competência na ação civil pública

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COMPETÊNCIA NA AÇÃO CIVIL PÚBLICA Alexandre Lima Raslan Promotor de Justiça. Mestrando em Direitos das Relações Sociais: Direitos Difusos. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/PUC-SP Sumário: 1. Introdução – 2. Jurisdição: 2.1. Antecedente histórico; 2.2. Noções gerais e conceitos; 2.3. Características básicas e princípios; 2.4. Espécies; 2.5. Limites; 3. Competência: 3.1. Conceito; 3.2. Competência de jurisdição; 3.3. Critérios de determinação; 3.4. Absoluta e relativa; 3.5. Perpetuação da jurisdição; 3.6. Conexão, continência, prevenção e prorrogação; 3.7. Plena e privativa; 3.8. Comum, exclusiva e concorrente; 3.9. Originária e recursal; 4. A tutela coletiva; 5. Competência na ação civil pública: 5.1. As regras do art. 2º da LACP e do art. 109, I, da CF; 5.2. A regra do art. 93 do CDC: 5.2.1. A posição de Ada Pellegrini Grinover; 5.2.2. A posição de Rizzatto Nunes; 5.2.3. A posição de Hugo Nigro Mazzilli; 5.3. O art. 16 da LACP e o art. 93 do CDC: um caso concreto e sua crítica: 5.3.1. A filosofia da jurisdição coletiva; 5.3.2 Coisa julgada e os interesses transindividuais; 5.3.3. O caso concreto: Recurso Especial n. 838.978; 6. Conclusão. Resumo: A ação civil pública e as demais ações coletivas devem merecer tratamento e atenção compatíveis com a filosofia que guia a tutela dos interesses transindividuais e os individuais homogêneos, sem sofrer qualquer restrição não imposta à tutela individual. A competência para o processo e julgamento dessas ações, bem como a coisa julgada advinda, deve se conformar com os princípios e objetivos da chamada tutela coletiva, quais sejam, a máxima eficiência e proteção dos respectivos interesses com o menor esforço jurisdicional ou processual, sob pena de se tornar írrita sua utilização. O presente trabalho busca trazer uma visão geral da jurisdição e competência, desde os seus conceitos básicos até aqueles próprios das ações civis públicas. Palavras-chave: Jurisdição – Competência - Ação civil pública 1

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Page 1: Competência na Ação Civil Pública

COMPETÊNCIA NA AÇÃO CIVIL PÚBLICA

Alexandre Lima Raslan

Promotor de Justiça. Mestrando em Direitos das Relações Sociais:

Direitos Difusos. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/PUC-SP

Sumário: 1. Introdução – 2. Jurisdição: 2.1. Antecedente histórico; 2.2. Noções gerais e conceitos; 2.3. Características básicas e princípios; 2.4. Espécies; 2.5. Limites; 3. Competência: 3.1. Conceito; 3.2. Competência de jurisdição; 3.3. Critérios de determinação; 3.4. Absoluta e relativa; 3.5. Perpetuação da jurisdição; 3.6. Conexão, continência, prevenção e prorrogação; 3.7. Plena e privativa; 3.8. Comum, exclusiva e concorrente; 3.9. Originária e recursal; 4. A tutela coletiva; 5. Competência na ação civil pública: 5.1. As regras do art. 2º da LACP e do art. 109, I, da CF; 5.2. A regra do art. 93 do CDC: 5.2.1. A posição de Ada Pellegrini Grinover; 5.2.2. A posição de Rizzatto Nunes; 5.2.3. A posição de Hugo Nigro Mazzilli; 5.3. O art. 16 da LACP e o art. 93 do CDC: um caso concreto e sua crítica: 5.3.1. A filosofia da jurisdição coletiva; 5.3.2 Coisa julgada e os interesses transindividuais; 5.3.3. O caso concreto: Recurso Especial n. 838.978; 6. Conclusão.

Resumo: A ação civil pública e as demais ações coletivas devem merecer tratamento e atenção compatíveis com a filosofia que guia a tutela dos interesses transindividuais e os individuais homogêneos, sem sofrer qualquer restrição não imposta à tutela individual. A competência para o processo e julgamento dessas ações, bem como a coisa julgada advinda, deve se conformar com os princípios e objetivos da chamada tutela coletiva, quais sejam, a máxima eficiência e proteção dos respectivos interesses com o menor esforço jurisdicional ou processual, sob pena de se tornar írrita sua utilização. O presente trabalho busca trazer uma visão geral da jurisdição e competência, desde os seus conceitos básicos até aqueles próprios das ações civis públicas.

Palavras-chave: Jurisdição – Competência - Ação civil pública

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Page 2: Competência na Ação Civil Pública

1. Introdução

A modificação no modo de formação, desenvolvimento e

extinção das relações intersubjetivas vem experimentando, desde a

Revolução Industrial, um amadurecimento lento e gradual que tende a

um aperfeiçoamento de igual progressão, contudo, sempre infenso a

retrocessos provocados por resistência de determinadas classes

detentoras dos meios de produção ou do capital financeiro, sem prejuízo

da motivação política do próprio Estado em se ver isentado ou

desobrigado de atender às demandas sociais que emergem da

sociedade de massa. Para tanto, ao mesmo passo em que a sociedade

necessita de instrumentos de conquista e manutenção de direitos e

garantias, todos tendentes ao suprimento de necessidades básicas

(saúde, educação, meio ambiente sadio, segurança, proteção nas

relações de consumo etc.), tanto o Estado quanto aos demais obrigados

ao atendimento desses anseios constitucionais insistem em resistir das

mais diversas formas, seja pela resistência à obediência a esses direitos

ou mesmo com a tentativa de torná-los de difícil ou impossível

apropriação e gozo coletivos.

Uma dessas formas é, sem dúvida, a restrição ao exercício da

jurisdição, mas propriamente aos efeitos dos atos jurisdicionais, tais

como as decisões e as sentenças de mérito, que enfrentam a indevida

limitação territorial dos seus efeitos como se isso fosse compatível com o

ideário da tutela coletiva. Anote-se, por ser oportuno, quem nem mesmo

na tutela de direitos individuais essas restrições incidem. Para a

dissecação desse tema, desde suas raízes históricas imemoriais até a

atualidade, passando pelos mais relevantes conceitos básicos da tutela

individual e da tutela coletiva, busca-se demonstrar que o tratamento da

competência na ação civil pública não pode ser compreendido da mesma

forma das ações individuais, sob pena do aviltamento de outros temas

relacionados com a defesa dos interesses difusos, coletivos stricto sensu

2

Page 3: Competência na Ação Civil Pública

e individuais homogêneos, a exemplo dos limites subjetivos da coisa

julgada.

2. Jurisdição

2.1. Antecedente histórico

O momento em que o homem passa a conviver com seus

semelhantes marca o surgimento de conflitos gerados pelo contato social

que, invariavelmente, produz atritos de toda ordem e intensidade, ainda

que restritos a uma unidade familiar. Naqueles tempos imemoriais, que

antecederam o cristianismo, as cidades eram embrionárias, a religião era

a lei e o sacerdote o julgador e executor das decisões, conforme legou o

historiador francês FUSTEL DE COULANGES.1

Nessa unidade familiar a solução dos conflitos era monopólio e

exclusividade do pai ou chefe da família, que concentrava as funções de

sacerdote e julgador. Para o exercício desses poderes eram invocadas

divindades domésticas (antepassados da família), tanto para manter a

família sob uma mesma regra ou lei (religião doméstica) quanto para

decidir acerca de eventuais desentendimentos havidos entre seus

integrantes (pai, mãe, filhos e escravos), cujas sanções poderiam chegar

até a morte, precedidas de procedimento de cunho religioso.

O surgimento das cidades pode ser sinteticamente explicado

como resultado inicial do aumento de uma mesma família e da união de

famílias diversas (clãs e tribos), cada qual conservando intacta a sua

religião doméstica em sua inteireza (lei, julgador etc.) de forma

hermética.

1 A Cidade Antiga. São Paulo : Martins Fontes, 2000, p. 85.

3

Page 4: Competência na Ação Civil Pública

Para possibilitar a vida em conjunto de famílias diversas, todas

mantiveram suas religiões (leis) e a centralização das funções de

sacerdote e juiz na figura do respectivo pai. A figura do julgador e o

exercício de suas funções sempre foram essenciais para a convivência

intersubjetiva, ora buscando fundamento na religião ora na

racionalização das funções estatais, como atualmente.

O Estado absoluto, onde a figura do Rei era o fundamento da

Justiça, como valor ou instituição, perdurou como modelo predominante

até a Revolução Francesa, em 1789, quando a burguesia, ávida pelo

poder, confrontou a nobreza (primeiro Estado) e o clero (segundo

Estado), rompendo definitivamente com aquela tradição primitiva da

concentração de funções (sacerdote e julgador).

Surge, assim, o Estado liberal, fundado na liberdade individual,

protegida pela abstenção estatal em face das liberdades individuais e da

propriedade privada, bem como na separação tripartida das funções de

poder do Estado. Formata-se, então, o cenário composto por Executivo,

Legislativo e Judiciário, a exemplo do que se tem hoje, na clássica lição

de PAULO BONAVIDES.2

Ainda que se conserve na atualidade essa tripartição de

funções, o Estado liberal não tem mais adequação suficiente para

atender aos anseios humanos hodiernos, tanto que, depois do período

compreendido entre a Revolução Industrial e o fim da Segunda Guerra

Mundial, a coletividade não mais se satisfaz somente com a liberdade

individual e a abstenção estatal. Desde então, passou-se a exigir uma

atuação positiva do Estado em favor das necessidades da sociedade de

massa (direitos do trabalhador, da família, defesa do consumidor, meio

ambiente, saúde, educação, segurança etc.).

2 Do Estado Liberal ao Estado Social. 7 ed. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2004, p. 202-

204.

4

Page 5: Competência na Ação Civil Pública

Emerge como resultado dessas exigências o Estado social,

fundado na pró-atividade do Estado soberano, voltado para o

atendimento de necessidades da sociedade, sem se descurar das

liberdades individuais. De outra parte, impõe-se ao aparelho estatal a

obrigação de promover o bem de todos, espontânea ou coercitivamente,

inclusive por meio de provimento jurisdicional.

Pode se concluir, com base nessa transformação de

pensamento, que o Estado, essencialmente uno, integrado por órgãos

que exercem as respectivas funções, a exemplo da jurisdição, não pode

descurar da necessária adequação para atuar conforme a doutrina do

Estado social (não confundir com socialismo), cuja Constituição Federal

de 1988 inaugurou nessas plagas e que ainda se aperfeiçoa arduamente.

Essa atuação, especificamente no que tange à atividade

jurisdicional, não pode pretender promover a pacificação dos conflitos

atendendo exclusivamente as liberdades individuais ou garantindo

aquela vetusta abstenção estatal, sem se falar na propriedade privada

(art. 5º, XII, da CF) dissociada da sua função social (Art. 5º, XIII, art. 170,

II e III, e art. 182, § 2º, da CF) e ambiental (Art. 170, VI, e art. 225, § 1º,

incs. IV, V, VII, §§ 2º e 3º, da CF).

Exige-se hoje, como nunca antes, que haja intensa prevenção

de conflitos e eficaz pacificação dos existentes, combinando acesso à

Justiça e instrumentos extrajudiciais e judiciais verdadeiramente hábeis

para a obtenção da decisão acerca da pretensão e sua respectiva

execução, sem prejuízo de que isso deva acontecer em prazo razoável

(Art. 5º, LXXVIII, da CF).

5

Page 6: Competência na Ação Civil Pública

Nesse passo, a Constituição Federal mantém e reafirma a

tradição histórica, social e constitucional de Pindorama,3 reservando ao

Estado brasileiro, ente detentor de “poder unitário”, a absoluta

exclusividade no encargo de pacificar conflitos, individuais ou não, por

meio do exercício da capacidade “de decidir imperativamente e impor

decisões”, nos termos do art. 5º, inc. XXXV, revelador do princípio da

ubiqüidade ou da universalidade da jurisdição, como ensinam ANTÔNIO

CARLOS DE ARAÚJO CINTRA, ADA PELEGRINI GRINOVER e

CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO.4

2.2. Noções gerais e conceitos

A resposta ao direito subjetivo de ação, exercitado quando se

pede ao Estado que produza justiça visando pôr fim a determinado

conflito de interesses, está reservada à atividade jurisdicional em

verdadeiro monopólio consubstanciado no dever de responder à

provocação, o que se faz mediante o devido processo legal.

Essa exclusividade, reservada ao Estado para a solução de

controvérsias, visa evitar que os interessados busquem a satisfação de

seus interesses pessoais por meio da autotutela, notadamente em razão

da arbitrariedade e da violência que costumam animar essas disputas

clandestinas, sem se falar na insegurança social que esses episódios

provocam.

Essa é a jurisdição, uma das expressões da soberania do

Estado, sendo exercida em nome do povo (Art. 1º, parágrafo único, e art.

2º, da CF) e pelo Poder Judiciário (Art. 5º, LIII, e art. 92, da CF) por

intermédio de juízes (Art. 1º do CPC).

3 Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro : Objetiva, 2001, p. 2214: nome que os ando-peruanos e populações indígenas pampianas dão ao Brasil; do tupi pindó-rama ou pindó-retama “a região ou o país das palmeiras”.

4 Teoria Geral do Processo. 20 ed. São Paulo : Malheiros. 2004, p. 24.

6

Page 7: Competência na Ação Civil Pública

Assim, a jurisdição pode ser entendida como sendo “ao mesmo

tempo, poder, função e atividade. Como poder, é a manifestação do

poder estatal, conceituado como capacidade de decidir imperativamente

e impor decisões. Como função, expressa o encargo que têm os órgãos

estatais de promover a pacificação de conflitos interindividuais, mediante

a realização do direito justo e através do processo. E como atividade ela

é o complexo de atos do juiz no processo, exercendo o poder e

cumprindo a função que a lei lhe compete”, segundo RODOLFO DE

CAMARGO MANCUSO.5

Com mais concisão, CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO traz

definição de jurisdição como sendo “a atividade pública e exclusiva com

a qual o Estado substitui a atividade das pessoas interessadas e propicia

a pacificação de pessoas ou grupos em conflito, mediante a atuação da

vontade do direito em casos concretos. Ele o faz revelando essa vontade

concreta mediante uma declaração (processo de conhecimento), ou

promovendo com meios práticos os resultados por ela apontados

(execução forçada). A jurisdição é, pois, manifestação do poder estatal”.6

Segundo ATHOS GUSMÃO CARNEIRO, que faz compilação

de alguns posicionamentos doutrinários acerca da jurisdição, anota que

para CHIOVENDA trata-se de atividade de “substituição” da atuação

privada pela estatal, no que é acompanhado por ARRUDA ALVIM. Para

CARNELUTTI, a atividade jurisdicional é um meio que o Estado detém

para a composição da lide, nos termos da lei, naqueles casos que sejam

5 Ação Civil Pública: em defesa do meio ambiente, do patrimônio cultural e dos consumidores.

9 ed. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2004, p. 79-80. 6 Fundamentos do Direito Processual Civil Moderno. 3 ed. São Paulo : Malheiros, 2000, p. 115-

116.

