coimbra, cecília et alii

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    * Ceclia M.B. Coimbra:historiadora, Doutoraem Psicologia. Profes-sora do Departamentode Psicologia da Uni-versidade Federal Flu-minense. Membro doGrupo Tortura NuncaMais/RJ. Maria Lvia Nas-cimento: Doutora emPsicologia. Professorado Departamento dePsicologia da Univer-

    sidade Federal Flumi-nense.E-mail:Livianascimento@cruiser.

    com.br

    Janela Central: Olhares sobre os jovens no BrasilAutoras: Ceclia M.B. Coimbra y Maria Lvia NascimentoTtulo: Ser jovem, ser pobre ser perigoso?JOVENes, Revista de Estudios sobre JuventudEdio: ano 9, nm. 22Mxico, DF, janeiro-junho 2005pp. 338-355

    Resumen

    Ser que o fato de considerar o jovem como um sujeito de direitos proclama-dos universais seja uma proposta liberal? Uma proposta de igualar as juven-

    tudes desiguais, mas entendidas como possuidoras de essncias diferentes?Tal lgica emana dos princpios cientficos que historicamente tm carac-terizado os jovens dentro de um modelo predominante, no qual eles so vistoscomo seres em formao, em crescimento, em desenvolvimento e, sob taispremissas, a gerao de esteretipos no tem permitido que as instituiessocializadoras busquem outros caminhos de aproximao para alm da cor-reo, da ateno e, portanto, da educao.

    Abstract

    Will the consideration of the young as a subject of the universal rights be takenas a liberal proposal? A proposal of equalizing the unequal youths but knownas holders of different essences? Such a logic emanates from the scientificprinciples that have, historically, characterized the young inside a predomi-nant model that regards them as beings in formation, growth or development.Under such premises, stereotyping has not allowed socialization institutions tolook for other ways of approach beyond correction, attention and, of course,education.

    Ceclia M. B. Coimbray Maria Lvia do Nascimento*

    Ser jovem, ser pobre serperigoso?

    IMAGENSSOBREAJUVENTUDESo perigosos,

    So to perigososruins demais.

    Fingem que gemem nas macas,que sangram nas facas,

    que morrem.Tem televiso

    qualquer barracoda escria desse pas.

    Com que direito,pedem os leitos

    limpos dos meus guris?(Jorge Simas/Paulo Cesar Feital)

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    1 Algumas anlises apresentadas neste item podem ser encontradas em Coimbra (1998) e Coim-bra e Nascimento (2003).

    ste trabalho coloca em anlise algumas caractersticas atribu-das juventude, tomadas como se fossem uma natureza, tor-nando-se, assim, inquestionveis. Para tal apontaremos algu-mas produes ocorridas, em especial no Brasil, durante o s-culo XXque tm caracterizado o jovem pobre como perigoso,

    criminoso e, portanto, no humano. A seguir, discutiremos alguns efeitos

    forjados hoje em nosso mundo globalizado pelas prticas que tm associadopericulosidade, criminalidade e condio de no humanidade situao depobreza. Alguns desses efeitos podem ser expressos, por exemplo, pelo au-mento dos extermnios ocorridos cotidianamente contra a juventude pobre,pelo significativo nmero de jovens cumprindo medidas de recluso, den-tre alguns outros aspectos que sero aqui assinalados. Finalizaremos citandouma pesquisa por ns realizada onde, atravs de levantamentos feitos emprocessos vinculados ao antigo Juizado de Menores, hoje Juizado da Infn-cia e da Juventude, percebemos como os diferentes profissionais presentesnesse estabelecimento, muitas vezes, tm fortalecido com suas prticas um

    determinado modo de ser e de existir para aqueles que tm procurado essergo.

    Majoritariamente, na sociedade capitalista, o jovem tem sido constru-do como um ser em formao, em crescimento, em desenvolvimento, emevoluo. Tal perodo de vida, considerado como sendo de transio, carre-ga certas marcas que tm sido afirmadas como naturezas. Algumas prticasbaseadas nos conhecimentos hegemnicos da Medicina e da Biologia, den-tre outros, tm afirmado, por exemplo, que determinadas mudanas hor-monais, glandulares e fsicas, tpicas dessa fase, so responsveis por certascaractersticas psicolgico-existenciais que seriam prprias da juventude.

    Descrevem, assim, suas atitudes, comportamentos e formas de estar nomundo como manifestaes dessas caractersticas, percebidas como uma es-sncia e, portanto, como imutveis. Dessa maneira, qualidades e defei-tos considerados tpicos do jovem como entusiasmo, vigor, impulsividade,rebeldia, agressividade, alegria, introspeco, timidez, dentre outros, passama ser sinnimos daquilo que prprio de sua natureza.

    Por que tal forma de caracterizar a juventude tem sido aplicada apenasa alguns segmentos sociais? Por que o jovem pobre encontra-se excludodesse quadro? Que outras articulaes foram sendo produzidas e fortaleci-das, ao longo do sculo XX, para a juventude pobre?

    Articulando pobreza, periculosidade, criminalidade1

    H anos trabalhando com algumas ferramentas propostas por Michel Fou-cault (1988), entendemos, como ele, que seja importante pensar a emergn-cia do capitalismo industrial e do que esse autor chamou de sociedade disci-plinar, quando as elites passam a se preocupar, no somente com as infraescometidas pelo sujeito, mas tambm com aquelas que podero vir a acon-tecer. Assim, o controle no se far apenas em cima do que se , do que sefez, mas principalmente sobre o que se poder vir a ser, do que se poder vir

    a fazer, sobre as virtualidades.

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    Em nosso pas, que traz como herana mais de trezentos anos deescravido, considerada poca como fato natural, o controle das vir-tualidades exercer um papel fundamental na constituio de nossaspercepes e subjetividades sobre a pobreza.

