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CONSIDERAÇÕES ACERCA DA VIVÊNCIA DA SOLIDÃO COMO FENÔMENO DA MODERNIDADE Dílcio Dantas Guedes' Clara Virgínia de Queiroz Pinheiro" RESUMO o artigo propõe articular algumas consideraçõesacerca doftnômeno da solidão, buscando entendê-lá apartir de leituras sobre a modernidade e subjetividade, e na perspectiva ftnomenológico-existencial. Inicialmente expõe uma trajetória histórica sobre a modernidade como contexto social, político e científico e, em seguida, aponta elementos para a conexão teórica entre oftnômeno da solidão e a historicização da categoria subjetividade frente à temática problematizada. Palavras-chave: solidão, subjetividade, modernidade. Considerations about tbe experiencing of loneliness as a phenomenon of modernity ABSTRACT The article intends to articu Iate some considerations about the lonelinessphenomenon trying to understand it through the modernity and subjectivity, and in an existen tia Iphenomenology perspective. First, a historical path for modernity as a social,political and scientific context is exposed and second, elementsfor a theoretical connection between the phenomenon ofsolitude and historicity of the category ofsubjectivity in this topic are raised. Key words: loneliness, subjectivity, modernity . . Psicólogo, psicoterapeura, aluno do Mesrrado em Psicologia e Subjetividade da Universidade de Fortaleza (UNIFORJ, professor do Curso de Psicologia da Faculdade Santo Agostinho (Teresina-PI). E-mail: [email protected] .. Professora do Curso de Psicologia da Universidade de Fortaleza, doutoranda pela UER] e colaboradora do Mestrado em Psicologia e Subjetividade da UNIFOR 58 Revista de Psicologia, Fortaleza, Vl7( 112) V18( 112) p.58-64 jan.ldez. 1999/2000

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CONSIDERAÇÕES ACERCA DA VIVÊNCIA DASOLIDÃO COMO FENÔMENO DA MODERNIDADE

Dílcio Dantas Guedes'Clara Virgínia de Queiroz Pinheiro"

RESUMOo artigo propõe articular algumas consideraçõesacerca doftnômeno da solidão, buscando entendê-lá apartir

de leituras sobre a modernidade e subjetividade, e na perspectiva ftnomenológico-existencial. Inicialmente expõeuma trajetória histórica sobre a modernidade como contexto social, político e científico e, em seguida, apontaelementos para a conexão teórica entre oftnômeno da solidão e a historicização da categoria subjetividade frenteà temática problematizada.

Palavras-chave: solidão, subjetividade, modernidade.

Considerations about tbe experiencing of loneliness as a phenomenon of modernity

ABSTRACTThe article intends to articu Iate some considerations about the lonelinessphenomenon trying to understand it

through the modernity and subjectivity, and in an existen tia Iphenomenology perspective. First, a historical pathfor modernity as a social,political and scientific context is exposed and second, elements for a theoretical connectionbetween the phenomenon ofsolitude and historicity of the category ofsubjectivity in this topic are raised.

Key words: loneliness, subjectivity, modernity .

. Psicólogo, psicoterapeura, aluno do Mesrrado em Psicologia e Subjetividade da Universidade de Fortaleza (UNIFORJ, professor do Curso de Psicologia daFaculdade Santo Agostinho (Teresina-PI). E-mail: [email protected].. Professora do Curso de Psicologia da Universidade de Fortaleza, doutoranda pela UER] e colaboradora do Mestrado em Psicologia e Subjetividade daUNIFOR

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Há o reconhecimento de que a vida urbanacompromete as inter-relações pessoais, pois tende adiminuir os contatos primários, substituindo-ospelos contatos impessoais, ou, até, indiferentes, pro-movendo o isolamento entre si. É o que Pinheiro(1983) vai chamar de distância social- mesmo como advento do crescimento físico-ambiental e apro-ximação humana geopolítica, a privacidade tolhe aconvivência humana, desencadeando um processode preservação, resguardo de si quase paranóico.

