comissÃo teolÓgica internacional-em busca de uma Ética universal, novo olhar sobre a lei natural
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Estudo sobre lei natural feita pelo vaticano.COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL-EM BUSCA DE UMA ÉTICA UNIVERSAL, NOVO OLHAR SOBRE A LEI NATURALTRANSCRIPT
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COMISSO TEOLGICA INTERNACIONAL
EM BUSCA DE UMA TICA UNIVERSAL:
NOVO OLHAR SOBRE A LEI NATURAL (*)
SUMRIO
INTRODUO
CAPTULO I: Convergncias
1.1. As sabedorias e as religies do mundo
1.2. As origens greco-romanas da lei natural
1.3. O ensinamento da Sagrada Escritura
1.4. Os desenvolvimentos da tradio crist
1.5. Evolues ulteriores
1.6. O magistrio da Igreja e a lei natural
CAPTULO II: A percepo dos valores morais comuns
2.1. O papel da sociedade e da cultura
2.2. A experincia moral: necessrio fazer o bem 2.3. A descoberta dos preceitos da lei natural: universalidade
da lei natural
2.4. Os preceitos da lei natural
2.5. A aplicao dos preceitos comuns: historicidade da lei
natural
2.6. As disposies morais da pessoa e seu agir concreto
CAPTULO III: Os fundamentos tericos da lei natural
3.1. Da experincia s teorias
3.2. Natureza, pessoa e liberdade
3.3. A natureza, o homem e Deus: da harmonia ao conflito
3.4. Caminhos para uma reconciliao
CAPTULO IV: A lei natural e a Sociedade Poltica
4.1. A pessoa e o bem comum
4.2. A lei natural, medida da ordem poltica
4.3. Da lei natural ao direito natural
4.4. Direito natural e direito positivo
4.5. A ordem poltica no a ordem escatolgica
4.6. A ordem poltica uma ordem temporal e racional
CAPTULO V: Jesus Cristo, realizao da Lei Natural
5.1. O Logos encarnado, Lei viva
5.2. O Esprito Santo e a nova lei da liberdade
CONCLUSO
INTRODUO
1. H valores morais objetivos capazes de unir os homens e de
faz-los procurar paz e felicidade? Quais so eles? Como
discerni-los? Como coloc-los em prtica na vida das pessoas e
das comunidades? Estas questes de sempre em torno do bem e
do mal so, hoje, mais urgentes do que nunca, na medida em que
os homens tomaram mais conscincia de formar uma s
comunidade mundial. Os grandes problemas que se lhes
colocam assumem, doravante, uma dimenso internacional,
planetria, pois que o desenvolvimento das tcnicas de
comunicao favorece uma interao crescente entre as pessoas,
as sociedades e as culturas. Um acontecimento local pode ter
repercusso planetria, quase imediatamente. Emerge, assim, a
conscincia de uma solidariedade global, que encontra seu
fundamento ltimo na unidade do gnero humano e se traduz
pelo sentido de uma responsabilidade planetria. Assim, a
questo de equilbrio ecolgico, da proteo do ambiente, das
fontes e do clima torna-se uma preocupao premente, que
interpela toda a humanidade e cuja soluo ultrapassa
largamente as fronteiras nacionais. Igualmente, as ameaas, que
o terrorismo, o crime organizado e as novas formas de violncia
e de opresso fazem pesar sobre as sociedades tm uma
dimenso planetria. Os desenvolvimentos acelerados da
biotecnologia, que ameaam, por vezes, a prpria identidade do
homem (manipulaes genticas, clonagens), apelam a uma urgente reflexo tica e poltica de alcance universal Em tal
contexto, a busca de valores ticos comuns adquire uma nova
atualidade.
2. Por sua sabedoria, sua generosidade e, s vezes, seu
herosmo, os homens e as mulheres do um testemunho vivo
destes valores ticos comuns. A admirao que eles suscitam
em ns o sinal de uma primeira aquisio espontnea dos
valores morais. A reflexo dos catedrticos e dos cientistas
sobre as dimenses culturais, polticas, econmicas, morais e
religiosas de nossa existncia social nutre tal deliberao sobre
o bem comum da humanidade. H, tambm, os artistas que,
atravs da manifestao da beleza, reagem contra a perda do
sentido e renovam a esperana dos seres humanos. Da mesma
forma, os homens pblicos trabalham com energia e
criatividade para fazer acontecer programas de erradicao da
pobreza e da proteo das liberdades fundamentais. Muito
importante , tambm, o testemunho perseverante dos
representantes das religies e das tradies espirituais, que
querem viver luz da verdade ltima e do bem absoluto.
Todos contribuem, cada um sua maneira e em uma partilha
recproca, para promover a paz, uma ordem poltica mais justa,
o sentido de responsabilidade comum, uma repartio
equitativa das riquezas, o respeito ao ambiente, dignidade da
pessoa humana e aos seus direitos fundamentais. Todavia,
esses esforos s podem ter sucesso se as boas intenes se
apoiarem sobre um slido acordo de base quanto aos bens e
aos valores que representam as aspiraes mais profundas do
ser humano, a ttulo individual e comunitrio. S o
reconhecimento e a promoo destes valores ticos podem
contribuir construo de um mundo mais humano.
3. A busca dessa linguagem tica comum concerne a todos os
homens. Para os cristos, misteriosamente ela est de acordo
com a obra do Verbo de Deus, luz verdadeira que ilumina todo o homem (Jo 1,9), e obra do Esprito Santo, que sabe fazer nascer nos coraes amor, alegria, paz, longanimidade, bondade, fidelidade, mansido, autodomnio (Gl 5,22-23). A comunidade dos cristos, que partilha as alegrias e as esperanas, as tristezas e as angstias dos homens de hoje e se sente verdadeiramente solidria com o gnero humano e com sua histria[1], no pode, de forma alguma, se furtar dessa responsabilidade comum. Iluminados pelo Evangelho,
empenhados em um dilogo paciente e respeitoso com todos os
homens de boa vontade, os cristos participam na busca
comum dos valores humanos a serem promovidos:
Finalmente, irmos, ocupai-vos com tudo o que verdadeiro, nobre, justo, puro, amvel, honroso, virtuoso, ou que de
qualquer modo merea louvor (Fl 4,8). Eles sabem que Jesus Cristo, nossa paz (Ef 2,14), que reconciliou todos os homens com Deus por meio de sua cruz, o princpio de unidade mais
profundo para o qual o gnero humano chamado a convergir.
4. A busca de uma linguagem tica comum inseparvel de
uma experincia de converso, pela qual as pessoas e as
comunidades se afastam das foras que procuram aprisionar o
ser humano na indiferena ou impelem a levantar muros contra
o outro ou contra o estrangeiro. O corao de pedra frio, inerte e indiferente sorte do prximo e da espcie humana deve se transformar, sob a ao do Esprito, em um corao de
carne[2], sensvel aos apelos da sabedoria, da compaixo, do
desejo de paz e da esperana para todos. Essa converso a
condio para um verdadeiro dilogo.
5. No faltam tentativas contemporneas para definir uma tica
universal. Aps o fim da segunda Guerra Mundial, a
comunidade das naes, extraindo as consequncias das
estreitas cumplicidades que o totalitarismo havia estabelecido
com o puro positivismo jurdico, definiu na Declarao
Universal dos Direitos Humanos (1948) os direitos
inalienveis da pessoa humana, que transcendem as leis
positivas dos Estados e lhe devem servir de referncia e norma.
Esses direitos no so simplesmente concedidos pelo
legislador: eles so declarados, isto , a sua existncia objetiva,
anterior deciso do legislador, torna-se manifesta. Eles
derivam, com efeito, do reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da famlia humana (Prembulo).
A Declarao Universal dos Direitos Humanos constitui um
dos mais belos xitos da histria moderna. Ela permanece uma das expresses mais altas da conscincia humana de nosso
tempo[3] e oferece uma base slida para a promoo de um mundo mais justo. Contudo, os resultados nem sempre
corresponderam s expectativas das esperanas. Alguns pases
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contestaram a universalidade desses direitos, considerados
demasiadamente ocidentais, o que impele a buscar uma
formulao mais compreensvel. Por outro lado, certa
propenso a multiplicar os direitos do homem mais em funo
dos desejos desordenados do indivduo consumista ou de
reivindicaes setoriais do que das exigncias objetivas do
bem comum da humanidade, contriburam no pouco para
desvaloriz-los. Separada do sentido moral dos valores, que
transcendem os interesses particulares, a multiplicao de
procedimentos e de regulamentaes jurdicas conduzem a um
impasse que, definitivamente, serve aos interesses dos mais
poderosos. Sobretudo, manifesta-se uma tendncia de
reinterpretar os direitos do homem separados da dimenso
tica e racional, que constitui seu fundamento e seu fim, em
proveito de um puro legalismo utilitarista[4].
6. Para explicitar o fundamento tico dos direitos do homem,
alguns procuraram elaborar uma tica mundial no mbito de um dilogo entre as culturas e as religies. A tica mundial designa o conjunto de valores fundamentais obrigatrios, que
formam, depois de sculos, o tesouro da experincia humana.
Ela se encontra em todas as grandes tradies religiosas e
filosficas[5]. Esse projeto, digno de interesse, expresso da
necessidade atual de uma tica que tenha uma validade
universal e global. Mas a pesquisa meramente indutiva, sob o
modelo parlamentar, de um consenso mnimo j existente,
seria capaz de satisfazer as exigncias de fundamentar o direito
no absoluto? Alm disso, essa tica mnima no conduziria a
relativizar as fortes exigncias ticas de cada uma das religies
ou sabedorias particulares?
7. H vrios decnios, a questo dos fundamentos ticos do
direito e da poltica foi como que deixada de lado por alguns
setores da cultura contempornea. Sob o pretexto de que toda
pretenso a uma verdade objetiva e universal seria fonte de
intolerncia e de violncia, e que s o relativismo poderia
salvaguardar o pluralismo dos valores e da democracia, fez-se
apologia do positivismo jurdico, que refuta se referir a um
critrio objetivo, ontolgico, o que seria justo. Nessa
perspectiva, o horizonte ltimo do direito e da norma moral a
lei em vigor, que considerada justa por definio, pois ela a
expresso da vontade do legislador. Mas isto abrir a via da
arbitrariedade do poder, da ditadura da maioria aritmtica e da
manipulao ideolgica, em detrimento do bem comum. Na tica e na filosofia atual do Direito, os postulados do
positivismo jurdico esto largamente presentes. A
consequncia que a legislao torna-se um compromisso
entre interesses diversos; tenta-se transformar em direitos os
interesses ou desejos privados que se oponham aos deveres
derivantes da responsabilidade social[6]. Mas o positivismo jurdico notoriamente insuficiente, porque o legislador no
pode agir legitimamente seno dentro de certos limites, que
decorrem da dignidade da pessoa humana e do servio ao
desenvolvimento do que autenticamente humano. Ora, o
legislador no pode abandonar a determinao do que
humano a critrios extrnsecos e superficiais, como faria, por
exemplo, se legitimasse por si tudo o que realizvel no
mbito das biotecnologias. Em suma, ele deve agir de forma
eticamente responsvel. A poltica no pode prescindir da tica
nem das leis civis e a ordem jurdica de uma lei moral superior.
