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JOÃO DIOGO R. P. G. LOUREIRO COMENTÁRIO POLÍTICO-FILOSÓFICO AO POLÍTICO DE PLATÃO LADO A: O PODER ENTRE A RAZÃO E A VIOLÊNCIA ~ INTRODUÇÃO, PARTE I (DIÉRESE) E PARTE II (O MITO) ~ Dissertação de Mestrado em Estudos Clássicos, na especialidade de Cultura Clássica, apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, sob a orientação da Professora Doutora Maria do Céu Fialho e do Professor Doutor Alexandre Franco de Sá UNIVERSIDADE DE COIMBRA FACULDADE DE LETRAS 2011

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  • JOO DIOGO R. P. G. LOUREIRO

    COMENTRIO POLTICO-FILOSFICO

    AO POLTICO DE PLATO

    LADO A: O PODER ENTRE

    A RAZO E A VIOLNCIA ~ INTRODUO, PARTE I (DIRESE) E PARTE II (O MITO) ~

    Dissertao de Mestrado em Estudos Clssicos, na

    especialidade de Cultura Clssica, apresentada

    Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, sob a

    orientao da Professora Doutora Maria do Cu Fialho e

    do Professor Doutor Alexandre Franco de S

    UNIVERSIDADE DE COIMBRA

    FACULDADE DE LETRAS

    2011

  • JOO DIOGO R. P. G. LOUREIRO

    COMENTRIO POLTICO-FILOSFICO

    AO POLTICO DE PLATO

    LADO A: O PODER ENTRE

    A RAZO E A VIOLNCIA ~ INTRODUO, PARTE I (DIRESE) E PARTE II (O MITO) ~

    Dissertao de Mestrado em Estudos Clssicos, na

    especialidade de Cultura Clssica, apresentada

    Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, sob a

    orientao da Professora Doutora Maria do Cu Fialho e

    do Professor Doutor Alexandre Franco de S

    UNIVERSIDADE DE COIMBRA

    FACULDADE DE LETRAS

    2011

  • ii

    AVISO

    E o prprio Plato viu-se a si mesmo, quando estava beira de morrer,

    transformado num cisne, saltando de rvore em rvore, dando muito que

    fazer [ ] aos caadores de pssaros, incapazes de

    o agarrar. Tendo ouvido [contar] este sonho, Smias, o socrtico, disse que

    todos os homens se dedicam com zelo [] a capturar a inteno

    [] de Plato, mas nenhum capaz, antes cada um fabrica []

    a sua exegese com vista [] ao que o prprio acha, escolhendo

    teologizar ou naturalizar [] ou outra [coisa] qualquer.

    Prolegmenos Filosofia de Plato 1.38-46

    A tese que se segue precisa de ser justificada, se no a quisermos reduzir sua causa

    mais imediata: a obrigao de apresentar uma dissertao para obteno do grau de Mestre.

    A questo no tanto porqu Plato? ou porqu o Poltico?, escolhas que se ficaram a dever a

    razes vrias, at acidentais: hesitmos longamente entre o Mestre e Heraclito e, tendo

    decidido pelo primeiro, poderamos ter optado por outro dilogo. A questo sim: para que

    que isto serve?. A nossa tese surgiu, em parte, em resposta ao convite com que se fecha a

    introduo traduo portuguesa, de Carmen Leal Soares, que a exprime a esperana de

    que a traduo [] possa contribuir para uma reflexo, em portugus, o mais alargada

    possvel sobre o contedo dO Poltico e sobre as questes por ele levantadas (29). O seu

    apelo no encontrou ainda eco palpvel. Tendo aceite o desafio, acreditvamos, ingnuos,

    poder vir a contribuir, ainda que humildemente, para a compreenso do texto: gostamos de

    nos convencer que o nosso trabalho no vo e, se no relevante para o pblico, ao menos

    til aos estudiosos da rea. Essa esperana era reforada pelo facto de, comparativamente

    com outros dilogos, a comear pelo Sofista, que o precede, o Poltico ser pouco estudado, o

    que oferecia, inclusive, a possibilidade, invejvel entre platonistas, de controlar o grosso da

    bibliografia especfica, pelo menos recente.

    Foi v a nossa f e derrotados o admitimos. No h um fundo sobre o qual se possa,

    bem ou mal, construir, apenas o mar-alto sem-limites da dissemelhana (273d6-e) das

    opinies dos estudiosos, o que preclude qualquer espcie de progresso, para frustrao do

    recm-chegado bem-intencionado. H, quando muito, consensos alargados, isto , leituras

    de certos passos que a maioria dos comentadores partilha. Esta unidade, porm, s subsiste

    superfcie: quando descemos aos particulares, encontramos a mesma profuso de

    interpretaes. As teorias mais obtusas j foram propostas e por vezes por nomes de peso. A

    discusso entre platonistas parece vezes demais a guerra de todos contra todos de que se

    fala no Livro I das Leis (625e e ss.), a comear pela guerra do prprio contra si mesmo (626e).

  • iii

    O plural majesttico tem a honestidade de, ao postular hipstases virtuais, reconhecer que o

    exegeta no uma unidade, e que, por detrs das opinies que aparecem expressas no

    comentrio, se esconde, censurada nos silncios, a possvel suspeita da mentira destas.

    Qualquer anlise assenta sempre num conjunto de pressupostos de todo impossveis

    de provar (e que so bem mais complexos do que as disjunes que se seguem a ttulo de

    exemplo): ou se evolucionista ou unitarista, ou se acredita numa das mais de uma centena

    de cronologias propostas ou se as olha de esgelha, ou se tomam em considerao as

    doutrinas no-escritas ou se as ignora, ou se usa as Cartas ou se as descarta, ou o Poltico

    acima de tudo um exerccio dialctico ou uma investigao em torno da figura homnima

    (ou as duas coisas simultaneamente), ou a direse inicial, de uma maneira geral, fracassa, ou

    deve ser levada a srio, ou o mito prope uma cosmologia honesta ou uma mera fantasia

    com propsitos locais ou Plato um gnio ou no.

    Esta ltima pergunta no despicienda. curiosa a pouca ateno que os estudiosos

    do s acusaes contra Plato que nos chegaram dos antigos, falando de emprstimos ou

    imitaes de outros autores. muito provvel que sejam todas mentira (If you guys were

    the inventors of Facebook, you'd have invented Facebook, David Fincher, A Rede Social,

    2010), mas. No necessrio, porm, subscrever rumores duvidosos. Aristteles no era um

    filsofo menos inteligente (ele, que, paradoxalmente, a tese nos ensinou a estimar) e,

    todavia, no deixou de, em tantos pontos com razo, criticar o Mestre. Confunde-se vezes

    demais, parece-nos, a genialidade literria de Plato com a sua (a investigar) genialidade

    filosfica. Temos a impresso de que, se Plato voltasse dos mortos (um pensamento que

    muito nos ocupou durante a escrita da tese, reflexo inconsciente de um desejo de, como

    Gulliver em Glubbdubdrib1, poder acordar os antigos para esclarecer com eles as suas

    doutrinas), todos ficaramos algo desiludidos. Tememos, tambm ns, estarmos a tornar-nos

    (Sph. 241d3), mas o nosso no pretendia ser um desabafo iconoclasta.

    Plato tem de ser profundamente respeitado: o mais das vezes ele tem razo e ns no.

    Porm, no negar que Plato, ' , se contradiz (e que nem todas as afirmaes

    discordantes se deixam conciliar, por exemplo, por uma leitura esotrica) um dever moral

    de qualquer intrprete honesto, que no deve ter medo de dizer, se, depois de todo o

    esforo, for incapaz de explicar um certo passo, que este contm um erro ou de todo

    incompreensvel ou no coerente com o dito antes. S estamos autorizados a faz-lo depois

    de grande reflexo (e obrigatrio partir sempre do pressuposto da unidade do

    pensamento de Plato), mas nada nos deve coibir de, com humildade, esperando 1 E o que Gulliver anota a a propsito dos comentadores de Aristteles, bem poderamos dizer dos de Plato tambm: I proposed that Homer and Aristotle might appear at the head of all their commentators; but these were so numerous, that some hundreds were forced to attend in the court, and outward rooms of the palace (III.8).

  • iv

    secretamente que outro resolva o problema, o apontarmos. Plato no um deus em

    disfarce (cf. Sph. 261a5-b6) e tem de ser feito mais humano: por e para isso as Cartas.

    O mais das vezes, porm, os comentadores (e inclumo-nos neste grupo) tm pejo de

    o fazer (e, num certo sentido, melhor assim, pois como avismos s em ltimo recurso se

    deve acusar Plato de inconsistncia) e foram o texto para extrair dele um todo uno, no

    hesitando em fazer batota, cortando, por exemplo, o corpus como um Procustes, invocando

    as passagens que lhes so convenientes e fabricando desculpas para impedir a mobilizao

    das que questionem a sua interpretao. No sabemos, nem nunca havemos de saber, o que

    que Plato pensava. Num certo sentido, sempre que o comentador (tambm ns) escreve

    Plato diz ou Plato pensa est a . No impossvel que o Mestre no acreditasse na

    teoria das Ideias. Por radical que esta afirmao parea, talvez j tenha havido quem a

    defendesse, ou ainda surgir algum, bem-munido, a apoi-la (no j o que sucede em

    relao aos ditos ltimos dilogos?). Plato to irrecupervel como Scrates e dizer o

    contrrio no fazer absolutamente ideia do caos quase pr-csmico que a bibliografia

    secundria sobre Plato, ao ritmo de quase 3000 ttulos ao ano.

    Nestas condies, o que constitui, ento, uma boa interpretao de um dilogo? A

    nosso ver, esta ter que reunir trs caractersticas: [1] fidelidade: o texto deve ser, sempre

    que possvel, acreditado, contra a escola ironista (a ironia s deve ser postulada quando a

    leitura prima facie prejudica os dois critrios que se seguem); [2] abrangncia: o que se afirma

    como tese de Plato deve conseguir explicar o mximo de passos possveis no corpus sem

    violao dos outros dois critrios; [3] fecundidade: a interpretao proposta tem de dizer algo

    que ainda seja relevante hoje (veja-se e.g., no caso do nosso dilogo, Regras para o Parque

    Humano, de Sloterdijk, o comentrio ao Poltico mais urgente que conhecemos). Este ltimo

    ponto requer uma justificao. Se no possvel saber what Plato said, ento todo o exerccio

    hermenutico s faz sentido se se mostrar til (todo o Bem o : esta uma das arquitraves do

    sistema que confiamos platnico) tambm para ns, este ns estendendo-se do comentador

    at cidade. Os dilogos no fornecem solues para os nossos problemas (repetimos: o

    Mestre no um deus e de resto, neste tempo que o nosso, o deus calou-se): se o

    fizessem, valeriam pouco, pois seria legtimo encaixot-los, uma vez esses resolvidos. Plato

    conta por aquilo que ainda nos pode dizer sobre a Verdade, que o objecto nico e

    caleidoscpico da Filosofia. Ele como o do Homem no artigo de Seth Benardete sobre

    o Poltico: tudo por no ser nada; a do pensamento, podamos dizer; uma luz (como o

    Bem o sol) que revela aquilo que lhe oferecido, trazido por cada um dos que o visitam.

    Nenhum outro filsofo to como Proteu, porque o : ele mesmo o manto de mil

    cores (R. VIII.557c5), ex-clarecendo, parteiro, cada uma. Se Plato no te mudou, ento

    como os gregos combateste por uma Helena que no estava l.

