dia 13 de Julho de 1914 – portanto, a três semanas do início do conflito –, a qual chamou a atenção para o despreparo do exército francês frente aos soldados alemães.
5 MESQUITA, Júlio. Boletim Semanal da Guerra. In: O Estado de S. Paulo, 06 ago. 1914, p. 3.
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Durante os Boletins do mês de agosto verifica-se que a atenção de Júlio Mesquita se
concentrou quase exclusivamente na frente ocidental, parecendo tratar-se de uma nova guerra
franco-alemã.6 Até o final desse mês, igualmente, os textos não aplicaram à Alemanha
adjetivos que a identificariam com a responsabilidade pelo conflito. Os três primeiros Boletins
de agosto afirmavam, ao contrário, que o atraso da Alemanha lhe garantia a inocência, longe
de lhe imputar culpa.
O mês de setembro e a alteração nas representações da Alemanha
A interpretação da guerra oferecida durante os Boletins de agosto sofreu alterações a
partir do último Boletim daquele mês, quando Júlio Mesquita estabeleceu as bases para
atribuir à Alemanha a pecha de barbárie:
(...), a incrível selvageria de Louvain. Incrível, dizemos bem: a cidade indefesa, desarmada;
as mulheres e as crianças removidas para destino ignorado; os homens fuzilados; as casas
destruídas a bombas; incendiada a biblioteca; reduzida a ruínas uma igreja, que era um
primor de arte. (...) Não há nada mais solene, não há nada que com tanta força se possa
impor a mais robusta incredulidade. (...) Aquilo não é da Alemanha, da culta Alemanha, da
terra de Kant e de Goethe. Aquilo não é da raça de Beethoven, Bach e Wagner. (...). Não se
aceita que tenha caído em delírio de tão baixa e grosseira animalidade gente que se criou e
se desenvolveu, através de todas as rudes vicissitudes da existência, com os olhos sempre
fixos em nuvem tão alta e tão rósea de tão puro e tão doce idealismo.7
A partir de então o adjetivo utilizado por Júlio Mesquita para caracterizar a política e
a atuação dos alemães na guerra – “barbárie” – corresponde ao conceito que expressa o
maniqueísmo entre ocidente e oriente: segundo o diretor do Estado à civilização, encarnada na
Inglaterra e na França, se opõe a barbárie presente entre os alemães. A estratégia de Mesquita
para provar esse caráter anticivilizacional dos alemães é a descrição dos os propagandeados
massacres
6 É digno de nota que a primeira iconografia dessa seção do jornal foi publicada no dia 17 de agosto de 1914 e ilustrava a frente ocidental, com destaque para a França, a Bélgica e a Alemanha.
7 Idem. In: O Estado de S. Paulo, 31 ago. 1914, p. 3.
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ocorridos na Bélgica e o atentado contra a biblioteca – pretenso símbolo do ocidente
– de Louvain.
Contudo, a Alemanha do início do século XX não se identificaria facilmente com os
povos germânicos da Antiguidade: a imagem de uma culta Alemanha, pátria de renomados
filósofos, destoava de uma terra onde grassaria a “barbárie”. Tal impasse foi resolvido por
Júlio Mesquita ao afirmar a existência de duas Alemanhas: uma militarista e outra civilizada.
Peter Gay (1978, p. 15), ao tratar das leituras acerca da República de Weimar, afirmou que
essa perspectiva foi recorrente entre 1914-1918, o que insere Júlio Mesquita em um quadro de
referência europeu ante às representações mobilizadas acerca da guerra:
(...) Weimar passou também a simbolizar um prognóstico, ou, pelo menos, uma esperança,
para um novo começo; isso foi um reconhecimento tácito da acusação, amplamente
divulgada nos países Aliados durante a guerra e veementemente negada pela Alemanha, de
que na realidade existiam duas Alemanhas: a Alemanha orgulhosamente militar,
abjetamente submissa à autoridade, agressiva na aventura externa, obsessivamente
preocupada com a forma, e a Alemanha da poesia lírica, da filosofia Humanística e do
cosmopolitismo pacífico.
Ao longo dos meses de setembro e outubro, novos elementos foram mobilizados no
intuito de confirmar a leitura veiculada acerca da pátria de Kant. Assim, em novembro
Mesquita utilizou o bombardeamento da catedral católica de Reims no intuito de provar a
barbárie alemã.8 Considerando os elementos utilizados no mês de setembro, esses novos
argumentos se moldam em um mesmo quadro: a biblioteca e a igreja cristã: dois símbolos do
ocidente – da civilização, segundo Júlio Mesquita – contra os quais se movia a brutalidade
germânica.
