concepção de roubo em pré-escolares

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Educação & Sociedade, ano XVIII, nº 59, agosto/97 351 Concepção de roubo em pré-escolares Raul Aragão Martins* RESUMO: Partindo do trabalho pioneiro de J. Piaget, O julgamen- to moral da criança, revisamos as contribuições para este estu- do sobre a concepção de roubo em crianças. Usando uma histó- ria que envolve um pequeno roubo examinamos como pré-esco- lares respondem a questões sobre o roubo ser certo ou errado, o porquê dessa resposta, assim como avaliamos a percepção da criança à presença, à contingência e à relatividade de regras. Ten- do como sujeitos 80 crianças de duas pré-escolas, uma pública e outra particular, cada escola dividida em duas turmas, encontra- mos que todas as crianças têm noção da regra de o roubo ser er- rado e ao justificarem essa resposta apresentam cinco tipos de argumentos, assim como já apresentam julgamentos em função da intenção. Resultados são discutidos em termos da teoria de desen- volvimento moral de Piaget. Palavras-chave: Julgamento moral, regras, construtivismo, educação pré- escolar A posição de J. Piaget Piaget (1977) elaborou sua teoria de desenvolvimento moral com base nos resultados obtidos em uma série de pesquisas sobre eventos sociais correntes, onde seu maior interesse era estudar os julgamentos * Professor do Departamento de Educação do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista - Unesp, campus de São José do Rio Preto.

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Partindo do trabalho pioneiro de J. Piaget, O julgamentomoral da criança, revisamos as contribuições para este estudosobre a concepção de roubo em crianças. Usando uma históriaque envolve um pequeno roubo examinamos como pré-escolaresrespondem a questões sobre o roubo ser certo ou errado,o porquê dessa resposta

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  • Educao & Sociedade, ano XVIII, n 59, agosto/97 351

    Concepo de roubo em pr-escolares

    Raul Arago Martins*

    RESUMO: Partindo do trabalho pioneiro de J. Piaget, O julgamen-to moral da criana, revisamos as contribuies para este estu-do sobre a concepo de roubo em crianas. Usando uma hist-ria que envolve um pequeno roubo examinamos como pr-esco-lares respondem a questes sobre o roubo ser certo ou errado,o porqu dessa resposta, assim como avaliamos a percepo dacriana presena, contingncia e relatividade de regras. Ten-do como sujeitos 80 crianas de duas pr-escolas, uma pblica eoutra particular, cada escola dividida em duas turmas, encontra-mos que todas as crianas tm noo da regra de o roubo ser er-rado e ao justificarem essa resposta apresentam cinco tipos deargumentos, assim como j apresentam julgamentos em funo dainteno. Resultados so discutidos em termos da teoria de desen-volvimento moral de Piaget.

    Palavras-chave: Julgamento moral, regras, construtivismo, educao pr-escolar

    A posio de J. Piaget

    Piaget (1977) elaborou sua teoria de desenvolvimento moral combase nos resultados obtidos em uma srie de pesquisas sobre eventossociais correntes, onde seu maior interesse era estudar os julgamentos

    * Professor do Departamento de Educao do Instituto de Biocincias, Letras e CinciasExatas da Universidade Estadual Paulista - Unesp, campus de So Jos do Rio Preto.

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    que as crianas faziam sobre esses eventos, excluindo os comportamen-tos e os sentimentos morais.

    Tendo como considerao bsica que as crianas apresentamum desenvolvimento mental e que em todas as sociedades h umconjunto de regras, colocou como interrogao o processo de comoestas se adaptam s regras em funo de seu desenvolvimento men-tal, e que ao tomarem conscincia destas regras, que obrigaes re-sultam para elas.

    Procurando desvendar a construo do conhecimento social ela-borou um mtodo de estudo em que primeiro pesquisou o jogo social in-fantil, o de bolinhas de gude, entre os meninos, e o de pique, entre asmeninas, por considerar estas atividades, com toda sua estrutura de re-gras, um reflexo da sociedade total, manejada por crianas.

