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JOO DIOGO R. P. G. LOUREIRO
COMENTRIO POLTICO-FILOSFICO
AO POLTICO DE PLATO
LADO A: O PODER ENTRE
A RAZO E A VIOLNCIA ~ INTRODUO, PARTE I (DIRESE) E PARTE II (O MITO) ~
Dissertao de Mestrado em Estudos Clssicos, na
especialidade de Cultura Clssica, apresentada
Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, sob a
orientao da Professora Doutora Maria do Cu Fialho e
do Professor Doutor Alexandre Franco de S
UNIVERSIDADE DE COIMBRA
FACULDADE DE LETRAS
2011
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JOO DIOGO R. P. G. LOUREIRO
COMENTRIO POLTICO-FILOSFICO
AO POLTICO DE PLATO
LADO A: O PODER ENTRE
A RAZO E A VIOLNCIA ~ INTRODUO, PARTE I (DIRESE) E PARTE II (O MITO) ~
Dissertao de Mestrado em Estudos Clssicos, na
especialidade de Cultura Clssica, apresentada
Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, sob a
orientao da Professora Doutora Maria do Cu Fialho e
do Professor Doutor Alexandre Franco de S
UNIVERSIDADE DE COIMBRA
FACULDADE DE LETRAS
2011
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ii
AVISO
E o prprio Plato viu-se a si mesmo, quando estava beira de morrer,
transformado num cisne, saltando de rvore em rvore, dando muito que
fazer [ ] aos caadores de pssaros, incapazes de
o agarrar. Tendo ouvido [contar] este sonho, Smias, o socrtico, disse que
todos os homens se dedicam com zelo [] a capturar a inteno
[] de Plato, mas nenhum capaz, antes cada um fabrica []
a sua exegese com vista [] ao que o prprio acha, escolhendo
teologizar ou naturalizar [] ou outra [coisa] qualquer.
Prolegmenos Filosofia de Plato 1.38-46
A tese que se segue precisa de ser justificada, se no a quisermos reduzir sua causa
mais imediata: a obrigao de apresentar uma dissertao para obteno do grau de Mestre.
A questo no tanto porqu Plato? ou porqu o Poltico?, escolhas que se ficaram a dever a
razes vrias, at acidentais: hesitmos longamente entre o Mestre e Heraclito e, tendo
decidido pelo primeiro, poderamos ter optado por outro dilogo. A questo sim: para que
que isto serve?. A nossa tese surgiu, em parte, em resposta ao convite com que se fecha a
introduo traduo portuguesa, de Carmen Leal Soares, que a exprime a esperana de
que a traduo [] possa contribuir para uma reflexo, em portugus, o mais alargada
possvel sobre o contedo dO Poltico e sobre as questes por ele levantadas (29). O seu
apelo no encontrou ainda eco palpvel. Tendo aceite o desafio, acreditvamos, ingnuos,
poder vir a contribuir, ainda que humildemente, para a compreenso do texto: gostamos de
nos convencer que o nosso trabalho no vo e, se no relevante para o pblico, ao menos
til aos estudiosos da rea. Essa esperana era reforada pelo facto de, comparativamente
com outros dilogos, a comear pelo Sofista, que o precede, o Poltico ser pouco estudado, o
que oferecia, inclusive, a possibilidade, invejvel entre platonistas, de controlar o grosso da
bibliografia especfica, pelo menos recente.
Foi v a nossa f e derrotados o admitimos. No h um fundo sobre o qual se possa,
bem ou mal, construir, apenas o mar-alto sem-limites da dissemelhana (273d6-e) das
opinies dos estudiosos, o que preclude qualquer espcie de progresso, para frustrao do
recm-chegado bem-intencionado. H, quando muito, consensos alargados, isto , leituras
de certos passos que a maioria dos comentadores partilha. Esta unidade, porm, s subsiste
superfcie: quando descemos aos particulares, encontramos a mesma profuso de
interpretaes. As teorias mais obtusas j foram propostas e por vezes por nomes de peso. A
discusso entre platonistas parece vezes demais a guerra de todos contra todos de que se
fala no Livro I das Leis (625e e ss.), a comear pela guerra do prprio contra si mesmo (626e).
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iii
O plural majesttico tem a honestidade de, ao postular hipstases virtuais, reconhecer que o
exegeta no uma unidade, e que, por detrs das opinies que aparecem expressas no
comentrio, se esconde, censurada nos silncios, a possvel suspeita da mentira destas.
Qualquer anlise assenta sempre num conjunto de pressupostos de todo impossveis
de provar (e que so bem mais complexos do que as disjunes que se seguem a ttulo de
exemplo): ou se evolucionista ou unitarista, ou se acredita numa das mais de uma centena
de cronologias propostas ou se as olha de esgelha, ou se tomam em considerao as
doutrinas no-escritas ou se as ignora, ou se usa as Cartas ou se as descarta, ou o Poltico
acima de tudo um exerccio dialctico ou uma investigao em torno da figura homnima
(ou as duas coisas simultaneamente), ou a direse inicial, de uma maneira geral, fracassa, ou
deve ser levada a srio, ou o mito prope uma cosmologia honesta ou uma mera fantasia
com propsitos locais ou Plato um gnio ou no.
Esta ltima pergunta no despicienda. curiosa a pouca ateno que os estudiosos
do s acusaes contra Plato que nos chegaram dos antigos, falando de emprstimos ou
imitaes de outros autores. muito provvel que sejam todas mentira (If you guys were
the inventors of Facebook, you'd have invented Facebook, David Fincher, A Rede Social,
2010), mas. No necessrio, porm, subscrever rumores duvidosos. Aristteles no era um
filsofo menos inteligente (ele, que, paradoxalmente, a tese nos ensinou a estimar) e,
todavia, no deixou de, em tantos pontos com razo, criticar o Mestre. Confunde-se vezes
demais, parece-nos, a genialidade literria de Plato com a sua (a investigar) genialidade
filosfica. Temos a impresso de que, se Plato voltasse dos mortos (um pensamento que
muito nos ocupou durante a escrita da tese, reflexo inconsciente de um desejo de, como
Gulliver em Glubbdubdrib1, poder acordar os antigos para esclarecer com eles as suas
doutrinas), todos ficaramos algo desiludidos. Tememos, tambm ns, estarmos a tornar-nos
(Sph. 241d3), mas o nosso no pretendia ser um desabafo iconoclasta.
Plato tem de ser profundamente respeitado: o mais das vezes ele tem razo e ns no.
Porm, no negar que Plato, ' , se contradiz (e que nem todas as afirmaes
discordantes se deixam conciliar, por exemplo, por uma leitura esotrica) um dever moral
de qualquer intrprete honesto, que no deve ter medo de dizer, se, depois de todo o
esforo, for incapaz de explicar um certo passo, que este contm um erro ou de todo
incompreensvel ou no coerente com o dito antes. S estamos autorizados a faz-lo depois
de grande reflexo (e obrigatrio partir sempre do pressuposto da unidade do
pensamento de Plato), mas nada nos deve coibir de, com humildade, esperando 1 E o que Gulliver anota a a propsito dos comentadores de Aristteles, bem poderamos dizer dos de Plato tambm: I proposed that Homer and Aristotle might appear at the head of all their commentators; but these were so numerous, that some hundreds were forced to attend in the court, and outward rooms of the palace (III.8).
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iv
secretamente que outro resolva o problema, o apontarmos. Plato no um deus em
disfarce (cf. Sph. 261a5-b6) e tem de ser feito mais humano: por e para isso as Cartas.
O mais das vezes, porm, os comentadores (e inclumo-nos neste grupo) tm pejo de
o fazer (e, num certo sentido, melhor assim, pois como avismos s em ltimo recurso se
deve acusar Plato de inconsistncia) e foram o texto para extrair dele um todo uno, no
hesitando em fazer batota, cortando, por exemplo, o corpus como um Procustes, invocando
as passagens que lhes so convenientes e fabricando desculpas para impedir a mobilizao
das que questionem a sua interpretao. No sabemos, nem nunca havemos de saber, o que
que Plato pensava. Num certo sentido, sempre que o comentador (tambm ns) escreve
Plato diz ou Plato pensa est a . No impossvel que o Mestre no acreditasse na
teoria das Ideias. Por radical que esta afirmao parea, talvez j tenha havido quem a
defendesse, ou ainda surgir algum, bem-munido, a apoi-la (no j o que sucede em
relao aos ditos ltimos dilogos?). Plato to irrecupervel como Scrates e dizer o
contrrio no fazer absolutamente ideia do caos quase pr-csmico que a bibliografia
secundria sobre Plato, ao ritmo de quase 3000 ttulos ao ano.
Nestas condies, o que constitui, ento, uma boa interpretao de um dilogo? A
nosso ver, esta ter que reunir trs caractersticas: [1] fidelidade: o texto deve ser, sempre
que possvel, acreditado, contra a escola ironista (a ironia s deve ser postulada quando a
leitura prima facie prejudica os dois critrios que se seguem); [2] abrangncia: o que se afirma
como tese de Plato deve conseguir explicar o mximo de passos possveis no corpus sem
violao dos outros dois critrios; [3] fecundidade: a interpretao proposta tem de dizer algo
que ainda seja relevante hoje (veja-se e.g., no caso do nosso dilogo, Regras para o Parque
Humano, de Sloterdijk, o comentrio ao Poltico mais urgente que conhecemos). Este ltimo
ponto requer uma justificao. Se no possvel saber what Plato said, ento todo o exerccio
hermenutico s faz sentido se se mostrar til (todo o Bem o : esta uma das arquitraves do
sistema que confiamos platnico) tambm para ns, este ns estendendo-se do comentador
at cidade. Os dilogos no fornecem solues para os nossos problemas (repetimos: o
Mestre no um deus e de resto, neste tempo que o nosso, o deus calou-se): se o
fizessem, valeriam pouco, pois seria legtimo encaixot-los, uma vez esses resolvidos. Plato
conta por aquilo que ainda nos pode dizer sobre a Verdade, que o objecto nico e
caleidoscpico da Filosofia. Ele como o do Homem no artigo de Seth Benardete sobre
o Poltico: tudo por no ser nada; a do pensamento, podamos dizer; uma luz (como o
Bem o sol) que revela aquilo que lhe oferecido, trazido por cada um dos que o visitam.
Nenhum outro filsofo to como Proteu, porque o : ele mesmo o manto de mil
cores (R. VIII.557c5), ex-clarecendo, parteiro, cada uma. Se Plato no te mudou, ento
como os gregos combateste por uma Helena que no estava l.
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v
Ser que o nosso comentrio obedece s exigncias acima expostas? Possivelmente
no. Tal deve-se s condies em que foi feito. O estudo de um dilogo deve comportar trs
passos: traduo, dramatizao, comentrio. A dramatizao, se feita antes do comentrio,
constitui-se como antecipao deste, pois no se pode encenar um pea de Plato sem ter
uma ideia j do que esta diga. Se o texto levado cena depois do comentrio, o exerccio
dramtico toma ento a forma de um juzo a posteriori sobre a leitura desenvolvida,
optimalmente levando, em certos pontos, sua reviso. discutvel qual dos dois o melhor
mtodo; importante, porm, encontrar bons actores, para que, contra o intrprete feito
encenador, que tudo quer reduzir ao denominador da sua leitura, levem necessariamente,
pelo desempenho dos seus papis, ao questionamento desta. O Poltico um dilogo que, a
nosso ver, muito ganharia em ser dramatizado: parece-nos difcil que a relao entre
Scrates, o Jovem, e o Estrangeiro venha a ser devidamente elucidada por outro meio.