O peso desses argumentos na tarefa de construir a imagem de uma Alemanha tomada
pela barbárie em razão do militarismo se evidencia na freqüência com a qual foram
mobilizados nos Boletins das semanas e dos meses que se seguiram. Assim, em de março de
1915, Mesquita escreveu com manifesta ironia:
8 MESQUITA, Júlio. Boletim Semanal da Guerra. In: O Estado de S. Paulo, 02 nov. 1914, p. 3.
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Não seria mau, entretanto, que Kant tornasse ao mundo. Seria imensamente curioso ver a
que torturas ele sujeitaria a rude independência da razão, para conciliar, por exigência do
patriotismo, a violação da neutralidade da Bélgica, a destruição de Louvain e a ruína da
catedral de Reims com o imperativo categórico e até com o hipotético.9
É interessante notar que os argumentos mobilizados pelo diretor d'O Estado não são
autônomos, inserindo-se na propaganda ocidental que na ocasião construiu a imagem dos
alemães como os “novos bárbaros”. Nesse sentido, afirmou Fabrice d’Almeida e Christian
Delporte (2010, p. 30):
(...) a França, encarnando o bem em marcha para um objetivo: a defesa dos direitos do
homem e da liberdade. Nessa progressão, ela enfrenta o império, o qual deseja apenas a
destruição em virtude de sua barbárie. A França vencerá graças ao socorro da humanidade e
de Deus, os dois auxiliares ou as duas armas. O narrador dessa história? Uma série de
instituições que se comprometeram pagar e difundir este ideal. São frequentemente os
administradores do Estado ou dos ministérios, ou dos órgãos da imprensa. Basicamente,
narra-se a guerra na França como o combate dos justos contra os inimigos diabólicos, cuja
ambição é destruir e matar uma beleza e uma inteligência que seriam incapazes de alcançar.
As civilizações se oporiam, violentamente, contra a “barbárie dos germânicos” ou “dos
godos”, nas palavras da época; velhos antagonismos raciais são, portanto, invocados para
sustentar a propaganda.10
O estudo dos Boletins publicados nos primeiros meses da guerra, portanto, evidencia
que a estratégia de Mesquita, ao resumir o conflito nos pares civilização versus militarismo, o
situa na esfera de um quadro de referência que não esconde a hegemonia da cultura francesa
de guerra.
Todavia, foi somente a partir do mês de setembro que o novo tratamento sobre a
Alemanha se efetivou. No primeiro Boletim desse mês, ao comentar sobre
9 Idem. In: O Estado de S. Paulo, 15 mar. 1915, p. 3.
10 Tradução nossa.
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dois telegramas ingleses recebidos pelo jornal, Mesquita afirmou que ambos provinham da
influência alemã sobre setores da imprensa britânica e que
Esta influência dos alemães em parte da imprensa da Tríplice ‘Entente’ é mais uma prova
da superioridade do esforço com que eles se preparavam para a luta, aproveitando, com
indiscutível habilidade, todos os elementos de êxito.11
Um mês após a afirmação segundo a qual os alemães não estavam preparados para a
guerra, portanto, Mesquita afirmava que a Alemanha não apenas se preparou, mas que essa
preparação foi realizada com “esforço” e “indiscutível habilidade”.
Quais teriam sido as causas para a mudança no discurso acerca da responsabilidade
sobre o conflito? Em primeiro lugar, os reveses da França. Entre o final de agosto e início de
setembro de 1914 efetuar-se-ia o fechamento da estratégia alemã de invadir a França e
derrubar Paris. No entanto, com a resistência belga e o auxílio inglês – ao lado da mobilização
do exército russo na frente oriental –, o plano Schlieffen parecia fadado ao insucesso, motivo
pelo qual recrudesceram os esforços alemães, resultando em evidente desvantagem para a
França. Júlio Mesquita, por sua vez, que ainda lia a guerra com base nas batalhas anteriores
(sobretudo com a guerra franco-prussiana de 1870) só pôde compreender o avanço alemão
atribuindo ao imperador todos os atributos do militarismo. Nesse mesmo sentido, e ao
paralelo ao avanço alemão, outro fator decisivo da viragem na leitura do conflito se encontra
na batalha do Marne, ocorrida durante a segunda semana de setembro de 1914.12
Para Júlio Mesquita, o que ocorreu no Marne foi o divisor de águas na dinâmica do
conflito. Em seus Boletins, ao longo dos quatro anos da conflagração, ele retornou à batalha
como ponto de inflexão a partir do qual a guerra ter-se-ia
11 MESQUITA, Júlio. Boletim Semanal da Guerra. In: O Estado de S. Paulo, 07 set. 1914, p. 3.
12 De acordo com SONDHAUS (2013, p. 95-96): “A primeira batalha do Marne (5 a 9 de setembro) começou no 36º dia depois que a mobilização geral colocou em marcha o plano alemão, ou M+36. Contanto que os exércitos de Moltke obtivessem uma vitória decisiva sobre os franceses em M+40, os alemães poderiam cumprir seu cronograma e despachar a maior parte de seu exército para leste, a fim de enfrentar os russos. (...). Em quatro dias de combates pesados, franceses e alemães sofreram em torno de 250 mil baixas, incluindo 80 mil mortos do lado francês, ao passo que a BEF sofreu 13 mil baixas, incluindo 1.700 mortos. Coincidentemente, os alemães perderam a primeira Batalha do Marne no dia conhecido como M+40, seu prazo final autoimposto para a vitória na frente ocidental.”