8. Em tal contexto, em que a referncia aos valores objetivos
absolutos reconhecidos universalmente se torna problemtico,
alguns, desejosos de dar assim mesmo uma base racional s
decises ticas comuns, ensinam uma tica da discusso na linha de uma compreenso dialgica da moral. A tica da discusso consiste em utilizar, no decorrer de um debate tico,
apenas as normas com as quais todos os participantes
concordam, renunciando aos comportamentos estratgicos para impor seus prprios pontos de vista, possam dar seu
consentimento. Assim, pode-se determinar se uma regra de
conduta e de ao ou um comportamento so morais, porque,
deixando de lado os condicionamentos culturais e histricos, o
princpio da discusso oferece uma garantia de universalidade
e de racionalidade. A tica da discusso se interessa,
sobretudo, pelo mtodo pelo qual, graas ao debate, os
princpios e as normas ticas podem ser colocados prova e
tornarem-se obrigatrios para todos os participantes. Ela ,
essencialmente, um procedimento para testar o valor das
normas propostas, mas no pode produzir novos contedos
substanciais. A tica da discusso , portanto, uma tica
puramente formal, que no concerne s orientaes morais de
fundo. Ela corre, assim, o risco de se limitar uma busca de
compromisso. Certamente, o dilogo e o debate so sempre
necessrios para obter um acordo realizvel sobre a aplicao
concreta das normas morais em uma dada situao, mas eles
no podem marginalizar a conscincia moral. Um verdadeiro
debate no substitui as convices morais pessoais, mas as
supe e as enriquece.
9. Conscientes dos contextos atuais da questo, ns queremos,
neste documento, convidar a todos os que se perguntam sobre
os fundamentos ltimos da tica, assim como da ordem
jurdica e poltica, a considerar os recursos que favorecem uma
apresentao renovada da doutrina da lei natural. Esta afirma,
em substncia, que as pessoas e as comunidades humanas so
capazes, luz da razo, de discernir as orientaes
fundamentais de um agir moral conforme a prpria natureza do
sujeito humano e de exprimi-las de modo normativo sob a
forma de preceitos ou mandamentos. Esses preceitos
fundamentais, objetivos e universais, tm a vocao de
fundamentar e inspirar o conjunto de determinaes morais,
jurdicas e polticas, que regulem a vida dos homens e das
sociedades. Eles constituem uma instncia crtica permanente e
garantem a dignidade da pessoa humana diante das flutuaes
das ideologias. No curso da histria, na elaborao de sua
prpria tradio tica, a comunidade crist, guiada pelo
Esprito de Jesus Cristo e em dilogo crtico com as tradies
de sabedoria que tem encontrado, assume, purifica e
desenvolve esse ensinamento sobre a lei natural como norma
tica fundamental. Mas o cristianismo no tem o monoplio da
lei natural. Com efeito, fundada sobre a razo comum a todas
as pessoas humanas, a lei natural a base da colaborao entre
todos os homens de boa vontade, sejam quais forem as suas
convices religiosas.
10. verdade que a expresso lei natural fonte de numerosos mal-entendidos no contexto atual. Por vezes, ela
evoca simplesmente uma submisso resignada e totalmente
passiva s leis fsicas da natureza, quando o ser humano busca,
com razo, dominar e orientar esses determinismos para o seu
bem. Por vezes, apresentada como um dom objetivo que se
impe de fora da conscincia pessoal, independente do
trabalho da razo e da subjetividade, ela suspeita de
introduzir uma forma de heteronismo insuportvel dignidade
da pessoa humana livre. Outras vezes tambm, no curso de sua
histria, a teologia crist justificou, muito facilmente, com a lei
natural, posies antropolgicas que, em seguida, apareceram
como condicionadas pelo contexto histrico e cultural. Mas
uma compreenso mais profunda das relaes entre o sujeito
moral, a natureza e Deus, assim como uma melhor
considerao da tarefa da historicidade, que afeta as aplicaes
concretas da lei natural, permitem dissipar esses mal-
entendidos. Hoje, tambm importante propor a doutrina
tradicional da lei natural em termos que manifestem melhor a
dimenso pessoal e existencial da vida moral. necessrio,
tambm, insistir mais sobre o fato que a expresso das
exigncias da lei natural inseparvel do esforo de toda a
comunidade humana para superar as tendncias egostas e
facciosas e desenvolver uma abordagem global da ecologia dos valores, sem a qual a vida humana corre o risco de perder sua integridade e seu sentido de responsabilidade pelo bem de
todos.
11. A idia da lei natural assume numerosos elementos que so
comuns s grandes sabedorias religiosas e filosficas da
humanidade. Por isso, no captulo primeiro, nosso documento
comea por recordar essas convergncias. Sem pretender ser exaustivo, ele indica que essas grandes sabedorias religiosas e
filosficas testemunham a existncia de um largo patrimnio
moral comum, que forma a base de todo dilogo sobre as
questes morais. Ainda mais, elas sugerem, de uma maneira ou
de outra, que esse patrimnio explicita uma mensagem tica
universal imanente natureza das coisas e que os homens so
capazes de decifrar. O documento recorda, em seguida, alguns
pontos essenciais para o desenvolvimento histrico da ideia da
lei natural e menciona algumas interpretaes modernas que
esto, parcialmente, na origem das dificuldades que nossos
contemporneos sentem diante desta noo. No captulo
segundo (A percepo dos valores morais comuns), nosso documento descreve como, a partir dos dados mais simples da
experincia moral, a pessoa humana colhe, de modo imediato,
certos bens morais fundamentais e formula, por consequncia,
os preceitos da lei natural. Estes no constituem um cdigo
completo de prescries intangveis, mas um princpio
permanente e normativo de inspirao a servio da vida moral
-
concreta da pessoa. O captulo terceiro (Os fundamentos da lei natural), passando da experincia comum teoria, aprofunda os fundamentos filosficos, metafsicos e religiosos
da lei natural. Para responder a algumas objees
contemporneas, precisa o papel da natureza no agir pessoal e
se interroga sobre a possibilidade de a natureza constituir uma
norma moral. O captulo quarto (A lei natural e o Estado) explicita o papel regulador dos preceitos da lei natural na vida
poltica. A doutrina da lei natural j possui coerncia e
validade no plano filosfico da razo comum a todos os
homens, mas o captulo quinto (Jesus Cristo, realizao da lei natural) mostra que ela adquire todo seu sentido no interior da histria da salvao: enviado pelo Pai, Jesus Cristo , com
efeito, pelo Esprito Santo, a plenitude de toda lei.
CAPTULO 1: CONVERGNCIAS
1.1. As sabedorias e as religies do mundo
12. Nas diversas culturas, os homens progressivamente
elaboraram e desenvolveram tradies de sabedoria, por meio
das quais eles exprimem e transmitem sua viso de mundo,
assim como sua percepo reflexa do lugar que o homem
ocupa na sociedade e no cosmo. Antes de toda teoritizao
conceitual, estas sabedorias, que so, muitas vezes, de natureza
religiosa, transmitem uma experincia que identifica o que
favorece ou o que impede a plena manifestao da vida pessoal
e do bom andamento da vida social. Elas constituem uma fonte
de capital cultural disponvel para a busca de uma sabedoria comum necessria para responder aos desafios ticos
contemporneos. Segundo a f crist, essas tradies de
sabedoria, apesar de seus limites e, por vezes, mesmo seus
erros, captam um reflexo da sabedoria divina que opera no
corao dos homens. Elas requerem ateno e respeito, e
podem ter valor de praeparatio evangelica.
A forma e o alcance dessas tradies podem variar
consideravelmente. Elas so testemunho da existncia de um
patrimnio de valores morais comuns a todos os homens, seja
qual for a maneira com que esses valores so justificados
dentro de uma viso particular de mundo. Por exemplo, a
regra de ouro (No faas a ningum o que no queres que te faam [Tb 4,15]) se encontra, de uma forma ou de outra, na maioria das tradies de sabedoria[7]. Alm disso, geralmente
elas esto de acordo em reconhecer que as grandes regras
ticas no somente se impem a um grupo humano
determinado, mas valem universalmente para cada indivduo e
para todos os povos. Enfim, muitas tradies reconhecem que
estes comportamentos morais universais so requeridos pela
prpria natureza do ser humano: eles exprimem a maneira pela
qual o homem deve se inserir, de modo criativo e harmonioso,
em uma ordem csmica ou metafsica, que a supere e d
sentido sua vida. De fato, essa ordem est impregnada por
uma sabedoria imanente, e portadora de uma mensagem moral
que os homens so capazes de decifrar.
13. Nas tradies hindustas, o mundo o cosmo, como tambm as sociedades humanas regido por uma ordem ou uma lei fundamental (dharma), que necessrio respeitar sob
pena de provocar graves desequilbrios. O dharma define,
ento, as obrigaes sociorreligiosas do homem. Em sua
especificidade, o ensinamento moral do hindusmo
compreendido luz das doutrinas fundamentais dos
Upanishads: a crena em um ciclo indefinido de
transmigraes (samsra), com a idia segundo a qual as aes boas ou ms cometidas durante a vida presente (karman)
influenciam as reencarnaes sucessivas. Essas doutrinas tm
importantes conseqncias sobre o comportamento em relao
aos outros: elas implicam um alto grau de bondade e de
tolerncia, o sentido da ao desinteressada em benefcio dos
outros, assim como a prtica da no violncia (ahims). As principais correntes do hindusmo distinguem dois corpos de
textos: ruti (aquilo que entendido, isto , a revelao), e smrti (aquilo que se recorda, isto , a tradio). As prescries ticas se encontram, sobretudo, na smrti, mais
particularmente, nos dharmastra (em que o mais importante so os mnava dharmastra ou leis de Manu, de 200-100 a.C., aproximadamente). Alm do princpio de base, segundo o
qual o costume imemorvel a lei transcendente aprovada pela escritura sagrada e pelos cdigos dos legisladores divinos;
em conseqncia, todo homem das trs principais classes, que
respeita o esprito supremo que est nele, deve sempre se
conformar com diligncia ao costume imemorvel[8], no qual se encontra uma prtica equivalente regra de ouro: Eu te direi qual a essncia do maior bem do ser humano. O homem
que pratica a religio (dharma) do no prejuzo (ahims) universal, adquire o maior Bem. Esse homem que domina as
trs paixes, a cobia, a clera e a avareza, renunciando-as
para entrar em relao com os seres, adquire o sucesso. () Esse homem que considera todas as criaturas como seu a si mesmo e os trata como seu prprio eu, depondo a vara punitiva e dominando completamente sua clera, garantir a
obteno da felicidade. () No far ao outro o que considera nocivo para si mesmo. Esta , em sntese, a regra da virtude.