    Os resultados dessas pesquisas mostram trs nveis de julga-mento: 1) a regra motora (at 2 anos):1 sua origem confunde-se como hbito, com a repetio dos esquemas de adaptao motora; 2) re-gra do respeito unilateral (entre 2 e 10 anos): a criana, estandoinserida num meio social, observa as outras crianas mais velhas jo-gando de certo modo; assim surge o sentimento de que ela prpriadeve jogar desse modo. A regra imitada sentida como obrigatria esagrada; 3) regra do respeito mtuo (a partir dos 10 anos): com a con-tinuao do desenvolvimento a criana dissocia seu eu do pensamen-to do outro, discute de igual para igual, procura solues prprias,mas essencialmente passa a compreender o outro e fazer-se compre-ender.

    Para uma melhor compreenso da passagem da regra do respei-to unilateral para o respeito mtuo, Piaget (1977) procura respostas nasociologia e num aprofundamento da pesquisa.

    Na sociologia encontra Durkheim e Bovet. Para o primeiro o res-peito se dirige ao grupo e resulta da presso deste sobre o indivduo, eo ltimo considera que este mesmo respeito se encaminha s pessoase provm das relaes dos indivduos entre si.

    A partir dessas duas posies, considera que as teorias deDurkheim e de Bovet, antes de serem antagnicas, so, isto sim, comple-mentares, e levam-nos a crer na existncia de dois tipos de respeito ten-do em vista o desenvolvimento mental da criana: 1) o respeito unilate-ral ou o respeito do menor pelo maior, que leva a criana pequena a acei-

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    tar as instrues recebidas dos maiores (pais, colegas mais velhos etc.);2) o respeito mtuo e pela prpria regra.

    Com a finalidade de melhor compreender o desenvolvimento mo-ral da criana, principalmente a questo da coao adulta na formaodo respeito unilateral e o papel da cooperao na constituio do res-peito recproco, Piaget (1977) elabora uma srie de entrevistas, nasquais conta histrias sobre desajeitamentos (Martins 1988 revisa estetema), mentiras e roubos.

    Na pesquisa sobre o roubo2 Piaget (1977) conta dois pares de his-trias e coloca duas questes s crianas: 1) As crianas so igualmen-te culpadas (ou, como dizem os pequenos genebreses, so todas vils),ou ento uma mais culpada que a outra? 2) Qual das duas mais vile por qu? (Piaget 1977, p. 108).

    No primeiro par de histrias temos os seguintes enredos: a) ummenino roubando um po para um colega pobre; b) uma menina rouban-do uma fita que acha que ficar bem em sua roupa. No segundo par te-mos: a) uma menina soltando um passarinho de uma amiga e esconden-do a gaiola; b) uma menina roubando bombons de sua me.

    Em termos gerais Piaget encontrou que as crianas menores jul-gam apenas em funo das conseqncias do ato, e as maiores, em fun-o da inteno do ator, isto , os pequenos consideraram, no primeiropar de histrias, mais vilo o menino que roubou o po do que a me-nina que roubou a fita, e no segundo par consideraram que ao escon-der a gaiola (na primeira histria do par) a menina desta histria deu maisprejuzo outra menina do que a menina que roubou bombons da me.

    Piaget (1977) considera que as crianas menores apresentam estetipo de julgamento em funo da educao recebida. Ele observa que osadultos so os primeiros a reclamar das conseqncias materiais dos atosinfantis, brigando e ralhando com as crianas ao verem coisas estragadas,mais do que procurando saber das intenes de cada ato.

    criada toda uma cultura de que qualquer ato com conseqnci-as danosas para o adulto punido, independentemente da inteno doator. Como a criana, em funo de seu desenvolvimento cognitivo, noconsegue ver outros pontos de vista que no os dos adultos, raciocinaem termos desta nica possibilidade, que vem atravs da coao doadulto, e julga somente em funo das conseqncias, tendo uma res-ponsabilidade objetiva dos atos.