Mas este fenômeno humano não foi sempre as-sim compreendido. Primeiro porque se entende que nãoexiste um homem, mas que sua existência é variante dascircunstâncias em que se inscreve. Segundo porque avivência da solidão, enquanto expressão subjetiva, sópoderia ser tratada num momento em que se permitissefazer essa consideração compreensiva.

O contexto mais apropriado para tal seria odas sociedades ocidentais modernas, caracterizado,entre outros aspectos, pelos aglomerados urbanos.Neles, estas considerações são melhor visualizadas,pois, lá, a relação indivíduo e sociedade está intima-mente conectada.

Quando o homem começa a dizer-se? Sabe-se que a civilização clássica já experenciava ovislumbramento interior do sujeito com a práticaincipienre da askesis moral dos cidadãos. Essa práti-ca, contudo, ainda dirigia-se predominantementeao exterior, visto que buscava atingir a excelência dadimensão social da existência. Segundo o autor re-ferido anteriormente:

Se é verdade que épossível encontrar a questãoda individualidade no centro das culturas comoa helênica, o foto é que ela ainda não possuiessadimensão de interioridade, de singularida-de absoluta, de segredo íntimo que caracteriza aconsciência de si moderna. (p. 130)

Somente por volta dos séculos III e IV d. C. éque a consciência de si como singularidade interiorconstitui-se como o advento do Cristianismo, umanova experiência do indivíduo dá-se pelacaregorização do ser sexual, o que instaura uma éti-ca que procura sustentar-se por regras rígidas quepermitissem a busca da verdade de si própria.

No período medieval, essa questão muito di-ficilmente seria colocada, pois os princípios supre-mos da tradição são sustentados por um caráter doindubitável. O sujeito da civilização agrária não pos-

suía uma identidade social, ele era o que a comuni-dade definia, e isso era pautado na genealogiaparenta].

Mas desde o Renascimenro esses princípiosforam abalados. Com a Reforma Protestante, a fétorna-se objeto de reflexão e as explicaçõesgarantidas pelo princípio de Deus são contrapostaspela liberdade do homem em ler e interpretar asescrituras. Prega-se que a salvação depende do seuempenho próprio e reconhecimento dos limites,enfatizando-os, assim, a responsabilidadeindividual, pregada por Lutero.

O protestantismo coloca na ordem do dia quea razão fundamentaria o conhecimento, e conhecer-se a si mesmo seria tarefa diretamente relacionadaao reconhecimento do ser enquanto sujeito e objetodo conhecimento. Todos seriam iguais frente a Deuse seriam subjetivamente livres quanto à verdade.Assim, o rompimento com os laços de determinaçãodo pensamento sustentados pela Igreja Católica (osujeito desta época lançou mão das opçõesindividuais que o asseguraram tornar-se alguémsingular) seria o novo princípio advindo domovimento luterano, base para o liberalismo.

Com a nova forma de inserção social, com ofim das comunidades feudais e comunais, a existên-cia individual independente demarca o ideal liberalpautado no trabalho mercantil. Além disso, demar-cam-se dois espaços de existência: o espaço públicoe privado.

Este é um dos paradoxos da modernidade: aconsciência amplamente individualizada e a liber-dade exageradamente reforçada para a busca de sen-tidos do mundo através da experiência própria, fa-zendo com que a análise da própria subjetividadedepare-se num auto-aprisionamento devido ao ní-vel de refinamento na sua contexrualização parti-cular, dissolvendo-se o cultivo do contexto público.

Na esfera do conhecimento, podem-se articularas contribuições de vários filósofos que estiveram intri-gados com a questão do homem enquanto agente deprodução de saber e de prática tecnológica mercantil.

