contardo calligaris (entrevista)

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Page 1: Contardo Calligaris (Entrevista)

4 | CADERNO 2 | SALVADOR, Q U I N TA - F E I R A , 6/12/2007

“Estamos num momentode miséria sexual total”

LÚCIO TÁVORA | AG. A TARDE

Contardo Calligaris | Psicanalista lança seu primeiro livro deficção, com o título provisório de Conto de amor, em 2008

Oque é o amor, como levar uma vida boa, é possível se

livrar da angústia? Queríamos respostas, daquelasque se buscam num livro barato de auto-ajuda, e eleparecia mesmo ter todas. Fala calmo, mas comconvicção, com um sotaque italiano que não o deixa,

mesmo depois de mais de 20 anos da sua chegada ao Brasil. Naúltima sexta-feira, esteve em Salvador participando do V Se-minário Viajando pela Cultura, promovido pela Petrobras. Voltoua Cristóvão Colombo para mostrar como "a maior viagem de todosos tempos", a descoberta da América, fundou a modernidade efincou em nós a necessidade da transformação e acabou gerando oapreço pela preservação da memória e uma insistente nostalgia devoltar pra casa, mesmo quando a intenção é buscar o novo."Saudosos do passado, escrevemos a experiência do romance dasnossas vidas. Somos o relato da nossa viagem. Precisamos achar aqualidade da nossa viagem ser boa de ser contada". Entre pu-blicações clínicas e outros escritos, é autor de Crônicas doindividualismo cotidiano (Ática, 1996), Hello Brasil! (Escuta, 2000[6a ed.]) e A adolescência (série Folha Explica, Publifolha, 2001).Em abril de 2008, lança pela Cia. das Letras seu primeiro livro deficção, com o título provisório de Conto de amor. Calligarisconversou com os repórteres Pedro Fernandes e Tatiana Mendonçasobre amor, solidão e viagens.

A TARDE | Qual a importânciade viajar, não apenas como o atode deslocar-se de um lugar, masno sentido individual?CONTARDO CALLIGARIS | O queimporta na viagem não é a distân-cia que a gente percorre, o que im-porta é que a viagem seja um mo-mento em que a gente é transfor-mado pelo que encontra. Porexemplo, se um amigo me visitaem São Paulo, dependendo doamigo e de onde ele vem, não meinteressa muito levá-lo para veras belezas turísticas da cidade.Segundo o amigo vou escolher lu-gares que eventualmente vão cho-cá-lo, mas num melhor sentidovão lhe proporcionar um campode experiência em que ele vaipoder se descobrir diferente doque ele é. Viajar é isso: descobrirem si algo que você não sabia queestava lá.

AT | Qual a importância do des-locamento se você pode fazer essaviagem de transformação ondeestá?CC | Concordo, mas a viagem setornou importante porque a mo-dernidade começou com o deslo-camento das pessoas fora do seuquadro habitual, do seu quadrotradicional, do seu vilarejo. Issocertamente criou os pressupostosda subjetividade moderna. E aindacria. Porque no fundo alguém quesai do sertão e pega um ônibus pa-ra São Paulo não está muito dife-rente de quem estava num barcode Colombo. O choque subjetivo émuito mais importante que a dis-tância percorrida.

AT | A busca que se faz numa via-gem é uma busca por pertencerou não pertencer?CC | É uma certa experiência denão-pertencimento. Existem ex-periências extremas. Tenho umadificuldade, pessoalmente, de irpara lugares em que de alguma for-ma eu não consiga me misturar. Is-so é uma coisa complicada. Sei lá,passar três meses em Tóquio nãointeressa muito para mim, porque,por mais que eu me vista como umexecutivo japonês, eu sempre vouser um cara totalmente diferentedos outros na rua. Ao mesmo tem-po, a experiência tem que ser estra-nha para mim, mas eu tenho quepoder pertencer de alguma forma,passar despercebido.