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    Novas pesquisas

    Aps expor sua teoria sobre o desenvolvimento moral da criana,Piaget (1977) voltou-se quase que totalmente para o estudo do desen-volvimento cognitivo, pesquisando noes como a construo dos con-ceitos de causalidade, espao, tempo e principalmente procurando ela-borar uma epistemologia gentica, isto , a gnese do conhecimento nohomem.

    Mas enquanto Piaget pesquisa a construo do conhecimento l-gico-matemtico, seu trabalho pioneiro, O julgamento moral na criana,comea caminho prprio, o que fica evidenciado no nmero de pesqui-sas que desencadeou. Numa posio retrospectiva, podemos considerarque h trs grandes linhas de estudo sobre esta teoria de desenvolvi-mento moral (Martins 1991).

    A primeira linha se refere s pesquisas que procuram detalhar oucorroborar aspectos particulares da teoria. A segunda so estudos vol-tados para a compreenso do julgamento moral e a busca de instrumen-tos para medi-lo, e a terceira e ltima se refere s pesquisas que, par-tindo da teoria de desenvolvimento moral de Piaget, procuram uma novaforma de compreenso e explicao para o desenvolvimento sociomoralda criana.

    Revisando as pesquisas que procuraram detalhar esta teoria en-contramos trs estudos sobre o roubo. No primeiro deles DeGroot (1982),usando a mesma metodologia de Piaget (1977), a de apresentao dehistrias pareadas, investiga o julgamento de inteno e conseqncia,em histrias envolvendo roubos, em cinco grupos de crianas (de jardim-de-infncia a 5 srie) e encontra resultados iguais aos de Piaget, isto ,as crianas menores julgam quase que exclusivamente em funo dasconseqncias dos atos.

    No segundo estudo, Buldain, Crano e Wegner (1982), usando novametodologia (Martins 1988 revisa esta nova metodologia), variam a ida-de dos protagonistas nas histrias apresentadas e encontram que o jul-gamento das crianas depende da idade do ator.

    No ltimo estudo Peisach e Hardman (1983) examinam respostasde crianas de 1 srie (mdia de idade de 6,4 anos) s seguintes ques-tes: certo ou errado roubar? Por qu? e Seria certo roubar se nofssemos descobertos? Por qu?. Neste estudo a preocupao no

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    somente com a questo da inteno e da conseqncia, mas principal-mente com a qualidade das respostas, pois atravs destas podemosanalisar o tipo de julgamento que a criana est fazendo e ter uma me-lhor compreenso de seu desenvolvimento moral.

    Resultados mostram que trs quartos das respostas so elabora-das em termos de busca de aprovao social, cuidados em no causardanos aos outros e preservao de relaes sociais.

    Temos que o estudo da noo de roubo entre crianas ainda pe-queno, embora com resultados consistentes, mostrando de forma geralque as crianas pequenas (menores de 7 anos) fazem julgamento emfuno das conseqncias dos atos e as maiores, em funo das inten-es dos atores. Mas ao mesmo tempo temos que os estudos de Buldainet al. (1982) e Peisach e Hardman (1983) mostram que existem muitasoutras variveis a serem exploradas at termos um quadro mais comple-to da construo desta noo, principalmente entre crianas pr-escola-res, segmento ainda no explorado.

    Dentro desta perspectiva pretendemos estudar como pr-escola-res consideram o roubo, as justificativas que usam para consider-lo cer-to ou errado, assim como avaliaremos o julgamento da contingncia e darelatividade da regra. Teremos como sujeitos crianas de instituies p-blica e particular da cidade de So Jos do Rio Preto, localizada no in-terior do estado de So Paulo.

    Metodologia

    Grupo pesquisado

    O grupo pesquisado consta de 80 crianas (aproximadamente me-tade de cada sexo) de duas pr-escolas da cidade de So Jos do RioPreto (SP), com as seguintes caractersticas:

    Grupo n 1 (pr-escola pblica): 40 crianas distribudas em duasturmas de 20. A primeira turma chamada de pr-1 com idade m-dia de 5,68 anos e a segunda turma chamada de pr-2 com ida-de mdia de 6,45 anos. Estas crianas esto matriculadas numapr-escola municipal situada num bairro de classe mdia baixa.

