combinato e queiroz, morte - uma visão psicossocial

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Morte - Uma Visão Psicossocial

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  • Estudos de Psicologia Universidad Federal do Rio Grande do [email protected] ISSN (Versin impresa): 1413-294XBRASIL

    2006 Denise Stefanoni Combinato / Marcos de Souza Queiroz

    MORTE: UMA VISO PSICOSSOCIAL Estudos de Psicologia, maio-agosto, ao/vol. 11, nmero 002

    Universidad Federal do Rio Grande do Norte Natal, Brasil pp. 209-216

    Red de Revistas Cientficas de Amrica Latina y el Caribe, Espaa y Portugal

    Universidad Autnoma del Estado de Mxico

    http://redalyc.uaemex.mx

  • Morte: uma viso psicossocial

    Denise Stefanoni CombinatoUniversidade Federal de Mato Grosso do Sul Paranaba

    Marcos de Souza QueirozUniversidade Estadual de Campinas

    ResumoA morte faz parte do processo de desenvolvimento humano e est presente em nosso cotidiano. Diferentesprofissionais especialmente os profissionais da sade interagem com o processo de morte e morrer na suaatividade profissional. Entretanto, alm de estarmos inseridos num contexto scio-histrico de negao damorte, a formao profissional caracteriza-se pela nfase nos aspectos terico-tcnicos. Considerando que acompreenso sobre a morte influencia na qualidade de vida da pessoa e tambm na maneira como ela interagena sua atividade profissional com o processo de morte e morrer, procuramos neste artigo fazer uma reflexosobre os aspectos psicossociais envolvidos na morte, tendo em vista a sensibilizao sobre a importncia dediscutir e refletir sobre a morte, considerando-a parte do desenvolvimento humano.

    Palavras-chave: morte; desenvolvimento humano; psicologia; psicossocial; cincia

    AbstractDeath: a psychosocial view. Death is part of the process of human development and it is present in our dailylife. Different professionalsparticularly health professionalsinteract with the process of death and dying intheir professional activity. However, in addition to being inserted in a social-historical context of death denial,their professional formation is characterized by the emphasis upon theoretical and technical aspects. Theunderstanding of death influences on peoples quality of life and also in the way professional activities relatedto death and dying are performed. In this article we present a reflection about deaths psychosocial aspects,considering the importance of seeing death as part of the human development process.

    Keywords: death; human development; psychology; psychosocial; science

    Estudos de Psicologia 2006, 11(2), 209-216

    Este artigo focaliza os principais estudos, em nvel na-cional e internacional, que constituem a rea de inves-tigao cientfica denominada tanatologia, que anali-sa a morte e o morrer da espcie humana. Alm de uma preo-cupao com o estado de arte deste campo de estudo, o arti-go traz tambm algumas incurses tericas, como uma contri-buio para delimitar e ampliar o desenvolvimento desse tipode investigao.

    Um pressuposto terico fundamental desse artigo assumeque, para o ser humano, o ato de morrer, alm de um fenmenobiolgico natural, contm intrinsecamente uma dimenso sim-blica, relacionada tanto psicologia como s cincias sociais.Enquanto tal, a morte apresenta-se como um fenmeno impreg-nado de valores e significados dependentes do contexto scio-cultural e histrico em que se manifesta. A nossa preocupao,aqui, tem como foco principal a civilizao ocidental, no interiorda qual dois aspectos sero dirigidos, envolvendo o mundomedieval e a sociedade moderna contempornea.

    A rea de estudos sobre a morte teve como um dos seuspioneiros o mdico canadense William Osler (1849-1919). Na

    sua publicao de 1904, A study of death, so abordados osaspectos fsicos e psicolgicos da morte com o objetivo deminimizar o sofrimento das pessoas no processo de morte(Kovcs, 2002).

    Aps a Segunda Guerra Mundial, o desenvolvimentoda tanatologia intensificou-se. A obra de Feifel (1959), Themeaning of death, ao buscar a conscientizao sobre amorte em um contexto de proibio sobre o tema, consti-tuiu um marco importante que caracterizou esse perodo(Kovcs, 2002).

    Na dcada de 1960, encontram-se os trabalhos da psiqui-atra Kbler-Ross, realizados a partir de suas experincias pro-fissionais com pacientes terminais. A obra Sobre a morte e omorrer, publicada em 1969, analisa os estgios pelos quaispassam as pessoas no processo de terminalidade: negao eisolamento, raiva, barganha, depresso e aceitao (Kbler-Ross, 1969/1998).

    Segundo a autora, a externalizao dos sentimentos pelopaciente e a compreenso desses afetos pelos que o acompa-nham so fundamentais para a sua aceitao. Essa compreen-

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    so significa evitar frases do tipo no fique triste, entendendoesta tristeza vinculada ao processo de perda de tudo, de todos eda prpria vida pelo qual est passando o paciente. Apesar doprocesso de terminalidade, a autora ressalta que persiste emtodos os estgios a esperana. E justamente essa esperanaque d a sensao de que tudo deve ter um sentido e os fazemsuportar. Isso no significa que os profissionais devam mentir.Deve-se apenas fazer sua a esperana do paciente.