  • v

    Ser que o nosso comentrio obedece s exigncias acima expostas? Possivelmente

    no. Tal deve-se s condies em que foi feito. O estudo de um dilogo deve comportar trs

    passos: traduo, dramatizao, comentrio. A dramatizao, se feita antes do comentrio,

    constitui-se como antecipao deste, pois no se pode encenar um pea de Plato sem ter

    uma ideia j do que esta diga. Se o texto levado cena depois do comentrio, o exerccio

    dramtico toma ento a forma de um juzo a posteriori sobre a leitura desenvolvida,

    optimalmente levando, em certos pontos, sua reviso. discutvel qual dos dois o melhor

    mtodo; importante, porm, encontrar bons actores, para que, contra o intrprete feito

    encenador, que tudo quer reduzir ao denominador da sua leitura, levem necessariamente,

    pelo desempenho dos seus papis, ao questionamento desta. O Poltico um dilogo que, a

    nosso ver, muito ganharia em ser dramatizado: parece-nos difcil que a relao entre

    Scrates, o Jovem, e o Estrangeiro venha a ser devidamente elucidada por outro meio.

    Este comentrio aparece pois despido das duas asas que o poderiam fazer voar: no

    s no encenmos o texto, como no o traduzimos, salvo o mito (Apndice A, no includo

    no presente manuscrito). Para alm disso, o nosso comentrio avana fenomenologicamente,

    isto : cada passo analisado por si e tendo em conta o que o antecede, raras vezes o que

    vem depois. Este um ideal, que contornmos, reconhecemos, mas no muito, pela razo

    objectiva de que a anlise da Parte III (o paradigma) e da Coda no foi ainda feita, pelo que

    estas s puderam ser referidas genericamente. O estudo em profundidade da Introduo,

    Parte I e Parte II confirmaram a sensatez da nossa abordagem. Plato guerra urbana: rua a

    rua, linha a linha. Leituras gerais, de uma ponta outra, sendo necessrias, so de reduzida

    utilidade para quem queira escavar algo a que chamar Plato. Multiplicar referncias

    Parte III e Coda, com base apenas na ideia grande que, por ora, fazemos delas, seria

    arriscar demais, quando um passo que nos parece querer dizer x, em estudando-o

    fenomenologicamente, perceberemos apontar numa direco diferente. Isto sucedeu-nos

    repetidamente ao longo da nossa anlise das duas primeiras partes do dilogo, pelo que no

    temos nenhuma boa razo para no desconfiar da nossa leitura actual da Parte III e Coda.

    Melhor, pois, reduzir quanto possvel os cruzamentos com estas.

    E, todavia, o facto de este comentrio s avanar at meio do Poltico, mesmo tendo

    em conta a abordagem escolhida, no deixa de o prejudicar, obviamente. No ano que nos foi

    dado e, sobretudo, no espao de que dispomos, mais seria, porm, impossvel. O que aqui se

    apresenta, portanto, , muito conscientemente, um manuscrito. O texto ser alterado luz

    do que descobrirmos aquando do estudo do resto do dilogo. Trata-se, de facto, de uma

    construo precria, vtima de mltiplas contingncias: no conseguimos consultar certos

    livros ou revistas, alguns importantes; outros, tendo chegado j perto da data de entrega da

    tese, no foram plenamente capitalizados. Pouco consola pensar que esta uma situao

  • vi

    que aflige toda a produo cientfica. Foi j algo adiantados no nosso trabalho, e depois de

    uma certa hesitao, que adquirimos o livro de Sylvain Delcomminette, que, apesar de no

    muito citado, se revelou o melhor comentrio ao Poltico a que tivemos acesso. Pensar que,

    entre as obras que no tivemos ocasio de ler, pode estar outra com igual potencial de

    revolucionar o nosso entendimento do dilogo, apenas sublinha o carcter necessariamente

    artificial do que aqui se mascara como o pensamento de Plato. Temos de agradecer, porm,

    lia Rodrigues, que nos arranjou em Oxford o artigo de Benardete acima referido, item

    essencial de qualquer bibliografia sria sobre o Poltico, e ao Miguel Monteiro, que nos

    trouxe bem-vindos materiais de Leipzig.

    Esta tese no existiria, de facto, sem o cuidado de todo um conjunto de pessoas e,

    num comentrio sobre um dilogo que segue, o prprio, a mxima heideggeriana Lernt

    erst danken, dann knnt ihr denken, fora [] nome-las. Temos, em primeiro lugar,

    de relembrar os nossos orientadores, a Professora Doutora Maria do Cu Fialho e o Professor

    Doutor Alexandre Franco de S, que, como o deus, respeitaram a nossa autonomia, sem

    deixar de intervir criticamente (no sentido kairo- e etimolgico do termo) e cujos conselhos

    procurmos preservar. Mister tambm recordar os nossos colegas de Estudos Clssicos,

    dos vrios ciclos, em particular os do de Cronos: co-investigadores, interrogando, para a

    gora do pensamento, junto de todo o livro (cf. 272c2-4), alimentados, sem trabalho, pelo

    fruto espontneo, mas pago, do Bar das Letras. No esquecemos a sua companhia, no estudo

    e na . Trs nomes precisam de ser isolados, porm: o Rodolfo, sempre disponvel para

    as nossas ignorncias platnicas, que se disps a ler um primeiro manuscrito deste trabalho

    e com quem tivemos uma gorda conversa sobre o Timeu-Crtias; o Miguel, amigo caro e raro,

    companheiro intelectual fiel e sobretudo exigente, que nos ajudou a compreender melhor

    Strauss e os straussianos e comentou cuidadamente uma verso inicial da tese; e a Sophia,

    die frhliche Wissenchaft, que fez connosco este caminho at ao fim, o deus que no largou, a

    mais forte a encorajar e acalmar (268b3-4). A todos os meus amigos tenho a agradecer a

    pacincia, o nimo, a presena, mas em especial Marta, ao Luis, Beatriz, Rita, Mit e

    Leonor, que cumpriram die hchste Aufgabe einer Verbindung zweier Menschen:

    guardar a solido do outro (Carta de Rilke a Paula Becker-Modersohn, 12 de Fevereiro de

    1902), ou, diramos ns, guardar o outro na e at da sua solido, durante o nosso exlio

    demasiado longo na Platolndia. Por fim, mais do que [se pode] segundo as propores

    da vossa arte (257b3-4) exprimir, devo uma graa enorme (257a) minha famlia,

    nomeadamente aos meus pais e ao meu irmo, sem cujo carinho [],

    acompanhamento e disponibilidade esta tese estaria por certo junto ao Filsofo, guardada

    por Lucien na biblioteca do amo (Neil Gaiman, The Sandman #21).

  • vii

    NOTA SOBRE AS TRADUES

    O confronto com o texto original uma exigncia para quem queira analisar uma

    obra produtivamente. Para o Poltico, bem como para as restantes obras de Plato, servimo-

    nos da edio de John Burnet, a partir da qual realizmos todas as tradues que aparecem

    no texto. No deixmos de tomar em considerao, porm, a mais recente edio oxoniense.

    Tradues de outros autores clssicos foram feitas com base nos textos da Oxford Classical

    Texts ou da coleco Bud (seria suprfluo estar aqui a discriminar que verses para quais

    obras). No caso do Novo Testamento, utilizou-se a edio Nestle-Aland.

    O trabalho com o original grego no invalida, por sua vez, o recurso a tradues,

    que, pelo contrrio, se tornam mais necessrias. O Poltico, no sendo um texto de grande

    dificuldade (Plato , em geral, um escritor acessvel), no deixa de levantar alguns desafios

    ao leitor do grego, que, de resto, o comentrio regista. J o trabalho de traduo, que vai

    bem para l da simples compreenso da mensagem do texto (esse no seno o primeiro

    movimento), envolve todo um outro grau de dificuldade, onde a colao com as solues de

    outros , mais do que til, imperativa, se se pretende no desrespeitar o original.

    Cremos que o Poltico um dilogo que tem sofrido muito s mos dos tradutores (e

    vice-versa). Universalmente considerado um dos mais fastidiosos de Plato, a verdade que

    essa fama tem sido empolada custa de tradues que no fazem justia linguagem do

    Mestre, que continua aqui to rica como nos seus trabalhos anteriores, convico que foi

    crescendo progressivamente em ns, medida que amos penetrando mais e mais no texto.

    Tal, porm, no passa na maioria das tradues. Tome-se, como exemplo, o

    em 265d6. Vrios tradutores tendem a neutralizar a fora do verbo, re(con)duzindo-o ao

    filosoficamente correcto: dividida (Carmen Leal Soares [CLS]), procdons donc une

    partition (Brisson-Pradeau [B-P]), separemos (Gonzlez Laso [GL]), scindiamo

    (Giorgini [G]), let us divide (Skemp [S]). Outros mantm a imagem, mas domesticam-na:

    spezziamo/spezzando/aver spezzato (Fraccoli [Fr], Roggerone [Rog] e Pegone [P]),

    break[ing] [this] up (Rowe [Row], Jowett [J] e Fowler [F]) e break down (Waterfield [W]).

    Poucos so capazes de assumir o particpio em toda a linha mesmo Schleiermacher [Sch]

    (e, na sua senda, Apelt [A]) no avana mais do que um tmido zerlegen. H, porm, quem

    no o tema: fragment (Benardete [B]), zerbrechen (Ricken [Ri]), morcelons (Dis [D]),

    desmenuzar (Casadess Bordoy [CB]) e dmembrons (Alain Petit [AP])2. Em portugus,

    poderamos arriscar algo como quebrar, estilhaar, rasgar ou mesmo dilacerar (como Frederico

    Loureno em E. Hipp. 1239).

    2 As abreviaturas aqui indicadas para cada um dos tradutores sero usadas ao longo da tese.

  • viii

    Grande parte dos tradutores manifesta uma tendncia excessiva para transformar o

    dilogo num tratado filosfico, tornando os termos mais abstractos e retraindo-se quando o

    texto avana uma metfora mais violenta. Por outro lado, em momentos inoportunos, por

    uma questo, supostamente, de explicitao, introduzem termos que no esto no original e

    perturbam o trabalho do estudioso que tenha acesso limitado ao grego, ou, prtica tambm

    perigosa, resolvem, por uma questo de variatio, traduzir a mesma palavra, por vezes crtica,

    de maneiras diferentes. S h uma maneira de evitar estes erros e, ao mesmo tempo, salvar

    o fulgor da linguagem platnica: uma traduo literal, sem medo de ser estranhizante, mas

    conservando o cuidado [] com o leitor final.

    Seria pleonstico estar a insistir nas virtudes de uma traduo que leva o leitor ao

    original e no o inverso: Schleiermacher, em Sobre os Diferentes Mtodos de Traduzir3, provou

    j que esta uma escolha que vale a pena, um projecto cultural (em parte comparvel, por

    exemplo, prtica italiana das publicaes bilingues), que, porm, no desclassifica outras

    solues: a traduo de Waterfield, coloquial e escorreita, distante do que

    apreciamos, tem a sua funo e o seu pblico. No nos podamos, contudo, contentar com

    uma desse gnero. falta de uma verso portuguesa capaz de satisfazer os nossos critrios,

    tommos a nosso cargo a traduo das passagens mais importantes, fornecendo ao leitor

    textos operacionais. Seremos talvez acusados do intento menos nobre de manipulao do

    original para proveito hermenutico prprio, mas queremos acreditar que a nossa desejada

    fidelidade ao grego testemunhar contra isso.