    Para tal, muito tm contribudo algumas teorias como as racistase eugnicas, que emergem no sculo XIX, na Europa, condenando as

    misturas raciais e caracterizando-as como indesejveis, produtoras deenfermidades, de doenas fsicas e morais (imbecilidades, idiotias, re-tardos, deficincias em geral, indolncia, dentre outras). interessantenotarmos que, nesse mesmo perodo, ocorrem, tambm na Europa,movimentos que propugnam e influenciam as propostas de abolioda escravatura negra nas Amricas. Ou seja, ao mesmo tempo em queemerge a figura de um certo trabalhador livre segundo os interesseseconmicos vinculados ao capitalismo liberal da poca produz-se umaessncia para esse mesmo trabalhador. Definindo-se formas considera-das corretas e verdadeiras de ser e de existir, forjam-se subjetividades

    sobre a pobreza e sobre o pobre; diz-se o que devero ser.Segundo a lgica do capitalismo liberal, os trabalhadores livres tm

    liberdade para oferecer e vender sua fora de trabalho no mercado,desde que se mantenham no seu devido lugar, desde que no parti-cipem dessas misturas indesejveis, mantendo-se dentro das normasvigentes, desde que, portanto, respeitem as regras impostas por umasociedade de classes. Sociedade essa que, paradoxalmente, a partir decertos princpios defendidos por uma elite que ascende ao poder, pro-pugna em seus discursos que os direitos humanos, polticos, econmi-cos, sociais e culturais so direitos de todos, produzindo-os, assim,

    como direitos universais atravs de suas famosas palavras de ordem:liberdade, igualdade e fraternidade.

    Entendemos como nos apontou Marx que a formao da riqueza,a acumulao do capital produz, tambm, o seu contrrio, a misria.Pela tica e tica do capitalismo esta passa a ser naturalmente perce-bida como advinda da ociosidade, da indolncia e dos vcios inerentesaos pobres. Portanto, esses princpios burgueses no podem ser esten-didos a todos e caracterizados como universais, pois numa sociedadeonde a liberdade uma quimera, a desigualdade e a competitividadeso as regras do bom viver, uma existncia livre, igualitria e fraternano tem lugar .

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    Ainda no sculo XIX, na Europa, pari passu s teorias racistas e aomovimento eugnico e lhes servindo de base, temos a obra de Mo-rel (1857), o Tratado das Degenerescncias onde aparece o termoclasses perigosas, definindo-o da seguinte maneira:

    [...] no seio dessa sociedade to civilizada existem verdadeiras variedades [...]

    que no possuem nem a inteligncia do dever, nem o sentimento da moralida-de dos atos, e cujo esprito no suscetvel de ser esclarecido ou mesmo conso-lado por qualquer idia de ordem religiosa. Qualquer uma destas variedades foidesignada sob o justo ttulo de classes perigosas [...] constituindo para a socieda-de um estado de perigo permanente. (Apud Lobo, 1997: 55).

    Vrios outros autores tentam contribuir na busca de bases cientficaspara essas teorias. J desde o incio do sculo XIX, populariza-se entreos cientistas a Antropometria, medio de ossos, crnio e crebro que,por meio de comparaes, busca provar a inferioridade de determina-dos segmentos sociais. Ficam famosas, inclusive entre os educadores da

    poca, as teses de Paul Broca (1824-1880) e Cesare Lombroso (1835-1909). Este ltimo, com sua Antropologia Criminal, defende ser pos-svel distinguir, por intermdio de certas caractersticas anatmicas, oscriminosos natos e os perigosos sociais. A teoria das disposies ina-tas para a criminalidade, defendida por Lombroso, ainda tem muitosdefensores entre ns (Waldhelm, M.C.V.,1998). Por exemplo, durante operodo da ditadura militar em nosso pas, em 1974, em duas cidadessatlites de Braslia, DF (Ceilndia e Taguatinga) por ordens superiores,em duas pr-escolas pblicas, crianas em sua maioria filhos de mi-grantes nordestinos so colocadas em fila para terem seus crnios e

    faces medidos. Posteriormente, so enviados direo e aos professo-res dos referidos estabelecimentos laudos que descrevem as carac-tersticas emocionais e intelectuais dessas crianas.

    Fora tais devaneios cientificistas temos definies mais grosseirasque, cotidianamente, afirmam a existncia de bandidos de nascena ,os que j nasceram para o crime e vo pratic-lo de qualquer maneira(Benevides, 1983: 56). Por exemplo, para o delegado paulista SrgioParanhos Fleury conhecido por sua participao em torturas a presospolticos durante a ditadura bandido era visto como um fenmenoda natureza. Dizia ele:

    [...] voc cria cachorro? Numa ninhada de cachorro vai ter sempre o cachorrinhoque mau carter, que briguento e vai ter outro que se porta bem. O marginal aquele cachorrinho que mau carter, indisciplinado, que no adianta educar.(Apud Benevides, 1983: 57)

    Essas teorias racistas e eugnicas so realimentadas pela obra deCharles Darwin, A origem das Espcies (1859). Conceitos comoprole mals, herana degenerativa, degenerescncia da esp-cie, taras hereditrias, inferiorizao da prole, procriao de-feituosa, raa pura, embranquecimento, aperfeioamento daespcie humana, purificao so comuns nos tratados de Medicina,

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    Psiquiatria, Antropologia e Direito do final do sculo XIXe incio do s-culo XXque pregam, seguindo o modelo da eugenia, a esterilizao doschamados degenerados como profilaxia para os males sociais.

    Renato Kehl, mdico ligado ao movimento eugnico no Brasil, noincio do sculo XX, defende a esterilizao

    [...] dos parasitas, indigentes, criminosos, doentes que nada fazem, que vegetamnas prises, hospitais, asilos; dos que perambulam pelas ruas vivendo da carida-de pblica, dos amorais, dos loucos que enchem os hospitais; da mole de genteabsolutamente intil que vive do jogo, do vcio, da libertinagem, do roubo e dastrapaas [...] (Apud Lobo, 1997: 147-148).

    Ou seja, deve ser esterilizada toda a populao pobre brasileira que noesteja inserida no mercado de trabalho capitalista, todos aqueles queno so corpos teis e dceis para a produo.

