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    Hermenutica Filosfica

    Maria Lusa Portocarrero

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    Conceitos Fundamentais de Hermenutica Filosfica

    Maria Lusa Portocarrero Silva

    Atestao

    Aplicao

    Crculo Hermenutico

    Conflito

    Explicao

    Fuso de HorizontesHermenutica

    Hermenutica da Confiana

    Hermenutica da Suspeita

    Jogo

    Mito

    Preconceito

    Smbolo

    Coimbra, 2010

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    Maria Lusa Portocarrero

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    Atestao

    Conceito central da hermenutica ricoeuriana, com o qual o filsofoexprime o tipo de compreenso de si que tem a pessoa. Esta um ente queno pode reduzir-se mais ao modelo clssico da representao, logo queexcede concepo soberana do cogito cartesiano e que recusa a humilhaonitzscheana da conscincia. Entre o cogito exaltado de Descartes e o cogitohumilhado de Nietszche, a atestao ricoeuriana expressa a confiana nacapacidade que tem o homem de poder fazer sentido no mundo; afirma oprimado do agir e inscreve-se na via aberta pelas hermenuticas da suspeita.

    Para Ricoeur, a ideia de um cogito quebrado o resultado daapropriao da mensagem fundamental das hermenuticas de Nietszche e deFreud, e estas impem ao homem, que se assume como corpo finito movidopor uma vontade, a dialctica de atestao, do testemunho e da interpretao.

    A atestao expressa a confiana que a pessoa tem no seu modo deser capaz, isto , na sua capacidade de passar, por meio da vontade, dapossibilidade do projecto realidade da aco. No h atestao que no sejaatestao de si, enquanto atitude, iniciativa, compromisso. A atestaoexpressa a unidade da existncia e da aco, o movimento de afirmao de sique constitui a experincia da pessoa, enquanto nico ser que sabe que a sua

    natureza mais prpria reside no facto de ser capaz de falar, de agir de contar ahistria da sua vida, de prometer e de ser imputvel.A atestao para cada pessoa uma forma de segurana, uma

    segurana sem qualquer garantia de certeza, a confiana que tem o novosujeito de poder permanecersi prprio em todas as circunstncias da sua vida.Nela se traduz uma crena, uma esperana, muito mais forte do que toda advida, mas sem qualquer fundamentao segura; ela ento uma confianavulnervel, a confiana que tenho no meu poder fazer, que exige por sua vezuma confirmao do outro, isto , um exerccio permanente do dartestemunho de si. A atestao, enquanto confiana no sentido do agir,descentra o sujeito na medida em que exige a mediao da interpretao de

    todos os seus testemunhos. Ela l-se justamente nos testemunhos daqueleque sabe manter-se em si mesmo disponvel ou fiel a si prprio, apesar detodas as suas mudanas interiores e exteriores.

    Em suma, a atestao uma certeza prtica que, em Soi-mme commeun autre, Ricoeur eleva a conceito nuclear da investigao sobre a identidade eque define como a segurana de ser si mesmo agente e sofredor, ou poroutras palavras, como a capacidade de prometer e de cumprir as suaspromessas. Atestao de si e requisio pelo outro so agora os elementos deuma textura relacional, a do si mesmo que sabe que a alteridade faz parte dasua autenticidade praxstica. Com efeito, sem o outro no posso ser um simesmo e pergunta o filsofo, na obra Soi-mme comme un autre (p. 393): se

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    o outro no contasse comigo, seria eu capaz de manter a minha palavra e nistomanter-me a mim mesmo?

    Bibliografia: P. RICOEUR, Soi-mme comme un autre, Paris, Seuil, 1990; O. ABEL,J. PORE, Le vocabulaire de P.Ricoeur, Paris, Ellipses, 2007.

    Aplicao

    Conceito nuclear da Hermenutica Filosfica de H.-G. Gadamer, com oqual filsofo critica o modelo gnosiolgico e romntico da interpretao,entendida como cpia ou reconstruo da inteno do autor. Segundo ofilsofo, a interpretao no tem apenas um sentido cognitivo ou histrico, mastambm prtico e normativo, como muito bem o testemunham a hermenuticajurdica e a teolgica, de raiz protestante. Nos dois casos a compreenso novisa o reconhecimento gnosiolgico do tema do texto, o tomar posse dele masparte, pelo contrrio, de uma outra atitude. Comea por corresponder exigncia de sentido do texto, aceita o carcter vinculativo do seu contedo,quer isto dizer, reconhece-o na sua validade de orientao essencial ao modohumano habitar o mundo.

    Compreender nesta perspectiva aplicar, no mecanicamente, comoquem segue regras normalizadas para a produo de algo, mas traduzir oassunto do texto para a prpria linguagem da sua situao concreta. O

    procedimento seguido o do dilogo de horizontes diferentes, que exige que aaplicao no seja um momento ulterior e eventual da compreenso, masjustamente aquele que a determina, desde o princpio, na sua totalidade.Compreender realizar em acto o compreendido, aplicar. Este tipo deaplicao hermenutica nada tem a ver com a aplicao mecnica eautomtica do saber fazer tcnico; com efeito, esta ltima nada acrescenta aomodo de ser e situao do intrprete, pura habilidade automtica e eficaz.

    Pelo contrrio, defende Gadamer, a aplicao hermenutica noconsiste em relacionar algo de geral e prvio com uma situao particular,modelando esta maneira do tcnico ou do arteso. O intrprete, que se

    confronta com uma tradio, tenta aplic-la a si mesmo, e isto no significa queo texto transmitido seja por ele compreendido como algo de universal, quepudesse depois ser utilizado para uma aplicao particular. Pelo contrrio, ointrprete pretende apenas compreender o texto, isto , o que diz a tradio e oque constitui o seu sentido e significao. Mas, para o compreender, ele nopode ignorar-se a si mesmo, nem to pouco esquecer a situao hermenuticaconcreta em que se encontra. Precisa de relacionar o texto com a sua situao,se quer realmente entend-lo. Deve pois colocar em jogo os preconceitosprprios, abrindo-se ao dilogo que por eles proporcionado. O modelo tericodeste tipo de racionalidade, presente desde sempre nas hermenuticas jurdicae protestante, vai Gadamer busc-lo fronsis aristotlica, encontrando toda a

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    semelhana entre a aplicao hermenutica e a tarefa tica da decisoprudente.

    A aplicao, eixo fundamental da Hermenutica para Gadamer, nodesigna mais um modelo de apreenso terica, por exemplo, o mtodo dascincias do esprito; ela exprime, pelo contrrio, o modo como se processa acompreenso humana finita, na sua dialctica essencial entre um primeiromomento, o de ser afectado pela significao j transmitida e consideradaessencial ao agir, e um segundo, o da sua apropriao crtica ou reflexiva. Aaplicao representa o acto existencial de ser si prprio do ser humano,enquanto este no tempo e por isso, orientado no mundo a partir de umaantecipao da perfeio e de um horizonte de significaes, inevitavelmente jsempre recebidas e aceites como vlidas. O primado do recebido, oreconhecimento da sua validade prtica e a necessidade da sua traduo, ouconstruo de um anlogo na situao concreta do presente, eis os ncleosque nos permitem entender o conceito gadameriano de aplicao. A tarefa

    hermenutica aplicao e no reconstruo, porque parte de uma implicaono sentido ou compreenso prvia que quer explicitar; est ao servio do texto,logo precisa de traduzir, fazendo ao mesmo tempo o luto da traduo absoluta.Toda a traduo responde a um apelo, deve criar o mesmo espao simblicoque o texto pretendia criar, quando o esprito nele falou, mas toda a traduoexige, como a interpretao, um conjunto de decises tomadas e, deste modo,uma certa cegueira. No h traduo ideal. A aplicao sabe-o claramente.

    O que a hermenutica de Gadamer pretende no fundo, com o conceitode aplicao, questionar a ligao da compreenso do mundo do texto comos modelos da imagem pontual e da percepo objectivante. A Hermenuticano tem como objectivo a posse de conhecimentos e coisas, mas pretende

    simplesmente trazer considerao dos filsofos algo que foi esquecido: anecessidade de pensar a forma de mediao que efectuam os iderios comunstransmitidos pela tradio histrica e literria. Segundo Gadamer, uma talmediao, porque faz pensar e transmite prticas de relacionamento e decomunicao, exige execuo criativa e pode ajudar a ultrapassar a reduo dohomem ao agir mecnico dos dias de hoje.

    A Hermenutica representa uma forma de sabedoria prtica que, muitoantes de exprimir o desempenho subjectivo de uma tarefa, em solilquio,traduz a receptividade originria da competncia poltica e comunicativa que o existir em comum. Ela requer pois uma particular finura de esprito: aquela

    que sabe considerar a experincia compreensiva bsica do Dasein, atemporalidade, como a razo da nossa solidariedade histrica. Isto , comoaquilo que nos faz perceber de que modo todo o princpio para ns j sempreprincipiado, logo sempre segundo e como qualquer ltimo sempre penltimo.Outros viro que sublinharo linhas de sentido por ns no descobertas enunca suspeitadas e vo destac-las daquelas que afirmmos.

    E isto quer dizer, em ltima anlise, que no h compreenso seminteresse, que a Hermenutica um saber implicado, que reconhece este seuenvolvimento no sentido do texto e no da situao concreta, de que parte ointrprete, como o real motivo da interpretao. Esta unidade de compreenso

    implicao era j o motivo da hermenutica pr-filosfica. Foi no entanto

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    esquecida pela converso epistemolgica da hermenutica moderna de F.Schleiermacher e W. Dilthey.

    Em clima de subjectivismo, o do romantismo e do historicismo, aHermenutica s podia reduzir o texto a um contedo cognitivo disponvel epassvel de ser repetido por todos de forma exacta; interpretar significava nestehorizonte, (ainda marcado pelo Ilustrao), uma reconstruo da inteno doautor ou das circunstncias originrias que deram origem ao texto, que perdeuassim todo e qualquer efeito histrico e retrico sobre a situao concreta dointrprete. Para esta concepo hermenutica a repercusso histrica do texto desconhecida, logo tambm toda a sua dimenso educadora, suscitadora dedilogos e formadora de universais poticos da condio humana.