() No fato de refutar e de dar, na abundncia e na infelicidade, no agradvel e no desagradvel, se eximir de
todas as conseqncias, considerando seu prprio eu[9]. Muitos preceitos da tradio hindu podem ser colocados em
paralelo com as exigncias do Declogo[10].
14. Geralmente, se define o budismo pelas quatro verdades nobres, ensinadas por Buda aps a sua iluminao: 1) a
realidade sofrimento e insatisfao; 2) a origem do
sofrimento o desejo; 2) o fim do sofrimento possvel (com
a extino do desejo); 4) existe um caminho para a cessao do
sofrimento. Esse caminho o nobre sentir ctuplo, que consiste na prtica da disciplina, da concentrao e da
sabedoria. No plano tico, as aes favorveis podem se
resumir nos cinco preceitos (la, sla): 1) no prejudicar os seres vivos nem tirar a vida; 2) no tomar o que no dado; 3)
no ter uma conduta sexual incorreta; 4) no usar palavras
falsas ou mentirosas; 5) no ingerir produtos intoxicantes, que
diminuam o domnio de si. O profundo altrusmo da tradio
budista, que se traduz em uma atitude deliberada de no
violncia, pela benevolncia amigvel e pela compaixo,
chega, assim, a regra de ouro.
15. A civilizao chinesa est profundamente marcada pelo
taosmo de Loz ou Lao-Tseu (sculo VI a.C). Segundo Lao-Tse, o Caminho ou Do o princpio primordial, imanente a
todo o universo. Este um princpio inapreensvel de mudana
permanente sob a ao de dois plos contrrios e
complementares, o yn e o yng. Compete ao homem abraar esse processo natural de transformao e se deixar levar pelo
fluxo do tempo, graas atitude de no agir (w-wi). A busca
da harmonia com a natureza, indissociavelmente material e
espiritual, est, portanto, no corao da tica taosta. Quanto a
Confcio (551-479 a.C), Mestre Kong, ele tenta, por ocasio de um perodo de crise profunda, restaurar a ordem por meio
do respeito aos ritos, fundado sobre a piedade filial que deve
ser o corao de toda vida social. As relaes sociais se
modelam, com efeito, pelas relaes familiares. A harmonia
obtida por uma tica da justa medida, na qual a relao
ritualizada (o l), que insere o ser humano na ordem natural, a medida de todas as coisas. O ideal a ser buscado o ren,
virtude perfeita da humanidade, feita de domnio de si e de
benevolncia para com os outros. Mansido (sh), no a palavra-chave? Aquilo que tu no queres que te faam a ti, no
o faa aos outros[11]. A prtica dessa regra indica o caminho do Cu (Tin Do).
16. Nas tradies africanas, a realidade fundamental a
prpria vida. Ela o bem mais precioso, e o ideal do homem
consiste no somente em viver na busca de satisfazer suas
necessidades bsicas at a velhice, mas, sobretudo, em
permanecer, mesmo aps a morte, uma fora vital
continuamente reforada e vivificada na e para a sua
descendncia. A vida , com efeito, uma experincia
dramtica. O homem, microcosmo no seio do macrocosmo,
vive intensamente o drama da tenso entre a vida e a morte. A
misso que lhe compete, de assegurar a vitria da vida sobre a
morte, orienta e determina seu agir tico. , assim, que deve
identificar, em um horizonte tico consequente, os aliados da
vida, revert-los em seu benefcio, e assegurar a prpria
sobrevivncia, que , ao mesmo tempo, a vitria da vida. Tal
o significado profundo das religies tradicionais africanas. A
tica africana se revela, assim, como uma tica antropocntrica
e vital: os atos considerados capazes de favorecer o nascimento
da vida, de conserv-la, de proteg-la, de desabroch-la ou de
aumentar o potencial vital da comunidade, so, de fato,
considerados bons; todo ato considerado prejudicial vida dos
indivduos ou comunidade passa a ser mau. As religies
tradicionais africanas aparecem, dessa forma, como
essencialmente antropocntricas; mas uma observao atenta
-
unida reflexo mostra que nem o lugar reconhecido ao
homem vivo nem o culto aos ancestrais constituem algo
fechado. As religies tradicionais africanas atingem seu vrtice
somente em Deus, fonte da vida, criador de tudo o que existe.
17. O Isl se compreende como a restaurao da religio
natural original. Ele v, em Maom, o ltimo profeta enviado
por Deus para recolocar definitivamente os homens no
caminho direito. Mas Maom foi precedido por outros: No h uma comunidade onde no tenha passado um
admoestador[12]. O Isl se atribui, portanto, uma vocao universal e se dirige a todos os homens, que so considerados
naturalmente muulmanos. A lei islmica, indissociavelmente comunitria, moral e religiosa,
compreendida como uma lei dada diretamente por Deus. A
tica muulmana , portanto, fundamentalmente uma moral da
obedincia. Fazer o bem obedecer aos mandamentos; fazer o
mal desobedec-los. A razo humana intervm para
reconhecer o carter revelado da lei e para extrair as
implicaes jurdicas concretas. Certamente, no sculo IX, a
escola moutacilita proclamou a idia segundo a qual o bem e o mal esto nas coisas, isto , que alguns comportamentos so bons ou maus em si mesmos, anteriormente lei divina que os
aprova ou os probe. Os moutazilitas pensam, portanto, que o homem pode, por sua razo, conhecer o que bom ou mau.
Segundo eles, o homem sabe espontaneamente que a injustia
ou a mentira so ms e que obrigatrio restituir um
emprstimo, de se distanciar de em dano ou de se mostrar
reconhecido para com seus benfeitores, dos quais o primeiro
Deus. Mas os acharitas, que dominam na ortodoxia sunita, sustentam uma teoria contrria. Partidrios de um
ocasionalismo, que no reconhece alguma consistncia na
natureza, eles pensam que s a revelao positiva de Deus
define o bem e o mal, o justo e o injusto. Entre as prescries
desta lei divina positiva, muitos recuperam os grandes
elementos do patrimnio moral da humanidade e podem ser
colocados em relao com o Declogo[13].
1.2. As origens greco-romanas da lei natural
18. A ideia de que existe um direito natural anterior s
determinaes jurdicas positivas j se encontra na cultura
grega clssica, com a figura exemplar de Antgona, a filha de
dipo. Seus dois irmos, Etocles e Polinice, se confrontam
por causa do poder e matam um ao outro. Polinice, o rebelde,
foi condenado a ficar sem sepultura e ser queimado na
fogueira. Mas Antgona, para satisfazer aos deveres da piedade
para com seu irmo morto, apela contra a proibio de
sepultura feita pelo rei Creonte, recorrendo s leis no escritas e imutveis.
Creonte: E, assim, como tu ousas violar as minhas leis? Antgona: Sim, porque no foi Zeus que as proclamou
Nem a Justia que habita com os deuses de baixo;
Nem um nem a outra as estabeleceram entre os homens.
Eu no penso que os teus decretos sejam to fortes
Para que, tu, mortal, possas ir alm
Das leis no escritas e imutveis dos deuses.
Eles no existem desde hoje, nem desde ontem, mas sempre;
Pessoa alguma sabe quando eles apareceram.
Eu no devia, por temer as vontades de um homem,
Arriscar que os deuses me punissem[14].
19. Plato e Aristteles representam a distino feita pelos
sofistas entre as leis que tm sua origem na conveno, isto ,
uma pura deciso positiva (thesis), e as que so vlidas por natureza. As primeiras no so nem eternas nem vlidas de uma maneira geral, tampouco obrigam a todos. As segundas
obrigam a todos, sempre e em toda parte[15]. Alguns sofistas,
como o Clicles de Grgias de Plato, recorriam a essa
distino para contestar a legitimidade das leis institudas pelas
cidades humanas. A essas leis, eles opem sua ideia, estreita e
errnea, da natureza, reduzida s componente psquico.
Assim, contra a igualdade poltica e jurdica dos cidados na
sociedade, eles sustentavam o que lhes parecia como a mais
evidente das leis naturais: o mais forte deve prevalecer sobre o mais fraco[16].
20. Nada disto se encontra entre Plato e Aristteles. Eles no
opunham direito natural e leis positivas da sociedade. Eles
estavam convictos de que as leis da sociedade so geralmente
boas e constituem a prtica, mais ou menos bem-sucedida, de
um direito natural conforme a natureza das coisas. Para Plato,
o direito natural um direito ideal, uma norma para os
legisladores e cidados, uma regra que permite basear e avaliar
as leis positivas[17]. Para Aristteles, esta norma suprema da
moralidade corresponde realizao da forma essencial da
natureza. moral o que natural. O direito natural imutvel;
o direito positivo muda conforme os povos e as diferentes
pocas. Mas o direito natural no se coloca alm do direito
positivo. Ele se encarna no direito positivo, que a aplicao
da ideia geral da justia vida social na sua variedade.
21. No estoicismo, a lei natural torna-se o conceito-chave de
uma tica universalista. bom e deve ser realizado o que
corresponde natureza, compreendida em um sentido ao
mesmo tempo psquico-biolgico e racional. Todo homem,
qualquer que seja a nao qual pertena, deve se integrar
como uma parte no todo do universo. Ele deve viver segundo a
natureza[18]. Esse imperativo pressupe que exista uma lei
eterna, um Lgos divino, que est presente tanto no cosmo, que
ela impregna de racionalidade, quanto na razo humana.