Este comentrio aparece pois despido das duas asas que o poderiam fazer voar: no
s no encenmos o texto, como no o traduzimos, salvo o mito (Apndice A, no includo
no presente manuscrito). Para alm disso, o nosso comentrio avana fenomenologicamente,
isto : cada passo analisado por si e tendo em conta o que o antecede, raras vezes o que
vem depois. Este um ideal, que contornmos, reconhecemos, mas no muito, pela razo
objectiva de que a anlise da Parte III (o paradigma) e da Coda no foi ainda feita, pelo que
estas s puderam ser referidas genericamente. O estudo em profundidade da Introduo,
Parte I e Parte II confirmaram a sensatez da nossa abordagem. Plato guerra urbana: rua a
rua, linha a linha. Leituras gerais, de uma ponta outra, sendo necessrias, so de reduzida
utilidade para quem queira escavar algo a que chamar Plato. Multiplicar referncias
Parte III e Coda, com base apenas na ideia grande que, por ora, fazemos delas, seria
arriscar demais, quando um passo que nos parece querer dizer x, em estudando-o
fenomenologicamente, perceberemos apontar numa direco diferente. Isto sucedeu-nos
repetidamente ao longo da nossa anlise das duas primeiras partes do dilogo, pelo que no
temos nenhuma boa razo para no desconfiar da nossa leitura actual da Parte III e Coda.
Melhor, pois, reduzir quanto possvel os cruzamentos com estas.
E, todavia, o facto de este comentrio s avanar at meio do Poltico, mesmo tendo
em conta a abordagem escolhida, no deixa de o prejudicar, obviamente. No ano que nos foi
dado e, sobretudo, no espao de que dispomos, mais seria, porm, impossvel. O que aqui se
apresenta, portanto, , muito conscientemente, um manuscrito. O texto ser alterado luz
do que descobrirmos aquando do estudo do resto do dilogo. Trata-se, de facto, de uma
construo precria, vtima de mltiplas contingncias: no conseguimos consultar certos
livros ou revistas, alguns importantes; outros, tendo chegado j perto da data de entrega da
tese, no foram plenamente capitalizados. Pouco consola pensar que esta uma situao
-
vi
que aflige toda a produo cientfica. Foi j algo adiantados no nosso trabalho, e depois de
uma certa hesitao, que adquirimos o livro de Sylvain Delcomminette, que, apesar de no
muito citado, se revelou o melhor comentrio ao Poltico a que tivemos acesso. Pensar que,
entre as obras que no tivemos ocasio de ler, pode estar outra com igual potencial de
revolucionar o nosso entendimento do dilogo, apenas sublinha o carcter necessariamente
artificial do que aqui se mascara como o pensamento de Plato. Temos de agradecer, porm,
lia Rodrigues, que nos arranjou em Oxford o artigo de Benardete acima referido, item
essencial de qualquer bibliografia sria sobre o Poltico, e ao Miguel Monteiro, que nos
trouxe bem-vindos materiais de Leipzig.
Esta tese no existiria, de facto, sem o cuidado de todo um conjunto de pessoas e,
num comentrio sobre um dilogo que segue, o prprio, a mxima heideggeriana Lernt
erst danken, dann knnt ihr denken, fora [] nome-las. Temos, em primeiro lugar,
de relembrar os nossos orientadores, a Professora Doutora Maria do Cu Fialho e o Professor
Doutor Alexandre Franco de S, que, como o deus, respeitaram a nossa autonomia, sem
deixar de intervir criticamente (no sentido kairo- e etimolgico do termo) e cujos conselhos
procurmos preservar. Mister tambm recordar os nossos colegas de Estudos Clssicos,
dos vrios ciclos, em particular os do de Cronos: co-investigadores, interrogando, para a
gora do pensamento, junto de todo o livro (cf. 272c2-4), alimentados, sem trabalho, pelo
fruto espontneo, mas pago, do Bar das Letras. No esquecemos a sua companhia, no estudo
e na . Trs nomes precisam de ser isolados, porm: o Rodolfo, sempre disponvel para
as nossas ignorncias platnicas, que se disps a ler um primeiro manuscrito deste trabalho
e com quem tivemos uma gorda conversa sobre o Timeu-Crtias; o Miguel, amigo caro e raro,
companheiro intelectual fiel e sobretudo exigente, que nos ajudou a compreender melhor
Strauss e os straussianos e comentou cuidadamente uma verso inicial da tese; e a Sophia,
die frhliche Wissenchaft, que fez connosco este caminho at ao fim, o deus que no largou, a
mais forte a encorajar e acalmar (268b3-4). A todos os meus amigos tenho a agradecer a
pacincia, o nimo, a presena, mas em especial Marta, ao Luis, Beatriz, Rita, Mit e
Leonor, que cumpriram die hchste Aufgabe einer Verbindung zweier Menschen:
guardar a solido do outro (Carta de Rilke a Paula Becker-Modersohn, 12 de Fevereiro de
1902), ou, diramos ns, guardar o outro na e at da sua solido, durante o nosso exlio
demasiado longo na Platolndia. Por fim, mais do que [se pode] segundo as propores
da vossa arte (257b3-4) exprimir, devo uma graa enorme (257a) minha famlia,
nomeadamente aos meus pais e ao meu irmo, sem cujo carinho [],
acompanhamento e disponibilidade esta tese estaria por certo junto ao Filsofo, guardada
por Lucien na biblioteca do amo (Neil Gaiman, The Sandman #21).
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vii
NOTA SOBRE AS TRADUES
O confronto com o texto original uma exigncia para quem queira analisar uma
obra produtivamente. Para o Poltico, bem como para as restantes obras de Plato, servimo-
nos da edio de John Burnet, a partir da qual realizmos todas as tradues que aparecem
no texto. No deixmos de tomar em considerao, porm, a mais recente edio oxoniense.
Tradues de outros autores clssicos foram feitas com base nos textos da Oxford Classical
Texts ou da coleco Bud (seria suprfluo estar aqui a discriminar que verses para quais
obras). No caso do Novo Testamento, utilizou-se a edio Nestle-Aland.
O trabalho com o original grego no invalida, por sua vez, o recurso a tradues,
que, pelo contrrio, se tornam mais necessrias. O Poltico, no sendo um texto de grande
dificuldade (Plato , em geral, um escritor acessvel), no deixa de levantar alguns desafios
ao leitor do grego, que, de resto, o comentrio regista. J o trabalho de traduo, que vai
bem para l da simples compreenso da mensagem do texto (esse no seno o primeiro
movimento), envolve todo um outro grau de dificuldade, onde a colao com as solues de
outros , mais do que til, imperativa, se se pretende no desrespeitar o original.
Cremos que o Poltico um dilogo que tem sofrido muito s mos dos tradutores (e
vice-versa). Universalmente considerado um dos mais fastidiosos de Plato, a verdade que
essa fama tem sido empolada custa de tradues que no fazem justia linguagem do
Mestre, que continua aqui to rica como nos seus trabalhos anteriores, convico que foi
crescendo progressivamente em ns, medida que amos penetrando mais e mais no texto.
Tal, porm, no passa na maioria das tradues. Tome-se, como exemplo, o
em 265d6. Vrios tradutores tendem a neutralizar a fora do verbo, re(con)duzindo-o ao
filosoficamente correcto: dividida (Carmen Leal Soares [CLS]), procdons donc une
partition (Brisson-Pradeau [B-P]), separemos (Gonzlez Laso [GL]), scindiamo
(Giorgini [G]), let us divide (Skemp [S]). Outros mantm a imagem, mas domesticam-na:
spezziamo/spezzando/aver spezzato (Fraccoli [Fr], Roggerone [Rog] e Pegone [P]),
break[ing] [this] up (Rowe [Row], Jowett [J] e Fowler [F]) e break down (Waterfield [W]).
Poucos so capazes de assumir o particpio em toda a linha mesmo Schleiermacher [Sch]
(e, na sua senda, Apelt [A]) no avana mais do que um tmido zerlegen. H, porm, quem
no o tema: fragment (Benardete [B]), zerbrechen (Ricken [Ri]), morcelons (Dis [D]),
desmenuzar (Casadess Bordoy [CB]) e dmembrons (Alain Petit [AP])2. Em portugus,
poderamos arriscar algo como quebrar, estilhaar, rasgar ou mesmo dilacerar (como Frederico
Loureno em E. Hipp. 1239).
2 As abreviaturas aqui indicadas para cada um dos tradutores sero usadas ao longo da tese.
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viii
Grande parte dos tradutores manifesta uma tendncia excessiva para transformar o
dilogo num tratado filosfico, tornando os termos mais abstractos e retraindo-se quando o
texto avana uma metfora mais violenta. Por outro lado, em momentos inoportunos, por
uma questo, supostamente, de explicitao, introduzem termos que no esto no original e
perturbam o trabalho do estudioso que tenha acesso limitado ao grego, ou, prtica tambm
perigosa, resolvem, por uma questo de variatio, traduzir a mesma palavra, por vezes crtica,
de maneiras diferentes. S h uma maneira de evitar estes erros e, ao mesmo tempo, salvar
o fulgor da linguagem platnica: uma traduo literal, sem medo de ser estranhizante, mas
conservando o cuidado [] com o leitor final.
Seria pleonstico estar a insistir nas virtudes de uma traduo que leva o leitor ao
original e no o inverso: Schleiermacher, em Sobre os Diferentes Mtodos de Traduzir3, provou
j que esta uma escolha que vale a pena, um projecto cultural (em parte comparvel, por
exemplo, prtica italiana das publicaes bilingues), que, porm, no desclassifica outras
solues: a traduo de Waterfield, coloquial e escorreita, distante do que
apreciamos, tem a sua funo e o seu pblico. No nos podamos, contudo, contentar com
uma desse gnero. falta de uma verso portuguesa capaz de satisfazer os nossos critrios,
tommos a nosso cargo a traduo das passagens mais importantes, fornecendo ao leitor
textos operacionais. Seremos talvez acusados do intento menos nobre de manipulao do
original para proveito hermenutico prprio, mas queremos acreditar que a nossa desejada
fidelidade ao grego testemunhar contra isso.
Essa fidelidade, que no prometemos sabemos no, e por vezes conscientemente
ter sempre conseguido, foi procurada sobretudo ao nvel semntico, mais do que sintctico.
Tal passou, por exemplo, pela recuperao do sentido de certos prefixos, que procurmos
sublinhar atravs do seu isolamento com hfens. Assim, (258e1) vertido
como com[]-pletam. Os hfens foram tambm usados para traduzir conceitos que o grego
exprime numa s palavra, mas que o portugus desdobra, e.g. : trabalho-manual.