    Coroando e seguindo as pegadas de todos essas teorias encontra-mos, no Brasil, ainda no mesmo perodo, o movimento higienista que,extrapolando o meio mdico, penetra em toda a sociedade brasileira,aliando-se a alguns especialistas como pedagogos, arquitetos/ur-banistas e juristas, dentre outros. Tal movimento, formado por muitospsiquiatras e juristas da elite brasileira e expoentes da cincia pocacomo Franco da Rocha, Nina Ribeiro, Silvio Romero e Henrique Roxo,atinge seu apogeu nos anos 20, quando da criao da Liga Brasileirade Higiene Mental por Gustavo Riedel. Suas bases esto nas teoriasracistas, no darwinismo social e na eugenia, pregando tambm oaperfeioamento da raa e colocando-se abertamente contra negros e

    mestios, a maior parte da populao pobre brasileira.Esta elite cientfica est convencida de sua misso patritica naconstruo de uma Nao moderna e suas propostas baseiam-seem medidas que devem promover o saneamento moral do pas. Adegradao moral especialmente associada pobreza e percebi-da como uma epidemia que se deve tentar evitar. Portanto, para erigiruma Nao, os higienistas afirmam que toda a sociedade deve partici-par dessa cruzada saneadora e civilizatria contra o mal que se en-contra no seio da pobreza.

    Tal movimento ir se imiscuir nos mais diferentes setores da socie-

    dade, redefinindo os papis que devem desempenhar em um regimecapitalista a famlia, a criana, a mulher, a cidade, as elites e os seg-mentos pobres.

    A Medicina passa a ordenar o modelo ideal de famlia nuclear bur-guesa. Detentores da cincia, os mdicos tomam para si a tutela dasfamlias, indicando e orientando como todos devem comportar-se,morar, comer, dormir, trabalhar, viver e morrer.

    O higienismo, aliado aos ideais eugnicos e teoria da dege-nerescncia de Morel, concebe que os vcios e as virtudes so, emgrande parte, originrios dos ascendentes. Afirma que aqueles advindos

    de boas famlias teriam naturalmente pendores para a virtude. Aocontrrio, aqueles que traziam m herana, leia-se os pobres, seriamportadores de degenerescncias. Dessa forma, justifica-se uma srie de

    O higienismo,

    aliado aos ideais

    eugnicos e teoria

    da degenerescncia

    de Morel, concebe

    que os vcios e

    as virtudes so,

    em grande parte,

    originrios dos

    ascendentes

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    medidas contra a pobreza, que passa a ser percebida e tratada comopossuidora de uma moral duvidosa transmitida hereditariamente.Rizzini (1997) discute a produo dos pobres dignos e dos viciosos,segundo uma escala de moralidade, e afirma que para cada um delessero utilizadas estratgias diferentes.

    Aos pobres dignos, aqueles que trabalham, que mantm a fam-

    lia unida e observam os costumes religiosos, necessrio o forta-lecimento dos valores morais, pois pertencem a uma classe mais vul-nervel aos vcios e s doenas. Seus filhos devem ser afastados dosambientes perniciosos, como as ruas.

    Os pobres considerados viciosos, por sua vez, por no pertenceremao mundo do trabalho uma das mais nobres virtudes enaltecidas pelocapitalismo e viverem no cio, so portadores de delinquncia, so liber-tinos, maus pais e vadios. Representam um perigo social que deveser erradicado. Da a necessidade de medidas coercitivas principalmentepara essa parcela da populao, pois so criminosos em potencial. As-

    sim, embora a parcela dos ociosos seja a mais visada por seu poten-cial destruidor e contaminador, a periculosidade tambm est presen-te entre os pobres dignos, pois por sua natureza a pobreza tam-bm correm os riscos das doenas.

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    A partir desse mapeamento dos pobres, surge uma grande preocu-pao com a infncia e a juventude que, num futuro prximo, poderocompor as classes perigosas: as crianas e os jovens em perigo,aqueles que devero ter suas virtualidades sob controle permanente.

    Todas essas teorias estabelecem/ fortalecem a relao entre vadia-gem/ ociosidade/ indolncia e pobreza, bem como entre pobreza e pe-

    riculosidade/ violncia/ criminalidade. Mesmo autores mais crticos, aolongo dos anos, tm cado nesta armadilha de mecanicamente vincularpobreza e violncia, a partir de estudos baseados nas condies estru-turais da diviso da sociedade em classes sociais e no antagonismo e naviolncia resultantes dessa diviso.

    No por acaso que, da aliana entre mdicos e juristas da po-ca, surge em 1927 a primeira lei brasileira especfica para a infncia eadolescncia, o primeiro Cdigo de Menores. Data da a utilizao dotermo menor, no mais para menores de idade de quaisquer classessociais, mas para um determinado segmento: o pobre. Esta marca,

    presente nas subjetividades dos brasileiros, se impe at hoje, mesmoquando, em 1990, o Estatuto da Criana e do Adolescente (ECA) retira oconceito de menor de seu texto legal. Infncia e juventude, crianase adolescentes, so as designaes que devero ser utilizadas em sub-stituio categoria menor.

    Essa produo de infncias e juventudes desiguais tem seexpressado, ao longo de todo o sculo XX e ainda hoje, atravs damassiva prtica de internao das crianas e jovens pobres, em espe-cial aps a emergncia do Juizado de Menores, em 1923, criado parasolucionar o problema da infncia e juventude desassistidas. Tal

    poltica de internao se fortalece, sobretudo, nos dois perodos dita-toriais brasileiros, com a criao de rgos como oServio de Assistncia ao Menor (SAM), implantadoem 1941 durante o Estado Novo, e a FundaoNacional do Bem-Estar do Menor (FUNABEM), quesurge em 1964 durante o perodo da ditaduramilitar. Estabelecimentos denominados, pocada vigncia dos Cdigos de Menores, de depsi-tos, dizendo-se destinados ao regime educati-vo e com a finalidade de preveno ou preser-vao. Em realidade, so locais onde crianas e

    jovens pobres sofrem toda sorte de maus-tratos.Se trouxermos esta anlise para o presente, mes-mo aps o ECA, podemos dizer que a prtica da vi-olncia nos internatos no uma caracterstica dopassado. Hoje, em pleno sculo XXI, tal situaode excluso pouco mudou e o que vemos nesses

    estabelecimentos um quadro de superlotao, defalta de equipamentos de educao e de funcionrios, de constantes

    torturas e violaes. Como exemplo dessa situao, temos vrios de-poimentos recolhidos em agosto de 2001, quando da visita ao Brasildo Relator Especial da ONUContra Torturas, Sir Nigel Rodley. Ao visitar

