colecao vaga-lume - homero homem - cabra das rocas (69p).pdf

Upload: rodrigo-moret

Post on 01-Mar-2018

302 views

Category:

Documents


7 download

TRANSCRIPT

  • 7/25/2019 Colecao Vaga-Lume - Homero Homem - Cabra das Rocas (69p).pdf

    1/69

  • 7/25/2019 Colecao Vaga-Lume - Homero Homem - Cabra das Rocas (69p).pdf

    2/69

  • 7/25/2019 Colecao Vaga-Lume - Homero Homem - Cabra das Rocas (69p).pdf

    3/69

    Homero Homem

    Cabra das Rocas

    Reviso de SCSFormatao de LeYtor

  • 7/25/2019 Colecao Vaga-Lume - Homero Homem - Cabra das Rocas (69p).pdf

    4/69

    Homero HomemCABRA DAS ROCAS

    Srie Vaga-Lume

    Editora tica 7aedio

    Ilustraes: Edmundo Rodrigues

    Capa: "layout" de Ary Almeida NormanhaSuplemento de Trabalho: Jiro Takahashi

    CIP-Brasil. Catalogao-na-FonteCmara Brasileira do Livro, SPHomem, Homero, 1921-1990

    H724c Cabra das Rocas / Homero Homem ;[ilustraes de Edmundo Rodrigues]. 7. ed. So Paulo : tica, 1980.

    (Vaga-lume)1. Literatura infanto-juvenil I.Rodrigues, Edmundo. I. Ttulo.

    80-0801 CDD028.5

  • 7/25/2019 Colecao Vaga-Lume - Homero Homem - Cabra das Rocas (69p).pdf

    5/69

    DADOS BIOGRFIC

    Homero Homem de Siqueira Cavalcanti nasceu no Engenho Catu de propriedadseu pai no municpio de Canguaretama, Estado do Rio Grande do Norte em

    janeiro de 1921. Descendente de tradicional famlia nordestina. o sexto filho do casal Joaquim Homem de Siqueira Cavalcanti Filho e Elisa Ma

    Delgado de Siqueira Cavalcanti, ambos falecidos. Com os estudos fundamentais emterra natal, fez no Rio o curso pr- jurdico e atuou e ainda atua{1} intensamenimprensa carioca e de quase todo o pas. Entre 1968 e 1976, foi professor da EscoComunicao da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

    Foi casado em primeiras npcias com Teia Carpen e, em segundas, com Kemper de Andrade, j falecidas. Tem trs filhos desses dois casamentos Ana MMaria Elisa e Eduardo. Duas vezes vivo, casou-se, pela terceira vez, com Alzira Ma

    Figueiredo.Jornalista profissional, os primeiros passos foram dados ainda no Rio Grand

    Norte. No Rio, trabalhou como redator poltico e reprter especial do Dirio de Notalm de colaborador do suplemento literrio desse matutino. O Estado de S. PManchete, ltima Hora, Revista do Globo, Leitura foram as etapas posteriores deatividade na imprensa.

    A sua estria em livro deu-se em 1954, com um longo poema em prosa A CidSute de Amor e Secreta Esperana alternando-se depois entre a poesia, o romanensaio e o conto como etapas de uma carreira literria louvada pela crtica e valor

    por expressivos prmios literrios, entre os quais: Prmio Alphonsus de GuimaraenINL- MEC, em 1958; Olavo Bilac,da Academia Brasileira de Letras; Escritor do MaClube Naval; Lusa Cludio de Sousa,do Pen Clube; Prmio Nacional de Poesia Fado Estado do Rio; Prmio DNER, do Ministrio dos Transportes; Thomas Mannensaio, institudo pela UBE-Repblica Federal Alem; e Prmio Nacional de LiteraturINL- MEC, de 1975, pelo conjunto de sua obra potica.

  • 7/25/2019 Colecao Vaga-Lume - Homero Homem - Cabra das Rocas (69p).pdf

    6/69

    A Joo Rocha, menino das Rocas, que me inspirou este livro, onde estiver.A Peregrino Jnior, Esmeraldo Siqueira, Djalma Marinho, Luiz da Cmara Cas

    Murilo Melo Filho, Leonardo Bezerra, Ney Leandro, Umbelina de Siqueira CavalSalvyano Cavalcanti de Paiva, "Cego Lula", Sanderson Negreiros, Renard PVerssimo de Mello, Talvani Guedes, Oswaldo Lamartine, Aldo Lins Marinho, GeSerrano, Manuel Maria de Vasconcelos, Fernando Cabral, Newton Navarro.

  • 7/25/2019 Colecao Vaga-Lume - Homero Homem - Cabra das Rocas (69p).pdf

    7/69

    "Anda, meu filho: vai dizer baixinhoA esse povo do Mar, que teu irmo,Que no fraqueje nunca no caminho,Que espere em p o seu D. Sebastio."

    Antnio Nobre "O Esperado"

    "Quem come cangulo

    cresce o caculo{2}."Ditado nordestino

  • 7/25/2019 Colecao Vaga-Lume - Homero Homem - Cabra das Rocas (69p).pdf

    8/69

    Captu

    A INSCRICheguei s, empurrado pela prpria timidez. Olhei o casaro de janelas estrei

    iguais com um temor que no sei se era filho do respeito ou puro instinto de conservaAcho que era medo, mesmo. Um medo que me mandava enfiar atrs da pri

    pilastra, mal avistasse esta coisa temida: um veterano.Temor injustificado, como vim a perceber depois. A estudantada antiga, que

    perdoava calouro, era ostensivamente indiferente ao bichoque vinha se inscrever paexames de admisso.

    Trote-lo seria uma honra, uma concesso. Passasse primeiro. O "batido" depois ah, se viria!

    Localizei o amanuense encarregado da inscrio, paguei a taxa contando devagnotas de mil-ris, assinei sobre os selos do requerimento com a melhor letra que conarrancar dos dedos recalcitrantes de menino desacostumado escrita.

    E eis-me de novo pelos corredores, agora mais confiante, olhando furtivamenteos sales de aula, desertos quela hora.

    Estava-se no perodo, dos exames de segunda poca. Alguns estudantes tinprova naquela manh. Sentavam-se nas carteiras alheios a tudo, folheando com urgncia a matria atrasada de um ano.

    Era este ento o Ateneu de tanta importncia e tradio na vida cultural de mcidade!

    Por ali haviam passado os grandes vultos locais: polticos com herma na ppblica; ilustres homens de Estado; mdicos, advogados, professores.

    E eis que agora, rompendo com a tradio que to bem se condensava na correntia "filho de rico para a escola; filho de pobre para o trabalho" eu, filho e

    de marinheiros, me atirava grande aventura, proibida at ento minha gente, de cum colgio oficial de grau secundrio, comprar livros, freqentar aulas, ilustrar-me concorrer ombro a ombro com os rapazes de famlia, no pega-pra- capar da luta pela

    Era este ento o Ateneu que via de longe, com olhos compridos de ambicquando passava de bonde, madrugadinha cedo, para a feira do Alecrim.

    Ali, da sacada que d para o porto, discursara em tempos idos Capito ZPenha, que depois se fizera matar no Cear pelo seu ideal de moo.

    Daqueles bancos escolares sara o que de melhor j dera o Estado em matrsabedoria e inteligncia. Gente que andava agora pelo Sul brilhando na imprensa

    letras, no teatro, na poltica.Olhei a placa de bronze embutida na parede com a misteriosa inscrio esverdpelo tempo e que comeava assim:

    BASILIUS QUARESMA TORREO,

    PROVINCIAE PRAESUL.

    E me senti definitivamente conquistado pela beleza, o prestgio solene e audaquelas paredes recobertas de vozes de dezenas de geraes. Vozes que eu ogeraes que eu ouvia.

    Era este ento o velho Ateneu. O entusiasmo me conquistava. Via- me ali me

  • 7/25/2019 Colecao Vaga-Lume - Homero Homem - Cabra das Rocas (69p).pdf

    9/69

    estudante, envergando a farda cqui com frisos azuis, sentado a uma daquelas carde madeira lustrosa, bebendo conhecimentos para a vida.

    E l me fui assim a viagem toda, no bonde rechinante e lerdo que me levou de para casa.

    Era estudante. Estudante do Ateneu Norte-Rio-Grandense. fcil misturar scom realidade quando se tem onze anos.

  • 7/25/2019 Colecao Vaga-Lume - Homero Homem - Cabra das Rocas (69p).pdf

    10/69

    Captu

    ROCAS DA FREN

    Saltei do bonde no cais do porto, ganhei o caminho de casa: Rocas da Frente. Qmorou l, sabe muito bem como era aquele paul.

    Miasmas de mangue putrefato, cheiro de restos de comida e detritos casespalhavam-se no ar, destilando um odor insuportvel e agressivo, de podfermentada a golpes de sol.

    Cedo me acostumei quela catinga. A ponto de no compreender por que gforasteira levava instintivamente o leno ao nariz quando passava pelas Rocas da Fren

    Aquele era o sinal que identificava o estrangeiro. A molecada de meu tope, vad

    nas poas de gua ou jogando tile nos degraus da igreja, refratria a estranhinstintivamente apegada ao paul, sentia o gesto como insulto.

  • 7/25/2019 Colecao Vaga-Lume - Homero Homem - Cabra das Rocas (69p).pdf

    11/69

    Choviam pedradas no luxento. Um vento de palavras perdidas varria o canal. V tapar o nariz na casa da me, xarias!Em nossa cartilha de palavres, xarias era o supremo xingamento. Designa

    morador da Cidade Alta, urbano e prspero, comedor de xaru, peixe proibido humilde do povo das Rocas, que o arrancava do mar a ponta de anzol e ia vend-mercado da Cidade Alta.

    Para ns do paul ficava o peixe do quebra-mar, mido, recamado de espincomedor de mangue e dos detritos orgnicos que boiavam livremente no trapiche do rabundava o cangulo, prato de resistncia das Rocas da Frente.

    O cangulo era o man bblico daquele povo que no conhecia milagre salvo pesca. Dava-nos a carne branca para assar no braseiro, o couro duro feito lixa misturar no piro de farinha. As espinhas serviam para furar bichos-de-p, outra pragaRocas. At a carcaa do cangulo era aproveitada pelas crianas do bairro. Funcionacomo bois e vacas em nossas brincadeiras de moleques de beira de praia que nvramos urna rs.

    Na boca dos xarias ramos assim canguleiros, comedores de cangulo. O rcompletava a terminologia, definia os campos como urna cerca alta e intransponvel os dois grupos.

    Antes do meu nascimento, contavam, havia rixas tremendas nas Rocas. O cacepeixeira, a quic afiada entravam nessas disputas que resultavam sempre em cabpartidas e barrigas vazadas. Sangue, miolo e fezes servindo de repasto s mutenormes, principais beneficirias daquelas escaramuas.

    Rolando no ar os espadages rabos-de-galo, os cavalarianos da Polcia Mpromoviam batidas noturnas s Rocas da Frente. O sabre comia nas costasmoradores.

    Aquilo era vingana de xarias tomada socapa, em plena madrugada, por esquadres de sustentadores da lei.

    Os pescadores juntavam-se aos operrios da fbrica de tecidos que moravamRocas de Dentro, o grupo engrossava com a adeso dos catraieiros das docas, a rese organizava.

    Lutava-se nas esquinas, nos becos escuros, nas poas de gua fedorenta.Grupos de cavaleiros passavam em tropel de apocalipse, rasgando as v

    humildes da noite das Rocas com a ponta das espadas coruscantes. Iam de encontrocasebres, derrubavam-nos ao peso das bestas enormes. Gritos de mulheres c criaarrancadas das camarinhas pela carga furiosa, misturavam-se aos relinchos dos aniloucos da dor das esporas que os soldados cravavam fundo em suas ancas para v

    pinotear sobre os casebres em dio cego de vingana e destruio.Esse tempo passara. Dele restava apenas a marca fsica de alguns destroosrestos de casebre derreado; um pedao de ferradura encravado numa soleira de puma ou outra fisionomia encanecida, de traos violentamente distorcidos pelo srecurvo de um cavalariano em disparada.

    Ficara porm a crnica dessa era de pavor e sangue. Saga heri- centremeada de casos de bravura que no mais aceso da refrega resvalavam papitoresco.