    Com a recuperao da applicatio, Gadamer reafirma, na linha de Sto.Agostinho e Heidegger, a estrutura temporal de antecipao do existir humanoe por isso retoma o tema da subtilitas applicandi, prprio da hermenuticapietista da Bblia; defende que uma compreenso do texto sem a sua aplicao

    vida concreta nada . a velha unidade de compreenso, interpretao eaplicao, aquela que j J. J. Rambach caracterizava como o eixo fundamentalda antiga hermenutica, desenvolvida no mbito da teologia, da filologia e dajurisprudncia, que Gadamer recupera para a hermenutica em geral, dizendo-nos que a principal tarefa desta iniciar um intercmbio de horizontes entre otexto e a nossa compreenso actual e no reproduzir a inteno do seu autor:A histria da antiga hermenutica ensina-nos que a par da Hermenuticafilolgica existiu uma Hermenutica teolgica e outra jurdica que,conjuntamente com a hermenutica filolgica, preenchem o conceito pleno deHermenutica. Ora, o que constitui quer a Hermenutica teolgica, quer ajurdica a tenso que, por um lado, existe entre o texto estabelecido a lei oua revelao e o sentido que alcana a sua aplicao no momento concretoda interpretao, no juzo ou na prdica, por outro lado. Uma lei no quer serentendida historicamente, a interpretao deve antes concretiz-la na suavalidade jurdica. Do mesmo modo, o texto de uma mensagem religiosa nopretende ser compreendido como um mero documento histrico, mas sim deum modo tal que possa exercer, em cada situao, o seu efeito redentor. Istoimplica, em ambos os casos, que, se o texto, a lei ou a mensagem da salvaodevem ser adequadamente entendidos, isto , de acordo com as pretensesque eles mesmos mantm, tm de se compreender em cada momento e emcada situao concreta de uma maneira nova e diferente. Compreender tambm e sempre aplicar.

    Na raiz da teoria da interpretao, desenvolvida at ao sc. XIX, comoarte (subtilitas) e no mtodo residia, de facto, uma forma de implicao que setraduzia pela aplicao que, por sua vez, nada tinha a ver com a aplicaorgida, conforme s regras do rigor e sentido logicamente unvoco. De cada vezque se aceita um modelo, lembra-nos Gadamer, entra em cena uma maneirade compreender que no deixa as coisas como esto, porque toma decises esente-se obrigada. Por isso esta referncia a um modelo reveste sempre ocarcter de um seguimento. Tal como o seguimento mais do que umasimples imitao, tambm a sua compreenso sempre uma forma renovadade encontro e reveste por si mesma o carcter de um acontecer, precisamente

    porque no deixa as coisas como esto mas implica aplicao.

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    A interpretao como aplicao requer justamente a lgica dahospitalidade lingustica, a da traduo, que sempre parte de um universal commargens abertas ao anlogo, glosa e nova verso, aquela que sabeaproximar de forma plausvel e fecunda mas nunca definitiva. Neste mbitopropriamente dito da experincia hermenutica (....) confirma-se, diz-nos

    Gadamer, o parentesco prximo da hermenutica com a filosofia prtica. Eafirma-se o facto de a compreenso ser exactamente como a aco sempre um risco, uma construo finita do anlogo e no a aplicao segurade um saber geral de regras unvocas. Alm disso, uma vez alcanada, acompreenso significa uma modificao interior que penetra como umaexperincia nova no todo da nossa prpria experincia espiritual1.Compreender uma aventura e, como toda a aventura, algo que nos modifica,logo uma aco perigosa: A compreenso muito mais do que a aplicaoartificial de uma capacidade. ainda e sempre o alcanar de umacompreenso de si mais ampla. Ora, isto significa que a hermenutica filosofia e, enquanto filosofia, filosofia prtica.

    Sem esta motivao tica, pensa Gadamer, a hermenutica perde todoo seu sentido; ainda hoje interpretamos porque precisamos de nos orientar nomundo, logo partimos de um ser afectado por, de uma habitao oufamiliaridade com certos horizontes contidos em textos e sabemos, no novouso que deles fazemos, libertar novas perspectivas. Ento, o trabalho dointrprete no deve limitar-se a uma cognio erudita ou a uma reproduo doque diz o seu interlocutor. Procura, pelo contrrio, fazer valer a opinio deste,da maneira que lhe parea necessria, tendo em conta a verdadeira situaodialgica em que s ele se encontre, enquanto conhecedor da linguagem dasduas partes. O intrprete criador de sentido no contexto do sentidotransmitido. Faz acontecer a tradio, transmite-a, deixando a marca da suasituao.

    Concluindo: o interesse cognitivo da hermenutica de ndoleexistencial e tico: compreender concretizar em situao um sentido (amensagem da salvao ou a legalidade da lei) que se pressupe orientarparadigmaticamente a aco. No h interpretao que no estejasimultaneamente marcada pela aplicao, expresso da condio finita dacompreenso e do efeito histrico essencial da interpretao. Resultado daestrutura de antecipao do Dasein, a aplicao que no significa, de modoalgum, que primeiro se compreende e depois se aplica procura tornarpresente uma palavra, cujo valor universal num primeiro momento

    pressuposto e apenas se pode transformar em sentido verdadeiramente real evinculativo, quando em cada situao concreta acontece a sua clarificaocompreensiva.

    Compreender assim acontecer e no reconstruir; fazer com que ooutro entenda o que a mediao dos smbolos nos transmite, em termos deorganizao tica e social dos assuntos humanos. Mas tambm perceber que necessrio desistir de uma compreenso plena e total. S se interpreta, defacto, quando no existe uma compreenso imediata, um acordo claro eestabelecido e quando uma tarefa prtica est no horizonte. neste sentidoque Gadamer considera que a hermenutica jurdica recorda por si mesma, de

    1 H.G-GADAMER, Vernunft im Zeitalter der Wissensshaft, Frankfurt, 1980, p.106.

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    forma exemplar, o verdadeiro procedimento das cincias do esprito. Nelatemos o modelo de relao de passado e de presente de que estvamos procura. Quando o juiz tenta aplicar a lei transmitida s necessidades dopresente, tem claramente a inteno de resolver uma tarefa prtica. O que demodo nenhum quer dizer que a sua interpretao da lei seja arbitrria. Tambm

    no seu caso, compreender e interpretar significa conhecer e reconhecer umsentido vigente. O juiz tentar responder ideia jurdica da lei mediando -acom o presente. Esta evidentemente uma mediao jurdica. O que ele tentareconhecer o significado jurdico da lei e no o significado histrico da suapromulgao ou uns casos especficos sua aplicao (....) A tarefa dainterpretao consiste em concretizar a lei em cada caso, isto , na suaaplicao.

    Bibliografia:H- G. GADAMER, Gesammelte Werke 1. Hermeneutik 1 Wahrheit undMethode - 1.Grundzge einer philosophischen Hermeneutik, Tbingen, Mohr, 1986;IDEM., Gesammelte Werke. 2 Hermeneutik 2. Ergnzungen. Register, Tbingen,

    Mohr, 1986; K. O. APEL, Das Verstehen. Eine Problemgeschichte alsBegriffsgeschichte, in Archiv fr Begriffsgeschichte, I, 1955, pp. 142- 149; E.CORETH, Cuestiones fundamentales de hermenutica, trad. Barcelona, Herder,1972.;G. EBELING, Hermeneutik in Religion in Geshichte und Gegenwart, 3 Bde, 1959,pp. 242-262; J., GREISCH, Lge hermneutique de la Raison, Paris, Cerf, 1985; J.GRONDIN, LUniversalit de lhermneutique, Paris, PUF, 1993; O., MARQUARD,Frage nach der Frage auf die die Hermeneutik Antwort ist, in PhilosophischesJahrbuch, 1981, pp. 1-19.

    Crculo Hermenutico

    Expresso frequente na discusso hermenutica actual, aparecendosimultaneamente no mbito filosfico e no teolgico. O crculo refere a lgicainterna da compreenso hermenutica, isto , a regra segundo a qual necessrio compreender o todo de um texto a partir das suas partes e estas apartir do todo. De acordo com H.-G. Gadamer, esta uma regra cuja origemremonta antiga retrica e que penetrou na hermenutica moderna atravs daproblemtica protestante da defesa da legibilidade e inteligibilidade do textobblico. Na raiz desta ideia de crculo hermenutico reside, de facto, a aplicao

    escrita do princpio da retrica clssica, segundo o qual todo o discurso temprincpio meio e fim. Na base deste princpio reside um pressuposto existencial,que a hermenutica clarifica e que se pode caracterizar do seguinte modo:compreender um texto poder ser por ele interpelado, de um modo tal quepodemos dizer que uma antecipao de sentido conduz toda a nossacompreenso. Interpretar no partir de um grau zero mas, pelo contrrio, deuma prvia compreenso que envolve a nossa prpria relao com o todo dotexto, embora ela apenas se torne numa compreenso explcita quando porsua vez as partes, que se definem a partir do todo, podem definir esse mesmotodo.

    O processo de compreenso distingue-se de outros processos de

    inteleco, nomeadamente da explicao, porque parte de um efeito da palavra

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    na existncia, procede de acordo com um movimento circular que vai da prviacompreenso, difusa de um todo de sentido, compreenso das partes e dacompreenso explcita destas at a um novo sentido do todo. A compreensohermenutica alcana a sua justeza quando o seu primeiro critrio aconcordncia de todos os detalhes com o todo e isto significa que a falta de

    congruncia acarreta necessariamente o fracasso da compreenso.Devolver ao texto o acento justo sempre foi a misso da hermenuticaque nunca pretendeu confundir a sua tarefa com a de uma pura deteco detipo lgico e tcnico do sentido, prescindindo de toda a verdade do dito. Datodo o seu esforo para alargar, segundo o modelo de crculos concntricos, aunidade do sentido compreendido, num vaivm contnuo do todo parte e daparte ao todo, rectificando, sempre que necessrio, a expectativa com quecomea. Pela sua origem existencial, o crculo hermenutico distingue-se assimdo crculo vicioso em sentido lgico.

    A ideia de crculo aparece, pela primeira vez, no contexto filosfico dahermenutica com F. Schleiermacher (1769-1834), que o recebe de F. Ast, e

    ao qual d uma orientao subjectivista que vai marcar a prpria hermenuticade W. Dilthey. Schleiermacher, pensador romntico e fundador dahermenutica filosfica, introduz algo de novo no mbito da tradiohermenutica uma ruptura histrica de mbito universal j que ao contrrioda primeira fase, no filosfica, da hermenutica no admite a recepo datradio, como base slida de toda a necessidade de interpretao. O fiocondutor desta ser doravante o pensamento singular de quem se exprimeatravs de uma lngua comum.

    Neste novo contexto, claramente romntico, o crculo da parte e do todoadquire toda uma dupla vertente: subjectiva e objectiva. Sendo o texto oresultado da apropriao de uma lngua comum e da expresso de umpensamento singular, cada palavra pertence, claro, ao conjunto da frase,cada texto ao conjunto da obra do respectivo escritor e esta, por sua vez, aoconjunto do gnero literrio ou da literatura correspondente. Mas, por outrolado, enquanto manifestao de um momento criativo, o texto pertence aoconjunto da vida anmica do autor. S esta totalidade psquica permite realizarplenamente a compreenso.

    Neste mesmo sentido Dilthey falar de "estrutura" e de "convergnciasegundo um ponto central", no qual a compreenso do todo encontra o seu realfundamento. Institui-se, assim, a ideia da reconstruo da inteno mentalcomo verdadeiro critrio hermenutico.