7

Page 8: Competência na Ação Civil Pública

a ele submetidos, sendo seguido por GALENO LACERDA, ARAKEN DE

ASSIS e FREDERICO MARQUES. 7

Por fim, ATHOS GUSMÃO CARNEIRO propõe dois conceitos

para jurisdição, sendo um “a atividade pela qual o Estado, com eficácia

vinculativa plena, elimina a lide, declarando e/ou realizando o direito em

concreto”. Aqui, a vinculação plena viria com a coisa julgada, impondo-se

definitivamente às partes e seus sucessores de modo perene. Em outra

definição, esse autor entende ser possível conceituar a jurisdição como

“o poder (e o dever) de declarar a lei que incidiu e aplicá-la, coativa e

contenciosamente, aos casos concretos”. 8

Quanto à “declaração”, afirma que não se deve entender tal

aspecto como a mera declaração, sendo que quando disso se tratar não

se estará diante de atividade jurisdicional. Por “aplicação”, deve-se

entender aquela imposta pelo Poder Judiciário, uma vez que as partes

podem aplicar a lei – e o fazem – diariamente de forma espontânea sem

que isso se constitua como ato de jurisdição. No que concerne à

“coatividade” e à “contenciosidade”, a própria administração pública,

respectivamente, impõe suas decisões e aplica sanções, que não se

concretizam como atos jurisdicionais.

Enfim, o que distingue os atos de julgamento dos indivíduos ou

da própria administração pública daqueles exarados pelo Poder

Judiciário é que o ato jurisdicional tem a finalidade de eliminar um conflito

de interesses de forma definitiva, animado por imparcialidade e com

outorga em favor do órgão judiciário de investidura da função estatal de

distribuir a “justiça”, do qual não se pode subtrair a apreciação de

ameaça ou lesão a direito (Art. 5º, XXXV, da CF).

7 Jurisdição e Competência. 14 ed. São Paulo : Saraiva, 2005, p. 5. 8 Ob. cit., p. 6.

8

Page 9: Competência na Ação Civil Pública

ANTÔNIO CARLOS DE ARAÚJO CINTRA, ADA PELEGRINI

GRINOVER e CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO, em didáticas

passagens, assentam que a jurisdição é “uma das funções do Estado,

mediante a qual este se substitui aos titulares dos interesses em conflito

para, imparcialmente, buscar a pacificação dos conflitos que os envolve,

com justiça”, sendo que se trata da “única atividade admitida pela lei

quando surge o conflito”. Finalizam esses autores dizendo que, além da

atividade substitutiva, o Estado visa “garantir que as normas de direito

substancial contidas no ordenamento jurídico efetivamente conduzam

aos resultados enunciados”, ou seja, que o escopo jurídico da jurisdição

é a atuação (cumprimento, realização) das normas de direito substancial

(direito objetivo), tanto por meio da imposição de preceito (cognição)

quanto na modificação no mundo fenomênico (execução).9

ARRUDA ALVIM, em poucas palavras, conceitua jurisdição

como sendo atividade de “índole substitutiva” e que se “destina a

solucionar um conflito de interesses, tal como tenha sido trazido ao

Estado-juiz, sob a forma e na medida da lide”, cabendo ser afirmado, por

meio de decisão ou sentença, “a existência de uma vontade concreta da

lei, favoravelmente àquela parte que seja merecedora da proteção

jurídica”.10

Sinteticamente, portanto: a jurisdição, exercida por juízes

investidos de parcela da função do Poder estatal, substitui as partes em

conflito na valoração fática e jurídica dos aspectos da controvérsia, no

ambiente do devido processo legal, visando, além de pacificar a

sociedade naquele exato momento, tornar imutável a decisão para que

se encerre definitivamente a disputa, sem prejuízo de evitar que haja

9 Ob. cit., p. 145-147. 10 Manual de Direito Processual Civil. 10 ed. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2006, p. 172-

173.

9

Page 10: Competência na Ação Civil Pública

repetição da mesma pendenga ou se evitando que conflitos da mesma

natureza se multipliquem e tenham decisões paradoxais.

2.3. Características básicas e princípios da jurisdição

A jurisdição caracteriza-se pela necessidade de ser provocada

para que possa atuar, não podendo haver jurisdição sem ação (Nemo

judex sine actore). Isso significa que os juízes não podem, em regra,11

provocar a jurisdição e resolverem o conflito por eles trazido (Ne

procedat judex ex officio), mas, sim, devem aguardar que as partes

interessadas na solução busquem o Poder Judiciário, provocando-o para

que elimine a pendenga de forma definitiva (Art. 2º, e art. 262, do CPC).

É o princípio da inércia da jurisdição.

ANTÔNIO CARLOS DE ARAÚJO CINTRA, ADA PELEGRINI

GRINOVER e CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO, ao comentarem esse

princípio, afirmam que “os órgãos jurisdicionais são, por sua índole,

inertes”, cabendo aos interessados provocar a atividade estatal, pois, do

contrário, seriam instaurados conflitos desnecessários e não julgados

úteis pelas partes. Por fim, entendem que o exercício da jurisdição

somente deve ser provocado depois que outros meios de tutela tenha

sido infrutíferos (conciliação endo e extraprocessual, autocomposição e,

excepcionalmente, a autotutela).12

A jurisdição também deve ser reconhecida como uma atuação

pública, ou seja, um monopólio estatal outorgado ao Poder Judiciário,

devendo sempre ser exercida por um órgão a ele pertencente, por meio

de seus representantes, os juízes, regularmente investidos na autoridade

de exercer essa função primordial do Estado. Aqui, reafirma-se a

proibição de que o cidadão possa exercer a autotutela, a defesa privada

11 Art. 61 e art. 73 da Lei de Recuperação de Empresas; art. 797 e art. 989, do CPC. 12 Ob. cit., p. 148-149.

10

Page 11: Competência na Ação Civil Pública

de interesses incontroversos, sob pena de cometimento do crime de

exercício arbitrário das próprias razões (art. 345, do CP), sem prejuízo de

qualquer outro. Trata-se do princípio da investidura.

Como anteriormente dito, a jurisdição é uma substituição, ou

seja, se alguém se nega a afirmar ou a realizar determinada prestação

legal, mesmo que se omitindo, o Estado, por meio do exercício da

jurisdição, realizará o comando normativo respectivo. Se o devedor não

paga dívida, o juiz, na execução, determinará a constrição de bens, bem

como sua alienação pública, para que o credor veja satisfeito seu direito

ao crédito.

Dessa constatação se retira o princípio da inevitabilidade, que

se traduz na sujeição e submissão de todos às imposições do Estado-

juiz, independentemente da vontade das partes ou de qualquer pacto

havido entre elas, tornando impossível que haja escusa ou proteção que

dificulte ou impeça que a autoridade estatal seja exercida e aplicada.

Assim, o devedor não pode se esquivar de cumprir a obrigação

anteriormente assumida, nem mesmo se isentar ou imunizar de atender

os comandos judiciais tendentes à concretização da norma aplicável.

A jurisdição também se caracteriza em razão do princípio da

indelegabilidade, ou seja, deve ser exercida por órgão do Poder

Judiciário e seus respectivos juízes, não podendo haver delegação dessa

atribuição para outros órgãos ou indivíduos (Art. 5º, XXXV, da CF).

Constitucionalmente, deve ser dito, nenhum dos Poderes pode delegar

atribuições que a Carta Política a eles atribuiu.

A respeito da jurisdição, não pode o Poder Judiciário delegar a

outros entes os poderes que a Constituição Federal lhe atribui, nem

mesmo e de igual forma, não pode o juiz delegar suas atribuições a outro

pessoa não investida ou a outro juiz, bem como não se admite que haja

11

Page 12: Competência na Ação Civil Pública

negativa em julgar determinada causa (Art. 126, do CPC), com exceção

das hipóteses de incompetência, impedimento ou suspeição. No caso

das cartas precatórias, não há delegação de jurisdição, mas, sim, pedido

de auxílio para cumprimento de decisão já proferida.

Há, ainda, o princípio da inafastabilidade da jurisdição (da

ubiqüidade ou da universalidade) (art. 5º, inc. XXXV, da CF), que garante

a todos o acesso ao Poder Judiciário e a obrigação deste em dar

atendimento àquele que exerça o direito subjetivo de ação (provocação),

deduzindo pretensão fundada no direito e pedindo solução para um

conflito. Entenda-se, contudo, que a regra de que não se pode “excluir da

apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão ou ameaça a direito”, não

confere ao autor o “atendimento” de seu pedido (pretensão), mas, sim,

apenas o acesso e o julgamento.

Ligado ao princípio da inafastabilidade, existe o princípio do juiz

natural (art. 5º, inc. XXXVII, da CF), que repugna o juiz ou o Tribunal de

exceção, instituídos para o processo e julgamento de determinadas

causas ou pessoas, sem previsão constitucional. Significa esse princípio

que já se deve estar composto e ser conhecido o órgão que promoverá a

apreciação das pretensões antes mesmo que elas ocorram.

Por fim, a jurisdição possui um atributo imprescindível para sua

correta compreensão e distinção das demais decisões, a coisa julgada,

que torna os atos jurisdicionais imutáveis, não podendo ser revistos ou

modificados. Esse atributo, ao cabo de todos os demais, diferencia a

jurisdição das atividades legislativa e administrativa.

Trata-se, enfim, de tornar eficazmente imutável, de forma

absoluta, a solução dada a determinado embate, garantindo efetividade à

atividade jurisdicional por meio da autoridade da coisa julgada, nos

termos do § 3º do art. 6º da Lei de Introdução ao Código Civil, verbis:

12

Page 13: Competência na Ação Civil Pública

“chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não

caiba recurso”.

O art. 467 do Código de Processo Civil, por sua vez, reza que

“denomina-se coisa julgada material a eficácia, que torna imutável e

indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou

extraordinário”, devendo ser entendida como uma qualidade que torna

imutável o efeito declaratório da sentença.

Essa imutabilidade, como qualidade do efeito declaratório da

sentença, vincula as partes (e sucessores) do respectivo processo,

impedindo a rediscussão entre elas, sob pena de se configurar a

litispendência, na definição do § 2º do art. 301 do Código de Processo

Civil: “uma ação é idêntica à outra quando tem as mesmas partes, a

mesma causa de pedir e o mesmo pedido”.

Examinemos, brevemente, os efeitos dessa coisa julgada, tanto

com relação às partes (autor e réu), que define os limites subjetivos,

quanto com relação à matéria atingida pela declaração de mérito contida

no dispositivo da sentença, que respeita aos limites objetivos.

Por limites subjetivos da coisa julgada pode-se entender, com

LUIZ GUILHERME MARINONI e SÉRGIO CRUZ ARENHART, como

sendo “em princípio, portanto, tomando a regra geral, tem-se que

somente as partes (e seus sucessores, por inferência lógica) ficam

acobertadas pela coisa julgada. Autor e réu da ação ficam vinculados à

decisão judicial, já que foram sujeitos do contraditório que resultou na

edição da solução judicial”.13

13 Manual do Processo de Conhecimento. 5 ed. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2006, p.

638.

13

Page 14: Competência na Ação Civil Pública

ANTÔNIO CARLOS DE ARAÚJO CINTRA, ADA PELEGRINI

GRINOVER e CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO, depois de

considerarem que a coisa julgada material deve ser entendida como “a

imutabilidade da sentença, no mesmo processo ou em qualquer outro,

entre as mesmas partes”, o que impede o juiz de voltar a julgar, as partes

a renovar a discussão ou o legislador em regular diversamente a relação

jurídica acobertada, afirmam que “a eficácia natural da sentença vale

erga omnes, enquanto autoridade da coisa julgada somente existe entre

as partes”.14

Portanto, os limites subjetivos da coisa julgada (material)

devem ser encontrados na definição precisa de quem será atingido por

sua autoridade, o que atende a uma necessidade política: quem não

participou do contraditório não pode ser prejudicado. O art. 472 do

Código de Processo Civil afirma que “a sentença faz coisa julgada às

partes entre as quais é dada, não beneficiando, nem prejudicando

terceiros”.

Com relação aos limites objetivos, invoca-se o art. 471-D do

Código de Processo Civil, que diz que “não fazem coisa julgada: I – os

motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da parte

dispositiva da sentença; II a verdade dos fatos, estabelecida como

fundamento da sentença; III – a apreciação da questão prejudicial,

decidida incidentalmente no processo”.

Assim, os limites objetivos se restringem àquela parte

dispositiva da sentença, tornando imutável exclusivamente essa fração

da sentença, uma vez que tanto no relatório quanto na fundamentação

não se vê e não se faz julgamento.

2.4. Espécies de jurisdição 14 Ob. cit., p. 327.

14

Page 15: Competência na Ação Civil Pública

Ainda que a jurisdição deva ser entendida como uma das

funções do Poder estatal e manifestação da soberania, portanto, una,

indivisível e indelegável, desta forma não comportando divisões ou

fragmentações, a doutrina, e por que não a própria legislação, acaba por

classificar a jurisdição com o fim de distribuir os processos mediante

critérios.

Assim, segundo ANTÔNIO CARLOS DE ARAÚJO CINTRA,

ADA PELEGRINI GRINOVER e CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO, pode

ser a jurisdição civil ou penal, a depender do objeto da pretensão (p. ex.:

reparação de dano provocado por acidente de consumo e pretensão

punitiva em razão de homicídio); especial ou comum, conforme o órgão

judiciário em atuação (p. ex.: Justiça Militar, Eleitoral e do Trabalho ou

Justiça Federal ou Estadual); superior ou inferior, conforme a situação

hierárquica do órgão judiciário (p. ex.: Tribunais de Justiça, Tribunais

Regionais Federais, Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal

Federal ou Juízes de primeira instância); e, de direito ou de eqüidade, de

acordo com a fonte de direito que serve de fundamento para o

julgamento (p. ex.: decisão regida pela limitação legal ou com certa

margem de individualização a depender do caso concreto, essa a

depender de previsão expressa de cabimento.15

Importante salientar quer a jurisdição especial (Eleitoral, art.

121; Militar, arts. 124 e 125, § 4º; do Trabalho, art. 114) tem sua

competência definida pela Constituição Federal, o que se faz de modo

expresso, não se podendo ampliar ou restringir tal espectro de atuação

por meio de lei infraconstitucional ordinária.