No entanto, o que talvez causar mais estranheza a vontade de regressar ao significado
primitivo das coisas, de traduzir etimologicamente, o que muitas vezes nos transporta para
l do texto a-verter. conhecida a forma como Hlderlin, na seu exerccio de traduo da
Antgona, verteu o verso vinte: ; : Was ists, du
scheinst ein rothes Wort zu frben?4. Parece-nos fundamental re-buscar o sentido original
3 Friedrich Schleiermacher ([1813] 2003), Sobre os Diferentes Mtodos de Traduzir. Porto Editora: Porto (apresentao, traduo, notas e posfcio de Jos Miranda Justo). 4 Confronte-se as tradues portuguesas: Que ? Pareces perturbada por alguma notcia (Maria Helena Rocha Pereira ([1968] 92010), Sfocles. Antgona. Gulbenkian: Lisboa); Mas que notcia essa que tanto te perturba? (Marta Vrzeas (2011), Sfocles. Antgona. Hmus: Vila Nova de Famalico).
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ix
das palavras: a aurora da lngua esconde verdades encobertas desde a sementeira [cf.
Heraclito DK B124] do arranjo [das coisas, i.e. o universo] (Mt 13, 35).
So maiores as semelhanas entre o grego e o portugus do que se poderia por
preguia imaginar. necessrio, isso sim, inventar a lngua capaz de as acolher, atravs da
exumao do seu passado (o passado fica em frente, como j os gregos sabiam). Veja-se, por
exemplo, : vertido sem sabor como incivilizado ou sem educao, pode ser
decalcado como sem-criana, recuperando o termo de Mestre Gil para educao. S dessa
maneira podemos vir a pensar com os gregos, na impossibilidade (e at indesejabilidade)
moderna de pensar como os gregos. Na frase de Mateus acima, traduzir por arranjo
decisivo, no para o entendimento do passo (que s ganharia com a verso habitual: mundo),
mas para que o leitor compreenda melhor a Weltanschauung helnica: de outra forma, como
entender o quase-oxmoro heraclitiano? porque o mundo um arranjo que (1) possvel
conhec-lo e (2) razovel postular uma inteligncia ordenadora: deus sive /. O
incio da cincia e da filosofia gregas esto contidas na potncia desta palavra.
preciso, pois, no recear traduzir, por exemplo, por possuem [porque
adquiriram], se isso que a palavra, de facto, quer dizer: amput-la do movimento que
implica banaliz-la. Neste exerccio de literalidade, os parntesis rectos so de grande
ajuda, por permitirem acrescentos que facilitam a compreenso da passagem pelo leitor,
que, porm, convidado a guardar a sua distncia crtica: se toda a traduo j sempre
uma interpretao, ainda mais o so, em certos casos, os silncios violados pelo tradutor,
que com as suas explicitaes caridosas enclausura a frase num sentido s, despindo-a da
sua ambiguidade. O grego, porm, uma lngua elptica, que favorece a inveno benvola.
Por vezes, os parntesis rectos, seguidos de barra [/] (ou esta isoladamente), foram tambm
usados para fornecer alternativas de traduo, quando nos pareceu que tal se justificava.
Por fim, confessar apenas que este um gnero de traduo no qual estamos ainda a
fazer as primeiras experincias, a melhorar pois; que os nossos conhecimentos de grego so
mais escassos do que o necessrio ou do que era legtimo esperar de quem se licenciou em
Clssicas; que nos falta, sobretudo, conhecer melhor a nossa lngua materna, em todos os
seus perodos, para podermos contribuir para a sua revitalizao. Acreditamos com
confiana que a traduo das obras clssicas pode e deve desempenhar um papel central
nesse trabalho. S ser feita justia ao grego quando for feita justia ao portugus, dando-
lhe o que ele hoje precisa e a traduo lhe pode dar: uma conscincia histrica, maior
abertura semntica sem perda de acribia, mais flexibilidade sintctica a linguagem em
surpresa permanente como s o permite o conhecido.
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COMENTRIO POLTICO-FILOSFICO
AO POLTICO DE PLATO
-
2
ESTRUTURA DO DILOGO
Introduo Dramtica (257a-258b2)
Parte I: A Direse Inicial (258b2-268d4)
Diviso 0 [D0]: (258b2-258b5)
D1: | (258b6-259d5), inclui
Interldio I [I1] (258e8-259c5)
D2: | (259d6-260c5)
D3: | [] (260c6-261a2)
D4: | (261a3-261d2)
D5: | (261d3-261e7)
Interldio II [I2] (261e7-264b5)
Parte I (261e7-263b11)
Parte II (263c-264b5)
D6: | (264b6-264e2)
D7: [] | [] (264e3-264e11)
Bifurcao [BI] (264e12-265b6)
D8, 1 da Via Longa [D8-L1]: [] | [] (265b6-265d5)
D9-L2: [] | [] (265d6-265e9)
D10-L3: [] | [] (265e10-266d10)
Via Breve [D8-B1 + D9-B2] (266d10-267a3)
Concluso (267a4-268d4)
Parte II: O Mito (268d5-277a2)
Introduo [1, 2] (268d5-269c3)
O Mito [3-6] (269c4-274e1), inclui
Premissas [3] (269c4-270b2)
O Julgamento das Vidas [5] (272b-d6)
A Direse Revisitada [7] (274e2-277a2)
Parte III: O Paradigma (277a3-305e7)
Coda (305e8-311c8)
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LADO A: O PODER ENTRE
A RAZO E A VIOLNCIA ~ INTRODUO, PARTE I (DIRESE) E PARTE II (O MITO) ~
;
E como adivinhamos que os outros cidados rapidamente com-seguiro
aquele que tiver segurado essa tal persuaso e tambm a fora?
Plato, Leis IV.711c3-4
-
4
INTRODUO DRAMTICA (257a-258b2)
Ningum sabe verdadeiramente quando Plato escreveu cada um dos seus dilogos,
mesmo se, por algumas indicaes dos textos, podemos, para certas obras, indicar o terminus
post quem: este o caso, por exemplo, do Teeteto, cujo prlogo refere a participao do jovem
matemtico na fora ateniense estacionada em Corinto na primavera de 391 a.C. (Nails s.v.
Theaetetus) e onde grassou a doena de que viria a falecer. A cronologia relativa (i.e.: a
ordem de publicao dos dilogos), pelo que poderia contribuir para a nossa interpretao
do Mestre, tem sido especialmente discutida, sem que, porm, se tenha atingido algum
consenso1. Mesmo a tradicional arrumao dos dilogos em iniciais, mdios e tardios (o
Poltico encaixar-se-ia neste ltimo grupo2) conveniente, mas esconde ainda a nossa
ignorncia, como se v pela controvrsia em torno do lugar do Timeu-Crtias. O Poltico
sabemos ser (quase certamente) posterior ao Teeteto e ao Sofista apenas por formar com
estes uma trilogia (ou tetralogia, se considerarmos o Filsofo). Quanto tempo distou entre a
escrita de cada um algo que ultrapassa j [our] fill/ of knowledge []/ beyond which
[would be our] folly to aspire (Milton, Paradise Lost 12.558-60)3.
Entre o Sofista e o Poltico no h qualquer soluo de continuidade temporal: este
comea onde aquele acaba, aps a conversa do Estrangeiro de Eleia com Teeteto. A primeira
fala ainda um comentrio de Scrates, o Velho, aco precedente. Tudo se passa no dia
aps este ter comparecido no Prtico do Rei para se confrontar com as acusaes de Meleto
(Tht. 210d). Howland (1993) 15 chama a ateno para a posio central do Poltico na srie
dramtica constituda pelo Teeteto, utifron, Sofista, Poltico, Apologia de Scrates, Crton e Fdon
(pode a Apologia de Scrates ser o Filsofo? Howland 226 levanta a hiptese). O processo e
morte de Scrates no parecem muito presentes na nossa trilogia, porm: no Poltico -lhes
apenas feita uma aluso velada em 299b-d. Discordamos, pois, da leitura dos straussianos (os
1 Para uma crtica sistemtica e retumbante da cronologia tradicional, vide Jacob Howland (1991), Re-Reading Plato: The Problem of Platonic Chronology, Phoenix 45.3: 189-214. 2 Shorey 308, em 1933, j Lutosawski havia aplicado o seu metdo estilomtrico ao corpus platnico, insistia, cauteloso: It cannot be shown that Zeller, Grote, or more recently Phlmann are led into error in the interpretation of the thought by their assumption that it [o Poltico] precedes the Republic, and the attempts of others to show that the doctrine must be late are either fallacious or prove at the most that it is genuinely Platonic. 3 Fracolli 10-11, com base no comentrio berlinense ao texto (P. 9785), que atesta que o prlogo do Teeteto foi revisto (o que deixa em aberto a possibilidade de outras correces), suspeita, e no sem razes dignas de considerao, que a aluso ao Sofista em 210d foi acrescentada num segundo momento (mas cf. La. 201c4-5), o que indiciaria que, na raiz, Plato no havia pensado a trilogia que nos chegou: algum tempo, pois, deve ter transcorrido entre o Teeteto e os dilogos eleticos, a aceitar a sua especulao. O autor sugere tambm que a prpria apresentao de Scrates, o Jovem, em 147d teria sido adicionada posteriormente (13), mas no vemos qualquer razo para o postular.
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ironistas, como lhes chamaremos: Benardete, Scodel, Rosen, Howland) que, em maior ou
menor grau, levam a srio a suspeita de Scrates de que o Estrangeiro seja
(Sph. 216b5-6) e encaram o dptico Sofista-Poltico como o julgamento filosfico de
Scrates4. Queremos acreditar que a leitura que aqui propomos robusta o suficiente para
fazer frente sua interpretao.