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alterado. No entanto, a partir dos Boletins de setembro já é possível perceber o quanto a
batalha do Marne causou impacto na produção dos seus textos: os Boletins seguintes
afirmaram que “o objetivo Paris desvaneceu-se à beira do Marne.”13
A Alemanha bárbara
Os meses seguintes caracterizam a sedimentação das imagens formadas a partir de
setembro, sem apresentar grandes alterações ao nível do discurso. No balanço dos três
primeiros meses da guerra efetuado no Boletim do dia 2 de novembro, Mesquita afirmou que
entre as surpresas da guerra, destacava-se o bombardeamento da catedral de Reims. O mesmo
Boletim apresentou críticas mais ácidas para com a Alemanha, consolidando a identificação
da política germânica com a barbárie:
Mas, de todas as nossas surpresas, a maior e a mais dolorosa foi a destruição de Louvaina,
de Malines e de Dinant e, sobretudo, o bombardeamento da catedral de Reims, aquela
maravilha da arte gótica, que lá estava, no alto da sua colina, irradiando para os quatro
horizontes a incomparável beleza da sua escultura e erguendo para o céu, como um cântico
perene, a recordação de toda a glória e de toda a poesia da religião que simbolizava. Hoje,
daquele esplêndido monumento, que as guerras de sete séculos respeitaram, só resta o perfil
esburacado, onde sobressaem, aqui e ali, os torsos mutilados das estátuas. Foi o que salvou,
na hedionda combustão, daquele primor, que ninguém jamais reconstruirá...
O mês de novembro, portanto, consolidou a imagem que foi construída desde a
batalha do Marne, a qual destoa dos Boletins de agosto. Dessa forma, já no início de
dezembro, a responsabilidade pela guerra foi atribuída claramente aos alemães:
“Esta guerra foi provocada pela Alemanha (...), a Alemanha tinha-a, há muito tempo,
minuciosamente preparado: desejava-a; aproveitou-se do incidente
13
Idem. In: O Estado de S. Paulo, 09 nov. 1914, p. 3.
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de Sarajevo para que ela rebentasse; lançou mão de todos os meios para torná-la inevitável”. 14
Nos meses finais de 1914, por conseguinte, já estavam sedimentadas as imagens
criadas sobre a Alemanha (e sobre a França, sua antítese). Porém, o processo de consolidação
das imagens produzidas por seus textos foi longo e impulsionado ainda mais pela estagnação
das trincheiras e pelo rigor do inverno entre 1914-1915. Assim, é interessante notar que ainda
em fevereiro de 1915 a identificação da Alemanha com a barbárie realizava-se com base nos
acontecimentos de 1914:
A Alemanha violou a neutralidade da Bélgica. A Alemanha incendiou Lovaina. A
Alemanha destruiu a catedral de Reims. A Alemanha fuzilou em massa belgas e franceses
desarmados. A Alemanha matou dezenas e dezenas de mulheres e crianças. A Alemanha
bombardeou, do mar e do ar, cidades da Inglaterra abertas e indefesas. A Alemanha,
finalmente, põe a pique, com as suas minas e seus submarinos, navios neutros.15
A intensificação dos ataques contra a Alemanha, contudo, se fizeram sentir nas
receitas do jornal, por meio da campanha dos anunciantes germânicos contra O Estado de S.
Paulo (DUARTE, Op. cit., p. 211). A resposta de Mesquita em 21 de dezembro de 1914
afirmava que as críticas limitavam-se tão somente ao militarismo. No entanto, em janeiro de
1915 , ao comentar os ataque contra os civis ingleses operado pelos alemães, escreveu
Mesquita: “É a doutrina dos seus filósofos, dos seus historiadores, dos seus sábios, dos seus
marechais, do seu governo, do seu povo enfim”.16
Nos Boletins do ano seguinte ainda foram destacadas as ações do exército teutônico
que poderiam provar a pretensa barbárie de sua campanha. Os soldados da França, por sua
vez, eram considerados defensores da liberdade e da democracia, ao passo que a Inglaterra
figurava como potência militar, defensora e amparo dos franceses. Assim, a guerra se
resumiria entre esses dois pares.