AT | Que tipo de nostalgia senteum indivíduo de uma segunda ge-ração de imigrantes, que não per-tence ao seu local de nascimentonem à terra deixada por seuspais?CC | Uma nostalgia muito gran-de. Não é a nostalgia de um lugarque nunca conhecera. É surpreen-dente no trabalho psicanalíticonas Américas, tanto no norte comono sul, o fato de que há muito damemória de quem viajou para cá.Você vê pessoas da segunda ou ter-ceira geração que não sabem nemo nome da vila de onde seus avóssaíram. Um dos problemas que aspessoas enfrentam para conseguiro passaporte português, espanholou italiano é porque elas não têmnem as informações básicas. Não éuma nostalgia da Itália ou daquelelugar da Itália. E é preciso lembrarque quando aquelas pessoas saí-ram de lá, elas estavam num sofri-mento brutal, por falta de liberda-de, de bens, de comida. Não era

uma viagem que se fazia sorrindo.Era uma viagem totalmente peno-sa. A nostalgia de um lugar ao qualverdadeiramente pertenceríamos.Por outro lado, se você fosse trans-portado para um lugar ao qual vo-cê verdadeiramente pertence, devolta a uma sociedade tradicionalcomo não mais existe, com a cabe-ça que você tem hoje, certamentevocê enlouqueceria rapidamente.

AT | O senhor falava dessa ques-tão moderna da preservação dopatrimônio histórico. Quando sefala em globalização, geralmentese argumenta que culturas mais“poderosas” acabam com a cultu-ra local. Ao mesmo tempo, mui-tos estudiosos discordam disso eargumentam que as culturas lo-cais não desaparecem, mas seapropriam de novos elementoscom os quais se identifica. Queriaque o senhor falasse um poucodisso. Outra questão é se essavontade de preservação de tradi-ções e culturas fadadas a morrernão denota uma certa necrofilia.CC | É claro que sim. Até porquequalquer tipo de preservação nes-sa altura é um pouco uma visita aozoológico. Você vai para uma re-serva indígena, tanto aqui comonos Estados Unidos. Vai para Utah,reserva dos Navajos, grandes guer-reiros, são um monte de gente fa-zendo colares de espelhinhos paraturistas. É um negócio de chorar.Preferia que eles estivessem emNova Iorque. Acharia mais digno.Isso também está presente na nos-sa relação com os monumentoshistóricos. Uma espécie de puris-mo que não corresponde em nadaao uso que tinham as coisas. É atransformação do mundo em mu-seu, em zoológico. Sou muito felizem ter nascido quando nasci. Nãotenho nostalgia de outras épocasnem de outros lugares. Acho que acultura na qual a gente nasce é acultura que a gente tem que vi-vê-la. Uma cultura tradicional queé inimiga desses princípios é tam-bém minha inimiga. Você pode medizer que a incisão do clitóris naÁfrica é legal porque é um costumetradicional. Eu não acho legal. Euacho que não deve fazer. Acho nor-mal que uma pessoa que não quei-ra saia de lá e vá viver na Europa ounos Estados Unidos. Não acholegal que uma família norte-africa-na, que migra para a Europa, sepermita um tipo de exercíciode poder interno que contradigaos limites que a lei e o costume oci-dental impõem. Por outro lado,

existe o enriquecimento recíprocoentre as culturas, ou não teríamoso samba, o blues, o rap. Uma dascoisas que mais gosto no Brasilé exatamente essa idéia da misci-genação cultural. O Brasil é umpaís onde o discurso da preserva-ção não funcionou muito bem. OBrasil é um bom exemplo danão-abolição das diferenças semque para isso a gente renuncie auma cultura comum.

AT | Certa vez o senhor escreveuque os jovens já não têm grandessonhos, grandes ideologias. Elesestão mais perdidos?CC | Souterapeutadeadolescen-tes e sinto uma mudança nessesentido. Na minha experiência umjovem de 13 ou 14 era alguém quetem sonhos extravagantes. O quenão significa necessariamente re-fazer o mundo. Significa, "Ah, nãosei, quero ser ator em Hollywood".O cara não fala inglês, não temchance nenhuma de ir para lá, éfeio pra caramba, é fanho. Não temproblema. Ele ousa desejar o queele deseja. Vinte anos mais tarde oque eu vejo são muitos jovens quepoderiam ir para lá, que falam in-glês e não são fanhos, e querem,fundamentalmente, um empregopúblico. Ouço jovens de 17 e 18anos que fazem cálculo de quandoserá sua aposentadoria. Acho issoestranho. Vejo um empobreci-mento da capacidade de desejar.