No final do Teeteto (210d), Scrates e Teodoro combinam encontrar-se de novo, na
manh seguinte, no mesmo stio, possivelmente perto do Liceu5. O Cirenaico, para alm de
se fazer acompanhar dos seus vrios alunos (Sph. 217d7: [] no
esquecer esta audincia, que se percebe facilmente tendo em conta o local da discusso;
Klein 7 o nico que parece ter-se apercebido deste pblico), traz consigo um Estrangeiro
[] de Eleia, da escola de Parmnides e Zeno6. Scrates pretende saber a opinio do
Eleata acerca do sofista, do poltico e do filsofo: so um e o mesmo ou duas ou trs figuras,
distintas umas das outras (Sph. 216d3-217a8)? A seu ver, o filsofo pode, por vezes, aparecer
como poltico ou sofista. A interpretao aqui do verbo determina muito da leitura
que se faa do janus Sofista-Poltico. Se lermos aparecer como manifestar-se, e o poltico e o
sofista como possveis ocorrncias do filsofo, que se identifica com eles por vezes, ento a
investigao sobre ambos pode, de facto, traar o retrato deste ltimo. Se nos choca a ideia
de que o filsofo se possa identificar (porque de uma coincidncia que se fala, no de uma
confuso) com o sofista, lembre-se a figura descrita em Sph. 230a-231b, inquestionavelmente
Scrates. O passo, porm, pela perplexidade que gera, tem sido muito debatido e o seu justo
entendimento implicaria uma anlise completa do Sofista, que aqui no podemos levar a
cabo (mesmo se, e isto mais crtico, ela necessria para uma leitura correcta do Poltico). 4 No sendo, contudo, de desprezar as diferenas entre eles. Assim, por exemplo, Rosen 8 admite que the Stranger comes closer and closer to Socratic doctrine, until finally, despite all differences in character and rhetoric, one can scarcely distinguish between the contents of their speeches. Para uma interpretao diferente, menos violenta, do dptico eletico como um julgamento filosfico de Scrates, vide Miller 2-3. 5 Em Teeteto 144c diz-se que os jovens se estavam a untar . A expresso tem sido vertida de muitas maneiras: possvel que Plato pretendesse a ambiguidade. Apreciamos a interpretao de Giardini (in Maltese [sub Pegone]), que traduz por pista fuori le mura. Fraccaroli 4 identifica esta com o Liceu, com base no utifron (ad initium), que, dramaticamente, tem lugar logo aps o Teeteto. 6 Sobre este personagem nada sabemos. A tentativa de Roggerone (1983) 104-131 de o identificar com Aristteles no apenas absurda: cmica. Roger Masters, ainda assim, consegue superar o italiano ao sugerir que o Poltico um dos dilogos perdidos de Aristteles (R. Masters (1977), The Case of Aristotles Missing Dialogues: Who Wrote the Sophist, the Statesman, and the Politics?, Political Theory 5.1: 31-60), tese que denuncia uma leitura despudoradamente desatenta da Poltica, que responde, em vrios momentos, ao nela nunca explicitamente referido Poltico. Vide Kevin Cherry (2007), Aristotles First Critique. The Eleatic Stranger and the Politics (dissertao apresentada Universidade de Notre-Dame, Indiana). A obra chegou-nos tarde demais para que pudssemos tom-la em considerao na nossa tese.
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O aparecer de pode, porm, ser tambm interpretado como um parecer: se
assim for, o filsofo no se deixa reduzir s duas figuras estudadas pelo Eleata; pelo
contrrio: estas so, verdadeiramente, fantasmas (no sentido em que o termo aparece no
Sofista) dele. Plato teria assim alterado a sua opinio em relao Repblica (se aceitarmos a
cronologia tradicional), abandonando o rei-filsofo (pouco serve invocar a diferena de
terminologia: veremos em I1 que poltico e rei so dois nomes para uma mesma realidade).
Ou, ento, o que mais cauteloso, visto que no sabemos who speaks for Plato, afirmaremos
to-s que o Estrangeiro discorda de Scrates. Simplesmente, se a nossa leitura provisria
do Poltico est correcta, no isso que sucede: numa srie de pontos importantes, os dois
esto de acordo (a comear precisamente pela identidade entre poltico e rei)7, no que
somos secundados por B-P 13. Como interpretar ento ? A soluo, como bons
hegelianos, encontra-se na sntese das duas leituras: o sofista e o poltico parecem o filsofo,
mas atravs (no duplo sentido da preposio) dessa sua parecena o filsofo aparece. Cada um
sua maneira, poltico e sofista, querem ser o filsofo, que a sua plenitude.
O poltico uma encarnao do filsofo na medida em que o verdadeiro poltico tem
de primeiro filosofar (Skemp 21: he is a statesman because he is first a philosopher), mas
o que ele faz no , estritamente falando, filosofia, pois que esta consiste no inqurito pelo,
e contemplao do, Bem, no na sua traduo comunitria (por isso, veremos, na Idade de
Cronos, dedicada filosofia pura, no existem ). Da mesma maneira, o bom sofista
aquele que, como Scrates, pode utilizar argumentos sofsticos (e nenhum comentador
negar que eles habitam os dilogos, em especial os aporticos) porque conhece a verdade,
com vista ao crescimento intelectual e tico do seu interlocutor. que melhor aquele que
erra voluntariamente do quem o faz sem querer, isto , sem conscincia (Hpias Menor). O
sofista e o poltico representam movimentos descendentes do filsofo e, num certo sentido,
o seu falhano, rectius, a sua solido. Os seres humanos no reconhecem o que melhor para
eles, quer antes quer depois de ouvirem o (Heraclito DK B1): por isso a violncia do
poder. Tambm nas discusses filosficas, entre quem, a priori, se deveria mostrar fiel
razo, preciso, por vezes, persuadir pelo sofisma, cujo equivalente, na poltica, a
retrica. Sofista e poltico so, em arenas diferentes, o filsofo sujo, que deixou o refgio
seguro, mas tambm desinteressante, do (R. VI. 496d5-e2). Essa descida toca,
7 Esta harmonia esvazia o argumento de quantos, acentuando a alteridade do Eleata, sublinham, e bem, o facto de Scrates pretender saber a opinio do Estrangeiro para conhecer o que (217a), os eleatas, pensam do assunto em questo, por aquele ter escutado at ao fim, adequadamente, o que [estes] dizem e no [o] esquecer (217b7-8). O Estrangeiro, porm, como sabido, ameaa matar o prprio pai Parmnides (Sph. 241d3): ser preciso prova maior da sua autonomia dogmtica? Estabelecida esta, a concorrncia das suas opinies com as de Scrates, sabendo estar o mesmo escritor por detrs, no nos deve espantar.
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porm, converte-o j numa coisa outra. tre un politique peut bien tre un emploi pour un
philosophe, ce nest pas un emploi en philosophie (Lane 2005 228), pois il [o filsofo qua
poltico] a affair au devenir, pas ltre (Dixsaut 291).
Se o Sofista, tambm por causa do seu tour de force ontolgico, se centra mais no pior
espcimen da arte (que era imperativo combater e o filsofo, mais do que o nobre sofista,
era o paradigma a opor-lhe), o Poltico aborda com maior equilbrio a figura homnima e os
seus rivais: o tirano e os politiqueiros, na expresso feliz de CLS. O poltico (como o sofista)
no se confunde com o filsofo porque os seus instrumentos ultrapassam o mbito da pura
razo: ele unifica os cidados no s com um lao divino, mas tambm corporal (309c1-3). O
incio dramtico da Repblica, que , por si s, todo um programa, torna claros os limites da
persuaso (vide Strauss 64): Scrates desce ao Pireu sob ameaa do uso de fora por parte
dos seus interlocutores, que se recusam explicitamente a dar-lhe ouvidos. A filosofia
aplicada no pode dispensar a violncia do poder (no h aqui nenhum totalitarismo, pace
Popper: todo o poder violncia, como dizem os anarquistas) a fora, a censura, o ensino
mas esta extrnseca filosofia enquanto tal. O filsofo, um tales contemplando os astros,
torna-se poltico olhando para baixo, para o abismo do poo trcio (Und wenn du lange in
einen Abgrund blickst, blickt der Abgrund auch in dich hinein, Nietzsche, Jenseits 146). O
fosso entre a filosofia poltica clssica e moderna menor do que o pintaram (como no
podia deixar de ser, se o Homem no mudou e, portanto, o modo de o domesticar, nos seus
traos gerais, tambm no): Plato sabe, como Maquiavel, que os profetas desarmados
nunca triunfaram (O Prncipe 6.6).
Insistimos: isto no significa que o poltico seja uma coisa outra que o filsofo: -o
apenas na medida em que pressupe este (B-P 13: il faut tre dialecticien pour dfinir et
matriser la comptence politique8). Opem-se-lhe o tirano e os politiqueiros, cujas aces
no so, tantas vezes, fundamentalmente diferentes das dele, que recebe o seu ttulo pelo
seu saber, mais do que pelo cargo (I1) ou pelo que faz. O poltico, portanto, e no o
filsofo: Lcifer ainda um anjo?
8 Por isso, como explica Dixsaut 291, no h contradio entre os dois fins do dilogo (a definio do poltico e o treino dialctico dos intervenientes): tal como o arquitecto tem de saber aritmtica, a parte terica da sua cincia directiva (D2), assim o poltico tem de dominar a dialctica. o Estrangeiro quem no-lo indica, logo no princpio do inqurito: A recta poltica, ento, onde a h-de algum descobrir? (258c3). O texto identifica a arte e o caminho metodolgico que conduz definio da mesma: o poltico , confirma-se, o dialctico.
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O esquema acima procura sintetizar as reflexes que temos vindo a desenvolver
acerca da relao entre as figuras principais da trilogia, que, torna-se claro, progride de
patamar em patamar, ainda que, a cada nvel, aborde, directa ou indirectamente, todas as
personagens do seu ramo. Entre estes escales, do ponto de vista do valor9, mantm-se uma
relao no proporcional, como sublinha Scrates (257b2-4)10. Se o poltico vale menos do
que o filsofo, natural que este no se degrade de livre vontade; por isso tem de ser
obrigado (R. I.347c) ou coerente (Ep. 7.328b7-c7). to violenta a descida caverna quanto a
subida. O sentimento que leva o filsofo a regressar o mesmo que, veremos, est na base
da indeciso de Scrates, o Jovem, em relao a qual a melhor das duas vidas, a sob Cronos
ou a sob Zeus (no podemos acampar no Tabor). A graa tem tambm uma gravidade: por
isso at Deus encarnou.
Pelo que dito no Sofista 217b4-6, a relao entre sofista, poltico e filsofo tinha j
emergido como problema na discusso que, antes de Scrates aparecer, Teodoro e os alunos
estavam a ter com o Eleata, que, a fazer f no Cirenaico, se evadira questo, limitando-se a
afirmar a diferena entre as trs figuras (217b1-3). Uma vez que o encontro com Scrates
ficara marcado para de manhzinha [; Tht. 210d3], a primeira conversa entre Teeteto
e o Eleata (218a) ter decorrido ainda de noite. No sabemos o seu tema (que, porm, pelo
menos obliquamente, ter tocado no mote da trilogia), mas importante t-la em mente11.
Se a ignorssemos, teramos de concluir pela superioridade do estofo dialctico de Scrates,
o Jovem, a confiar na maioria dos comentadores, que assume, e uma hiptese razovel, 9 Tema maior da introduo dramtica de ambos os dilogos, e sempre intrometido pela mo de Scrates. Manasse 174 n.1 v em 216c7-8 a sua primeira apario. 10 Que esta diferena de valor afecta no apenas os personagens mas tambm os dilogos a tese de Migliori 44, que tem a seu favor Plt. 284c6, em que Rosen (1983) 85 baseia a sequncia dos dilogos. Este ltimo funda ainda a escolha inicial pelo sofista na necessidade muito pragmtica de o isolar, since he assumes all looks (para ele, as trs figuras so de facto uma: ele prprio, como diz Dixsaut 290) e por isso, caso no seja identificado logo, we [may] be tricked later into taking him for a statesman or a philosopher. 11 Benardete III.73 o nico comentador a not-la, referindo que, por causa dela, o Estrangeiro acolhe facilmente (Sph. 218a) a sugesto de Scrates em 217d5-7.