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    Grupo n 2 (pr-escola particular): como no grupo anterior te-mos o mesmo nmero de crianas total e por srie, sendo queas idades mdias so as seguintes: pr-1 = 5,50 anos; pr-2= 6,13 anos. A escola estudada uma cooperativa de ensinoconstruda e organizada por pais de classe mdia desconten-tes com a qualidade de ensino oferecida pela rede pblica ecom os preos cobrados pelas escolas particulares.

    Esquema do estudo

    Este estudo avalia como crianas consideram o roubo. Para tan-to examinamos a forma como elas justificam ser este ato social certo ouerrado, assim como examinamos os seguintes critrios de aplicao daregra relativa a este ato: a) se a regra dependente de leis escritas, doconsenso da populao ou vlida por suas caractersticas intrnsecas;b) se a regra depende de local ou tempo para ser aplicada, como, porexemplo, ter validade na cidade do Rio de Janeiro, mas no em SoJos do Rio Preto.

    Instrumentos

    Histrias: construmos uma histria, com duas verses (uma fe-minina e outra masculina), seguindo os critrios de uma histria bemconstruda de Stein e Glenn (1979), que ficou com a seguinte forma:

    Este(a) menino(a) estava indo para a escola pensando numa ca-neta, mas ele(a) no tinha dinheiro para compr-la. Ento ele(a)entrou numa papelaria e pensou em pegar uma caneta para ele(a)quando ningum estivesse olhando. Ento ele(a) colocou uma ca-neta no bolso e saiu da loja sem pag-la.

    Figuras: com a finalidade de contrabalanar o efeito memorizaoda histria, principalmente com as crianas menores, foram construdasduas sries (uma feminina e outra masculina) de trs desenhos cadauma, mostrando o personagem da histria em ao.

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    Procedimento

    O experimentador pega cada criana diretamente na sala de aula,aps a mesma ter sido aleatoriamente escolhida dentro de sua faixaetria e turma e leva-a para a sala onde feita a entrevista.

    Na sesso experimental falado para cada criana ouvir atenta-mente a histria e acompanh-la atravs das figuras, porque ela deve-r repeti-la em voz alta. Aps ter ouvido a histria fazemos perguntas-chave para avaliar a memria e a compreenso da histria e comeamosa entrevista que consta das seguintes questes: 1) certo ou errado oque o(a) menino(a) fez?; 2) Por qu?; 3) Existe alguma lei ou regra proi-bindo isto aqui na escola?; 4) Se no fosse proibido (ou errado) ele(a)poderia ter pego a caneta sem pagar? (contingncia da regra); 5) Seriacerto pegar a caneta sem pagar em outra cidade? (relatividade da regra).

    Resultados

    Questo n 1

    Esta questo pergunta se certo ou errado o que o personagemda histria fez. Temos 100% das crianas respondendo que o persona-gem da histria fez uma coisa errada. Embora no tenhamos nos referi-do, na histria, como tendo havido um roubo falamos que a crianacolocou uma caneta no bolso e saiu sem pag-la , as crianas perce-bem o ato como um roubo e, conseqentemente, consideram-no errado.

    Questo n 2

    Nesta questo perguntamos s crianas por que consideraram er-rado o evento relatado na histria.

    Num primeiro momento foram classificados todos os tipos de jus-tificativas usadas pelas crianas, formando o seguinte conjunto de cin-co categorias:

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    1 - regra simples: justificativa baseada no fato de ter-se que pa-gar para levar o que est venda nas lojas. Exemplos: Porque tem quepagar, Porque no tinha dinheiro, No se deve roubar as coisas, seno tem dinheiro no compra. Nesta categoria fica evidente que paraestas crianas necessrio ter-se dinheiro para comprar coisas nas lo-jas. A regra para elas simples: troca-se dinheiro por mercadoria.