    Ora era um meganha que, escorregando infeliz, mergulhava de cara na lama f

    do paul.Ou ento a faanha de um tipo popular nas Rocas o Ajapau desarman

  • 7/25/2019 Colecao Vaga-Lume - Homero Homem - Cabra das Rocas (69p).pdf

    12/69

    brao punitivo com a fora alegrica de um gesto, um dito bem encaixado na hora mem que o espadago ia desabar sobre sua cabea.

    Nas noites limpas da praga dos maruins dedetizados pelo claro da lua, os crondesses tempos brbaros arrastavam tamboretes para fora, agrupavam-se em semicnas caladas, e aos poucos a saga de sangue, bom-humor e herosmo ia tomando de todos os ouvidos.

    No cu, como um peixe de prata, a lua branca e enorme se descarnava num mclaridade. Um ou outro maruim dedilhava no ar seu filete de msica tediosa. Quietocoqueiros desenhavam o cho com o rendado das folhas. Violes bomios gemiamlonge, a msica chegando em golfadas de sons trucidados pela distncia.

    Uma voz se destacava do grupo, evocando o perdido herosmo daqueles tempos Foi no tempo de Totonho Perna-Seca contava. Tempo brabo, aquele!Calava-se um momento, recompondo o fio das reminiscncias, a histria comea

    tomar corpo. Totonho pegou um xarias l pras bandas da Ribeira, deu com ele no cho. C

    decidido, Totonho.Cigarros latejavam na sombra, acendendo, apagando. Silenciosas, as Roca

    Frente pareciam uma grande orelha escutando. De noitinha os meganhas cercaram a casa de Totonho. Ele estava acaban

    janta, saiu l de dentro mansinho, no queria meter a famlia na encrenca, no. "Epreso, cabra!" gritou o comandante da escolta, mal avistou Totonho. Mas Totonho espra tudo, respondeu: "Teje preso umas cordas vias, seu cabo." O cabo era "Praquele escurinho que dava guarda na Recebedoria, vocs devem se lembrar.

    Tenho uma sede naquele sujeito! aparteava algum, subitamente odiando CPrego.

    Dois, compadre! aderia o narrador retomando a ponta da histria. Comia dizendo, Cabo Prego a no teve dvidas. Estava montado, disparou com cavalo e

    pra cima de Totonho. Baixou o rabo-de-galo em cima do pobre, que pulava dum ladooutro, enquanto comia espadago no lombo. Estava desarmado, Totonho. No tinha uma quic. Cabo Prego era um desalmado. Descia a brocha em Totonho que s vendo

    Ah eu l, miservel! Pra onde vai, valente!Risos. E vinha o desfecho. De repente Totonho se espalha. O pau comendo nas suas costas, pega na

    do baio, arrasta Cabo Prego da sela, rolam os dois pelo cho. Totonho escanchadcachao do bruto que nem menino rodando em galamastro. E Cabo Prego perdend

    foras. Ficou cinzento, depois destroncou o pescoo pra trs feito frango na facTotonho largou aquela coisa murcha, aproveitou a confusa, caiu no mundo. Nunca veio aqui. Sua famlia viajou depois pra Rio Tinto. Ia visitar uns parentes, disseram.ns sabamos que Totonho tambm andava por l. Bicho bom. Apanhou mas fez feito.

    E o meganha? Quase morre; ficou doente um tempo, acabou se reformando. Anda po

    perdido.Calava-se o narrador, riscava um fsforo, tirava uma baforada longa do toc

    cigarro que se apagara no calor do relato. A roda ficava um minuto silenciosa pensem Totonho, numa tcita homenagem sua bravura. Depois vinha outra histria.

  • 7/25/2019 Colecao Vaga-Lume - Homero Homem - Cabra das Rocas (69p).pdf

    13/69

    Escutava de olhos arregalados, perdidos, bebendo as palavras. O grupo nem conta de mim. Conversava-se de lngua solta, sem qualquer respeito pelos meus anos. s vezes algum me descobria, aconselhava, s por falar:

    Vai te mexer com os da tua idade, piolho de gente. Encabulava, simulmanobra de ir embora, depois ia me chegando. Acabavam me admitindo, deixandescutar livremente. S no podia falar.

    Em conversa de homem, xarias, mulher e menino ficam de fora, diziaQuinquim barbeiro.

    E era assim mesmo.

  • 7/25/2019 Colecao Vaga-Lume - Homero Homem - Cabra das Rocas (69p).pdf

    14/69

    Captul

    UM HOMEM DO M

    A casa de meu pai era na Rua So Jorge, a "principal do bairro", como afirmavamoradores com uma ponta de orgulho que se traduzia na honraria de ter ali pertopequena elevao onde principiava o morro, a igreja do padroeiro das Rocas.

    Eu, que conhecia as ruas largas e bem caladas da Cidade Alta, no enconrazo muito forte para esse entusiasmo. Se ainda no mudou, a Rua So Jorge

    mesma nesga de terra solta quebrando em cotovelo, varrida o dia inteiro pela poeilama pulverizada, se fazia sol; ou coalhada de poas de gua onde coaxavam sapquando a chuva, montona e cinzenta, tamborilava seu marulho contraponteado sobteto dos casebres.

    Mas queria bem minha rua. Ficava janela olhando as pesadas barcaas atona lama do trapiche, o rio Potengi arrepiado de chuva, uma tristeza fina pairando somangue. Aquilo me entristecia; sentia uma nsia, uma saudade de paisagem saudbatida de sol. Tinha medo da chuva: a gua caindo me dava a impresso de coisa pee intil se esvaindo.

    Estava assim naquela noite quando chegou meu pai. Vinha molhado dos pcabea e parou um momento para sacudir o capote, enorme oleado de marujoescorria gua na soleira.

    Bateu pesadamente as botinas no degrau da entrada, limpou o barro que aderisolado, entrou silencioso.

    Era de poucas palavras, hbito contrado na solido das grandes viagens, beirancosta, de um extremo a outro do Estado.

    Alto e robusto, ostentava uma fora macia e lenta de marinheiro. Tinha enormes, duras, servidas de dedos curtos onde apontavam calos. De to grosso

    pareciam inchados os dedos de meu pai.Recordo bem o seu fsico spero e agigantado, mas por mais que me esforceconsigo reter as suas feies. Lembro-me bem dos seus olhos. Eram pardos, detonalidade que nunca vi reproduzida em ningum mais. Fitavam parados e teimesconder aquela velada luminosidade de coisa subterrnea, que irradiavam. Pareciamcontra a luz, os olhos de meu pai.

    O mais, nele, tenho fielmente fixado: certos gestos, a voz rude, o jeito agrecom que fazia as perguntas, um sbito rompante de voz que ia se atenuandotransformar-se em murmrio, que era o seu tom habitual de conversa.

    Meu pai se desembaraou da japona, sentou mesa. Dona Lauta, minha madrtrouxe quase em seguida o jantar: sopa de feijo, peixe cozido, piro de farinha e caf

    Meu pai comia calado, os grandes msculos faciais contraindo-se, relaxando-sacompanhava com ateno estudada os pequenos besouros que rodopiavam em torncandeeiro, fugidos da chuva que caa l fora. Estava espreita de uma oportunidadecontar-lhe o meu dia. Afinal, tomei coragem, fui direito ao assunto:

    Estive hoje l em cima. Estou matriculado, meu pai. Ele levantou a vista, olhocomo procurando se lembrar do que falava eu; derramou um pouco de caf no psoprou, para esfriar, bebericou e disse:

    Est direito.

    Aquela secura me doeu. Estava acostumado com ela, meu pai era assim me

  • 7/25/2019 Colecao Vaga-Lume - Homero Homem - Cabra das Rocas (69p).pdf

    15/69

    Mas a situao era to especial que me dera coragem para engendrar aquela convDisfarcei a decepo com nova investida. A vontade de falar era grande:

    Sabe, meu pai, os exames comeam depois do Carnaval. Hum... fez ele.Intil! Me refugiei num silncio amuado, duro silncio de menino acostuma

    solido.Meu pai acabara de tomar o caf, acendia sem pressa o cachimbo, uma pe

    pea de madeira ornada com anis de lato.Soprou a primeira baforada, e, envolvido pela fumaa, falou devagar, pondo-m

    olhos em cima: Voc espera passar no exame, Joo?Tive um choque. A pergunta de meu pai era uma resposta, um eco minha ns

    comunicao e extravasamento. Raro meu pai falar assim, encarando-me como iguaum homem entrincheirado em seu silncio, um silncio pesado como o resto depessoa, difcil de romper. Cedo me acostumara a ele. Em casa, eu e Dona Laura, ningse espantava.

    Aquela frincha aberta agora no seu mutismo rasgava pela primeira vez perspectiva nova em minha infncia, que era como a sombra mida da solido grisalhmeu pai.

    Naquele minuto compreendia anos inteiros de sua vida. Sentia-me intranqilo; emoo nova tomava conta de mim. Ficamos assim um pedao. Foi meu pai qquebrou o silncio.

    Joo, estive pensando. Sou homem rude, um homem do mar. Tenho ouvido planos, Dona Laura j me falou. A princpio no concordei muito, voc sabe, filhmarinheiro pertence ao mar. Pensava que um dia voc iria comigo, pegava amizadbarco, seramos dois a fazer vida de marujo. Assim aconteceu com o finado, que guarde; assim aconteceu comigo. Pensei que assim ia ser com voc.

    Deu uma baforada comprida, soprou a cinza que aflorava s bordas do cachimbo Voc saiu sua me, foi feito para ficar em terra. Est-me pedindo conselho

    em seus olhos; mas no sei o que diga, no. Nunca estudei, criei-me sem necessidadlivro, marinheiro precisa de sade e f em Deus, que a sabena tirada dos livros de ajuda quando se est embarcado. Voc escolheu sua vida, est certo, no atrapvocao de filho. J para dar conselho no sirvo, fico sem saber o que diga. Pense voc filho de marujo, neto de marujo, marujo tambm. Est na massa do sanguerapazes da cidade, estes sim, nasceram para estudar mesmo, para ser doutor, subvida. Levam vida de estudante, os pais do tudo. Com voc diferente, precisa traba

    o meu pouco pro gasto, inda mais com despesas de livro, um horror de dinheiro. Evoc sabe.Calou-se, foi janela, ficou olhando as luzes da cidade refletindo-se nas gua

    mangue em estrias de fogo inquieto.Tomado de desnimo fitava a sombra enorme de meu pai. Tocado pela claridad

    fora, ele me parecia de sbito muito s, pequeno e desamparado. Tinha mpetos de glhe: "No importa, trabalharei, lutarei por ns todos, meu pai". Mas o silncio nos pem cheio, ficamos assim um pedao. Depois meu pai deixou a janela, teve um suspidescrena, comeou a desenrolar a rede que pendia do armador, na sala de ja

    Bocejei para disfarar o tumulto que tomava conta de mim. E as palavras comearme sair com deciso.

  • 7/25/2019 Colecao Vaga-Lume - Homero Homem - Cabra das Rocas (69p).pdf

    16/69

    Amanh comeo com as aulas para o exame. Quem que vai lhe ensinar? falou meu pai impulsionando a rede pa

    balano. Seu Geraldo da Farmcia; cobra s quinze mil-ris por ms.Novo silncio. A rede rangia montona rin... rin... rin... Joo! Senhor, meu pai? V dormir para acordar cedo, menino. Se tem mesmo que ser doutor, prec

    se preparando.Tive mpeto de correr para meu pai, abra-lo, tanger o punho da sua rede a

    inteira. Mas ele ressonava j, o peito enorme subindo e descendo com regularidade.Era um sono pesado e total. Sono de marinheiro que chega do mar.

  • 7/25/2019 Colecao Vaga-Lume - Homero Homem - Cabra das Rocas (69p).pdf

    17/69

  • 7/25/2019 Colecao Vaga-Lume - Homero Homem - Cabra das Rocas (69p).pdf

    18/69

    Captul

    AS CINCO PARTES DO MUNEra de tardezinha quando bati porta da pequena farmcia pegada igreja

    Geraldo estava l dentro jantando, adivinhei pelo barulho dos pratos.Sobre o balco as moscas esvoaavam livremente. Cartazes amarelos do Biot

    e da Sade da Mulher ornavam as paredes. Acima da prateleira, numa espcie de npendia o retrato de um velho de barbas longas. Pasteur dizia a legenda, minha

    conhecida das visitas farmcia do Seu Geraldo a fim de comprar meizinha para mmadrasta. A voz de Seu Geraldo veio l de dentro. V entrando, menino. Vacomear a lio agorinha mesmo.