Assim, para Ccero, a lei a razo suprema inserida na natureza, que nos manda fazer o que necessrio e probe o
contrrio[19]. Natureza e razo constituem as duas razes do nosso conhecimento da lei tica fundamental, que de origem
divina.
1.3. O ensinamento da Sagrada Escritura
22. O dom da Lei no Sinai, da qual as dez palavras constituem o centro, um elemento essencial da experincia
religiosa de Israel. Essa Lei da aliana comporta preceitos
ticos fundamentais. Eles definem o modo como o povo eleito
deve responder escolha de Deus por meio de uma vida santa:
Fala a toda a comunidade dos filhos de Israel. Tu lhes dirs: Sede santos, porque eu, Iahweh vosso Deus, sou santo (Lv 19,2). Mas esses comportamentos ticos tambm so vlidos
para os outros povos, de modo que Deus pede contas s naes
estrangeiras que violam a justia e o direito[20]. De fato, Deus
j havia concludo uma aliana com a totalidade do gnero
humano na pessoa de No, que implicava, em particular, o
respeito vida (Gn 9)[21]. Mais ainda, a prpria criao
aparece como o ato pelo qual Deus estrutura o conjunto do
universo, dando-lha uma lei. Louvem o nome de Iahweh, pois ele mandou e foram criados; fixou-os eternamente, para
sempre, deu-lhes uma lei que jamais passar (Sl 148,5-6). Esta obedincia das criaturas lei de Deus um modelo para
os homens.
23. Juntamente com os textos que se referem histria da
salvao, com os grandes temas teolgicos da eleio, da
promessa, da Lei e da aliana, a Bblia contm, tambm, uma
literatura de sabedoria, que no trata diretamente da histria
nacional de Israel, mas que se interessa pelo lugar do homem
no mundo. Ela desenvolve a convico que h uma maneira
correta, sbia, de fazer as coisas e de conduzir a vida. O homem deve se aplicar em busc-la e, em seguida, se esforar
por coloc-la em prtica. Essa sabedoria no se encontra nem
na histria nem na natureza, e tampouco na vida de todos os
dias[22]. Nessa literatura, a sabedoria , muitas vezes,
apresentada com uma perfeio divina, s vezes
hipostatizada. Ela se manifesta de maneira surpreendente na criao, onde ela o artfice (Sb 7,21). A harmonia que reina entre as criaturas d testemunho dela. Dessa sabedoria que
vem de Deus, o homem torna-se participante de mltiplas
formas. Tal participao um dom de Deus, que necessrio
pedir na orao: Por isso, supliquei e inteligncia me foi dada; invoquei, e o esprito de Sabedoria veio a mim (Sb 7,7). Ela , ainda, o fruto da obedincia Lei revelada. Com efeito, a Tor
como a encarnao da sabedoria. Desejas a sabedoria? Guarda os mandamentos e o Senhor dar-ta- em profuso;
porque o temor do Senhor sabedoria e instruo, e seu agrado
f e mansido (Eclo 1,26-27). Mas a sabedoria , tambm, o resultado de uma observao sagaz da natureza e dos costumes
humanos com o objetivo de descobrir sua inteligibilidade
imanente e seu valor exemplar[23].
24. Na plenitude dos tempos, Jesus Cristo anunciou a chegada
do Reino de Deus como manifestao do amor misericordioso
de Deus, que se torna presente entre os seres humanos atravs
de sua prpria pessoa, e apela para que busquem a converso e
deem uma resposta livre de amor. Essa pregao no sem
consequncia para a tica, para a maneira de construir o mundo
e as relaes humanas. Em seu ensinamento moral, do qual o
sermo da montanha uma sntese admirvel, Jesus retoma,
-
por sua conta, a regra de ouro: Tudo aquilo, portanto, que quereis que os homens vos faam, fazei-o vs a eles, pois esta
a Lei e os Profetas (Mt 7,12)[24]. Este preceito positivo completa a formulao negativa da mesma regra do Antigo
Testamento: No faas a ningum o que no queres que te faam (Tb 4,15)[25].
25. No incio da carta aos Romanos, o apstolo Paulo, com o
intuito de manifestar a necessidade universal de salvao
trazida por Cristo, descreve a situao religiosa e moral
comum a todos os homens. Ele afirma a possibilidade de um
conhecimento natural de Deus: Porque o que se pode conhecer de Deus manifesto entre eles, pois Deus lho
revelou. Sua realidade invisvel seu eterno poder e sua divindade tornou-se inteligvel, desde a criao do mundo, atravs das criaturas, de sorte que no tm desculpa (Rm 1,19-20)[26]. Mas esse conhecimento se perverteu em idolatria.
Colocando judeus e pagos sob o mesmo plano, so Paulo
afirma a existncia de uma lei moral no escrita, mas que est
inscrita nos coraes[27]. Ela permite discernir por si mesmo o
bem e o mal. Quando ento os gentios, no tendo Lei, fazem naturalmente o que prescrito pela Lei, eles, no tendo Lei,
para si mesmos so Lei; eles mostram a obra da lei gravada em
seus coraes, dando disto testemunho sua conscincia e seus
pensamentos que alternadamente se acusam ou defendem (Rm 2,14-15). No entanto, o conhecimento da lei no suficiente
por si para conduzir uma vida justa[28]. Estes textos de So
Paulo tiveram uma influncia determinante na reflexo crist
relativa lei natural.
1.4. Os desenvolvimentos da tradio crist
26. Para os Padres da Igreja, o sequi naturam e a sequela
Christi no se opem. Ao contrrio, geralmente eles adotam a
ideia estoica segundo a qual a natureza e a razo nos indicam
quais so os nossos deveres morais. Segui-los seguir o Logos
pessoal, o Verbo de Deus. A doutrina da lei natural fornece,
com efeito, uma base para completar a moral bblica. Ela
permite, alm disso, explicar por que os pagos,
independentemente da revelao bblica, possuem uma
concepo moral positiva. Ela lhes indicada pela natureza e
corresponde ao ensinamento da Revelao: De Deus so a lei da natureza e a lei da revelao, que formam um todo[29]. Todavia, os Padres da Igreja no adotam pura e simplesmente
a doutrina estoica. Eles a modificam e a desenvolvem. De uma
parte, a antropologia de inspirao bblica, que v o homem
como a imago Dei, cuja plena verdade manifestada em
Cristo, probe de reduzir a pessoa humana a um simples
elemento do cosmo: chamada comunho com o Deus vivo,
ela transcende o cosmo, mesmo que esteja integrado nele. De
outra parte, a harmonia da natureza e da razo no repousa
mais sobre a viso imanentista de um cosmo pantesta, mas
sobre a comum referncia a uma sabedoria transcendente do
Criador. Comportar-se de acordo com a razo significa seguir
as orientaes que o Cristo, como Logos divino, colocou,
graas aos logoi spermatikoi, na razo humana. Agir contra a
razo uma falta contra estas orientaes. Muito significativa
a definio de santo Agostinho: A lei eterna a razo humana ou a vontade de Deus, ordenando conservar a ordem
natural e proibindo de turv-la[30]. Mais precisamente, para santo Agostinho, as normas de uma vida reta e justa esto
expressas no Verbo de Deus, que as imprime depois no
corao do homem maneira de um timbre, que do anel passa cera, mas sem deixar de ser anel[31]. Alm disso, para os Padres, a lei natural est, daqui em diante, compreendida no
quadro de uma histria de salvao que conduz a distinguir
diferentes estados da natureza (natureza original, natureza
decada, natureza restaurada), nas quais a natureza se realiza de
modos diversos. Essa doutrina patrstica da lei natural foi
transmitida Idade Mdia, assim como a concepo, muito
prxima, de direito das gentes (ius gentium), segundo a qual existem, fora do direito romano (ius civile), princpios
universais de direto, que regulam as relaes entre os povos e
so obrigatrios para todos[32].
27. Na Idade Mdia, a doutrina da lei natural chega a certa
maturidade e assume uma forma clssica, que constitui o substrato de todas as discusses ulteriores. Ela se caracteriza
por quatro traos. Em primeiro lugar, de acordo com o
pensamento escolstico, que busca recolher a verdade onde
quer que se encontre, ela assume as reflexes anteriores sobre
a lei natural, pags ou crists, e tenta propor uma sntese. Em
segundo lugar, de acordo com a natureza sistemtica do
pensamento escolstico, ela situa a lei natural em um quadro
metafsico e teolgico geral, compreendendo-a como uma
participao da criatura racional na lei divina eterna, graas a
qual ela entra de modo consciente e livre nos desgnios da
Providncia. Ela no um conjunto fechado e completo de
normas morais, mas uma fonte de inspirao constante,
presente e atuante nas diferentes etapas da economia da
salvao. Em terceiro lugar, com a tomada de conscincia da
densidade prpria da natureza, que em parte est ligada
redescoberta do pensamento de Aristteles, a doutrina
escolstica da lei natural considera a ordem tica e poltica
como uma ordem racional, obra da inteligncia humana. Ele a
define como um espao de autonomia, uma distino sem
separao, em relao ordem da revelao religiosa[33].
Enfim, aos olhos dos telogos e dos juristas escolsticos, a lei
natural constitui um ponto de referncia e um critrio luz da
qual eles avaliam a legitimidade das leis positivas e dos
costumes particulares.
1.5. Evolues ulteriores
28. A histria moderna da lei natural se apresenta, por certos
aspectos, como um desenvolvimento legtimo do ensinamento
da escolstica medieval em um contexto cultural mais
complexo, marcado, de forma particular, por um sentido mais
vivo da subjetividade moral. Entre esses desenvolvimentos,
assinalamos a obra dos telogos espanhis do sculo XVI, que,
semelhana do dominicano Francisco de Vitoria, recorreram
lei natural para contestar a ideologia imperialista de alguns
Estados cristos da Europa e defender os direitos dos povos
no cristos da Amrica. Com efeito, esses direitos so
inerentes natureza humana e no dependem da situao
concreta em face da f crist. A idia da lei natural permitiu,
tambm, aos telogos espanhis colocar as bases de um direito
internacional, isto , de uma norma universal capaz de reger as
relaes de povos e dos Estados entre si.