No século XVII começa a haver uma preocu-pação com a redefiniçâo da relação sujeito-objeto,visto que a razão conternplativa deu espaço à razãoe à ação instrumental. O percurso desta redefiniçãovai desde Bacon e Descartes até as filosofias daciências no século XX. O modo como as produ-

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ções científicas serão enquadradas, na posição que osujeito ocupa, necessita de uma reorganização dainstrumentabilidade do conhecimento, pois este cedeàs necessidades úteis, adaptativas e de controle. Issoseria viabilizado, somente, com a definição de me-canismos de controle, cálculo e teste. É o início deuma parceria retroalimentada entre a tecnologia daciência e a tecnologia produtiva.

Bacon é quem coloca a suspeitabilidade dohomem no campo científico frente às necessidadesda produção do conhecimento, pois era necessáriosupremo autocontrole e autoconhecimento para nãose deixar contaminar pelas ilusões e falsidades quepoderiam obnubilar o espírito. Assim, a dimensãodisciplinar interior (espírito) torna-se indispensávelpara se cumprir as regras metodológicas.

Galileu e Descartes instauram desconfiançasemelhante relacionando-a à percepção. Neste sen-tido, o objeto da ciência só é reconhecido enquantoaspectos da realidade. O sensível seria, então, ilusó-rio e criação arbitrária do espírito (Figueiredo, 1996).

Mais adiante, na França e no século XX, aepistemologia aponta um obstáculo: a percepçãoingênua repleta de hábitos e preconceitos,configurando a experiência pré-reflexiva. Segundoos epistemólogos franceses, este obstáculo deverá serultrapassado. Da mesma lógica, Hegel e Marxapontaram certa desconfiança ao conhecimentosensível, negando conhecimento imediato, pois estespoderiam desembocar na percepção e vivênciasirrefletidas.

Com isso, o sujeito que surge na modernidadeé atacado constantemente pela busca de definiçãodo campo científico, o que coloca a dimensãosubjetiva do sujeito num espaço rompido entre arazão instrumental e os aspectos intersubjetivos(afetividade, sensibilidade, intuição, vivência pré-re-flexiva), estes relacionados a sua legitimação indivi-dualizada, enquanto ser.

A preocupação com a subjetividade data dosséculos XVIII e XIX e deve-se às transformações ori-ginárias do mundo burguês como o surgimento daliteratura romântica, o regime disciplinar, o libera-lismo, enfim, todos os fenômenos históricos presen-tes na passagem do homem medieval ao homem mo-derno, pois esta transição deu ênfase a elementosque puderam especificar e demarcar o tecido social,igualitário, mas diferenciado pelas opções de vida e

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idiossincrasias individuais. Sobre isso, Bezerra J r.(1989) nos exernplifica com as considerações deFoucault:

Este processopode ser demonstrado pelos váriosprocessos de individuaLização que em torno doséculo XVIII seproduzem no continente europeu- individuaLização da figura do Louco, dodelinqüente, do corpo doente; da criação de ins-tituições voltadas para manipulação individua-Lizada de seusobjetivos de intervenção ... (p.230)

O que interessa, neste momento, é a criaçãode mecanismos estereotipados que legitimem osurgimento de instituições e produções de saber,enquadradores categóricos dos indivíduos, de for-ma a quanrificá-los o máximo possível a fim de ga-rantir o controle. Esta é a característica primordialdo homem moderno. Mesmo assim, o sujeito passaa exacerbar crescenternente sua condição. É vistocomo egoísta de forma irracional, irnediatista e in-capaz de submeter-se aos controles, o que incita aprocura de instrumentos que buscam retomar oprojeto do homem moderno. este ínterim, surgea ciência psicológica.