    Ser com M. Heidegger que a problemtica hermenutica do crculo dacompreenso adquirir todo um novo e importante significado, aquele queainda hoje lhe damos. Em Ser e Tempo, o autor retoma a temtica do crculohermenutico reconhecendo nela expressamente no s a lei fundamental dacompreenso hermenutica como a estrutura bsica de toda a possibilidade deinteleco. Quer isto dizer que enquanto a teoria hermenutica do sc. XIXdetectava no crculo a estrutura da compreenso histrica e literria,concebendo-a sempre no quadro da relao formal entre a parte e o todo dotexto e tendo ainda em conta o seu reflexo subjectivo (a antecipao intuitivado todo a que se segue a explicitao do detalhe), para Heidegger a estruturacircular da compreenso hermenutica no pode, de maneira nenhuma,

    desembocar num acto puramente psicolgico ou adivinhatrio, que permita um

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    acesso directo ao autor e a partir do qual se atinja uma plena compreenso dostextos. Pelo contrrio, o que agora acontece o seguinte: toda a compreensohumana est determinada, de um modo permanente, pelo movimento deantecipao prprio do ser marcado por uma prvia compreenso. O crculohermenutico corresponde estrutura existencial do existir humano no mundo,

    que um ser simultaneamente encarnado, finito e inteligente, isto , sempre jmarcado pela recepo de uma relao ao sentido.Para Heidegger e aqui reside a sua novidade o crculo no descreve

    apenas a estrutura metodolgica da compreenso hermenutica mas, pelocontrrio, a prpria natureza da inteligibilidade humana, isto , o que sempreacontece quando o homem - j no um sujeito omnipotente mas um ser finito ehistrico - compreende. E o que que isto significa? O seguinte: porque aexistncia humana inteligente, uma compreenso originria acompanha-asempre em toda e qualquer compreenso particular que realize. esta a suacondio fctica inultrapassvel. E isto implica que uma tal compreenso - aestrutura ontolgica bsica do acto humano de ser - precede a prpria

    dualidade metodolgica clssica da compreenso dos textos e da explicaoda natureza, sendo a prpria condio de possibilidade de toda ainterpretao.

    Neste contexto, claramente no metodolgico, todo aquele que quercompreender um texto, antecipa sempre um esboo do conjunto assim que lheaparece um primeiro desenho de sentido no texto. A sua compreenso consisteno prprio aperfeioamento deste projecto prvio, sempre falvel - porque finito- e sujeito a reviso, por um ulterior aprofundamento. Interpretar , assim, partirsempre de conceitos prvios que vo sendo substitudos por outros maisadequados. Heidegger sabe que, devido sua condio finita, quem tentacompreender expe-se sempre ao erro das opinies prvias que no seconfirmam nas coisas. Logo, que a compreenso apenas se realizaverdadeiramente quando percebe que a sua primeira grande tarefa proteger-se da arbitrariedade das opinies particulares e dos hbitos de pensamento,que passam despercebidos, em ordem a poder dirigir o olhar para as coisasmesmas. Uma conscincia formada de modo hermenutico no pode entregar-se, de facto, desde o incio, ao acaso das suas prprias opinies prvias sobreo assunto. Deve, pelo contrrio, estar disposta a que o texto lhe diga algo denovo. Mas esta alteridade s pode surgir quando ela prpria pe em causa ospressupostos do intrprete, fazendo-os entrar em jogo. So, de facto, ospressupostos no percebidos aqueles que nos tornam surdos novidade do

    texto. Desenvolvendo esta nova caracterizao ontolgica do sentido docrculo hermenutico, H.-G. Gadamer, discpulo de Heidegger e autor daconhecida obra Verdade e Mtodo, vai ainda mais longe e caracteriza apressuposio de sentido que acompanha toda a compreenso como"antecipao da perfeio". que, segundo o autor, o homem s compreendeo que constitui uma unidade acabada de sentido. Partimos deste pressupostoda perfeio sempre que lemos um texto. De outro modo nem sequer o lamos.E s quando este pressuposto acaba por no se sustentar no decurso daleitura, quando o texto no compreensvel, que o criticamos, duvidando dasua transmisso e procurando refazer o sentido do texto.

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    Para o filsofo, isto significa fundamentalmente que o processo decompreenso no se reduz a uma misteriosa comunho de almas mas, pelocontrrio, participao num sentido comunitrio (o que hoje ainda meinterpela), que o prprio presente ajuda a reconfigurar de um modo novo,segundo um processo histrico de contnua formao. A antecipao da

    perfeio, que guia a nossa compreenso, no neste caso apenas umaexpectativa formal que pressuponha ser inerente ao texto uma unidade desentido que orienta a compreenso do leitor mas est fundamentalmentedeterminada por expectativas de contedo. Pressupe-se, antes de mais oseguinte: o texto fala verdade, pode dizer-nos algo de vlido, entende mais doassunto, que nos preocupa, do que ns prprios.

    O que significa, em ltima anlise, que s quem tem uma prviacompreenso do assunto tratado no texto efectua a sua leitura. S quem confiano valor dos textos, porque tem expectativas marcadas pela abertura alteridade (e no apenas pela imanncia estreita da sua perspectiva singular),pode ser interpelado pela palavra e interpretar. A compreenso prvia, que

    deriva do ter que ver com o assunto abordado pelo texto, assim a primeira detodas as condies hermenuticas.

    Bibliografia: H.-G.GADAMER, Gesammelte Werke I. Hermeneutik I.Wahrheitund Methode I .Grundzge einer philosophischen Hermeneutik.Tbingen, Mohr,1986; H-G..GADAMER, Gesammelte Werke 2. Hermeneutik II. Wahrheit und Methode-2. Ergnzungen. Register.Tbingen, Mohr,1986;M.HEIDEGGER, Sein und Zeit,Tbingen, Max Niemeyer Verlag, 1979.

    Conflito

    Termo usado por P. Ricoeur para caracterizar a dupla motivao -vontade de escuta e atitude de desconstruo ou suspeita - que caracteriza aambiguidade da Hermenutica contempornea.

    P. Ricoeur parte do seguinte dado de facto: a relao da interpretaocom a linguagem comporta, depois de Nietszche, Freud e Marx, uma duplapossibilidade que no pode ser esquecida e origina no mbito da Hermenuticaum conflito de interpretaes. So fundamentalmente duas, e radicalmente

    opostas, as possibilidades de interpretao que hoje se fazem da funosimblica da linguagem: a hermenutica da confiana que acredita no poderprospectivo e revelador dos smbolos; a hermenutica da suspeita que acentuao seu poder de dissimulao, efectuando uma interpretao redutora earqueolgica de toda a simblica humana. , por isso, necessrio enfrentar acomplexidade do conflito de interpretaes, em ordem a perceber os nveis dasignificao da prpria linguagem falada e ouvida pelos homens. A clarificaoda mediao semntica de toda a hermenutica, tarefa em que Ricoeurconcentra, alis, os seus esforos, nos anos sessenta do sc. XX, exige que sereflicta, nomeadamente, sobre a ambiguidade ou paradoxo constitutivo daprpria estrutura significativa da linguagem, que no pura cpia mas funciona

    como smbolo. No smbolo existe, para Ricoeur, uma dupla intencionalidade do

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    sentido literal que funciona como um enigma que tanto pode significar um novomodo de referncia como uma operao de pura dissimulao.

    Os signos simblicos so opacos, lembra-nos, constantemente o autor.Tm um sentido literal e outro existencial ou escondido; uma dimensosemntica e outra no semntica que absolutamente impossvel separar. So

    os testemunhos mais fidedignos da estrutura de antecipao prpria dohumano. Exprimem o conflito originrio ("desejo de ser na falta do ser") que dorigem ao prprio acto de significar e interpretar. Mergulham as suas razes naexperincia trgica ou umbrosa do existir humano. Representam assim o vividode algo poderoso, forte e eficaz, que exige ser dito, embora nunca ingressecompletamente na linguagem. Revelam, em suma, a distncia em que radica alinguagem. Por isso mesmo, suscitam a interpretao, ou melhor, so o seuverdadeiro espao de experincia.

    justamente na opacidade do sentido que reside a profundidade damanifestao prpria do smbolo. Tudo o que o smbolo d que pensar, queristo dizer, d-o por meio da interpretao, na transparncia opaca de um

    enigma que, longe de bloquear a compreenso, provoca-a indefinidamente. alis esta textura dupla do smbolo, que torna possvel todo o trabalho dainterpretao. Este, por sua vez, torna manifesto o modo como o acto designificar ou o advento da linguagem pode tambm querer dizer distncia,narcisismo e dissimulao. Necessrio pois encarar o conflito deinterpretaes a que a funo reveladora do smbolo d origem, quandorealmente se pretende entender a natureza significativa ou hermenutica daprpria linguagem.

    hermenutica contempornea cabe, antes de mais, perceber comotoda a interpretao singular finita; uma apropriao limitada do sentidosimblico, que reduz por definio a determinao mltipla do sentidotraduzindo-a numa grelha de leitura que lhe prpria. Cabe-lhe ainda revelarcomo reduzir no significa, no entanto, anular todo o significado potencial dosmbolo. Apenas suspend-lo, isto , partir de pressupostos que determinamum ponto de vista especfico e a sua coerncia.

    A hermenutica integra assim o conflito das interpretaes. Este revela-nos como toda a interpretao uma leitura limitada e coerente no interior dasua prpria perspectiva que, por isso mesmo, pressupe, conceitos operatriosfundamentais que inscrevem, ao serem explicitados, numa das interpretaes alinha de sentido desenvolvida pela outra. E isto o que significa o seguinte: sea coerncia de toda a interpretao exige uma certa suspenso do conflito que

    a suscita, isto , uma reduo da polissemia inicial do smbolo, pela suatraduo para um determinado contexto, esse facto no implica que o conflitotenha sido anulado. Apenas foi perspectivado de acordo com uma determinadaopo. Da que cada uma das interpretaes em conflito esteja inscrita, a ttulopotencial, nos conceitos no temticos da outra. Necessrio , pois, revelar acomplementaridade das hermenuticas rivais como o verdadeiro corolrio doseu carcter de perspectiva.

    Tal o verdadeiro sentido do conflito das interpretaes em Ricoeur: atenso originria no aquela que existe entre uma interpretao e a outramas, pelo contrrio, aquela que tem razes no interior de cada uma. Toda ainterpretao parte de uma situao de pertena originria linguagem que

    incapaz, de abarcar sozinha Deve, por isso, apoiar-se na outra perspectiva, em

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    ordem a evitar toda a cristalizao ideolgica e poder alargar o seu ponto devista. A verdade hermenutica sempre relativa a uma situao. Logo, s asolidariedade no conflito permite evitar o narcisismo hermenutico. Apoiar-seno adversrio para poder prosseguir eis a condio de possibilidade de todaa interpretao que sabe reconhecer a abertura como corolrio essencial do

    seu carcter irremediavelmente limitado. A tenso do smbolo transmite-se interpretao. Logo, no existe hoje uma Hermenutica geral, apenas teoriasdiferentes e at contraditrias. O paradoxo a verdadeira lgica dahermenutica que, por isso, nunca pode cair em totalizaes apressadas. Ora,isto s se consegue quando o conflito das interpretaes levado a srio e secompreende que arbitr-lo , antes de mais, salientar, as suas diferenas paraprocurar, em seguida, todo aquele jogo de envios pelo qual cada interpretaoremete, pelos seus prprios conceitos operatrios, para a outra.