AT | Mas não tem um viés saudo-sista quando o senhor diz que éum empobrecimento? O senhorestá tomando sua referência. Éi n e v i t á ve l .CC | Sim,claro.Émeioinevitável.A referência é geracional. Mas issonão é só da geração. Talvez a ado-lescência esteja acabando. Ela co-meçou nos anos cinqüenta, com ofilme do James Dean, Ju ve n t u d eTra n s v i a d a . Esse é o ato de nasci-mento da adolescência como con-ceito no Ocidente. A partir daquelaépoca a gente achou que os adoles-centes deveriam ser do contra e is-so os qualificava como adolescen-tes. Pode ser que a adolescência es-teja acabando. Aliás, faz sentido,

porque a maioria dos adultos seveste como adolescentes [Risos].

AT | Os jovens estão mais caretas,moralistas, em relação ao sexo e àpolítica?CC | Sim. Em relação à política,sem dúvida. Mas as duas coisastêm explicações conjunturais. Nãoé o momento em que grandes pro-jetos de transformação social este-jam óbvios para quem quer que se-ja. Não vejo por que os adolescen-tes não seriam atravessados poressa perplexidade. Por outro lado,estamos verdadeiramente nummomento de miséria sexual total.Essa geração cresceu praticandosó sexo protegido. Isso é uma coisamuito legal, mas que transformoutotalmente a vida sexual e destruiua revolução sexual do fim dos anos60. Não estou falando só da pro-miscuidade, mas da maneira detransar. Para um adolescente de 20anos, transar significa ter uma ere-ção, colocar a camisinha e não po-de retirar antes e tira com cuidadopara evitar que o preservativo fi-que dentro. Para alguém que tem50 anos, transar é transar um pou-quinho, parar, recomeçar, recolo-car, enfiar, se beijar, se chupar, seilá o quê. Isso é um negócio que setornou proibido. Transar se tornou

um negócio difícil. Beijar se trans-formou em um negócio difícil. Temcontaminação, mononucleose...Isso não é culpa dos jovens, mastorna tudo menos interessante.

AT | O senhor estava falando quecada um de nós cria uma narra-tiva própria, e é preciso que essanarrativa se sustente de algummodo. Em que medida os filmes ea literatura nos dão elementospara criar isso?CC | É o nosso repertório. É no ci-nema e na literatura que a genteaprende a amar e a viver. O sujeitomoderno aprende a viver na ficção.A literatura é um efeito da moder-nidade. A partir do momento emque já não há códigos nem normade conduta, no lugar disso vocêtem um imenso repertório de vidaspossíveis nas quais você vai encon-trando inspiração.

AT | Esse repertório de vidas eviagens possíveis é crescente. Nãosei se estamos indo para uma es-cala infinita de angústia, ondepensamos que nunca vamos tertudo isso. É impossível tirar a an-gústia da vida?CC | É. [Risos]

AT | Mas esse repertório de pos-sibilidades mais vasto aumentaessa angústia?CC | Essa angústia é salutar, por-que a gente não pode mesmo fazertudo. Depois o segredo não está naextensão, está na intensidade. Naverdade, alguém pode nunca sairdo lugar onde nasceu e ter uma vi-da de extrema felicidade. O proble-ma é não conseguir viver o que es-tamos vivendo. Isso é angustiante.Não conseguir se autorizar a viver,seja um amor, uma dor, um luto,uma felicidade qualquer.

AT | A solidão é um problema?CC | Sim. Sobretudo a solidão ur-bana.

AT | Existe uma forma tranqüilade se lidar com ela?CC | Não, tranqüila não.

AT | Ninguém pode ser feliz sozi-

nho, como diz a música. [Risos]CC | Não, tem pessoas que estãomuito melhor sozinhas do que ou-tras. Por uma série de razões. Mas asolidão é um sofrimento. Tem mo-mentos em que a gente sofre disso.Tudo bem, a gente pode transfor-mar isso num filme de Godard, pore x e m p l o.