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    Franco da Rocha, um estabelecimento da FEBEMde So Paulo, o Relatorconstatou que:

    Os monitores muitas vezes produziam espancamento nos internos... recebeu te-stemunhos de espancamentos consistentes e pode ver as marcas deixadas poresses espancamentos, os internos informaram a localizao dos canos de ferroe pedaos de madeira usados pelos monitores para espanc-los... O Relator

    Especial pode descobrir, escondido atrs de alguns colches e cobertores, umgrande nmero de pedaos de ferro e de madeira... As agresses - infringidaspor cerca de 30 a 50 monitores, que , conforme as alegaes na maioria dasvezes cobrem os rostos e esto embriagados ou drogados ocorreriam noite,sem qualquer razo... (Rodley, 2001)

    Tais circunstncias, que continuam sendo denunciadas por entidades dedireitos humanos, vez por outra aparecem nas manchetes dos jornais.Em uma dessas reportagens lemos que:

    As duas principais regras que os adolescentes da Unidade de Acolhimento Inicialda Febem, a porta de entrada da instituio, tm de obedecer so: no falare no se mexer. Eles passam o dia sentados. Em razo da superlotao recordedesta semana, surgiu uma nova regra: os garotos tm que dormir de ladopara que trs usem o mesmo colcho. (Folha de So Paulo, 2001: C8).

    Voltando ao sculo XXe vigncia dos Cdigos de Menores, percebe-mos nesta poca uma forte preocupao com a disciplinarizao dascrianas pobres, com a necessidade de colocar em ordem os desvia-dos ou aqueles que poderiam vir a ser. Para estes, o espao jurdico

    prev a reeducao, a internao e a preparao para o trabalho. Noconjunto dessas medidas, chamadas de proteo, o Estado vai constru-indo um modelo do que diz ser assistncia pobreza. Assim,

    Sob gide do Juiz, os menores no eram julgados, mas tutelados; no eramcondenados, mas sim protegidos e no eram presos, mas internados.Visando assegurar sua assistncia e proteo, o Juiz os encaminhava aos estabeleci-mentos [...] onde deveriam ficar internados pelo tempo por ele determinado. Ainternao nestes estabelecimentos, mais que a educao e recuperao dosmenores, privava-os da liberdade, afastando-os do convvio das ruas, encaradascomo espao pernicioso. [...] Outra preocupao que se fazia presente naquelapoca, e que se verifica at os dias de hoje, era a tendncia de se oferecer ofcios

    profissionalizantes em oficinas, que preparam para o trabalho, mas em funessocialmente desvalorizadas e de baixa remunerao [...] (Bulco, 2001: 60).

    Em nosso pas, desde o incio do sculo XX, diferentes dispositivossociais vm produzindo subjetividades onde o emprego fixo e umafamlia organizada tornam-se padres de reconhecimento, aceitao,legitimao social e direito vida. Ao fugir a esses territrios modelaresentra-se para a enorme legio dos perigosos, daqueles que so olha-dos com desconfiana e, no mnimo, evitados, afastados, enclausura-dos e mesmo exterminados.

    Cada vez mais, em tempos neoliberais, o emprego fixo e o modelo defamlia organizada, dentro dos parmetros burgueses do sculo passado,

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    tornam-se raridades, em especial entre os pobres. Pesquisas realizadaspelo IBGEe pelo Ministrio do Desenvolvimento Social e Combate Po-breza revelam que, em 2003, cada vez maior o nmero de crianase mulheres afetadas pela pobreza. Frente a tal constatao, resta-nosperguntar porque o nmero de homens pobres vem diminuindo. Dadosindicam o extermnio como resposta.2 Recente diagnstico da UNESCO

    aponta que as mortes violentas entre jovens pobres, na faixa etria en-tre 15 e 24 anos, cresceram 88,6% no perodo de 1993 a 2002. Sendoos protagonistas dessa aberrante estatstica o jovem do sexo masculino,comea a aparecer nos grandes centros urbanos brasileiros um signifi-cativo desequilbrio demogrfico entre homens e mulheres, expresso,dentre outras formas, nessa pobreza composta majoritariamente porcrianas e mulheres.3

    Pesquisa realizada pelo jornal O Globo em atestados de bitos domunicpio do Rio de Janeiro, ano 2003, constatou o nmero de 3415mortes violentas, sendo que em 1396 casos as vtimas deixaram fil-

    hos, o que representa 2895 rfos, dos quais 2394 so menores de18 anos. Esses dados, que violentam os mais elementares direitos dapessoa humana, vm fortalecendo, como afirmado acima, outras for-mas de viver em famlia, aonde as mulheres, sobretudo as pobres, vose tornando cada vez mais provedoras oficiais, nicas responsveis portodo o sustento e educao desses rfos.4

    Alm desse nmero significativo de extermnio, a situa-o da pobreza vem se agravando em funo da polticavigente de Estado Mnimo, onde o trabalho inexiste e aspolticas pblicas so totalmente ineficazes, no atingindo

    essa parcela da populao brasileira.Se no capitalismo liberal os jovens pobres foram recolhi-

    dos em espaos fechados para serem disciplinados e norma-tizados na expectativa de que fossem transformados em ci-dados honestos, trabalhadores exemplares e bons pais defamlia; hoje, no neoliberalismo, no so mais necessriosao mercado, so suprfluos, suas vidas de nada valem, dao extermnio.