    2 - respostas estereotpicas: justificativa caracterizando o ato comoroubo ou o ator como ladro. Exemplos: roubar, Ele ladro, Rou-bou, s ladro que faz isso, menino no faz. Nesta categoria vemos ascrianas simplesmente repetindo um esteretipo. No fazem aluso a re-gras, simplesmente uma classificao.

    3 - evitao de punio: justificativa caracterizando o ato como rou-bo ou o ator como ladro (como na categoria anterior), mas colocandoque o ator pode ser castigado ou preso pela polcia. Exemplos: No pode,seno vai para a cadeia, Pode chamar a polcia, no certo, Porquesem pagar vai preso. Temos, nesta categoria, que as crianas sabem queo ator da histria est cometendo um ato errado e que pode ser punidopor isso. Fica bem claro o medo da punio.

    4 - apelo religio: caracterizao do ato como pecado ou queDeus ou Jesus no gosta que seja feito. Exemplos: pecado, Jesusno gosta que roube, vai preso, Deus no gosta, pecado.

    5 - indiferenciadas: abrange as respostas que no retratam umapreocupao com o fato descrito, simplesmente respondem que no sa-bem por que errado o ato (como afirmaram na questo anterior) ou dorespostas apelando a um esteretipo mais simples ( feio) do que o usa-do na segunda categoria ( roubo). Exemplos: No sei, No pode, feio, Porque sim ou Porque o homem fica bravo.

    Destas cinco categorias consideramos apenas a primeira comouma resposta mais elaborada, em que notamos a preocupao com umareciprocidade simples, isto , eu pego a caneta, mas deixo o dinheiropor ela. Aqui a criana comea a formar uma regra social.

    Na categoria seguinte temos que as crianas associaram o atodescrito na histria a uma palavra: roubo, sem nenhuma elaboraodo que seja roubo. Sabem simplesmente que algo errado e que nopode ser feito.

    Na terceira e quarta categorias temos as crianas colocando o atocomo roubo, como no item anterior, mas acrescentando o medo da pu-

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    nio, que pode ser via polcia ou atravs de Deus, demonstrando quesuas aes passam por simples imposies externas.

    A ltima categoria mostra as respostas mais simples, que no con-seguem nem ser estereotipadas como a segunda categoria; so respos-tas que simplesmente consideram o ato como errado ou feio, sem umajustificativa mais elaborada.

    Aps essa classificao foram calculadas as freqncias observa-das e as percentagens de cada uma dessas categorias de justificao,por turma e escola (Tabela e Grfico 1).

    Tabela 1 - Freqncia observada e percentagem de respostas dasquatro turmas por categoria de justificativa

    Pr-1 pblica Pr-2 pblica Pr-1 coop. Pr-2 coop.

    Regra simples 7 (35) 5 (25) 10 (50) 13 (65)Estereotipada 3 (15) 6 (30) 2 (10) 3 (15)Evit. punio 5 (25) 3 (15) 4 (20) 2 (10)Religio 0 (00) 3 (15) 0 (00) 0 (00)Outras 5 (25) 3 (15) 4 (20) 2 (10)

    20 (100) 20 (100) 20 (100) 20 (100)

    Obs.: Entre parnteses as percentagens.

    0

    10

    20

    30

    40

    50

    60

    70

    regra simples esteriotpica evit. punio religio outrasCategorias

    %

    Pr-1 PubPr-2 PubPr-1 CoopPr-2 Coop

    Grfico 1 - Categorias de justificao por srie e escola

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    Dentro de nossa perspectiva, a categoria regra simples a maiselaborada em termos de raciocnio social e, dessa forma, a que nos in-teressa mais. Num primeiro momento pretendamos fazer uma anlisecomparando os resultados obtidos nas duas escolas. Mas ao observar-mos os dados consideramos que a sua interpretao fica mais clara seprimeiro olharmos isoladamente cada escola, para depois fazermos umacomparao entre ambas.