ATHOS GUSMÃO CARNEIRO entende, conforme esquema

didático que adota, que a jurisdição federal é daquelas especiais,

juntamente com a trabalhista, eleitoral e militar, aduzindo que a 15 Ob. cit., p. 156.

15

Page 16: Competência na Ação Civil Pública

competência para a atuação dos respectivos juízes está inscrita no art.

109, I, da Constituição Federal.16

Para MARCELO ABELHA RODRIGUES, com razão, devem ser

acrescidas a essa classificação a jurisdição graciosa (voluntária) ou

contenciosa, a depender da existência ou não de conflito a ser decidido

(p. ex.: homologação judicial de avença particular ou execução de

avença particular); a arbitral ou estatal, no caso da estipulação de

delegar a um terceiro não investido de jurisdição a decisão do conflito ou

provocar a Estado-juiz mediante a ação no exercício do respectivo direito

subjetivo (p. ex.: arbitragem nas relações de consumo ou dedução de

pretensão mediante o devido processo legal judicial). 17

Por fim, traz esse mesmo autor a jurisdição civil coletiva,18 não

sem advertir que se trata de técnica didática que não desvirtua ou

desnatura a essência unitária da jurisdição como função de Poder

estatal. Esta espécie, pode ser definida como “o conjunto de regras

processuais que devem ser aprioristicamente utilizadas na tutela

processual coletiva”, previstas na Lei n. 7.347/85 (Lei da Ação Civil

Pública) e na Lei n. 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor), cuja

integração legislativa redunda no conjunto único de regras processuais.

2.5. Limites da jurisdição

Como função correlata e representativa de uma parcela da

soberania estatal, a jurisdição encontra limitações internas e externas,

sendo aquelas no sentido de excluir a tutela jurisdicional em certos casos

e estas para preservar a existência simultânea de mais de uma

soberania.

16 Ob. cit., p. 29. 17 Elementos de Direito Processual Civil. 2 ed. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2000, p. 18 Ob. cit., p. 111-112.

16

Page 17: Competência na Ação Civil Pública

Tratando-se de soberania, que é exercida por todas as funções

do Poder estatal, a limitação da jurisdição é produto da atuação da

função legislativa, que por meio de normas internas fixa o espaço e o

tempo de atuação da função de expedir e impor decisões.

Nesse passo, o legislador pode limitar a atuação da jurisdição

por critérios de conveniência, ou seja, resolver não se ocupar de alguns

conflitos, tanto por serem insignificantes quanto por integrarem a tradição

religiosa ou cultural do respectivo País. De igual forma, a jurisdição pode

se ver excluída da apreciação de conflitos em que não haja viabilidade

para que se imponha a autoridade para a execução ou cumprimento da

decisão judicial.

Em resumo, cada Estado tem o poder de atuar

jurisdicionalmente nos limites de seu território, conforme a legislação

estipular. No Brasil, o conflito de interesse que tenham como objeto

matéria civil deve ser julgado mediante a jurisdição brasileira nas

hipóteses previstas pelo Código de Processo Civil, no art. 88 quando, (I)

réu for domiciliado neste País, (II) a pretensão do autor for de obrigação

a ser cumprida no Brasil; (III) o fato ocorreu em nosso território; no art. 89

quando, (I) o objeto da pretensão for imóvel aqui situado, (II) estiverem

situados no Brasil os imóveis do inventário.

Em se tratando de matéria penal, em razão da estrita

obediência ao princípio da territorialidade, que impõe que a jurisdição

penal tem espaço de atuação no mesmo âmbito de aplicação da norma,

não se poderá atuar além dos limites do respectivo Estado. Com a

jurisdição especial do Trabalho ocorre a mesma restrição e pelo mesmo

fundamento.

Internamente, a jurisdição tem atuação irrestrita materialmente

e inevitável aos indivíduos, porém, tem sua participação avançado por

17

Page 18: Competência na Ação Civil Pública

sobre vetustas áreas e matérias em que sua promoção não era admitida,

a exemplo do exame cada vez mais profundo das questões que

envolvem a discricionariedade administrativa, bem como a oportunidade

e conveniência, diminuído as hipóteses de impossibilidade de demanda.

3. Competência

3.1. Conceito

Partindo do pressuposto de que a jurisdição é una e não

comporta divisão ou fragmentação, bem como que todos os juízes

nacionais exercem essa função representativa da soberania do estatal de

modo simultâneo e independente, a necessidade de organizar essas

atuações para uma perfeita prestação jurisdicional vem, segundo CELSO

AGRÍCOLA BARBI,19 com a “divisão de trabalho entre os juízes” e a

resultante de “limitar a atividade de cada um, tendo em vista determinada

área territorial, ou a natureza das questões a serem decididas, ou a

qualidade das pessoas interessadas no litígio, ou o tipo especial de

atividade que o juiz é chamado a desenvolver em determinado processo.

Essa medida da jurisdição atribuída a cada juiz é a chamada

competência”, cuja regulamentação vem com a Constituição Federal e as

leis ordinárias.

ANTÔNIO CARLOS DE ARAÚJO CINTRA, ADA PELEGRINI

GRINOVER e CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO,20 no mesmo sentido,

afirmam que a distribuição do exercício da jurisdição resulta na

competência, que é a quantidade de jurisdição atribuída a cada órgão ou

grupo de órgãos (Liebman), resultante de um “processo gradativo de

concretização” e de legitimação guiado por “regras legais”,

19 Comentários ao Código de Processo Civil. 10 ed. Rio de Janeiro : Editora Forense, 1998, vol.

1, p. 290. 20 Ob. cit., p. 246.

18

Page 19: Competência na Ação Civil Pública

constitucionais ou ordinárias, que reservam a determinados órgãos o

poder de atuar em concreto na expedição e imposição de decisões, de

forma a excluir todos os demais (adequação entre processo e órgão

julgador).

A Constituição Federal e as Estaduais, o Código de Processo

Civil e o Penal, as leis federais ordinárias e os Códigos de Organização

Judiciárias dos Estados, bem como os Regimentos Internos dos

Tribunais, são fontes das regras de competência e regerão essa divisão

de trabalho de forma organizada. As competências fixadas

constitucionalmente são absolutas e exaustivas, não podendo ser

alteradas por nenhuma outra regra legal, salvo emenda constitucional, no

mínimo.

A competência, portanto, não deve ser entendida como um

fator de cisão da soberania estatal por meio da função jurisdicional, mas,

sim, de organização interna que serve à prevenção e à reparação de

ameaças ou lesões ao princípio da segurança jurídica, em última análise,

uma vez que define previamente um único órgão julgador que deverá,

compulsoriamente, realizar a tarefa de pacificar o conflito, substituindo as

partes em busca de um resultado conforme o direito e a justiça.

3.2. Competência de jurisdição

Ainda que se saiba da impropriedade da expressão

competência de jurisdição, uma vez que a competência é a medida da

jurisdição e não outra significação, a carência de fórmula mais adequada

para se entender perante qual Justiça se deve exercer o direito subjetivo

de ação, a doutrina e a jurisprudência adotam esse título para diferençar

se o conflito será resolvido pela Justiça comum (CF – civil ou penal, arts.

106 e 125) ou por uma das Justiças especializadas (CF – Eleitoral, art.

118; Militar, art. 122; Trabalhista, art. 111).

19

Page 20: Competência na Ação Civil Pública

Assim, depois de se concluir pela competência da Justiça

brasileira, deve-se perquirir perante qual das Justiças brasileiras se deve

comparecer para exigir a resposta estatal, sendo que as competências

que não estejam previstas de modo expresso na Constituição Federal

como sendo das Justiças especializadas caberão à Justiça comum,

federal ou estadual ou aquela do Distrito Federal.

3.3. Critérios de determinação

Segundo a doutrina de LUIZ GUILHERME MARINONI e

SÉRGIO CRUZ ARENHART,21 o Código de Processo Civil brasileiro

adotou o critério tripartite para a disciplina da competência, adotando-se

a posição de CHIOVENDA, sendo: objetivo, funcional e territorial.

O objetivo é critério que leva em consideração as

características da causa sob exame. Distribuem-se as ações entre

diversos órgãos jurisdicionais conforme a natureza da causa: é a

competência em razão da matéria (Falência, Família, Sucessões) ou do

valor da causa (Juizados Especiais) ou da qualidade das pessoas

(Fazenda Pública), nos termos do art. 91 do Código de Processo Civil.

O critério funcional se relaciona com as funções

desempenhadas pelo órgão jurisdicional no processo, ou seja, preverá

qual órgão julgará em primeira instância e qual órgão revisará o julgado

(recurso). Não se despreza, ainda, que este critério considera a natureza

e as exigências especiais para a função do juiz em determinadas causas,

como, por exemplo, no caso de juiz de determinado território possuir

mais facilidade e eficácia no exercício da função por estar mais próximo

do fato ou coisa. O art. 93 do Código de Processo Civil regra esse

critério, prevendo que os Tribunais terão a competência determinada

21 Manual do Processo de Conhecimento. 5 ed. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2006, p. 42-

43.

20

Page 21: Competência na Ação Civil Pública

pela Constituição Federal e pelas leis de organização judiciária, sendo

que os juízes de primeiro grau se submeterão às regras do Código de

Processo Civil.

Já o critério territorial, por sua vez, adota a dimensão espacial

atribuída à atividade de cada um dos órgãos jurisdicionais para a

determinação da competência. Sob esse critério a competência é

distribuída conforme as comarcas (Justiça Estadual) ou circunscrições ou

seções (Justiça Federal). Os arts. 94 a 100 do Código de Processo Civil

regem a competência de foro (em regra, relativa), sendo que a regra

geral é a que prevê que nas ações reais sobre bem móvel ou direito

pessoal deverão ser propostas no domicílio do réu (art. 94), sendo que

as ações fundadas em direito real sobre imóveis terá competência

absoluta o juiz da situação da coisa (art. 95).

3.4. Absoluta e relativa

ATHOS GUSMÃO CARNEIRO,22 sintetiza bem os motivos e

diferenças entre essas competências ao asseverar que em alguns casos

visa atender aos interesses das partes, concedendo-lhes facilidades para

o acesso à Justiça, donde tem as partes a disponibilidade sobre o foro

competente, seja elegendo um foro em cláusula de contrato ou

simplesmente não opondo exceção declinatória de foro. Tem-se aqui a

competência relativa, aquele em que o juiz não pode tomar qualquer

iniciativa quanto a ela, cabendo exclusivamente às partes (art. 114, do

CPC).

Por outro lado, quando há interesse público, consubstanciado

no anseio de uma melhor gestão do processo e conseqüente prestação

jurisdicional mais eficiente, nem as partes podem dela dispor nem o juiz

pode se recusar a ela. É a competência absoluta, não prorrogável por 22 Ob. cit., p. 99.

21

Page 22: Competência na Ação Civil Pública

vontade ou omissão das partes e impondo ao juiz a obrigação (poder-

dever) de exercer a fiscalização e anunciar oficialmente sua

incompetência, independentemente da suscitação pelas partes (art. 113,

do CPC).

3.5. A perpetuação da jurisdição

O princípio da perpetuatio jurisdicionis [rectius: competência],

pode ser entendido como aquele que, atendendo à necessidade de se

conferir estabilização ao processo, determina que no momento em que

foi proposta a demanda incide a vedação da alteração da competência

em razão da alteração dos fatos ou fundamentos de direito que operaram

aquela determinação (ex.: autor fixa domicílio em comarca diversa depois

do ajuizamento), nos termos do art. 87 do Código de Processo Civil.

Assim, ligada determinada causa a um foro e juízo específicos,

somente quando suprimido o juízo ou modificada sua competência em

razão da matéria ou da hierarquia é que não incidirá esse princípio (ex.:

criação de novos Tribunais). Já decidiu o SUPERIOR TRIBUNAL DE

JUSTIÇA, no Conflito de Competência n. 38.713, que havendo a

instalação de vara da Justiça Federal em comarca em que haja vara da

Justiça Estadual, não incidirá a perpetuação da jurisdição, uma vez que a

competência prevista no art. 109, inc. I, da Constituição Federal, é

absoluta, impondo-se a remessa dos processos ao juízo competente.

Na hipótese de desmembramento de comarcas a doutrina vem

entendendo que se trata de caso de aplicação da perpetuação da

jurisdição por se entender que há modificação no “estado de direito”.

Contudo, a jurisprudência não vem seguindo essa orientação justificando

calcada nas “necessidades de administração da Justiça”, determinando-

22

Page 23: Competência na Ação Civil Pública

se a remessa dos processos existentes para a nova comarca, como

anota ATHOS GUSMÃO CARNEIRO.23

3.6. Conexão, continência, prevenção e prorrogação

Segundo o art. 103 do Código de Processo Civil, “reputam-se

conexas duas ou mais ações, quando lhes for comum o objeto ou a

causa de pedir”.

Segundo NELSON NERY JUNIOR,24 basta que haja

coincidência com relação a um dos elementos da ação (partes, causa de

pedir ou pedido) para existir conexão. Contudo, nem sempre a simples

identidade de partes provoca conexão, uma vez que seu pressuposto

está no objeto ou na causa de pedir.

Para esse autor, há conexão quando “a causa de pedir em

apenas uma de suas manifestações seja igual nas duas ações. Existindo

duas ações fundadas no mesmo contrato, onde se alega inadimplemento

na primeira e nulidade de cláusula na segunda, há conexão. A causa de

pedir remota (contrato) é igual em ambas as ações, embora a causa de

pedir próxima (lesão, inadimplemento) seja diferente”. Entende-se assim

tratar-se a conexão como causa modificativa da competência.25

O SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA vem firmando reiterado

entendimento no sentido de que “a configuração do instituto da conexão

não exige perfeita identidade entre as demandas, senão que, entre elas

preexista um liame que as torne passíveis de decisões unificadas", a

exemplo do decido no Conflito de Competência n. 22.123, ou de que “o

23 Ob. cit., p. 97-98. 24 Código de Processo Civil Comentado e Legislação Extravagante. 9 ed. São Paulo : Revista

dos Tribunais, 2006, p. 312-313. 25 Ob. cit., p. 314.

23

Page 24: Competência na Ação Civil Pública

instituto da conexão tem, assim, como sua maior razão de ser, evitar o

risco das decisões inconciliáveis. Por esse motivo, diz-se, também, que

são conexas duas ou mais ações quando, em sendo julgadas

separadamente, podem gerar decisões inconciliáveis sob o ângulo lógico

e prático”, conforme o Conflito de Competência n. 57.562.

O art. 104 do Código de Processo Civil prevê que “dá-se a

continência entre duas ou mais ações sempre que há identidade quanto

às partes e à causa de pedir, mas o objeto de uma, por ser mais amplo,

abrange o das outras”.