29. Mas, por outros aspectos, a ideia da lei natural tomou, na
poca moderna, orientaes e formas que contribuem a torn-
la dificilmente aceitvel hoje. Durante os ltimos sculos da
Idade Mdia, desenvolveu-se uma corrente voluntarista na
escolstica, cuja hegemonia cultural modificou profundamente
a noo da lei natural. O voluntarismo se prope a valorizar a
transcendncia do sujeito livre na relao a todos os
condicionamentos. Contra o naturalismo, que tendia a sujeitar
Deus s leis da natureza, ele sublinha, de modo unilateral, a
absoluta liberdade de Deus, com o risco de comprometer a sua
sabedoria e de tornar arbitrrias as suas decises. Da mesma
maneira, contra o intelectualismo, suspeito de sujeitar a pessoa
humana ordem do mundo, ele exalta uma liberdade de
indiferena, entendida como puro poder de escolher os
contrrios, com o risco de separar a pessoa de suas inclinaes
naturais e do bem objetivo[34].
30. As conseqncias do voluntarismo na doutrina da lei
natural so numerosas. Antes de tudo, mesmo que para Toms
de Aquino a lei fosse entendida como obra da razo e
expresso de uma sabedoria, o voluntarismo leva a ligar a lei
s prpria vontade, e a uma vontade separada de sua
ordenao intrnseca ao bem. A partir da, toda a fora da lei
reside somente na vontade do legislador. A lei , assim,
espoliada de sua inteligibilidade intrnseca. Nessas condies,
a moral se reduz obedincia aos mandamentos, que
manifestam a vontade do legislador. Thomas Hobbes chega a
declarar: a autoridade e no a verdade que faz a lei (auctoritas, non veritas, facit legem)[35]. O homem moderno,
apaixonada pela autonomia, no poderia deixar de se insurgir
contra tal viso da lei. Depois, sob o pretexto de preservar a
absoluta soberania de Deus sobre a natureza, o voluntarismo a
priva de toda inteligibilidade interna. A tese da potentia Dei
absoluta, segundo a qual Deus poderia agir independentemente
de sua sabedoria e de sua bondade, relativiza todas as
estruturas inteligveis existentes e fragiliza o conhecimento
natural que o homem pode ter. A natureza cessa de ser um
critrio para conhecer a sbia vontade de Deus: o homem s
pode receber esse conhecimento pela revelao.
31. Alm disso, vrios fatores conduziram a noo de lei
natural secularizao. Entre eles, pode-se mencionar o
divrcio crescente entre a f e a razo, que caracteriza o final
da Idade Mdia, ou, ainda, alguns aspectos da Reforma
[36] ; mas, sobretudo, a vontade de superar os violentos
conflitos religiosos que ensangentaram a Europa no alvorecer
-
dos tempos modernos. Acrescenta-se o querer fundar a unidade
poltica das comunidades humanas colocando em parnteses a
confisso religiosa. Da em diante, a doutrina da lei natural
prescinde de toda revelao religiosa particular e, portanto, de
toda teologia confessional. Ela pretende fundar-se unicamente
sobre as luzes da razo comum a todos os homens e se
apresenta como a norma ltima no campo secular.
32. Alm disso, o racionalismo moderno afirma a existncia de
uma ordem absoluta e normativa das essncias inteligveis
acessvel razo e relativiza a referncia a Deus como
fundamento ltimo da lei natural. A ordem necessria, eterna e
imutvel das essncias deve ser certamente atualizada pelo
Criador, mas, cr-se, j possui em si mesma sua coerncia e
sua racionalidade. A referncia a Deus deve, portanto, ser
opcional. A lei natural impor-se-ia a todos mesmo se Deus no existisse (etsi Deus non daretur)[37].
33. O modelo racionalista moderno de lei natural se
caracteriza: 1) pela crena essencialista em uma natureza
humana imutvel e a-histrica, da qual a razo pode
perfeitamente colher a definio e as propriedades essenciais;
2) por abstrair-se da situao concreta das pessoas humanas na
histria da salvao, marcada pelo pecado e pela graa, cuja
influncia sobre o conhecimento e sobre a prtica da lei natural
, portanto, decisiva; 3) pela ideia de que possvel razo
deduzir a priori os preceitos da lei natural a partir da definio
de essncia de ser humano; 4) pela extenso mxima dada aos
preceitos assim deduzidos, de sorte que a lei natural aparea
como um cdigo de leis j prontas, que regula a quase
totalidade dos comportamentos. Essa tendncia a estender o
campo das determinaes da lei natural foi a origem de uma
grave crise, quando, em particular com o progresso das
cincias humanas, o pensamento ocidental tomou maior
conscincia da historicidade das instituies humanas e da
relatividade cultural de numerosos comportamentos, que se
justificavam, s vezes, apelando evidncia da lei natural.
Esse deslocamento entre uma teoria abstrata maximalista e a
complexidade dos dados empricos explica, em parte, a
desafeio pela prpria noo da lei natural. Para que a noo
de lei natural possa servir elaborao de uma tica universal
em uma sociedade secularizada e pluralista como a nossa,
necessrio evitar, portanto, apresent-la sob a forma rgida que
assumiu, em particular, no racionalismo moderno.
1.6. O magistrio da Igreja e a lei natural
34. Antes do sculo XIII, quando a distino entre a ordem
natural e a ordem sobrenatural no estava claramente
elaborada, a lei natural era geralmente assimilada pela moral
crist. Assim, o decreto de Graciano, que forneceu a norma
cannica bsica no sculo XII, inicia-se assim: A lei natural o que est contido na Lei e no Evangelho. Depois, ele identifica o contedo da lei natural com a regra de ouro e
precisa que as leis divinas correspondem natureza[38]. Os
Padres da Igreja recorreram, portanto, lei natural e Sagrada
Escritura para fundamentar o comportamento moral dos
cristos; mas o Magistrio da Igreja, nos primeiros tempos,
teve pouco a intervir para resolver as disputas sobre o
contedo da lei moral.
Quando o Magistrio da Igreja foi impelido no somente a
resolver discusses morais particulares, mas tambm a
justificar sua posio ante um mundo secularizado, ele apelou
mais explicitamente noo de lei natural. no sculo XIX,
especialmente sob o pontificado de Leo XIII, que o recurso
lei natural se impe nos atos do Magistrio. A apresentao
mais clara se encontra na Encclica Libertas praestantissimum,
de 1888. Leo XIII se refere lei natural para identificar a
fonte da autoridade civil e fixar seus limites. Ele recorda com
veemncia que necessrio obedecer antes a Deus do que aos
homens, quando as autoridades civis mandam ou reconhecem
alguma coisa que contrria lei divina ou lei natural. Mas
ele tambm recorre lei natural para proteger a propriedade
privada contra o socialismo ou, ainda, para defender o direito
dos trabalhadores de buscar, atravs do trabalho, o que
necessrio para o sustento da prpria vida. Nessa mesma linha,
Joo XXIII, na Encclica Pacem in terris, de 1963, se refere
lei natural para fundamentar os direitos e deveres do homem.
Com Pio XI, na Encclica Casti connubii, de 1930, e Paulo VI,
na Encclica Humanae vitae, de 1968, a lei natural se revela
como um critrio decisivo nas questes relativas moral
conjugal. Certamente, a lei natural de direito acessvel
razo humana, comum aos crentes e aos no crentes, e a Igreja
no tem exclusividade; contudo, como a Revelao assume as
exigncias da lei natural, o Magistrio da Igreja se constitui em
sua garantia e em se intrprete[39]. O Catecismo da Igreja
Catlica (1992) e a Encclica Veritatis splendor (1993)
asseguram, assim, um lugar determinante para a lei natural na
exposio sobre a moral crist[40].
35. Hoje, a Igreja Catlica invoca a lei natural em quatro
contextos principais. Em primeiro lugar, em face da
propagao de uma cultura que limita a racionalidade s
cincias positivas e abandona a vida moral ao relativismo, ela
insiste sobre a capacidade natural que os homens tm de
compreender por sua razo a mensagem tica contida no ser[41] e conhecer em suas grandes linhas as normas fundamentais de um agir justo conforme a sua natureza e a sua
dignidade. A lei natural responde, assim, exigncia de
fundamentar na razo os direitos do homem [42] e torna
possvel um dilogo intercultural e inter-religioso, capaz de
favorecer a paz universal e de evitar o choque de civilizaes. Em segundo lugar, diante do individualismo relativista, que considera cada indivduo fonte de seus prprios
valores e a sociedade, resultado de puro contrato feito entre
indivduos, que escolhem constituir por eles mesmos todas as
normas, ela recorda o carter no convencional, mas natural e
objetivo, das normas fundamentais que regem a vida social e
poltica. Em particular, a forma democrtica de governo est
intrinsecamente ligada aos valores ticos estveis, que tm sua
fonte nas exigncias da lei natural e que no dependem,
portanto, das flutuaes do consenso de uma maioria
aritmtica. Em terceiro lugar, ante um laicismo agressivo, que
quer excluir as pessoas de f do debate pblico, a Igreja mostra
que as intervenes dos cristos na vida pblica, sobre temas
que tocam a lei natural (defesa dos direitos dos oprimidos,
justia nas relaes internacionais, defesa da vida e da famlia,
liberdade religiosa e liberdade de educao), no so, de per se, de natureza confessional, mas revelam o cuidado que cada
cidado deve ter pelo bem comum da sociedade. Em quarto
lugar, face as ameaas de abuso de poder, e mesmo do
totalitarismo, que encobre o positivismo jurdico e que
algumas ideologias veiculam, a Igreja recorda que as leis civis
no obrigam conscincia quando esto em contradio com a
lei natural, e ela prope o reconhecimento do direito objeo
de conscincia, como tambm a desobedincia em nome da
obedincia a uma lei maior[43]. A referncia lei natural,
longe de engendrar o conformismo, garante a liberdade pessoal
e defende os marginalizados e aqueles que so oprimidos pelas
estruturas sociais esquecidas do bem comum.
CAPTULO 2: A PERCEPO DOS VALORES
MORAIS COMUNS
36. O exame das grandes tradies de sabedoria moral, feito no
captulo primeiro, atesta que alguns tipos de comportamentos
humanos so reconhecidos, na maior parte das culturas, como
expresso de uma certa excelncia na maneira de o ser humano
viver e realizar a sua humanidade: atos de coragem, pacincia
nas provas e dificuldades da vida, compaixo pelos fracos,
moderao no uso dos bens materiais, atitude responsvel face
ao meio ambiente, dedicao ao bem comum... Estes
comportamentos ticos definem as grandes linhas de um ideal
propriamente moral de uma vida segundo a natureza, isto , conforme o ser profundo do sujeito humano. Alm disso,
alguns comportamentos so universalmente percebidos como
objetos de reprovao: assassinato, furto, mentira, clera,
inveja, avareza Eles se manifestam como atitudes que atentam contra a dignidade da pessoa humana e as justas
exigncias da vida em sociedade. justo ver, por meio destes
consensos, uma manifestao do que , alm da diversidade
das culturas, o humano no ser humano, isto , a natureza humana. Mas, ao mesmo tempo, se deve constatar que esse acordo sobre a qualidade moral de alguns comportamentos
coexiste com uma grande variedade de teorias explicativas.