Esta perspectiva instrumentaL da administraçãoracionalizada aparece também no projeto deconstituição de uma psicoLogia como ciência do(contra o) indivíduo. [ulga-se necessário,efetivamente, conhecer para fiscaLizar, contro-Lar,prever e corrigir (socializar) o egoísmo e airracionaLidade. (Figueiredo, 1996, p. 21)

Dentre as definições de moderno está aidéia de oposição ao antigo, contudo não é isso; é,inclusive, um rompimento com a tradição, o quenão se resume a um romper diferenciador, mas tam-bém que foi consagrado seja pelos costumes, pelotempo e pela repetição; rompe-se para desrruir opassado. Trata-se, neste sentido, de um rompimen-to que caracteriza a valorização do efêrnero, do tran-sitório e fugaz, havendo a substituição do propósi-to eterno e permanente. Além disso, a dissoluçãodo espaço público acarretaria a perda das possibili-dades do desenvolvimento do indivíduo pelo em-bate com seus "iguais-diferentes", já que não há trocada realização de experiências.

A modernidade pode ser definida pela junçãodos conceitos "urbanização", como a concentração davida nas grandes cidades e a individualização, como a

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quebra dos vínculos "corporativos-agrários" e a possi-bilidade da expansão das potencial idades pessoais.

Berman (1986) esclarece essas dimensões damodernidade:

Ser moderno é encontrar-se em um ambiente quepromete aventura, poder, alegria, crescimento,auto transformação e transformação das coisasaoredor - mas ao mesmo tempo ameaça destruirtudo que temos, tudo que sabemos, tudo que so-mos. A experiência ambiental da modernidadeanula todas as.fronteiras geográficas e raciais, declassee nacionalidade, de religião e ideologia: elanos despeja a todos num turbilhão depermanen-te desintegração e mudança, de luta e contradi-ção, de ambigüidade e angústia. (p. 15)

Um outro aspecto da modernidade que nãose pode perder de vista é o aglomerado de pessoasem centro de urbanização, ou que pode ser sinteti-camente explicado pelas facilidades de intercâmbiomercantil e obtenção de técnicas produtivas, alémde serem espaços de produção e divulgação do co-nhecimento. A formação urbana é, neste ínterim,um fator de suma importância para a compreensão·da temática em estudo.

SOLIDÃO: FENÔMENO DA FRAG-MENTAÇÃO DOS MODELOS DE RE-LAÇÕES AFETIVAS?

Segundo Pinheiro &Tamayo (1984), toma-se o conhecimento de que a vida urbana promove atendência da diminuição de contatos primários en-tre os habitantes, ao passo que aumenta os contatossecundários, caracteristicamente impessoais,referenciados na dessemelhança e isolamento entresi. Segundo os Autores:

A convivência humana genuína - essencialparaa sobrevivência individual e coletiva - paulati-namente está dando lugar a um amontoado depessoas que, mesmo vivendo fisicamente maispróximas nas cidades do que no meio rural, vi-vem isoladas umas das outras, e, em nome depreservar uma privacidade, passam a restringirseu âmbito de convivência humana, gerando,outrossim, uma distância social. (p. 54)

Logo, seguindo a linha de raciocínio, o fenô-meno da urbanização está também diretamente rela-

cionada ao fenômeno da solidão e isto é confirmadoem outros estudos, o que se pode articular, inclusive,é a relação do suicídio com o fenômeno da solidão,visto que o sentimento de pertinência insere-se nes-ta perspectiva e demarca a teorização proposta porDurkheim. Assim, quanto maior o sentimento deperrinência a um grupo, menor a tendência de suicí-dio; e, por outro lado, quanto menor este sentimen-to maior a tendência. O problema encontrado aqui éque Durkheim segue uma perspectiva sociologista(determinista e linear), não explicando por que indi-víduos com sentimento de nâo-pertinência (daí pes-soas solitárias) não se suicidam. Neste momento en-tram as teorizações psicológicas apontando o carátermultifacetado do fenômeno.

O FENÔMENO DA SOLIDÃO:VIVÊNCIA DA ERA MODERNA

Para compreender o que entendemos comovivência da solidão, propõe-se uma explanaçãoconceitual sobre as categorias "vivência" e "soli-dão" a partir de uma perspectiva fenomenológico-existencial.