    Essa fidelidade, que no prometemos sabemos no, e por vezes conscientemente

    ter sempre conseguido, foi procurada sobretudo ao nvel semntico, mais do que sintctico.

    Tal passou, por exemplo, pela recuperao do sentido de certos prefixos, que procurmos

    sublinhar atravs do seu isolamento com hfens. Assim, (258e1) vertido

    como com[]-pletam. Os hfens foram tambm usados para traduzir conceitos que o grego

    exprime numa s palavra, mas que o portugus desdobra, e.g. : trabalho-manual.

    No entanto, o que talvez causar mais estranheza a vontade de regressar ao significado

    primitivo das coisas, de traduzir etimologicamente, o que muitas vezes nos transporta para

    l do texto a-verter. conhecida a forma como Hlderlin, na seu exerccio de traduo da

    Antgona, verteu o verso vinte: ; : Was ists, du

    scheinst ein rothes Wort zu frben?4. Parece-nos fundamental re-buscar o sentido original

    3 Friedrich Schleiermacher ([1813] 2003), Sobre os Diferentes Mtodos de Traduzir. Porto Editora: Porto (apresentao, traduo, notas e posfcio de Jos Miranda Justo). 4 Confronte-se as tradues portuguesas: Que ? Pareces perturbada por alguma notcia (Maria Helena Rocha Pereira ([1968] 92010), Sfocles. Antgona. Gulbenkian: Lisboa); Mas que notcia essa que tanto te perturba? (Marta Vrzeas (2011), Sfocles. Antgona. Hmus: Vila Nova de Famalico).

  • ix

    das palavras: a aurora da lngua esconde verdades encobertas desde a sementeira [cf.

    Heraclito DK B124] do arranjo [das coisas, i.e. o universo] (Mt 13, 35).

    So maiores as semelhanas entre o grego e o portugus do que se poderia por

    preguia imaginar. necessrio, isso sim, inventar a lngua capaz de as acolher, atravs da

    exumao do seu passado (o passado fica em frente, como j os gregos sabiam). Veja-se, por

    exemplo, : vertido sem sabor como incivilizado ou sem educao, pode ser

    decalcado como sem-criana, recuperando o termo de Mestre Gil para educao. S dessa

    maneira podemos vir a pensar com os gregos, na impossibilidade (e at indesejabilidade)

    moderna de pensar como os gregos. Na frase de Mateus acima, traduzir por arranjo

    decisivo, no para o entendimento do passo (que s ganharia com a verso habitual: mundo),

    mas para que o leitor compreenda melhor a Weltanschauung helnica: de outra forma, como

    entender o quase-oxmoro heraclitiano? porque o mundo um arranjo que (1) possvel

    conhec-lo e (2) razovel postular uma inteligncia ordenadora: deus sive /. O

    incio da cincia e da filosofia gregas esto contidas na potncia desta palavra.

    preciso, pois, no recear traduzir, por exemplo, por possuem [porque

    adquiriram], se isso que a palavra, de facto, quer dizer: amput-la do movimento que

    implica banaliz-la. Neste exerccio de literalidade, os parntesis rectos so de grande

    ajuda, por permitirem acrescentos que facilitam a compreenso da passagem pelo leitor,

    que, porm, convidado a guardar a sua distncia crtica: se toda a traduo j sempre

    uma interpretao, ainda mais o so, em certos casos, os silncios violados pelo tradutor,

    que com as suas explicitaes caridosas enclausura a frase num sentido s, despindo-a da

    sua ambiguidade. O grego, porm, uma lngua elptica, que favorece a inveno benvola.

    Por vezes, os parntesis rectos, seguidos de barra [/] (ou esta isoladamente), foram tambm

    usados para fornecer alternativas de traduo, quando nos pareceu que tal se justificava.

    Por fim, confessar apenas que este um gnero de traduo no qual estamos ainda a

    fazer as primeiras experincias, a melhorar pois; que os nossos conhecimentos de grego so

    mais escassos do que o necessrio ou do que era legtimo esperar de quem se licenciou em

    Clssicas; que nos falta, sobretudo, conhecer melhor a nossa lngua materna, em todos os

    seus perodos, para podermos contribuir para a sua revitalizao. Acreditamos com

    confiana que a traduo das obras clssicas pode e deve desempenhar um papel central

    nesse trabalho. S ser feita justia ao grego quando for feita justia ao portugus, dando-

    lhe o que ele hoje precisa e a traduo lhe pode dar: uma conscincia histrica, maior

    abertura semntica sem perda de acribia, mais flexibilidade sintctica a linguagem em

    surpresa permanente como s o permite o conhecido.

  • COMENTRIO POLTICO-FILOSFICO

    AO POLTICO DE PLATO

  • 2

    ESTRUTURA DO DILOGO

    Introduo Dramtica (257a-258b2)

    Parte I: A Direse Inicial (258b2-268d4)

    Diviso 0 [D0]: (258b2-258b5)

    D1: | (258b6-259d5), inclui

    Interldio I [I1] (258e8-259c5)

    D2: | (259d6-260c5)

    D3: | [] (260c6-261a2)

    D4: | (261a3-261d2)

    D5: | (261d3-261e7)

    Interldio II [I2] (261e7-264b5)

    Parte I (261e7-263b11)

    Parte II (263c-264b5)

    D6: | (264b6-264e2)

    D7: [] | [] (264e3-264e11)

    Bifurcao [BI] (264e12-265b6)

    D8, 1 da Via Longa [D8-L1]: [] | [] (265b6-265d5)

    D9-L2: [] | [] (265d6-265e9)

    D10-L3: [] | [] (265e10-266d10)

    Via Breve [D8-B1 + D9-B2] (266d10-267a3)

    Concluso (267a4-268d4)

    Parte II: O Mito (268d5-277a2)

    Introduo [1, 2] (268d5-269c3)

    O Mito [3-6] (269c4-274e1), inclui

    Premissas [3] (269c4-270b2)

    O Julgamento das Vidas [5] (272b-d6)

    A Direse Revisitada [7] (274e2-277a2)

    Parte III: O Paradigma (277a3-305e7)

    Coda (305e8-311c8)

  • LADO A: O PODER ENTRE

    A RAZO E A VIOLNCIA ~ INTRODUO, PARTE I (DIRESE) E PARTE II (O MITO) ~

    ;

    E como adivinhamos que os outros cidados rapidamente com-seguiro

    aquele que tiver segurado essa tal persuaso e tambm a fora?

    Plato, Leis IV.711c3-4

  • 4

    INTRODUO DRAMTICA (257a-258b2)

    Ningum sabe verdadeiramente quando Plato escreveu cada um dos seus dilogos,

    mesmo se, por algumas indicaes dos textos, podemos, para certas obras, indicar o terminus

    post quem: este o caso, por exemplo, do Teeteto, cujo prlogo refere a participao do jovem

    matemtico na fora ateniense estacionada em Corinto na primavera de 391 a.C. (Nails s.v.

    Theaetetus) e onde grassou a doena de que viria a falecer. A cronologia relativa (i.e.: a

    ordem de publicao dos dilogos), pelo que poderia contribuir para a nossa interpretao

    do Mestre, tem sido especialmente discutida, sem que, porm, se tenha atingido algum

    consenso1. Mesmo a tradicional arrumao dos dilogos em iniciais, mdios e tardios (o

    Poltico encaixar-se-ia neste ltimo grupo2) conveniente, mas esconde ainda a nossa

    ignorncia, como se v pela controvrsia em torno do lugar do Timeu-Crtias. O Poltico

    sabemos ser (quase certamente) posterior ao Teeteto e ao Sofista apenas por formar com

    estes uma trilogia (ou tetralogia, se considerarmos o Filsofo). Quanto tempo distou entre a

    escrita de cada um algo que ultrapassa j [our] fill/ of knowledge []/ beyond which

    [would be our] folly to aspire (Milton, Paradise Lost 12.558-60)3.

    Entre o Sofista e o Poltico no h qualquer soluo de continuidade temporal: este

    comea onde aquele acaba, aps a conversa do Estrangeiro de Eleia com Teeteto. A primeira

    fala ainda um comentrio de Scrates, o Velho, aco precedente. Tudo se passa no dia

    aps este ter comparecido no Prtico do Rei para se confrontar com as acusaes de Meleto

    (Tht. 210d). Howland (1993) 15 chama a ateno para a posio central do Poltico na srie

    dramtica constituda pelo Teeteto, utifron, Sofista, Poltico, Apologia de Scrates, Crton e Fdon

    (pode a Apologia de Scrates ser o Filsofo? Howland 226 levanta a hiptese). O processo e

    morte de Scrates no parecem muito presentes na nossa trilogia, porm: no Poltico -lhes

    apenas feita uma aluso velada em 299b-d. Discordamos, pois, da leitura dos straussianos (os

    1 Para uma crtica sistemtica e retumbante da cronologia tradicional, vide Jacob Howland (1991), Re-Reading Plato: The Problem of Platonic Chronology, Phoenix 45.3: 189-214. 2 Shorey 308, em 1933, j Lutosawski havia aplicado o seu metdo estilomtrico ao corpus platnico, insistia, cauteloso: It cannot be shown that Zeller, Grote, or more recently Phlmann are led into error in the interpretation of the thought by their assumption that it [o Poltico] precedes the Republic, and the attempts of others to show that the doctrine must be late are either fallacious or prove at the most that it is genuinely Platonic. 3 Fracolli 10-11, com base no comentrio berlinense ao texto (P. 9785), que atesta que o prlogo do Teeteto foi revisto (o que deixa em aberto a possibilidade de outras correces), suspeita, e no sem razes dignas de considerao, que a aluso ao Sofista em 210d foi acrescentada num segundo momento (mas cf. La. 201c4-5), o que indiciaria que, na raiz, Plato no havia pensado a trilogia que nos chegou: algum tempo, pois, deve ter transcorrido entre o Teeteto e os dilogos eleticos, a aceitar a sua especulao. O autor sugere tambm que a prpria apresentao de Scrates, o Jovem, em 147d teria sido adicionada posteriormente (13), mas no vemos qualquer razo para o postular.

  • 5

    ironistas, como lhes chamaremos: Benardete, Scodel, Rosen, Howland) que, em maior ou

    menor grau, levam a srio a suspeita de Scrates de que o Estrangeiro seja

    (Sph. 216b5-6) e encaram o dptico Sofista-Poltico como o julgamento filosfico de

    Scrates4. Queremos acreditar que a leitura que aqui propomos robusta o suficiente para

    fazer frente sua interpretao.