    No Brasil, merecem destaque os trabalhos de Wilma Tor-res que, em 1980, criou o programa pioneiro de Estudos ePesquisas em Tanatologia, na Fundao Getlio Vargas; osestudos de Maria Helena Pereira Franco, especialista na reae coordenadora do Laboratrio dos Estudos sobre o Luto,na Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo; alm daprofessora Maria Jlia Kovcs, do Laboratrio de Estudossobre a Morte, da Universidade de So Paulo (Kovcs, 2002).

    A morte na civilizao ocidentalAssim como o nascer, a morte faz parte do processo de

    vida do ser humano. Portanto, algo extremamente naturaldo ponto de vista biolgico. Entretanto, o ser humano ca-racteriza-se tambm e, principalmente, pelos aspectos sim-blicos, ou seja, pelo significado ou pelos valores que eleimprime s coisas. Por isso, o significado da morte varianecessariamente no decorrer da histria e entre as diferen-tes culturas humanas.

    Para o homem ocidental moderno, a morte passou a sersinnimo de fracasso, impotncia e vergonha. Tenta-se venc-la a qualquer custo e, quando tal xito no atingido, ela escondida e negada.

    Nem sempre foi assim. Durante muitos sculos, por todaa Idade Mdia europia, a morte era entendida com naturali-dade, fazendo parte do ambiente domstico. Rodrigues (1995)analisa este contexto em que morte e vida interagiamindiferenciadamente no mundo das aldeias e cidades medie-vais. Nelas, os cemitrios geralmente ocupavam o centro dacidade, dominada pela presena da igreja catlica. Enquantoos mortos socialmente importantes eram enterrados no interi-or da prpria igreja, os menos importantes eram enterradosem um terreno ao lado. J os que no possuam dignidadesocial eram enterrados em uma vala comum, que permaneciapermanentemente aberta. Neste espao, a populao transi-tava, fazia comrcio, namorava, brincava e participava de fes-tas. Os mortos no eram considerados, como hoje, presenasinoportunas, em completa oposio vida.

    Nesta mesma obra, Rodrigues descreve as chamadas fes-tas macabras que ocorriam nessas praas-cemitrios, sempreacompanhadas de banquetes e bebedeiras, associadas cul-tura pag anteriormente hegemnica. Nessa ocasio, assu-mindo um significado de inverso ritual da ordem estabelecida,o deboche da estrutura de poder dominante aparecia comouma sombra ldica e catica, que contrastava com o mundosrio e ordenado do cristianismo. Como o carnaval, a tolern-cia a tais eventos pelo poder constitudo permitia que emcontraste com o caos, a ordem pudesse ser exercida.

    A anlise de Rodrigues prossegue no sentido de mostrarque, no mundo medieval, a relao com o corpo era aberta,

    expansiva, indisciplinada, transbordante e preguiosa, muitodiferente da relao fechada, contida e individualizada domundo burgus, que transformou o corpo humano em instru-mento de produo e de trabalho. Nesta transformao, oque causa, hoje, repugnncia e temor, causava, no mundomedieval, riso, intimidade e familiaridade.

    Com a emergncia da modernidade, a fragmentao doamlgama indiferenciado das instituies medievais em vri-as esferas de domnio relativamente autnomas ocorreu emum processo de diferenciao institucional que, em sintoniacom a anlise de Parsons (1974), foi indispensvel para aconstituio da modernidade. Com o desenvolvimento docapitalismo, a partir do sculo XVIII, uma preocupao cons-tante foi isolar, separar e impor um conhecimento especializa-do e uma disciplina institucional a tipos diferenciados de fe-nmenos. Excluir os mortos dos vivos, neste contexto, pas-sou a ser um empreendimento fundamental. Uma forte preo-cupao, em toda a poca de transio para a modernidade,foi colocar os mortos, juntamente com o lixo, cada vez maislonge do meio urbano e do convvio social.

    Com o desenvolvimento das sociedades industriais e odesenvolvimento tcnico e cientfico da medicina, a partir dosculo XIX, a viso da morte e a interao com o pacientemoribundo modificaram-se ainda mais radicalmente. A revo-luo higienista radicalizou a separao entre vivos e mortosde tal modo que o convvio entre estas duas condies pas-sou a ser visto como uma fonte extremamente importante deperigo, contaminao e doena.

    A modernidade trouxe tambm uma mudana fundamen-tal na maneira como o ser humano passou a ser compreendi-do. Em seu processo, emerge o ser humano individualizadoque permitiu ao indivduo pensar e sentir em si mesmo comoum ser autnomo. importante, nesse sentido, lembrarHabermas (1984), que mostra que tal condio exclusiva damodernidade, no estando presente em qualquer contextopr-capitalista.

    Como j mencionamos, o desenvolvimento do capitalis-mo transformou o corpo humano em um instrumento de pro-duo. Adoecer nesse contexto significa deixar de produzir, oque significa vergonha da inatividade, que deve ser ocultado mundo social (Pitta, 1999).

    Tal condio especialmente verdadeira entre as classestrabalhadoras, para quem a sade identifica-se com a pro-dutividade do corpo, e a doena como uma interrupo nestaprodutividade, com a conseqente ameaa subsistncia.Para as classes mais altas, a sade pode ser percebida comocapacidade de consumir e usufruir do prazer proporcionadopelo corpo (Boltanski, 1979).