    Ao observarmos os resultados da escola pblica notamos queh um decrscimo do uso da categoria regra simples do pr-1 parao pr-2, quando o esperado seria justamente o contrrio. Encontramoso mesmo padro na categoria estereotpica, as crianas menoresusando menos esta categoria do que as maiores, quando o inversoseria o esperado. Nas categorias evitao de punio e outras hum decrscimo de uso das menores para as maiores. E um ltimodado: entre os maiores encontramos trs crianas fazendo uso da jus-tificativa religio.

    Quanto s crianas da escola cooperativa encontramos um usoacentuado da regra simples, com a metade das crianas do pr-1 fa-zendo uso desta regra, nmero que sobe para 65% nas crianas da tur-ma pr-2. Ao somarmos os dados das duas turmas da escola cooperati-va encontramos 23 crianas fazendo uso da regra simples enquantotemos s 12 crianas fazendo uso desta regra na escola pblica.

    Com a categoria estereotpica encontramos pequeno uso nasduas turmas, embora a turma pr-2 tenha uma criana a mais apresen-tando esta justificativa. Nas categorias evitao de punio e outrash um decrscimo de uso da turma pr-1 para a turma pr-2, e na cate-goria religio nenhuma das crianas desta escola apresentou esta jus-tificativa.

    Questo n 3

    Esta questo pergunta s crianas se h alguma lei, regra ouregulamento na escola delas proibindo o ato relatado na histria. En-contramos praticamente unanimidade entre as crianas que no sepode roubar na escola. Somente uma criana afirmou que no h estaregra em sua escola (escola pblica). Mas quando interrogada nosoube explicar por que dava esta resposta, e ao analisarmos suas

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    outras respostas encontramos que ela usou a justificativa regra sim-ples para considerar errado o que o ator da histria tinha feito; assim,consideramos que esta sua resposta reflexo do no-entendimentoda pergunta.

    Questo n 4

    Nesta questo perguntamos s crianas se, caso no fosse proi-bido (ou errado), ele(a) poderia ter pego a caneta sem pagar. Com estapergunta queremos saber se as crianas consideram o ato errado em simesmo, como algo que deva ser proibido por suas conseqncias intrn-secas, ou errado por ter leis e regras proibindo-o.

    Ao olharmos os dados (Tabela 2) encontramos entre as turmas pr-1 pblicas e as duas turmas da cooperativa o mesmo padro de respostas,isto , a maior parte delas responde que este ato no poderia ser feito mes-mo que no fosse proibido ou que no existissem regras a respeito.

    Tabela 2 - Freqncia observada e percentagem de respostas dasquatro turmas - Questes 4 e 5 - Contingncia e relatividade da regra

    Obs.: Entre parnteses as percentagens.

    Quanto turma pr-2 pblica encontramos 11 crianas (55% destaturma) respondendo afirmativamente questo; assim, dessa forma, paraelas o ator da histria poderia ter feito o fato relatado se no houvesseregras ou leis impedindo.

    Pr-1 Pblica Pr-2 Pblica Pr-1 Coop. Pr-2 Coop.Contin. Relat. Contin. Relat. Contin. Relat. Contin. Relat.

    Sim 3 (15) 0 (00) 11 (55) 2 (10) 3 (15) 1 (05) 4 (20) 0 (00)

    No 17 (85) 20 (100) 9 (45) 18 (90) 17 (85) 19 (95) 16 (80) 20 (100)

    20 (100) 20 (100) 20 (100) 20 (100) 20 (100) 20 (100) 20 (100) 20 (100)

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    Analisando melhor essas 11 crianas encontramos que apenastrs delas usaram a categoria nmero um, regra simples, que a maiselaborada, cinco deram respostas estereotpicas e as trs restantes usa-ram, cada uma, as trs ltimas justificativas.

    Questo n 5

    Nesta ltima questo perguntamos s crianas se seria certo pe-gar a caneta sem pagar em outra cidade. Aqui queremos saber se as cri-anas consideram o ato errado por haver a possibilidade de adultos ououtras pessoas conhecidas estarem vigiando-as ou por suas conseqn-cias intrnsecas, como colocado na questo anterior.