    No final do Teeteto (210d), Scrates e Teodoro combinam encontrar-se de novo, na

    manh seguinte, no mesmo stio, possivelmente perto do Liceu5. O Cirenaico, para alm de

    se fazer acompanhar dos seus vrios alunos (Sph. 217d7: [] no

    esquecer esta audincia, que se percebe facilmente tendo em conta o local da discusso;

    Klein 7 o nico que parece ter-se apercebido deste pblico), traz consigo um Estrangeiro

    [] de Eleia, da escola de Parmnides e Zeno6. Scrates pretende saber a opinio do

    Eleata acerca do sofista, do poltico e do filsofo: so um e o mesmo ou duas ou trs figuras,

    distintas umas das outras (Sph. 216d3-217a8)? A seu ver, o filsofo pode, por vezes, aparecer

    como poltico ou sofista. A interpretao aqui do verbo determina muito da leitura

    que se faa do janus Sofista-Poltico. Se lermos aparecer como manifestar-se, e o poltico e o

    sofista como possveis ocorrncias do filsofo, que se identifica com eles por vezes, ento a

    investigao sobre ambos pode, de facto, traar o retrato deste ltimo. Se nos choca a ideia

    de que o filsofo se possa identificar (porque de uma coincidncia que se fala, no de uma

    confuso) com o sofista, lembre-se a figura descrita em Sph. 230a-231b, inquestionavelmente

    Scrates. O passo, porm, pela perplexidade que gera, tem sido muito debatido e o seu justo

    entendimento implicaria uma anlise completa do Sofista, que aqui no podemos levar a

    cabo (mesmo se, e isto mais crtico, ela necessria para uma leitura correcta do Poltico). 4 No sendo, contudo, de desprezar as diferenas entre eles. Assim, por exemplo, Rosen 8 admite que the Stranger comes closer and closer to Socratic doctrine, until finally, despite all differences in character and rhetoric, one can scarcely distinguish between the contents of their speeches. Para uma interpretao diferente, menos violenta, do dptico eletico como um julgamento filosfico de Scrates, vide Miller 2-3. 5 Em Teeteto 144c diz-se que os jovens se estavam a untar . A expresso tem sido vertida de muitas maneiras: possvel que Plato pretendesse a ambiguidade. Apreciamos a interpretao de Giardini (in Maltese [sub Pegone]), que traduz por pista fuori le mura. Fraccaroli 4 identifica esta com o Liceu, com base no utifron (ad initium), que, dramaticamente, tem lugar logo aps o Teeteto. 6 Sobre este personagem nada sabemos. A tentativa de Roggerone (1983) 104-131 de o identificar com Aristteles no apenas absurda: cmica. Roger Masters, ainda assim, consegue superar o italiano ao sugerir que o Poltico um dos dilogos perdidos de Aristteles (R. Masters (1977), The Case of Aristotles Missing Dialogues: Who Wrote the Sophist, the Statesman, and the Politics?, Political Theory 5.1: 31-60), tese que denuncia uma leitura despudoradamente desatenta da Poltica, que responde, em vrios momentos, ao nela nunca explicitamente referido Poltico. Vide Kevin Cherry (2007), Aristotles First Critique. The Eleatic Stranger and the Politics (dissertao apresentada Universidade de Notre-Dame, Indiana). A obra chegou-nos tarde demais para que pudssemos tom-la em considerao na nossa tese.

  • 6

    O aparecer de pode, porm, ser tambm interpretado como um parecer: se

    assim for, o filsofo no se deixa reduzir s duas figuras estudadas pelo Eleata; pelo

    contrrio: estas so, verdadeiramente, fantasmas (no sentido em que o termo aparece no

    Sofista) dele. Plato teria assim alterado a sua opinio em relao Repblica (se aceitarmos a

    cronologia tradicional), abandonando o rei-filsofo (pouco serve invocar a diferena de

    terminologia: veremos em I1 que poltico e rei so dois nomes para uma mesma realidade).

    Ou, ento, o que mais cauteloso, visto que no sabemos who speaks for Plato, afirmaremos

    to-s que o Estrangeiro discorda de Scrates. Simplesmente, se a nossa leitura provisria

    do Poltico est correcta, no isso que sucede: numa srie de pontos importantes, os dois

    esto de acordo (a comear precisamente pela identidade entre poltico e rei)7, no que

    somos secundados por B-P 13. Como interpretar ento ? A soluo, como bons

    hegelianos, encontra-se na sntese das duas leituras: o sofista e o poltico parecem o filsofo,

    mas atravs (no duplo sentido da preposio) dessa sua parecena o filsofo aparece. Cada um

    sua maneira, poltico e sofista, querem ser o filsofo, que a sua plenitude.

    O poltico uma encarnao do filsofo na medida em que o verdadeiro poltico tem

    de primeiro filosofar (Skemp 21: he is a statesman because he is first a philosopher), mas

    o que ele faz no , estritamente falando, filosofia, pois que esta consiste no inqurito pelo,

    e contemplao do, Bem, no na sua traduo comunitria (por isso, veremos, na Idade de

    Cronos, dedicada filosofia pura, no existem ). Da mesma maneira, o bom sofista

    aquele que, como Scrates, pode utilizar argumentos sofsticos (e nenhum comentador

    negar que eles habitam os dilogos, em especial os aporticos) porque conhece a verdade,

    com vista ao crescimento intelectual e tico do seu interlocutor. que melhor aquele que

    erra voluntariamente do quem o faz sem querer, isto , sem conscincia (Hpias Menor). O

    sofista e o poltico representam movimentos descendentes do filsofo e, num certo sentido,

    o seu falhano, rectius, a sua solido. Os seres humanos no reconhecem o que melhor para

    eles, quer antes quer depois de ouvirem o (Heraclito DK B1): por isso a violncia do

    poder. Tambm nas discusses filosficas, entre quem, a priori, se deveria mostrar fiel

    razo, preciso, por vezes, persuadir pelo sofisma, cujo equivalente, na poltica, a

    retrica. Sofista e poltico so, em arenas diferentes, o filsofo sujo, que deixou o refgio

    seguro, mas tambm desinteressante, do (R. VI. 496d5-e2). Essa descida toca,

    7 Esta harmonia esvazia o argumento de quantos, acentuando a alteridade do Eleata, sublinham, e bem, o facto de Scrates pretender saber a opinio do Estrangeiro para conhecer o que (217a), os eleatas, pensam do assunto em questo, por aquele ter escutado at ao fim, adequadamente, o que [estes] dizem e no [o] esquecer (217b7-8). O Estrangeiro, porm, como sabido, ameaa matar o prprio pai Parmnides (Sph. 241d3): ser preciso prova maior da sua autonomia dogmtica? Estabelecida esta, a concorrncia das suas opinies com as de Scrates, sabendo estar o mesmo escritor por detrs, no nos deve espantar.

  • 7

    porm, converte-o j numa coisa outra. tre un politique peut bien tre un emploi pour un

    philosophe, ce nest pas un emploi en philosophie (Lane 2005 228), pois il [o filsofo qua

    poltico] a affair au devenir, pas ltre (Dixsaut 291).

    Se o Sofista, tambm por causa do seu tour de force ontolgico, se centra mais no pior

    espcimen da arte (que era imperativo combater e o filsofo, mais do que o nobre sofista,

    era o paradigma a opor-lhe), o Poltico aborda com maior equilbrio a figura homnima e os

    seus rivais: o tirano e os politiqueiros, na expresso feliz de CLS. O poltico (como o sofista)

    no se confunde com o filsofo porque os seus instrumentos ultrapassam o mbito da pura

    razo: ele unifica os cidados no s com um lao divino, mas tambm corporal (309c1-3). O

    incio dramtico da Repblica, que , por si s, todo um programa, torna claros os limites da

    persuaso (vide Strauss 64): Scrates desce ao Pireu sob ameaa do uso de fora por parte

    dos seus interlocutores, que se recusam explicitamente a dar-lhe ouvidos. A filosofia

    aplicada no pode dispensar a violncia do poder (no h aqui nenhum totalitarismo, pace

    Popper: todo o poder violncia, como dizem os anarquistas) a fora, a censura, o ensino

    mas esta extrnseca filosofia enquanto tal. O filsofo, um tales contemplando os astros,

    torna-se poltico olhando para baixo, para o abismo do poo trcio (Und wenn du lange in

    einen Abgrund blickst, blickt der Abgrund auch in dich hinein, Nietzsche, Jenseits 146). O

    fosso entre a filosofia poltica clssica e moderna menor do que o pintaram (como no

    podia deixar de ser, se o Homem no mudou e, portanto, o modo de o domesticar, nos seus

    traos gerais, tambm no): Plato sabe, como Maquiavel, que os profetas desarmados

    nunca triunfaram (O Prncipe 6.6).

    Insistimos: isto no significa que o poltico seja uma coisa outra que o filsofo: -o

    apenas na medida em que pressupe este (B-P 13: il faut tre dialecticien pour dfinir et

    matriser la comptence politique8). Opem-se-lhe o tirano e os politiqueiros, cujas aces

    no so, tantas vezes, fundamentalmente diferentes das dele, que recebe o seu ttulo pelo

    seu saber, mais do que pelo cargo (I1) ou pelo que faz. O poltico, portanto, e no o

    filsofo: Lcifer ainda um anjo?

    8 Por isso, como explica Dixsaut 291, no h contradio entre os dois fins do dilogo (a definio do poltico e o treino dialctico dos intervenientes): tal como o arquitecto tem de saber aritmtica, a parte terica da sua cincia directiva (D2), assim o poltico tem de dominar a dialctica. o Estrangeiro quem no-lo indica, logo no princpio do inqurito: A recta poltica, ento, onde a h-de algum descobrir? (258c3). O texto identifica a arte e o caminho metodolgico que conduz definio da mesma: o poltico , confirma-se, o dialctico.

  • 8

    O esquema acima procura sintetizar as reflexes que temos vindo a desenvolver

    acerca da relao entre as figuras principais da trilogia, que, torna-se claro, progride de

    patamar em patamar, ainda que, a cada nvel, aborde, directa ou indirectamente, todas as

    personagens do seu ramo. Entre estes escales, do ponto de vista do valor9, mantm-se uma

    relao no proporcional, como sublinha Scrates (257b2-4)10. Se o poltico vale menos do

    que o filsofo, natural que este no se degrade de livre vontade; por isso tem de ser

    obrigado (R. I.347c) ou coerente (Ep. 7.328b7-c7). to violenta a descida caverna quanto a

    subida. O sentimento que leva o filsofo a regressar o mesmo que, veremos, est na base

    da indeciso de Scrates, o Jovem, em relao a qual a melhor das duas vidas, a sob Cronos

    ou a sob Zeus (no podemos acampar no Tabor). A graa tem tambm uma gravidade: por

    isso at Deus encarnou.

    Pelo que dito no Sofista 217b4-6, a relao entre sofista, poltico e filsofo tinha j

    emergido como problema na discusso que, antes de Scrates aparecer, Teodoro e os alunos

    estavam a ter com o Eleata, que, a fazer f no Cirenaico, se evadira questo, limitando-se a

    afirmar a diferena entre as trs figuras (217b1-3). Uma vez que o encontro com Scrates

    ficara marcado para de manhzinha [; Tht. 210d3], a primeira conversa entre Teeteto

    e o Eleata (218a) ter decorrido ainda de noite. No sabemos o seu tema (que, porm, pelo

    menos obliquamente, ter tocado no mote da trilogia), mas importante t-la em mente11.

    Se a ignorssemos, teramos de concluir pela superioridade do estofo dialctico de Scrates,

    o Jovem, a confiar na maioria dos comentadores, que assume, e uma hiptese razovel, 9 Tema maior da introduo dramtica de ambos os dilogos, e sempre intrometido pela mo de Scrates. Manasse 174 n.1 v em 216c7-8 a sua primeira apario. 10 Que esta diferena de valor afecta no apenas os personagens mas tambm os dilogos a tese de Migliori 44, que tem a seu favor Plt. 284c6, em que Rosen (1983) 85 baseia a sequncia dos dilogos. Este ltimo funda ainda a escolha inicial pelo sofista na necessidade muito pragmtica de o isolar, since he assumes all looks (para ele, as trs figuras so de facto uma: ele prprio, como diz Dixsaut 290) e por isso, caso no seja identificado logo, we [may] be tricked later into taking him for a statesman or a philosopher. 11 Benardete III.73 o nico comentador a not-la, referindo que, por causa dela, o Estrangeiro acolhe facilmente (Sph. 218a) a sugesto de Scrates em 217d5-7.