    Assim sendo, se de facto, a hermenutica da suspeita redutora earqueolgica, porque apenas trabalha a dimenso regressiva do smbolo, o que preciso revelar a dialctica que ela mesma implica enquanto suspende a

    dimenso prospectiva dos smbolos. A tarefa da Hermenutica consiste empatentear o modo como, no seu princpio, cada tipo de interpretao comporta,segundo a linha da sua prpria coerncia, todo um jogo de referncias que s oencontro com a outra interpretao permite explicitar. So justamente ospontos fracos de uma os pontos fortes da outra, afirma Ricoeur. Neste sentido,arbitrar o conflito estar atento aos limites de cada interpretao, de modo anotar os pontos possveis de encontro. A esta tarefa consagra o autor a suaHermenutica, lembrando-nos que se a sua particular simpatia e dependncia a da hermenutica da confiana, a verdadeira confiana s verdadeiramente douta quando reconhece os seus verdadeiros limites e sabeintegrar a crtica abrindo-se simultaneamente lgica progressiva e regressivado smbolo. Nas suas obras, De lInterprtation. Essai sur Freud e Le Conflitdes Interprtations. Essais d`Hermneutique o autor dialoga respectivamentecom a Psicanlise de Freud, que considera ser o modelo por excelncia dahermenutica da suspeita, e com o estruturalismo lingustico que desenvolveao nvel da semntica do texto a atitude redutora de explicao do sentido dossmbolos. O objectivo duplo: pensar, em primeiro lugar, as condies nopuramente subjectivas mas profundamente relacionais ou intersubjectivas dareferncia simblica, desde sempre motivo de uma Hermenutica; descentrar,em segundo lugar, a subjectividade do intrprete por meio da lgicaprogressiva e regressiva do smbolo.

    Bibliografia.: P. RICOEUR, De lInterprtation. Essai sur Freud. Paris, Seuil, 1965;IDEM., Le conflit des interprtations. Essais dhermneutique, Paris, Seuil, 1969;IDEM., Du texte laction. Essais d hermneutique II, Paris, Seuil, 1986; IDEM., Duconflit la convergence des mthodes en exgse biblique in X. LON- DUFOUR,(Ed) Exgse et hermneutique. Parole de Dieu, Paris, Seuil, 1971, pp. 35-52.; P.GISEL, Le conflit des interprtations, in Esprit, 11, 1970, pp.776-784; IDEM., PaulRicoeur ou le discours entre la parole et le langage, in Revue de Thologie et dePhilosophie, 26, 1976, pp.98-110.; M. L. PORTOCARRERO SILVA, A Hermenuticado conflito em P. Ricoeur, Coimbra, Minerva, 1992; IDEM., Da fuso de horizontes aoconflito das interpretaes: a Hermenutica entre Gadamer e Ricoeur in RevistaFilosfica de Coimbra, 1(1992), pp. 127-153.

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    Explicao

    Conceito usado no mbito da hermenutica filosfica, a partir de Dilthey,com o significado metodolgico e cientista da modernidade, que desenvolverauma forma matemtica, segura e certa de inteligibilidade do "livro da natureza".Nesta acepo, explicar reduzir factos e acontecimentos a leis universais,ditadas pelo sujeito, seguir as vias do ideal metdico do conhecer,formuladas por Descartes, em suma conhecer, para poder, prever e dominarcom certezas.

    O modelo da explicao aparece, de facto, ligado, desde a modernidade

    europeia, reduo da ideia filosfica da verdade ao primado da verificao eda certeza. A explicao implica assim objectividade, processos hipotticos ededutivos, critrios lgicos de verdade e de erro. Ora, justamente estesentido da compreenso humana do real que Dilthey recusa, como inadequadopara o mbito das cincias do esprito. Nestas, a aproximao cognitiva outra: ela no pode obter nem certezas nem uma objectividade absoluta. Naverdade, tais cincias partem do carcter significativo e apelativo dasexpresses da vida humana, sejam estas signos fisionmicos ou significaesfixadas por escrito em documentos e em monumentos duradouros.

    clebre a oposio criada pelo filsofo compreende-se o homem,explica-se a natureza , que deu origem a ulteriores desenvolvimentos, todos

    eles marcados por dois tipos de dualismo: um ontolgico e outroepistemolgico. A ideia chave para que Dilthey aponta com esta oposio aseguinte: uma vez que, na sua prpria essncia, os objectos das cincias danatureza so distintos dos das cincias humanas, tambm os objectivos e viasdo conhecimento devem ser diferentes, num caso e noutro. No mbito dascincias humanas a categoria central a da penetrao no sentido interiordas aces, gestos, obras ou instituies , o que significa que a abordagemdeve ser indirecta e no representativa. Isto , o modelo cognitivo das cinciasdo esprito, porque parte de sinais, s pode ser compreensivo ou hermenutico.

    O conceito de compreenso cunhado por Dilthey, como conceito que sedeve entender por oposio explicao, marcou toda a hermenutica

    contempornea, apesar de Heidegger ter revelado, em Ser e Tempo que aexplicao no significa, em sentido originrio, uma modificao dacompreenso nem esta, por sua vez, diz apenas respeito ao mundo do esprito;

    H.-G. Gadamer, representante da principal corrente alem dahermenutica contempornea, entende por sua vez a compreensohermenutica como algo que excede o modelo explicativo habitual, demasiadoligado concepo metdica da verdade ( da o ttulo da sua principal obraVerdade e Mtodo) e acepo puramente cientfica ou positivista daexperincia humana. Mas, com Gadamer, a hermenutica corre o risco deperder a sua dimenso crtica, habitualmente ligada ideia de controlo e deverificao, prpria da explicao, e por esse facto P. Ricoeur representante

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    da linha hermenutica da filosofia francesa, mais atenta ao momentopropriamente lingustico de toda a compreenso prope-se pensarnecessria articulao destes dois conceitos.

    A tese do filsofo francs a seguinte: a oposio entre explicar ecompreender, instituda por Dilthey, na base da oposio entre natureza e

    esprito, deve ser substituda por uma articulao dialctica entre as duasatitudes fundamentais do pensar. Para isso necessrio entender como aprpria hermenutica pode em si mesma fazer a mediao das duas atitudes.A hermenutica parte de signos, textos e, depois do movimento estrutural, todaa ateno aos signos, em que se inscreve a compreenso, exige que se dateno s leis e estruturas que governam o universo semitico. Assim surgeum conceito de explicao estritamente ligado ao mbito das cinciashumanas, isto , ao universo dos seus signos. Numa hermenutica, precisoento partir no s do primado ontolgico da compreenso, como atender aomomento propriamente semntico desta e nele perceber a indicao de que acompreenso realmente um modo de ser. Por outras palavras, a ideia de

    existncia, como um ser que se d mediante a interpretao, deve serenriquecida a partir de uma elucidao semntica dos sinais do existir e domodo como estes remetem para alm deles.

    O autor substitui assim via curta da analtica do Dasein, instituda porHeidegger e retomada por Gadamer, aquilo a que chama uma via longa dahermenutica, proporcionada pelas anlises contemporneas da linguagem.Pensa, com isto, abrir a hermenutica ao contacto com as disciplinas quepraticam a interpretao de maneira metdica, resistindo tentao de separara verdade, prpria da compreenso, enquanto revelao, do mtodo ligado explicao. A necessidade de compreender o n semntico de toda ainterpretao, geral ou particular, permite que a hermenutica encontre novosmodelos de explicao, j no derivados do mbito das cincias da naturezamas, pelo contrrio, resultantes do prprio domnio da linguagem e da suaanlise semiolgica. O objectivo de Ricoeur chegar a um conceito deinterpretao que envolva em si a compreenso e a explicao. E trabalhando aquilo a que chama uma teoria da leitura, centrada na noo detexto e na sua autonomia em relao ao discurso, que o autor consegue pensara dialctica da compreenso e da explicao, enquanto fases de um mesmoprocesso; isto , como um movimento que comea pela compreenso, comoconjectura e chega explicao como validao, voltando desta compreenso como apropriao, j mediada pela anlise estrutural da

    semntica profunda do texto.Neste novo contexto, preparado pelas anlises estruturaiscontemporneas, a compreenso acaba por explicitar o sentido especfico dasua forma de apropriao, ao entrar em confronto com um modelo deinteligibilidade suscitado pelo prprio mbito das cincias humanas,nomeadamente, por uma cincia considerada de ponta neste domnio: alingustica. A explicao e a compreenso aparecem finalmente situadas nomesmo terreno: a esfera da linguagem com a qual a hermenutica filosficasempre lidou, sem prestar grande ateno sua autonomia prpria.

    A vantagem do estruturalismo reside, segundo Ricoeur, no modo comoexplicita e analisa o fundo semntico sempre implicado em toda a

    compreenso. A explicao estrutural analisa o texto segundo a perspectiva da

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    ordenao interna dos seus elementos e das organizaes sistemticas quenele so inteligveis; destaca a sua estrutura, isto , as relaes dedependncia interna que constituem a esttica do texto. A tradicionalmetodologia das cincias humanas, ainda ligada ao primado tradicional dosujeito e da sua inteno mental assim mediada e enriquecida por uma

    anlise lgica das relaes internas em que se exprime a objectividade dequalquer texto. O resultado deste processo , segundo Ricoeur, o seguinte: acompreenso, como apropriao da inteno de significado do texto, aparecefinalmente mediada pelo espao no psicolgico mas lgico e ideal do dizer dotexto. Pode assim tomar o caminho de pensamento aberto pelo mundo dotexto, dirigir-se para o seu oriente.

    Neste sentido, a explicao estrutural do texto ou das grandesnarrativas, que fundam a dimenso simblica e ontolgica do existir, hoje aetapa necessria pela qual deve passar toda a compreenso hermenutica. Oprocedimento da explicao estrutural, dos elementos mnimos que constitueme permitem o funcionamento da lngua, a verdadeira condio que permite

    concretizar, no texto, a instaurao do real distanciamento do dito face aosujeito e s suas intenes, j procurado pela viragem ontolgica dashermenuticas de M. Heidegger e H-G. Gadamer.

    A passagem pelo ponto de vista objectivo e sistmico da semiticatorna-se pois, segundo Ricoeur, uma etapa obrigatria de toda hermenuticaque queira passar de uma inteligncia ingnua a uma inteligncia madura, pormeio da disciplina da objectividade. S este tipo de hermenutica poder levara uma apropriao que deixe de surgir como uma espcie de posse do sentidodo texto e que implique, pelo contrrio, o despojamento e enriquecimento doego do intrprete pelo contedo simblico do dito. A compreenso do textoafasta-se definitivamente de toda a pretensa confuso ou fuso emocional daconscincia. Passa a reportar-se s operaes formadoras investidas no textoe, finalmente, leitura ou execuo da sua inteno de significar. definitivamente proibido identificar a compreenso com uma espcie deapreenso intuitiva da inteno mental subjacente ao texto, j que o sentidodeste surge como um desafio, uma espcie de convite a um novo modo deolhar as coisas.