    Com o desenvolvimento do capitalismo e advento damodernidade, a morte, que estava presente na sala de visita,desloca-se para o hospital e, em alguns casos, para a Unida-de de Terapia Intensiva (UTI). Em um ambiente isolado, comjanelas fechadas, luz artificial, temperatura constante mantidapelo ar condicionado e equipamentos tcnicos, os profissio-nais da sade realizam procedimentos altamente sofisticadoscom pacientes que se encontram em situaes limite entre avida e a morte (Oliveira, 2002).

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    Em tal condio, o paciente impedido de sentir e ex-pressar suas emoes, destinado a um sofrimento solitrio ediscreto. Isso porque os profissionais que lidam cotidiana-mente com a morte no esto preparados para lidar com oindivduo em sua plenitude enquanto ser humano dotado deemoes e valores. Baseada no paradigma positivista1, a for-mao e atuao de profissionais na rea da sade tendem alidar com a doena e a morte do ponto de vista estritamentetcnico (Klafke, 1991; Kovcs, 1991, 2002). Em outras pala-vras, o profissional da sade formado para curar a doena eno para lidar com a pessoa.

    De acordo com Pitta (1999), o saber da equipe de sade,voltado exclusivamente para solues tcnicas, exige umaatitude de negao da morte, na medida em que fornece po-der ao profissional da sade e ameniza o sentimento de impo-tncia. Nesse sentido, o investimento nos recursostecnolgicos torna-se uma alternativa de prolongamento davida do paciente para evitar no s o contato com a morte,mas a comunicao com a famlia e os sentimentos mais pro-fundos do paciente.

    Nesse contexto, nas palavras de Maranho (1996), reali-za-se a coisificao do homem, na medida em que se negaa experincia da morte e do morrer (p. 19).

    Assim, alm de evitar o contato com a morte do outro, oprofissional evita o contato com as suas prprias emoesem relao a (sua) morte e o (seu) morrer. A sndrome doesgotamento profissional, ou burn out2, apenas um exem-plo a que est sujeito o profissional da sade que lida com osofrimento alheio, sem que esteja, muitas vezes, preparadopara enfrentar tal situao (Seligman-Silva, 2003).

    Por muitos sculos, a morte obedecia a um ritual queenvolvia tanto a pessoa que ia morrer (que pressentia o seufim), como parentes e amigos:

    A morte uma cerimnia pblica e organizada. Organizadapelo prprio moribundo, que a preside e conhece seu protoco-lo [...] Tratava-se de uma cerimnia pblica [...] Era impor-tante que os parentes, amigos e vizinhos estivessem presentes.Levavam-se as crianas. (Aris, 1975/2003, p. 34)

    Nesse momento, tranqilamente, o moribundo despedia-se das pessoas e designava com quem ficariam seus bens(Aris, 1975/2003).

    Aps a morte, os familiares cuidavam para cumprir todosos costumes:

    fechavam as janelas, acendiam as velas, aspergiam gua bentapela casa, cobriam os espelhos, paralisavam os relgios. Ossinos dobravam. [...] Com os dedos das mos entrelaados eenvoltos por um rosrio, o defunto ficava exposto sobre umamesa e, durante dois ou trs dias, seus parentes e amigos, comvestimentas de luto, desfilavam diante dele para o ltimo adeus.(Maranho, 1996, p. 8)

    A espiritualidade e a religiosidade revelavam-se nos ri-tos e sacramentos da igreja antes (confisso, comunho eextrema-uno) e aps a morte (cortejo fnebre, ritos de puri-ficao e passagem conduzidos pelo sacerdote).

    O processo de luto era rigorosamente seguido atravsdas roupas pretas, da no participao na vida social, at queno acontecesse sua elaborao.

    Atualmente, em nossa sociedade, a presena dos famili-ares, amigos e vizinhos junto ao moribundo deu lugar aoambiente frio e isolado do hospital; os rituais de morte (extre-ma-uno, velrio na casa da famlia, procisso fnebre emanifestaes de luto) foram substitudos pelas organiza-es funerrias, em que o ambiente neutro e higinico; pe-los cortejos fnebres rpidos e discretos; pelo autocontroledo indivduo enlutado, que no pode expressar verdadeira-mente suas emoes, a fim de no perturbar outras pessoascom algo to mrbido (Aris, 1975/2003; Maranho, 1996).

    Nesse sentido, a adoo de prticas como a cremaotem sido cada vez mais utilizada. Alm das razes higinicas eecolgicas, ela uma maneira de esconder a prpria morte.Nas palavras de Aris (1975/2003), ela se apresenta como amaneira mais radical de fazer desaparecer e esquecer tudo oque resta do corpo, de anul-lo (p. 88).

    O que era vivenciado como um evento familiar passou aser objeto de vergonha, proibio e repugnncia. Na termino-logia utilizada por Aris (1975/2003), a morte domada queexistiu at a metade do sculo XIX foi substituda pela morteinterdita.

    A desigualdade na morte

    E somos SeverinosIguais em tudo na vida, morremos de morte igual,

    da mesma morte, severina: que a morte de que se morreDe velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte,

    De fome um pouco por dia (de fraqueza e de doena que a morte severina ataca em qualquer idade,

    E at gente no nascida).Joo Cabral de Mello Netto, Morte e Vida Severina

    Apesar de a morte ser o destino de todas as pessoasindiscriminadamente, a durao da vida e a maneira de morrerso diferentes: dependem da classe socioeconmica em quea pessoa est inserida.