AT | O senso comum das revistasfemininas sempre diz que o diá-logo é o melhor caminho num re-lacionamento amoroso. Há coi-sas que não devem ser ditas?CC | Num relacionamento amo-roso o diálogo é o pior caminho. Is-so é proibido. Para falar de um fil-me, de um livro, do que a gente fezou vai fazer amanhã, é ótimo. Odiálogo no sentido de sentar e dis-cutir a relação é a antecâmara dafunerária. Em geral, na maioria doscasais, o que falta é uma certa éticadiscursiva. Saber renunciar a dizercoisas que não são necessárias eque depois vão se provar mentiro-sas, porque não era isso que a pes-soa queria dizer.

AT | E brigar, é importante?CC | Depende. Tem casais que sóconseguem transar depois de terbrigado. Aí é importantíssimo.

AT | Seu primeiro livro de ficçãoserá sobre o amor, e a maioria dasnossas narrativas são sobre oamor. O que é o amor?CC | O amor é... Tem que sermuito claro, porque o mal-enten-dido pode ser brutal. O amor é umasérie de coisas...

AT | Difícil, né!CC | Não, não é difícil. É uma re-lação em que o outro me transfor-ma, mas não da maneira que ela ouele queria me transformar. É umarelação em que o outro nunca mepatologiza. Ou seja, nunca achaque estou louco ou doente porcausa dos desejos que eu tenho. Éuma relação que o outro tem omaior carinho pelos meus sonhose minhas ambições, no sentidomais amplo dessa palavra.

AT | E o amor tem medida?CC | [Pensa]. Em que sentido?[Risos].

AT | Se tem ou deveria ter limites,fronteiras. A ficção nos ensinaque não tem.CC | É uma pergunta perigosa,porque o amor de alguma forma,quando ele funciona, é bastanteincondicional. Um bom exemplodo que é um parceiro amoroso etambém de um aspecto do amorque não mencionei antes que é aconfiança absoluta. Confiança ab-soluta não tem nada a ver com ciú-me e traição. Falo de confiança nooutro porque o outro me dá con-fiança no mundo. Você sabe queestá num amor se você é assaltadoem Kuala Lumpur, fica sem ne-nhum documento e dinheiro e vo-cê só tem um telefonema e você li-ga para a pessoa pela qual estáapaixonado. Se você liga para outrapessoa, esse amor não é bom. Apessoa para quem você liga é aque-la que não vai dizer "o que você fezpara ser assaltado?", que não vaiperder tempo em conversas inú-teis e se for necessário vai vender ocachorro e o carro para pegar o pri-meiro avião e tirar você do buraco.Essa é uma medida do amor. Mas oque acontece em nosso repertórioé que o amor sem medida é a pai-xão romântica no sentido menosinteressante. Em que o outro seriaa coisa que completa você. Issonão é nada que eu reconheça comoamor. Uma das coisas mais desa-gradáveis é se apaixonar pelo pró-prio amor. Entrar numa espécie deprática literária ruim, onde se sen-tir e se mostrar apaixonado seriaum valor em si.

AT | Assim a gente volta à questãodo sujeito construir sua narrati-va. Então narrar o amor pode setornar mais importante que vivero amor.CC | Sim, claro. Se você ler Wer-ther, de Goethe – que é um livroque não gosto, embora Barthes,que é um dos homens que maiscontaram na minha vida, gostasse–, o mais importante para ele era anarrativa. Ele estava apaixonadopela sua própria paixão. Tudo bem,mas não é comigo.

* QUEM É | C o n t a rd oCalligaris nasceu em1948 em Milão, édoutor em psicologiaclínica pela Universitéde Provence e colunistada Folha de S.Paulo.Estudou em Genebra eParis, onde iniciou suaformação psicanalíticae a convivência comRoland Barthes eJacques Lacan.Chegou ao Brasilem 1985.

❛“Ouço jovens quefazem cálculo dequando será suaaposentadoria.Vejo umempobrecimentoda capacidadede desejar”

❛“[O amor] É umarelação que o outrotem o maiorcarinho pelos meussonhos e minhasambições, nosentido amplodessa palavra”