    Levantei a bandeira do balco, ganhei o corredor. Seu Geraldo tomava caf nade jantar, numa enorme xcara de gata que lhe escondia metade da cara. Restocomida espalhavam-se pela mesa de tbua nua, toda manchada dos lquidos e poque Seu Geraldo preparava ali mesmo. A casa tinha apenas dois cmodos: o da frocupado pela farmcia, e este onde Seu Geraldo fazia as refeies, dormia, cozinhaaviava as receitas.

    Vivia s. Era uma figura popular, querida e indispensvel nas Rocas.Receitava, preparava os medicamentos, escrevia gratuitamente a corresponddo bairro cartas de namoro, participao de falecimento a parentes distacobranas de dvidas, bilhetes de descompostura todos os fatos da coletividadepedissem linguagem e soluo epistolar.

    Espcie de consultor, de orculo prestativo e descomercial, Seu Geraldo gastatempo escrevendo, receitando, dando conselhos, cedendo fiado frascos de remsabedoria, tudo sem maior predisposio moral para "fazer o bem", sem visar recompmaterial.

    Pagava a Seu Geraldo quem tinha dinheiro. E como, embora querendo, pouca gpodia pagar, Seu Geraldo via raramente um dinheirinho de morador das Rocas.De vez em quando uma comadre batia-lhe porta trazendo uma galinha gord

    uma enfieira de xareletes surripiados fome da famlia. Era a paga por uma receita vatrasada de meses, ou pelo ungento esfregado na perna de algum velho pescentrevado em cima da camarinha, os ossos rodos pelo reumatismo apanhado no

    Aquilo era a ddiva humilde do povo das Rocas ao seu Cireneu.Achvamos tudo muito natural. Seu Geraldo era de ns o melhor aquinhoado. T

    instruo, adquirira conhecimentos teis pela vida afora. Nas Rocas, ningum copodia compreender por que Seu Geraldo, podendo residir na Cidade Alta, ocupar empem escritrio ou repartio, teimava em partilhar da nossa pobreza.

    Eram segredos seus, coisas de que nunca falava a ningum. Estava no bairrotempo, era como se tivesse nascido e se criado ali. Fazia parte da nossa paisacomo a igrejinha que nos dava a missa, a lama que nos trazia a doena, a luaalumiava nossas noites empestiadas de mosquitos.

    Baixinho, a cabea grande e redonda presidindo o resto do corpo, mirrado de cacomo caju chupado, Seu Geraldo tinha o nariz ostensivo e sensvel como uma antenafora vinha dos olhos, vivos e inquiridores como os de um cachorro fiel, das palmansas que estavam sempre saindo de sua boca: "Sei... compreendo... assim mes

    "

  • 7/25/2019 Colecao Vaga-Lume - Homero Homem - Cabra das Rocas (69p).pdf

    19/69

    Tinha suas manias, freqente motivo de riso nas Rocas. Escrevia em enocadernos de papel almao uma infinidade de coisas que ia arquivando no ba de cmeio escondido embaixo da cama.

    Ningum sabia o que Seu Geraldo lanava no papel. Diziam uns que eram veoutros, receitas copiadas dos almanaques de medicina. Ficava-se na controvrsiaGeraldo, inquirido a respeito, calava o segredo, desconversando.

    Gostava de pescarias. Aos domingos era fatal v-lo passar logo cedo, a vara bem alto, Uma velha lata de manteiga, cheia de iscas, pendurada no dedo, o chapelpalha de carnaba enterrado na cabea at as orelhas.

    Sua fatiota de pescador era motivo de riso nas Rocas. Compunha-se de vbotinas de elstico, anavalhadas pelas ostras do quebra-mar, calas de boca esdeixando aparecer uma nesga de canela alva, camisa de listas e colete.

    Saa de manhzinha, o passo mido e enrgico levantando a poeira quente, doupelo sol das sete. Descendo o morro, ia cumprimentando esquerda e direitmolecada dava o grito de alerta: L vem Seu Geraldo! As mes espiavam das jandisfarando o sorriso por trs das rtulas pintadas de verde, logo se recompunameaavam srias:

    Tome jeito de gente, moleque; v tomar bno a seu padrinho!Seu Geraldo parava um momento, interessava-se pela famlia, negava sempre a

    a beijar. No era padre, dizia. Como vai a curruminha, comadre? Mi, Seu Geraldo. Apareceram umas perebas nela, eu estava int pra leva

    prumode o senhor ver. Ento vamos logo a isso, comadre, que as sabers andam doidas por anzol.Entrava, via a doente, prometia o remdio. Na volta, comadre; coisinha que pode esperar.Se era doena grave, fazia todo o trajeto de volta, preparava a poo, d

    afogando botinas na areia frouxa. Recomendava: D uma colherada das grandes, logo depois do banho. E guarde um tic

    bostinha dela que eu quero ver.Seu Geraldo ganhava o caminho que conduzia praia, o chapelo empurrando-l

    orelhas para baixo num jeito engraado, a vara gingando flbil, como se estivesse sbeliscada pelo primeiro peixe.

    Aguardava impaciente aquela primeira lio. Mas Seu Geraldo tinha seus vagAcabara de tirar o caf da trempe e adoava-o com rapadura, enquanto rolava um pde fumo negro entre os dedos, preparando o cigarro forte e odoroso. Por fim levanto

    retirou do fogo uma brasa com a concha da colher, encostou-a ao cigarro, chupou fubaforou as palavras: Ento, menino, vamos comear?

    Abri livros e cadernos. Seu Geraldo entrou a me fazer perguntas. Quantas so as partes do mundo? Cinco, respondi prontamente. E despejei sapincia: Europa, sia,

    Amrica e Oceania. Geografia era meu forte. Quais so os principais rios do Brasil? O Amazonas, no Estado do mesmo nome; o Tocantins, no Par, o So Franc

    na Bahia...E fui por a.

  • 7/25/2019 Colecao Vaga-Lume - Homero Homem - Cabra das Rocas (69p).pdf

    20/69

    Sabe fraes decimais?Aritmtica era meu ponto vulnervel. Encafifei: S um tiquinho, Seu Geraldo. Como? espantou-se. Quer prestar exames no Ateneu e me vem com

    tiquinho" para Aritmtica? Vamos ver isso, menino!Sa da primeira aula tonto, nmeros tripudiando solta dentro da cabe

    desanimado. A possibilidade de passar nos exames me parecia longe como a bocBarra.

    O programa era enorme e eu no tinha base nenhuma, salvo dois anos de gescolar. Aquilo era pouco, pouqussimo. E Seu Geraldo mais me desanimou, comsilncio carrancudo e misterioso. No disse nada, uma palavra que tranqilizasse mpobre cabea mal afeita a tamanho esforo de recuperao. Salvo a exclamao comencerrou a aula:

    Estude. Vamos tirar o atraso, Seu Joo!E foi esta a nica frase de consolo que arranquei dele, durante um ms de

    inteirinho.

  • 7/25/2019 Colecao Vaga-Lume - Homero Homem - Cabra das Rocas (69p).pdf

    21/69

    Captu

    A BOCA DE DO

    As manhs daquele fim de vero eram quentes e feias. Difuso e implacvel, adoecia tudo quanto tocava com a sua mo amarela. Nos quintais, mamoeiros e cajazpendiam murchos, as folhas crestadas pelo terral que tombava em rodamoinho sobtetos dos casebres e ia depois se refrescar, carregado de poeira, nas guas do mar.

    Galinhas cacarejavam na lama quente e ftida dos terreiros, asas cadas feito le

    derrotados pelo calor, bicos mergulhados nas gamelas de gua do quintal. Sbananeiras punham uma nota verde e repousante no mormao insuportvel. sua sopatos e marrecos, olhos pisados de sol, aninhavam-se no cho refrescado, os lopescoos instintivamente encolhidos para se furtarem evaporao dos restoumidade da nesga de terra que os abrigava.

    O cacimbo que servia redondeza secara. As veredas que conduziam s RocaDentro coalhavam-se de saias de mulheres que iam encher potes e latas com a salobra dos barreiros cavados na praia. Atulhavam o caminho com gritos e exclamalatas faiscando, gargantas tinindo sons no cu envernizado pelo calor.

    Na Gamboa da Barra o mangue dormia uma sesta misteriosa, s de raro acorpelo grito das gaivotas que flechavam em pleno vo os pequenos peixes do canal.No fundo do quintal, escondidos nas touceiras de capim-navalha, os pres ge

    doridamente, as narinas sensveis fungando o ar escaldante, como se dele se quiseamamentar gulosamente.

    Sofriam os efeitos da soalheira mais do que qualquer outro bicho do quintal. Sav-los.

    Era uma criao bonita e ndia qual eu dedicava zelos inexcedveis. Muitas vetarde da noite, ouvindo seus grunhidos de aflio, deixava a rede e, p ante p, ton

    sono e de raiva, vinha acudi- los dos gatos da vizinhana, que rondavam o chiqueirvaras com uma pacincia macia de feras famintas, os olhos fosforescendo amorosos as varas, um desejo mau latejando nas pupilas amarelas.

    Enxotava-os com pedradas e nomes feios, guiando-me pelo brilho esquisitoirradiavam na escurido. E s abandonava o quintal quando, revisada cuidadosamefaxina, ouvia os pres grunhirem baixinho sua loa queixosa, que soava aos meus oucomo ternura de bicho agradecido.

    Faltava gua no cocho, verifiquei. E, como no havia tambm em casa, peguei agrande e me encaminhei para as dunas. Ia ench-la na cacimba da praia.

    Munido de potes e rodilhas, o mulherio das Rocas reunira-se espreitando o filegua que vazava pingo a pingo das rochas faiscantes e speras da ribanceira.

    Moleques de cabelos afogueados brincavam na areia, pernas e braos cinzentopoeira. Ganhavam o morro e iam catar as frutas de cardo que gritavam vermelhas ddo mata-pasto.

    Aguardava a minha vez de encher a lata. Ia demorar, tomei tento ganhancaminho que ia dar sombra farta e cochichosa dos coqueiros.

    Detive-me numa campina de sombra mais cerrada e improvisava uma enxergmelo-de-so-caetano quando uma voz soou to perto que levei um susto. Levantolhos e dei cara a cara com Dora.

    Viera com as outras, maliciei vendo a lata que conduzia; e perdera- se po

  • 7/25/2019 Colecao Vaga-Lume - Homero Homem - Cabra das Rocas (69p).pdf

    22/69

    fugindo do sol impiedoso que massacrava o povaru acocorado na praia, espreitanfilete da gua da cacimba.

    Era uma meninota de treze para catorze anos, traos quase finos para um rosmulher das Rocas. Usava um vestido relaxado sobre as formas, que ainda assim se faharmoniosas, agradveis de olhar.

    Esbelta para a idade, formava j ao lado das grandes, embora o corpo magrolhe emprestava um ar de menina, destoasse no meio das outras. Eu a via de longlonge. Dora estava sempre entregue s ocupaes que lhe enchiam o dia.

    Morava nas Rocas de Dentro com a famlia me e irmos; o pai era mtrucidado numa noite de bebedeira pelas rodas do automotriz da Central.

    Recebi-a com uma raiva estudada, que escondia principalmente o susto que elcausara:

    Quem dera que me assustasse, Magricela!Tratvamos assim a Dora, de "Magricela". Ela no se incomodava. Mas, sentin

    minha hostilidade, retrucou: Pensa que algum Z Gordo? Magricela voc, seu cara de tacho! Cara de tacho uns coletes velhos, sua gata lambida!E fomos por a, s turras, numa agressividade feita de baixo calo e pes

    insultos, como se fazia nas Rocas, por qualquer coisa.Dora mergulhara a lata de borco, que ficou bem plantada no cho, fazend

    assento. Escanchou-se nela e tamborilando com a ponta dos dedos ia desfiando cantiga que corria na boca de todos:

    Pinio, pinio, pinio

    Pinto correu com medo do gavio.

    Cantava e batia na lata, a quietude era boa, o mato quebrado cheirava fresco. S

    como formigas andando pelo corpo, amolecia de estranho preguiamento. A voz de soava manso e perto e o seu corpo tinha um cheiro bom e novo, no qual s aatentava. Cheiro de carne lavada com sabo grosso e gua de cacimba, pensei conespantado daquele queixume de gua que vinha na voz de Dora, lavando o silncio qcantiga no lograva destruir.