    Atualmente, a esperana de vida ao nascer da populaobrasileira de 71,7 anos. Entretanto, comparando esse ndiceentre as regies do pas, constata-se uma diferena de 5,65anos entre sul (73,95) e nordeste (68,3) (Instituto Brasileiro deGeografia e Estatstica- IBGE, 2006).

    A diferena em relao mortalidade infantil ainda maisgritante, pois, enquanto nas regies sul e sudeste, a taxa demortalidade infantil de 17,8 e 19,5; nas regies norte e nor-deste de, respectivamente, 27,4 e 39,5. Ainda possvelcomparar a taxa de mortalidade infantil por raa ou cor dasmulheres: na regio nordeste, a taxa de mortalidade infantilem mulheres brancas de 33,6; enquanto em mulheres pretase pardas de 46,5 (IBGE, 2006).

    A desigualdade continua mesmo aps a morte. At osculo XVIII, existia a crena de que se a pessoa fosse enter-rada prxima aos tmulos dos santos ou de suas relquias,perto do altar ou no claustro do mosteiro, o defunto tinha

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    uma intercesso especial dos santos e a garantia da salva-o. Como esses espaos no comportavam todos os mor-tos, eles eram reservados queles que podiam pagar por essefim. Enquanto isso, os mais pobres eram envolvidos numsudrio simples e amontoados em fossas que continham en-tre 1200 a 1500 cadveres, sendo fechadas aps anos quandoficavam cheias. Assim, os defuntos (pobres) conservavamo seu silencioso anonimato de quando ainda eram vivos(Maranho, 1996, p. 31).

    A partir da segunda fase da Idade Mdia, apenas a loca-lizao e o tipo de sepultura no garantiam a vida eterna. Otestamento, que era destinado regulamentao da partilhados bens, torna-se um contrato de salvao. Por meio dele,

    o fiel confessava a sua f, reconhecia seus pecados, reconcili-ava-se com a comunidade; determinava o local de sua sepultu-ra, prescrevia as questes relativas ao seu cortejo fnebre,luminrias e cultos, e, enfim, pagava Igreja um dzimo sobreo valor de sua herana. (Maranho, 1996, p. 32)

    Dessa maneira, a pessoa garantia a sua salvao no cu,recebia missas e preces de intercesso, alm de um cortejofnebre seguido por crios, tochas e trinta e trs pobres (anosde vida de Cristo) que recebiam donativos e esmolas.

    Atualmente, percebemos a diferena de classes entre osmortos na configurao geogrfica do cemitrio: de um lado,bairros pobres com sepulturas planas e mal-acabadas; deoutro, bairros ricos com verdadeiros monumentos escritoscom letras de bronze. Os enterros seguem a mesma lgica:alguns so velados nas prprias casas no por opo, maspor no ter condies financeiras de alugar uma sala de vel-rio; outros recebem anncios fnebres em jornais, recebemdezenas de coroas de flores, so acomodados em caixesartisticamente talhados [...] revestidos em cetim almofadado(Maranho, 1996, p. 38).

    Assim, o cemitrio caracteriza-se como um reflexo danossa sociedade dividido por classes e propriedades.

    Morte em vidaAlgumas experincias vivenciadas ao longo do desenvol-

    vimento humano apresentam analogia com a idia de morte:separao, desemprego, doena e, at mesmo, acontecimentosque trazem alegria, mas que provocam algum tipo de ruptura.

    A separao pode ser vivenciada atravs de vrios tiposde experincias, desde a separao com a figura materna at aseparao de namorados e de casais. Ela envolve aspectossemelhantes ao luto; a diferena que, na situao de luto,houve a morte concreta de algum, enquanto, na separao,no. Apesar disso, preciso matar o outro dentro de si(Kovcs, 1996, p. 14).

    Segundo Kovcs (1996, p. 15), o risco da separao de-pende da possibilidade de se perder, junto com o perdido, osignificado da vida. preciso, nesse momento, construir umanova vida agora, sem o outro; o que significa elaborar a perda,retomar as atividades cotidianas, investir em novas relaes.

    A doena tambm um tipo de morte. Em outras pocas,a doena teve uma fase glamourosa (por exemplo: a tubercu-lose): a doena era vista como um refinamento, o sofrimento

    dignificando o homem (Kovcs, 1996, p. 21). Atualmente, ela vista como fraqueza e punio, tendo em vista a interrupo produo. De qualquer forma, a doena coloca o indivduoem contato com sua fragilidade e finitude; ou seja, ele afas-tado das suas atividades rotineiras, pode sofrer paralisias,mutilaes, enfrenta muitas vezes a dor ao longo do trata-mento e percebe-se enquanto ser mortal.

    Ao longo do processo de desenvolvimento, convive-secom os plos vida e morte. A passagem de cada fase de vida(infncia, adolescncia, vida adulta e velhice) caracteriza-se,segundo Kovcs (1996), por um processo de morte simblicaou morte em vida, na medida em que se perde caractersticase atividades de uma fase para iniciar uma outra e atingir, as-sim, uma nova vida.