    Importante assinalarmos que com o neoliberalismo vemse implantando um modelo de sociedade chamada por al-2 Pesquisa realizada pelo jornal O Globorevela que, somente no Rio deJaneiro, no ano de 2003, 62% das vtimas assassinadas levaram tiros nacabea, o que vem confirmar a hiptese de extermnio para uma determi-nada parcela da populao, como afirmam algumas entidades de direitoshumanos. In O Globo, Os nmeros da brutalidade (05/07/2004).3 As pesquisas aqui apresentadas foram publicadas no jornal O Globosobos ttulos de Jovens vtimas (08/06/2004) e Mulheres e crianas na po-breza (11/07/2004)4 Desde os anos 1970 tem se verificado uma tendncia, a nvel mundial,das mulheres assumirem cada vez mais o lugar de chefes de famlia.Entretanto, o que se quer apontar aqui se refere fundamentalmente smulheres pobres que se encontram nessa circunstncia em decorrnciada morte violenta de seus companheiros e da poltica implementada peloEstado neoliberal. Segundo relatrio do Ministrio do DesenvolvimentoSocial e Combate Pobreza, com base nas informaes dos 8,262 milhesde famlias inscritas, at fevereiro de 2004, no cadastro nico, ponto departida dos programas sociais do governo brasileiro, 91% das famlias sochefiadas por mulheres. In O Globo, 11/07/2004, op. cit.

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    guns de sociedade de acumulao flexvel de capital (Harvey, 1993),ou sociedade do espetculo (Debord, 1997) e mesmo de sociedadede controle (Deleuze, 1992), que vem se mesclando com o que Fou-cault (1986) denominou de sociedade disciplinar. De um modo geral,essa nova era caracteriza-se, em especial, na Europa, aps a Segun-da Guerra Mundial, pelas diferentes formas de controle ao ar livre que

    vm se misturando s disciplinas que operam em sistemas fechadoscomo famlia, escola, fbrica, hospital, priso. Agora, na chamada ps-modernidade, o marketing, os meios de comunicao de massa passamtambm a ser instrumentos de controle social, especialmente atravsda produo de modos de ser, viver e existir. Este controle de curtoprazo e de rotao rpida, mas tambm contnuo e ilimitado, ao passoque a disciplina era de longa durao, infinita e descontnua (Deleuze,1992: 220).

    Sobretudo nos pases perifricos, como o Brasil, essas duas formasde funcionamento social vem coexistindo simultaneamente. Para a po-

    breza h um caminho j delineado; por isso, no por acaso o altondice de jovens pobres exterminados (Soares, 1996). Para os que con-seguem sobreviver, dentro da poltica neoliberal de tolerncia zero,esto previstos diferentes tipos de enclausuramento. Muitos jovens po-bres maiores de 18 anos encontram-se nas prises, as chamadas prisesda misria, segundo o socilogo Loic Wacquant (2001). H, tambm,inmeros casos de privao de liberdade aplicada para os que tmentre 12 e 18 anos. J para as crianas pobres, menores de 12 anos,restam os abrigos; estabelecimentos desaparelhados em termos materi-ais e de pessoal, que se encontram em mos de entidades filantrpicas

    e caritativas, onde no so raras as situaes de violncia.Em nosso pas, a partir de meados dos anos 1980, com a grada-

    tiva implantao de medidas neoliberais onde a nova ordem mundialcomea a aparecer com seus corolrios de globalizao do mercado,Estado Mnimo, flexibilizao do trabalho, desestatizao da econo-mia, competitividade, livre comrcio e privatizao temos uma mas-siva produo de insegurana, medo, pnico articulados aocrescimento do desemprego, da excluso, da pobreza eda misria.

    Nesse dantesco quadro, os jovens pobres,quando escapam do extermnio, so os exclu-dos por excelncia, pois sequer conseguemchegar ao mercado de trabalho formal. Sua atu-ao em redes ilegais como o circuito do narco-trfico, do crime organizado, dos seqestros, den-tre outros vem sendo tecida como nica forma desobrevivncia e se prolifera, cada vez mais, comoprticas de trabalho medida que aumenta aapartao social.

    Para esses jovens, destinados de antemo aesse problema, fundidos com ele, o desastre sem sada e sem limites [...] Marginais pela

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    sua condio, geograficamente definidos antes mesmo de nascer, reprovados deimediato, eles so os excludos por excelncia [...]. Por acaso eles no moramnaqueles lugares concebidos para se transformar em guetos? Guetos de trabal-hadores, antigamente. De sem-trabalho, de sem-projeto, hoje [...] Que podemeles esperar do futuro? Como ser a sua velhice, se chegarem at l? [...] Blo-queados numa segregao [...] eles tm a indecncia de no se integrar. (For-rester, 1997: 57,58).

    A excluso e a alienao dos jovens pobres, pelo envolvimento com ailegalidade, tm produzido fortes marcas em suas existncias: os queconseguem sobreviver aos extermnios, certamente no escapam do re-colhimento em internatos e prises. Atualmente, a maioria da popula-o carcerria dos presdios brasileiros jovem. De acordo com dadosdo Ministrio da Justia estima-se:

    [...] que os presos de 18 a 25 anos so cerca de 60% do total de presidirios(...) Somados aos adolescentes internados em instituies de correo (como aFebem) ou submetidos a outras punies previstas no Estatuto da Criana e do

    Adolescente, o contingente de jovens infratores no pas chega a 143 mil pes-soas (O Globo, 2001: 3).

    Pesquisa PIVETES: fortalecendo e/ou rompendo modelos?

    Desde 1995, um grupo de professores e alunos da graduao de Psi-cologia e tcnicos do Servio de Psicologia Aplicada da UniversidadeFederal Fluminense vem desenvolvendo um trabalho de pesquisa e ex-tenso denominado, provocativamente, PIVETES (Programa de Interven-o Voltado s Engrenagens e Territrios de Excluso Social). Neste pro-grama, atravs de pesquisas em processos do antigo Juizado de Meno-

    res, hoje da Infncia e da Juventude, vem sendo colocada em anlise aatuao de alguns profissionais que, ao longo do sculo XX, acompan-ham crianas, jovens e suas famlias que buscam atendimento junto aesse estabelecimento.

    Foram realizadas trs pesquisas que se interpem, a partir de trsmomentos da histria da legislao brasileira para a infncia e ado-lescncia. Em todas elas o foco de anlise foi o de discutir algumasprticas/discursos de especialistas da rea que tm, de um modo geral,fortalecido os modelos dominantes de criana, jovem e famlia, pro-duzindo, muitas vezes, a excluso daqueles que neles no se en-caixam.