  • 9

    que o interlocutor do Filsofo seria ele12. Persiste, porm, uma assimetria: Teeteto conversou

    tambm com Scrates. No Poltico 258a5-6, este promete, contudo, examinar noutra altura o

    seu homnimo13. Alguns comentadores tm visto aqui o Filsofo, esquecendo que a trilogia

    serve, pelo menos oficialmente, para o Estrangeiro expor a viso eletica das trs figuras.

    Consequentemente, as duas trilogias, a real (Teeteto, Sofista, Poltico) e a incompleta (Sofista,

    Poltico, Filsofo) integram-se numa hexalogia maior: Teeteto, [?], Sofista, Poltico, Filsofo,

    [Scrates, o Jovem], qual poderamos ainda acrescentar, no comeo, o Parmnides, referido

    em Sph. 217c5-7.

    A aluso no gratuita. Scrates recorda quando ele prprio era Scrates, o Jovem,

    e se encontrou com O Eleata. Tal como o Estrangeiro requer um interlocutor inofensivo e

    bem-freado (Sph. 217d1), assim tambm Parmnides prefere um jovem hipcrita (no

    sentido grego original), porque menos inquisitivo e mais directo (Prm. 137b6-8); no fundo,

    manso e corajoso a um tempo (os dois caracteres que caber ao poltico tecer na cidade, de

    acordo com a Coda). A meio do dilogo, Scrates como que substitudo por Aristteles

    (no o de Estagira), da mesma forma que o Poltico comear com um render de guarda:

    Teeteto d o lugar a Scrates, o Jovem (257c). A troca havia j sido antecipada no Sofista

    218b pelo primeiro, que sugere o amigo, tal como Teodoro o tinha indicado a Scrates no

    Teeteto (ad initium) e Scrates ao Estrangeiro no Sofista (217d5-7).

    Este ltimo parece ter uma ideia, pelo menos geral, do curso do argumento, como

    alguns comentadores notaram (mas tal no se deve a reproduzir uma qualquer doutrina que

    tenha decorado). Ele j pensou no assunto, caso contrrio no poderia adiantar que as trs

    figuras so, de facto, trs (217b). No entanto, a admisso mais bvia de que o Estrangeiro

    est a controlar o rumo do inqurito encontramo-la em 217d8-5: ele sabe que o seu discurso

    vai ser longo (talvez por isso o tenha querido evitar antes) mas sobretudo monolgico, no

    obstante Teeteto. O dilogo tem aqui, por isso, uma funo em boa medida pedaggica,

    funcionando como exerccio dialctico, como reconhecido no Poltico 285d4-7. Os passos do

    Estrangeiro so, portanto, bem calculados (o que no implica que no possa fazer erros no-

    propositados). Pense-se apenas nos dois paradigmas que ele mobiliza: o do pescador, no

    12 Quanto possibilidade de um embate entre o Estrangeiro e Scrates, lembremos as palavras de Strauss 55: by failing to present a conversation between Socrates and the Eleatic stranger or Timaeus, he [Plato] indicates that there is no Platonic dialogue among men who are, or could be thought to be, equals. 13 Scodel 22 nota, e muito bem, que esta a prova maior de que Scrates e o Estrangeiro no se confundem: if the Stranger were a merely stand-in for Socrates [entendido aqui como o porta-voz de Plato], why should it be necessary for Socrates to examine his young namesake in the future?. As tentativas de encontrar o representante de Plato no dilogo esto destinadas a falhar por no se entender que le reprsentant de Platon, cest tout simplement le dialogue lui-mme dans sa totalit et dans son mouvement propre (Delcomminette 17).

  • 10

    Sofista, e o da tecelagem, no Poltico. Ambos se revelaro, especialmente o segundo, teis aos

    respectivos inquritos; o Estrangeiro introdu-los, porm, como se tivessem acabado de lhe

    ocorrer no instante e fossem apenas paradigmas possveis, mais do que verdadeiramente

    fecundos, i.e. capazes de fazer progredir a investigao em curso activamente.

    Esta sua prescincia explica tambm a ordem dos dilogos, anunciada por Scrates

    em Sph. 217a3: como este, ele conhece as verdadeiras relaes que as figuras em anlise

    estabelecem entre si, nomeadamente a sua hierarquia. Teodoro, pelo contrrio, mesmo aps

    a censura de Scrates (257a6-b4)14, parece incapaz de a adivinhar (257b9-c) (Benardete III.72

    associa tambm ambas as coisas). A admisso em 257b5-7 do seu erro, ao nivelar as trs

    personagens, como todas iguais em honra, , pois, bem-educada, apenas, mas no honesta,

    porque ele sabe, mas no entende, a causa da sua condenao. Por isso tambm jura

    desforrar-se (cf. Smp. 213d8). Ele o absoluto anti-filsofo (Miller 4-5), mau grado o respeito

    que professa por eles (Sph. 216c), ilustrao viva do dito de Heraclito (DK B84): muito

    conhecimento [] (Tht. 145a5-9) no ensina entendimento []. Ele no

    partilha da ironia de Scrates (145b10-c2) e admite no ser seu uso participar em debates e,

    mais grave, no querer corrigir a situao (146b). A propsito deste seu afastamento da

    discusso no Teeteto, Friedlnder 151 comenta muito pertinentemente:

    Theodorus retires from the conversation and leaves it to the young man to be

    examined by Socrates. Similarly, in the Thrasymachus, the old Kephalos retires from

    the conversation when it turns to the nature of justice itself. And just as Kephalos

    represents a traditional, inarticulate type of justice, so does Theodoros represent a

    type of knowledge that is limited to specific subject matter and thus cannot deal with

    the nature of knowledge itself. It is a kind of instruction that is alien to the Socratic

    conversation.

    E todavia, Teodoro parece alimentar um genuno interesse por discusses

    filosficas: no improvvel que esteja presente em todas as da hexalogia proposta. ele,

    como j foi dito, que traz o Estrangeiro e quem o espicaa ambas as vezes, estimulando-o

    fala (Sph. 217a9-10 e Plt. 257b8-c).

    O Eleata, cedendo, no o faz, porm, por causa dele. por respeito a Scrates que

    aceita expor a diferena entre sofista, poltico e filsofo (Miller 2). Antes havia-se recusado a

    isso. No Poltico, o Estrangeiro deixa claro que o incentivo de Teodoro a que continue

    escusado: se o faz, porque, tendo posto mos obra [], no deixar agora o

    argumento incompleto (257c2-4) (uma tal afirmao apenas sublinha mais a ausncia do

    14 Ricken 84, Rosen 10 e Scodel 23 dizem que esta crtica afecta tambm a direse, que no tece juzos de valor sobre os seus objectos. Essa, porm, no a sua funo, como havemos de repetir.

  • 11

    Filsofo). Isso no implica, porm, que siga at ao fim com o mesmo interlocutor e o

    Estrangeiro coloca o problema, perguntando que fazer com Teeteto. Teodoro com traos,

    estamos convencidos, de personagem cmica (o idiota) , porque no treinado na dialctica

    incapaz de perceber o quanto esta pode cansar (pensar desgasta: o corpo impe-se mente,

    como veremos depois suceder com o universo), no entende a questo do Estrangeiro.

    pois este a sugerir directamente, seguindo a deixa do prprio Teeteto (Sph. 218b), a

    substituio deste, para que descanse (cf. Ly. 213d6), por Scrates, o Jovem, que frequenta

    com aquele o ginsio [], vindos de onde, lembramos, ambos fazem a sua

    apario no Teeteto. Scrates -nos a (147d) apresentado como colega de Teeteto, tendo

    desenvolvido com ele, sob a direco de Teodoro, a diferena entre nmeros quadrados e

    oblongos, merecendo, por isso, o louvor de Scrates, o Velho (148b3). No Sofista 218b,

    Teeteto de novo quem o traz para a conversa, num indcio claro da estreita amizade entre

    ambos d-nos um sinal da sua camaradagem: os dois fazem juntos a maior parte das

    coisas. Tm a mesma idade, prximos, mas ainda aqum, da maioridade15.

    Scrates, o Velho, aprova a troca, registando como ambos os jovens tm algo em

    comum com ele: um, a aparncia fsica, o outro o nome. Isso no significa que os devamos

    interpretar como ssias dialcticos de Scrates no confronto com o Estrangeiro. Muito pelo

    contrrio. A sua associao a Scrates tem de se mostrar mais palpvel. No incio do Sofista

    (218c), o Estrangeiro alerta para o facto de Teeteto e ele poderem no partilhar o mesmo

    conceito de sofista, mau grado ambos utilizarem a mesma palavra. A afinidade entre as suas

    concepes da figura tem de ser testada dialogicamente. Da mesma maneira, o nome em

    comum entre os dois Scrates pode ocultar diferenas substanciais entre ambos. O filsofo

    sublinha que o verdadeiro parentesco16 o determinado pelo : s a alma lhe interessa

    15 Sobre Scrates no sabemos muito mais que isto. A Carta XI, o nico outro ponto do corpus em que Scrates vem referido (doente, como Plato), confirma o seu interesse por questes polticas: Laodamante, porta-voz de um grupo de colonos, pede ao Mestre ou a Scrates que se desloquem colnia para ajudar na feitura das leis da nova . Aristteles refere-o na Metafsica VI.1036b25, dando a entender que a definio de Homem (e no s), como no nosso dilogo, continuava a ser uma das suas preocupaes e que a formao em geometria influenciava ainda os seus raciocnios. Para uma discusso das opinies de Scrates, ou uma tentativa de reconstruo delas, a partir do brevssimo comentrio de Aristteles, vide Ricken 88-9 ou comm. ad. loc de David Bostock (1994), Aristotle. Metaphysics. Books Z and H. Clarendon Press: Oxford. Segundo alguns autores (e.g. Taylor 394), seria ainda este o Scrates dos famosos silogismos de Aristteles, o que nos parece uma especulao estranha e infundada. 16 Pois vinculativo reconhecer sempre, desejando [que o sejam] [], os nossos congneres atravs de discursos [ ] (258a2-3). Giorgini ad loc. e Ricken 86 relembram as cenas de anagnrise na tragdica clssica, reenviando para M. Erler (1992), Anagnorisis in Tragdie und Philosophie. Eine Anmerkung zu Platons Dialog Politikos, Wrzburger Jahrbucher fr die Alterumswissenschaft 18: 147-170, a que no tivemos acesso.

  • 12

    (Tht. 145b; cf. Chrm. 154e) e a natureza desta, s o exerccio dialctico capaz de a trazer ao

    de cima. Scrates deve provar-se altura de Scrates, mostrar-se um daqueles que

    expectvel que venham-a-ser capazes e bons [] (Tht. 143d6) e que tanto

    interessam ao Velho. O Poltico funciona, pois, como um teste do Jovem (e nosso: Howland

    232), conduzido pelo Estrangeiro a pedido de Scrates, que promete ele prprio vir a

    interrogar o seu homnimo mais tarde. Da, tambm, o relevo que dado dialctica

    enquanto arte no dilogo (por isso inserido pelos antigos entre os do gnero lgico): trata-

    se aqui de provar a tmpera filosfica de Scrates e necessrio conhecer os critrios pelos

    quais o prprio exerccio pode e deve ser julgado (por isso o passo sobre as duas artes de

    medir, Parte III). Ao mesmo tempo que o avalia, o Estrangeiro instrui-o (pensemos na regra

    de algibeira para a direse, a discutir em I2 e BI), preparando-o para o encontro com o outro

    Scrates, porventura mais difcil (no por acaso o Teeteto conclui em aporia, ao contrrio

    dos dilogos eleticos). Se h, ento, algum julgamento filosfico a decorrer aqui, o de

    Scrates, o Jovem. No sabemos o veredicto, porm. Scrates, o Velho, no emite qualquer

    juzo no fim17; figuraria, talvez, no comeo do Filsofo, a ter este existido. Note-se que a

    avaliao que Scrates, no incio do Poltico, faz do Sofista, incide, de facto, no tanto sobre a

    correco ou no da definio alcanada (o que no quer dizer que discorde dela ou que os

    resultados no tenham importncia, contra Howland 227), mas sobre a performance dialctica

    dos intervenientes na discusso, Teeteto e o Estrangeiro, agradecendo a Teodoro por lhe os

    ter apresentado.