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que o interlocutor do Filsofo seria ele12. Persiste, porm, uma assimetria: Teeteto conversou
tambm com Scrates. No Poltico 258a5-6, este promete, contudo, examinar noutra altura o
seu homnimo13. Alguns comentadores tm visto aqui o Filsofo, esquecendo que a trilogia
serve, pelo menos oficialmente, para o Estrangeiro expor a viso eletica das trs figuras.
Consequentemente, as duas trilogias, a real (Teeteto, Sofista, Poltico) e a incompleta (Sofista,
Poltico, Filsofo) integram-se numa hexalogia maior: Teeteto, [?], Sofista, Poltico, Filsofo,
[Scrates, o Jovem], qual poderamos ainda acrescentar, no comeo, o Parmnides, referido
em Sph. 217c5-7.
A aluso no gratuita. Scrates recorda quando ele prprio era Scrates, o Jovem,
e se encontrou com O Eleata. Tal como o Estrangeiro requer um interlocutor inofensivo e
bem-freado (Sph. 217d1), assim tambm Parmnides prefere um jovem hipcrita (no
sentido grego original), porque menos inquisitivo e mais directo (Prm. 137b6-8); no fundo,
manso e corajoso a um tempo (os dois caracteres que caber ao poltico tecer na cidade, de
acordo com a Coda). A meio do dilogo, Scrates como que substitudo por Aristteles
(no o de Estagira), da mesma forma que o Poltico comear com um render de guarda:
Teeteto d o lugar a Scrates, o Jovem (257c). A troca havia j sido antecipada no Sofista
218b pelo primeiro, que sugere o amigo, tal como Teodoro o tinha indicado a Scrates no
Teeteto (ad initium) e Scrates ao Estrangeiro no Sofista (217d5-7).
Este ltimo parece ter uma ideia, pelo menos geral, do curso do argumento, como
alguns comentadores notaram (mas tal no se deve a reproduzir uma qualquer doutrina que
tenha decorado). Ele j pensou no assunto, caso contrrio no poderia adiantar que as trs
figuras so, de facto, trs (217b). No entanto, a admisso mais bvia de que o Estrangeiro
est a controlar o rumo do inqurito encontramo-la em 217d8-5: ele sabe que o seu discurso
vai ser longo (talvez por isso o tenha querido evitar antes) mas sobretudo monolgico, no
obstante Teeteto. O dilogo tem aqui, por isso, uma funo em boa medida pedaggica,
funcionando como exerccio dialctico, como reconhecido no Poltico 285d4-7. Os passos do
Estrangeiro so, portanto, bem calculados (o que no implica que no possa fazer erros no-
propositados). Pense-se apenas nos dois paradigmas que ele mobiliza: o do pescador, no
12 Quanto possibilidade de um embate entre o Estrangeiro e Scrates, lembremos as palavras de Strauss 55: by failing to present a conversation between Socrates and the Eleatic stranger or Timaeus, he [Plato] indicates that there is no Platonic dialogue among men who are, or could be thought to be, equals. 13 Scodel 22 nota, e muito bem, que esta a prova maior de que Scrates e o Estrangeiro no se confundem: if the Stranger were a merely stand-in for Socrates [entendido aqui como o porta-voz de Plato], why should it be necessary for Socrates to examine his young namesake in the future?. As tentativas de encontrar o representante de Plato no dilogo esto destinadas a falhar por no se entender que le reprsentant de Platon, cest tout simplement le dialogue lui-mme dans sa totalit et dans son mouvement propre (Delcomminette 17).
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Sofista, e o da tecelagem, no Poltico. Ambos se revelaro, especialmente o segundo, teis aos
respectivos inquritos; o Estrangeiro introdu-los, porm, como se tivessem acabado de lhe
ocorrer no instante e fossem apenas paradigmas possveis, mais do que verdadeiramente
fecundos, i.e. capazes de fazer progredir a investigao em curso activamente.
Esta sua prescincia explica tambm a ordem dos dilogos, anunciada por Scrates
em Sph. 217a3: como este, ele conhece as verdadeiras relaes que as figuras em anlise
estabelecem entre si, nomeadamente a sua hierarquia. Teodoro, pelo contrrio, mesmo aps
a censura de Scrates (257a6-b4)14, parece incapaz de a adivinhar (257b9-c) (Benardete III.72
associa tambm ambas as coisas). A admisso em 257b5-7 do seu erro, ao nivelar as trs
personagens, como todas iguais em honra, , pois, bem-educada, apenas, mas no honesta,
porque ele sabe, mas no entende, a causa da sua condenao. Por isso tambm jura
desforrar-se (cf. Smp. 213d8). Ele o absoluto anti-filsofo (Miller 4-5), mau grado o respeito
que professa por eles (Sph. 216c), ilustrao viva do dito de Heraclito (DK B84): muito
conhecimento [] (Tht. 145a5-9) no ensina entendimento []. Ele no
partilha da ironia de Scrates (145b10-c2) e admite no ser seu uso participar em debates e,
mais grave, no querer corrigir a situao (146b). A propsito deste seu afastamento da
discusso no Teeteto, Friedlnder 151 comenta muito pertinentemente:
Theodorus retires from the conversation and leaves it to the young man to be
examined by Socrates. Similarly, in the Thrasymachus, the old Kephalos retires from
the conversation when it turns to the nature of justice itself. And just as Kephalos
represents a traditional, inarticulate type of justice, so does Theodoros represent a
type of knowledge that is limited to specific subject matter and thus cannot deal with
the nature of knowledge itself. It is a kind of instruction that is alien to the Socratic
conversation.
E todavia, Teodoro parece alimentar um genuno interesse por discusses
filosficas: no improvvel que esteja presente em todas as da hexalogia proposta. ele,
como j foi dito, que traz o Estrangeiro e quem o espicaa ambas as vezes, estimulando-o
fala (Sph. 217a9-10 e Plt. 257b8-c).
O Eleata, cedendo, no o faz, porm, por causa dele. por respeito a Scrates que
aceita expor a diferena entre sofista, poltico e filsofo (Miller 2). Antes havia-se recusado a
isso. No Poltico, o Estrangeiro deixa claro que o incentivo de Teodoro a que continue
escusado: se o faz, porque, tendo posto mos obra [], no deixar agora o
argumento incompleto (257c2-4) (uma tal afirmao apenas sublinha mais a ausncia do
14 Ricken 84, Rosen 10 e Scodel 23 dizem que esta crtica afecta tambm a direse, que no tece juzos de valor sobre os seus objectos. Essa, porm, no a sua funo, como havemos de repetir.
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Filsofo). Isso no implica, porm, que siga at ao fim com o mesmo interlocutor e o
Estrangeiro coloca o problema, perguntando que fazer com Teeteto. Teodoro com traos,
estamos convencidos, de personagem cmica (o idiota) , porque no treinado na dialctica
incapaz de perceber o quanto esta pode cansar (pensar desgasta: o corpo impe-se mente,
como veremos depois suceder com o universo), no entende a questo do Estrangeiro.
pois este a sugerir directamente, seguindo a deixa do prprio Teeteto (Sph. 218b), a
substituio deste, para que descanse (cf. Ly. 213d6), por Scrates, o Jovem, que frequenta
com aquele o ginsio [], vindos de onde, lembramos, ambos fazem a sua
apario no Teeteto. Scrates -nos a (147d) apresentado como colega de Teeteto, tendo
desenvolvido com ele, sob a direco de Teodoro, a diferena entre nmeros quadrados e
oblongos, merecendo, por isso, o louvor de Scrates, o Velho (148b3). No Sofista 218b,
Teeteto de novo quem o traz para a conversa, num indcio claro da estreita amizade entre
ambos d-nos um sinal da sua camaradagem: os dois fazem juntos a maior parte das
coisas. Tm a mesma idade, prximos, mas ainda aqum, da maioridade15.
Scrates, o Velho, aprova a troca, registando como ambos os jovens tm algo em
comum com ele: um, a aparncia fsica, o outro o nome. Isso no significa que os devamos
interpretar como ssias dialcticos de Scrates no confronto com o Estrangeiro. Muito pelo
contrrio. A sua associao a Scrates tem de se mostrar mais palpvel. No incio do Sofista
(218c), o Estrangeiro alerta para o facto de Teeteto e ele poderem no partilhar o mesmo
conceito de sofista, mau grado ambos utilizarem a mesma palavra. A afinidade entre as suas
concepes da figura tem de ser testada dialogicamente. Da mesma maneira, o nome em
comum entre os dois Scrates pode ocultar diferenas substanciais entre ambos. O filsofo
sublinha que o verdadeiro parentesco16 o determinado pelo : s a alma lhe interessa
15 Sobre Scrates no sabemos muito mais que isto. A Carta XI, o nico outro ponto do corpus em que Scrates vem referido (doente, como Plato), confirma o seu interesse por questes polticas: Laodamante, porta-voz de um grupo de colonos, pede ao Mestre ou a Scrates que se desloquem colnia para ajudar na feitura das leis da nova . Aristteles refere-o na Metafsica VI.1036b25, dando a entender que a definio de Homem (e no s), como no nosso dilogo, continuava a ser uma das suas preocupaes e que a formao em geometria influenciava ainda os seus raciocnios. Para uma discusso das opinies de Scrates, ou uma tentativa de reconstruo delas, a partir do brevssimo comentrio de Aristteles, vide Ricken 88-9 ou comm. ad. loc de David Bostock (1994), Aristotle. Metaphysics. Books Z and H. Clarendon Press: Oxford. Segundo alguns autores (e.g. Taylor 394), seria ainda este o Scrates dos famosos silogismos de Aristteles, o que nos parece uma especulao estranha e infundada. 16 Pois vinculativo reconhecer sempre, desejando [que o sejam] [], os nossos congneres atravs de discursos [ ] (258a2-3). Giorgini ad loc. e Ricken 86 relembram as cenas de anagnrise na tragdica clssica, reenviando para M. Erler (1992), Anagnorisis in Tragdie und Philosophie. Eine Anmerkung zu Platons Dialog Politikos, Wrzburger Jahrbucher fr die Alterumswissenschaft 18: 147-170, a que no tivemos acesso.
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(Tht. 145b; cf. Chrm. 154e) e a natureza desta, s o exerccio dialctico capaz de a trazer ao
de cima. Scrates deve provar-se altura de Scrates, mostrar-se um daqueles que
expectvel que venham-a-ser capazes e bons [] (Tht. 143d6) e que tanto
interessam ao Velho. O Poltico funciona, pois, como um teste do Jovem (e nosso: Howland
232), conduzido pelo Estrangeiro a pedido de Scrates, que promete ele prprio vir a
interrogar o seu homnimo mais tarde. Da, tambm, o relevo que dado dialctica
enquanto arte no dilogo (por isso inserido pelos antigos entre os do gnero lgico): trata-
se aqui de provar a tmpera filosfica de Scrates e necessrio conhecer os critrios pelos
quais o prprio exerccio pode e deve ser julgado (por isso o passo sobre as duas artes de
medir, Parte III). Ao mesmo tempo que o avalia, o Estrangeiro instrui-o (pensemos na regra
de algibeira para a direse, a discutir em I2 e BI), preparando-o para o encontro com o outro
Scrates, porventura mais difcil (no por acaso o Teeteto conclui em aporia, ao contrrio
dos dilogos eleticos). Se h, ento, algum julgamento filosfico a decorrer aqui, o de
Scrates, o Jovem. No sabemos o veredicto, porm. Scrates, o Velho, no emite qualquer
juzo no fim17; figuraria, talvez, no comeo do Filsofo, a ter este existido. Note-se que a
avaliao que Scrates, no incio do Poltico, faz do Sofista, incide, de facto, no tanto sobre a
correco ou no da definio alcanada (o que no quer dizer que discorde dela ou que os
resultados no tenham importncia, contra Howland 227), mas sobre a performance dialctica
dos intervenientes na discusso, Teeteto e o Estrangeiro, agradecendo a Teodoro por lhe os
ter apresentado.