    Uma outra possibilidade de morte em vida est relaciona-da ausncia de poder e controle sobre si e sobre a realidade.Em pesquisa sobre o desenvolvimento da conscincia emmulheres moradoras de uma favela, Sawaia (1995) analisa quedesde pequenas, essas mulheres sofrem a falta de amparoexterno real (falta de controle absoluto sobre o que ocorre) ea falta de amparo subjetivo (falta de recursos emocionais paraagir) (p.158). Se, por um lado, elas vivenciam a misria e a dorpelas condies de vida, por outro, desenvolveram a consci-ncia de que nada podem fazer para mudar essa situao,caracterizando um estado de apatia e tristeza passiva ou, comoelas denominam, o tempo de morrer.

    Assim, pode-se afirmar que existem vrias mortes emvida. Embora no ocorra a morte concreta, essas experinciaspossibilitam a reorganizao e a ressignificao da vida.

    O processo de luto um outro exemplo de morte em vidaque se caracteriza por um conjunto de reaes diante de umaperda. Falar de perda significa falar de vnculo que se rompe,ou seja, uma parte de si perdida; por isso, fala-se da morteem vida.

    A expresso de sentimentos, nessas ocasies, funda-mental para o desenvolvimento do processo de luto. De acor-do com os estudos de Bowlby (1970/1997), existem quatrofases do luto que, embora diferenciem na intensidade e dura-o em cada indivduo, no geral, seguem um padro bsico:(1) fase de torpor ou aturdimento, com durao de algumashoras ou semanas, que pode vir acompanhada de manifesta-es de desespero ou raiva; (2) fase de saudade e busca dafigura perdida, que pode durar meses ou anos, quando ocor-re o impulso de buscar e recuperar o ente querido, podendo araiva estar presente quando se percebe de fato a perda; (3)fase de desorganizao e desespero, em que as manifesta-es mais freqentes so o choro, a raiva, as acusaes en-volvendo pessoas prximas uma profunda tristeza senti-da quando ocorre a constatao da perda como definitiva,podendo ocorrer a sensao de que nada mais tem valor; e (4)fase de organizao, em que existe a aceitao da perda e aconstatao de que uma nova vida precisa ser iniciada. Asaudade, a necessidade do outro e a tristeza podem retornarmesmo nessa fase, uma vez que o processo de luto graduale nunca totalmente concludo.

    Os determinantes do resultado do processo de luto es-to relacionados aos seguintes fatores: identidade e papel da

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    pessoa que foi perdida; tipo de vnculo existente; causas ecircunstncias da perda (por exemplo: morte prematura, mor-te violenta, mortes mltiplas, mortes que geram culpa); idade,gnero, religio e personalidade do enlutado; contexto s-cio-cultural e psicolgico que afeta o enlutado, na poca eaps a perda (exemplo: apoio social); alm de estresses se-cundrios (mudanas e crises concomitantes que ocorremaps a morte) (Parkes, 1998).

    evidente que a aproximao psicolgica que puder in-cluir tais circunstncias contextuais, envolvendo uma aproxi-mao interdisciplinar, ter meios de interveno mais ade-quados para lidar com a situao. evidente tambm que talaproximao exige uma perspectiva mais integradora, centradano paciente e no no problema ou na doena. Um novoparadigma cientfico necessita ser consolidado para dar su-porte a esta perspectiva, aspecto este que ser mais bemdiscutido no prximo tpico.

    A cincia e a mortePara entender o foco que a sociedade ocidental moderna

    projeta sobre a morte interessante trazer tona o princpiohistrico e cultural a ele subjacente, atravs do desenvolvi-mento da cincia moderna e, em seu interior, do paradigmacientfico hegemnico, o positivismo mecanicista.

    O modelo de cincia hegemnico em nossos dias teveorigem no sculo XVII com Descartes, um filsofo quevisualizou um mtodo de cincia com princpios fundamen-tais baseado na estrutura matemtica. Entendendo a naturezacomo uma mquina perfeita, governada por leis matemticas,sua finalidade era indicar o caminho para se chegar verdadecientfica (Capra, 1982).

    O aspecto fundamental do mtodo de Descartes a d-vida metdica, a partir da qual tudo deve se submeter, com aexceo do pensamento, a nica base que no passvel dedvida. Portanto, cogito, ergo sum (penso, logo existo). Apartir da, Descartes desenvolve o mtodo analtico, que con-siste em decompor o objeto de estudo em partes para, emseguida, organiz-lo em sua ordem lgica e matemtica.

    Para Capra (1982), esse mtodo tem sua utilidade princi-palmente no desenvolvimento de teorias cientficas e na cons-truo de projetos tecnolgicos. Entretanto, a excessivanfase dada ao mtodo cartesiano levou fragmentao darealidade, caracterstica do nosso pensamento em geral e dasdisciplinas acadmicas modernas, e levou atitude generali-zada de reducionismo da cincia (p. 55).

    Essa fragmentao atingiu o corpo humano. Antes deDescartes, a medicina preocupava-se com a interao corpoe alma, tratando as pessoas no contexto social e espiritual.Com a diviso entre corpo e mente, alm da comparao docorpo humano a uma mquina, os mdicos passaram a seconcentrar no corpo, descuidando dos aspectos psicolgi-cos, sociais e culturais da pessoa.