    Batidas de sol, as folhas de mata-pasto se contorciam no cho feito cobras expao mormao. E a voz de Dora seguia triturando cantigas blandiciosas que falavam doe de praieiros que no voltaram, deixando noiva a esperar.

    Era o meu lindo jangadeirode olhos da cor verde do mar...

    O cabelo de Dora tinha se desprendido devagar no ritmo da cantiga, era como f

    de msica tangidos pelo vento. Me erguera fascinado, estava pertinho dela, sentia cabelos roando na minha boca. Queria acarici-los, mas tinha medo que Dora parasscantar.

    Ele passava o dia inteiro

    longe, nas guas a pescar...

  • 7/25/2019 Colecao Vaga-Lume - Homero Homem - Cabra das Rocas (69p).pdf

    23/69

    Dora cantava ainda mais baixinho, marcando surdo o compasso no fundo da latasoava como um tambor tan, tan, tan.Eu tinha decerto qualquer coisa de esquisitoolhos quando ela me olhou, pois encolheu-se de susto, ficou muda e sria de repente.

    Aproximei-me, sentei na raiz acavalada de um coqueiro, procurando as palaEstava sem jeito, tinha um n de emoo nos restos da voz sumida.

    Voc canta melhor do que as moas do coro da igreja, Dora...Minhas mos tocavam-lhe os cabelos, afagavam-lhe o rosto. Fiz meno de ab

    la.

    Voc deixa, Dora?Ela deu um muxoxo, depois riu contrafeita mostrando os dentes de placas igbrancos de nele esfregar fumo de rolo, o dentifrcio feminino das Rocas. Depois falouironia.

    Ainda no estudante e j se bota a bolinar a gente, hem, Joo?Corei de raiva e de vergonha. Suas palavras eram uma aluso aos rapaze

    Cidade Alta, que se aproveitavam das moas das Rocas como passatempo.Levantei-me amuado, ela imitou-me, arrancando com fora a lata que afunda

    areia.E seguimos calados pela vereda castigada de sol.J ouvamos pertinho as vozes do mulherio conversando soltas em torno da caci

    quando Dora parou de supeto e olhou-me fundo. Eu estacara tambm, ficamos assimpedao, latas faiscando no cho, algo nos impelindo um para o outro, mos se chegan

    No partiu de nenhum de ns, foi como se obedecssemos a uma ordem de Mas aquilo vinha de dentro de ns mesmos, embora estivesse tambm no silncimormao, na languescncia da cantiga que h pouco brotara na boca de Dora, arisenleada como passarinho preso ao visgo, enquanto eu a beijava, uma, duas, muitas ve

    Algo acordava dentro de mim e era bom e novo, vinha sentindo de volta, enquabalano da lata me atirava pingos de gua nos ombros e no rosto. A gua me esc

    pela cara, vinha acabar na boca, macia e morna, furtiva como os beijos que eu derDora.

    Fechava os olhos e via Dora, seus lbios cocegando nos meus como uma comida de vez. Sentia aquele gosto novo e queria ret-lo na saliva que deglutia com fo

    "A boca de Dora como fruto de cardo", pensei porta de casa, desequilibrdevagar a lata de sobre o ombro, para aliviar-me do peso. "De cardo, no", cmentalmente, despejando a gua nos cochos. "Cardo tem espinhos; a boca de Dora do stio de Seu Tico, que no serve para doce, de to aucarado".

    Nos cochos agora cheios os pres se atropelavam, focinhos mergulhados na

    fresca. "Pinio, pinio, pinio..." latejava em meus ouvidos a cantiga de Dora.

  • 7/25/2019 Colecao Vaga-Lume - Homero Homem - Cabra das Rocas (69p).pdf

    24/69

    Captul

    RABICEra como se tivesse adoecido de repente, a febre tomasse conta do corpo, com

    viesse o delrio. Entrincheirava-me por trs do silncio mutilado pelas rugas que coroa testa adolescente. Um ruminar de bicho acuado que dava na vista.

    Esse menino t com quebranto; no pode ser outra coisa dizia Dona LaurS levando ele S Grande, trs sextas-feiras seguidas, para rezar o tero.

    Eu ouvia calado, embrulhado em meu aniquilamento.Os olhos rolavam soltos por dentro, de casa, ganhavam a janela, voavam para

    como passarinhos gulosos de luz e de espao. Cu azul bulindo-me com as entranhdaqueles dias.

    Arrastava uma esteira para o quintal, deitava-me sombra da gravioleira, folhando as nuvens altas que corriam sobre minha cabea, brancas e intocveis ccarneiros de prespio.

    Seu Geraldo tambm se inquietava. No mais aceso de uma explanao sobrbita da Terra, parava, encarava-me de supeto:

    Est compreendendo, Joo?Respondia que sim, vagamente enleado pelo temor de que ele me mandasse reas palavras. No entendera patavina. Seu Geraldo acabava capitulando diante da mperplexidade, ordenava:

    Pode ir para casa, Joo. Por hoje chega. Amanh voltaremos lio.Despedia-me, disparava morro abaixo, sacolejando livros e cadernos, caminh

    mar.Na praia as ondas esmurravam os recifes numa fria branca e impune de x

    caindo sobre canguleiros desprevenidos. O vento frio, imantado de pingos de

    salvava-me nas tmporas, jararaca correndo no mato-pasto psiu... psiu... psiu...O corpo mole, pedindo encosto, a cabea burra e escura, pensamentos chispnela como coriscos em noite de trovoada. "O que voc tem xod... Est arriado, carriado por Dora" parecia ouvir, vinda do mar, essa primeira confisso de amor.

    Era isso; estava arriado pela doena do amor, praga que devastava o povoRocas tanto como a dos maruins. Nada entendia de amor, era evidente. Nem disscogitava nas Rocas.

    "Amor" era palavra que ali circulava apenas na boca de uns poetas da cidadefaziam serenata em noites de lua e de madrugada iam embora, os violes ganindo pela estrada.

    Tambm havia a literatura em folhetins jogados pelas janelas e depois recolpelos agentes que percorriam as Rocas propondo assinaturas que nunca eram tomad

    O pessoal lia, ou melhor, ouvia a leitura daquelas histrias tristes e intrminasfalavam de moas suspirosas e de maridos trados, de avarentos que enterravam dinhde ladres de jias, de pistoleiros elegantes, de mes perversas que se desvencilhdos filhos para correr atrs dos amantes. Mas essa era uma lngua morta para o povRocas. No entusiasmava ningum. Antes cuspamos com desprezo:

    Sujos!Muito melhor eram os panfletinhos de tosto comprados na feira, contando em

    capengas a odissia de Joo e Maria, o fausto da Princesa Magalona, as proeza

  • 7/25/2019 Colecao Vaga-Lume - Homero Homem - Cabra das Rocas (69p).pdf

    25/69

    Lampio. Aquilo, sim, acendia o entusiasmo.J os dramas base do sexo e da fortuna, devorados pelo povo da Cidade Alta

    deixavam enojados ou indiferentes. De amor entendamos apenas aquilo que praticvasem cogitar que nome tivesse; casar e fazer filhos.

    Mas, homem e mulher nem sempre casavam, nas Rocas. Se os tempos eram decidiam dar o "mau passo" e a igrejinha de So Jorge se enchia de casais que iam o selo de Deus para os seus amores. Se eram tempos de crise, juntavapublicamente.

    E embora o vigrio profligasse os amancebados do plpito, cada domingo, aquilcoisa consumada e bem aceita. Casamento era luxo, espcie de festa reservada appara os anos em que as pescarias eram boas e sobrava algum dinheiro.

    Grupos eram ento vistos passar em romaria igreja, os noivos muito anchosbrao um do outro, os parentes fazendo festas, ditos e risadas explodindo a propsiqualquer coisa.

    Os mais abonados subiam mesmo Cidade Alta para pedir a bno do vigrigreja do Bom Jesus.

    Mas isso era raro. A maioria casava ali mesmo, na capela dos Reis, assistida algazarra da vizinhana e a gravidade do padrinho, geralmente um rude pescador lutpor parecer natural debaixo das roupas engomadas que envergava nesses dias.

    Vinham porm os anos em que o peixe se negava aos anzis ou a fartura das mpiscosas forava a baixa do pescado, que apodrecia nos mercados da Ribeira Cidade Alta onde era vendido a qualquer preo. Ento, como protesto inconscieninsensibilidade daquele Deus que era um mau scio, os noivos no subiam sua para concertar as bases terrenas de seu amor. Amasiavam-se e iam viver juntos paresto da vida, que enxoval e bno do padre o mar negara.

    Assim acontecia nas Rocas o amor adulto. J o amor adolescente, esse, coera aquele inseguro sentimento que tamborilava em meu peito, perdido na praia, pens

    em Dora, temeroso e aluado. Estava enrabichado, sabia. Cedo aprendera nas convdos outros o nome daquela coisa braba que mais parecia doena e que assolava a tnas Rocas. At meninos, como eu.

    Era isso RABICHO, XOD ia garatujando com o dedo em grandes letraareia. E mais o nome da praga DORA. E mais uma seta e um peixe-estrela e um uma lua e uma jangada e um livro aberto. E mais isso e mais aquilo, que nas Rocas, na Cidade Alta, amor de menino era assim mesmo.

  • 7/25/2019 Colecao Vaga-Lume - Homero Homem - Cabra das Rocas (69p).pdf

    26/69

    Era como se tivesse adoecido de repente. Amor de menino era assim mesmo.

  • 7/25/2019 Colecao Vaga-Lume - Homero Homem - Cabra das Rocas (69p).pdf

    27/69

    Captulo

    A BRIIa para o segundo ms que estudava com seu Geraldo. Com o tempo me

    seguro, a matria j no baralhava na cabea. Sentia que fizera progresso. A possibilde passar nos exames era agora menos remota, vivia sonhando com ela. Seu Geraque continuava inflexvel, nunca estava satisfeito. Ditava trechos enormes, coresclarecia, criticava, excitado e impiedoso. At parecia que era ele quem ia se subm

    aos exames. Voc precisa melhorar a letra, Joo! estava sempre dizendo. O seu d

    de ontem tinha trs erros, isso horrvel. O que iro dizer os lentes, l do outro l(Dizia sempre "l do outro lado", referindo-se aos moradores da Cidade Alta). Atacaminha trpega geografia.

    Voc escreveu que Macau fica no Rio Grande do Norte. o escreveu bem; maslhe ocorreu que no o nico Joo deste mundo? H no Oriente uma posseportuguesa com o mesmo nome. Veja no mapa.

    E me botava em cima dos olhos o livro enorme e colorido, l estava Macau,

    pinta marrom. Eu exibia um riso de auto-absolvio, mas Seu Geraldo j investia conminha aritmtica.Contudo, estava fazendo progresso. Aprendia rapidamente. E o que aprendia

    Seu Geraldo tinha base: entrava-me harmoniosamente na cabea e l se fixava comode construo em argamassa fresca.

    Minha vida estava sofrendo uma transformao. Sentia isso depois da aula, qusozinho (meu pai andava no mar, de viagem; minha madrasta era uma sombra que madivinhava em casa, cantarolando seus "benditos" macios, no vaivm da sala pacozinha), eu ficava a olhar da janela a vadiagem dos moleques da vizinh

    companheiros das minhas passadas estripulias.Agora era a Aritmtica, a Geografia, a Histria do Brasil que Seu Geraldo minisem doses macias, como quem acode a uma necessidade. No entanto os gachapinhavam na lama do mangue ou atiravam pedras sobre a gua tranqila, e uma estava me chamando, tomando conta de mim. L de dentro chegava a voz brandminha madrasta como uma insinuao ao companheirismo dos livros:

    Queremos Deus, que nosso rei...Queremos Deus, que nosso pai...

    ...dizia o seu "bendito". Mas eu queria era a rua, a agitao, a beleza chepodrido do mangue, que era como perfume para as minhas narinas abertas desinfncia a todos os seus cheiros.

    Deixei a janela, num pulo estava l, atirando pedras com os outros, tirando "cada gua adormecida. A turma me recebeu como irmo; mas Budio tinha um cumprimespecial:

    Visitando os "pobres", feito Madre Francisca, hem, "doutor"?Houve uma risadaria qual reagi inchando o peito como um frango de briga: Que que voc tem contra mim, seu cara de peixe? Cara de peixe a me! explodiu Budio, da cor de siri torrado.