Ainda que se trate de doutrinas fundamentais dos Upanishads
para o Hindusmo ou das quatro verdades nobres para o Budismo, ou do Do de Lao-Tse ou a natureza dos estoicos, cada sabedoria ou cada sistema filosfico compreende o agir
moral a partir de um quadro explicativo geral, que vem
legitimar a distino entre o que bem e o que mal. Diante
-
de uma diversidade de justificaes, que torna difcil o dilogo
e o fundamento das normas morais, h o que fazer.
37. Portanto, sejam quais forem as justificativas tericas do
conceito de lei natural, possvel descobrir os dados imediatos
da conscincia, dos quais se quer se dar conta. O objeto do
presente captulo , precisamente, mostrar como esto ligados
os valores morais comuns, que constituem a lei natural. E, em
seguida, veremos como o conceito de lei natural se apoia sobre
um quadro explicativo, que fundamenta e legitima os valores
morais de uma forma capaz a ser compartilhada por muitos.
Para se fazer isso, a apresentao da lei natural por santo
Toms de Aquino aparece particularmente pertinente, entre
outros, porque ele situa a lei natural dentro de uma moral que
sustenta a dignidade da pessoa humana e reconhece sua
capacidade de discernimento[44].
2.1. O papel da sociedade e da cultura
38. S progressivamente que a pessoa humana acede
experincia moral e se torna capaz de dar a si mesma os
preceitos que deve guiar o seu agir. Ela a atinge na medida em
que, desde o seu nascimento, est inserida em uma rede de
relaes humanas, comeando pela famlia, que lhe permite
tomar pouco a pouco conscincia dela mesma e da realidade
que a cerca. Isto acontece, em particular, com a aprendizagem
de uma lngua a lngua materna pela qual aprende a dar nome s coisas e possibilita tornar-se um sujeito consciente de
si mesmo. Orientada pelos outros que a cercam, impregnada da
cultura na qual est imersa, a pessoa percebe certos modos de
se comportar e de pensar como valores a buscar, leis a
observar, exemplos a imitar e vises do mundo a acolher. O
contexto social e cultural exerce, portanto, um papel decisivo
na educao dos valores morais. Contudo, no se podem opor
esses condicionamentos liberdade humana. Ao contrrio, eles
a tornam possvel, pois que atravs deles que a pessoa pode
chegar experincia moral que a permite revisar,
eventualmente, certas evidncias que ela interiorizou no curso de sua aprendizagem moral. De outra parte, no contexto
de globalizao atual, as sociedades e as prprias culturas
devem praticar inevitavelmente um dilogo e uma troca
recproca sincera, fundadas sobre a corresponsabilidade de
todos perante o bem comum do planeta: necessrio deixar de
lado os interesses particulares para concordar com os valores
morais que todos so conclamados a partilhar.
2.2 A experincia moral: necessrio fazer o bem
39. Todo ser humano, que chega conscincia e
responsabilidade, faz a experincia de um apelo interior de
cumprir o bem. Ele descobre que , fundamentalmente, um ser
moral, capaz de perceber e de exprimir a interpelao que,
como j foi visto, se encontra no interior de todas as culturas:
necessrio fazer o bem e evitar o mal. sobre esse preceito que se fundamentam todos os outros preceitos da lei
natural[45]. Esse primeiro preceito conhecido naturalmente,
imediatamente, pela razo prtica, assim como o princpio da
no contradio (a inteligncia no pode, simultaneamente e
sob o mesmo aspecto, afirmar e negar algo de um sujeito), que
est na base de todo o raciocnio especulativo, e apreendido
intuitivamente, naturalmente, pela razo terica, quando o
sujeito compreende o sentido dos termos empregados.
Tradicionalmente, esse conhecimento do primeiro princpio da
vida moral atribudo a uma disposio intelectual inata, que
se chama de sindrese[46].
40. Com esse princpio, ns nos situamos imediatamente no
plano da moralidade. O bem que assim se impe pessoa ,
com efeito, o bem moral, isto , um comportamento que,
superando as categorias do til, caminha no sentido da
realizao autntica deste ser, ao mesmo tempo uno e
diversificado, que a pessoa humana. A atividade humana
irredutvel a uma mera questo de adaptao ao ecossistema: ser humano significa existir e se situar dentro de um quadro
mais amplo, que define um sentido, valores e
responsabilidades. Na busca do bem moral, a pessoa contribui
ao aperfeioamento de sua natureza, indo alm dos impulsos
do instinto ou da busca de um prazer particular. Esse bem d
testemunho para si mesmo e compreendido a partir de si
mesmo[47].
41. O bem moral corresponde ao desejo profundo da pessoa
humana, que como todo o ser tende espontaneamente,
naturalmente, para o que a realiza plenamente, para o que a
permite atingir a perfeio que lhe prpria, a felicidade.
Infelizmente, o sujeito sempre pode se deixar arrastar pelos
desejos particulares e escolher bens ou fazer atos que vo de
encontro ao bem moral que ele reconhece. Ele pode negar se
superar. o preo de uma liberdade limitada em si mesma e
enfraquecida pelo pecado; uma liberdade que encontra
somente bens particulares, nenhum capaz de satisfazer
plenamente o corao do homem. Diz respeito razo de o
sujeito examinar se esses bens particulares possam se integrar
na realizao autntica da pessoa: neste caso, eles sero
julgados moralmente bons e, ao contrrio, moralmente maus.
42. Esta ltima afirmao capital. Ela fundamenta a
possibilidade de um dilogo com pessoas pertencentes a outros
horizontes culturais ou religiosos. Ela valoriza a eminente
dignidade de toda pessoa humana ao sublinhar sua aptido
natural a conhecer o bem moral que deve cumprir. Como toda
criatura, a pessoa humana se define por um feixe de
dinamismos e de finalidades, que anterior s escolhas livres
da vontade. Mas, diferentemente dos seres que no so dotados
de razo, ela capaz de conhecer e de interiorizar tais
finalidades e, portanto, de avaliar, em funo delas, o que
bom ou mau para si. Assim, ela reconhece a lei eterna, isto , o
plano de Deus para a criao, e participa da providncia de
Deus de uma maneira particularmente excelente, guiando a si
mesma e guiando os outros[48]. Esta insistncia sobre a
dignidade do sujeito moral e sobre a sua autonomia relativa se
enraza no reconhecimento da autonomia das realidades
criadas e se torna um dado fundamental da cultura
contempornea[49].
43. A obrigao moral que o sujeito percebe no vem,
portanto, de uma lei que lhe seria exterior (heteronomia pura),
mas se afirma a partir de si mesma. De fato, como indica o
axioma que havamos invocado necessrio fazer o bem e evitar o mal , o bem moral que a razo determina se impe ao sujeito. Ele deve ser cumprido. Ele se reveste de um carter de obrigao e de lei. Mas aqui o termo lei no indica as leis cientficas, que se limitam a descrever as constantes
fatuais do mundo fsico ou social, nem um imperativo imposto
arbitrariamente de fora do sujeito moral. Aqui a lei designa
uma orientao da razo prtica, que indica ao sujeito moral
qual tipo de agir est conforme ao dinamismo inato e
necessrio de seu ser, que tende a sua plena realizao. Essa lei
normativa em virtude de uma exigncia interna do esprito.
Ela brota do corao mesmo de nosso ser como um impulso
realizao e superao de si. No se trata, portanto, de se
submeter lei de outro, mas de acolher a lei de seu prprio ser.
2.3. A descoberta dos preceitos da lei natural: universalidade
da lei natural
44. Uma vez posta a afirmao bsica, que introduz na ordem
moral necessrio fazer o bem e evitar o mal , vejamos como se opera, no sujeito, o reconhecimento das leis
fundamentais que devem governar o agir humano. Tal
reconhecimento no consiste em uma considerao abstrata da
natureza humana nem do esforo de conceitualizao, que
depois ser o objeto da teorizao filosfica e teolgica. A
percepo dos bens morais fundamentais imediata, vital,
fundada na dimenso conatural do esprito com os valores, e
ela, tambm, empenha tanto a afetividade quanto a
inteligncia, tanto o corao quanto o esprito. uma aquisio
frequentemente imperfeita, ainda obscura e crepuscular, mas
que tem a profundidade do imediato. Trata-se aqui dos dados
da experincia o mais simples e o mais comum , que esto implcitos no agir concreto das pessoas.
45. Na busca do bem moral, a pessoa humana se pe escuta
do que ela e toma conscincia das inclinaes fundamentais
de sua natureza, que no so outra coisa do que simples
desejos cegos do desejo. Percebendo que os bens para os quais
ela tende por natureza so necessrios a sua realizao moral,
ela formula a si mesma, sob forma de injunes prticas, o
dever moral a ser colocado em prtica em sua vida. Ela
exprime para si mesma um certo nmero de preceitos muito
gerais, que compartilha com todos os seres humanos e que
constituem o contedo do que se chama de lei natural.
46. Tradicionalmente, distinguem-se trs grandes conjuntos de
dinamismos naturais, que esto presentes na pessoa
humana[50]. O primeiro, que comum a todo ser substancial,
-
compreende essencialmente a inclinao a conservar e a
desenvolver a sua existncia. O segundo, que comum a todos
os seres vivos, compreende a inclinao a se reproduzir para
perpetuar a espcie. O terceiro, que prprio como ser
racional, comporta a inclinao a conhecer a verdade sobre
Deus assim como para viver em sociedade. A partir destas
inclinaes se podem formular os preceitos primeiros da lei
natural, conhecidos naturalmente. Esses preceitos so muito
gerais, mas formam como que um primeiro substrato, o qual
est na base de toda reflexo ulterior sobre o bem a praticar e o
mal a evitar.
47. Para sair dessa generalidade e esclarecer as escolhas
concretas a fazer, necessrio apelar para a razo discursiva,
que ir determinar quais so os bens morais capazes de realizar
a pessoa e a humanidade e formular os preceitos mais concretos, aptos a guiar seu agir. Nessa nova etapa, o
conhecimento do bem moral procede por raciocnio. Este
muito simples em sua origem: suficiente uma experincia
limitada da vida e ele se mantm de acordo com as
possibilidades intelectuais de cada um. Se fala aqui de
preceitos segundos da lei natural, descobertos graas a uma mais ou menos longa considerao da razo prtica, em
contraste com os preceitos gerais fundamentais, que a razo
colhe de modo espontneo e que so chamados de preceitos primeiros[51].