    Apesar dos avanos cientficos, do surgimento de no-vos mtodos e do conhecimento obtido a respeito do proces-so sade/doena enquanto determinao scio-histrica, oparadigma cartesiano ainda prevalece. Continua-se exercen-do um modelo clnico-biologicista, em que a doena carac-

    terizada pelo biolgico, sintetizando assim o denominadomodelo biomdico:

    O corpo humano considerado uma mquina que pode seranalisada em termos de suas peas; a doena vista como ummau funcionamento dos mecanismos biolgicos, que so estu-dados do ponto de vista da biologia celular e molecular; o papeldos mdicos intervir, fsica ou quimicamente, para consertaro defeito no funcionamento de um especfico mecanismo en-guiado [...] Ao concentrar-se em partes cada vez menores docorpo, a medicina moderna perde freqentemente de vista opaciente como ser humano. (Capra, 1982, p. 116)

    Se a medicina contempornea negligencia os aspectospsicossociais do processo sade-doena, o que dizer sobre asua concepo de morte?

    Vigotski (1996) afirma que a cincia assimilou muito bemo conceito de vida, mas no conseguiu explicar o de morte:

    A morte interpretada somente como uma contraposiocontraditria da vida, como a ausncia da vida, em suma, comoo no-ser. Mas a morte um fato que tem tambm seu signifi-cado positivo, um aspecto particular do ser e no s do no-ser; um certo algo e no o completo nada. (p. 265)

    A explicao da cincia sobre a morte (ou sobre o no-ser) est situada na perspectiva biologicista do modelobiomdico, ou seja, a morte consiste, simplesmente, na para-lisao total da mquina-corpo (Capra, 1982, p. 138).

    Assim, profissionais de sade so formados para lidartecnicamente com os fenmenos da doena e da morte. Ouseja, o profissional formado para curar a doena, combatera morte; e no para lidar com a pessoa doente ou a pessoaque est morrendo.

    Uma perspectiva que surge como uma alternativa a essemodelo a abordagem dos cuidados paliativos. Diferente-mente do paradigma de cura da cincia mdica, os cuidadospaliativos valorizam a qualidade de vida do paciente e, porisso, tm como princpio fundamental o cuidado integral e orespeito autonomia do paciente em relao ao processo demorrer.

    De acordo com a Organizao Mundial da Sade (OMS),o cuidado paliativo uma abordagem que tem como objetivomelhorar a qualidade de vida de pacientes e familiares noenfrentamento de problemas relacionados a doenas termi-nais. Isso feito atravs da preveno e do alvio do sofri-mento pelo diagnstico precoce, avaliao e tratamento dador e outros problemas fsicos, psicossociais e espirituais(World Health Organization-WHO, s.d.).

    Atender a solicitao do paciente, atravs de uma maiorhumanizao no tratamento e no cuidado, poder tornar oprocesso de morte menos angustiante e mais digno para opaciente e, ao mesmo tempo, trazer maior conforto ao profis-sional que freqentemente sente-se frustrado com a percep-o de derrota diante da morte (Schramm, 2002; Siqueira-Batista & Schramm, 2004).

    Os cuidados paliativos tm como objetivo, de acordocom a OMS: (1) promover o alvio da dor e outros sintomas deangstia; (2) afirmar a vida e considerar a morte como um

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    processo natural; (3) no apressar nem postergar a morte; (4)integrar os aspectos espirituais e psicolgicos no cuidadodo paciente; (5) oferecer um sistema de suporte que ajude opaciente a viver ativamente tanto quanto possvel at suamorte; (6) oferecer um sistema de suporte para ajudar noenfrentamento da famlia durante a doena do paciente e (7)utilizar uma equipe profissional para identificar as necessida-des dos pacientes e de suas famlias, incluindo a elaboraodo luto, quando indicado.

    Para o efetivo desenvolvimento dos cuidados paliativos,McCoughlan (2004) afirma que, alm do compromisso dogoverno e da proviso de medicamentos essenciais ao trata-mento, fundamental a educao em cuidados paliativos.Essa educao, segundo a autora, envolve a formao depacientes, familiares, comunidade, administradores da sa-de, responsveis por polticas pblicas e, finalmente, os pro-fissionais da sade.

    Apesar da necessidade de implantar tais unidades, de-vemos ressaltar que os cuidados paliativos constituem umafilosofia de cuidado da pessoa. Esse cuidado, nas palavrasde Pessini (2004), deve promover o bem-estar global e adignidade do doente crnico e terminal e sua possibilidadede no ser expropriado do momento final de sua vida, mas deviver a prpria morte (p. 204).

    Consideraes finaisEste estudo mostra que a morte um fenmeno comple-

    xo, com implicaes profundas, que deve ser compreendidaatravs de uma perspectiva multidisciplinar.

    Sem a pretenso de encerrar ou discorrer sobre todas asperspectivas desse fenmeno, discutimos, nesse artigo, umaperspectiva psicossocial da morte, com destaque para o de-senvolvimento histrico da morte no mundo ocidental, osdiferentes tipos de morte no contexto social e psicolgico, eos cuidados paliativos como uma filosofia de cuidado da pes-soa em processo de terminalidade.