    Scrates, o Jovem, aceita o desafio. O Eleata louva a sua disposio, que , por si s,

    um sinal positivo: se acaso tivesse alguma objeco, confessa, a prontido de Scrates para

    participar na discusso, mostrando assim um carcter pelo menos curioso quanto s coisas

    filosficas e capaz de se expor (ao contrrio de Teodoro), seria bastante para a dirimir. A

    conversa comea. O valor do Jovem, s a anlise completa do dilogo o pode revelar18.

    NOTA: Doravante, por Scrates apenas referir-nos-emos sempre a Scrates, o Jovem, salvo em

    aluses a outros dilogos, em que s o Velho figura. Os nmeros Stephanus referem-se, se no

    acompanhados de outra indicao, ao Poltico, excepto quando o contexto torna claro que

    continuamos a falar de uma obra diferente, antes mencionada.

    17 No aceitamos, pois, a atribuio por Schleiermacher (e seus seguidores) da ltima fala do dilogo a Scrates, o Velho. 18 Sem prejuzo da imperativa anlise surda (ou seja: auto-suficiente) do dilogo, convm lembrar que Scrates, pelo que se pode deduzir do testemunho de Plato e Aristteles, ter estado fortemente ligado Academia, sendo, especulam, e no infundadamente, muitos autores, professor l. Scrates estaria ainda vivo aquando da publicao do dilogo. Seria, pois, improvvel que Plato pretendesse retrat-lo como um dialctico incapaz, mesmo tendo em conta que um Scrates jovem que figura no Poltico, cuja pouca idade pode desculpar os erros ou fragilidades.

  • 13

    PARTE I : A DIRESE INICIAL (258b2-268d4)

    I believe it would be impossible to show that diaeresis

    plays any direct role in the delineation of the political art.

    Rosen (1979) 63 (vide tambm 66).

    DIVISO 0 [D0]: (258b2-258b5)

    O Estrangeiro, na sua busca pelo poltico, comea por definir onde o procurar. Sem

    nenhuma explicao, coloca-o entre aqueles que sabem. Certos comentadores tm

    questionado a legitimidade de uma tal assuno, sem perceber que a direse exige sempre,

    para arrancar, a delimitao teolgica (i.e. de cima, assumida, primeira) da rea do

    inqurito. De facto, a direse no dispensa um conhecimento prvio, ainda que genrico, do

    que se pretende descobrir (caso contrrio cairamos no paradoxo epistemolgico do Mnon).

    O objecto determina o prprio progresso do exerccio. Vimos j que o Eleata sabe

    claramente aonde quer conduzir Scrates, mas no necessrio, parece-nos, partilhar essa

    lucidez quanto natureza do alvo do inqurito, sob pena de, ento, a direse ser um mtodo

    de todo intil para o filsofo, com intuitos didcticos apenas. Pelo contrrio, ela uma

    verso esquemtica do trabalho socrtico de definio (que se distingue, porm, pelo seu

    carcter tico-pedaggico), que parte j sempre da ideia que o sujeito tenha sobre o assunto

    a investigar, a qual apurada at verdade (ou, com Scrates, o Velho, aporia, o que no

    se constitui como problema por a investigao filosfica ser para ele secundria em relao

    sua misso educativa) no decurso do exerccio dialctico. Que o poltico se encontra entre

    aqueles que sabem to-s uma working hypothesis que, se se provasse errada, seria

    abandonada, como no final do Sofista (267e e 268b-c). Para o Eleata, porm, quem faz algo, ,

    at prova em contrrio, possuidor de uma (termo aqui equivalente a ), pela

    qual faz o que faz, j que em princpio ningum pode fazer nada sem que saiba o que est a

    fazer, pelo que h-de participar de qualquer espcie de cincia (cf. Grg. 465a5-6).

    O artista [] , na sua rea, o perito absoluto, capaz de explicar o objecto da

    sua cincia e discernir quem, a esse propsito, fala bem ou mal (Ion 531d12-532b2). Perceber

    o conceito de cincia/arte em Plato pode ser-nos til para entender a significncia de D0 e

    tudo o que antecipa em relao natureza do trabalho poltico. No seu livro Platos

    Philosopher-King: a Study of the Theoretical Background, Rosamond Sprague analisa as condies

    que uma arte tem de preencher para que merea tal nome, do que se pode deduzir do

    corpus. Na senda do seu trabalho, salientamos quatro grandes traos das :

    ) universalidade: uma arte tem de abarcar o seu objecto na totalidade. on afirma ser

    capaz de se pronunciar apenas sobre Homero (Ion 531a), mas Scrates demonstra a falsidade

  • 14

    de tal pretenso: quem saiba discorrer sobre Homero est igualmente habilitado a falar de

    Hesodo ou Arquloco (532b2-7). O hermeneuta (porque nessas vestes que o rapsodo aqui

    se nos apresenta) tem de poder interpretar qualquer texto: a exegese no faz acepo de

    autores. Poder-se-ia argumentar que um especialista em Keats no saberia falar sobre

    Hlderlin, mas tal deve-se no ao facto de isso exigir dele uma arte diferente mas to-s

    sua falta de informao sobre o lrico alemo. Os recursos tericos necessrios anlise de

    ambos os poetas so, porm, os mesmos: no por acaso a cadeira de introduo aos estudos

    literrios comum a todos os ramos do curso de lnguas modernas. De igual modo, o

    verdadeiro poltico est tambm habilitado a governar qualquer pas, o que no significa

    que isso no implique estudo da sua parte em relao s circunstncias especficas do

    territrio humano e fsico que convidado a dirigir (h uma matria-prima, exterior, sobre

    a qual toda a arte se exerce e que determina os moldes em que a cincia se verte em aco:

    uma casa veneziana no pode ser transladada para o Japo impunemente ao primeiro

    abalo ruiria): o FMI, depois de se inteirar primeiro da situao nacional junto de governo,

    partidos, sindicatos e outras foras da sociedade civil, dita a sua receita, nica para cada pas

    (os pontos de contacto, abundantes, com outros programas de resgate apenas do

    testemunho de que os princpios gerais por detrs so os mesmos, invariveis, como se quer

    de uma dita cincia).

    ) exclusividade: poucos so os praticantes de cada arte. Esta constatao emprica

    tem, porm, uma base antropolgica. Cada Homem nasce com uma vocao especfica: o

    fazer o [que lhe ] prprio [ ] da Repblica 433a8 aponta nesse sentido,

    como o passo deixa claro. Mais adiante no nosso dilogo (292e), ser explicitamente

    reconhecido o quo poucos verdadeiros polticos emergem em cada cidade, sublinhando-se

    a sua raridade. Da a importncia de estudar como, na ausncia do poltico, a cidade se deve

    organizar; por isso a este passo se segue a importante reflexo do Eleata sobre a Lei.

    ) produtividade: toda a arte produz um (que nico, porque exclusivo dela).

    Determinar, com exactido, qual a obra do poltico precisamente o desafio que o Eleata

    enfrenta e a que responder de forma mais completa apenas na Coda. Podemos, porm,

    adiantar as linhas gerais da sua resposta, com base no restante corpus, nomeadamente na

    Repblica. A Scrates identifica o objecto da cincia do poltico (como filsofo) com a Ideia

    do Bem. Ele ocupa-se da virtude: quer tornar os cidados melhores, pois s assim a cidade

    pode subsistir saudavelmente. A superioridade da poltica sobre as outras artes resulta de

    ser a nica no-neutral, isto , capaz de juzos de valor, e, portanto, a nica que se move no

    plano do dever, capaz de, a partir deste, orientar as restantes que, de outro modo, so apenas

    eficazes, mas no necessariamente teis (cf. La. 195c7-12, Chrm. 174c-d, Euthd. 291c7-d3).

  • 15

    ) ensinabilidade: as artes devem poder ser ensinadas. Diz-se, creio, que a medicina

    uma arte. Duplos so os seus produtos: a formao continuada de outros mdicos, para l

    dos que j existem, e a sade (Clit. 409b). No se trata aqui s de assegurar a continuidade

    da arte, mas o prprio estatuto desta enquanto cincia, o que exige um corpo de saber mais

    ou menos fixo, transmissvel, que exprima uma relao com a verdade pela sua prpria

    inalterabilidade. Se a arte poltica pode ou no ser ensinada um dos primeiros problemas

    do Protgoras e incide directamente na questo da correco de D0. Scrates defende que

    no possvel aprender a : grandes homens pblicos parecem ter sido incapazes de

    fazer dos seus filhos bons cidados (319e-320b). O mesmo argumento ressurge no Mnon

    93c-94e. Perante a impossibilidade de dar o exemplo de algum que tenha sabido melhorar

    os outros, Scrates conclui pelo carcter divino dos polticos, que equipara explicitamente

    aos poetas: como estes, nada sabem do que dizem, pois inspirados que falam (99d5). A

    arte poltica, ento, uma no-arte, salvo se houver algum destes homens polticos que

    forme tambm outro poltico [] um assim seria entre ns como entre sombras um

    [homem] verdadeiro (100a). Esta sada de emergncia do argumento aponta na direco

    certa: o nico poltico aquele que capaz de gerar outros bons como ele19. O grande

    problema desta soluo que nega poltica um autnomo, contra (releia-se

    tambm a declarao do Clitofonte acima). O seu produto seria a prpria multiplicao dos

    seus produtores. Este problema assombra um conjunto de dilogos aporticos, entre os

    quais o Eutidemo. Discutir a questo em pormenor exigiria uma tese, e talvez de

    doutoramento. O que se pode dizer que, neste particular, o paralelo justia/arte poltica e

    quebra, e de maneira significativa. A tal no certamente alheio o facto de estarmos

    perante uma arte moral, como foi dito em . Num sentido muito importante, ento, a

    poltica, contra o que diz o Eleata, no uma 20.

    19 No seu ataque a Homero, na Repblica X.600c2-e2, Scrates censura-o por no ter deixado quaisquer discpulos, vendo nisso prova de que o poeta era, afinal, sem prstimo e por isso as pessoas o deixavam vagabundear pela Grcia. Os sofistas, aqui contrapostos a Homero, pela quantidade de alunos que arrebanhavam, s aparentemente funcionam como contra-exemplo, pois tambm estes [os seguidores] no foraram a ficar nas suas casas, ou, no os convencendo, se fizeram eles pedagogos, seguindo-os para onde quer que fossem, at possuirem bastante da educao deles (600e). Um homem, porm, criou vrios amigos e era honrado e estimado por eles (600c5-6) e nunca saiu da sua cidade: Scrates, que disse de si, creio ser dos poucos atenienses, para no dizer o nico, experimentado na verdadeira arte poltica e o nico, entre os de agora, que a pratica (Grg. 521d6-8). Se, porm, o era, de facto, ou no, no nos possvel decidir aqui: seria necessrio estudar atentamente a Apologia de Scrates e a extenso da verdade das acusaes que enfrentou. 20 imperativo a este propsito ler David Roochnik (1996), Of Art and Wisdom. O autor, atravs de uma anlise cuidada de alguns dos principais dilogos aporticos, argumenta precisamente, contra o grosso dos comentadores, que em Plato a virtude no explicvel por um modelo tcnico.