    Temos somente trs crianas (Tabela 2), duas da turma pr-2 p-blica e uma da pr-1 cooperativa, respondendo que o ator poderia fazera mesma coisa em outra cidade. Este resultado mostra que praticamen-te todas as crianas compreendem este ato social.

    Discusso

    Ao optarmos por esta metodologia de estudo, o uso de uma his-tria padronizada, que sabemos ser facilmente compreensvel por crian-as pr-escolares, no corremos o risco de ter resultados equivocadosdevido forma como construmos e apresentamos os estmulos.

    Como j citamos, o trabalho pioneiro de Piaget baseado no usode histrias pareadas, com estmulos discrepantes, que faziam com queas crianas pequenas se concentrassem apenas na ltima informao re-cebida, que geralmente era a conseqncia do ato.

    Nos outros trs estudos, um usa o mesmo procedimento piagetiano(DeGroot 1982) e obtm os mesmos resultados; no seguinte, com o usode histrias nicas os resultados j mostram que o julgamento da inten-o e a conseqncia variam de acordo com a idade do personagem dahistria (Buldain et al. 1982); e no ltimo trabalho no temos o uso de his-trias; a mentira e o roubo so pesquisados em termos hipotticos(Peisach e Hardeman 1983).

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    Resultados mostraram que nossa escolha metodolgica foi ade-quada, pois embora no tenhamos colocado na histria que estava ha-vendo um roubo, todas as crianas perceberam o ato descrito como tal.Assim, conseguimos nosso primeiro objetivo: ter um estmulo quase co-tidiano, que no estivesse tanto sob o domnio do adulto, isto , as cri-anas tendo a noo de que o adulto poderia no vir a saber do ato, paraque pudssemos avaliar como elas realmente raciocinam em uma situ-ao possvel.

    Ao fazermos nossa anlise, consideramos que este raciocnio mais complexo que o pensado por Piaget. As crianas no apresentamsomente um julgamento em termos de inteno e conseqncia, isto ,os maiores raciocinando em termos do porqu do ato e os menores, emtermos de seus resultados.

    Como Buldain et al. (1982) sugerem, existem mais variveis envol-vidas neste raciocnio, principalmente quando analisamos as explica-es dadas, nas quais vemos surgirem cinco padres de respostas, damais elaborada, a regra simples, em que encontramos como justifica-tiva de ser errado o roubo, a quebra da norma de reciprocidade, para ter-mos um bem precisamos dar algo em troca, a respostas indiferenciadas,que simplesmente acham feio o ato, sem maiores argumentos.

    Tendo a anlise das justificativas como principal ponto, encontra-mos as crianas da escola cooperativa usando mais a regra simples doque as crianas da escola pblica, e este uso crescendo com a escola-ridade. Ao olharmos as duas escolas encontramos dois grupos sociaisdiferentes com duas propostas escolares tambm diferentes.

    Na escola pblica temos uma clientela provinda de dois bairros.Um de classe mdia e outro de classe pobre, embora sejam as crianasdeste ltimo bairro que procurem mais esta pr-escola. Em termos peda-ggicos, poca da pesquisa predominava uma orientao voltada parao desenvolvimento psicomotor da criana.

    A escola cooperativa uma proposta nova em termos estruturaise pedaggicos e o resultado de dois fatores. Como primeiro fator temosa insatisfao de uma classe mdia com a qualidade da escola pblicae em segundo, o preo cobrado pelas escolas particulares, que muitasvezes no acompanhado da qualidade correspondente ao valor pago.Dentro deste quadro, famlias de classe mdia montaram uma coopera-tiva, que construiu um prdio, contratou um grupo de profissionais do se-

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    tor da educao para implantar uma proposta pedaggica, que no per-odo da pesquisa estava em andamento.

    Dentro destas circunstncias no podemos afirmar qual foi o fatorpreponderante no maior uso da justificativa regra simples por parte dascrianas da escola cooperativa, mas podemos colocar como indicadorespara futuras pesquisas o nvel de instruo dos pais, o tipo de justifica-tivas usadas por estes pais diante do ato usado nesta pesquisa, orien-tao pedaggica da escola e a atuao das professoras no dia-a-dia dasala de aula.