    Explicao e compreenso so ento dois estdios diferentes de ummesmo "arco hermenutico", aquele que permite passar de uma refernciademasiado apressada a referncia inteno e circunstncias originais doautor ao mundo aberto e possibilitado pelo acto de narrar. A interpretao do

    texto encontra agora a sua verdadeira realizao "na interpretao de simesmo de um sujeito, que doravante se compreende melhor a si mesmocompreendendo-se de outro modo" que agora a interpretao o prprioacto do texto antes de ser o acto do intrprete. Este, quando aparece, est jmediado por toda a srie de interpretaes que pertencem ao efeito histricodo prprio texto.

    Bibliografia: W. DILTHEY, Le monde de lespritII,trad.Paris, Aubier Montaigne,1947;P. RICOEUR, Le Conflit des interprtations. Essais dhermneutique, ParisSeuil,1969; IDEM., Lectures, 2 .La contre des philosophes, Paris, Seuil, 1992; IDEM.,

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    Du texte Laction. Essais dhermneutique, II. Paris, Seuil, 1986; IDEM., Teoria daInterpretao, trad. Lisboa, ed, 70, 1976.

    Fuso de HorizontesExpresso cunhada por H.-G. Gadamer para caracterizar, contra a ideia

    romntica e historicista de uma distncia rgida entre o horizonte do passado eo do intrprete, o nexo de compreenso e efectuao que caracteriza oprocedimento hermenutico.

    Para este filsofo, discpulo de Heidegger e da sua hermenutica dafacticidade do existir, todo aquele que quer compreender, por exemplo, umtexto ou um documento do passado, parte j do efeito histrico exercido poresse mesmo texto ou tradio, sobre a sua situao temporal. O tradicional

    ponto de vista dos horizontes fechados que limitam, encerando-as, as culturase as pocas histricas, uma abstraco. A mobilidade histrica da existnciahumana, diz-nos, reside justamente no facto de no haver um vnculoabsoluto a uma determinada posio e, neste sentido, tambm de no haverhorizontes realmente fechados. O horizonte antes algo no qual fazemos onosso caminho e que connosco caminha (...), tambm o horizonte do passado,a partir do qual vive toda a vida humana e que est a segundo a forma detradio, se encontra em perptuo movimento. O passado prprio, tal como oalheio, faz parte do horizonte mvel em que vivemos e que nos determinacomo tradio.

    Tradio significa justamente transmisso de algo, isto , um acontecer

    de sentido que implica uma recepo no puramente passiva, mas sempremediada por uma traduo, logo por todo um efeito histrico de sentido, efeitoque no tem aqui uma natureza no determinista nem causal.

    Na aparente ingenuidade com que pensamos compreender, quandoguiados por padres de objectividade, acontece que o outro, aquilo quequeremos entender, se nos mostra j luz do prprio, de tal modo que nem oprprio nem o outro se chegam a distinguir enquanto tais. A tradio actuasempre no meu modo de entender, de uma forma que no controlo, ecompreendo sempre a partir dos efeitos histricos que uma obra ou narrativa(histrica ou de fico) foi tendo ao longo da histria. Por isso, a verdadeiratarefa da hermenutica deve ser a de tomar conscincia do poder exercido poresta eficcia histrica da tradio em toda a compreenso; o que dizer que necessrio perceber, antes de mais, que no existe para o intrprete apossibilidade de uma inteleco pura, sem pressupostos. Isto , que a meta deuma reconstruo objectiva e exacta da mentalidade e circunstncias do autorlhe vedada.

    Esta iluso foi o logro da tradio romntica da hermenutica que,partilhando do modelo ilustrado da viso sem pressupostos, acreditou no idealda co-genialidade como verdadeiro princpio hermenutico. Esqueceu que todaa situao hermenutica est marcada pelos seus prprios prejuzos, aquelesassinalam o horizonte do presente, a partir do qual cada intrprete se abre a

    outros horizontes ou possibilidades de ser, figurados pelos textos e

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    documentos vrios da tradio. Obliterou-se, neste tipo de viso romntica, queo que parece ser uma reconstruo do sentido passado se funde sempre como que nos atrai directamente, isto , com as nossas expectativas e que o nossoponto de vista se mistura com o do texto, fazendo-o assim acontecer numverdadeiro processo de mistura de horizontes.

    O conhecimento histrico ou literrio , alis, um exemplo claro de que acompreenso no nunca uma pura actualizao de contedos mortos,depositados em obras escritas. Compreender um texto ou um fragmento dopassado , de facto, entend-lo a partir da questo que ele hoje ainda eleconsegue suscitar-nos: um processo de contnua fuso ou alargamento dehorizontes, pelo qual todo o intrprete participa com outros no longo e rduocaminho do sentido. Neste modelo de compreenso, aceita-se por fim aquiloque para o ponto de vista ilustrado, romntico e historicista era inaceitvel: opapel configurador da linguagem simblica e plural, prpria da semnticanarrativa, na nossa ordenao das coisas humanas.

    Para Gadamer, uma hermenutica filosfica deve reconhecer na

    condio finita do homem o seu motivo fundamental. Logo, deve saber quepara este no existe j a possibilidade de uma coincidncia com o real. Toda acompreenso humana mediada pela linguagem e toda a linguagem , como odizia j Aristteles, uma hermeneia originria do real. Quer isto dizer que acompreenso uma apreenso do real por meio de expresses significativas enunca um puro extracto de impresses vindas das coisas.

    Da que toda a verdade seja absolutamente solidria do poder e efeitoda palavra e revele o seu sentido atravs da solicitao que sempre dirige atodo e cada intrprete, que a queira apropriar. Da, tambm, a necessidadesentida por toda a interpretao de se deixar fecundar pela abertura a outroshorizontes: porque o homem finito, s na linguagem, e seu poder dialgicofundamental, as coisas podem realmente alcanar a sua objectividade(idealidade prpria). S aqui deixam de pertencer ao ponto de vista egosta decada sujeito particular, para se elevarem dimenso da referncia comum doshomens concretos que, atingidos na sua condio concreta pela palavra quedescentra e interpela, sabem colocar a alteridade do dito, e a da suaperspectiva, no horizonte de uma procura comum, nunca acabada.

    Alcanar um horizonte, lembra-nos Gadamer, quer dizer aprender a verpara alm do que nos prximo, sem o desprezar, encarando-o de outraforma, pelo simples facto de o conseguirmos integrar num todo maior e empadres mais envolventes. Esta uma tarefa difcil, claro, que requer a

    mediao do outro enquanto um tu, isto , o processo do destacar-se do outro,que ao fim e ao cabo o que requer a aco de diferenciao recproca. Oreconhecimento do outro como tu e no como coisa , para a hermenuticagadameriana, o mediador fundamental da compreenso. Compreender sempre o processo de fuso dos horizontes aparentemente isolados.

    O ideal da compreenso por meio de um entrelaamento dos horizontesdiferentes, substitui pois o modelo metodolgico clssico da compreensoexplicativa das coisas. Este novo ideal revela ao homem, que aceita a suacondio de ser finito, histrico e situado, que para ele tudo o que existe, existeapenas na e pela relao com o outro homem. Logo, que a compreensohermenutica exige a substituio do modelo clssico da pura presena da

    coisa pelo da sua percepo narrativa e constante interpretao.

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    Neste sentido, a hermenutica gadameriana da historicidade docompreender revela, na raiz de toda a reflexividade hermenutica, algo que atradio da filosofia reflexiva para a qual no existia a questo do texto oumesmo a da condio linguageira de todo o entendimento humano no pdepensar: a relao do Ser ou da Verdade com a problemtica da existncia

    concreta, da histria, da escrita e da interpretao. Dito de outro modo, apertena a uma tradio e horizonte histrico que determina a condioverdadeiramente simblica de toda a compreenso humana.

    O ideal de uma fuso de horizontes, enquanto modelo da intelecohermenutica, pois um ideal crtico do modelo da conscincia reflexivamoderna e do seu voto de uma compreenso neutra e exacta. Ele procuradevolver, hoje ao sujeito, que compreende, a verdadeira dimenso da suadistncia, indicando-lhe o caminho da relao ao outro como nica via desuperar a usura narcsica da verdade e, com ela, de evitar a conversoideolgica do pensar. No consenso ou " fuso" alcanado, ou ainda sempre poralcanar, exprime-se ento toda uma nova maneira de compreender, que no

    representa, j e apenas a verdade de um ou a de outro mas, pelo contrrio,uma sntese aberta a novas glosas e comentrios. Isto quer dizer que verdadehermenutica no subjectiva mas intersubjectiva, exige reconhecimento eest sempre ligada condio de perspectiva do ser humano. Ela areferncia a um sentido excessivo que, desenhando-se para alm do tempo emque narrado, se repete nos diferentes horizontes da sua compreenso comosmbolo de um envio, j sempre recebido, mas nunca totalizado.

    Em concluso, na perspectiva de Gadamer, a ideia de fuso dehorizontes conduzida deste modo pelo processo dialctico da palavra visarevelar-nos toda a diferena que existe entre uma compreenso hermenuticae uma compreenso totalitria. A objectividade hermenutica inseparvel dascategorias da comunicao e da implicao no sentido e sabe que o encontroou fuso de horizontes distintos no nunca equivalente ao fenmeno damediao total. Sempre acontecer em todo o processo de interpretao, diz-nos o filsofo, que a linha de sentido que se revela no decurso da leitura acabanecessariamente numa indeterminao aberta. O leitor pode e devereconhecer que geraes futuras compreendero de um modo novo o que eleleu neste texto. O mbito da Hermenutica no homogneo nem to poucoregulvel a priori. , pelo contrrio, percorrido por interpretaes diferentes e,por vezes, at concorrentes. No entanto, a interpretao, que se sabe finita,reconhece que ou se abre a outras interpretaes ou no faz mais sentido.

    porque no pode haver um saber absoluto do todo da histria e dos textos, quedo testemunho do sentido do existir, que no podemos renunciar forma deaproximao caracterstica do entrelaamento ou fuso de horizontes.

    Bibliografia: H.- G. GADAMER, Gesammelte Werke 1. Hermeneutik I. Wahrheit undMethode-1. Grundzge einer philosophischen Hermeneutik, Tbingen, Mohr, 1986.;IDEM., Gesammelte Werke, 2. Hermeneutik II. Wahrheit und Methode- 2.Ergnzungen. Register, Tbingen, Mohr, 1986.M. L. PORTOCARRERO SILVA, OPreconceito em Gadamer: Sentido de uma Reabilitao, Lisboa, FCG/ JNICT, 1995;IDEM., Da fuso de horizontes ao conflito das interpretaes: a hermenutica entreGadamer e Ricoeur in Revista Filosfica de Coimbra, vol. 1, n1 (1992), pp. 127- 153.