HUMBERTO THEODORO JÚNIOR,26 quando a comenta,

afirma que é um “fenômeno que se assemelha à conexão é a

continência”, que seria “maior do que a conexão, dado que uma das

causas se contém por inteiro dentro da outra, e não apenas no tocante a

alguns elementos da lide, como se passa entre as ações conexas”.

Afirma, ainda, que em razão da identidade relativa entre sujeitos, objeto e

causa de pedir, haveria uma aproximação maior com a litispendência,

que seria a identidade absoluta. Para esse autor, a continência,

juntamente com a conexão, seria uma das formas mais comuns de

modificação ou prorrogação de competência relativa.27

Já ATHOS GUSMÃO CARNEIRO,28 divergindo, assevera que a

continência é uma forma especial de conexão, sendo que haveria apenas

divergência de amplitude entre os objetos de ambas, entendendo-a

também como uma forma de prorrogação de competência.

26 Curso de Direito Processual Civil. 20 ed. Rio de Janeiro : Editora Forense, 1997, vol. I. p.

181. 27 Ob. cit., p. 180. 28 Ob. cit., p. 104.

24

Page 25: Competência na Ação Civil Pública

A solução dada para os casos de conexão ou continência é

aquela prevista no art. 105 do Código de Processo Civil, que prevê que

“o juiz, de ofício ou a requerimento de qualquer das partes, pode ordenar

a reunião de ações propostas em separado, a fim de que sejam

decididas simultaneamente”, o que pode ser provocado inclusive pelo

Ministério Público quanto atuar como fiscal da lei.

Essa regra visa que decisões conflitantes ou inconciliáveis não

sejam emitidas por mais de um juízo, sendo todos competentes, devendo

o juiz apreciar a questão de ofício, uma vez que se trata de matéria de

ordem pública, não sujeita à preclusão, não sendo necessária a sua

veiculação por meio de exceção, mas, sim, que se alegue com a

contestação (incompetência absoluta).

Havendo a hipótese de conexão ou continência, deve ser

aplicada a regra do art. 106 do Código de Processo Civil, que considera

o juiz competente aquele que “despachou em primeiro lugar”, tornando-

se prevento. Contudo, se estão os juízes competentes em comarcas

distintas, a citação válida é que concretizará a prevenção de um dos

juízos (art. 219 do CPC). Já se os juízes competentes estiverem na

mesma comarca, prevento será aquele que primeiro despachou (art. 101

do CPC). Trata-se a prevenção de regra fixadora de competência entre

dois órgãos jurisdicionais igualmente competentes.

A competência pela prorrogação, que apenas incide em casos

de competência relativa, ocorre quando uma cláusula contratual prevê

que em determinada situação relativa ao negócio jurídico respectivo os

contratantes pactuam que as ações dele oriundas serão propostas no

foro de eleição, ainda que pelas regras gerais o foro devesse ser outro

(art. 111 do CPC; art. 42 do CC; Súmula 335 do STF). Outra hipótese de

prorrogação é aquele em que o réu aceita a competência escolhida pelo

autor (acordo tácito), uma vez que proposta a demanda perante um juízo

25

Page 26: Competência na Ação Civil Pública

relativamente competente o réu não excepciona o foro (exceção em

apartado) no prazo da contestação (art. 305 do CPC), tornando esse

juízo o competente, por prorrogação, para todo o processo e julgamento,

inclusive para todas as causas interligadas.

Segundo ANTÔNIO CARLOS DE ARAÚJO CINTRA, ADA

PELEGRINI GRINOVER e CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO,29 a

prorrogação “determina a modificação, em concreto, na esfera de

competência de um órgão (isto é, com referência a determinado

processo)”, sendo que a prevenção não é fator de determinação e nem

de modificação, pois trata de caso em que todos os juízos são

competentes e haverá um prevento, excluído todos os demais.

3.7. Plena e privativa

A competência plena ou cumulativa ocorre quanto em

determinada comarca haja um ou mais juízos a quem se reserva

competência para processar e julgar todas as causas propostas no foro

respectivo, desde que, no caso de mais de um juízo, haja distribuição

indistinta das causas entre todos.

A competência privativa se dá quando a lei outorga ao órgão

julgador o conhecimento de causas determinadas, tanto em razão da

matéria quanto em razão do valor da causa. É o caso das varas de

Registros Públicos ou de Família e Sucessões e os Juizados Especiais,

respectivamente.

3.8. Comum, exclusiva e concorrente

A competência comum é aquela residual ou que remanesce

daquela medida ou quantidade reservada pela competência privativa, 29 Ob. cit., p. 261.

26

Page 27: Competência na Ação Civil Pública

quando numa determinada comarca haja uma vara com competência

privativa para o julgamento de causas da Fazenda Pública e as demais

receberão todos os processos que não estejam entre aqueles atribuídos

àquela outra.

A competência exclusiva prevê que as ações devem ser

propostas em determinado foro, a exemplo da ação reivindicatória de

imóvel e o ajuizamento no foro da situação do bem (art. 95 do CPC).

A competência concorrente ocorre quando o autor elege o foro

ou quando o segundo foro é subsidiário. Naquela, o direito subjetivo de

ação pode ser exercitado em qualquer um dos foros previstos (art. 100,

IV, parágrafo único, do CPC), alternativamente (ex.: as indenizações por

acidente de trânsito: no domicílio do autor ou do réu ou no local do fato).

Nessa, há uma subsidiariedade (art. 94 e § 2º, do CPC), ou seja, há um

foro determinado, contudo, na impossibilidade de se saber qual é, pode a

ação ser ajuizada em um foro subsidiário (ex.: nas ações pessoais ou

reais mobiliárias, o foro é o do domicílio do réu, porém, acaso seja

desconhecido ou incerto o paradeiro, será o domicílio do autor).

3.9. Originária e recursal

Aqui se diferencia a originária da recursal por se tratar aquela

de reserva da primeira instância e esta da segunda. A eleição legal para

determinadas causas em relação da competência ocorre em razão da

matéria ou da qualidade das partes.

A regra geral é que aos juízes de primeiro grau está reservada

a competência originária, sendo que a recursal cabe aos Tribunais e

Turmas Recursais. Contudo, em algumas hipóteses, a competência

originária é atribuída aos Tribunais, a exemplo dos mandados de

segurança contra ato do Presidente da República (art. 102, I, d, da CF)

27

Page 28: Competência na Ação Civil Pública

que é do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL ou nas ações rescisórias, em

que caberá ao Tribunal que proferiu o acórdão o processo e julgamento

de sua rescisão (art. 493, I e II, do CPC).

4. A tutela coletiva

A sociedade atual, entendida como aquela germinada na

Revolução Industrial e no pós Segunda Guerra Mundial, na qual ainda

estamos inseridos, exige uma forma nova e adequada de regras as

relações entre os indivíduos e destes com os bens dispostos na natureza

(água, ar etc.), no mercado de consumo (produtos e serviços) e naqueles

criados pela dinâmica das relações entre os sujeitos de direito (acesso à

Justiça, devido processo legal etc.).

A exigência de uma forma mais adequada e efetiva de se

conquistar e se manter direitos e garantias transparece desde as

relações entre indivíduos determinados até naquelas em que não se

consegue determinar quem são os beneficiários da pretensão, uma vez

que esses titulares constituem uma universalidade. É a individualidade e

a transindividualidade, duas faces de um mesmo tempo.

Para o atendimento das exigências e necessidades tanto dos

indivíduos quanto da transindividualidade não se pode oferecer

instrumentos processuais que não se prestem a tornar efetivos os

anseios de seus titulares, sob pena de se conceder por uma via e se

negar por outra.

A própria tutela de direitos individuais vem sofrendo inúmeras

intervenções para que se torne mais célere e eficaz, tanto no

concernente ao direito substancial quanto ao processual, rompendo com

alguns paradigmas em nome do atendimento efetivo da pretensão do

28

Page 29: Competência na Ação Civil Pública

titular do direito (ex.: antecipação da tutela, tutela específica, efeitos dos

recursos, cumprimento da sentença etc.).

Nesse sentido, ou seja, de se proteger as garantias e os

direitos próprios das relações na sociedade de massa (e de risco), há de

se reconhecer a existência de outras categorias de interesses que, sem

prejuízo daqueles individuais, vêm para completar essa lacuna por meio

de previsão jurídica positivada, que entre nós vem representada, entre

outras, pela Lei n. 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor),

precisamente no art. 81, incs. I (difusos), II (coletivos stricto sensu) e III

(individuais homogêneos).

Ainda que se reconheça que a Lei n. 4.717/65 (Lei da Ação

Popular) foi a primeira norma a dispor sobre os interesses da

coletividade, uma vez que destinada essencialmente à defesa do

patrimônio público, alguns inconvenientes acabaram por retirar a

efetividade desejada, a exemplo da sua legitimação que, muito embora

seja exemplo e reconhecimento de democracia participativa, encontra um

titular da pretensão hipossuficiente e vulnerável, com raríssimas

exceções.

A Lei n. 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública), editada décadas

depois, resolve esse inconveniente da legitimação, ainda que

inicialmente tivesse objeto restrito ao meio ambiente, consumidor, bens e

direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico. Mais

recentemente, qualquer interesse difuso ou coletivo pode ser objeto de

sua proteção, inclusive as infrações à ordem econômica e à economia

popular, bem como os direitos da criança e do adolescente, do idoso, dos

portadores de necessidades especiais etc.

Contudo, é de se reconhecer que somente com a edição da Lei

n. 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor) a sociedade brasileira

29

Page 30: Competência na Ação Civil Pública

passou a ter a seu dispor um verdadeiro microssistema de direito

processual coletivo, com a subsidiariedade do Código de Processo Civil.

Assim, a Lei n. 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor),

por meio dos arts. 83, 90 e 117, e a Lei n. 7.347/85 (Lei da Ação Civil

Pública), por seu art. 21, acabaram por inaugurar uma integração que

passou a conferir à tutela coletiva um status de existência nunca antes

imaginado, isso sem se falar na contribuição que a Lei n. 4.717/65 (Lei

da Ação Popular) empresta ao microssistema que rege as ações

coletivas (gênero do qual a ação civil pública, a ação popular, o mandado

de segurança coletivo, a ação direta de inconstitucionalidade etc. são

espécies).

Aqui cabe uma constatação, um reclame e um alerta: os

interesses transindividuais e os individuais homogêneos não rivalizam ou

inauguram maniqueísmo com os individuais, mas, em verdade, vêm se

somar visando à materialização do princípio da dignidade da pessoa

humana. Por isso, não se pode dispensar a essas categorias de

interesses substanciais o mesmo tratamento processual, urgindo-se e se

impondo uma revisão de paradigmas, a valorização do resultado eficaz, a

mitigação da dogmática excessiva e paralisante, sob pena de se dar ao

homem menos do que ele anseia e merece e outorgar às regras mais do

que elas significam.

A Lei n. 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública) se trata de norma

estritamente procedimental, não outorgando direito ou garantias

materiais, ao contrário da Lei n. 8.078/90 (Código de Defesa do

Consumidor), sendo que este breve estudo se propõe a se debruçar

sobre o tema da competência na ação civil pública, em específico.

5. Competência na ação civil pública

30

Page 31: Competência na Ação Civil Pública

5.1. As regras do art. 2º da LACP e do art. 109, I, da CF

Apenas relembrando, já se consignou que a competência é a

quantidade de jurisdição cujo exercício é reservado a cada órgão

jurisdicional, ou como prefere MOUTARI CIOCCHETTI DE SOUZA,30 “é

o modo pelo qual o exercício da jurisdição é racionalizado dentre os

diversos órgãos jurisdicionais”.

Assim, o art. 2º da Lei n. 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública)

reza que “as ações previstas nesta Lei serão propostas no foro do local

onde ocorrer o dano, cujo juízo terá competência funcional para

processar e julga a causa”. Cumpre, desde logo, destacar as expressões

“foro do local onde ocorrer o dano” e “competência funcional”.

Sem se desprezar a gênese e a finalidade da ação civil pública,

que por si só já serviriam para assentar a competência absoluta como

regra a ser seguida, uma vez que a própria natureza dos interesses

tutelados exige que não haja disponibilidade pelas partes, não se pode

deixar de analisar as expressões acima destacadas.

A previsão de competência funcional para as ações civil

públicas e a adição do critério territorial resulta em indiscutível

competência absoluta, uma vez que em razão da natureza dos

interesses tutelados a condução dos processos coletivos deve merecer

empenho e vigilância compatíveis, tanto pela maior proximidade do órgão

judicial com os fatos, com as partes e as testemunhas, quanto pela

possibilidade técnica de se proferir decisão ou sentença com qualidade

diferenciada e, portanto, acrescida na legitimidade.

Analisando o dispositivo como um todo e dando especial

atenção às expressões em destaque, pode-se concluir que a lei se 30 Ação Civil Pública e Inquérito Civil. 2 ed. São Paulo : Saraiva, 2005, p. 31.

31

Page 32: Competência na Ação Civil Pública

utilizou “da somatória de dois critérios para a fixação da competência: de

início, da regra territorial (juiz do local do dano) e, em arremate, disse

que ela será funcional”, segundo MOUTARI CIOCCHETTI DE SOUZA,31

para quem “a competência para o julgamento de ação civil pública é

formada por um critério composto: ela é territorial-funcional” e, sendo

funcional, é absoluta, sem prejuízo de anotar que o vocábulo funcional foi

utilizado sem rigor técnico, mas, em verdade, com a nítida intenção de

“enfatizar a natureza absoluta da regra de competência territorial”.

HUGO NIGRO MAZZILLI,32 ao analisar o art. 2º, atesta ser a

competência absoluta para as ações civis públicas ou ações coletivas,

uma vez que há a finalidade é a “de facilitar a defesa dos interesses

transindividuais” e, por isso, “essas ações devem ser ajuizadas no foro

do local do dano”, inclusive pelo fato de que em atenção ao critério

funcional haverá facilitação para a coleção de provas e a realização de

julgamento por juiz que tenha tido ou possa vir a ter maior contato com a

ameaça ou o dano. Ainda, de forma categórica, afirma esse autor que

não se trata, em verdade, de instituição de juízo com competência

funcional, mas, sim, de competência absoluta e, portanto, inderrogável e

improrrogável, ao reverso da territorial ou relativa.

Para RODOLFO DE CAMARGO MANCUSO, o art. 2º traz dois

critérios “fixadores ou determinativos de competência, que,

ordinariamente, aparecem desconectados”, sendo que um deles refere

ao local do fato, que induz à competência relativa, e o outro ao critério

funcional, que nos leva à competência absoluta, sendo que se trataria de

“competência territorial funcional” (Liebman) de natureza absoluta, daí

decorrendo as conseqüências próprias. Prosseguindo, afirma que essa

competência é “instituída em razão das funções que o juiz exerce no

31 Ob. cit., p. 31-32. 32 A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo: meio ambiente, consumidor, patrimônio cultural,

patrimônio público e outros interesses. 16 ed. São Paulo : Saraiva, 2003, p. 225-226.