Scrates, o Jovem, aceita o desafio. O Eleata louva a sua disposio, que , por si s,
um sinal positivo: se acaso tivesse alguma objeco, confessa, a prontido de Scrates para
participar na discusso, mostrando assim um carcter pelo menos curioso quanto s coisas
filosficas e capaz de se expor (ao contrrio de Teodoro), seria bastante para a dirimir. A
conversa comea. O valor do Jovem, s a anlise completa do dilogo o pode revelar18.
NOTA: Doravante, por Scrates apenas referir-nos-emos sempre a Scrates, o Jovem, salvo em
aluses a outros dilogos, em que s o Velho figura. Os nmeros Stephanus referem-se, se no
acompanhados de outra indicao, ao Poltico, excepto quando o contexto torna claro que
continuamos a falar de uma obra diferente, antes mencionada.
17 No aceitamos, pois, a atribuio por Schleiermacher (e seus seguidores) da ltima fala do dilogo a Scrates, o Velho. 18 Sem prejuzo da imperativa anlise surda (ou seja: auto-suficiente) do dilogo, convm lembrar que Scrates, pelo que se pode deduzir do testemunho de Plato e Aristteles, ter estado fortemente ligado Academia, sendo, especulam, e no infundadamente, muitos autores, professor l. Scrates estaria ainda vivo aquando da publicao do dilogo. Seria, pois, improvvel que Plato pretendesse retrat-lo como um dialctico incapaz, mesmo tendo em conta que um Scrates jovem que figura no Poltico, cuja pouca idade pode desculpar os erros ou fragilidades.
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PARTE I : A DIRESE INICIAL (258b2-268d4)
I believe it would be impossible to show that diaeresis
plays any direct role in the delineation of the political art.
Rosen (1979) 63 (vide tambm 66).
DIVISO 0 [D0]: (258b2-258b5)
O Estrangeiro, na sua busca pelo poltico, comea por definir onde o procurar. Sem
nenhuma explicao, coloca-o entre aqueles que sabem. Certos comentadores tm
questionado a legitimidade de uma tal assuno, sem perceber que a direse exige sempre,
para arrancar, a delimitao teolgica (i.e. de cima, assumida, primeira) da rea do
inqurito. De facto, a direse no dispensa um conhecimento prvio, ainda que genrico, do
que se pretende descobrir (caso contrrio cairamos no paradoxo epistemolgico do Mnon).
O objecto determina o prprio progresso do exerccio. Vimos j que o Eleata sabe
claramente aonde quer conduzir Scrates, mas no necessrio, parece-nos, partilhar essa
lucidez quanto natureza do alvo do inqurito, sob pena de, ento, a direse ser um mtodo
de todo intil para o filsofo, com intuitos didcticos apenas. Pelo contrrio, ela uma
verso esquemtica do trabalho socrtico de definio (que se distingue, porm, pelo seu
carcter tico-pedaggico), que parte j sempre da ideia que o sujeito tenha sobre o assunto
a investigar, a qual apurada at verdade (ou, com Scrates, o Velho, aporia, o que no
se constitui como problema por a investigao filosfica ser para ele secundria em relao
sua misso educativa) no decurso do exerccio dialctico. Que o poltico se encontra entre
aqueles que sabem to-s uma working hypothesis que, se se provasse errada, seria
abandonada, como no final do Sofista (267e e 268b-c). Para o Eleata, porm, quem faz algo, ,
at prova em contrrio, possuidor de uma (termo aqui equivalente a ), pela
qual faz o que faz, j que em princpio ningum pode fazer nada sem que saiba o que est a
fazer, pelo que h-de participar de qualquer espcie de cincia (cf. Grg. 465a5-6).
O artista [] , na sua rea, o perito absoluto, capaz de explicar o objecto da
sua cincia e discernir quem, a esse propsito, fala bem ou mal (Ion 531d12-532b2). Perceber
o conceito de cincia/arte em Plato pode ser-nos til para entender a significncia de D0 e
tudo o que antecipa em relao natureza do trabalho poltico. No seu livro Platos
Philosopher-King: a Study of the Theoretical Background, Rosamond Sprague analisa as condies
que uma arte tem de preencher para que merea tal nome, do que se pode deduzir do
corpus. Na senda do seu trabalho, salientamos quatro grandes traos das :
) universalidade: uma arte tem de abarcar o seu objecto na totalidade. on afirma ser
capaz de se pronunciar apenas sobre Homero (Ion 531a), mas Scrates demonstra a falsidade
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de tal pretenso: quem saiba discorrer sobre Homero est igualmente habilitado a falar de
Hesodo ou Arquloco (532b2-7). O hermeneuta (porque nessas vestes que o rapsodo aqui
se nos apresenta) tem de poder interpretar qualquer texto: a exegese no faz acepo de
autores. Poder-se-ia argumentar que um especialista em Keats no saberia falar sobre
Hlderlin, mas tal deve-se no ao facto de isso exigir dele uma arte diferente mas to-s
sua falta de informao sobre o lrico alemo. Os recursos tericos necessrios anlise de
ambos os poetas so, porm, os mesmos: no por acaso a cadeira de introduo aos estudos
literrios comum a todos os ramos do curso de lnguas modernas. De igual modo, o
verdadeiro poltico est tambm habilitado a governar qualquer pas, o que no significa
que isso no implique estudo da sua parte em relao s circunstncias especficas do
territrio humano e fsico que convidado a dirigir (h uma matria-prima, exterior, sobre
a qual toda a arte se exerce e que determina os moldes em que a cincia se verte em aco:
uma casa veneziana no pode ser transladada para o Japo impunemente ao primeiro
abalo ruiria): o FMI, depois de se inteirar primeiro da situao nacional junto de governo,
partidos, sindicatos e outras foras da sociedade civil, dita a sua receita, nica para cada pas
(os pontos de contacto, abundantes, com outros programas de resgate apenas do
testemunho de que os princpios gerais por detrs so os mesmos, invariveis, como se quer
de uma dita cincia).
) exclusividade: poucos so os praticantes de cada arte. Esta constatao emprica
tem, porm, uma base antropolgica. Cada Homem nasce com uma vocao especfica: o
fazer o [que lhe ] prprio [ ] da Repblica 433a8 aponta nesse sentido,
como o passo deixa claro. Mais adiante no nosso dilogo (292e), ser explicitamente
reconhecido o quo poucos verdadeiros polticos emergem em cada cidade, sublinhando-se
a sua raridade. Da a importncia de estudar como, na ausncia do poltico, a cidade se deve
organizar; por isso a este passo se segue a importante reflexo do Eleata sobre a Lei.
) produtividade: toda a arte produz um (que nico, porque exclusivo dela).
Determinar, com exactido, qual a obra do poltico precisamente o desafio que o Eleata
enfrenta e a que responder de forma mais completa apenas na Coda. Podemos, porm,
adiantar as linhas gerais da sua resposta, com base no restante corpus, nomeadamente na
Repblica. A Scrates identifica o objecto da cincia do poltico (como filsofo) com a Ideia
do Bem. Ele ocupa-se da virtude: quer tornar os cidados melhores, pois s assim a cidade
pode subsistir saudavelmente. A superioridade da poltica sobre as outras artes resulta de
ser a nica no-neutral, isto , capaz de juzos de valor, e, portanto, a nica que se move no
plano do dever, capaz de, a partir deste, orientar as restantes que, de outro modo, so apenas
eficazes, mas no necessariamente teis (cf. La. 195c7-12, Chrm. 174c-d, Euthd. 291c7-d3).
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) ensinabilidade: as artes devem poder ser ensinadas. Diz-se, creio, que a medicina
uma arte. Duplos so os seus produtos: a formao continuada de outros mdicos, para l
dos que j existem, e a sade (Clit. 409b). No se trata aqui s de assegurar a continuidade
da arte, mas o prprio estatuto desta enquanto cincia, o que exige um corpo de saber mais
ou menos fixo, transmissvel, que exprima uma relao com a verdade pela sua prpria
inalterabilidade. Se a arte poltica pode ou no ser ensinada um dos primeiros problemas
do Protgoras e incide directamente na questo da correco de D0. Scrates defende que
no possvel aprender a : grandes homens pblicos parecem ter sido incapazes de
fazer dos seus filhos bons cidados (319e-320b). O mesmo argumento ressurge no Mnon
93c-94e. Perante a impossibilidade de dar o exemplo de algum que tenha sabido melhorar
os outros, Scrates conclui pelo carcter divino dos polticos, que equipara explicitamente
aos poetas: como estes, nada sabem do que dizem, pois inspirados que falam (99d5). A
arte poltica, ento, uma no-arte, salvo se houver algum destes homens polticos que
forme tambm outro poltico [] um assim seria entre ns como entre sombras um
[homem] verdadeiro (100a). Esta sada de emergncia do argumento aponta na direco
certa: o nico poltico aquele que capaz de gerar outros bons como ele19. O grande
problema desta soluo que nega poltica um autnomo, contra (releia-se
tambm a declarao do Clitofonte acima). O seu produto seria a prpria multiplicao dos
seus produtores. Este problema assombra um conjunto de dilogos aporticos, entre os
quais o Eutidemo. Discutir a questo em pormenor exigiria uma tese, e talvez de
doutoramento. O que se pode dizer que, neste particular, o paralelo justia/arte poltica e
quebra, e de maneira significativa. A tal no certamente alheio o facto de estarmos
perante uma arte moral, como foi dito em . Num sentido muito importante, ento, a
poltica, contra o que diz o Eleata, no uma 20.
19 No seu ataque a Homero, na Repblica X.600c2-e2, Scrates censura-o por no ter deixado quaisquer discpulos, vendo nisso prova de que o poeta era, afinal, sem prstimo e por isso as pessoas o deixavam vagabundear pela Grcia. Os sofistas, aqui contrapostos a Homero, pela quantidade de alunos que arrebanhavam, s aparentemente funcionam como contra-exemplo, pois tambm estes [os seguidores] no foraram a ficar nas suas casas, ou, no os convencendo, se fizeram eles pedagogos, seguindo-os para onde quer que fossem, at possuirem bastante da educao deles (600e). Um homem, porm, criou vrios amigos e era honrado e estimado por eles (600c5-6) e nunca saiu da sua cidade: Scrates, que disse de si, creio ser dos poucos atenienses, para no dizer o nico, experimentado na verdadeira arte poltica e o nico, entre os de agora, que a pratica (Grg. 521d6-8). Se, porm, o era, de facto, ou no, no nos possvel decidir aqui: seria necessrio estudar atentamente a Apologia de Scrates e a extenso da verdade das acusaes que enfrentou. 20 imperativo a este propsito ler David Roochnik (1996), Of Art and Wisdom. O autor, atravs de uma anlise cuidada de alguns dos principais dilogos aporticos, argumenta precisamente, contra o grosso dos comentadores, que em Plato a virtude no explicvel por um modelo tcnico.