Em termos gerais, toda experiência que com-põe o campo fenomênico do sujeito pode ser en-tendida como conteúdo vivencial. Esse conteúdo,por sua vez, está inscrito num continuurn temporal,espacial e corporal que significa o sentido do fluxoexperiencial. Gobbi & Missel (1998) citam Puente(1970), que diz:

Em termos formais, o "experiencinç" é um pro-cessode sentimentos experimentados (jeelings),quetem lugar nopresente imediato, que é de nature-za organísmica pré-conceitual. que contém signi-ficações implícitas, e ao qual o indivíduo pode sereferirpara formar os conceitos. (p. 63)

Assim, a vivêricia constitui-se do entrelaça-mento da experiência fenomenal com as dimensõestempo, espaço e corpo, dando-se uma significaçãofluida dessa interligação com a existência total dosujeito.

A característica do temporalizar consiste comovivência do existir ultrapassando a situação imedia-ta, progressiva ou regressivamente, transcendendoo sentido do tempo físico, para estendê-lo no seusentido lato sensu. Pode-se vivenciar o tempo numa

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totalidade, no cotidiano imediato; num presenteperene, tanto pelo o que já passou, quanto pelo oque venha acontecer.

O espacializar não se limita ao "estar-aqui"ou ao "estar-lá", mas também na expansividade dapossibilidade de ultrapassar os limites do nosso pró-prio corpo e do ambiente concreto. O contara podeexistir sem a proximidade do espaço físico, ou avivência da proximidade pode ser favorecida peloespacializar transcendental.

A corporeidade evidencia a limitação e, ao mes-mo tempo, a possibilidade de mediação do homemcom o mundo. O corpo possibilita, assim, a percepçãoda murualidade homem-mundo enquanto constitui-ção existencial, e empreende sua inserção neste mun-do. O corpo possibilita a percepção de si e de si nomundo. Logo, ele é a referência da nossa vivênciaorganísmica.

De acordo com o Dicionário Brasileiro deLíngua Portuguesa da Enciclopédia Mirador Inter-nacional (1975), vivência seria conceituada como:

Existência (...) Experiência vivida, de caráterglobal, incluindo sobretudo uma nota afttiva.(p. 1826)

É a nota afetiva que confere a inserçãosignificada da vivência na gestalt da existência.Forghieri (1989) afirma que a vivência é a percep-ção que o sujeito tem das suas experiências, de for-ma que ele as significa a partir das referênciasconstituidoras do seu mundo de vida, então, do seucampo fenomenal.

Fonseca (1998), numa análise da contribui-ção de filósofos para a abordagem fenomenológico-existencial, cita uma compreensão conceitual paravivência - como atitude, eminentemente, da cons-ciência, pela qual o sujeito contempla o fenômenona sua forma originária.

A solidão é uma vivên cia que pode sersignificada de infinitas formas, de acordo com aespecificidade existencial de cada um que a vivencia.Engloba as referências de experiências passadas e asperspectivas futuras. O espaço existencial facilmen-te transpõe-se e o corpo faz o sujeito reconhecer-seem sua inserção no mundo, simbolizado pelos sin-tomas e a apresentação do mesmo no campo dasinter-relações objetivas e subjetivas.

É uma vivência muito discutida na contem-

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poraneidade como consequencia da ausência dooutro, ausência que não concorda com a caracterís-tica imanente do ser humano de ser em relação. âoconcorda, mas se insere como possibilidade da exis-tência, podendo inclusive favorecer desdobramen-tos subjetivos, que só são catalisados com o isola-mento, distanciamento e introspecção profunda.Quer isto dizer que a solidão promove, no teor doseu sofrimento, o dar-se conta de si. O difícil, en-tretanto, é saber lidar com ela, pela dor e pelasconstatações que faz entrar em contato. Para Camon-Angerami (1992):

É na solidão que o homem mergulha em seuinterior e confronta a configuração real dacondição humana (, . .). É também na solidãoque a vida escancara a nudez d'alma propici-ando formas de descrição impossíveis de serrealizada de outra forma que não no total iso-lamento. (p.86)