2.4. Os preceitos da lei natural
48. Ns identificamos, na pessoa humana, uma primeira
inclinao, que ela compartilha com todos os seres: a
inclinao para conservar e desenvolver sua existncia. H,
habitualmente, entre os seres vivos, uma reao espontnea em
face da ameaa iminente de morte: fuga, defesa da integridade
da prpria existncia, luta para sobreviver. A vida fsica
aparece, naturalmente, como um bem fundamental, essencial,
primordial: da brota o preceito de proteger a prpria vida. Sob
esse enunciado de conservao da vida se perfilam as
inclinaes para tudo o que contribui, de uma forma prpria ao
homem, manuteno e qualidade da vida biolgica:
integridade do corpo; uso dos bens exteriores, que garantam a
subsistncia e integridade da vida, tal como a nutrio, a
vestimenta, a moradia, o trabalho; a qualidade do ambiente
biolgico A partir dessas inclinaes, o ser humano se prope fins a realizar, que contribuem ao desenvolvimento
harmonioso e responsvel do prprio ser e que, portanto, lhe
aparecem como bens morais, valores a buscar, obrigaes a
cumprir e direitos a fazer valer. Com efeito, o dever de
preservar a sua prpria vida tem como correlativo o direito de
exigir o que necessrio sua conservao em um ambiente
favorvel[52].
49. A segunda inclinao, que comum a todos os seres vivos,
concerne sobrevivncia da espcie, que se realiza pela
procriao. A gerao se inscreve no prolongamento da
tendncia de perpetuar o ser. Se a perpetuao da existncia
biolgica impossvel ao prprio indivduo, ela possvel
espcie, e, assim, em certa medida, se encontra vencido o
limite inerente a todo ser fsico. O bem da espcie aparece,
ento, como uma das aspiraes fundamentais presentes na
pessoa. Particularmente, em nossos dias tomamos conscincia
quando certas perspectivas, como o aquecimento climtico,
avivam nosso senso de responsabilidade para com o planeta
como tal e da espcie humana em particular. Essa abertura a
um certo bem comum da espcie anuncia j algumas
aspiraes prprias ao homem. O dinamismo para com a
criao est intrinsecamente ligado inclinao natural, que
leva o homem para a mulher e a mulher para o homem, dado
universal reconhecido em todas as sociedades. O mesmo vale
para a inclinao de cuidar dos filhos e de educ-los. Essas
inclinaes implicam que a permanncia do casal de homem e
mulher, e at mesmo sua fidelidade mtua, j sejam valores a
buscar, mesmo se eles s possam se manifestar plenamente na
ordem espiritual da comunho interpessoal[53].
50. O terceiro conjunto de inclinaes especfico ao ser
humano como ser espiritual, dotado de razo, capaz de
conhecer a verdade, de entrar em dilogo com os outros e de
estabelecer relaes de amizade. Assim, deve-se reconhecer
sua particular importncia. A inclinao a viver em sociedade
deriva, primeiramente, do fato de que o ser humano tem
necessidade dos outros para superar seus limites individuais
intrnsecos e atingir sua maturidade nos diferentes mbitos de
sua existncia. Mas, para manifestar plenamente sua natureza
espiritual, ele tem necessidade de estabelecer relaes de
amizade generosa com seus semelhantes e de desenvolver uma
cooperao intensa na busca da verdade. Seu bem integral est,
assim, intimamente ligado vida em comunidade, que existe
em virtude de uma inclinao natural e no por uma simples
conveno, e que o faz se organizar em sociedade poltica[54].
O carter relacional da pessoa se exprime tambm pela
tendncia de viver em comunho com Deus ou o Absoluto.
Isso se manifesta no sentimento religioso e no desejo de
conhecer a Deus. Certamente, ela pode ser negada por aqueles
que se refutam admitir a existncia de um Deus pessoal, mas
que permanece mais ou menos implcita na busca da verdade e
do sentido que habita em todo ser humano.
51. A essa tendncia especfica do homem corresponde a
exigncia percebida pela razo de realizar concretamente esta
via de relaes e de construir a vida em sociedade em bases
justas, que correspondam ao direito natural. Isto implica o
reconhecimento da igualdade fundamental de todo indivduo
da espcie humana, alm das diferenas de raa e de cultura, e
um grande respeito pela humanidade l onde ela se encontre, e
inclusive do menor e do mais desprezado de seus membros.
No faas para o outro o que no queres que te faam. Ns reencontramos aqui a regra de outro, que hoje posta como
princpio prprio de uma moral de reciprocidade. O primeiro
captulo permitiu-nos reportar presena dessa regra na maior
parte das sabedorias, assim como no prprio Evangelho. em
referncia a uma formulao negativa desta regra de ouro que
so Jernimo manifestava a universalidade de vrios preceitos
morais. justo o julgamento de Deus que escreve no corao do gnero humano: Aquilo que no queres que te faam, no faas aos outros. Quem no sabe que o homicdio, o adultrio, os furtos e toda espcie de cobia so o mal, e, por isso, que
no queremos que sejam feitos a ns mesmos? Se no
soubssemos que estas coisas so ms, jamais nos
lamentaramos quando elas nos fossem infligidas[55]. A regra de ouro une vrios mandamentos do Declogo, assim como
numerosos preceitos budistas, at regras do confucionismo, ou
ainda a maior parte das orientaes das grandes Cartas que
indicam os direitos das pessoas.
52. Ao final desta rpida explicitao dos princpios morais,
que derivam da tomada de conscincia pela razo das
inclinaes fundamentais da pessoa humana, estamos na
presena de um conjunto de preceitos e valores que, ao menos
em sua formulao geral, podem ser considerados universais,
porque se aplicam a toda a humanidade. Eles se revestem,
tambm, de um carter de imutabilidade, na medida em que
decorrem de uma natureza humana cujos componentes
essenciais permanecem idnticos ao longo de toda a histria.
Todavia, pode acontecer que estejam obscurecidos ou mesmo
apagados no corao humano em razo do pecado e dos
condicionamentos culturais e histricos que podem influenciar
negativamente a vida moral pessoal: ideologias e propagandas
insidiosas, relativismo generalizado, estruturas de
pecado[56] necessrio, portanto, ser modesto e prudente quando se invoca a evidncia dos preceitos da lei natural. Mas correto reconhecer nestes preceitos o fundo comum
sobre o qual se pode apoiar um dilogo em vista de uma tica
universal. Os protagonistas deste dilogo devem, no entanto,
aprender a abstrair-se de seus interesses particulares para se
abrir s necessidades dos outros e se deixar interpelar pelos
valores morais comuns. Em uma sociedade pluralista, na qual
difcil se entender sobre os fundamentos filosficos, tal dilogo
absolutamente necessrio. A doutrina da lei natural pode
trazer sua contribuio a tal dilogo.
2.5. A aplicao dos preceitos comuns: historicidade da lei
natural
53. impossvel permanecer no nvel de generalidade, que
aquele dos princpios primeiros da lei natural. A reflexo
moral, com efeito, tem necessidade de descer ao concreto da
ao para a lanar sua luz. Mas quanto mais ela enfrenta
situaes concretas e contingentes, tanto mais suas concluses
so afetadas por uma nota de variabilidade e de incerteza. No
surpreendente, pois, que a aplicao concreta dos preceitos
da lei natural possa tomar formas diferentes nas diversas
culturas ou mesmo em pocas diferentes dentro de uma mesma
cultura. Basta invocar a evoluo da reflexo moral sobre
questes como a escravatura, emprstimo a juros, duelo ou
pena de morte. s vezes, essa evoluo conduz a uma
-
compreenso melhor da interpelao moral. s vezes, tambm,
a evoluo da situao poltica ou econmica traz uma
reavaliao das normas particulares que foram estabelecidas
anteriormente. De fato, a moral se ocupa de realidades
contingentes que evoluem no tempo. Se bem que tenha vivido
em uma poca de cristandade, um telogo como santo Toms
de Aquino, tinha uma percepo muito ntida. A razo prtica, escreve ele na Suma Teolgica, se ocupa de realidades
contingentes, nas quais se exercem as aes humanas. por
isto que, embora nos princpios gerais haja alguma
necessidade, quanto mais se afronta as coisas particulares tanto
mais h indeterminao (...). No campo da ao, a verdade ou
a retido prtica no a mesma para todos nas aplicaes
particulares, mas unicamente nos princpios gerais; e para
aqueles que a retido idntica em suas prprias aes, ela no
igualmente conhecida por todos. (...) E aqui, quanto mais se
desce no particular, mais a indeterminao aumenta[57].
54. Tal perspectiva se d conta da historicidade da lei natural,
cujas aplicaes concretas podem variar no tempo. Ao mesmo
tempo, ela abre uma porta reflexo dos moralistas,
convidando ao dilogo e discusso. Isto to mais necessrio
porque, na moral, a pura deduo por silogismo no
adequada. Quanto mais o moralista aborda situaes concretas,
tanto mais ele deve recorrer sabedoria da experincia; uma
experincia que integre as contribuies das cincias e que se
nutre com o contato de mulheres e de homens engajados na
ao. S essa sabedoria da experincia permite considerar a
multiplicidade das circunstncias e chegar a uma orientao
sobre o modo de fazer o que bom hic et nunc. O moralista
deve, tambm, lanar mo (e esta a dificuldade de seu
trabalho) dos recursos, de forma integrada, da teologia, da
filosofia, assim como das cincias humanas, econmicas e
biolgicas, para discernir bem os dados da situao e
identificar corretamente as exigncias concretas da dignidade
humana. Ao mesmo tempo, ele deve estar particularmente
atento a salvaguardar os dados bsicos expressos pelos
preceitos da lei natural, que permanecem alm das variaes
culturais.