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    Hermenutica

    Palavra que aparece, pela primeira vez, no sc. XVII, como ttulo do livrode J.C. Dannhauer: Hermenutica sacra sive methodus exponendarumsacrarum litterarum. No entanto, as suas formas semnticas preliminares, overbo hermeneuein e os seus derivados, os substantivos hermenes ehermeneia cobrem na lngua grega um mbito muito extenso. A expresso"hermenutica", diz-nos Heidegger, deriva do verbo grego hermeneuein. Esterefere-se, por sua vez, ao substantivo hermeneus, que poder ser aproximadosem o rigor da cincia, do nome do deus Hermes. Hermes era o mensageirodos Deuses; anunciava o destino. Hermeneuein significava a revelao quelevava, aquele que estivesse em condies de ouvir uma mensagem, ao

    conhecimento. Este tipo de revelao tornava-se, em seguida, exegese deaquilo que foi dito pelos poetas que, segundo as palavras de Scrates nodilogo Ion de Plato, so os mensageiros dos Deuses.

    De acordo ainda com G. Ebeling, representante da Hermenuticaevanglica contempornea, a origem etimolgica de hermeneuo e dos seusderivados duvidosa, mas enraza no significado de falar, dizer. O vocbulotem trs orientaes de sentido: afirmar (exprimir), interpretar (explicitar) etraduzir (servir de intrprete). Uma linha comum se expressa neles: a ideia deque algo, no totalmente claro, deve ser tornado inteligvel, isto , de quedevemos conseguir que ele seja entendido. A prpria ideia segundo a qual alinguagem j hermeneia originria do real ou interpretatio nasce no mundogrego com a obra Organon de Aristteles, onde numa das partes, PeriHermeneias (De Interpretatione), se discutem os diferentes modos do falar.

    A palavra hermenutica cobre, pois, j desde o mundo grego vriosnveis de reflexo. Designa, fundamentalmente uma techn (e no umacincia), a arte de interpretar e apropriar o sentido dos grandes textos quefundavam, pela sua dimenso simblica e normativa uma determinadacomunidade humana ou ainda a arte de compreender o significado latente eobscuro de mensagens que reclamavam ser entendidas. A palavra indicava,alis, o lugar-comum da formao do homem culto greco-romano e medieval.Representava uma forma da compreenso ou experincia humana do sentido

    que dizia respeito praxis da orientao no mundo ou melhor formao danossa capacidade de escolha por um conjunto de valores, de costumes, deusos, e crenas tradies, mediados por tradies.

    Interpretavam-se, assim os textos, clssico, bblico e jurdico, pormotivos de orientao num mundo estruturado pela linguagem narrativa evivido em comunidade. A temtica hermenutica adquire, alis, relevncia,neste seu primeiro perodo no teortico nem filosfico, em momentos de criseda tradio, nomeadamente aquando: da campanha platnica contra os deusesdos mitos e dos poetas a favor do deus divino dos filsofos; da reconciliao daherana de Homero com o mundo helenstico; da polmica entre a "allegorese"helenstica e a interpretao histrica, prpria do mbito judaico cristo; do

    conflito entre as escolas de Antioquia e Alexandria quanto interpretao literal

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    ou simblica e alegrica; da necessidade que a concepo latina do mundoteve de apropriar e traduzir o que era importante na cultura grega; dos esforosfeitos pelo direito romano para transmitir ao Ocidente a poesia e a filosofiagregas, tal como a palavra da Sagrada Escritura; do impulso da Reforma parainterpretar a Bblia por si mesma.

    At ao sc. XIX, a Hermenutica desenvolveu-se como disciplina auxiliardas cincias que se orientavam, de forma normativa, para os antigos clssicose para a Bblia. Logo, significou apenas o processo de tornar o mundo dapraxis compreensvel por meio da palavra viva, e nunca significou umaqualquer forma de cincia ou saber no qual se expressasse uma razoconceptual rigorosa. At aos sculos XVIII e XIX, lembra-nos mesmo Gadamer,a Hermenutica desenvolvida mais como uma arte do que como uma cincia,estava primordialmente ligada s artes prticas, que tornam possvel a condutabsica do existir no mundo, como a Gramtica, a Retrica e a Dialctica.Pertencia ao mbito da scientia practica. Designava uma capacidade natural dohomem, a capacidade para ser e se compreender nas relaes plenamente

    significativas com os outros homens. Era a arte de compreender os outros e decom eles se entender pela palavra. Partilhava com a Retrica o processo detornar compreensvel pela palavra viva que interliga, mas no subsume, fosseesta representada pelo dilogo vivo ou pelos grandes textos e narraes quefundam, pela sua transmisso de ideais, uma determinada pertena vivida emcomunidade.

    Momento decisivo desta Hermenutica no filosfica nem teortica,marcada pelo efeito da palavra na vida humana, nomeadamente da palavrabblica, foi a Reforma Protestante e sua defesa do primado do texto contra osataques da Contra-Reforma. Surge, neste momento, a primeira formasignificativa da Hermenutica que no ainda filosfica. Marca-a no apreocupao metodolgica com o texto mas a necessidade de explicitar aefectividade de uma palavra, que deve atingir quem nela cr, levando a umaaco e a uma converso de vida. A palavra bblica letra morta, pensavaLutero, se no for experimentada como um incitamento a uma metamorfose outransformao espiritual. Para este telogo, fundador do movimento daReforma, a palavra da Bblia no pode ser letra morta. Espera uma resposta,isto , orienta-se para uma apropriao pessoal do crente.

    na verdade, no contexto polmico da Reforma Protestante e da suadefesa da legibilidade do texto bblico, contra o princpio de autoridade datradio catlica tarefa em que coincidem na altura Hermenutica e Retrica

    que a Hermenutica alcana, com Mathias Flacius Illyricus, a sua primeiraconfigurao importante. Impe-se numa poca em que se simultaneamentesurge a inveno da imprensa e a enorme difuso da leitura e da escrita,justamente como o modelo de uma leitura implicada, isto , feita pelanecessidade que o crente tinha de se compreender a si mesmo luz do texto.A Hermenutica integra-se, nesta altura, no contexto humanista mais amplo deretorno aos clssicos como reaco contra o estilo de ensino da escolstica econtra seu apoio nas autoridades eclesisticas. Ela pressupe um conceito deverdade que nada tem de metdico ou desinteressado, pois parte de uma pr-compreenso e est por sua vez relacionada com o efeito praxiolgico dapalavra e com o problema existencial da orientao do homem no mundo.

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    A ideia de fundo de toda esta Hermenutica protestante que sedesenvolve em clima humanista e que vai desaparecer com o Romantismo aseguinte: o homem um ser capaz de ser tocado e modificado pelo poder eefeito de palavra. Logo, os textos contm a verdade sobre as coisas: umaverdade que no implica certeza nem verificao pois , antes de mais nada,

    linguagem, abertura, isto , uma proposta fundamental de sentido que schega realmente a acontecer, se apropriada por algum que na sua leitura ouinterpretao saiba fazer sentido.

    A partir do sc. XIX, com F. Schleiermacher (1769-1834), aHermenutica adquire toda uma nova dimenso, filosfica e epistemolgicaque a desliga, enquanto teoria universal da compreenso e interpretao, detodos os momentos praxiolgicos e normativos da hermenutica anterior.Preocupado em defender com a sua teoria hermenutica o carcter cientficoda teologia e formado filosoficamente no modelo moderno do conhecimentotranscendental, Schleiermacher, romntico, coloca o centro de gravidade daHermenutica na anlise da operao gnosiolgica comum a toda a

    interpretao. o contedo cognitivo do discurso e no o seu efeito existencialou mesmo uma qualquer anlise dos seus signos, o nico objecto dainterpretao que, onde quer que se exera nos mbitos bblico, jurdico oufilolgico procura sempre vencer um mal-entendido. Este , na opinio deSchleiermacher, provocado pela compreenso da linguagem, na medida emque ela a expresso de um pensamento individual. Conciliada com a lgica emetodologia da cincia e com o seu problema fundamental o doconhecimento a hermenutica torna-se agora universal, isto unifica asvrias prticas de interpretao at ento existentes, por meio de uma reflexosobre o tipo de acto cognitivo ( a compreenso) implicado na interpretao dos

    textos . a apropriao romntica do modelo moderno da subjectividadetranscendental que permite a Schleiermacher afastar a Hermenutica do seulocal originrio a transmisso de prticas comunicativas que possibilitam aconvivncia dos seres humanos e descobrir a operao comum a toda aactividade de interpretao. O filsofo identifica-a como a compreenso dooutro que se exprime linguisticamente e que, por essa mesma razo, provoca atenso entre pensamento individual e linguagem comum, gerando aincompreenso e o mal-entendido (agora universais). Hermenutica, comoarte de evitar o mal-entendido, interessa fundamentalmente meditar a estranharelao que existe entre falar e pensar. A sua principal tarefa reside numa

    reflexo sobre as condies que permitem ultrapassar o mal-entendido emordem a poder compreender o outro, que se exprime no texto, melhor do queele se compreendeu a si mesmo. Com a sua clebre introduo de umainterpretao psicolgica, necessria para completar a interpretao gramaticaltradicional, Schleiermacher desloca o verbo interior do texto para o mbitomeramente psicolgico do seu criador, consagrando a ideia de quecompreender um texto reconstruir a inteno mental do seu autor.

    Esta interpretao psicolgica, apoiada na teoria romntica da criaoinconsciente do gnio, passou a ser depois de Schleiermacher a base tericacada vez mais relevante das cincias do esprito. Com W. Dilthey (1833-1911)

    o autor do pacto entre Hermenutica e cincias do esprito so os

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    problemas lgicos e gnosiolgicos, relativos fundamentao do conhecimentohistrico o ncleo de uma Hermenutica, que tem como principal tarefa oconhecimento e descrio das leis da vida espiritual, que constituem ofundamento comum das diferentes cincias humanas. Profundamentepreocupado com a complexa questo da objectividade do historicamente

    condicionado, Dilthey, representante da conscincia histrica e das filosofias davida, recusa a lgica explicativa das cincias da natureza como via de acessoao mundo histrico. No quer, no entanto, cair no relativismo histrico. Parteassim da relao essencial entre vida humana, expresso e sua significao,afirmando a dimenso compreensiva ou hermenutica desta relao.Compreende-se o homem, explica-se a natureza tal a clebre oposio quemarca o desenvolvimento da sua Hermenutica. O mundo histrico escapapela sua estrutura semntica categoria do dado. Nele a ideia de sinal esentido (nexo estruturado) como que faz parte da prpria natureza da coisa. Omundo do esprito o mundo vivido, algo que se revela indirectamente, isto ,apenas por meio dos seus sinais (textos, obras) ou exteriorizaes, que desde

    logo nos remetem para um todo global de sentido. Este ultrapassa qualquermodelo explicativo. Da a necessidade de uma Hermenutica que, procurandochegar ao conjunto da vida psquica, se transforme no modelo metodolgicoapropriado para as cincias humanas.

    A Hermenutica transforma-se assim na teoria universal dacompreenso e interpretao das objectivaes significativas da vida histrica.O seu ncleo fundamental reside agora na possibilidade que tem a conscinciahistrica de reconstruir, a partir das significaes da vida fixadas de mododuradouro, a inteno e as circunstncias originrias do autor. Interpretar , nalinha de Schleiermacher, reconstruir uma construo cuja chave deve serprocurada na inteno do autor.