Na solidão a dimensão temporal do presente éobnubilada pelo tédio existencial, comprometendoo fluir da dinâmica experiencial de desdobramentodo vivido. Não necessariamente um comprometimen-to em nível de funcionalidade psíquica, mas em nívelde significação experiencial. O futuro é pobre emperspectivas, e o passado obscurecido pelas percep-ções das reminiscências carregadas de conteúdo afetivodolorido. É a lentidão das horas, a opacidade das co-res, o aguçar da audição na procura da escuta de al-guém, a fragilidade das opções, a incerteza. das idéias,enfim, o desmantelo do ritmo eletrizante que a vidaexige. Dentre os sinais deste desmantelo estão assomatizações e a perda do referencial interno paraavaliação vivencial. Segundo o Autor, o tédio exis-tencial pode ser definido como:

... a dolorosa sensação de não estar realizandonossaspossibilidades de vida. A sensação de es-tar parado num ponto sem saída, sem interesse,sem energia. (...) Está sempre faltando algumacoisa que, de fora, viria magicamente salvá-Ia.(p.25)

É uma posição paradoxal à que a solidão co-loca o sujeito. De um lado, propõe que seja livrepara desencadear escolhas que demarcariam sua ca-minhada do existir; por outro, demonstra que sevive em um contexto de interações que o insere numtodo nomeador e constiruidor de sua biografia. As-

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sim, o outro é um elemento importante para suatrajetória existencial, mas não preenche a lacuna, queo fato de ser só implica.

Em suma, dentre as várias saídas possíveis, ficaevidente que se busca um sentido para sua existên-cia, sabendo que esta busca circunda sofrimentos,angústia. O que constitui o buscar são as escolhas, ecada escolha está simetricamente posta a uma per-da: o que não foi escolhido.

Camon-Angerami (idem) ainda contribuicom a seguinte afirmação:

O sentido que damos à vida é o que nos man-tém vivos. Ela dá ordem, esperança eforça detransformação para a existência. A vida en-quanto existência única e isolada não tem sen-tido. O homem busca um sentido de significa-ção própria para sua existência, derivando,assim, para diversas possibilidades de realiza-ção e desenvolvimento. O homem existe a par-tir de suas realizações, não existindo pela suaprópria vida isolada no contexto dasrealizações. (p. 28)

O não saber como lidar com a vivência dasolidão produz angústia, que Rogers (1977) defini-ria como ansiedade exacerbada por algo desconhe-cido; seria uma reação do organismo à subcepçãodeste estado de desacordo e ao perigo de tomada deconsciência - que exigiria uma modificação da es-trutura do eu.

A angústia pode sugerir o sentimento de dú-vida frente a possibilidades não realizadas na vida,constituindo a expressão de desconhecimento daprópria responsabilidade pelas escolhas e do as-sumir a condição de não ser totalmente livre.Construtivamente, por outro lado, a angústia tra-ria em seu bojo a abertura de uma possibilidadepara tomar consciência do poder transformadorda condição humana.

Merleau-Ponry (1994) expõe claramente estaposição do homem acerca da liberdade. Para ele,o homem está comprometido com o seuenvolvimento com o mundo, visto que o homeme o mundo mutuamente constituem-se; por isso,não é totalmente livre. Suas escolhas se dão nummeio onde não é possível controle total, pois, alémde haver infinitas possibilidades destas, não há es-colha absoluta.

Neste sentido, a solidão sugere uma fugaque poderá estar suplantada no trabalho excessivo,no abuso de álcool e drogas, na compulsão - sejaela qual for; na busca de encontros interafetivosefêmeros, ou até no suicídio. A dificuldaderelacionada à fuga está no não suportar dar-seconta de si.