2.6. As disposies morais da pessoa e seu agir concreto
55. Para chegar a uma justa avaliao das coisas a fazer, o
sujeito moral deve estar dotado de um certo nmero de
disposies interiores, que lhe permitem estar aberto s
interpelaes da lei natural e, ao mesmo tempo, bem
informado sobre os dados da situao concreta. No contexto do
pluralismo, que o nosso, se est cada vez mais consciente que
no se pode elaborar uma moral fundada sobre a lei natural
sem uni-la a uma reflexo sobre as disposies interiores ou
virtudes que tornem o moralista apto a elaborar uma norma de
ao adequada. Isto ainda mais verdadeiro para o sujeito
engajado pessoalmente na ao e que deve elaborar um juzo
de conscincia. No surpreende o fato de hoje se assistir a um
novo reflorescimento de uma moral de virtudes, inspirada na tradio aristotlica. Ao insistir sobre as qualidades morais
requeridas para uma reflexo tica adequada, compreende-se o
papel importante que as diversas culturas atribuem figura do
sbio. Ele goza de uma particular capacidade de discernimento
na medida em que possui as disposies morais interiores que
lhe permitem fazer um julgamento tico adequado. um
discernimento desse tipo que deve caracterizar o moralista,
quando ele se esfora por concretizar os preceitos da lei
natural, assim como todo sujeito autnomo encarregado de
fazer um julgamento de conscincia e de formular a norma
imediata e concreta de sua ao.
56. A moral no pode, portanto, limitar-se a produzir normas.
Ela deve, tambm, favorecer a formao do sujeito para que
ele, empenhado na ao, seja capaz de adaptar os preceitos
universais da lei natural s condies concretas da existncia
nos contextos culturais diversos. Essa capacidade assegurada
pelas virtudes morais, particularmente pela prudncia, que
integra a singularidade para guiar a ao concreta. O homem
prudente deve possuir no somente o conhecimento do
universal, mas tambm o conhecimento do particular. Para
destacar bem o carter prprio dessa virtude, santo Toms de
Aquino no teme em dizer: Se ele no chega a ter um dos dois conhecimentos, prefervel que este seja o conhecimento das
realidades particulares, que toca mais de perto a
operao[58]. Com a prudncia, ele trata de penetrar em uma contingncia, que permanece sempre misteriosa para a razo,
de se moldar sobre a realidade de modo o mais exato possvel,
de assimilar a multiplicidade das circunstncias, de registrar o
mais fielmente possvel uma situao original e indescritvel.
Tal objetivo necessita de numerosas operaes e habilidades
que a prudncia deve prover.
57. Todavia, o sujeito no deve se perder no concreto e no
individual, como foi censurado na tica de situao. Ele deve descobrir a reta regra de agir e estabelecer uma adequada norma de ao. Essa regra deve derivar dos princpios
preliminares. Aqui se pensa nos princpios primeiros da razo
prtica, mas tambm cabe s virtudes morais abrir e tornar
conatural a vontade e a afetividade sensvel aos diferentes bens
humanos, e indicar, assim, ao homem prudente quais so os
fins que ele deve perseguir no fluxo do quotidiano. nesse
momento que ele ser capaz de formular a norma concreta que
se impe e de impregnar a ao dada pela luz da justia, da
fora ou da temperana. No ser falso, aqui, falar do exerccio
de uma inteligncia emocional: os poderes racionais, sem perder sua especificidade, se exercem dentro de um campo
especfico, de sorte que a totalidade da pessoa est empenhada
na ao moral.
58. A prudncia indispensvel para o sujeito moral por causa
da flexibilidade requerida pela adaptao dos princpios morais
universais diversidade das situaes. Mas tal flexibilidade
no autoriza a ver na prudncia uma espcie de facilitao do
compromisso para com os valores morais. Bem ao contrrio,
por meio das decises da prudncia que se exprimem as
exigncias concretas da verdade moral para um sujeito. A
prudncia uma passagem necessria para a obrigao moral
autntica.
59. H uma perspectiva que, dentro de uma sociedade
pluralista como a nossa, se reveste de uma importncia, que
no dever ser subestimada sem incorrer em danos
considerveis. Com efeito, ela nasce do fato de que a cincia
moral no pode fornecer ao sujeito agente uma norma que se
aplique de forma adequada e quase automtica situao
concreta: s a conscincia do sujeito, o juzo de sua razo
prtica, pode formular a norma imediata da ao. Mas, ao
mesmo tempo, ela no deixa a conscincia entregue s a
subjetividade: visa fazer o sujeito adquirir as disposies
intelectuais e afetivas que lhe permitem se abrir verdade
moral de tal sorte que seu juzo seja adequado. A lei natural
no poder ser apresentada como um conjunto de regras j
constitudo e que se impe a priori ao sujeito moral, mas ela
uma fonte de inspirao objetiva para seu processo,
eminentemente pessoal, de tomada de deciso.
CAPTULO 3: OS FUNDAMENTOS TERICOS DA LEI
NATURAL
3.1. Da experincia s teorias
60. A aquisio espontnea dos valores ticos fundamentais,
que se exprime nos preceitos da lei natural, constitui o ponto
de partida do processo que conduz, em seguida, o sujeito moral
ao juzo da conscincia na qual ele anuncia quais so as
exigncias morais que lhe so impostas em sua situao
concreta. tarefa do filsofo e do telogo refletir sobre esta
experincia de aquisio dos primeiros princpios da tica para
verificar o valor e a fundament-lo na razo. O
reconhecimento desses fundamentos filosficos ou teolgicos
no condiciona, todavia, a adeso espontnea aos valores
comuns. Com efeito, o sujeito moral pode pr em prtica as
orientaes da lei natural sem ser capaz, em razo dos
condicionamentos intelectuais particulares, de discernir
explicitamente os fundamentos tericos ltimos.
61. A justificao filosfica da lei natural apresente dois nveis
de coerncia e de profundidade. A ideia de uma lei natural se
justifica, antes de tudo, no plano da observao refletida pelas
constantes antropolgicas, que caracterizam uma humanizao
bem-sucedida da pessoa e uma vida social harmoniosa. A
experincia refletida, veiculada pelas sabedorias tradicionais,
pelas filosofias ou pelas cincias humanas, permite determinar
algumas das condies requeridas para que cada um
desenvolva o melhor possvel as capacidades humanas em sua
vida pessoal e comunitria[59]. assim que alguns
comportamentos so reconhecidos como expresso de uma
exemplar excelncia no modo de viver e realizar a sua
-
humanidade. Eles definem as grandes linhas de um ideal
propriamente moral de uma vida virtuosa segundo a natureza, isto , conforme a natureza profunda do sujeito humano[60].
62. No entanto, s levando em conta a dimenso metafsica da
realidade se pode dar lei natural sua plena e completa
justificao filosfica. Com efeito, a metafsica permite
compreender que o universo no encontra nele mesmo a sua
razo ltima de ser, e ela manifesta a estrutura fundamental do
real: a distino entre Deus, o prprio Ser subsistente, e os
outros seres postos por Ele na existncia. Deus o Criador, a
fonte, livre e transcendente, de todos os outros seres. Estes
recebem dele, com medida, nmero e peso (Sb 11,20), a existncia segundo uma natureza que os define. As criaturas
so, portanto, a epifania de uma sabedoria criadora pessoal, de
um Logos fundador, que se exprime e se manifesta nelas.
Toda criatura verbo divino, porque ela fala de Deus, escreve so Boaventura[61].
63. O Criador no somente o princpio das criaturas, mas
tambm o fim transcendente, para o qual elas tendem por
natureza. Assim, as criaturas so animadas por um dinamismo
que as leva realizao, cada uma a seu modo, na unio com
Deus. Ests dinamismo transcendente, na medida em que ele
procede da lei eterna, isto , do plano da providncia divina,
que existe no esprito do Criador[62]. Mas ele , tambm,
imanente, porque no imposto de fora ab extra s criaturas, mas inscrito na sua prpria natureza. As criaturas
puramente materiais realizam espontaneamente a lei de seu ser,
ao passo que as criaturas espirituais a realizam de modo
pessoal. Com efeito, elas interiorizam os dinamismos que as
definem e os orientam livremente para a sua plena realizao.
Elas formulam a si mesmas como normas fundamentais de seu
agir moral esta a lei natural propriamente dita e se esforam para cumpri-las livremente. A lei natural se define,
ento, como uma participao da lei eterna[63]. Ela mediada,
de uma parte, pelas inclinaes da natureza, expresses da
sabedoria criadora, e, de outra parte, pela luz da razo humana,
que as interpreta e que ela mesma uma participao criada na
luz da inteligncia divina. A tica se apresenta, assim, como
uma teonomia participada[64].
3.2. Natureza, pessoa e liberdade
64. A noo de natureza particularmente complexa e no ,
de maneira alguma, unvoca. Em filosofia, o pensamento grego
da physis exerce um papel matricial. Nela, a natureza designa o
princpio de identidade ontolgica especfica de um sujeito,
isto , a sua essncia, que se define por um conjunto de
caractersticas inteligveis estveis. Essa essncia toma o nome
de natureza, sobretudo quando compreendida como o
princpio interno do movimento, que orienta o sujeito para a
sua realizao. Longe de remeter a um dado esttico, a noo
de natureza significa o princpio dinmico real do
desenvolvimento homogneo do sujeito e de suas atividades
especficas. A noo de natureza foi formada, antes de tudo,
para pensar as realidades materiais e sensveis, mas no se
limita a esse mbito fsico e se aplica analogamente s realidades espirituais.
65. A idia, segundo a qual os seres possuem uma natureza,
impe-se ao esprito quando se quer dar a razo da finalidade
imanente dos seres e da regularidade que se percebe em seus
modos de agir e de reagir[65]. Considerar os seres como
natureza significa, portanto, reconhecer que eles tm
consistncia prpria e afirmar que so centros relativamente
autnomos na ordem do ser e do agir, e no simples iluses ou
construes temporrias da conscincia. Mas essas naturezas no so unidades ontolgicas fechadas, encerradas em si
mesmas, e puramente justapostas umas s outras. Agem umas
sobre as outras, estabelecendo relaes complexas de
causalidade entre si. Na ordem espiritual, as pessoas tecem
relaes intersubjetivas. As naturezas formam, portanto, uma
rede e, em ltima anlise, uma ordem, isto , uma srie
unificada pela referncia a um princpio[66].
66. Com o cristianismo, a physis dos antigos repensada e
integrada em uma viso mais ampla e mais profunda da
realidade. De uma parte, o Deus da revelao crist no um
simples componente do universo, um elemento do grande
Tudo da natureza. Ao contrrio, ele o criador, transcendente
e livre, do universo. De fato, o universo finito no pode fundar
a si mesmo, mas aponta para o mistrio de um Deus infinito,
que, por amor, o criou ex nihilo e permanece livre para intervir
no curso da natureza cada vez que quiser. De outra pa