    Os perodos de estudo foram pesquisados concomitantemente. Oprimeiro (1936 a 1945) pensou os efeitos do Cdigo de Menores de1927 num contexto de hegemonia do movimento higienista no Brasil ea atuao de um de seus principais agentes: o comissrio de vigilncia.O segundo (1974 a 1983) percorreu o perodo da ditadura militar noBrasil, a promulgao da Lei de 1979 sobre o menor e a prtica doassistente social junto ao Juizado. O terceiro (1985 a 1994) discutiu osnovos movimentos sociais no Brasil, a promulgao do Estatuto da Cri-ana e do Adolescente (ECA), em 1990, e a atuao do psiclogo nasprticas do Juizado.

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    A primeira pesquisa apontou que, na dcada estudada (1936/1945),o comissrio de vigilncia tinha uma atuao relevante junto ao Juiza-do. Marcado pelas teorias higienista, racistas e eugnicas e por prticasmoralizadoras influa diretamente nos destinos das famlias pobres aodiagnosticar os determinantes da ocorrncia da doena, da misria, doabandono e da criminalidade que atingia o chamado menor. Esse diag-

    nstico definia com quem a criana deveria ficar, se o ptrio poder de-veria ser retirado, se deveria ficar internada e sob a guarda do Estado.O comissrio de vigilncia aparece nos processos com prticas pareci-das com as que o assistente social ou mesmo o psiclogo exercero noJuizado posteriormente. Cabe-lhe a tarefa de produzir laudos e parece-res e realizar visitas domiciliares para embasar as decises do Juiz. Huma preocupao com os aspectos mdicos e psicolgicos, bem comocom a questo moral, atravs dos hbitos, da conduta, dos vcios e dosdefeitos do menor em questo, sendo priorizada a investigao dosseus antecedentes morais e dos de suas famlias.

    A anlise do perodo seguinte (1974-1983) mostrou o assistente so-cial atuando no s atravs do modelo higienista, onde a caridade, afilantropia e o cientificismo se mesclam, mas tambm atravs de prti-cas onde outras fisionomias se fazem presentes. O modelo que pro-pugna a salvao do pas pela salvao da criana, j anteriormenteutilizado pelo comissrio de vigilncia, nos anos 1960 e 1970, com aemergncia da Doutrina de Segurana Nacional e com o fortalecimentodo tecnicismo, assumiu outro rosto. Encaixava-se a, perfeitamente, osurgimento do Servio Social no Brasil (dcada de 1940), marcado peloassistencialismo catlico, pelo cientificismo, mas tambm pela misso

    de erigir uma Nao moderna. Esse modelo de salvao da criana foi,tambm, completamente incorporado pela ditadura militar que seinstaurou no Brasil nos anos 1960 e 1970.

    A Doutrina de Segurana Nacional5 passou a exercer grande influn-cia e penetrou nos mais variados espaos, apontando para o combateao inimigo interno, aquele que poderia colocar em perigo a seguran-a do regime. Esses inimigos no eram somente os que se opunhampoliticamente ao governo de fora instalado, no Brasil, com o golpemilitar de 1964. Eram tambm todos aqueles que no se ajustavam aosmodelos, padres e normas vigentes; em especial, os pobres.

    Aliado segurana do regime, ao aspecto filantrpico cientificistapredominante na prtica hegemnica do assistente social tivemosalgumas outras caractersticas, muito fortalecidas nesses anos 1960 e1970, que trouxeram uma outra fisionomia s aes desenvolvidaspor esse profissional no Juizado de Menores: o intimismo, o familiarismoe o psicologismo. De um modo geral, essas caractersticas, discutidaspor Coimbra (1995) ao analisar as prticas psidurante o perodo daditadura militar, atravessavam o cotidiano do assistente social, um dostcnicos mais atuantes do Juizado naquela poca.

    No que diz respeito pesquisa realizada no perodo de 1985 a 19945 Sobre o assunto e a importncia da Escola Superior de Guerra (ESG) na gestao dessa

    doutrina consultar Coimbra, (2000) e Bazilio, (1985).

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    foi constatado que, embora a atuao direta do psiclogo no se fiz-esse to presente nos processos estudados, o discurso psi encontra-va-se disseminado como nos anos 1970 e 1980 nas falas dos demaistcnicos que atuavam e ainda atuam no Juizado, sobretudo, nas dosassistentes sociais. Entendemos por discurso psi uma certa prtica,ainda hoje hegemnica, que reduz a subjetividade a uma dimenso psi-

    colgica interiorizada, isolando-a de um contexto mais amplo.Observamos que o psiclogo era e tem sido chamado a atuar noscasos considerados mais difceis, em especial naqueles classificadoscomo atos infracionais. Dessa maneira, a demanda endereada aopsiclogo solicita que ele exera a funo de um perito do individual,assumindo uma postura pretensamente neutra, desvendando mist-rios, desejos e verdades do sujeito.

    No espao jurdico a prtica psicolgica enquanto tcnica deexame, procedimento que resgata cientificamente o inqurito naproduo de uma verdade6 atravs da atuao do psiclogo ou do dis-

    curso psi acabam por conferir uma essncia s formas alternativasde convivncia familiar, pois deslocam o foco de questes sociais paraaspectos puramente individuais e psicolgico-existenciais.

    At 1990, todos esses tcnicos tinham suas atuaes apoiadasno Cdigo de Menores de 1927 e em sua posterior reformula-

    o, ocorrida em 1979. Enquanto o primeiro se baseavano princpio do menor como sinnimo de carente, pobre,e possivelmente criminoso em potencial, a mudana de1979 se pautou no princpio da situao irregular. Es-sas duas legislaes seguiram uma lgica que colocava

    no terreno da imoralidade, da anormalidade e mesmo dapatologia os modos de vida das famlias pobres, justifi-cando, assim, a necessidade do Estado tomar para si atarefa de proteger crianas e jovens cujas famlias eram