32

Page 33: Competência na Ação Civil Pública

processo, o qual estará melhor habilitado a decidir as questões

imobiliárias no local onde se encontra o imóvel”, seguindo a competência

territorial especial do art. 100, inc. V, alínea a, do Código de Processo

Civil (forum commissi delicti). 33

Ao comentar o art. 2º e a competência funcional que instaura,

NELSON NERY JUNIOR,34 sinteticamente, diz que se trata “de

competência de natureza absoluta, improrrogável por vontade das

partes”, podendo ser suscitada na contestação e reconhecida a qualquer

tempo e grau de jurisdição, devendo o juiz reconhecê-la de ofício, sendo

que as decisões proferidas por juiz incompetente são nulas (art. 113, §

2º, do CPC) e a sentença desafia ação rescisória (art. 485, II, do CPC).

Reforça essa afirmação quando assenta que a competência funcional é

“espécie de competência absoluta” instituída levando “em consideração a

função que o órgão jurisdicional exerce”.35

A aparente contradição entre o foro do local do dano e a

competência funcional é ressaltada por MARCELO ABELHA

RODRIGUES,36 ao dizer que a competência territorial considera o critério

geográfico e visa aumentar o contato do juiz com os elementos da causa,

sendo que a funcional tem relação com uma função exercida pelo

julgador no processo. Aquela é relativa e esta absoluta. Contudo,

assenta que não há dúvida de que se trata de competência absoluta,

uma vez que o texto legal expressamente reclama a competência

funcional.

33 Ação Civil Pública : em defesa do meio ambiente, do patrimônio cultural e dos consumidores.

10 ed. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2007, p. 67-68. 34 Constituição Federal Comentada e legislação constitucional. São Paulo : Revista dos

Tribunais, 2006, p. 483. 35 Código de Processo Civil Comentado, p. 285. 36 Ações Constitucionais. Salvador : JusPodivm, 2006, p. 308-309.

33

Page 34: Competência na Ação Civil Pública

A tranqüilidade havida com a conclusão de que a competência

para a ação civil pública é absoluta, uma vez que de natureza funcional,

não se desconsiderando o prestígio do aspecto territorial (local do dano),

é abalada relativamente quando se trata da hipótese do art. 109, inc. I,

da Constituição Federal, que versa sobre a denominada “competência de

jurisdição” e diz: “Aos juízes federais compete processar e julgar: I – as

causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal

forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou

oponentes, exceto as de falência, as de acidente de trabalho e as

sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho”.

Aquela redação imprecisa do art. 2º da Lei n. 7.347/85 (Lei da

Ação Civil Pública) ainda gera algumas interpretações conflitantes, a

exemplo daquela esposada na Súmula n. 183 do STJ, já revogada, que

dizia: “Compete ao Juiz Estadual, nas comarcas que não sejam sede de

vara da Justiça Federal, processar e julgar ação civil pública, ainda que a

União figure no processo”.

A perplexidade causada pela referida Súmula, que interpretava

inadequadamente o art. 2º, resultava que o juiz federal competente em

razão da incidência do art. 109, I, da Constituição Federal, tinha sua

competência afastada em prol de juiz estadual da comarca que abrangia

o local do dano, sede da comarca ou não, uma vez que se dava à

expressão “no foro do local onde ocorrer o dano” uma exegese

expansiva por demais e, sobretudo, equivocada, pois considerava que

simplesmente por não haver vara federal no local do dano caberia o

processo e julgamento ao juiz estadual.

Contudo, há que se ver que não há espaço territorial brasileiro

que esteja imune à jurisdição e, conseqüentemente, sempre haverá, no

mínimo, um juiz estadual e um juiz federal (sentido amplo), com

competência para processar e julgar as causas respectivas, tudo a

34

Page 35: Competência na Ação Civil Pública

depender do que está reservado a cada um deles pela Constituição

Federal, que delimita a “competência de jurisdição”, a exemplo do que

faz o art. 109, I.

Julgando em sentido contrário à Súmula n. 183 do STJ e

provocando seu cancelamento, o SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

decidiu no Recurso Extraordinário n. 228.955-9 que o legislador ordinário

não positivou a autorização constante do art. 109, § 3º, da Constituição

Federal, qual seja, a de que “sempre que a comarca não seja sede de

vara do juízo federal, e, se verificada essa condição, a lei poderá permitir

que outras causas sejam também processadas e julgadas pela justiça

estadual”, sendo o recurso cabível sempre destinado ao Tribunal

Regional Federal respectivo (§ 4º).

Dessa forma, consta no bojo do acórdão que “a permissão

constitucional não foi utilizada pelo legislador, que se limitou, no art. 2º

da Lei 7.347/85, a estabelecer que as ações nele estabelecidas ‘serão

propostas no foro do local do onde ocorrer o dano, cujo juízo terá

competência funcional para processar e julgar a causa”. Em razão dessa

decisão proferida em sede de recurso extraordinário, o SUPERIOR

TRIBUNAL DE JUSTIÇA houve por bem cancelar a referida Súmula,

assim o fazendo no julgamento de Embargos Declaratórios no Conflito de

Competência n. 27.676.

Parcela da doutrina, aqui representada por ELTON VENTURI,37

inclina-se favoravelmente ao cancelamento do entendimento sumulado,

entendendo que sendo caso de competência funcional e, portanto,

absoluta, não há como excluir a causa da apreciação do juiz federal da

circunscrição em que está inserido o local do dano ou de sua possível

37 Processo Civil Coletivo: a tutela jurisdicional dos direitos difusos, coletivos e individuais

homogêneos no Brasil. Perspectivas de um Código Brasileiro de Processos Coletivos. São

Paulo : Malheiros, 2007, p. 266-272.

35

Page 36: Competência na Ação Civil Pública

ocorrência, uma vez que possui também competência territorial para

tanto. Assenta, ainda, que a interpretação do art. 2º da Lei n. 7.347/85

(Lei da Ação Civil Pública) não pode ser realizada eficientemente sem a

prévia consideração do art. 109, inc. I, da Constituição Federal, e,

sobretudo, da previsão instituída pelo art. 93 da Lei n. 8.078/90 (Código

de Defesa do Consumidor), quanto aos danos locais, regionais e

nacionais.

Mesmo diante de todos esses argumentos e ainda depois do

cancelamento sumular referido, alguns doutrinadores defendem que o

juiz estadual tem “competência funcional federal” para o processo e

julgamento em razão do art. 2º nas hipóteses do art. 109, I, da

Constituição Federal, quando se tratar da situação do art. 109, § 3º,

cabendo o recurso a um dos Tribunais Regionais Federais, a exemplo do

que defende MARCELO ABELHA RODRIGUES.38

Outros, na mesma direção, porém, partindo de premissa

distinta, entendem que o mero interesse ou a simples presença da União

nas causas não fixa ou desloca a competência para a Justiça Federal,

havendo a necessidade de se aferir no caso concreto a qualidade desse

interesse, o que deve ser julgado pelo juízo federal competente, pois

somente a ele cabe julgar esse aspecto da demanda. Importante questão

que permeia essas discussões é, também, a questão da dominialidade

do bem, especialmente nas questões ambientais, quando se tem bem

difuso e não um bem público ou de propriedade de quaisquer das

pessoas jurídicas de direito público, conforme posições colecionadas por

RODOLFO DE CAMARGO MANCUSO.39

Por fim, os autores acima citados unanimemente ressaltam a

precisão e a oportuna redação do art. 209 da Lei n. 8.069/90 (Estatuto da

38 Ações Constitucionais, p. 310-311. 39 Ação Civil Pública, p. 70-72.

36

Page 37: Competência na Ação Civil Pública

Criança e do Adolescente) que reza que “as ações previstas neste

Capítulo serão propostas no foro do local onde ocorrer ou deva ocorrer a

ação ou a omissão, cujo juízo terá competência absoluta para processar

a causa, ressalvadas a competência da Justiça Federal e a competência

originária dos Tribunais Superiores”. Todos os encômios são dirigidos

para a expressão “cujo juízo terá competência absoluta”, o que espanca

qualquer dúvida acerca da competência de juízo, cabendo à ressalva

resolver a questão da jurisdição competente, se federal ou estadual.

Quanto ao parágrafo único do art. 2º, que diz que “a

propositura da ação prevenirá a jurisdição do juízo para todas as ações

posteriormente intentadas que possuam a mesma causa de pedir ou o

mesmo pedido”, é importante salientar que o regramento se dá conforme

o Código de Processo Civil, notadamente o art. 106, sem prejuízo da

regra do art. 219.

Não se pode olvidar, ainda, que a Lei n. 7.347/85 (Lei da Ação

Civil Pública), por seu art. 21, e a Lei n. 8.078/90 (Código de Defesa do

Consumidor), por seu art. 90, promoveram uma auto-integração

recíproca, resultando no microssistema de tutela coletiva processual, o

que impende reconhecer também que o art. 83 do estatuto consumerista

admite “todas as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada

e efetiva tutela”.

Diante disso tudo, não há como deixar de concluir que a

competência para as ações civis públicas e ações coletivas (art. 21 da

LACP e arts. 83 e 90 do CDC), é funcional, informada também pelo

critério territorial, sendo que dessa conjugação reforçadamente se expõe

o caráter absoluto (art. 2º da LACP e art. 93 do CDC). Reconhece-se,

assim, que à Justiça Federal se reserva a jurisdição nos limites previstos

pela Constituição Federal (art. 109, I, da CF), o que deve ser aferido

conforme o caso concreto, não se podendo afastar a competência

37

Page 38: Competência na Ação Civil Pública

funcional dos juízes federais sob o mero fundamento de que no local do

dano ou da ameaça não é sede de vara federal quando, em verdade, não

há sequer uma nesga de território brasileiro que esteja imune à

jurisdição, federal ou estadual etc.

5.2. A regra do art. 93 do CDC

Superado o enfrentamento para se definir como absoluta a

competência nas ações civis públicas ou nas ações coletivas, impõe-se

analisar se há diferenciação quanto ao critério da competência quando o

objeto da demanda for difuso ou coletivo stricto sensu (transindividual) ou

individual homogêneo (individual tratado coletivamente), consoante as

definições do art. 81 da Lei n. 8.078/90 (Código de Defesa do

Consumidor).

Os mesmos fundamentos que sustentam a competência

absoluta extraída do art. 2º da Lei n. 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública),

em razão da prevalência do critério funcional, aplicam-se na defesa em

juízo dos interesses transindividuais, aqui entendidos aqueles definidos

como difusos e coletivos stricto sensu pelos incs. I e II do art. 81 da Lei n.

8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor). Quanto aos individuais

homogêneos, a doutrina entende ser relativa, especialmente quando se

tratar de direito do consumidor, o que se verá em seguida.

Sem prejuízo disso, a questão de competência ser absoluta ou

relativa nas ações civis públicas também pode ser resolvida com a

consideração do que prescreve o art. 93, incs. I e II, da Lei n. 8.078/90

(Código de Defesa do Consumidor), uma vez que o microssistema de

processo civil coletivo comentado exige que se adotem reciprocamente

as regras, objetivando uma mais abrangente, célere e eficaz tutela

jurisdicional.

38

Page 39: Competência na Ação Civil Pública

Diz o art. 93 da Lei n. 8.078/90 (Código de Defesa do

Consumidor) que: “ressalvada a competência da Justiça Federal, é

competente para a causa a justiça local: I – no foro do lugar onde ocorreu

ou deva ocorrer o dano, quando de âmbito local; II – no foro da Capital

do Estado ou no do Distrito Federal, para os danos de âmbito nacional ou

regional, aplicando-se as regras do Código de Processo Civil aos casos

de competência concorrente”.

Da redação e do sentido desse dispositivo podemos abstrair as

seguintes expressões que merecem um olhar mais detido, sem prejuízo

da análise do alcance dessa regras de competência: “ressalvada a

competência da Justiça Federal”, com relação à “competência de

jurisdição”, e “no foro do lugar onde ocorreu ou deva ocorrer o dano”, que

diz respeito à abrangência do dano.

5.2.1. A posição de ADA PELLEGRINI GRINOVER

A doutrina vem afirmando posição unânime, a exemplo do que

replica essa autora, que “o art. 93 do CDC rege todo e qualquer processo

coletivo, estendendo-se às ações em defesa de interesses difusos e

coletivos”, não havendo qualquer impedimento por estar esse

regramento no capítulo reservado às ações coletivas para a defesa dos

interesses individuais homogêneos”,40 uma vez que se deve utilizar aqui

“o método integrativo, destinado ao preenchimento de lacuna da lei, tanto

pela interpretação extensiva (extensiva do significado da norma) como

pela analogia (extensiva da intenção do legislador)”.

Em seguida a essas considerações a autora trata de

reconhecer como absoluta a competência, uma vez que “a competência

territorial dos incs. I e II do art. 93 não se sujeita às regras do Código de

40 Código de Defesa do Consumidor Comentado pelos autores do anteprojeto. 8 ed. Rio de

Janeiro : Forense Universitária. 2005, p. 874.

39

Page 40: Competência na Ação Civil Pública

Processo Civil, como aconteceria se se tratasse de competência relativa.

É que, como visto (supra, nº 2), o art. 2º, LACP, aplicável ao CDC por

força do art. 90 deste, em seu segundo sentido, confere à competência

territorial natureza absoluta, ao disciplinar o gênero da competência

funcional (uma das modalidades da competência absoluta)”, prestigiando

a celeridade e a eficácia da tutela jurisdicional.41

Quanto à reserva da “competência da Justiça Federal” inserida

no caput do art. 93, a autora entende, com fundamento na interpretação

do art. 2º da Lei n. 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública), de que se trata

de competência territorial absoluta, que, muito embora haja ressalva

expressa à competência constitucional da Justiça Federal (art. 109, I, da

CF, competência objetiva ou de jurisdição), no local do dano onde não

houver vara federal a competência será do juiz estadual (art. 109, § 3º,

da CF) e o recurso ao Tribunal Regional Federal respectivo (§ 4º), o que

situa a doutrinadora contra o cancelamento da Súmula n. 183 do STJ.42

No que tange à expressão “no foro do lugar onde ocorreu ou

deva ocorrer o dano”, a doutrinadora entende que houve determinação

de competência regida pelo critério territorial, o que promove superação

das dúvidas interpretativas provocadas pela regra do art. 100, inc. V, do

Código de Processo Civil, que fixou a competência do local do ato ou fato

para as ações de responsabilidade civil (fórum delicti commissi). Afirma,

ainda, que a regra do art. 93, inc. I, que privilegiou o “local do resultado,

que vai coincidir, em muitos casos, com o do domicílio das vítimas e da

sede dos entes e pessoas legitimadas, facilitando o acesso à justiça e a

produção de prova. Em mais esse ponto, o Código acompanhou o

disposto na Lei nº 7.347/85, cujo art. 2º também opta pelo critério do local

do dano”.