  • 16

    Alguns comentadores tm mostrado tambm o seu desagrado com esta designao

    por, a seu ver, trair a natureza phronsica da poltica (este um dos leitmotive da anlise de

    Rosen; cf. Castoriadis 36, que apoxima a poltica da faculdade de juzo kantiana).

    Se se entender, porm, a poltica como a cincia do Bem (se o termo causa confuso, lembre-

    se a cincia do bem e do mal, do Gnesis) que , tal receio mostrar-se- infundado, porque o

    Bem no passvel de ser reduzido a um conjunto de imperativos deontolgicos (a

    casustica, mau grado aquilo em que se tornou, acertava em parte na verdade da unicidade

    das coisas morais): o bom poltico no est desprovido de sensibilidade e bom-senso (estes

    so subsidirios do Bem, de resto). O corpo de saber fixo de que se falava em tem, pois,

    de, ele tambm, ser entendido de uma maneira algo outra do que seria se estivssemos a

    falar de uma normal. O Bem imutvel, porque , e, por isso, slido: ele o corpo fixo

    do saber da poltica, que no dispe, porm, de um corpo de saber fixo, pois que o Bem

    novo como o sol de Heraclito (DK B6) e todavia o mesmo. Aquilo pois que se pode aprender

    no tanto o que fazer (no h manual de instrues para como governar uma cidade: nem O

    Prncipe substitui a virt necessria), mas o perguntar pelo Bem (no se aprende filosofia:

    aprende-se a filosofar, dizia, dizem, Kant). Clitofonte tinha razo nas suas crticas: Scrates

    no ensina nada de concreto sobre a justia (o que , no fundo, fazer o [que lhe ] prprio?

    Como sei o que prprio para mim?). A razo por que no o faz a mesma pela qual, na

    nossa era, os deuses no nos oferecem a poltica (Parte II, 6): ningum pode

    conhecer por ns o Bem: ele exige uma relao pessoal, um conhecimento ntimo.

    Tudo isto corrobora a impresso, se dvidas ainda houvesse, de que a , se

    uma , uma muito sui generis, tal como a do sofista, a de no ter por

    parecer ter toda e qualquer . As figuras que a trilogia discute no se deixam explicar

    nos termos usuais, que s alteradamente lhes podem ser aplicados: a linguagem comea

    desde j a trair-nos.

    D1: | (258b6-259d5)

    Se Sofista e Poltico comeam da mesma maneira, classificando os seus objectos com

    aqueles que sabem, rapidamente divergem logo no primeiro corte. O Estrangeiro chama a

    ateno de Scrates para o facto, realando a necessidade de uma diviso outra das cincias.

    O prprio Sofista j dera mostras disso, mas o Poltico confirma a flexibilidade de um mtodo

    como a direse, aberto s necessidades do inqurito. Se antes (Sph. 219a8-c8) se dividira as

    cincias em poiticas e aquisitivas (cf. tambm 279c7-8), o Estrangeiro arruma agora de um

    lado as prticas, de outro as cognitivas. Perceber o corte implica um estudo atento dos

    passos em que as duas so contrastadas directamente.

  • 17

    1.

    , ; (258d4-6)

    Ento acaso no so a aritmtica e outras artes, congneres desta, despidas de aces

    e [no] tm para dar apenas o conhecer?

    2.

    ,

    . (258d8-e2)

    J as [artes] que dizem respeito carpintaria e a todo o trabalho-manual, pelo

    contrrio, possuem [porque adquiriram] [um]a cincia [que lhes ] conatural, que

    est como que nas aces, e acabam com-pletamente os corpos que, por elas, vm-a-

    ser, primeiro no sendo.

    3. , ,

    . (258e5)

    Divide desta maneira, ento, todas as cincias, a uma chamando prtica, a outra

    cognitiva apenas.

    4. ,

    .

    Mas isto, pelo menos, claro: que todo o rei capaz com as mos ou o corpo todo de

    coisas pequenas para manter o poder, [por] contra[posio com o muito que consegue

    por] a convergncia [reunio das faculdades ou faculdade de reunir, unde inteligncia;

    cf. Tht. 184d] e vigor da alma. (259c6-8)21

    5.

    ;

    Queres, pois, que digamos que o rei est mais em casa entre as [artes] cognitivas do

    que entre as artes-manuais e, como um todo, as prticas? (259c10-d)

    6. .

    Tendo para dar, creio, conhecimento, mas no trabalho-manual. (259e11)

    21 Cf. Plu. an Seni Resp. 789d5-7: aos remadores [idosos] da Boul, da gora e de Zeus Patrono no exigimos as obras dos ps ou das mos, mas do [bom-]conselho [], da previdncia [] e da razo [].

  • 18

    Parecem-nos dois os traos fundamentais das artes prticas: [1] envolvem trabalho

    fsico: insiste-se no trabalho das mos (2, 4, 5 e 6), mas em 4 fala-se no corpo todo; [2]

    implicam criao, isto : a produo de corpos previamente no existentes, como se diz em

    2. Para o Estrangeiro, uma arte prtica no a que opera sobre a realidade, mas aquela cujo

    exerccio implica, da parte do sujeito, uma aco material []: movimento no espao e/ou

    aplicao de fora sobre um objecto. A poltica altera a paisagem do real (humano e fsico),

    mas f-lo sempre indirectamente (directivamente, dir o Estrangeiro adiante)22: uma arte

    parada, traduo bastarda para , que no deve ser vertido como arte terica,

    expresso infeliz, pois a poltica no , obviamente, uma disciplina terica, no sentido que o

    termo hoje possui (no sentido grego, e no mbito da filosofia platnica, -o, mas tanto

    quanto a carpintaria: o poltico contempla o paradigma da cidade no cu [R. IX.592b] tal como

    o artfice fixa o olhar na Ideia a partir da qual modela o leito [R. X.596b]). As artes cognitivas

    so apenas [] cognitivas (1 e 3), de onde se subentende que, como estas, tambm as

    prticas implicam um certo saber (que h uma cincia que lhes conatural reconhecido

    em 2). O que, portanto, marca as primeiras no tanto o elas serem cognitivas (as outras,

    sua maneira, tambm o so), mas o no serem prticas: so . So

    artes marcadas pela privao (o termo no deve ser aqui entendido negativamente como

    sinal de menoridade).

    O Estrangeiro, porm, deita a perder esta distino estabelecida por [1] ao postular,

    em 2, que as artes prticas fabricam novos corpos, com isso deixando uma srie de

    aptridas, estranhas a qualquer uma das duas categorias inauguradas pela direse. O

    carpinteiro monta uma cadeira, um pedreiro levanta uma casa mas o discbulo no cria

    nada, nem o citarista ou o soldado. Esta crux , parece-nos, insolvel: o texto claro, as

    consequncias inaceitveis. De pouco serve dizer que o Eleata se reporta em 2 apenas ao

    trabalho especificamente manual [], quando a continuao deixa claro que este

    funciona como sindoque para a aco material [] como um todo [], de que a

    apenas uma parte (5). Ainda que nos restringssemos, contudo, s artes

    puramente manuais, teramos problemas em catalogar no esquema proposto, por exemplo,

    a cincia do cirurgio (a , literalmente). No Sofista 219b-c, o Estrangeiro divide

    todas as artes em poiticas [] e aquisitivas [], sendo que o artista poitico

    traz depois para o Ser o que antes no existia (219b4-5). A linguagem pode ser semelhante

    de 2, mas que no estamos perante a mesma diviso prova-o [i] o facto de se dizer

    explicitamente que o corte do nosso dilogo diferente do anteriormente feito durante a

    busca do sofista (258b9-c) por alguma razo o Eleata usa aqui e no - e

    22 Brecht pergunta: Quem construu a Tebas das sete portas?/ Nos livros esto os nomes de reis./ Foram os reis que arrastaram os blocos de pedra?. (trad.: Paulo Quintela; Almedina, Coimbra: 1975).

  • 19

    [ii] a omisso, crtica, do termo , que permite que, no Sofista, entre as artes poiticas,

    sejam includas, por exemplo, as imitativas [], o que engloba as artes (no sentido

    estreito do termo hoje), entre elas a poesia e a msica, que, obviamente, no produzem

    corpos. No Poltico, o Estrangeiro reduz a a um tipo de , em vez de se ater aos

    seus sentidos correntes, a primeira uma simples aco (de todo o gnero), a outra uma

    especificamente produtiva, sub-categoria da anterior.

    Esta alterao do sentido de (e veremos que o Eleata deturpa demasiado as

    palavras) invalida D1, que se mostra incapaz de cumprir a regra mais bsica da direse: a

    repartio de todos os itens de uma categoria pelas duas sub-categorias avanadas. Mesmo o

    termo s batoteiramente pode acolher a expanso de sentido que lhe impusemos:

    a custo rotularamos a poesia, arte parada, de cognitiva. Ao intrprete oferecem-se duas

    opes: aceitar o falhano de D1, que necessrio ento explicar, ou parmnides fechar os

    olhos realidade e afirmar o corte como ele devia ser. A ltima posio parece-nos autista.

    Como, ento, justificar D1 (e at, indirectamente, a diviso do Sofista, que no , ela tambm,

    exaustiva)? Postular que o Estrangeiro erra de propsito num momento to inicial torn-

    lo num vilo dialctico, papel que no coerente com o desenho do seu personagem e que

    esvaziaria em boa medida a Parte I de interesse filosfico. Parece-nos antes que a tentativa

    de separar os saberes humanos em dois grupos resulta quase inevitavelmente numa diviso

    incompleta ou irrelevante. No impossvel que as duas coisas sejam, de facto, exclusivas e

    que, entre um mal e outro, o Eleata, sensatamente, tenha optado por um corte que

    contribusse para a definio do objecto do seu inqurito. O passo 4 surge como o

    testemunho da diferena inaugural que pretendeu estabelecer, entre disciplinas mais

    intelectuais e outras mais fsicas (h ecos desta diviso em Grg. 450c e ss., em que todas as

    so catalogadas como faladas ou mudas porque essencialmente prticas). No sendo

    um corte completo, D1 firma desde logo uma posio capital no entendimento eletico do

    poltico e cujo esquecimento responsvel pela confuso no final da Parte I. , pois,

    apropriado que, em jeito quase de composio circular, seja a primeira caracterstica da arte

    poltica a ser apontada.

    INTERLDIO I [I1] (258e8-259c5)

    Ne illud quidem videtis, quam omnem invidiam maiores nostri dominis, omnem

    contumeliam servis detraxerint? [] honores illis in domo gerere, ius dicere

    permiserunt et domum pusillam rem publicam esse iudicaverunt.

    Sneca, Cartas a Luclio V.47.14

  • 20

    Onde io, per non incorrere in questo errore, ho eletti non quelli che sono principi,

    ma quelli che, per le infinite buone parti loro, meriterebbono di essere [] Perch

    gli uomini, volendo giudicare dirittamente, hanno a stimare [] quelli che sanno,

    non quelli che, sanza sapere, possono governare uno regno.