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Alguns comentadores tm mostrado tambm o seu desagrado com esta designao
por, a seu ver, trair a natureza phronsica da poltica (este um dos leitmotive da anlise de
Rosen; cf. Castoriadis 36, que apoxima a poltica da faculdade de juzo kantiana).
Se se entender, porm, a poltica como a cincia do Bem (se o termo causa confuso, lembre-
se a cincia do bem e do mal, do Gnesis) que , tal receio mostrar-se- infundado, porque o
Bem no passvel de ser reduzido a um conjunto de imperativos deontolgicos (a
casustica, mau grado aquilo em que se tornou, acertava em parte na verdade da unicidade
das coisas morais): o bom poltico no est desprovido de sensibilidade e bom-senso (estes
so subsidirios do Bem, de resto). O corpo de saber fixo de que se falava em tem, pois,
de, ele tambm, ser entendido de uma maneira algo outra do que seria se estivssemos a
falar de uma normal. O Bem imutvel, porque , e, por isso, slido: ele o corpo fixo
do saber da poltica, que no dispe, porm, de um corpo de saber fixo, pois que o Bem
novo como o sol de Heraclito (DK B6) e todavia o mesmo. Aquilo pois que se pode aprender
no tanto o que fazer (no h manual de instrues para como governar uma cidade: nem O
Prncipe substitui a virt necessria), mas o perguntar pelo Bem (no se aprende filosofia:
aprende-se a filosofar, dizia, dizem, Kant). Clitofonte tinha razo nas suas crticas: Scrates
no ensina nada de concreto sobre a justia (o que , no fundo, fazer o [que lhe ] prprio?
Como sei o que prprio para mim?). A razo por que no o faz a mesma pela qual, na
nossa era, os deuses no nos oferecem a poltica (Parte II, 6): ningum pode
conhecer por ns o Bem: ele exige uma relao pessoal, um conhecimento ntimo.
Tudo isto corrobora a impresso, se dvidas ainda houvesse, de que a , se
uma , uma muito sui generis, tal como a do sofista, a de no ter por
parecer ter toda e qualquer . As figuras que a trilogia discute no se deixam explicar
nos termos usuais, que s alteradamente lhes podem ser aplicados: a linguagem comea
desde j a trair-nos.
D1: | (258b6-259d5)
Se Sofista e Poltico comeam da mesma maneira, classificando os seus objectos com
aqueles que sabem, rapidamente divergem logo no primeiro corte. O Estrangeiro chama a
ateno de Scrates para o facto, realando a necessidade de uma diviso outra das cincias.
O prprio Sofista j dera mostras disso, mas o Poltico confirma a flexibilidade de um mtodo
como a direse, aberto s necessidades do inqurito. Se antes (Sph. 219a8-c8) se dividira as
cincias em poiticas e aquisitivas (cf. tambm 279c7-8), o Estrangeiro arruma agora de um
lado as prticas, de outro as cognitivas. Perceber o corte implica um estudo atento dos
passos em que as duas so contrastadas directamente.
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1.
, ; (258d4-6)
Ento acaso no so a aritmtica e outras artes, congneres desta, despidas de aces
e [no] tm para dar apenas o conhecer?
2.
,
. (258d8-e2)
J as [artes] que dizem respeito carpintaria e a todo o trabalho-manual, pelo
contrrio, possuem [porque adquiriram] [um]a cincia [que lhes ] conatural, que
est como que nas aces, e acabam com-pletamente os corpos que, por elas, vm-a-
ser, primeiro no sendo.
3. , ,
. (258e5)
Divide desta maneira, ento, todas as cincias, a uma chamando prtica, a outra
cognitiva apenas.
4. ,
.
Mas isto, pelo menos, claro: que todo o rei capaz com as mos ou o corpo todo de
coisas pequenas para manter o poder, [por] contra[posio com o muito que consegue
por] a convergncia [reunio das faculdades ou faculdade de reunir, unde inteligncia;
cf. Tht. 184d] e vigor da alma. (259c6-8)21
5.
;
Queres, pois, que digamos que o rei est mais em casa entre as [artes] cognitivas do
que entre as artes-manuais e, como um todo, as prticas? (259c10-d)
6. .
Tendo para dar, creio, conhecimento, mas no trabalho-manual. (259e11)
21 Cf. Plu. an Seni Resp. 789d5-7: aos remadores [idosos] da Boul, da gora e de Zeus Patrono no exigimos as obras dos ps ou das mos, mas do [bom-]conselho [], da previdncia [] e da razo [].
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Parecem-nos dois os traos fundamentais das artes prticas: [1] envolvem trabalho
fsico: insiste-se no trabalho das mos (2, 4, 5 e 6), mas em 4 fala-se no corpo todo; [2]
implicam criao, isto : a produo de corpos previamente no existentes, como se diz em
2. Para o Estrangeiro, uma arte prtica no a que opera sobre a realidade, mas aquela cujo
exerccio implica, da parte do sujeito, uma aco material []: movimento no espao e/ou
aplicao de fora sobre um objecto. A poltica altera a paisagem do real (humano e fsico),
mas f-lo sempre indirectamente (directivamente, dir o Estrangeiro adiante)22: uma arte
parada, traduo bastarda para , que no deve ser vertido como arte terica,
expresso infeliz, pois a poltica no , obviamente, uma disciplina terica, no sentido que o
termo hoje possui (no sentido grego, e no mbito da filosofia platnica, -o, mas tanto
quanto a carpintaria: o poltico contempla o paradigma da cidade no cu [R. IX.592b] tal como
o artfice fixa o olhar na Ideia a partir da qual modela o leito [R. X.596b]). As artes cognitivas
so apenas [] cognitivas (1 e 3), de onde se subentende que, como estas, tambm as
prticas implicam um certo saber (que h uma cincia que lhes conatural reconhecido
em 2). O que, portanto, marca as primeiras no tanto o elas serem cognitivas (as outras,
sua maneira, tambm o so), mas o no serem prticas: so . So
artes marcadas pela privao (o termo no deve ser aqui entendido negativamente como
sinal de menoridade).
O Estrangeiro, porm, deita a perder esta distino estabelecida por [1] ao postular,
em 2, que as artes prticas fabricam novos corpos, com isso deixando uma srie de
aptridas, estranhas a qualquer uma das duas categorias inauguradas pela direse. O
carpinteiro monta uma cadeira, um pedreiro levanta uma casa mas o discbulo no cria
nada, nem o citarista ou o soldado. Esta crux , parece-nos, insolvel: o texto claro, as
consequncias inaceitveis. De pouco serve dizer que o Eleata se reporta em 2 apenas ao
trabalho especificamente manual [], quando a continuao deixa claro que este
funciona como sindoque para a aco material [] como um todo [], de que a
apenas uma parte (5). Ainda que nos restringssemos, contudo, s artes
puramente manuais, teramos problemas em catalogar no esquema proposto, por exemplo,
a cincia do cirurgio (a , literalmente). No Sofista 219b-c, o Estrangeiro divide
todas as artes em poiticas [] e aquisitivas [], sendo que o artista poitico
traz depois para o Ser o que antes no existia (219b4-5). A linguagem pode ser semelhante
de 2, mas que no estamos perante a mesma diviso prova-o [i] o facto de se dizer
explicitamente que o corte do nosso dilogo diferente do anteriormente feito durante a
busca do sofista (258b9-c) por alguma razo o Eleata usa aqui e no - e
22 Brecht pergunta: Quem construu a Tebas das sete portas?/ Nos livros esto os nomes de reis./ Foram os reis que arrastaram os blocos de pedra?. (trad.: Paulo Quintela; Almedina, Coimbra: 1975).
-
19
[ii] a omisso, crtica, do termo , que permite que, no Sofista, entre as artes poiticas,
sejam includas, por exemplo, as imitativas [], o que engloba as artes (no sentido
estreito do termo hoje), entre elas a poesia e a msica, que, obviamente, no produzem
corpos. No Poltico, o Estrangeiro reduz a a um tipo de , em vez de se ater aos
seus sentidos correntes, a primeira uma simples aco (de todo o gnero), a outra uma
especificamente produtiva, sub-categoria da anterior.
Esta alterao do sentido de (e veremos que o Eleata deturpa demasiado as
palavras) invalida D1, que se mostra incapaz de cumprir a regra mais bsica da direse: a
repartio de todos os itens de uma categoria pelas duas sub-categorias avanadas. Mesmo o
termo s batoteiramente pode acolher a expanso de sentido que lhe impusemos:
a custo rotularamos a poesia, arte parada, de cognitiva. Ao intrprete oferecem-se duas
opes: aceitar o falhano de D1, que necessrio ento explicar, ou parmnides fechar os
olhos realidade e afirmar o corte como ele devia ser. A ltima posio parece-nos autista.
Como, ento, justificar D1 (e at, indirectamente, a diviso do Sofista, que no , ela tambm,
exaustiva)? Postular que o Estrangeiro erra de propsito num momento to inicial torn-
lo num vilo dialctico, papel que no coerente com o desenho do seu personagem e que
esvaziaria em boa medida a Parte I de interesse filosfico. Parece-nos antes que a tentativa
de separar os saberes humanos em dois grupos resulta quase inevitavelmente numa diviso
incompleta ou irrelevante. No impossvel que as duas coisas sejam, de facto, exclusivas e
que, entre um mal e outro, o Eleata, sensatamente, tenha optado por um corte que
contribusse para a definio do objecto do seu inqurito. O passo 4 surge como o
testemunho da diferena inaugural que pretendeu estabelecer, entre disciplinas mais
intelectuais e outras mais fsicas (h ecos desta diviso em Grg. 450c e ss., em que todas as
so catalogadas como faladas ou mudas porque essencialmente prticas). No sendo
um corte completo, D1 firma desde logo uma posio capital no entendimento eletico do
poltico e cujo esquecimento responsvel pela confuso no final da Parte I. , pois,
apropriado que, em jeito quase de composio circular, seja a primeira caracterstica da arte
poltica a ser apontada.
INTERLDIO I [I1] (258e8-259c5)
Ne illud quidem videtis, quam omnem invidiam maiores nostri dominis, omnem
contumeliam servis detraxerint? [] honores illis in domo gerere, ius dicere
permiserunt et domum pusillam rem publicam esse iudicaverunt.
Sneca, Cartas a Luclio V.47.14
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Onde io, per non incorrere in questo errore, ho eletti non quelli che sono principi,
ma quelli che, per le infinite buone parti loro, meriterebbono di essere [] Perch
gli uomini, volendo giudicare dirittamente, hanno a stimare [] quelli che sanno,
non quelli che, sanza sapere, possono governare uno regno.