Segundo Desidério (1990) estes artifíciosnem sempre corroboram de modo eficaz para su-perar a angústia que porventura possa emergir navivência. Para ela, por exemplo, especificamentequanto aos encontros efêmeros:

... o medo de ficar só deve-se ao temor de en-frentar as partes mais profundas de si mesmo( ..). Encontrar o outro nem sempre nos livrada solidão. A gente pensa estar se relacionan-do e não está. Não há satisjàção, você não estáse dando por inteiro. Quem não estabeleceuma razoável relação consigo, dificilmente vaimanter uma relação satisfatória com osoutros. (p. 66)

Aqui, evidencia-se uma idéia básica quantoao fenômeno das relações humanas interafetivas.É necessário certa dose de autoconhecimento paraque o "estar-com" possa creditar a possibilidadeou não de estar por inteiro, ou seja, de estar ounão disponível para, tendo em vista limitações,aspirações e os próprios critérios a seremresguardados numa relação interpessoal. Assim, asolidão aparece como regulador existencial domodo como o sujeito lida com seu mundointerror.

Ainda para a Aurora:

Quem está bem consigo mesmo, mais facilmenteenfrenta a solidão. A solidão só se tornapertubadora quando, estando em contato comnós mesmos, não nos aprovamos, percebemos adistância que há entre a nossa imagem idealiza-da e a vivência atual. (p. 65)

A solidão como processo de autoconhecimentoparece, neste ínterim, ser uma possibilidade muitoevidente. Ela permite, mesmo que dolorosamente,entrar em contato com o que antes não era visto ounão se queria ver na própria pessoa. Essa permissão,por sua vez, é fonte de criação e de catálise do poten-cial de mudança.

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CONCLUSÕES° fenômeno da solidão está envolto em uma

gama de elementos contextuais contemporâneos quedevem ser analisados para que se possa ter uma vi-são ampliada do mesmo.

Falamos de um fenômeno que, dentre suasespecificidades, encontra-se relacionado à dificulda-de de inter-relaçâo pessoal afetiva: acredita-se que,atualmente no Ocidente, o sentimento predominan-te, em termos daquela especificidade, é de completaincompetência. °sujeito tem procurado ou fechar-se num universo particular, assinalando a falência dapossibilidade de contatos na sua vida; ou se apropri-ando do outro pelas redes de comunicação, de formaespectral, ou melhor dizendo, fictícia. Logo, a ten-dência parece dirigir-se para um estado solitário re-forçado pelas possibilidades múltiplas de acesso aooutro, mesmo que somente na Imagem.

Fica difícil falar,então, sobre um fenômeno, que apriori indica impossibilidades de contato, quandohodiernamente existem variadas possibilidades para tal.Entretanto, não desmerece a especulação sobre o projetode vida existencial conferido a este sujeito atual. °fatoimediato a que se pode chegar é: quanto mais dispõe-sedeste acesso"intercornunicacional", mais o sujeito se ilha.

Por um lado, assim, ele se livra da incompe-tência explícita, dele e do outro, na inter-relaçâo: mas,por outro, ele cai no anonimato, pois as nuances des-ta nova modalidade de contato respalda-se na impos-sibilidade de concretizar projetos no real. É o que sepode dizer de uma sensação quase que global de indi-ferença tanto de si, quanto do outro.

Não cabe aqui articular teorizações sociopolíticas,Mas se demonstra importante vislumbrar em que es-paço a dinâmica das relações humanas têm se configu-rado para não tecer elocubrações desconrextualizadas.

Se, antes, a solidão relacionava-se diretamentecom uma dificuldade de manutenção de um laçoafetivo e, portanto, de manutenção de um contatoafetivo pessoal; hoje, relaciona-se como um estadoreforçado pela mídia, a fim de manter um mercadode acesso intercomunicacional, que lhe permite es-tar com alguém em qualquer lugar do mundo, con-forme seus desejos e expectativas.

A crise existencial transfigura-se não só nafuga do enfrentamento presente com a sua violên-

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cia de ocorrências cotidianas experienciais; mas, so-bretudo, num conformismo de auto-isolamento,onde não há trocas, não há mais o compartilhar.

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