41 Ob. cit., p. 879. 42 Ob. cit., 875-877.

40

Page 41: Competência na Ação Civil Pública

Já para os casos em que o dano é de âmbito regional ou de

âmbito nacional, conforme as hipóteses do art. 93, inc. II, da Lei n.

8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor), o entendimento da autora é

de que o dano nacional terá “sempre” como competente o foto do Distrito

Federal, uma vez que não se pode impor ao demandado que se defenda

em qualquer uma das Capitais de Estados, posto que isso vulneraria a

plenitude da defesa e o devido processo legal. Reconhece que esta não

é a posição da jurisprudência, porém, argumenta que adotando seu

posicionamento haveria redução nos casos de competência concorrente,

que quando ocorrentes seriam resolvidos pela prevenção (arts. 105 e

106 do CPC). Por fim, anota que foi justamente a competência

concorrente entre as Capitais dos Estados e o Distrito Federal para as

situações de dano nacional que provocou a malsucedida redação do art.

16 da Lei n. 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública), promovida pela Medida

Provisória n. 1.570/97, que buscou restringir a abrangência nacional das

decisões.43

Ao tratar dos casos em que os danos não atingem

propriamente todo o território nacional ou de um Estado, a exemplo da

afetação de dois ou três Estados, bem como de duas ou três comarcas

de uma mesma unidade federativa, a autora sustenta que haverá,

conforme prefere denominar, danos não propriamente nacionais ou não

propriamente regionais.

Para os casos de danos não propriamente nacionais, seriam

competentes, concorrentemente, quaisquer dos juízos de uma das

Capitais dos Estados atingidos. Já no caso de danos não propriamente

regionais, a competência concorrente abrangeria os juízos das comarcas

afetadas. Sendo concorrente a competência, incidem as regras da

prevenção previstas nos arts. 105 e 106 do Código de Processo Civil.

43 Ob. cit., p. 879.

41

Page 42: Competência na Ação Civil Pública

5.2.2. A posição de RIZZATTO NUNES

Para esse autor, a regra do art. 93 da Lei n. 8.078/90 (Código

de Defesa do Consumidor) veio para a proteção do consumidor, contudo,

em razão do microssistema de tutela processual coletiva, não se pode

conceber que estariam regradas somente aquelas ações que

defendessem direitos individuais homogêneos, posto que situada no

Capítulo II do Título III do Código, “e nem poderia ser de outro modo,

posto que não teria sentido proteger um menor grupo de consumidores –

os que sofreram danos por acidente de consumo – e não proteger um

eventual maior grupo atingido difusamente ou mesmo coletivamente”.44

Com relação à ressalva de competência da Justiça Federal,

inscrita no caput do art. 93 da Lei n. 8.078/90 (Código de Defesa do

Consumidor), entende o doutrinador acertada a posição do Código, uma

vez que respeita e se conforma com aquelas hipóteses previstas

constitucionalmente no art. 109, I, e os §§ 1º ao 4º, da Constituição

Federal, posicionando-o favoravelmente ao cancelamento da Súmula n.

183 do STJ.45

A competência disciplinada no inc. I do art. 93 da Lei n.

8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor), segundo esse autor, ao

contrário do que sustenta ADA PELLEGRINI GRINOVER (item 5.2.1,

supra), beneficia única e exclusivamente aqueles prejudicados que

tenham domicílio no local do dano, deixando os demais a descoberto,

salvo quando se interpreta sistematicamente o art. 101, inc. I, do Código

consumerista. Anota, nesse passo, que a “hipótese do capítulo II a

regulação é de ações coletivas e no Capítulo III está ligada a ações

individuais”, sendo que não se podem tratar essas hipóteses como

44 Comentários do Código de Defesa do Consumidor. 2 ed. São Paulo : Saraiva, 2006, p. 765-

766. 45 Ob. cit., p. 766-767.

42

Page 43: Competência na Ação Civil Pública

excludentes, mas, sim, como integradoras, uma vez que “pertencem ao

mesmo sistema e ao mesmo título e não se excluem expressamente”.46

Reforça esse entendimento quando aponta que o caput do art.

101 da Lei n. 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor) reconhece

expressamente a aplicação do Capítulo II, quando diz: “na ação de

responsabilidade civil do fornecedor de produtos e serviços, sem prejuízo

do disposto nos Capítulos I e II deste Título, serão observadas as

seguintes normas”, o que resulta no não afastamento entre o art. 101 do

CDC e as normas do Capítulo II. Resumindo: “a regra do art. 101 vale

naquelas do art. 93, I”.

Finalmente, sintetiza o autor que “interpretando-se

sistematicamente o modelo adotado na combinação do art. 93, I, com o

art. 101, I, têm-se que a competência para o ajuizamento de qualquer

ação para apurar a responsabilidade do fornecedor pelos danos

causados na ação coletiva, quando o dano for de âmbito local”,

afirmando implicitamente que nesse caso se trata de competência

relativa, uma vez que o autor poderá escolher entre “o foro do lugar onde

ocorreu ou deva ocorrer o dano” ou “no domicílio do autor”.47

Com relação aos danos de âmbito regional ou nacional,

previstos no art. 93, inc. II, da Lei n. 8.078/90 (Código de Defesa do

Consumidor), entende o doutrinador que a redação imprecisa do

dispositivo rendeu divergência entre diversos autores, sendo que com

relação aos danos de abrangência nacional ora uns entendem que o foro

deve ser “sempre” o do Distrito Federal, a exemplo de ADA PELLEGRINI

GRINOVER (item 5.2.1, supra) ora outros adotam o posicionamento de

que há competência concorrente entre o Distrito Federal e as Capitais

dos Estados, a exemplo de ARRUDA ALVIM e TEREZA ALVIM.

46 Ob. cit., p. 767. 47 Ob. cit., p. 767-768.

43

Page 44: Competência na Ação Civil Pública

Para esse autor, os danos também podem ser aqueles não

propriamente regionais e não propriamente de âmbito nacional, ou seja,

afetem uma região brasileira, por exemplo, a região sul e um Estado do

Sudeste. Nesse caso, ainda que prefira a centralização no Distrito

Federal, reconhece que a doutrina tem entendido que será competente o

foro de quaisquer das capitais dos Estados atingidos.48

Analisando as situações defendidas pela doutrina, o autor se

inclina para a adoção de que na hipótese de dano de abrangência

nacional haverá competência concorrente entre as capitais dos Estados

e o Distrito Federal, por ser a “mais consentânea com o espírito de

proteção do consumidor”, concluindo que “fica claro que é indiferente

para a norma o local do ajuizamento da ação coletiva, quando o dano for

de âmbito nacional: pode ser qualquer capital de Estado ou Distrito

Federal, definindo-se a dúvida pelas regras da competência concorrente

estabelecidas no Código de Processo Civil”.49

Quando se tratar de dano de âmbito regional, o autor conclui

que “em se tratando de várias cidades de um mesmo Estado, o foro da

Capital deste será o competente”, sendo que “se envolver cidades de

mais de um Estado, qualquer dos foros das capitais será competente,

concorrentemente”. Contudo, afirma que no caso de, por exemplo, duas

cidades do mesmo Estado, qualquer delas terá foro competente. Por fim,

trata o autor das regiões metropolitanas (art. 25, § 3º, da CF), afirmando

que será competente o foro da capital respectiva.50

5.2.3. A posição de HUGO NIGRO MAZZILLI

48 Ob. cit., p. 769-771. 49 Ob. cit., p. 771. 50 Ob. cit., p. 772-773.

44

Page 45: Competência na Ação Civil Pública

A opinião desse autor diverge particularmente dos demais,

notadamente dos citados neste trabalho (itens 5.2.1 e 5.2.2, supra), uma

vez que não considera que a competência para a ação civil pública seja

territorial, além do que não a entende como especificamente funcional,

segundo a redação do art. 2º da Lei n. 7.347/85 (Lei da Ação Civil

Pública). Apenas se limita a reconhecê-la como “absoluta, no foro do

local do dano”, afirmação que não abandona o aspecto territorial,

contudo, assevera que a lei não “instituiu juízos com competência

funcional para a defesa dos interesses difusos ou coletivos”, mas, sim,

que quis se referir à competência absoluta e, portanto, inderrogável e

improrrogável por vontade das partes.51

Para a defesa dos interesses difusos e coletivos, segundo o

doutrinador, trata-se de competência absoluta, sem qualquer exceção ou

mitigação. Com relação aos individuais homogêneos, entretanto, afirma

que o art. 93 da Lei n. 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor)

instituiu regras próprias, notadamente para danos nacionais ou regionais,

conforme o inc. II.52

Quanto à extensão da regra do art. 93, o autor afirma que

muito embora esteja esse dispositivo situado no Capítulo II do Título III

da Lei n. 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor), que trata da

defesa dos interesses individuais homogêneos, aplica-se a qualquer

interesse dessa categoria e não exclusivamente àqueles tutelados pelo

Código consumerista. Completa dizendo, ainda, que essas mesmas

regras devem ser aplicadas para a instauração de inquérito civil,

ajuizamento de ações coletivas e da própria ação popular, não

importando a abrangência do dano.53

51 Ob. cit., p. 232-233. 52 Ob. cit., p. 233. 53 Ob. cit., p. 233-234.

45

Page 46: Competência na Ação Civil Pública

Reconhecendo a integração entre a Lei n. 7.347/85 (Lei da

Ação Civil Pública) e a Lei n. 8.078/90 (Código de Defesa do

Consumidor) para a formação do microssistema, esse estudioso

reconhece há de se respeitar a competência da Justiça Federal,

ressalvada expressamente no caput do art. 93 do CDC, aderindo àqueles

que concordam com o cancelamento da Súmula n. 183 do STJ.

Assim, defende que as ações coletivas para a defesa de

interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos devem ser

propostas no foro do local do dano, quando a ofensa for local, e, sendo

de âmbito regional ou nacional, poderão ser propostas igualmente no

foro da Capital do Estado ou no Distrito Federal, aplicando-se as regras

dos arts. 105 e 106 do Código de Processo Civil para a competência

concorrente.

Ao final, ombreia-se com ADA PELLEGRINI GRINOVER na

fixação de foro competente quando se tratar de danos não propriamente

regionais ou nacionais, onde a competência será, respectivamente, do

foro de uma das comarcas afetadas ou de uma das Capitais dos Estados

ou do Distrito Federal (item 5.2.1, supra).54

Nos casos de dano regional ou nacional, bem como naqueles

em que a extensão da ameaça ou do dano não seja propriamente

regional ou nacional, haverá competência concorrente entre os foros das

comarcas atingidas ou das Capitais dos Estados e o Distrito Federal, a

depender do caso concreto. De qualquer forma, como sugere o autor, a

prevenção é que determinará a competência, conforme o que rezam os

arts. 105 e 106 do Código de Processo Civil.

Além dessa disposição, há aquela do parágrafo único do art. 2º

da Lei n. 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública) que diz: “a propositura da 54 Ob. cit., p. 238-239.

46

Page 47: Competência na Ação Civil Pública

ação prevenirá a jurisdição do juízo para todas as ações posteriormente

intentadas que possuam a mesma causa de pedir ou o mesmo pedido”.

Essa mesma regra está prevista no § 5º do art. 17 da Lei n. 8.429/92 (Lei

de Improbidade Administrativa). Ambas as redações foram determinadas

pela Medida Provisória n. 2.180-35/2001.55

Para a defesa dos interesses individuais homogêneos o autor

entende que se trata de competência territorial ou relativa, uma vez que o

art. 93 não referiu à natureza funcional ou absoluta, a exemplo do que

vem expressamente gravado no art. 209 da Lei n. 8.069/90 (Estatuto da

Criança e do Adolescente).

Afirma, ainda, que o art. 101 da Lei n. 8.078/90 (Código de

Defesa do Consumidor) estipula que a ação de responsabilidade civil do

fornecedor de produtos e serviços poderá ser proposta no domicílio do

autor, além de poder ser intentada no local do dano, o que resulta na

instituição de uma opção para o autor, o que não se conforma com as

regras da competência absoluta. Ainda que entenda categoricamente

dessa forma, reconhece que há peculiaridades nessa competência

relativa, a exemplo da impossibilidade de eleição ou prorrogação de foro

por iniciativa dos legitimados às ações coletivas.

5.3. O art. 16 da LACP e o art. 93 do CDC: um caso concreto e sua

crítica

5.3.1. A filosofia da jurisdição coletiva

Não se pode olvidar que o fenômeno advindo dos conflitos na

sociedade de massa não pode ser enfrentado com idênticos

instrumentos processuais ou com a utilização ordinária de um

ferramental criado e desenvolvido para a solução de conflitos atomizados 55 Ob. cit., p. 244.

47

Page 48: Competência na Ação Civil Pública

(indivíduo versus indivíduo). Arrisco a dizer que nem mesmo para os

embates individuais o Código de Processo Civil tem servido a contento, o

que vem justificando inúmeras e seguidas alterações legais.

Ignorar que o utilizador do direito processual civil brasileiro é

fruto de uma formação exclusivamente voltada para pacificação de

conflitos individuais, sem prejuízo do litisconsórcio, é prestar um

desserviço ao progresso do pensamento jurídico pátrio, posto que todos

se encontram prostrados ante a inércia pejorativa do Poder Judiciário em

atender às provocações do autor ou isentar o réu da inquinação.

O produto dessa ortodoxia processual, preterindo-se o

resultado em favor do formalismo exagerado ou desproporcional, em

verdadeira autofagia, precisa ser evitado a qualquer custo, sem que seja

necessário destruir ou ignorar todos os avanços que a Ciência

processual conquistou para resolver os conflitos individuais.

Há necessidade, sim, que se tenha coragem intelectual para

reinventar o processo, pondo o que se tem hoje positivado efetiva e

concretamente a serviço da universalidade de cidadãos, especialmente

para que aqueles interesses de natureza indivisível possam ser gozados

pelos respectivos titulares.

Deve-se sempre recordar que nos conflitos intersubjetivos o

bem jurídico é reclamado por uma das partes em detrimento da outra,

possibilitando-se que a fração reivindicada seja medida, separada e

apropriada individualmente pelo vencedor no embate entre pretensão e

resistência. Aqui, há consciência e voluntariedade expressas no ato do

interessado em provocar individualmente a jurisdição (arts. 3º e 6º do

CPC).