  • 7/25/2019 Colecao Vaga-Lume - Homero Homem - Cabra das Rocas (69p).pdf

    28/69

    Ele sempre admitia a alcunha de "Budio", mas no o significado dela. "CarPeixe" era o insulto mais pesado que algum lhe podia dirigir.

    Quanto a mim, rfo desde que me entendia por gente, falar de minha me era golpear-me na cara. Sentia por ela um imenso respeito, um zelo de coisa sagrada qucultua em silncio, s com a imaginao.

    Assim, investimos um contra o outro, cada qual ruminando a ofensa ouTrocamos os primeiros sopapos. Sbito, num golpe de sorte, atingi Budio em pleno rsenti a mo mergulhar no seu nariz, que se fez chato e molhado. O sangue espquente, lavando-lhe a camisa.

    Estacara atnito, olhando. Budio aproveitou-se, veio para cima de mim de braar. Aparei mal o golpe, rolamos no cho, engalfinhados.

    A molecada fazia crculo e gritava: "D nele, Budio!" Aquilo me doa fundo. Tcontra mim, era uma covardia, uma traio.

    Com um esforo sobre-humano consegui dobrar Budio, e, ento, cegamesmurrei-o vontade, lgrimas de ira brotando-me dos olhos.

    Budio j no reagia, protegia-se do meu dio impiedoso, as mos feito dois cade cuia viradas sobre o rosto, servindo de defesa. Larguei-o bruscamente, levantepus-me a concertar a camisa, ofegante. Os botes tinham estourado as casas, violncia. Sentia-me enojado.

    Aquelas palavras de estmulo ao inimigo "D nele, Budio, d nele" doamcomo se Budio me tivesse acertado duramente.

    Budio se levantava todo enlameado, os olhos pisados, um veio de saescorrendo do nariz. Olhava-me fixamente.

    Ainda quer mais? rosnei ameaando-o. Mas estava muito cansado, trihumilhado. Arrependia-me de ter batido em Budio.

    Ele continuava encarando-me e sbito teve uma frase s, dura como eu nunca ode ningum:

    Xarias! Xarias! Traidor!Depois, afastou-se, seguido dos outros. Ganhei tambm o caminho da casa. Ia p

    a taramela da porta quando vozes em coro voaram sobre o mangue, batendo-me em nos ouvidos, como uma pedrada.

    Xarias! Xarias! Traidor!No dia seguinte no compareci aula.

  • 7/25/2019 Colecao Vaga-Lume - Homero Homem - Cabra das Rocas (69p).pdf

    29/69

  • 7/25/2019 Colecao Vaga-Lume - Homero Homem - Cabra das Rocas (69p).pdf

    30/69

    Captulo

    XARIAS E CANGULEIR

    noitinha Seu Geraldo apareceu l em casa. Folheava meu ensebado ExamAdmisso,quando ele entrou. Estava deitado na rede da saia, o candeeiro alumiandpginas, absorto na leitura. S o pressenti quando a porta bateu devagar, fechando-sde relance sua sombra mida crescer para mim, mal tive tempo de esconder o livro. vira, com toda certeza. Foi logo perguntando:

    Por que no apareceu hoje, Joo?Ergui-me da rede, fui janela, falei olhando o negrume da noite para disfarar: No quero mais estudar, no, Seu Geraldo.Silncio. Eu contava com uma resposta pronta, uma admirao, um protesto.

    Seu Geraldo ficou mudo. Virei-me. Ele folheava o livro que eu deixara dentro da Mostrou-mo:

    E este livro?O silncio agora era meu, silncio encabulado de quem pegado fazendo coisa Olhava s as figuras consertei.

    Mais silncio. Os sapos coaxavam l fora. Do quarto pegado vinha um murmrcontas reunindo: minha madrasta rezando. O cachorro dos alemes gania longe, palados do hangar da Condor.

    Joo, que houve com voc, menino? insistia Seu Geraldo. Acho que tdireito a uma explicao.

    Sua voz era magoada como a do cachorro ganindo l fora. Ecoava pela sala, de uma inflexo que me punha arrepiado, triste de v-lo decepcionar-se assim por mcausa. Refugiei-me numa mentira:

    que hoje completa o ms, Seu Geraldo; meu pai anda embarcado e eu a

    no tenho o seu dinheiro. Joo a voz de Seu Geraldo tinha agora uma entonao admirada ou euo conheo bem, ou ento voc ainda est mentindo. Qual o motivo, Joo, o verdamotivo?

    Aproximara-se, pusera a mo sobre meu ombro, era quase da minha alturaGeraldo. Havia um espanto to tranqilo em seus olhos que no pude continuar mentin

    Foram eles, Seu Geraldo tropecei nas palavras. Me chamaram de "dode "traidor", de "xarias"...

    E num rompante que era um grito de deciso:

    No voltarei mais para a. aula, no voltarei! No quero ser "doutor". Quercomo eles, o Budio, o Varapau, o Tatu. Quero voltar a ser um deles, Seu Geraldo. Qser canguleiro!

    Exaltara-me, as ltimas palavras foram ditas em berros de choro, como se lupor conservar alguma coisa que me tentavam arrancar fora.

    Seu Geraldo conservara a mo sobre o meu ombro. Ficamos assim at ququebrou o silncio.

    Joo comeou, sentando-se na rede precisamos conversar sobre ccoisas. Voc ainda uma criana, seu pai est fora, vive no mar e eu tenho idadequatro de voc. Sei como est se sentindo, fui talqualzinho em menino; por isso querfalar daquilo que aprendi com voc.

  • 7/25/2019 Colecao Vaga-Lume - Homero Homem - Cabra das Rocas (69p).pdf

    31/69

    No est querendo dizer o contrrio, Seu Geraldo? falei, tentando decifrardo seu discurso.

    No, menino, pretendia dizer o que disse. Voc canguleiro, Joo, e cangucontinuar a vida inteira. Leio isso em seus olhos. Mas para que possa contcanguleiro, voc deve lutar, tem que aprender a permanecer "canguio". E uma das fode sua luta, Joo; ir aula. Eu o escolhi por isso, ou melhor, voc se escolheu qume procurou naquele dia pedindo-me para ensinar-lhe. H muito tempo que vivo mangue, e isso nunca me acontecera. Todos me procuram para que eu escreva cacobre dvidas, resolva seus casos de amor. Nunca, porm, at voc aparecer, ningumpediu para ensinar. Sempre dei tudo a este mundo das Rocas. Mas dei apenas o qupedia. Logo, foi voc quem escolheu, Joo, que se elegeu entre todos os garotosRocas; a voc mesmo que cumpre executar a tarefa. Seja canguleiro, Joo, acimtudo canguleiro. Mas seja canguleiro estudando, aprendendo, indo para diante, cfazem os xarias l do outro lado.

    Parou, pequeno e excitado. E os outros, Seu Geraldo? Eles me chamaram de xarias. No, menino, exclamou com impacincia, voc mais canguleiro do

    eles, qualquer um deles. Voc um canguleiro que vai aula. Ao passo que os ouque jamais iro escola, esses nunca sero canguleiros.

    Calou-se, como procurando um termo que os situasse, definisse a todos para o da vida; e quando encontrou:

    Sero o que os xarias quiserem que eles sejam.Senti um aperto no corao. Estava surpreendido com aquela veemncia de

    Geraldo, nova para mim. Espantava-me daquele jogo vertiginoso de duas palavraxarias e canguleiros, canguleiros e xarias uma esmagando a outra, reunindo na bocSeu Geraldo como coisas opostas, irremediavelmente separadas, coisas "antnimpensei gramaticalmente.

    Aquilo me dava uma impresso de abismo de bordas irreconciliveis. Lembrei-mcoisas inexoravelmente afins e inimigas: roda e caminho, mar e jangada, cinturo apedepois do jantar o mundo dos contrastes vividos c observados pelos meus olhoonze anos.

    Seu Geraldo falava ainda, dizia que eu fosse aula. Prometia que sim, mas sdizer. Pisava numa nuvem, tinha a cabea em grande confuso.

    Quando Seu Geraldo foi embora, me deitei na rede e fiquei cismando no qudissera. Depois adormeci e sonhei a noite inteira. Um sonho ruim que durou at de maVia Tatu, Budio e Varapau brincando na lama do mangue. De sbito a lama se abri

    duas bandas ferventes (gritava perdidamente, avisando-os) mas eles iam sendo tragum a um.Acordei tarde naquele dia. Atravs da janela aberta avistei o mangue ondu

    blandicioso, todo lavado e repintado de verde pelos ventos da madrugada. Vendo aqtranqilidade, esqueci meus terrores noturnos, lavei-me na cacimba do quintal, tomcaf que minha madrasta deixara sobre a trempe da cozinha, e sa. Ia aula.

  • 7/25/2019 Colecao Vaga-Lume - Homero Homem - Cabra das Rocas (69p).pdf

    32/69

    Captul

    PAPA-OPapa-ovo apareceu doente. Cedinho procurei Seu Geraldo na farmcia, encon

    porta fechada. Dona Eullia, que morava pegado, me informou que Seu Geraldo focidade, s estaria de volta tardinha.

    Desci o morro ruminando meu desconsolo, fui olhar Papa-ovo no fundo do quContinuava morrinhento, o olho amarelo pingando uma ramela triste.

    Ofereci-lhe um osso, recusou. Enchi o alguidar com gua fresquinha, levei-o a Povo. Doente daquele jeito devia sentir sede. Papa-ovo bebeu sfrego, uivou aflito, vifocinho para longe da gua. O jeito era voltar a meus livros, abandonar Papa-ovo no fdo quintal at a volta de Seu Geraldo.

    Papa-ovo era e no era meu. Aparecera l em casa, e, apesar da m- vontadminha madrasta, fora ficando. s vezes desaparecia uma semana; quando mespervamos, entrava casa adentro fazendo festa, abanando a cauda, lambendo-rosto, cheio de enxerimento.

    Era de uma raa particular, patrimnio das Rocas, que se caracterizava pelos o

    mostra, rabo cado, plo ralo, presas bem desenvolvidas pela ginstica da capulgas e carrapatos que lhe encaroavam a pelanca.Os quintais das Rocas eram to pobres de restos de comida quanto as cozin

    Vianda farta s nas casas de veraneio, quando as praias prximas se enchiam de famvindas da cidade, nos meses de calor.

    Os cachorros das Rocas, apelidados genericamente depapa-ovo,estavam sefazendo o comrcio de ida e volta Praia do Meio (mais de uma lgua) para mantercouro das costas pregado decentemente s costelas.

    Findo o vero, a Praia do Meio ficava deserta. O vento entrava a gemer triste

    frinchas das casas fechadas, o mar se encapelava. Os papa-ovos reapareciamRocas. Voltavam mais cheios de corpo, o plo lustroso, uma energiazinha de mqazeitada comandando-lhes os movimentos.

    Nos restantes nove meses do ano os cachorros das Rocas passavam fome. fome que extravasava noite, calada e insuportvel.

    Mal os casebres dos pescadores pegavam no sono, saam fuando restocomida e porcaria pelo fundo dos quintais.

    Formavam magotes silentes e escuros e nunca brigavam por osso, creio que no acordar ningum. A fome, de to velha, como que os socializara. Muitas vezes,

    uma nica pedrada, eu os enxotei sem que arrancasse deles um uivo de protestomomento em que comeavam a roer as espinhas de peixe jogadas no barreiro do quinQuinho muito disputado pelos papa-ovos eram os ovos e pintos dos terreiro

    galinhas, coitadas, no tinham um minuto de tranqilidade nas Rocas. Criar filhos eraelas uma porfia estril e cheia de perigos.

    De dia era aquela rotina do gavio sobrevoando os quintais com sua camuflacarij, os olhinhos redondos e acesos faroletando dos ares, o bico curvado, as gencolhidas muito de sabedoria, prontas para se cravarem na presa: aquela bolinhpenas amarelas que piava e rolava atarantada no meio do quintal.

    noite l vinha papa-ovo arrancar os filhotes do aconchego de penas daquelas aflitssimas.

  • 7/25/2019 Colecao Vaga-Lume - Homero Homem - Cabra das Rocas (69p).pdf

    33/69

    Pagavam caro, os ladres. Bicada de galinha quando acerta para valer. Por cachorro comedor de pinto era de fcil diagnstico nas Rocas: andava de uma bcega, o olho vazado.

    O bairro era uma espcie de pas camoniano, povoado de cachorros cegos dolho.