    Finalizando essa discusso sobre os aspectospsicossociais da morte, faz-se necessrio acrescentar a anli-se que Vygotski (1931/1995; Vigotski 1934/2000) faz sobre odesenvolvimento psicolgico do ser humano. De acordo coma psicologia scio-histrica, referencial terico que tem comoprincipal representante o psiclogo sovitico Vygotski, odesenvolvimento psicolgico est relacionado ao desenvol-vimento histrico e social da espcie. Assim, as funes bio-lgicas do condies para o desenvolvimento, mas por si sno garantem a apropriao da cultura e o desenvolvimentodas funes psquicas superiores (pensamento e linguagem,por exemplo) funes tipicamente humanas. O desenvolvi-mento humano, portanto, uma construo histrica e soci-al; d-se ao longo da vida do indivduo a partir de sua inter-veno no meio (atividade) e da relao com outros homens.

    No entanto, essa apreenso do mundo externo no acon-tece passivamente como mero reflexo do meio. A constituiodo fenmeno psicolgico se faz numa relao dialtica com omundo social.

    No caso da morte, em cada tempo e cultura existe um sig-nificado atribudo a ela. Inicialmente, esse significado exter-no ao indivduo, pertencendo cultura. medida que essesignificado internalizado, transforma-se num instrumento sub-jetivo da relao do indivduo consigo mesmo. E assim, o sig-nificado externo adquire um sentido pessoal para o indivduo.Em outras palavras: os contedos externos presentes na reali-dade objetiva tm significados construdos socialmente poroutras geraes, outros homens. Atravs da atividade e dasrelaes sociais que se estabelece com o meio, o indivduointernaliza esses contedos e significados a partir de sua pr-pria experincia e histria de apropriaes (ou seja, sua subje-tividade). Dessa maneira, o contedo que tinha um significadoexterno passa por uma mediao psquica e adquire um sentidopessoal, singular, nico para cada pessoa.

    Assim, quando discutimos sobre a dificuldade dos profis-sionais da sade em lidar com o paciente terminal em suaintegralidade, devemos analisar essa dificuldade no seu pro-cesso de construo, na sua historicidade e na sua essncia;processo esse que vai alm de uma experincia imediata e dahistria individual desse profissional. O sentido adquirido so-bre a morte e a maneira como o profissional da sade interagecom o paciente no processo de terminalidade no algo natu-ral. Se olharmos isoladamente uma interao, na sua aparnciae no na essncia, tendemos a classific-la como natural peloseu carter automtico e mecnico como acontece. Entretanto,Vygotski (1931/1995) alerta para o problema desse comporta-mento fossilizado (p. 105) e defende a necessidade de anali-sarmos os fenmenos psicolgicos alm das caractersticasperceptveis e da experincia imediata. preciso, portanto, en-tendermos o sentido e o fazer do profissional a partir do signi-ficado de morte atribudo pela cultura, assim como a influnciadessa cultura na sua formao profissional.

    Parkes (1998) relata que, em uma pesquisa comparativadesenvolvida por Burgoine (1988), entre um grupo de vivasda Inglaterra e das Bahamas, essas ltimas, que vivem numacultura em que as manifestaes de luto so incentivadas,apresentam melhores condies de sade e menos proble-mas psicolgicos em relao s mulheres da Inglaterra.

    Assim, considera-se fundamental para o estudo da mor-te, a compreenso da subjetividade em sua totalidade, a partirde seu movimento, contradies e historicidade. Isso signifi-ca compreender o processo histrico que constituiu e cons-titui o fenmeno em estudo (historicidade); a busca da suaessncia, a fim de conhecer sua gnese e suas relaes din-mico-causais; a captao do movimento, as contradies e atransformao do objeto de estudo.

    Num contexto em que o ser humano fragmentado e amorte deslocada para o hospital, compreender a subjetivi-dade no processo de morrer exigiria um esforo por parte daeducao formal no sentido de humanizar e considerar aintegralidade do cuidado para, com isso, tornar os profissio-nais da sade mais aptos a lidar com este fenmeno que , aomesmo tempo, fsico, psquico e social.

    Vrios estudos mostram que a humanizao da morte edo processo de morrer uma condio que poderia repercutir

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    positivamente no s para o doente como tambm para oprofissional da sade (Esslinger, 2003; Kovcs, 2002; Saloum& Boemer, 1999; Vianna & Picelli, 1998).

    Sabe-se que existem alguns cursos de formao de pro-fissionais da sade no Brasil que oferecem disciplinas sobrea morte e o morrer (Kovcs, 2002). No entanto, no existe umapreocupao com o fortalecimento pessoal do futuro profis-sional para o enfrentamento da morte (Bromberg, 1998). muito provvel que a ausncia dessa preocupao esteja le-vando muitos desses profissionais sndrome de burn out,como j discutido anteriormente.

    Um dos fatores estressantes associados prtica do pro-fissional da sade justamente o contato intenso e freqentecom a dor, o sofrimento, a morte e o morrer (Benevides-Perei-ra, 2002b), principalmente quando o profissional no est pre-parado para lidar com tais circunstncias. Tal condio temsido descrita como penosa, difcil e altamente ansiognica(Combinato, 2005; Kovcs, 2002; Lopes, 2003; Pitta, 1999).Por isso, o cuidado com o cuidador seja na formao acad-mica e/ou durante a atuao prtica fundamental para oexerccio profissional (Combinato, 2005; Combinato,Lunardelli, & Garbulho, 2003; Esslinger, 2003; Kovcs, 2002;Lopes, 2003; Lopes, Combinato & Reali, 2004; Rodrigues &Braga, 1998; Saloum & Boemer, 1999).