48

Page 49: Competência na Ação Civil Pública

Nos conflitos transindividuais, por seu turno, os titulares

indeterminados ou indetermináveis serão beneficiados pela apropriação

simultânea da integralidade do objeto da pretensão, em razão de sua

indivisibilidade, padecendo aos agraciados a possibilidade de fracionar o

bem jurídico difuso ou coletivo conquistado, salvo quando se tratar de

direitos individuais homogêneos. Nesses casos, nem sempre os

favorecidos têm conhecimento ou tiveram a iniciativa para a ação

aforada, mas, inconsciente e involuntariamente, acabam experimentando

o gozo da conquista (arts. 81 e 90 do CDC e art. 21 da LACP).

Em ambos os casos, um aspecto permanece inalterado para os

indivíduos e para a transindividualidade: os limites subjetivos da coisa

julgada, ou seja, o espectro lançado sobre aqueles que são atingidos

pela qualidade da imutabilidade da declaração de mérito, atinge os

titulares da pretensão onde quer que se encontrem, tanto para reclamar

o direito (consumidor) quanto para cumprir a obrigação (fornecedor).

Exemplificando: a sentença de mérito que veda a fabricação, a

distribuição e a comercialização de determinado produto nocivo à saúde

do consumidor, proferida pelo juízo de Campo Grande, Mato Grosso do

Sul, tem incidência em todo o território nacional, sob pena de se ofender

o princípio da isonomia, uma vez que permitirá que o indigitado bem

possa continuar a agravar a sadia qualidade de vida dos consumidores

do restante do País.

Reconhecendo aquelas discrepâncias e essa identidade,

RODOLFO DE CAMARGO MANCUSO afirma que existem “pontos de

estrangulamento” na jurisdição coletiva, sendo um deles a questão dos

limites subjetivos da coisa julgada. A jurisprudência tem se esquecido

que a “jurisdição é de âmbito nacional”, tanto a singular quanto a coletiva,

bem como que “nossa Justiça é unitária”, não se podendo confundir a

competência, que é apenas “critério de repartição do trabalho judiciário”,

49

Page 50: Competência na Ação Civil Pública

com aquela qualidade que se agrega à sentença de mérito, promovendo

a coisa julgada material: a imutabilidade da declaração dispositiva.56

5.3.2 Coisa julgada e os interesses transindividuais

Trata-se, enfim, de tornar eficazmente imutável, de forma

absoluta, a solução dada àquele embate, garantindo efetividade à

atividade jurisdicional por meio da autoridade da coisa julgada, nos

termos do § 3º do art. 6º da Lei de Introdução ao Código Civil, verbis:

“chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não

caiba recurso”.

O art. 467 do Código de Processo Civil, por sua vez, reza que

“denomina-se coisa julgada material a eficácia, que torna imutável e

indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou

extraordinário”, devendo ser entendida como uma qualidade que torna

imutável o efeito declaratório da sentença.

Essa imutabilidade, como “qualidade do efeito declaratório da

sentença”, vincula as partes (e sucessores) do respectivo processo,

impedindo a rediscussão entre elas, sob pena de se configurar a

litispendência, na definição do § 2º do art. 301 do Código de Processo

Civil: “uma ação é idêntica à outra quando tem as mesmas partes, a

mesma causa de pedir e o mesmo pedido”.

Examinemos, brevemente, os efeitos da coisa julgada, tanto

com relação às partes (autor e réu), que define os limites subjetivos,

quanto com relação à matéria atingida pela declaração de mérito contida

no dispositivo da sentença, que respeita aos limites objetivos. Tais

aspectos não podem ser ignorados para a análise do acórdão que se põe

56 Jurisdição Coletiva e Coisa Julgada: teoria geral das ações coletivas. São Paulo : Revista

dos Tribunais, 2006, p. 325.

50

Page 51: Competência na Ação Civil Pública

sob análise e crítica, por se tratar de questão vital para a tutela de

direitos coletivos ou para a tutela coletiva de direitos, como assenta

TEORI ALBINO ZAVASCKI.57

Por limites subjetivos da coisa julgada pode-se entender, com

LUIZ GUILHERME MARINONI e SÉRGIO CRUZ ARENHART,58 como

sendo “em princípio, portanto, tomando a regra geral, tem-se que

somente as partes (e seus sucessores, por inferência lógica) ficam

acobertadas pela coisa julgada. Autor e réu da ação ficam vinculados à

decisão judicial, já que foram sujeitos do contraditório que resultou na

edição da solução judicial”.

ANTÔNIO CARLOS DE ARAÚJO CINTRA, ADA PELEGRINI

GRINOVER e CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO,59 depois de

considerarem que a coisa julgada material deve ser entendida como “a

imutabilidade da sentença, no mesmo processo ou em qualquer outro,

entre as mesmas partes”, o que impede o juiz de voltar a julgar, as partes

a renovar a discussão ou o legislador em regular diversamente a relação

jurídica acobertada, afirmam que “a eficácia natural da sentença vale

erga omnes, enquanto autoridade da coisa julgada somente existe entre

as partes”.

Portanto, os limites subjetivos da coisa julgada (material)

devem ser encontrados na definição precisa de quem será atingido por

sua autoridade, o que atende a uma necessidade política: quem não

participou do contraditório não pode ser prejudicado. O art. 472 do

Código de Processo Civil afirma que “a sentença faz coisa julgada às

57 Processo Coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos. São Paulo :

Revista dos Tribunais, 2006, p. 39. 58 Manual do Processo de Conhecimento. 5 ed. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2006, p.

638. 59 Ob. cit., p. 327.

51

Page 52: Competência na Ação Civil Pública

partes entre as quais é dada, não beneficiando, nem prejudicando

terceiros”.

Já se sabe que a jurisdição é uma das funções do poder estatal

que, a exemplo deste, é essencialmente unitária, homogênea, indivisível,

indelegável, não comportando divisões, ressalvada a simples utilidade

didática, estendendo-se por todo o território nacional. Uma sentença de

mérito proferida em São Paulo-SP conserva, até sua rescisão, a

qualidade da imutabilidade da coisa julgada em todo o território nacional

entre as partes.

Não se pode deixar de creditar ao legislador o impulso para

que a jurisprudência se incline a limitar a extensão dos efeitos subjetivos

da coisa julgada, ao tempo em que editou a Medida Provisória n. 1.570-

5, convertida na Lei n. 9.404/97, que alterou a redação do art. 16 da Lei

n. 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública), dizendo: “a sentença civil fará

coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão

prolator, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de

provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação

com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova”.

Para TEORI ALBINO ZAVASCKI, a coisa julgada material, nos

termos do art. 467 do Código de Processo Civil, deve ser entendida

como “um fenômeno que se passa exclusivamente no plano do direito. É

uma qualidade da sentença: a sua imutabilidade”, o que se aplica

“também às sentenças proferidas nas ações civis públicas, a coisa

julgada é a eficácia que as torna imutáveis e indiscutíveis”, salvo quando

houver improcedência ante a falta de provas. Por sua vez, os limites

subjetivos da coisa julgada não podem ser fracionados ou cindidos, pois

“a extensão subjetiva universal (erga omnes) é conseqüência natural da

transindividualidade e da indivisibilidade do direito tutelado na demanda”,

uma vez que “são direitos indivisíveis pertencentes a toda a coletividade,

52

Page 53: Competência na Ação Civil Pública

a sujeitos indeterminados” e, por isso, “não há como estabelecer limites

subjetivos à imutabilidade da sentença. Ou ela é imutável, e, portanto, o

será para todos, ou ela não é imutável, e, portanto, não faz coisa

julgada”.60

A respeito do atual texto do art. 16 da Lei n. 7.347/85 (Lei da

Ação Civil Pública), RODOLFO DE CAMARGO MANCUSO afirma que

“não há como negar que é aberrante da lógica e do sistema a inserção

que a Lei 9.494/97 (antes Medida Provisória), fez no art. 16 da Lei

7.347/85, com a cláusula que condicionou a coisa julgada na ação civil

pública aos “limites da competência territorial do órgão prolator”, porque

aquele dispositivo trata de limites subjetivos da coisa julgada, ao passo

que o elemento território diz com outro registro processual, a saber o da

competência, resolvido no art. 2º da Lei 7.347/85, c/c art. 93 da Lei

8.078/90, resultando na trifurcação do foro em razão direta de ser o dano

local, regional ou nacional”.61

Para SÉRGIO SHIMURA, na análise do art. 16 da Lei n.

7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública), “confunde-se competência de juízo

com os limites da coisa julgada e com a eficácia da sentença”, não se

podendo aceitar “a fragmentação da eficácia da sentença” que “é

incompatível com a indivisibilidade do objeto”, uma vez que a sentença

de mérito que julgar procedente o pedido terá “eficácia erga omnes”, sob

pena de se contrariar o inc. XXXV do art. 5º da Constituição Federal

(ubiqüidade da jurisdição) por imposição ilegítima de limites subjetivos à

coisa julgada.62

Assim, tem-se que não será a regra de competência suficiente

para fracionar o direito transindividual (difuso e coletivo), que tem

60 Ob. cit., p. 78. 61 Ob. cit., p. 329. 62 Tutela Coletiva e sua efetividade. São Paulo : Método, 2006, p. 97-100.

53

Page 54: Competência na Ação Civil Pública

natureza essencialmente indivisível, uma vez que em razão da eficácia

erga omnes todas as partes interessadas suportarão sua incidência

(secundum eventum litis), não importando onde estejam. Caso contrário

será produzido um ilegítimo e absurdo fato a aviltar a isonomia entre

brasileiros.

Para NELSON NERY JUNIOR, a coisa julgada erga omnes ou

ultra partes (art. 103 do CDC) promove a inserção no seu espectro de

todos aqueles que, direta ou indiretamente, estejam envolvidos na

matéria objeto da ação civil pública, estejam onde estiverem no território

nacional, afirmando que há inconstitucionalidade no art. 16 da Lei n.

7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública), em razão do inaceitável

fracionamento dos limites subjetivos da coisa julgada, que foi confundida

com competência. Simplifica, com razão, dizendo que “o que importa é

quem foi atingido pela coisa julgada material”, uma vez que qualquer

decisão do Poder Judiciário “pode ter eficácia para além do seu

território”. Defende este autor, inclusive, que o art. 103 do Código de

Defesa do Consumidor, por haver regrado integralmente a coisa julgada

no processo coletivo, revogou tacitamente o art. 16 referido. Por fim,

exemplifica dizendo que uma pessoa divorciada por sentença proferida

por determinado juízo é e continuará sendo divorciada em qualquer outro

lugar onde se encontre, não podendo ser aceitável que a transposição de

limites de competência territorial possa torná-la casada novamente.63

TEORI ALBINO ZAVASCKI critica a interpretação literal do art.

16 da Lei n. 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública), afirmando que a adoção

essa modalidade induz equivocadamente que a coisa julgada estaria

circunscrita a um determinado espaço físico, o que resulta em

63 Constituição Federal Comentada e legislação constitucional. São Paulo : Revista dos

Tribunais, 2006, p. 514-515.

54

Page 55: Competência na Ação Civil Pública

incompatibilidade com o instituto da coisa julgada, fragmentando a

qualidade da sentença ou a relação jurídica nela certificada.64

Contudo, esse mesmo autor faz uma distinção: o art. 16 da Lei

n. 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública) merece interpretação distinta

dependendo da natureza do direito tutelado, se tipicamente

transindividual ou individual homogêneo. Com fundamento nessa

distinção, afirma que não se pode aplicar a restrição à coisa julgada

quando se tratar de direitos difusos ou coletivos (indivisibilidade e

indeterminação). Já com relação aos direitos individuais homogêneos

(divisibilidade e determinação), entende aplicável a limitação, uma vez

que se reduziria o espectro da sentença e não da coisa julgada, segundo

uma interpretação sistemática e histórica com o art. 2º-A da Lei n.

9.494/97, que diz: “a sentença civil prolatada em ação de caráter coletivo

proposta por entidade associativa, na defesa dos interesses dos seus

associados, abrangerá apenas os substituídos que tenham, na data da

propositura da ação, domicílio no âmbito da competência territorial do

órgão prolator”.65

Contudo, a afirmação acima de que o art. 2º-A da Lei n.

9.494/97 deve ser fator de diferenciação não escapa das críticas da

doutrina, pois, segundo HUGO NIGRO MAZZILLI “não podemos dar,

entretanto, interpretação ampliativa às restrições que canhestramente

tentou criar o administrador com mais essa medida provisória”, afirmando

que a adoção desse entendimento impossibilitaria que associações de

caráter nacional ou regional (bancários, servidores públicos etc.)

pudessem defender coletivamente direitos de seus associados. 66

64 Ob. cit. 79. 65 Ob. cit., p. 79-80. 66 A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo: meio ambiente, consumidor, patrimônio cultural,

patrimônio público e outros interesses. 16 ed. São Paulo : Saraiva, 2003, p. 258.

55

Page 56: Competência na Ação Civil Pública

Em igual sentido NELSON NERY JUNIOR aponta a

impropriedade da restrição do o art. 2º-A da Lei n. 9.494/97, sobretudo

do seu parágrafo único, posto que procura limitar o alcance da coisa

julgada erga omnes ou ultra partes no trato de direitos transindividuais,

concluindo por sua inconstitucionalidade. 67

Por fim, entendem HUGO NIGRO MAZZILLI68 e NELSON

NERY JUNIOR69 que a disciplina da coisa julgada nas ações coletivas

(sentido amplo) está integralmente disciplinada no art. 103 do Código de

Defesa do Consumidor, sendo que o art. 2º e o art. 2º-A da Lei n.

9.494/97, ao pretenderem modificar o art. 16 da Lei n. 7.347/85 (Lei da

Ação Civil Pública), acabaram por produzir inocuidade, uma vez que este

dispositivo estaria “revogado tacitamente” pelo regramento do Código de

Defesa do Consumidor (art. 21 da LACP e art. 90 do CDC).

Realmente, não se pode adotar a interpretação literal de forma

absoluta, porém, desprezar o exame das palavras e seus significados

compromete com a morte a compreensão do resultado do exercício de

interpretação, que busca nada mais do que a exata conjugação das

significações de cada uma delas.

Assim, ainda que se adote como fundamento para justificar a

limitação da coisa julgada ou da sentença, como queira, o art. 2º-A da Lei

n. 9.494/97 cria restrição que, como se sabe, deve ser interpretada

restritivamente, não se podendo ignorar que o dispositivo diz “em ação

de caráter coletivo, proposta por entidade associativa, na defesa dos

interesses de seus associados”, o que não autoriza aplicar essa restrição

ao Ministério Público, como no caso concreto sob comento, por exemplo.

67 Constituição Federal Comentada e legislação constitucional. São Paulo : Revista dos

Tribunais, 2006, p. 487. 68 Ob. cit., p. 237. 69 Ob. cit., p. 515.