    Do avana nos ovos ento nem se fala. Os papa-ovos descobriam o ninho muitoescondido no meio do mato e era aquele regalo. Mas sabiam comer com intelignvagar, os famintos. A fome os disciplinara. Chupavam um ovo de cada vez, para nona vista.

    A galinha ainda assim dava falta do ovo, mudava o lugar da postura. Macachorros tinham um faro tirano: em noite de lua eu avistava seus vultos mesgueirando-se pelas moitas cata de uma gemada.

    Papa-ovo era um desses. Aparecera l em casa, gostara da comida, que era pmas continuada, e fora ficando. At que um dia pegou o primeiro pinto. Exatamenpedrs, chamego da minha madrasta.

    Dona Laura tentou iniciar Papa-ovo no respeito propriedade alheia: deu-lhe tamancadas. A lio baralhou-se em sua cabea: passou a verter-se todo quando vitamanco; mas uma semana depois passou nos peitos um segundo pinto.

    Dona Laura tentou um castigo de eleio. Juntou as penas ainda sangrentapequena vtima, untou-as com pimenta-malagueta e esfregou a paoca no focinhPapa-ovo.

    O pobre passou a noite ganindo e bebendo gua. Mas no dia seguinte papoterceiro pinto.

    Ento Dona Laura demitiu-o de seu afeto e expulsou-o. Papa-ovo ficou rondancasa uns trs dias, implorando anistia. No quarto dia compreendeu que aquele tribunDona Laura era sem apelao. O smbolo de sua justia continuava pregado porta nadvertncia: o tamanco.

    Papa-ovo sumiu, foi cavar a vida noutras paragens. Mas dava suas incertas lcasa. O vero chegara e com ele a comida. Vinha mais para matar as saudades.

    Entrava como um azougue pela casa adentro, fuava a camarinha, saltava-mpernas, ia at o quintal espiar as aves. Dona Laura dava o grito de alerta:

    Passa fora, cadelo!O tamanco fendia o ar, Papa-ovo disparava porta afora. Da rua, sentado so

    traseiro, fixava o olho magoado e sozinho em cima de ns, depois caa em ruim sediGente ingrata! Desfazer de sua amizade por causa de meia dzia de p

    goguentos. Deixasse chegar o inverno que iam ver. Passava tudo no papo. Apanhava

    surra de tamanco mas no haveria mais lugar para futuros desentendimentos.Gania, catava as pulgas, ruminava suas idias de co e depois ia embora, qvero comeara e os pintos da Praia do Meio eram um osso muito mais tenro de roer

    Agora Papa-ovo reaparecia doente daquela maneira. Chegara arrastando-se, joseu olhinho amarelo como um pequeno sol triste em cima de mim, depois roltemeroso na direo de Dona Laura. E fora encolher-se sombra da bananeira, no fdo quintal. Dona Laura comoveu-se:

    Coitadinho! V ver que foi bola!O dia foi crescendo, descambou na tarde, encaneceu num ocaso todo salpicad

    nuvenzinhas brancas. E Seu Geraldo no aparecia.Levei uns restos de almoo a Papa-ovo. Recusou. Voltei aos livros e, noite fech

  • 7/25/2019 Colecao Vaga-Lume - Homero Homem - Cabra das Rocas (69p).pdf

    34/69

    seus ganidos passaram a uivos fortes.Subi de novo o morro procura de Seu Geraldo. No tornara.Fiz todo o trajeto de volta s carreiras. Perto de casa estaquei, apurei o ouvido

    uivos de Papa-ovo tinham cessado. Disparei de novo, esperana e temor revezando-smeu corao.

    Estaria dormindo ou perdera a voz?Na cozinha encontrei Dona Laura calada, mexendo a panela. Assoava-se na bar

    avental. Morreu assim que voc saiu. Foi bola mesmo.E chorava um choro mido e contido qui...i...i...

  • 7/25/2019 Colecao Vaga-Lume - Homero Homem - Cabra das Rocas (69p).pdf

    35/69

    Captu

    A CERBudio arrancou uma lasca de madeira da cerca, fez um desenho na areia, perg

    a Porco-Espinho: Voc sabe o que isto? Porco-Espinho abanou a cabea, ignorante. O tu

    cabelos vermelhos, eriados no meio da testa, brilhou ao sol como um feixe de cobresabia.

    Olhei para Porco-Espinho estava perplexo. Ningum lhe falava nessas coisasfceis na boca de Budio. Espicaada, sua curiosidade apurou-se. Adivinhei-o no limiuma grande descoberta.

    Na casa verde, confidenciava ele, as poucas vezes que tentara abordar o assunsexo, fora um deus-me-acuda! pergunta tabu a tia empalidecera, largara o crrefugiara-se no escritrio.

    Refeita, o rosto fechado numa grande dor, mandara-o brincar l fora. E pendurano telefone, numa larga conferncia com a av, que morava na Cidade Alta.

    No balano do jardim, Porco-Espinho espantava-se da enormidade daquele mis

    Passara a tem-lo como uma coisa muito m. Pelo vidro da janela acompandisfaradamente a gesticulao da tia, a mmica das mos, aquele tique de sacucabea para trs, caracterstico dos momentos de suprema aflio.

    A coisa devia ser grave mesmo. To grave quanto o mistrio em torno de seus outro motivo para o desarvorado gesticular das mos da tia, quando Porco-Esarriscava alguma pergunta a respeito.

    A perplexidade de Porco-Espinho cedeu lugar a uma intensa admirao pelo amBudio era o maior. Sabia tudo, via tudo, dominava tudo como um grande, um hofeito. Principalmente o mundo fascinante e proibido que ficava do outro lado da cerca.

    Budio sabia pescar siri com isca de carne, assoviar chamando a moria. Nacomo peixe, tinha quix para pegar goiamu; fabricava e vendia baladeiras aos omeninos; trepava em coqueiro como sagi; sabia pular o muro do stio dos padres,eriado de cacos de vidro, s pelo gosto de chupar um caju roubado.

    Uma nica vez Porco-Espinho vira Budio perder aquele desembarao, tornmofino feito cachorro apanhado. Certa manh, ns trs de conversa ao p da cPorco-Espinho convidou:

    Vamos olhar o pombal? E a velha? perguntei. Tia foi cidade. Telefonou dizendo que no volta antes do jantar.Budio mergulhou rpido por baixo da cerca, imitei-o, dirigimo-nos para o pomba

    curiosidade em curiosidade chegamos cozinha. A preta Severina deu o grito de alarm Trazendo esses moleques de boca suja para dentro de casa! Vou contar tu

    sua tia. Tintim por tintim.Porco-Espinho embromou-a com a conversa de que viramos apanhar umas

    para a igreja das Rocas; e chegamos inclumes sala de jantar.A mesa enorme cercada de cadeiras forradas de couro, o guarda- louas pejad

    prataria, os reposteiros e quadros, era tudo um mundo novo e inesperado onde noolhos de moleques das Rocas pisavam com insegurana. Eu e Budio perdamo-no

    gestos prudentes, vizinhos da timidez. Agora os papis se invertiam. Era Porco-Es

  • 7/25/2019 Colecao Vaga-Lume - Homero Homem - Cabra das Rocas (69p).pdf

    36/69

    quem falava com desembarao, dando as cartas, iniciando-nos nos mistrios daqmundo envernizado e rebrilhante que cheirava a naftalina e leo de peroba. E exorbitadiabo do Porco-Espinho. Entreabria uma porta, empurrava a cabea de Budio dentro, este deslumbrava-se:

    E esse troo a dentro? o escritrio de tia. Puxa!Porco-Espinho fechava a porta devagar, insinuava a honra daquela porta a

    excepcionalmente para ns. A ningum entra. Nem eu.No estava achando grande coisa o tal escritrio. A escrivaninha preta lemb

    caixo de defunto. E aquele cheiro de doena me transportou pelo olfato camarinhDona gueda, a nossa vizinha entrevada. J Budio ia de espanto em espanto. Masadmirao maior estava ainda para acontecer. Explodiu no banheiro, quando avistgrande banheira branca.

    Pra que serve esse troo? Pra tomar banho, ora. Voc toma banho dentro ou fora desse troo?Porco-Espinho olhou piedosamente. A forra era completa.

    Afinal aquele desgraado apelido de Porco-Espinho fora obra de Budio. Todamanhs, quando os portes da casa verde se abriam e o automvel que o conduzColgio Marista ganhava a praia da Limpa, a molecada, brincando dentro dgua, grsolta:

    L vem Porco-Espinho! Olha Porco-Espinho!E Budio no meio, chefiando a curra, estimulando-a, nadando feito um p

    distribuindo cangaps direita e esquerda.Agora Budio estava ao p da banheira, fascinado, completamente rendido

    coisa branca, cheia de gua at as bordas. Parece um casco de lancha, hem Porco-Espinho? diagnostiquei, buscand

    nosso mundo pobre de beira de praia um correspondente para aquele oabsolutamente indito.

    Quando eu crescer vou comprar um troo desses. Encho de gua e nado inteirinho prometeu Budio.

    Bom mesmo a piscina da vov ampliou Porco-Espinho. Quando eu vmergulho e dou cangap vontade mentiu.

    Para Porco-Espinho aquela nossa visita era mais do que uma forra: era a liberta

    Em casa da av, no podia tirar sequer o casaco. E ainda ganhava uma suter mvariao de tempo. Portas e janelas fechadas, cortinas corridas. Vov temia as correde ar. Sofria de uma dor de cabea permanente, sem causa certa. Sua conta de farmera a maior da cidade. Usava um turbante verde de manh noite. Quando saa, no fechado, o turbante era lil.

    At os cinco anos Porco-Espinho morara com a av. Cheia de cacoetes, a contagiara-o da mania de doena. Andava pela casa com o bolso cheio de comprimdormia com uma bolsa de gua quente sobre a virilha, padecia de uma eterna e imagdor de barriga.

    Minha barriguinha est doendo! gemia pelos cantos com um arzinho sofriav acorria, o telefone funcionava no rumo da farmcia, chegavam remdios, pa

  • 7/25/2019 Colecao Vaga-Lume - Homero Homem - Cabra das Rocas (69p).pdf

    37/69

    deles.Caado por toda a cidade, o pediatra aparecia no buque azul, de m-von

    Ultimamente nem aparecia. Receitava ou melhor endossava as receitas da av,telefone.

    Agitando-se pela casa, gritando com as empregadas, a av esquecia sua prpride cabea. Chegava a tirar o turbante verde. Havendo doena em casa ficava feliz.

    Com a fuga de tia e sobrinho para a casa verde, longe das doenas imaginriavov, Porco-Espinho perdera a mania de dar parte de doente. A tia fora desmoralizando aquele cacoete da velha que se engajara no neto. Mal Porco-Esensaiava o gemido, a tia ironizava:

    Macaco de imitao!A cozinheira Severina, mulata trintona, enxuta e saudvel de carnes, fazia coro c

    patroa: Onde j se viu isto? Um menino desse tamanho chupando cafiaspirina com

    fosse confeito?Em poucas semanas o saco de gua quente era relegado para cima de um arm

    as janelas do quarto de Porco-Espinho abriam-se para a luz, seus olhos ganhvivacidade, e as faces, cores. Mas a cerca, que era um triste muro cinzento na chda av e, na casa verde, um quadriltero de estacas e arame farpado cercando o chana casa verde a cerca continuara.

    Salvo as idas e vindas do colgio ou as visitas domingueiras av, Porco-Espintranspunha a cerca pela mo de Severina. Assim mesmo s escondidas.

    Domingo pela manh ao acordar, encontrava Severina irreconhecvel. Vestidazul, o cinto de veludo preto apertando-lhe a cintura de macaca, uma rosa vermelhombro esquerdo, duas rodelas de ruge nas faces, bolsa a tiracolo, Severina comanda

    V tomar caf depressa que ns vamos feira das Rocas.A tia largara-se de casa logo cedo para o mexerico da missa das nove na cate

    De volta o apanharia para o beija-mo e o ajantarado em casa da av. At l estava sNa feira, longe do silncio espanado e lustroso da casa verde, Severina afrouxav

    pouco a vigilncia. Corria de barraca em barraca arrastando-o pela mo, cavaquecom os conhecidos, namorando os soldados de polcia.

    Colado saia de Severina, Porco-Espinho enchia os olhos de tudo que lhe pasao alcance da vista.