Maquiavel, dedicatria dos Discursos sobre a Primeira Dcada de Lvio
Dentro do segundo momento/primeira diviso da direse, o Estrangeiro apresenta
duas teses controversas: [1] a identidade entre poltico [], rei [], senhor
[] e administrador []; [2] a irrelevncia do efectivo exerccio do poder
para o merecimento do nome de poltico/rei. A primeira tese criticada por Aristteles no
comeo da Poltica (1252a7-13):
Aqueles que pensam que o poltico, o rei, o administrador e o senhor so o mesmo no
dizem coisa com coisa. Julgam que cada um destes difere na grandeza ou pequenez [do
seu poder], mas no na forma []: [chamar-se-] senhor o [governante] de poucos,
administrador o de muitos, poltico ou rei o de mais ainda, como se em nada se
distinguissem uma grande casa e uma pequena cidade [cf. Pl. Pol. 259b9-10 e infra].
O Eleata de novo visado em I.1253b18-20: A alguns parece que o senhorio
[] uma cincia, e que a administrao [], o senhorio, a poltica
[] e a realeza [] so a mesma coisa, tal como dissemos no comeo. A tese,
arriscamos, ser genuinamente platnica (talvez mesmo socrtica: X. Mem. 3.4.12 e 4.2.11) e
encontra-se presente em vrios dilogos. No Protgoras 318e5-319a2, o sofista afirma que o
seu ensino prepara tanto para a gesto das coisas prprias [ ], como das da
cidade [ ] (cf. R. X.600c-d): se certo que as duas no so identificadas, a sua
proximidade no inocente, como quem sugere que a arte uma e a mesma. No Eutidemo,
e so explicitamente assimiladas (291c4-5) e nos Amantes 138b-c a
identidade entre rei, poltico, administrador e senhor abertamente defendida23 com base
no argumento de que a arte que subjaz a todos a mesma: a justia24.
Encontramos um raciocnio semelhante no Mnon, que apresenta talvez a melhor
explicao da tese. Interrogado por Scrates quanto natureza da virtude (71d), Mnon, 23 Notar, porm, que no Fedro 248d parece haver uma diferena entre e , mas no, significativamente, visto tratar-se da equivalncia mais problemtica, entre este e o administrador. 24 Aristteles, que, como vimos, discorda frontalmente de Plato na matria aqui em discusso, tem, porm, um passo da tica a Nicmaco em que se aproxima da argumentao aqui exposta, sem chegar identificao das figuras em questo: porque so capazes de contemplar [] as coisas boas [o Bem] para si e para os homens; julgamos serem desta natureza os administradores e os polticos (VI.1140b10-12).
-
21
comprovando, ao dar voz opinio tradicional, que a eco-nomia e a poltica eram tidas por
duas artes distintas, responde que uma a virtude do homem, outra a a da mulher: a do
primeiro a gesto da coisa pblica, a da segunda o cuidado da casa (71e). Scrates, no
seguimento da discusso, pe em causa esta pluralidade de virtudes, questionando a
importncia do factor gnero para a definio de uma qualidade: nada distingue a fora, na
medida em que fora, esteja [esta] no homem ou na mulher (72e6-7). Est preparado o
terreno terico que permitir a subordinao da arte feminina da eco-nomia e da arte
masculina da poltica a virtudes comuns: a e a . Depois desta
demonstrao, Mnon identifica ento a com o governo dos homens [
] (73c9), sendo refutado por Scrates, que nega que um tal conceito de virtude,
embora j extensvel a homens e mulheres, se possa aplicar aos escravos. Se Aristteles, voz
da tradio, fala de uma virtude prpria do homem, da mulher e do escravo (Pol. I.1260a29-
36), Plato insiste na unidade bsica do Bem. Este pode ter diferentes materializaes, mas
seria errado confundir essas encarnaes especficas com a essncia do Bem em si.
No passo do Mnon, se no h uma identificao plena entre a arte da eco-nomia e a
da poltica, h, porm, uma clara desvalorizao das diferenas entre ambas e uma crtica
cerrada ideia de que uma prpria da mulher, outra do homem. No h assimilao, mas
h confuso: o essencial do sucesso das duas artes no reside na cincia especfica que lhes
possa estar associada, mas sim aqum, nas virtudes superiores do sujeito, que Scrates
identifica como a sensatez e a justia e Mnon como o poder sobre os homens. A
pode situar-se no cruzamento destas duas definies, enquanto a cincia do exerccio justo do
poder. Scrates defende aqui uma tese poderosa: que quem no administra (casa ou cidade)
com justia, no administra bem (73a-b). A cincia poltica uma cincia do Bem. O mesmo
no se aplica a outras, como Polemarco, um pouco contra-vontade, constata na Repblica
(332d5-333d): a justia em nada influencia a do mdico, do sapateiro, do pedreiro ou
do construtor naval. Uma s , como j antes vimos, em D0, explicitamente moral: a
. Esta, diz-nos Scrates, falha a sua promessa quando o poder no exercido
justamente. Para Plato, como tambm depois para Aristteles, impossvel existir um
estado totalmente injusto (cf. R. 352c): a prpria injustia conduz ao colapso do poder.
Tambm de outras actividades directivas seria possvel dizer que, se o chefe no for
justo, estas no subsistem e que, nesse sentido, tambm deviam ser englobadas sob a
definio acima proposta da arte poltica. Um mestre-de-obras ou um treinador de futebol
que sistematicamente penalizem, sem razo, o melhor dos operrios ou dos jogadores
podem, pela sua atitude, comprometer a empreitada ou o jogo (o argumento da Ilada
apenas uma variao sobre este tema: um general ofende o seu melhor guerreiro, sofrendo
consequentemente uma srie de reveses na guerra, quando este resolve fazer greve). Mas
-
22
esta aproximao obscurece um ponto fundamental: o recurso justia, nestas profisses,
unicamente instrumental, e no constitutivo. Sendo possvel obter os mesmos resultados
sem recurso justia (apelando, por exemplo, ao medo ou s paixes: imagine-se uma Ilada
alternativa em que Ptroclo morto por Heitor a pedido de Agammnon, sbio de que isso
faria Aquiles regressar ao combate), mestre-de-obras, treinador ou general podem faz-lo,
sem que isso afecte a sua arte o poltico no. que o Justo no apenas a condio de
possibilidade do seu trabalho, o prprio fim deste. Ele procura a cidade justa, porque
apenas essa se pode dizer bem administrada.
Ora visto que as virtudes da boa administrao so comuns a homens e mulheres,
no h nenhuma razo para que apenas um destes seja capaz de exercer uma arte (seja a
poltica, seja a eco-nmica) e no a outra. Todas estas consideraes levam menorizao
clara da (putativa) diferena entre a eco-nomia e a poltica. Em 91a3-4, onde a tese ressurge,
no h, mais uma vez, a coincidncia explcita entre as duas, mas possvel intu-la na
aluso sabedoria e virtude pelas quais os homens administram de forma bela as casas e as
cidades (como se estas fossem uma coisa s). Ao proclamar a unidade de poltico e
administrador, o Eleata, ao contrrio do que supe Benardete III.77, afirma o primado da
felicidade sobre a economia. O que aproxima estas artes, que Plato diz serem uma s, no
tanto o trabalho de gesto que implicam, mas o seu : a produo de uma comunidade
justa, onde cada um se cumpra. O Bem individual coincide com o Bem comum, porque o
Bem, que o Justo, uno (Aristteles, pelo contrrio, concebia uma justia filial, desptica e
matrimonial, como foram coisas diferentes: E.N. V.1134b8-17). Isto aplica-se tambm
relao mestre-escravo: o Estagirita fala [n]um certo interesse e amizade comuns entre
senhor e escravo, se por natureza justos [os papis] (Pol. 1255b12-14). O bom mestre
procura o bem dos seus escravos. O raciocnio, decorrente da assimilao entre e
, pressupe um alinhamento de Plato e Aristteles na questo da escravatura
natural25: o senhor permite ao escravo cumprir a sua vocao natural para o servio26. A
crtica de Benardete III.78, de que a equivalncia entre e aponta para a
relao mestre-escravo como o paradigma da relao poltica (a tirania seria o regime mais
25 Para um levantamento rpido dos pontos principais da doutrina platnica sobre a escravatura, vide Gleen Morrow (1939), Platos Law of Slavery in its Relation to Greek Law. University of Illinois Press: Urbana: 35 (reimpresso em 1976 pela Arno Press: NY). 26 O prprio Bem do senhor est a implicado, como explica Sneca, na carta citada em epgrafe (V.47.6): Outro [escravo] destina-se a trinchar aves de alto preo []. Desgraado, cuja vida no tem outro fim que no seja trinchar aves! S que talvez ainda seja mais miservel o senhor que nisso o adextrou para servir o seu prazer, do que o escravo forado a adextrar-se (trad.: Jos Segurado e Campos; Gulbenkian, Lisboa: 42009).
-
23
honesto, nesse sentido) no colhe, pois no h nada de aviltante na relao entre o senhor e
os seus escravos se esta for justa, como diz Aristteles.
Esta uma tentativa de reconstruo do argumento platnico da identidade das
quatro artes (, , e ) com base no Mnon. No Poltico, o
Eleata limita-se a constatar a semelhana, a seu ver, entre uma grande casa e uma pequena
cidade (259b9-10) (Versailles, na sua glria, tinha mais habitantes que algumas
menores). Este argumento, por si s, no colhe. Concedendo que, de um ponto de vista
puramente administrativo, casa e cidade no sejam assim to diferentes, separa-as, porm,
o que Schmitt considera a essncia do poltico: a abertura possibilidade real do conflito
extremo. Guerra e paz so prerrogativas dos estados: s na comdia um homem pode
estabelecer uma paz privada com os inimigos do pas. necessrio subsumir o conflito na
persecuo da justia para que a aproximao entre eco-nomia e poltica seja legtima, de
acordo com o raciocnio antes desenvolvido (mas, insistimos, exterior ao Poltico). Poder-se-
ia argumentar, ainda contra a identidade das quatro figuras, que para o Eleata o verdadeiro
poltico algum muito raro, excepcional, o que parece entrar em conflito com a ideia de
que a arte deste partilhada pelo administrador. Se se trata da mesma cincia, e tendo em
conta que cada cidado administrador da sua casa, a seria ento algo corrente, a
no ser que se postule que a maioria dos cidados no sabe gerir bem 27, tese que,
se a uma primeira vista parece radical, no o assim tanto: entre ns, conhecido o elevado
nmero de famlias endividadas, por exemplo, e, mais platonicamente, mesmo os que
governam bem as suas casas de um ponto de vista econmico (no sentido moderno),
discutvel que, porm, conheam o Bem e orientem a sua vida domstica nessa direco.
De acordo com a Repblica, porm, o filsofo (o nico que conhece o Bem) no pode
tambm ser administrador, por o ter sido abolido para os guardies (Benardete III.78 e
B-P n.21 insistem neste ponto). Reconhecemos a dificuldade em conciliar os dois dilogos (o
que, apesar de tudo, seria possvel, ainda que artificialmente), m