    A falta de preocupao sistemtica com a sade docuidador profissional tem sido apontada na literatura como oprincipal fator que leva o profissional da sade, principalmenteo enfermeiro, a desenvolver distrbios psicoemocionais, ten-tativas de suicdio, altas taxas de absentesmo, alm da sndromede burn out (Benevides-Pereira, 2002a). O suicdio entre mdi-cos superior ao da populao, o que pode ser verificado emtodo o mundo (Meleiro, 1998).

    A implantao de programas de capacitao e cuidadoaos profissionais, assim como o estabelecimento de polticaspblicas que priorizem os princpios dos cuidados paliativosno processo de morte e morrer, poder beneficiar tanto osprofissionais como pacientes e familiares.

    Tais iniciativas de humanizar tanto o adoecimento comoas atividades do cuidador profissional encontram noparadigma mecanicista da medicina um forte opositor. Como demonstrado por Queiroz (2003), este paradigma manifesta-se em associao ntima com a dimenso positivista da cin-cia, que influencia fortemente o sistema educacional. Este,por sua vez, referenda uma atitude em que a morte se manifes-ta, como vimos, de um modo tcnico e higienizado de qual-quer aspecto emocional e simblico.

    O desenvolvimento do saber humano, no entanto, apre-senta, no mundo contemporneo, a possibilidade de transcen-der o paradigma positivista mecanicista a partir de uma pers-pectiva integradora, que permita o dilogo entre as vrias es-pecialidades conquistadas ao longo do desenvolvimento hist-rico da cincia. De acordo com Habermas (1984), tal transcendnciateria necessariamente um carter integrador que, sem negar asconquistas do positivismo, tentaria resgatar um sentido novode totalidade, com um reconhecimento implcito de que, comopretendia Husserl, a realidade inevitavelmente constitudapor uma projeo humana sobre o fenmeno.

    Um aspecto importante da postura de Habermas e quenos interessa aqui mais especificamente diz respeito ao inevi-tvel isolamento do ser humano no contexto de modernidaderadical de nossos dias. medida que as dimenses do siste-ma social tornam-se mais abstratas e impessoais, as decisespassam a ser tomadas por especialistas e o indivduo perdecompetncia comunicativa de controlar e participar das con-dies que influenciam a sua prpria vida. Em ltima instn-cia, tal distoro pode significar a perda da capacidade decompreender e de se comunicar com o mundo.

    evidente que, neste novo paradigma, o papel dehumanizar o desenvolvimento da cincia traria s CinciasHumanas um papel mais destacado.

    No caso mais especfico da morte e do morrer, tendo emvista este novo paradigma, caberia Psicologia reintroduzir,atravs de uma aproximao cientfica, os aspectos emocio-nais e simblicos presentes na manifestao desse fenme-no. Somente assim poderia a Psicologia contribuir com umaassistncia de melhor qualidade ao indivduo, sociedade eao ser humano diante da experincia da morte.

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    Notas1 O paradigma positivista, prprio da cincia moderna, deriva das concepes de Descartes e de Newton, que

    procuravam a busca da verdade atravs da objetividade e neutralidade metodolgica. Nesta concepo, tanto omundo natural como humano so regulados por leis naturais. Descartes criou a dicotomia corpo e mente, sendoo corpo humano comparado a uma mquina que tem funcionamento mecnico. Da mesma maneira, Newtonconcebeu o universo como um relgio, cujo funcionamento pode ser desvendado. Na rea da sade, esseparadigma se reflete na concepo de sade e doena como algo biolgico-natural e na valorizao excessivada interveno tecnolgica como meio de erradicar as doenas e promover sade (Capra, 1982; Minayo, 2000;Queiroz, 2003).

    2 Burn out: padro de comportamento e sentimentos que ocorre quando a pessoa est sujeita a fontes crnicas eintensas de estresse emocional que ultrapassam sua habilidade de enfrentamento. Uma das conseqncias maisacentuadas de um estado de burn-out crnico o da barreira que ele impe entre o profissional e o paciente, ouseja, quanto mais sofrimento o paciente apresenta, mais indiferente o profissional parece se tornar.

    Denise Stefanoni Combinato, psicloga, mestre em Enfermagem pela Universidade Estadual de Campinas, professora assistente na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campus de Paranaba. Endereo paracorrespondncia: Avenida Major Francisco Faustino Dias, 148, apto. 16; Paranaba, MS; CEP 79500-000.Tel.: (67) 3668-4348. E-mail: [email protected] de Souza Queiroz, doutor em Sociologia pela Universidade de Manchester, pesquisador do Centrode Memria da Universidade Estadual de Campinas e professor do Programa de Ps-graduao em Enferma-gem da Universidade Estadual de Campinas. E-mail: [email protected] ou [email protected]

    Recebido em 08.abr.05Revisado em 10.abr.06

    Aceito em 19.jun.06

    D.S.Combinato & M.S.Queiroz