    Depois de rodar pela feira, Severina ancorava na barraca de laranjinhbarraqueiro Flodoaldo era o seu xod. Severina tomava o primeiro trago fazendo dfingindo-se rogada. Mal o copinho voltava a encher-se, comeava a soltar a lngua. A

    ia ficando lrica, dava de se entregar pelos olhos ao mulato Flodoaldo. Acostumqueles sintomas, o barraqueiro comeava a abrir o jogo. Voc virgem, Severina? Virgem nasciVirgem me crieiSe comigo no casaresVirgem morrerei parodiava Severina, inspirada.Flodoaldo ria, coava-lhe a vaidade: Voc viva como o diacho, Severina!

    E ia trepando como gato no cio por aquele muro escuro e slido de resistAdoava a voz.

  • 7/25/2019 Colecao Vaga-Lume - Homero Homem - Cabra das Rocas (69p).pdf

    38/69

    Pode ser ou est difcil, corao?Os olhos de Severina diziam sim. Os olhos de Severina diziam agoniadamente

    Mas a boca de Severina, caiada de melancolia e batom, a boca de Severinaimplacvel no seu pudor trinto.

    Eu, Severina Isabel dos Santos da Costa Pereira Barando, digo e repito: hopra dormir comigo s passando primeiro na capela dos Reis.

    Tomava o ltimo trago ofendida e lamurienta, arrastava Porco- Espinho pelo bdesabafava:

    Vamos embora, menino, que esse bicho ruim do Flodoaldo no respeita nem pessoinha; que dir uma moa donzela como eu!

    Um dia Porco-Espinho deixou de aparecer na feira das Rocas pela mo de SeveA tia voltava mais cedo da missa quando avistou os dois turistas muito anchos no boFoi um terremoto na casa verde. A tia passou uma descompostura em Severina, no sonde estava que no a mandava embora. Mas aquelas duas jamais se apartariam. vigiava a solteirice da outra. Estavam quites e ligadas para o resto da vida.

    Severina continuou se escapulindo sozinha para a feira das Rocas. E a cerca fecse ainda mais alta em torno de Porco-Espinho.

    Depois veio a histria da banheira. Por causa dela Porco-Espinho pegou um dominteirinho de castigo, sem beija-mo e ajantarado em casa da av. Severina andavabaixo, precisava dar algum servio. Contou tudo tia, exagerando, caprichandodetalhes:

    Me embromaram com uma histria de flores para a igreja, correram a casa O porco do Budio at tirou o seroto na gua da banheira.

    O castigo veio, mas valera a pena. Porco-Espinho ganhara a amizade de BuAgora, quando passava para o colgio e a molecada das Rocas tentava reeditar o apBudio protestava, distribuindo cangaps nos mais afoitos:

    Deixa o nanico em paz que ele meu amigo!

    Amigo. Palavra doce e nova no vocabulrio de Porco-Espinho. Budio era seu aat o chamava pelo nome. Ou pelo menos tentava, quando, naquela manh, pegamotrs de conversa ao p da cerca.

    Porco-Espi... digo, Jorge, amanh a turma vai tomar banho no poo do DeQuer vir com a gente?

    Vov disse que banho de mar no bom pra mim, no. D alergia. Que diabo alergia? intrigou-se Budio. coceira.Porco-Espinho comeou a se coar, sugestionado. Budio tambm contagiou-se

    Essa tal de alergia pega como carrapato. J tou com a coceira.Coavam-se e riam, felizes da vida. Mata-pasto bom pra coceira receitei.Budio tirou uma folhinha da planta que crescia ao p da cerca, engrossou-a

    cuspo, grudou-a na testa. Capim melhor achou Porco-Espinho.

    Arrancou um tufo de capim gordo de maresia, comeou a masc-lo: Prova, Budio! Tem gosto de sal.Budio encheu a boca de capim, ornejou alto:

    Rim... rim... rim...Voc virou foi burro! disse Porco-Espinho s gargalhadas.

  • 7/25/2019 Colecao Vaga-Lume - Homero Homem - Cabra das Rocas (69p).pdf

    39/69

    Burro a v! repeliu Budio. Dele! defendeu-se Porco-Espinho.E rimos ainda mais alto, deliciados com aquele pingue-pongue.Budio cuspiu a pataraca verde, deitou-se na relva, olhou as nuvens. Eu e P

    Espinho o imitamos. Olha aquela ali! descobriu Budio. Parece um alefante. Alefante, no. Elefante corrigiu Porco-Espinho. Elefante ou alefante, a tromba fica do mesmo tamanho! filosofei.Rimos de novo, um riso que engrossou numa gargalhada.Na casa verde a janela se abriu, a voz da tia riscou o ar como um vo de sanha Jorge! Jorge! Logo agora que a conversa tava ficando boa! desabafou Budio. Come

    dar petelecos no p de dormideira. Malia, tua me morreu no caminho da missa.

    Atingido, o galhinho da planta murchou logo. Porco-Espinho ficou triste. Acho que minha me tambm morreu no caminho da missa, sabe, Budio? Morreu, no, disse o estouvado do Budio. Quem morreu foi seu pai.

    me fugiu pra Manaus com um caixeiro-viajante, seu pai foi ficando doente, a pegmorreu. Diz que foi desgosto.

    Quem lhe contou essa histria mentirosa, Budio? protestou Porco-Espchoroso.

    Nas Rocas todo mundo sabe. Mas no sei direito, no. Pergunte sua tia. Ela saber direitinho.

    Outro sanhau silvou mais forte da janela da casa verde: Jorge! Titia no conta nada. Quando eu pergunto, fica calada e telefona pra vov

    ganiu Porco-Espinho, lgrimas escorrendo-lhe pelo rosto sardento.

    Budio levantou-se, imitei-o. Comeamos a descer o morro, caminho da praiasabia por qu, mas sentia-me inquieto, vagamente culpado. Cuspi minha raiva fora:

    Velha chata.Joguei uma pedrada num calango que atravessou a vereda correndo, olhei para

    Porco-Espinho continuava parado no mesmo lugar, olhando o mundo alm da cerca.

  • 7/25/2019 Colecao Vaga-Lume - Homero Homem - Cabra das Rocas (69p).pdf

    40/69

    Captul

    CORREIO DO MMeu pai chegava do mar. Foi Varapau quem me deu a notcia quando pa

    correndo rumo praia.Era de tardezinha, voltava da aula de Seu Geraldo. Corri sustendo livros e cade

    venci o casario, ganhei a picada que atravessava o capinzal e ia dar praia almorro. Estaquei l em cima.

    O Esperana III vinha rompendo as corcovas de gua macia. De longe, suas embotadas pela maresia pareciam beres apojados de vento. Era belo, o iate de meu

    Sentei-me na areia e fiquei a olh-lo um tempo sem conta. Estava pertinho. Somenrgicas moviam-se a bordo, tudo pronto para atracar.

    O mar ia se fazendo escuro e embaado como canto de espelho comido maresia. Arribaes passavam rumo ao sul, fila indiana furando o espao, as asas abe fechando, o ar subitamente imantado pelo pio aflito dos filhotes.

    A noite tombava com fora da copa dos coqueiros. Desci o morro com o primclaro da lua cheia subindo do mar. Minha sombra se destacava na areia frouxa, a

    quente do sol. Lagartos corriam por entre os tufos de cardeiros pontilhados de fvermelhos rachados pelo calor da tarde. As cigarras gemiam alto na copa dos cajueirzim-zim morno e estridente de suas asas parecia pilhas eltricas descarregando ene

    Aquela orgia de asas irritadas me acompanhou por muito tempo. Nas proximidadeCanto do Mangue ainda as ouvia estridular em plena noite.

    Grupos tinham se formado na praia. O Esperana IIIvinha direito ao ancoradourmastro grande brilhava a luz do primeiro candeeiro.

    de terra! reboou na praia a voz possante de meu pai. do mar! respondeu Seu Manuel Arrais, e o mar recolheu o grito de b

    vindas. Trocavam-se as saudaes de praxe, a bordo tudo ia em paz.Num ltimo impulso de velas bambas o Esperana III feria a lama que se deromper macia pela quilha do barco. Por fim imobilizou-se, a vela-grande, tangida porestos de vento, lutando ainda contra a inrcia, Um marinheiro arriou-a, saltou pSaltavam todos. Meu pai foi o ltimo, o cachimbo no lbio grosso, a candeia na mpapis do barco enrolados debaixo do brao.

    Quando me aproximei, ele distribua a correspondncia, chamando os destinatpelo nome.

    Aquela era uma das suas atribuies como mestre do Esperana III:fazer de co

    para todas as Rocas.Mulher com marido no mar, moa com namorado nos portos costeiros, me comnas salinas de Areia Branca e Macau, tudo eram atribuies de carteiro para meu pai.

    Ele levava as cartas que Seu Geraldo escrevia de favor para o povo das Rocade volta, em cada porto recolhia as respostas.

    Acabada a distribuio, me aproximei e pedi-lhe a bno. Meu pai estirou aenorme, senti-a rija e salina sobre os lbios.

    Os grupos se desfaziam, caminho de casa. Os marujos do Esperana IIIagarras trouxas maiores a rede de dormir, a japona de azulo; o resto era repartido cfamlia. Coisas trazidas do mar: peixe seco, lagostas e camares dos portos do Ncajus, rapaduras e ananases comprados na praia da Pipa.

  • 7/25/2019 Colecao Vaga-Lume - Homero Homem - Cabra das Rocas (69p).pdf

    41/69

    Z Quentro levava um sagi preso ao ombro por uma embira. A molecada cerZ Quentro e, aos gritos, puxava a cauda do animalzinho, que se empoleirava no cocde Z Quentro, soltando guinchos assustados. Meu pai gritou para Z Quentro: "Olhao macaco te mija!" Foi uma risadaria geral.

    altura da bodega de Seu Euclides, topamos com Seu Geraldo, que vinha em ndireo. De longe gritou, mal avistou meu pai:

    Ia v-lo chegar, mestre Brs.Meu pai estirou a mo, vi-a abarcar a de Seu Geraldo, que sumiu na sua, peque

    riscada de nervos escuros. Como vai vosmec? perguntou meu pai. Vamos tocando os estudos respondeu Seu Geraldo.E me abraava, querendo me meter na conversa. Sempre d pra coisa, Seu Geraldo? Se d, Mestre Brs? Vamos ter doutor na famlia. O senhor v se preparando

    Avistamos Dona Laura na porta de casa, calada, esperando. Nenhum traemoo no rosto sulcado de rugas serenas. Meu pai saudou-a de longe.

    Como vai, minha velha? Tem rezado muito? Por vosmec, Seu Joo, por vosmec.Entramos. Dona Laura passou imediatamente cozinha para tratar do jantar.

    pai convidou: Janta hoje com os pobres, Seu Geraldo?Seu Geraldo fez que sim com a cabea: vinha l de dentro o cheiro violento e bo

    peixe fritando em azeite-de-dend. Meu pai ordenou: Menino, v a bordo e apanhe meus tarecos.Disparei porta afora. No queria perder o jantar.Na praia, l estava o Esperana III,quieto e branco de luar. Subi a bordo, fui dir

    cabina de meu pai. O beliche, a mesa rstica, uma cadeira e, na parede, a fotograf

    minha me tirada no ano de seu casamento. Era tudo. Mas na meia-escurido, enquenrolava o pesado oleado, sentia a presena de meu pai nas manchas de sarrcachimbo esquecido sobre a mesa e na tarracha de bronze do candeeiro, lisa compresso freqente de seus dedos, lutando com a escurido que rondava seus gastos pela ventania e as reverberaes do mar.

    De volta, ainda alcancei meu pai e Seu Geraldo na mesa, tomando caf nas xde gata que eram do tempo de minha me. Comi s pressas, enquanto Seu Gersoprando o caf que ia despejando no pires, elogiava:

    Caf de sustana, comadre. Feito no pilo de casa?

    caf da venda de Seu Euclides contou Dona Laura. Donana torra, pno pilo e vende pra gente. No l muito gostoso, mas com a trabalheira que eu ttido, o xerm de Donana como se casse do cu. E, como que envergonhadmaledicncia: "No estou desfazendo, no, que Deus t vendo. Mas eu bem que sei cse pila um bom caf".

    Seu Geraldo protestava, dizia que aquele era um excelente caf. At aceitava uma xicrinha.

    Dona Laura chegou o bule de flandres, virou o lquido escuro e fumegante na xum quase sorriso se insinuando em seu rosto.

    Eu me espantava. Aquilo era raro, nela. Talvez fosse alegria pela volta de meuSeu Geraldo se levantou da mesa.