    Ser com M. Heidegger que vir a ser ultrapassada esta orientaoepistemolgica da Hermenutica diltheyana da vida. Interessado, como Dilthey,na temtica da histria e da historicidade da vida, Heidegger escreve uma obra,Ser e Tempo (1927), onde a compreenso hermenutica aparece ligada exigncia urgente de uma reposio da questo do sentido do ser. queHeidegger sabe que a questo da historicidade hermenutica, porque abrigaem si uma outra questo de fundo: o mistrio da temporalidade. E este no um problema gnosiolgico qualquer, mas algo que diz essencialmente respeitoao modo de ser desse ser-a que o humano. Esta uma questofundamental esquecida pela tradio e que implica antes de mais toda uma

    nova ideia de fundamentao.Com Heidegger, a Hermenutica alcana todo um novo sentido. Deixadefinitivamente o registo psicolgico e epistemolgico e converte-se na questoontolgica central do filosofar. A novidade de Heidegger reside justamentenesta descoberta do problema metafsico e hermenutico implicado na questoda historicidade, sempre esquecida por toda a tradio e que no podedeterminar-se mais por privao a partir de uma ideia de ser absoluto oueterno. Exige para ser tratada uma "hermenutica da facticidade" do existir, isto, uma analtica da prpria essncia finita do existir humano.

    O fio condutor desta nova concepo de hermenutica, para a qual acompreenso , antes de mais, o modo prprio de ser do humano, o

    seguinte: a problemtica da finitude ou historicidade do existir, levada a srio,

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    obriga a pensar o humano como a ambiguidade fundamental da experincia dolimite (mortalidade) e simultaneamente de uma exigncia de aberturaincondicional que se expressa na prpria interrogao que todo o homem fazsobre o sentido do ser. Isto significa que a experincia da temporalidade radical a experincia do ser ou do sentido, uma experincia hermenutica de

    contraste, que resiste ao tradicional modelo da objectividade (a que Diltheyficara ainda ligado).A analtica da existencialidade da existncia deve assim revelar a textura

    ontolgica e hermenutica do modo de ser finito do existir descobrindo, desdelogo, a sua fundamental pertena a uma situao no mundo. O Dasein, porque temporal, hermeneia originria. No se concebe mais como um sujeitotranscendental e desenraizado. Toma conscincia de si como sentimento dasituao, que implica toda uma prvia compreenso a partir da qual surge acompreenso, no como comportamento terico e desinteressado, mas como arevelao de um saber e poder ser j sempre exercidos e do que h ainda porexercer. compreenso enquanto "projecto lanado" pertence a possibilidade

    de se explicitar, interpretando ou configurando tal ou tal ncleo depossibilidades. Surge assim a interpretao como uma explicitao ouapropriao da compreenso que s possvel sobre o pano de fundo dofuturo e da totalidade compreendida previamente. A interpretao explicitaagora o que j foi previamente entendido, desenhando-se assim o crculo dacompreenso e da interpretao, que corresponde natureza temporal eantecipadora do existir. Ela a primeira forma de articulao do estar nomundo. Parte sempre de pressupostos (de todo o previamente visto ecompreendido pelo sentimento da situao) e nunca de um qualquer grau zero.Corresponde a uma forma no predicativa de articulao o horizonte dosentido relativamente qual a lgica predicativa clssica aparece comoderivada e pobre.

    Para Heidegger, s depois da revelao das coisas o homem finito podefalar sobre elas e o crculo da compreenso e da interpretao assinala o lugaroriginrio do des-velamento e da articulao originariamente pr-predicativa.Da a distino que o autor estabelece em Ser e Tempo entre enunciado ediscurso. Tal distino visa revelar como a compreenso, que sempre seexprime no discurso (um existencial to originrio como o sentimento dasituao, a compreenso e a interpretao), ultrapassa a reduo clssica dodizer ao enunciar. O mbito hermenutico do dizer, do enunciar e do comunicartem agora razes ontolgicas profundas, que desmontam a reduo psicolgica

    da hermenutica moderna e abrem Hermenutica todo um novo e importantehorizonte. neste novo contexto marcado pelo primado da questo ontolgica da

    temporalidade do existir que se situa H.-G. Gadamer com a sua conhecida obraVerdade e Mtodo. Elementos de uma Hermenutica Filosfica. Assumindocomo decisiva a herana de Heidegger, com quem diz ter aprendido oessencial, o filsofo de Heidelberg retoma a problemtica hermenutica dascincias do esprito, interrogando-se sobre as consequncias que decorrempara esta temtica do facto de Heidegger ter derivado a estrutura deantecipao da compreenso da temporalidade do existir. O objectivo mostrar que Hermenutica no interessam tanto os mtodos ou os princpios

    de interpretao, que intervm no mundo do esprito, mas fundamentalmente

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    esclarecer o fenmeno ontolgico da compreenso que caracteriza, desde Sere Tempo, o modo de ser do existir

    De acordo com Gadamer, a Hermenutica de Dilthey pressupunha jalgo que este autor no soube tratar e que hoje, depois de Heidegger, serevela como o verdadeiro ncleo suscitador de toda a compreenso. o facto

    de a existncia humana no se limitar a um puro estar dado mas ser em simesma temporalidade, distncia de si a si, questo, linguagem, que suscita nomundo o problema da compreenso. Ser compreenso e no puro biosinstintivo, tal a essncia do nico ser que historicidade, abertura, isto , umser para o qual ser compreender. A compreenso, modo de ser do humano,manifesta-se ento, de forma originria, como um acontecer de sentido no qualtodo o existir de rosto humano se encontra j sempre mergulhado, mesmo semdisso ter conscincia, para o qual contribui com a sua apropriao ouinterpretao particular e cujas razes remontam ao prprio fenmeno datradio (transmisso).

    hermenutica cabe ento, e antes de mais, examinar as condies em

    que acontece o fenmeno da compreenso. Na anlise destas condiesVerdade e Mtodo recusa o moderno primado do mtodo, que consideraderivado, desenvolvendo, pelo contrrio, a estrutura de antecipao de todo ocompreender como o ncleo de uma pertena a costumes, a pressupostos, e ausos lingusticos, que no podem ser esquecidos, pois determinam sempremodo hermenutico de ser do humano. A compreenso, afirma o autor, nopode pensar-se como uma aco da subjectividade mas como um processo noseio do prprio acontecer da tradio. Toda a interpretao, se desenvolve nombito do acontecer da linguagem ou transmisso, parte de pressupostos quemarcam o enraizamento do sujeito num mundo j sempre dito ou significado.Logo, "s o reconhecimento do carcter essencialmente marcado porpreconceitos de toda a compreenso confere ao problema hermenutico a suareal agudeza". O modelo da hermenutica agora o do dilogo implicado,suscitado pelo modo como as questes do texto pem em jogo ospressupostos e motivaes de cada intrprete. A tradio, identificada peloautor como o conjunto de preconceitos, no subjectivos, que orientam ainterpretao, funciona aqui de um modo decisivo, mas no dogmtico, como ohorizonte que permite a suscitao de novas questes e dos problemas emaberto desenhados pelo texto. Constitui-se como um acontecer ou processohistrico, a partir do modelo dialgico da fuso ou entrelaamento dehorizontes.

    Compreender agora traduzir e questionar o processo de transmissoespiritual que constitui a humanidade do humano (baseada em textos,smbolos, obras de arte), de acordo com uma lgica dialctica a que o autorchama apropriao ou aplicao. Interpretar no j reconstruir ou coincidir,chegar apenas dimenso cognitiva do dito, como pensava a hermenuticaromntica, mas compreender-se a si mesmo luz do texto, isto , traduzir parao horizonte do presente o sentido das questes a que responde o texto eresponder-lhes com os conceitos do presente. S interpretamos um texto ouobra de arte, se ele ainda nos diz algo hoje isto se ajuda a configurao donosso prprio presente. De outro modo nem sequer o interpretamos. Na raiz dacompreenso hermenutica est uma exigncia tica de auto -formao,

    suscitada pelo facto de o homem ser um ser finito, de existir a partir de uma

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    pertena a tradies e, ainda, pelo facto de ser uma capacidade fundamentalde questionamento. Tal a grande novidade da hermenutica de H.-G.Gadamer, cujos temas centrais so os conceitos de efeito histrico, preconceito, fuso de horizontes, dilogo e jogo.

    Com P. Ricoeur, a Hermenutica entra numa nova fase, mais crtica,

    dada a importncia que este autor atribui ao fenmeno da linguagem e ao seutratamento especfico pelas chamadas cincias da linguagem. Herdeiro damudana introduzida por Heidegger e Gadamer, Ricoeur prope hermenutica tradicional que considera partir de uma atitude de confiana,ainda no fundada uma via longa, isto , todo o chamado desvio pelos signosem que se manifesta o acto caracterstico de existir ou compreenso. Temasfundamentais desta sua nova atitude so as noes de conflito (hermenutico),explicao, smbolo, hermenutica da confiana e hermenutica da suspeita.

    Bibliografia: H- G. GADAMER, Gesammelte Werke 1.Hermeneutik 1 Wahrheit undMethode- 1.Grundzge einer philosophischen Hermeneutik, Tbingen, Mohr, 1986;

    IDEM.,Gesammelte Werke 2 Hermeneutik 2 . Ergnzungen. Register, Tubingen, Mohr,1986. K. O. APEL, Das Verstehen. Eine Problemgeschichte als Begriffsgeschichte ,in Archiv fr Begriffsgeschichte, I, 1955, pp.142- 149; E. CORETH, Cuestionesfundamentales de hermenutica, trad. Barcelona, Herder, 1972.; G. EBELING,Hermeneutik in Religion in Geshichte und Gegenwart, 3 Bde, 1959, pp.242-262; J.,GREISCH, Lge hermneutique de la raison, Paris, Cerf,1985; J. Grondin,Luniversalit de lhermneutique, Paris, PUF, 1993; O., MARQUARD, Frage nachder Frage auf die die Hermeneutik Antwort ist, in Philosophisches Jahrbuch, 1981,pp. 1-19.

    Hermenutica da confiana

    Expresso criada por P. Ricoeur para designar a atitude existencial queest simultaneamente na base: a) de toda a hermenutica, que se desenvolveuna tradio, como ars interpretandi; b) daquela que aparece no sc. XIX comocompreenso da vida que se exprime atravs dos seus sinais (obras, textossignificativos); c) da concepo heideggeriana de interpretao concebidacomo modo especfico de ser do existir.

    Estas trs acepes da hermenutica caracterizam-se pelo facto departirem de uma atitude de confiana, ou boa vontade, isto , pelo facto de

    acreditarem fundamentalmente no poder revelador da palavra. Trata-se, nostrs casos, de uma interpretao que pressupe a ideia de que existe umaverdade da linguagem, que deve ser explicitada, uma vez que a funo dosmbolo sempre a de apresentao, e nunca a de dissimulao aquela quecom Nietszche e Freud e Marx deu origem a uma hermenutica da suspeita, oureduo de iluses.