56

Page 57: Competência na Ação Civil Pública

Literalidade por literalidade, restrição por restrição, aquela que

restrinja menos deve ser adotada para a tutela de pretensões

transindividuais.

5.3.3. O caso concreto: Recurso Especial n. 838.978

O recurso especial em comento origina-se na ação civil pública

proposta pelo Ministério Público do Estado de Minas Gerais perante o

juízo da 5ª Vara de Fazenda e Registros Públicos de Belo Horizonte,

sendo pretendido que o Estado de Minas Gerais fornecesse uma série de

medicamentos aos pacientes do Sistema Único de Saúde – SUS em

tratamento no respectivo Estado, desde que fossem portadores da

Doença de Crohn e Retocolite e apresentassem prescrição médica. O

pedido liminar foi deferido, marcando-se o prazo de 30 (trinta) dias para o

cumprimento, sob pena de multa diária de R$5.000,00 (cinco mil reais).

Agravando o Estado de Minas Gerais, o Tribunal de Justiça mineiro

ratificou a decisão liminar integralmente, bem como rejeitou os embargos

de declaração.

Diante disso, o Estado de Minas Gerais aviou recurso especial

que, entre outras, pretendeu restringir os limites subjetivos da coisa

julgada aos limites do órgão prolator, qual seja, a comarca de Belo

Horizonte, nos termos do art. 16 da Lei n. 7.347/85 (Lei da Ação Civil

Pública).

O Ministro Relator, depois de rechaçar os demais fundamentos

do recurso especial, aporta na questão do art. 16 da Lei n. 7.347/85 (Lei

da Ação Civil Pública) com a seguinte frase: “por fim, quanto aos efeitos

da coisa julgada, verifico que tampouco merece prosperar a irresignação

do recorrente”. Contudo, essa assertiva não é suficiente para se concluir

57

Page 58: Competência na Ação Civil Pública

que o acórdão tenha aberto dissidência no entendimento jurisprudencial

daquela Corte.

Mais adiante e no acórdão sob análise, depois de transcrever o

art. 16 da Lei n. 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública) e de colecionar os

dois precedentes já referidos, adota o Ministro Relator um entendimento

que merece destaque: “no caso específico dos autos, trata-se de ação

civil pública ajuizada em desfavor do Estado de Minas Gerais,

requerendo o fornecimento de medicamentos a portadores de doenças,

não sendo lógico que se limite tal condenação aos moradores da

Comarca de Belo Horizonte, juízo em que distribuída a ação e proferida a

liminar. O ajuizamento da ação no Juízo de Direito da 5ª Vara da

Fazenda Pública de Belo Horizonte se deu tão-somente porque a sede

do Estado de Minas Gerais se encontra em sua capital, inexistindo um

Juízo comum que tenha abrangência em todo o Estado”.

E prossegue o acórdão, inflando de expectativa o leitor: “a

adstringência dos efeitos da coisa julgada ao Município de Belo

Horizonte violaria o princípio da isonomia, na medida em que beneficiaria

apenas os pacientes da capital, em detrimento dos moradores de todos

os outros municípios do Estado, mesmo porque o Estado de Minas

Gerais figura no pólo passivo da lide”.

Houvesse o acórdão sido encerrado neste ponto, teríamos uma

autêntica e legítima inauguração da tão esperada dissidência quanto ao

entendimento sufragado pelo Superior Tribunal de Justiça ao aplicar o

art. 16 da Lei n. 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública).

Contudo, o arremate final semeia a frustração, precisamente

quando justifica no seguinte entendimento o não provimento do recurso

especial: “ademais, a decisão que concedeu a liminar foi confirmada por

acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, ao negar

58

Page 59: Competência na Ação Civil Pública

provimento ao agravo de instrumento interposto pelo réu, o qual possui o

efeito de substituir aquele decisum, sendo, portanto, o órgão prolator do

julgado que confirmou o pedido inicial. Sendo assim, os efeitos subjetivos

da coisa julgada devem abranger os portadores de Doença de Crohn e

Retocolite Ulcerativa, pacientes do SUS de todo o Estado de Minas

Gerais”.

Assim, depois de reconhecer que não se podem restringir os

limites subjetivos da coisa julgada, sob pena de ofensa ao princípio da

isonomia, o acórdão invoca o elemento “competência territorial” do

Tribunal de Justiça de Minas Gerais para, com fincas nisso, garantir a

todos os pacientes o acesso aos remédios, nos termos da inicial e

liminar.

Diante dessa ida e vinda, entre os institutos da coisa julgada e

da competência, bem se faz analisar o raciocínio que conduz o acórdão.

O acórdão, primeiramente, admite que não se possam limitar

os efeitos subjetivos da coisa julgada ao território do órgão prolator, qual

seja, a comarca de Belo Horizonte, sede do Estado, em razão de ser

incompatível com o princípio constitucional da isonomia. Em seguida,

reconhece que sendo o Estado de Minas Gerais o réu na demanda já

seria o suficiente para que a coisa julgada beneficiasse a todos os

portadores daquelas doenças no Estado, desde que pacientes do

Sistema Único de Saúde – SUS e reclamassem os remédios sob

prescrição médica.

Nessa fração do acórdão não se admite a restrição territorial

afeta ao Juiz de primeiro grau sirva de limitação à imutabilidade do

decisum, espalhando a liminar o efeito erga omnes para todo o território

do Estado. Anote-se que para decidir nesse sentido, o acórdão sequer

invoca ou traz à discussão as regras do art. 103 do Código de Defesa do

59

Page 60: Competência na Ação Civil Pública

Consumidor que, segundo a doutrina anteriormente colecionada, trata

integralmente da coisa julgada nas ações coletivas (sentido amplo). Esse

silêncio no acórdão autoriza concluir que a restrição do art. 16 da Lei n.

7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública) é de todo descabida, tanto jurídica

quanto logicamente, independendo do art. 103 do Código de Defesa do

Consumidor.

Contudo, finaliza o acórdão dizendo, em síntese, o seguinte: já

que o Tribunal de Justiça de Minas Gerais tem competência em todo o

respectivo território a questão dos limites subjetivos da coisa julgada

estaria resolvida, uma vez que a decisão do agravo substitui a liminar de

primeiro grau, todos os doentes naquelas condições poderiam receber os

medicamentos, mediante prescrição médica.

E é aqui, neste exato ponto, que o acórdão reproduz retrocesso

no trato das ações coletivas, fundando-se na confusão entre coisa

julgada e competência. Pois, como se sabe, todas as decisões judiciais

de mérito qualificadas pela imutabilidade da coisa julgada, tanto a do Juiz

de primeiro grau quanto à do Superior Tribunal de Justiça, têm validade e

eficácia em todo o território nacional, ainda que a competência territorial

daquele seja mais restrita do que a deste.

Reforçando os argumentos críticos em face do acórdão,

indaga-se: se a decisão em agravo proferida pelo Tribunal de Justiça

mineiro substitui a decisão do Juiz de primeiro grau, e somente por esse

motivo obriga a satisfação da pretensão em todo o Estado de Minas

Gerais, por que o acórdão do Superior Tribunal de Justiça, que substitui

as decisões anteriores, não obriga os demais Estados da federação,

individualmente, ou a União na entrega daquela mesma prestação, já

que todo o território nacional está inserido nos limites da sua

competência territorial?

60

Page 61: Competência na Ação Civil Pública

A resposta é simples: porque o instituto da coisa julgada,

quando se trata de limites subjetivos, adere a qualidade de imutável às

partes que participaram do devido processo legal e não ao território sob a

competência do órgão prolator da decisão, salvo na hipótese de

improcedência ante a ausência de provas (secundum eventum litis ou in

utilibus).

Por fim, não é a competência territorial do órgão prolator da

decisão que outorga limites subjetivos à coisa julgada, pois, pensando-se

assim, ao mesmo tempo em que se reafirma a adequação jurídica do art.

16 da Lei n. 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública), deverá ser considerado

inadequado juridicamente o regramento do art. 103 do Código de Defesa

do Consumidor.

6. Conclusão

A jurisdição nas demandas individuais ou coletivas (sentido

amplo) tem a mesma natureza jurídica, preservando essencialmente

aqueles mesmos atributos que a doutrina refere, dentre eles, o de ser

atividade de caráter substitutivo, de perfil unitário e de ser parcelo do

Poder soberano destinada à pacificação dos conflitos.

O art. 2º da Lei n. 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública) instaura

a competência funcional para as ações civis públicas e, portanto,

absoluta, considerando o aspecto territorial e se aproximando daquela

previsão do art. 100, inc. V, a, do Código de Processo Civil.

O art. 93 do Código de Defesa do Consumidor se aplica às

ações coletivas (sentido amplo) que versem sobre direitos difusos,

coletivos stricto sensu e individuais homogêneos, muito embora esteja

situado no Capítulo II do Título III do citado Código. Não se pode

entender contrariamente, pois se estará dando maior proteção aos

61

Page 62: Competência na Ação Civil Pública

beneficiários dos interesses individuais homogêneos em desprestígio aos

titulares dos difusos e coletivos stricto sensu, conforme definição do art.

81.

O art. 2º da Lei n. 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública) e o art.

93 da Lei n. 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor) devem ser

interpretados em harmonia com o art. 109, inc. I, da Constituição Federal,

preservando-se a competência dos juízes federais nas hipóteses

previstas constitucionalmente.

O cancelamento da Súmula n. 183 do SUPERIOR TRIBUNAL

DE JUSTIÇA foi oportuno e correto, uma vez que interpretou

inadequadamente o art. 109, § 3º, da Constituição Federal,

restabelecendo o atendimento ao princípio do juiz natural (art. 5º, XXXVII

e LIII, da CF).

A competência é absoluta para as ações coletivas destinadas

aos interesses difusos e coletivos stricto sensu, segundo o art. 2º da Lei

n. 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública) e o art. 93 da Lei n. 8.078/90

(Código de Defesa do Consumidor). Para os interesses individuais

homogêneos seria relativa, pois o inc. I do art. 101 do CDC criou

alternativa para a propositura de ação de responsabilidade civil do

fornecedor de produtos e serviços, deixando à escolha do autor a

propositura no local do dano ou no domicílio do autor.

As ações coletivas que versem sobre dano de âmbito regional,

aqui entendido como aqueles que atinjam todo o território de um Estado,

devem ser propostas no foro da capital respectiva, nos termos do art. 93,

inc. II, do CDC.

Já as ações coletivas que tratem de danos de âmbito nacional,

ou seja, que abranjam todo o território nacional, devem ser aforadas em

62

Page 63: Competência na Ação Civil Pública

qualquer das Capitais dos Estados ou no Distrito Federal,

concorrentemente. A competência concorrente.

De outra parte, as ações coletivas que tratem de danos que

transcendam uma comarca ou uma seção judiciária, mas, não englobem

todo o território do Estado, denominados não propriamente regionais,

poderão ser ajuizadas em quaisquer dos foros dos locais afetados,

resolvendo-se a competência pelas regras da prevenção.

No caso de ações coletivas que versem sobre os denominados

danos não propriamente nacionais, ou seja, aqueles que transcendem o

território de mais de um Estado, porém, não atinjam todo o território

nacional, serão competentes quaisquer dos foros das Capitais dos

Estados afetados, obedecendo-se as regras da prevenção.

Nas hipóteses de dano de âmbito regional ou de âmbito

nacional, bem como naqueles denominados não propriamente regionais

ou nacionais, a competência será firmada pela prevenção, conforme as

regras dos arts. 105 e 106 do Código de Processo Civil, sem prejuízo do

parágrafo único do art. 2º da Lei n. 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública).

A coisa julgada, notadamente os limites subjetivos, mereceu do

legislador brasileiro, tanto na Lei n. 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública)

quanto no Código de Defesa do Consumidor (conflitos transindividuais),

tratamento diverso daquele dispensado pelo Código de Processo Civil

(conflitos individuais), obviamente mais favorável em razão dos efeitos

erga omnes ou ultra parte ou quando determina que não haja coisa

julgada se a sentença se inclinar pela improcedência por ausência de

prova.

Não havendo, portanto, qualquer diferença conceitual ou de

princípios entre a jurisdição singular ou a jurisdição coletiva, sendo a

63

Page 64: Competência na Ação Civil Pública

coisa julgada nos conflitos transindividuais mais favorável para os

titulares do direito se comparada com os embates individuais. A

competência territorial, que é mero fator de distribuição do serviço

judiciário, não tem potência para, usurpando a qualidade de imutável das

decisões, deturpar os limites subjetivos da coisa julgada.

O art. 16 da Lei n. 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública) não se

conforma adequadamente com a Constituição Federal, desde a sua

origem, uma vez que a Medida Provisória n. 1.570-5, convertida na Lei n.

9.494/97, não obedeceu aos requisitos da urgência e relevância exigidos

constitucionalmente pelo art. 62.

Não há razão para que os direitos difusos, coletivos e

individuais homogêneos mereçam incidência diversa da coisa julgada

material, uma vez que o art. 2ª-A da Lei n. 9.494/97 se apresenta

igualmente em desconformidade com a Constituição Federal, além do

que, ad argumentandum, somente se aplicaria às associações e quando

agissem sob o regime da representação, mas nunca ao Ministério

Público. As normas restritivas devem ser interpretadas restritivamente.

No caso concreto do Recurso Especial n. 838.978, a decisão

do Juiz de primeiro grau já teria força normativa suficiente, com fincas na

Constituição Federal, para espalhar seus efeitos por todo o território

mineiro pelo simples fato de haver deferido satisfação de pretensão

transindividual em desfavor do Estado de Minas Gerais, sendo

irrelevante a decisão do agravo para os fins da conformação dos limites

subjetivos da coisa julgada.

No acórdão, o Superior Tribunal de Justiça reconhece a

inadequação do art. 16 da Lei n. 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública) na

restrição que impõe aos limites subjetivos da coisa julgada, apontando-o

como ofensor do princípio da isonomia, mas, ao mesmo tempo, invoca o

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Page 65: Competência na Ação Civil Pública

critério da competência territorial do Tribunal de Justiça mineiro para

justificar o efeito erga omnes no território do respectivo Estado,

retrocedendo paradoxalmente.

Assim, todas as vezes que os juízes ou os Tribunais

consagram a interpretação inadequada do art. 16 da Lei n. 7.347/85 (Lei

da Ação Civil Pública), acabam por produzir um retrocesso àqueles

tempos imemoriais referidos historicamente neste trabalho, pois

pretendem isolar em determinado território a imutabilidade da coisa

julgada, fazendo com que em cada grotão deste País seja necessária

uma decisão diversa acerca da mesma ofensa, como se não vivêssemos

em sociedade.

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