    Comparando nossas categorias de justificao com a questo dainteno e da conseqncia de Piaget, temos a regra simples como umjulgamento em que predomina o raciocnio da inteno, e evitao depunio e religio, que temem o castigo, como um julgamento em ter-mos de conseqncias. Sendo assim, encontramos apenas oito crianas(em 40) de escola pblica e seis (tambm em 40) de escola cooperativausando este tipo de julgamento, desta forma mostrando que julgamen-to, via intencionalidade, mais precoce que Piaget considerava (Piaget1977), resultado este em harmonia com os de Martins (1988).

    Ao olharmos os resultados da questo nmero trs, a percepoda criana quanto existncia de regras, notrio que todas elas j tmnoo do funcionamento da sociedade. Precisaramos pesquisar com cri-anas ainda menores do que as deste estudo para termos uma melhorcompreenso da gnese deste conhecimento social.

    Na quarta questo, creio que seja a mais complexa, temos umapergunta em que a criana tem que sair de um ponto de vista e passarpara outro, isto , tem que descentrar seu pensamento, tem que pen-sar na possibilidade de um fato ser errado independentemente de umaregra social explcita. Dessa forma, temos que analisar estes resultados,em que trs (das quatro turmas) deram respostas negativas, isto , nopoderiam roubar independentemente da regra, e uma turma teve 55%das crianas dando respostas positivas.

    Ao analisarmos as trs turmas que deram respostas no paraesta questo (as duas da cooperativa e a pr-1 da escola pbica) pode-mos pensar que estas crianas, tendo considerado o ato como errado,ao responderem primeira questo, passaram a consider-lo como er-rado, independentemente de qualquer nova situao, raciocnio centradoem apenas um aspecto do ato.

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    Quanto ao raciocnio das 11 crianas da turma pr-2 da escola p-blica ficamos somente diante de hipteses. Uma deles seria uma formamais elaborada de raciocnio, pois tendo a possibilidade de no ser er-rado ou ter regra regulamentando o ato, este ento seria legal e, dessaforma, permissvel. A outra hiptese de que estas crianas realmenteno tenham entendido a questo. Mas para termos uma resposta a estaquesto precisamos fazer novas investigaes.

    Finalmente, a ltima questo, a que aborda o controle adulto so-bre os atos das crianas. Temos praticamente todas elas considerandoque no poderiam transgredir em outro local ou cidade. Aqui tambm te-mos duas alternativas. A primeira: as crianas j terem uma conscinciade que o ato errado independentemente da ao do adulto; e a segun-da: as crianas continuarem respondendo como no podendo a qualquerquesto, pois, como j colocamos, no comeo da entrevista elas afirma-ram que o evento descrito errado, e assim elas tm que manter a coe-rncia por toda a entrevista.

    Aps analisarmos todos estes dados consideramos que consegui-mos levantar um pouco do vu que cobre a construo do conhecimen-to social entre crianas de nossa sociedade, mas como todo estudo ini-cial levanta mais respostas do que as responde, pretendemos dar con-tinuidade a estas investigaes.

    Notas

    1. Estas idades no devem ser vistas como absolutas e sim como mdias.

    2. Legalmente a histria retrata um furto, mas seguindo Piaget as pesquisascontinuam usando o termo roubo para retratar estes eventos.

    Kindergarten childrens conception of stealing

    ABSTRACT: From the pioneering work of J. Piaget The moraljudgment of the child we have reviewed the contributions to thisstudy of childrens conception of stealing . Using a story about aminor theft, we examined how kindergarten children answerquestions about the right and wrong of stealing and now theyjustified their answers. In addition we examined childrens perception

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    of the existence, contingence and relativity of rules. We examined80 children from a public and a private school, each divided in twogroups. The results have shown that children have a notion ofstealing as a wrong act and to justify these answers they show fivepatterns of justifications, as well as judgment of intentionality.Results were discussed in terms of Piagets moral developmenttheory.

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