14 Idem. In: O Estado de S. Paulo, 02 nov. 1914, p. 3.
15 Idem, In: O Estado de S. Paulo, 22 de fevereiro de 1915, p. 3.
16 Idem. In: O Estado de S. Paulo, 25 jan. 1915, p. 3.
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Considerações finais
Os meses seguintes – o inverno europeu – constituíram como um momento de
articulação das imagens das nações envolvidas. A estrutura dos artigos, quer em caráter
material ou ao nível do conteúdo, não sofreu alterações: a crônica permaneceu semanal,
precedida pelos telegramas da semana e publicada sob o título “Boletim Semanal da Guerra”.
A posição do seu autor, igualmente, permaneceu aliada à França, apresentada como o baluarte
da democracia e da civilização. A antítese, identificada com a barbárie e o militarismo,
encarnar-se-ia na Alemanha e em suas ações políticas ou militares.
Tal estrutura, todavia, não se formou ao longo dos meses da guerra, figurando já em
setembro de 1914 e consolidando-se na transição para 1915, isto é, quando as trincheiras se
estabeleceram como uma realidade. A guerra de desgaste fomentou novos argumentos e
mobilizou novas investidas contra a Alemanha, apresentada como “os novos hunos”. Essa
postura revela, por sua vez, que a propaganda francesa era a espinha dorsal dos comentários
de Júlio Mesquita, ao lhe proporcionar a moldura sobre a qual dispunha sua leitura sobre o
conflito, como destacou MALATIAN (2013, p. 212):
Coerente com suas ligações culturais com a França, [Júlio Mesquita] manteve-se na posição
de aliadófilo, partilhando com a cultura de guerra dos franceses os temas do militarismo
alemão, da derrota de 1870, e principalmente o recurso à História para comprovar suas teses
e prever o futuro do conflito que o surpreendia por jogar por terra, desde o início, a
convicção da capacidade de resistência dos franceses e dos ingleses, derrotados na guerra
de fronteiras. Este é o limite de sua análise sobre as causas da guerra, que seguiram desde o
início a versão corrente no campo político dos Aliados.
Portanto, o mês de setembro de 1914, em suas primeiras semanas, constitui um
momento de viragem nas representações veiculadas pelo matutino paulista acerca da Primeira
Guerra Mundial por meio dos Boletins do seu diretor. Tal viragem é perceptível na análise das
alterações que a imagem da Alemanha sofreu em relação aos Boletins do mês anterior.
Enquanto o mês de agosto apresentou o conflito sem polarizações acentuadas, aproximando-
se da visão de um novo conflito
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franco-alemão – com referências freqüentes à guerra de 1870 –, juntamente com a atribuição
da responsabilidade ao militarismo da corte austro-húngara; todavia, a partir de setembro esse
sistema de representação foi colocado em questão: a Alemanha passou a ser apresentada sob
os caracteres da barbárie, o que a identificou progressivamente com o militarismo e elaborou
a visão maniqueísta da guerra e das relações internacionais: de um lado a civilização
ocidental, republicana e democrática; de outro a barbárie germânica, militar e imperialista.
Referências Bibliográficas
Livros:
CALDEIRA, Jorge. Júlio Mesquita e seu tempo: o jornal moderno, sertão e capitalismo
(1908-1927). São Paulo: Mameluco, 2015. D’ALMEIDA, Fabrice ; DELPORTE, Christian. Histoire des médias en France : de la
Grande Guerre à nos jours. Paris : Éditions Flammarion, coll. Champs Histoire, 2010. GAY,
Peter. A Cultura de Weimar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. HASTINGS, Max. Catástrofe – 1914: a Europa vai à guerra. Rio de Janeiro: Intrinseca, 2014. LUCA, Tania Regina de. A revista do Brasil: um diagnóstico para a (N)ação, São Paulo:
Fundação Editora da UNESP, 1999. SONDHAUS, Lawrence. A Primeira Guerra Mundial: história completa. São Paulo:
Contexto, 2013. TUCHMAN, Barbara W. Canhões de Agosto. Rio de Janeiro: Objetiva, 1994.
Capítulos de livros:
DUARTE, Paulo. Júlio Mesquita e o “Estado”, In: Centenário de Júlio Mesquita, São Paulo:
Anhambi, 1964.
Artigos:
MALATIAN, Teresa. A construção do convencimento: Júlio Mesquita e os Boletins
Semanais da Guerra do jornal In: O Estado de S. Paulo (1914-1918). Patrimônio e Memória,
São Paulo, Unesp, v. 9, n. 2, p. 205-219, julho-dezembro, 2013, p. 205-219.