    Para Ricoeur o modelo tpico desta hermenutica da confiana ouinterpretao pela palavra o da fenomenologia da religio, para a qual existeinegavelmente uma verdade dos smbolos que s o trabalho da interpretaopermite revelar. Neste contexto de plena confiana na linguagem, esta aparecefundamentalmente ligada a algo que a transcende e, que no entanto, apenas

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    se diz por meio do duplo sentido simblico. O pano de fundo deste tipo dehermenutica o seguinte: o homem um ser capaz de ser tocado pelapalavra significativa. Precisa de crer para compreender e de compreender paracrer. Logo, compreender , em primeiro lugar, aceitar o desafio do texto, poderser interpelado pela sua palavra para, finalmente, clarificar o seu sentido. A

    confiana bsica do homem na linguagem e no seu poder revelador overdadeiro ponto de partida deste tipo de hermenutica, que adopta assim umaatitude participativa e compreensiva, isto , no redutora.

    Neste contexto de plena adeso linguagem, compreender no srecolher o sentido do objecto visado pelo poder analgico do smbolo, mastambm entender o sentido como uma mensagem que nos dirigida maneirade um repto. Acredita-se que a linguagem que suporta os smbolos menosfalada pelos homens do que falada aos homens e que estes nasceram no seioda linguagem, no meio da luz do logos que ilumina todo o homem que chegaao mundo. A verdadeira luz para o homem a luz da palavra.

    Este tipo de hermenutica da confiana ou interpretao pela palavra

    pressupe ainda, e em ltima anlise, toda uma dimenso ontolgica do existirque descobre o homem como antecipao da plenitude e possibilidade de ser.A tnica posta no futuro, numa potica dos possveis, que tem o seu ncleona formao pelo poder potico e dialgico da palavra. Deste modo se excluiqualquer reduo do que para o homem faz sentido a um originrio de naturezaenergtica e econmica, absolutamente necessrio e dissimulado.

    Pelo contrrio, o movimento aqui o de abertura, de ultrapassagem dasparticularidades prprias, por meio de uma formao pelas figuraes jrealizadas da vida (textos, obras de arte, monumentos) e pela apropriaohermenutica do seu sentido actual. Para esta concepo o que originriono est dado partida mas forma-se pelo prprio movimento da interpretao.

    Poder ser interpelado ou interpretado pela palavra do outro, pelos textosou pelas diferentes figuraes da vida, tal o grande pressuposto desta atitudeque pensa o homem como uma abertura inefvel, isto , como uma estruturafundamentalmente relacional, crente e interrogadora. O desejo de serinterpelado , pois, neste contexto, o grande motor da interpretao. Esta,fundamentalmente preocupada com o objecto intencional do texto, pressupeainda a ideia de que as coisas s interpelam realmente o humano e lhechegam por meio da lgica dialctica dos possveis configurados pela obra dapalavra. Interpretar participar, jogar, sendo jogado, o jogo do sentido que, medida que ganha tempo, ganha contornos novos.

    Bibliografia: P. RICOEUR, Le conflit des interprtations. Essais dhermneutique,Paris, Seuil, 1969; ID., De LInterprtation. Essai sur Freud, Paris, Seuil, 1965; P. L.,BOURGEOIS, Extension of Ricoeurs Hermeneutic, The Hague, Martinus Nijhoff, 1975;T., NKERAMIHIGO, Lhomme et la transcendence selon P.Ricoeur, Paris, Lethielleux,1984: A. DUMAS, Savoir, croyance, foi in MADISON, G. B. (ed) Sens et existence.En hommage P. Ricoeur, Paris, 1975, pp.160-169.

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    Hermenutica da suspeita

    interpretao como restaurao e confiana no sentido ope-se,desde Nietzsche e Freud, a ideia de interpretao concebida como des-mistificao e reduo de iluses da conscincia .O impacto desta ideia crticana cultura e filosofia ocidentais obriga, segundo P. Ricoeur, a repensar osentido da prpria Hermenutica. Com efeito, com Nietszche, Freud e Marx aatitude de crtica e suspeita contra a Filosofia e cultura tradicionais, baseadasna inocncia do Cogito, aparece ligada temtica da interpretao comodissoluo das grandes iluses da conscincia humana.

    Pela primeira vez, o conceito de interpretao surge ligado a uma atitudede suspeita relativamente linguagem falada pelos homens e falada aos

    homens. A interpretao fundamentalmente uma desconstruo. Remetepara uma problemtica nova que j nada tem a ver com o tradicional problemado mal-entendido ou mesmo com o do erro concebido em sentidoepistemolgico. Nem to pouco tem a ver com a problemtica da mentira emsentido moral; tem pelo contrrio com a temtica da iluso, do desvio e damscara, como modo possvel de ser do existir humano.

    O conceito de interpretao alcana, neste sentido, toda uma novaextenso. O seu novo ncleo a relao entre conscincia e iluso. Assimsendo, o objecto da interpretao j no apenas uma escrita ou texto que seoferecem compreenso, mas todo o conjunto de signos capazes de seremconsiderados como um texto a decifrar, dado o seu duplo sentido. Tais signospodem ser constitudos por um sonho, um sistema nevrtico, um rito, um mito,uma obra de arte ou pela prpria crena. Quer isto dizer: a ideia de textoaparece agora desligada da ideia de escrita. Freud, nomeadamente, fala danarrativa do sonho como de um texto inteligvel ao qual a interpretao substituium outro mais inteligvel. Tambm para Nietszche a interpretao no tem jque ver com a intencionalidade da linguagem mas sim com a tarefa de umadestruio de todos os dolos da conscincia falsa.

    Depois de Freud, Nietzsche e Marx instala-se no Ocidente a dvidaquanto conscincia. Suspeita-se radicalmente da ideia tradicional segundo aqual o sentido e a conscincia do sentido podem coincidir. Procurar o sentido

    no j soletrar a conscincia do sentido mas, implica, pelo contrrio, todo umdesfazer das cifras com que a conscincia agora uma instncia epidrmica ederivada - tem envolvido a realidade. Para os trs, a prpria conscincia no o que acredita ser. Na sua base existe algo latente o psiquismo inconsciente,a vontade de poder, o ser social que deve ser decifrado e revelado por detrsde todas as manhas do sentido consciente. Uma nova relao entre o que patente e o que est latente estrutura agora a conscincia e todo o conjuntodas suas manifestaes simblicas. A dimenso manifesta do sentido simulasempre algo de mais profundo que deve ser interpretado justamente a partirdas suas traas ou expresses.

    A genealogia da moral no sentido de Nietzsche, a teoria marxista das

    ideologias e a teoria freudiana dos ideais e iluses so "trs processos

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    convergentes de retirar as mscaras que criam, com e contra os preconceitosda poca, uma cincia mediata do sentido irredutvel conscincia imediatadeste. A suspeita quanto s iluses da conscincia agora o motor verdadeirode toda a interpretao, que no pode j entender-se como uma recepo dosentido. Pelo contrrio, face iluso, funo fabuladora da conscincia, a

    hermenutica, que arranca as mscaras, exige a rude disciplina danecessidade. Contesta-se radicalmente a expectativa ou confiana no ncleopotico da linguagem, prpria da hermenutica que acredita na dimensointencional dos smbolos. interpretao cabe agora apenas destruir mscarase disfarces para chegar a um originrio no lingustico, nem poitico, que noentanto quer ser dito e nada sem a linguagem, apesar de se disfarar. Odesejo nada sem as expresses em que se diz, de modo disfarado, e emque pode ser lido. Tal o princpio da interpretao psicanaltica dos sonhos.

    A Hermenutica aparece assim como uma rea nada pacfica. Muitopelo contrrio, ela mostra ser percorrida por linhas divergentes e at rivais.Para Ricoeur, este um dos principais mritos da hermenutica da suspeita:

    fazer-nos tomar conscincia que no existe uma hermenutica universal; queno existe um cdigo universal para a interpretao, apenas linhas divergentese at opostas. E que esta tenso a prpria condio da significaolingustica e da interpretao e a expresso mais verdica da nossamodernidade. Oscilamos hoje entre a vontade de escuta e a vontade desuspeita, entre o voto de rigor e o voto de obedincia. Mas, como nos diz ofilsofo "talvez o iconoclasmo mais extremo pertena restaurao dosentido".

    A Hermenutica da suspeita alarga o horizonte da hermenutica daconfiana, permitindo-lhe passar de uma confiana ingnua a uma confianafundamentalmente crtica. Para Ricoeur esta atitude de suspeita valiosa em sipelo seu voto de rigor, pela noo de smbolo que pressupe e pelo modocomo obriga a Hermenutica a apropriar a temtica do conflito dasinterpretaes. Mas deve ser integrada pela hermenutica da confiana pois,enquanto atitude de pura suspeita, niilista, e no leva a lado algum. O seuvalor reside no modo como nos obriga a solidificar uma confiana queatravessou j a prova da dvida e como nos conduz ao exerccio doreconhecimento.

    Bibliografia: P. RICOEUR, Le Conflit des interprtations. Essais dhermneutique,Paris, Seuil, 1969; ID., De LInterprtation. Essai sur Freud, Paris, Seuil, 1965; P.L.BOURGEOIS, Extension of Ricoeurs Hermeneutic,The Hague, Martinus Nijhoff, 1975;F. DOSSE, P.RICOEUR, Le sens dune Vie, Paris, La Dcouverte,1997.

    Jogo

    Conceito chave da meditao gadameriana sobre a experincia da obrade arte uma experincia hermenutica com o qual o autor discute asubjectivao ps-kantiana da problemtica filosfica da esttica. A tese defundo de que o autor parte a seguinte: a experincia da obra de arte e a

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    experincia do literrio obrigam a alargar o conceito cientfico habitual deexperincia, pois, suspendem os parmetros possessivos do mtodo, como vianica da verdade. Elas no deixam, no entanto, de representar uma formavlida do conhecimento humano e da verdade (a do verosmil), embora isto notenha sido admitido por Kant.

    Para Gadamer, o encontro com a arte ou com o texto uma forma deconhecimento, um conhecimento especial, porque simultaneamente umconhecimento de algo e um conhecimento de si ou um enriquecimento que sereflecte no modo de ser e de habitar o mundo do existir. Ora, aps a nossamodernidade, reconhecer este tipo de conhecimento, exige que se discuta alimitao do mbito intersubjectivo do sentido da obra de arte ao juzo formaldo gosto ou ao do gnio romntico, que se limita ideia de reconstruo. preciso defender a experincia de sentido transmitida pela obra de arte ou pelaobra literria como um precioso modo relacional da auto-compreensohumana, esquecido e desvalorizado pelo pacto estabelecido a partir damodernidade entre verdade e mtodo. preciso perceb-lo como um outro

    modo de habitar o mundo, o da relao, que urge reabilitar, quando finalmentese compreende, depois da crise das filosofias do sujeito, que o homem tambmhabita o mundo de modo potico e ldico, sendo esta dimenso simblica alisa sua natureza distintiva.

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