    6 Foucault aponta diferentes funcionamentos na rea jurdica parao que chamou de tcnica de inqurito e tcnica de exame. Noprimeiro, muito utilizado nas sociedades de soberania, o problemaera o de saber se houve ofensa, quem a praticou e que pena lheseria infringida . O inqurito precisamente uma forma poltica,uma forma de gesto, de exerccio do poder que, por meio da insti-tuio judiciria, veio a ser uma maneira, na cultura ocidental, de

    autentificar a verdade, de adquirir coisas que vo ser consideradascomo verdadeiras e de as transmitir. O inqurito uma forma desaber-poder (Foucault, 1996, p. 78). A tcnica do exame ou aschamadas cincias de exame referem-se s diferentes formas deanlise inventadas no sculo XIX, com a emergncia da sociedadedisciplinar, que deram origem s chamadas cincias humanase sociais como a Sociologia, Psicologia, Psicopatologia, Crimi-nologoia,, Psicanlise. No Panpticon vai se produzir algototalmente diferente; no h mais inqurito mas vigilncia,exame. No se trata de reconstituir um acontecimento, mas dealgo, ou antes, de algum que se deve vigiar sem interrupoe totalmente. Um saber que tem agora por caracterstica nomais determinar se alguma coisa se passou ou no, mas deter-minar se o indivduo se conduz ou no como deve, conformeou no a regra, se progride ou no, etc. Esse novo saber se

    ordena em torno da norma, em termos do que normal ouno, correto ou no, do que se deve ou no fazer. (Fou-cault, 1996, p.88).

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    consideradas fora das normas. Ou seja, os textos das duas leis defen-diam que existiam formas melhores e, portanto, ideais dos pobres edu-carem, cuidarem e protegerem seus filhos. Com base nisso, ao longode todo o sculo XX, justificavam-se as propostas de retirada do ptriopoder devido condio de pobreza, incentivam-se as adoes de cri-anas pobres, internavam-se os chamados abandonados, dentre outras

    prticas de excluso. interessante notar que os princpios que regiamos dois cdigos sofreram influncia direta do higienismo, aliado s teo-rias racistas, eugnicas, da degenerescncia e da evoluo das espcies,que marcaram os momentos de emergncia dessas leis.

    O Estatuto da Criana e do Adolescente, que nasce no Brasil no bojodos novos movimentos sociais, afirma a criana e o jovem de qualquersegmento social como sujeitos de direitos, preconizando a lgica daproteo integral, retirando o princpio da situao irregular, des-fazendo a separao entre menor e criana e recusando a prtica dainternao como primeiro e principal recurso das medidas chamadas de

    assistncia infncia e adolescncia.Em seu artigo 3o. afirma o Estatuto:

    A criana e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes pessoa humana [...] assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todasas oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento fsico,mental, moral, espiritual e social, em condies de liberdade e de dignidade.

    inegvel a importncia trazida pelo ECAno que se refere ao reorde-namento jurdico vinculado rea da infncia e da juventude e pro-

    teo dos direitos e garantias para este segmento da populao. fun-damental sua defesa no sentido de torn-lo uma realidade, pois mesmoaps 14 anos de existncia, ainda so mantidas prticas menoristas eatos de violncia, de desrespeito e de abusos que fazem parte do co-tidiano dos estabelecimentos responsveis pelas medidas scio-educa-tivas7 preconizadas nesta nova legislao.

    Entretanto, considerar o jovem enquanto sujeito de direitos afirma-dos como universais no faria parte de uma proposta liberal? Uma pro-posta de igualar juventudes desiguais, mas que so entendidas comopossuidoras de essncias diferentes? Tal lgica formulada a partir dos

    princpios cientficos que vm historicamente caracterizando os jovensdentro de um modelo dominante, onde eles so visto como seres emformao, em crescimento, em desenvolvimento.

    Nas palavras do prprio Estatuto:

    Considerar o jovem

    enquanto sujeito de

    direitos afirmados

    como universais no

    faria parte de uma

    proposta liberal?

    Uma proposta de

    igualar juventudes

    desiguais, mas que

    so entendidas como

    possuidoras de

    essncias diferentes?

    7 Segundo o ECA as medidas scio-educativas podem ser de diferentes tipos, a saber: ad-

    vertncia, obrigao de reparar o dano, prestao de servios comunidade, liberdadeassistida, regime de semiliberdade e privao de liberdade. As duas ltimas devem sercumpridas em estabelecimento prprio para adolescentes, que se prope a oferecereducao escolar, profissionalizao e atividade pedaggica.

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    Na interpretao desta Lei levar-se-o em conta os fins sociais a que ela se dirige(...) e a condio peculiar da criana e do adolescente como pessoas em desen-volvimento. (Artigo 6o.).

    Entendemos, portanto, que, apesar do avano que o ECAsignifica paraa poltica de proteo de crianas e jovens brasileiros, a lgica de igua-lar juventudes to desiguais em termos socio-econmicos, culturais ehistricos faz parte dos princpios e modelos defendidos pelo liberalismo.Ou seja, uma tentativa de igualar em cima de valores burgueses mo-dos de vida que continuam desiguais e que tendem, no neoliberalismo,a se tornar cada vez mais distantes entre si.

    Algumas concluses de um campo ainda em aberto.

    Talvez alguns outros caminhos possam ser trilhados se nos determosum pouco sobre a importncia e a funo que as prticas sociais tmem nosso mundo, como j foi assinalado por Foucault (1988). Ques-

    tionando o pensamento, ainda hoje dominante no Ocidente que en-tende objetos, saberes e sujeitos como tendo uma essncia, uma na-tureza que lhes seria prpria este filsofo prope uma outra forma deentender o mundo. So as prticas sociais que fazem aparecer os dife-rentes objetos, saberes e sujeitos. Partindo dessa lgica possvelavaliar como nossas prticas cotidianas, por menores e mais invisveisque sejam, constituem-se em poderosos instrumentos de reproduoe/ou criao produzindo os mais surpreendentes efeitos.

    As formaes profissionais em geral no somente a psi nos tmensinado a caminhar sempre guiados por modelos que iro indicando

    o que devemos fazer e como devemos fazer. Entretanto, o para quefazemos nunca mencionado. Ao contrrio, essas formaes nos fa-zem acreditar na neutralidade e objetividade de nossas atuaes. Nopercebemos como nossas prticas tm forjado/fortalecido a todo mo-mento os modelos de bom cidado, bom pai, bom marido, bom filho,bom aluno etc., aceitos como universais e verdadeiros, pois baseadosem formulaes cientficas.