    Maquiavel, dedicatria dos Discursos sobre a Primeira Dcada de Lvio

    Dentro do segundo momento/primeira diviso da direse, o Estrangeiro apresenta

    duas teses controversas: [1] a identidade entre poltico [], rei [], senhor

    [] e administrador []; [2] a irrelevncia do efectivo exerccio do poder

    para o merecimento do nome de poltico/rei. A primeira tese criticada por Aristteles no

    comeo da Poltica (1252a7-13):

    Aqueles que pensam que o poltico, o rei, o administrador e o senhor so o mesmo no

    dizem coisa com coisa. Julgam que cada um destes difere na grandeza ou pequenez [do

    seu poder], mas no na forma []: [chamar-se-] senhor o [governante] de poucos,

    administrador o de muitos, poltico ou rei o de mais ainda, como se em nada se

    distinguissem uma grande casa e uma pequena cidade [cf. Pl. Pol. 259b9-10 e infra].

    O Eleata de novo visado em I.1253b18-20: A alguns parece que o senhorio

    [] uma cincia, e que a administrao [], o senhorio, a poltica

    [] e a realeza [] so a mesma coisa, tal como dissemos no comeo. A tese,

    arriscamos, ser genuinamente platnica (talvez mesmo socrtica: X. Mem. 3.4.12 e 4.2.11) e

    encontra-se presente em vrios dilogos. No Protgoras 318e5-319a2, o sofista afirma que o

    seu ensino prepara tanto para a gesto das coisas prprias [ ], como das da

    cidade [ ] (cf. R. X.600c-d): se certo que as duas no so identificadas, a sua

    proximidade no inocente, como quem sugere que a arte uma e a mesma. No Eutidemo,

    e so explicitamente assimiladas (291c4-5) e nos Amantes 138b-c a

    identidade entre rei, poltico, administrador e senhor abertamente defendida23 com base

    no argumento de que a arte que subjaz a todos a mesma: a justia24.

    Encontramos um raciocnio semelhante no Mnon, que apresenta talvez a melhor

    explicao da tese. Interrogado por Scrates quanto natureza da virtude (71d), Mnon, 23 Notar, porm, que no Fedro 248d parece haver uma diferena entre e , mas no, significativamente, visto tratar-se da equivalncia mais problemtica, entre este e o administrador. 24 Aristteles, que, como vimos, discorda frontalmente de Plato na matria aqui em discusso, tem, porm, um passo da tica a Nicmaco em que se aproxima da argumentao aqui exposta, sem chegar identificao das figuras em questo: porque so capazes de contemplar [] as coisas boas [o Bem] para si e para os homens; julgamos serem desta natureza os administradores e os polticos (VI.1140b10-12).

  • 21

    comprovando, ao dar voz opinio tradicional, que a eco-nomia e a poltica eram tidas por

    duas artes distintas, responde que uma a virtude do homem, outra a a da mulher: a do

    primeiro a gesto da coisa pblica, a da segunda o cuidado da casa (71e). Scrates, no

    seguimento da discusso, pe em causa esta pluralidade de virtudes, questionando a

    importncia do factor gnero para a definio de uma qualidade: nada distingue a fora, na

    medida em que fora, esteja [esta] no homem ou na mulher (72e6-7). Est preparado o

    terreno terico que permitir a subordinao da arte feminina da eco-nomia e da arte

    masculina da poltica a virtudes comuns: a e a . Depois desta

    demonstrao, Mnon identifica ento a com o governo dos homens [

    ] (73c9), sendo refutado por Scrates, que nega que um tal conceito de virtude,

    embora j extensvel a homens e mulheres, se possa aplicar aos escravos. Se Aristteles, voz

    da tradio, fala de uma virtude prpria do homem, da mulher e do escravo (Pol. I.1260a29-

    36), Plato insiste na unidade bsica do Bem. Este pode ter diferentes materializaes, mas

    seria errado confundir essas encarnaes especficas com a essncia do Bem em si.

    No passo do Mnon, se no h uma identificao plena entre a arte da eco-nomia e a

    da poltica, h, porm, uma clara desvalorizao das diferenas entre ambas e uma crtica

    cerrada ideia de que uma prpria da mulher, outra do homem. No h assimilao, mas

    h confuso: o essencial do sucesso das duas artes no reside na cincia especfica que lhes

    possa estar associada, mas sim aqum, nas virtudes superiores do sujeito, que Scrates

    identifica como a sensatez e a justia e Mnon como o poder sobre os homens. A

    pode situar-se no cruzamento destas duas definies, enquanto a cincia do exerccio justo do

    poder. Scrates defende aqui uma tese poderosa: que quem no administra (casa ou cidade)

    com justia, no administra bem (73a-b). A cincia poltica uma cincia do Bem. O mesmo

    no se aplica a outras, como Polemarco, um pouco contra-vontade, constata na Repblica

    (332d5-333d): a justia em nada influencia a do mdico, do sapateiro, do pedreiro ou

    do construtor naval. Uma s , como j antes vimos, em D0, explicitamente moral: a

    . Esta, diz-nos Scrates, falha a sua promessa quando o poder no exercido

    justamente. Para Plato, como tambm depois para Aristteles, impossvel existir um

    estado totalmente injusto (cf. R. 352c): a prpria injustia conduz ao colapso do poder.

    Tambm de outras actividades directivas seria possvel dizer que, se o chefe no for

    justo, estas no subsistem e que, nesse sentido, tambm deviam ser englobadas sob a

    definio acima proposta da arte poltica. Um mestre-de-obras ou um treinador de futebol

    que sistematicamente penalizem, sem razo, o melhor dos operrios ou dos jogadores

    podem, pela sua atitude, comprometer a empreitada ou o jogo (o argumento da Ilada

    apenas uma variao sobre este tema: um general ofende o seu melhor guerreiro, sofrendo

    consequentemente uma srie de reveses na guerra, quando este resolve fazer greve). Mas

  • 22

    esta aproximao obscurece um ponto fundamental: o recurso justia, nestas profisses,

    unicamente instrumental, e no constitutivo. Sendo possvel obter os mesmos resultados

    sem recurso justia (apelando, por exemplo, ao medo ou s paixes: imagine-se uma Ilada

    alternativa em que Ptroclo morto por Heitor a pedido de Agammnon, sbio de que isso

    faria Aquiles regressar ao combate), mestre-de-obras, treinador ou general podem faz-lo,

    sem que isso afecte a sua arte o poltico no. que o Justo no apenas a condio de

    possibilidade do seu trabalho, o prprio fim deste. Ele procura a cidade justa, porque

    apenas essa se pode dizer bem administrada.

    Ora visto que as virtudes da boa administrao so comuns a homens e mulheres,

    no h nenhuma razo para que apenas um destes seja capaz de exercer uma arte (seja a

    poltica, seja a eco-nmica) e no a outra. Todas estas consideraes levam menorizao

    clara da (putativa) diferena entre a eco-nomia e a poltica. Em 91a3-4, onde a tese ressurge,

    no h, mais uma vez, a coincidncia explcita entre as duas, mas possvel intu-la na

    aluso sabedoria e virtude pelas quais os homens administram de forma bela as casas e as

    cidades (como se estas fossem uma coisa s). Ao proclamar a unidade de poltico e

    administrador, o Eleata, ao contrrio do que supe Benardete III.77, afirma o primado da

    felicidade sobre a economia. O que aproxima estas artes, que Plato diz serem uma s, no

    tanto o trabalho de gesto que implicam, mas o seu : a produo de uma comunidade

    justa, onde cada um se cumpra. O Bem individual coincide com o Bem comum, porque o

    Bem, que o Justo, uno (Aristteles, pelo contrrio, concebia uma justia filial, desptica e

    matrimonial, como foram coisas diferentes: E.N. V.1134b8-17). Isto aplica-se tambm

    relao mestre-escravo: o Estagirita fala [n]um certo interesse e amizade comuns entre

    senhor e escravo, se por natureza justos [os papis] (Pol. 1255b12-14). O bom mestre

    procura o bem dos seus escravos. O raciocnio, decorrente da assimilao entre e

    , pressupe um alinhamento de Plato e Aristteles na questo da escravatura

    natural25: o senhor permite ao escravo cumprir a sua vocao natural para o servio26. A

    crtica de Benardete III.78, de que a equivalncia entre e aponta para a

    relao mestre-escravo como o paradigma da relao poltica (a tirania seria o regime mais

    25 Para um levantamento rpido dos pontos principais da doutrina platnica sobre a escravatura, vide Gleen Morrow (1939), Platos Law of Slavery in its Relation to Greek Law. University of Illinois Press: Urbana: 35 (reimpresso em 1976 pela Arno Press: NY). 26 O prprio Bem do senhor est a implicado, como explica Sneca, na carta citada em epgrafe (V.47.6): Outro [escravo] destina-se a trinchar aves de alto preo []. Desgraado, cuja vida no tem outro fim que no seja trinchar aves! S que talvez ainda seja mais miservel o senhor que nisso o adextrou para servir o seu prazer, do que o escravo forado a adextrar-se (trad.: Jos Segurado e Campos; Gulbenkian, Lisboa: 42009).

  • 23

    honesto, nesse sentido) no colhe, pois no h nada de aviltante na relao entre o senhor e

    os seus escravos se esta for justa, como diz Aristteles.

    Esta uma tentativa de reconstruo do argumento platnico da identidade das

    quatro artes (, , e ) com base no Mnon. No Poltico, o

    Eleata limita-se a constatar a semelhana, a seu ver, entre uma grande casa e uma pequena

    cidade (259b9-10) (Versailles, na sua glria, tinha mais habitantes que algumas

    menores). Este argumento, por si s, no colhe. Concedendo que, de um ponto de vista

    puramente administrativo, casa e cidade no sejam assim to diferentes, separa-as, porm,

    o que Schmitt considera a essncia do poltico: a abertura possibilidade real do conflito

    extremo. Guerra e paz so prerrogativas dos estados: s na comdia um homem pode

    estabelecer uma paz privada com os inimigos do pas. necessrio subsumir o conflito na

    persecuo da justia para que a aproximao entre eco-nomia e poltica seja legtima, de

    acordo com o raciocnio antes desenvolvido (mas, insistimos, exterior ao Poltico). Poder-se-

    ia argumentar, ainda contra a identidade das quatro figuras, que para o Eleata o verdadeiro

    poltico algum muito raro, excepcional, o que parece entrar em conflito com a ideia de

    que a arte deste partilhada pelo administrador. Se se trata da mesma cincia, e tendo em

    conta que cada cidado administrador da sua casa, a seria ento algo corrente, a

    no ser que se postule que a maioria dos cidados no sabe gerir bem 27, tese que,

    se a uma primeira vista parece radical, no o assim tanto: entre ns, conhecido o elevado

    nmero de famlias endividadas, por exemplo, e, mais platonicamente, mesmo os que

    governam bem as suas casas de um ponto de vista econmico (no sentido moderno),

    discutvel que, porm, conheam o Bem e orientem a sua vida domstica nessa direco.

    De acordo com a Repblica, porm, o filsofo (o nico que conhece o Bem) no pode

    tambm ser administrador, por o ter sido abolido para os guardies (Benardete III.78 e

    B-P n.21 insistem neste ponto). Reconhecemos a dificuldade em conciliar os dois dilogos (o

    que, apesar de tudo, seria possvel, ainda que artificialmente), m