  • 7/25/2019 Colecao Vaga-Lume - Homero Homem - Cabra das Rocas (69p).pdf

    42/69

    Joo, leve os tamboretes para o quintal. L fora est mais fresco ordenoupai, encaminhando-se para a cozinha. Ia acender o cachimbo na brasa do fogo, comseu hbito.

    Munido de fsforos, Seu Geraldo queimava a ponta do cigarro de palha, que teiem no acender. Voltando da cozinha, envolto numa nuvem de fumo, meu pai debicavSeu Geraldo:

    por isso que eu vou logo minha brasinha... Labareda s amiga de pegavela de barco de pobre. E exibia o cachimbo, uma brasa viva e odorosa latejando bemeio do fumo picado. A voz fina de Dona Clara cantou na porta da rua:

    de casa! de fora! contraponteou meu pai. Cochichou para Seu Geraldo: Essa

    fechar a romaria. Entreguei a correspondncia assim que cheguei. S faltava Dona ClDona Clara chegou ao terreiro, distribuindo "boas-noites". Escanchado na cin

    trazia um garoto magro e sonolento. Puxava outro pela mo. A este eu conheciaNeneco, um cisco de gente para seus cinco anos terrosos.

    Anda, vai pedir a bno a teu padrinho, coisinha encafifada! dizia Dona empurrando Neneco.

    O garoto aproximou-se, fez meno de beijar a mo de Seu Geraldo, quesquivou, abraando-o. Ps o menino na perna e cavalgou com ele. Apalpando a bavolumosa de Neneco, perguntava, brincalho:

    Que que tem nessa pana, Neneco? Tem falinha, padim cantou Neneco numa vozinha nasalada. Do seu nariz c

    um filete de catarro. Farinha nada! corrigiu a me. Barro, o que , Seu Geraldo. Esse d

    das minhas entranhas deu pra comer lama, no mangue, junto com aquele tinhoscomadre Mariana, que, mal comparando, at parecem aqueles cevados que agridgente no mato, quando as necessidades esto apelando. Mas eu j disse: e o ded

    Dona Clara avanava para o nariz endefluxado de Neneco, que chupava o catarro idiotamente se voltas a comer porcaria no barreiro, eu te corto a lngua, coisa ruim

    Meu pai ouvia calado. Eu estava com vontade de dar uma risada, mas, olhandoSeu Geraldo, vi que o sorriso lhe fugira da boca.

    Essa criana tem verminose, Dona Clara. Passe l em casa amanh cedinho, para eu lhe dar um remdio. O Neneco vai ficar bom, no Neneco?

    E ps o garoto no cho. Hoje no tem nada pra senhora, no! brincou meu pai com Dona Clara. Por amor de Deus no massacre assim a gente, Mestre Brs!

    E Dona Clara exibia um sorriso splice na boca mal servida de dentes.Meu pai ordenou: Joo, traga a correspondncia de Dona Clara. Est na camarinha, embrulhad

    meu oleado.Levantei-me, ganhei o corredor, voltei com o envelope. Pelo caminho, vim le

    "Inselentssima sinhora Clara dos Santos. Por ispicial obzsequio de mestre Antonho a bordo do Esperana III. Entreguei a carta a Dona Clara. Ela olhou o enderetempo, virou e revirou o envelope fechado com muito grude, apalpou-o, e de sdecidiu-se.

  • 7/25/2019 Colecao Vaga-Lume - Homero Homem - Cabra das Rocas (69p).pdf

    43/69

    Quer ler pra mim, Joozinho?

    Abri-o, tirei primeiro o dinheiro, duas notas de cem e uma de vinte, entreguei a Clara e pedi a Seu Geraldo:

    Leia, Seu Geraldo.Estava encabulado de ler a carta na presena de meu pai.Seu Geraldo comeou devagar, parando aqui para decifrar uma palavra, ad

    para completar a inteno das idias dispersas naquele vasto rascunho escrito a lptiras estreitas de papel almao, no qual Joo Tingu, balaieiro numa salina de Macontava mulher, numa linguagem desajeitada e pobre como sua pessoa, as mesmsabidas novidades: sua luta de alugado, a trabalheira ingrata, os calos nos dedosmos e no ombro, as rachaduras nos ps provocadas pelo sal.

    Dona Clara escutava enlevada; estava longe, junto do marido. Era com

    escutasse a sua voz, agora pedindo desculpas pelo pouco que mandava, recomenda

  • 7/25/2019 Colecao Vaga-Lume - Homero Homem - Cabra das Rocas (69p).pdf

    44/69

    lhe pacincia, que quando as coisas melhorassem viria busc-la.Botava a bno aos sete filhos, perguntava pelos dentes do caula e assinava

    letras rsticas e rebeldes: "Seu marido que no te esquece, Joo Tingu".Eu olhava o rosto de Dona Clara, lendo nele, como num mapa, as emoes

    escorriam mansamente. Um pensamento alegre, outro triste. Iam-se encapelando atdo talhado das rugas at explodirem em lgrimas que ela limpava Com o brao livre.

    Pobre Dona Clara! Baixa e queimada de sol, tinha olhos fundos e escuros, untde um perene filete mido que escorria pelos cantos, tornando as pupilas mvlustrosas como esferas bem azeitadas. Piscava continuadamente.

    Seu Geraldo lhe dava remdios, mas nada! O tracoma persistia terrvel, comdevagar primeiro as pestanas, depois o canto dos olhos de Dona Clara.

    Tivera muitos filhos: treze, afirmava ela; doze, porfiava mansamente minha madrque o ltimo fora um aborto.

    O certo que s sete restavam vivos. Formavam um sindicato esqulido e chmarcado pelo mesmo estigma de desnutrio e doena. Para mant-los, Dona trabalhava como lanadeira de mquina, de manh noite.

    Desde que o sol botava a crista vermelha de fora, na linha do oceano, atafundava inchado de calor nas guas do rio, Dona Clara era vista lavando roupabarreiros da praia. Ajuda, s da filha mais velha, Lia, uma coisinha menor do que o nmirrada e spera como um cacto do morro.

    Lia trabalhava o dia inteiro. De casa eu ouvia o estribilho da sua vozinhaenchendo as manhs e as tardes quentes das Rocas com o seu grito de desabafo:

    Peste de crianas. Te esconjuro, cambada mida!Quando ia s pescarias de siri, do outro lado do rio, continuava a ouvir de l o

    irado de Lia, comandando a troupe remelenta como uma pequena cigarra doentcansao.

    Dona Clara talvez no tivesse 40 anos. Aparentava muito mais. O corpo era cu

    atarrancado. A gravidez consecutiva roubara-lhe a naturalidade de linhas, dando-lhtroca uma gordura de mau aspecto que mais parecia inchao.

    Olhando-a agora, enquanto Seu Geraldo chegava ao ltimo perodo estropiadcarta de Joo Tingu, recordava a gravura do meu livro de Histria Natural: uma fmecanguru tendo na bolsa sob a barriga os filhotes guardados. O animal olhava o matagatorno numa atitude de espreita e desafio, fungando cheiros inimigos no ar.

    "Minha me era como Dona Clara?" pensei e me espantei da pergunta. O reque ainda h pouco vira no beliche do Esperana IIIme dizia que fora bonita.

    Mas comeava a descobrir beleza tambm em Dona Clara. Uma beleza que lat

    triste nos seus olhos sujos, na dignidade humilde daquela barriga inchada. disfaradamente o ventre enorme. Era como se o filho abortado tivesse deixado razdesse para crescer l dentro, como rama de or lutando para ver o sol.

    Quando Dona Clara foi embora, meu pai e Seu Geraldo voltaram a suas conversfiquei tentando me lembrar da legenda impressa no livro.

    Tonto de sono, ia repetindo os dizeres baixinho: "Marsupial, mamfero originrAustrlia. Possui uma espcie de bolsa sob a barriga, onde carrega os filhotes." Dme despedi de Seu Geraldo, tomei a bno a meu pai e ca na rede. Estava afiadHistria Natural.

  • 7/25/2019 Colecao Vaga-Lume - Homero Homem - Cabra das Rocas (69p).pdf

    45/69

  • 7/25/2019 Colecao Vaga-Lume - Homero Homem - Cabra das Rocas (69p).pdf

    46/69

    Quem quer comprar porqueira?Depois arriava o urinol, tirava uma banana de dentro, exibia-a aos olhos de to

    engolia-a aos pedaos. Debicava da assistncia: Ningum se habilita?E como ningum quisesse participar do lanche, engolia outra banana.De uma feita a banana salpicou o dinner jacketdo scio do Aeroclube que espia

    cena, enojado. O sujeito protestou, houve um princpio de rolo.Quando tudo parecia serenado, um catraieiro, vestido de mulher, saiu dos

    cuidados, aplicou uma rasteira no moo de dinner jacket.O rolo engrenou de novo, degenerou em conflito. Com pouco mais a caventrava na rua, ningum mais se entendia.

    Soldados passavam voando em seus corcis, espadages rabo-de- galo zuniaar, as ferraduras arrancavam fagulhas dos paraleleppedos.

    Do lado do cais Tavares de Lira, como se aguardasse o sinal do rebulio, a gucivil comeou a atirar.

    A guarda civil da Ribeira era engraada: sempre que chamada a manter a ordemmesmo sem ter sido chamada, comeava a atirar. O que era o melhor estopim pabarulho, que, a essa altura, roncava grosso.

    A massa suada e uivante reflua nas caladas, enveredava pelos becos, trepavarvores. Os que sobravam saltavam do balastre para dentro do rio.

    Jatos de lana-perfume malignamente disparados batiam nas ventas dos cavacertavam nos olhos.

    Cegos de dor os animais levantavam-se nas duas patas traseiras e, entre nitridoira, davam com os soldados no cho. E a multido ululava, feliz e vingada.

    Aquele animado Carnaval da Ribeira, pelo qual a cidade ansiava, trabalhava e so ano inteiro, tinha mais uma vez degenerado em arruaas.

    Arruaas no bem o termo: era antes um reencontro entre a Cidade Alta

    Cidade Baixa, uma das muitas guerras que ali lavravam silenciosas, entre pobres e ricMas, xarias ou canguleiros, que importavam as diferenas da sorte queles

    morriam, em meio a uma poa de sangue, ao longo das caladas?Importava, sim, que na vida como na morte o estigma de classe os desun

    diferenava.Pois os da Cidade Baixa tinham um discreto furinho de bala no corpo. E os da C

    Alta um feio rasgo de peixeira, que arma de pobre assim menos elegante.O fato que jaziam vrios mortos no cho. Mas o fato mesmo que em me

    tiroteio e ao brilho das facas a banda de msica tocava um frevo pernambucano no c

    da praa. E alguns folies, insensveis fuzilaria, danavam.Vi muito bem quando um deles foi interrompido em sua gil tesoura por um bperdido. Vestia camisa de malha e calas zuarte. Era um canguleiro.

    A bala s podia ter vindo (como veio) do cano niquelado de um trinta e oito de xaO corpo reto e fino parou no ar, teve uma contrao, esborrachou-se no cho.

    Neneco enrolou-se definitivamente na saia da me, tapou os olhos commozinhas, berrou alto:

    Me, vambora!Mas, de to excitada, Dona Clara nem o escutou. Entrincheirada ao p de um v

    muro, ia arrancando os tijolos meio soltos e jogando-os em cima dos soldados.Afinal era Carnaval! E uma tradio do seu povo era agredir os soldados que se

  • 7/25/2019 Colecao Vaga-Lume - Homero Homem - Cabra das Rocas (69p).pdf

    47/69

    acabavam aderindo gente da Cidade Alta.Depois, aquele filho molide igual ao pai precisava ir aprendendo.

  • 7/25/2019 Colecao Vaga-Lume - Homero Homem - Cabra das Rocas (69p).pdf

    48/69

    Captulo

    AZUL E BRAN

    Agora subamos a encosta, o morro enodoado de verde fechando-se em mistrigritos de pssaros, zumbidos de insetos, rumor de bichos.

    Uma borboleta atravessou a estrada em vo rasteiro e confiante. Budio, que atrs fustigando os ors com uma vara de bambu, alvoroou-nos com um convite cheseduo:

    Vamos peg-la?A chusma debandou aos gritos, embrenhou-se no mato. No meio da es

    restaram apenas as quatro Marias, muito tesas e caladas, montando guardacaixozinho florido. Uma queixou-se do sol:

    Quente como qu!Outra cen