    Por isto, entendemos como importante a noo de anlise de nos-sas implicaes, ferramenta advinda da Anlise Institucional, que vaise opor posio neutro-positivista e nos trazer a figura do intelectual

    implicado. Aquele que, alm de analisar seus pertencimentos e suasreferncias institucionais, coloca tambm em debate o lugar de sa-ber-poder que ocupa na diviso social do trabalho no mundo capitalis-ta. Ou seja, analisa seu territrio no apenas no mbito da intervenoque est realizando, mas nas relaes sociais em geral, no seu cotidi-ano, na sua vida; em suma, o lugar que ocupa na Histria.

    como afirma Lourau (2004):

    A anlise de implicao no um privilgio; constitui, pelo contrrio, uma duracoao, produzida pelo lugar que o intelectual ocupa na diviso do trabalho, da

    qual ele um legitimador mais ou menos consciente. Estar implicado (realizarou aceitar a anlise de minhas implicaes) , ao fim e ao cabo, admitir que eusou objetivado por aquilo que pretendo objetivar: fenmenos, acontecimentos,

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    grupos, idias etc (...) Do mesmo modo que o saber das mulheres, das crianas edos loucos, o saber social dessas categorias anulado, desqualificado e cada vezmais reprimido como culpvel ou inferior. (p.147-148).

    Segundo esse autor, trata-se de encontrar formas de analisar nossas im-plicaes para que, em cada situao, possamos nos situar nas relaesde classe, nas redes de poder, em vez de nos fixarmos, nos cristalizar-mos em posies que chamamos de cientficas.

    Se consideramos os objetos, sujeitos e saberes como produeshistricas, datadas e advindas das prticas sociais; se aceitamos que osespecialismos tcnico-cientficos que fortalecem a diviso social do tra-balho no mundo capitalista tm tido, dentre outras funes, a de pro-duzir verdades vistas como absolutas e universais e a desqualificaode muitos outros saberes que se encontram no mundo; se entendemoscomo importante em nossas prticas cotidianas a anlise de nossas im-plicaes, assinalando o que nos atravessa, nos constitui e nos produz,

    e o que constitumos e produzimos com essas mesmas prticas, po-deremos pensar, inventar e criar outras formas de atuar, de ser profis-sional.

    Especialmente nesses tempos neoliberais onde a globalizao e to-dos os seus corolrios, mais do que uma verso do modo de produocapitalista atual, uma forma eficaz de definir modelos de ser, de es-tar e de existir num mundo dito flexvel e ps-moderno, baseado nasprofundas desigualdades das relaes sociais o trabalho daqueles queatuam na rea da criana e da juventude pobres reveste-se de enormeimportncia. Entender que os discursos/aes do capital, muitas vezes,

    microscpicos, invisveis e apresentados como desinteressados, pois per-cebidos como naturais, tm poderosos efeitos: excluem, estigmatizam etentam destruir a pobreza, notadamente sua juventude.

    Tem-se que estar atento e perceber que, apesar das polticas oficiaise oficiosas, h por parte dos segmentos subalternizados, em especialde seus jovens, resistncias e lutas. Eles teimam em continuar existin-do, apesar de tudo; suas resistncias se fazem cotidianamente, muitasvezes, percebidas como fragmentadas, fora dos padres reconhecidoscomo organizados e at mesmo como condutas anti-sociais, delituosase, por isso, perigosas.

    Por outro lado, muitos jovens atravs de diferentes aes vm afir-mando outras formas de funcionamento e de organizao, que fogemaos pr-estabelecidos. Essa juventude pobre e marginalizada cria e in-venta outros mecanismos de sobrevivncia e de luta, resistindo teimosa-mente s excluses e destruies que vivenciam diariamente em seucotidiano e conseguindo, muitas vezes, escapar ao destino traado pelalgica do capital e entendido como inexorvel e imutvel.

    Santos (1996), afirma que so nos territrios dos pobres, nas zo-nas urbanas opacas que esto:

    [...] os espaos do aproximativo e da criatividade, opostos s zonas luminosas,espaos da exatido. Os espaos inorgnicos que so abertos, e os espaosregulares so fechados, racionalizados e racionalizadores. Por serem diferen-

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    tes, os pobres abrem um debate novo, indito, s vezes silencioso, s vezesruidoso [...]. assim que eles reavaliam a tecnoesfera e a psicoesfera, encontran-do novos usos e finalidades para objetos e tcnicas e tambm novas articulaesprticas e novas normas, na vida social e afetiva [...]. Essa busca de caminhos ,tambm, viso iluminada do futuro e no apenas priso em um presente sub-alternizado pela lgica instrumental ou aprisionado num cotidiano vivido comopreconceito. (p. 261-262).

    Sem pretender racionalmente fazer revolues, mudar o presente e pre-parar o futuro, muitos desses movimentos de resistncia, sem dvida,produzem revolues moleculares, forjam mudanas micropolticas emseus atores e nos cenrios onde atuam, afirmam e apontam para novoscaminhos, criaes, invenes. verdade que foram e continuam sendoignorados pela histria oficial, pelos chamados intelectuais, pelos meiosde comunicao. Apesar desse competente apagamento oficial vmocorrendo vrias e diferentes experincias empreendidas por jovensem seus cotidianos, que configuram prticas de resistncia, expressas

    atravs da msica, de outras artes, de micro-organizaes coletivas, deredes de solidariedade. O importante perceb-las, ver que existem,fortalec-las, nos aliarmos a elas.

    ...aprendi que se depende sempre

    de tanta muita diferente gente

    toda pessoa sempre as marcas

    das lies dirias de outras tantas pessoas.

    E to bonito quando a gente entende

    que a gente tanta gente

    onde quer que a gente v to bonito quando a gente sente

    que nunca est sozinho

    Por mais que pense estar.

    to bonito quando a gente pisa firme

    Nessas linhas que esto

    nas palmas de nossas mos

    to bonito quando a gente vai vida

    nos caminhos onde bate

    bem mais forte o corao

    Gonzaguinha

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