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CONTOS

FANTSTICOS

03

A GALINHA DEGOLADA Horcio Quiroga

O dia inteiro sentados num banco do ptio, ficavam os quatro filhos idiotas do matrimnio Mazzini-Ferraz. Tinham a lngua entre os lbios, os olhos estpidos vazios e se voltavam com a boca aberta. O ptio era de cho batido, fechado a oeste por um muro de ladrilhos. O banco ficava paralelo a ele, a uma distncia de cinco metros, e ali os filhos se mantinham imveis, com os olhos fixos nos ladrilhos. O sol desaparecia detrs do muro e, ao declinar, os idiotas faziam festa. A princpio, a luz alucinante chamava sua ateno e, pouco a pouco, seus olhos se animavam: riam finalmente estrepitosos, congestionados pela mesma hilaridade ansiosa, contemplando o sol com uma espcie de alegria bestial..

Outras vezes, alienados no banco, zumbabam horas inteiras, imitando o bonde eltrico. Os rudos violentos sacudiam desta forma sua inrcia e ento corriam, mordendo a prpria lngua e bramando, ao redor do ptio. Contudo, quase sempre estavam apagados, imersos na profunda letargia do idiotismo, e passavam todo o dia sentados em seu banco, com as pernas suspensas e quietas, empapando a cala de uma saliva grossa.

O mais velho tinha doze anos e o menor, oito. Em todo seu aspecto sujo e miservel, notava-se a falta absoluta de um mnimo cuidado maternal..

Esses quatro idiotas, no entanto, tinham sido um dia o encanto de seus pais. Com trs meses de casados, Manzzini e Berta orientaram seu estreito amor de marido e mulher, mulher e marido, para um futuro muito mais vital: um filho. Que maior felicidade para dois apaixonados que essa honrosa consagrao de seu carinho, libertado j do vil egosmo de um mtuo amor sem fim nenhum e o que pior para o amor mesmo, sem esperanas possveis de renovao?

Assim estavam Mazzini Berta, e quando o filho nasceu, aos catorze meses de casamento, acreditaram cumprida sua felicidade. A criana cresceu bela e radiante, at um ano e meio. Porm, no vigsimo ms, sacudiram-na uma noite convulses terrveis, e na manh seguinte no conhecia mais seus pais. O mdico examinou-o com essa ateno profissional de quem est visivelmente buscando o mal nas enfermidades dos pais.

Depois de alguns dias, os membros paralisados recuperaram o movimento; porm a inteligncia, a alma, at o instinto se haviam ido tudo: tinha ficado profundamente idiota, babo, pendente, morto para sempre sobre os joelhos da sua me.

Filho, meu filho querido! soluava esta, sobre aquela espantosa runa de seu primognito.O pai, desolado, acompanhou-a ao mdico.

A voc se pode diz-lo. Creio que um caso perdido. Poder melhorar, educ-lo com todas as limitaes de seu idiotismo, porm no mais longe.

Sim! Sim assentia Mazzini. Porm, diga-me: voc acredita que hereditrio, que...?

Quanto hereditariedade paterna, j lhe disse o que acreditava quando vi seu filho. Respeito sua me, mas h ali um pulmo que no sopra bem. No vejo nada mais, porm h um sopro um pouco spero. Faa com que ela o examine bem.

Com a alma destroada pela aflio, Mazzini redobrou o amor a seu filho, o pequeno idiota que pagava pelos excessos do av. Teve assim mesmo que consolar, prestar apoio sem trgua a Berta, ferida no mais profundo por aquele fracasso de sua jovem maternidade.

Como natural, o casamento ps todo seu amor na esperana de outro filho. Nasceu este, e sua sade e seu riso lmpido reacenderam o futuro entinto. Porm, aos dezoito meses as convulses do primognito se repetiram, e no dia seguinte amanheceu idiota.

Desta vez, os pais mergulharam em profundo desespero. Logo seu sangue, seu amor estavam malditos! Seu amor, sobretudo! Vinte e oito anos ele; vinte e dois, ela, e toda sua apaixonada ternura no conseguia criar um tomo de vida normal. J no pediam mais beleza e inteligncia como no primognito; mas apenas um filho! Um filho, como todos!

Do novo desastre brotaram novas labaredas do dolorido amor, um louco desejo de redimir uma vez para sempre a santidade de sua ternura. Vieram gmeos, e ponto por ponto, repetiu-se o processo dos dois mais velhos.

Mas, por cima de sua imensa amargura, ficava em Mazzini e Berta uma grande compaixo por seus quatro filhos. Teve que arrancar do limbo da mais funda animalidade, no j suas almas, seno o instinto mesmo abolido. No sabiam deglutir, trocar de lugar, nem mesmo sentar-se. Aprenderam finalmente caminhar, porm se chocavam contra tudo, por no se dar conta dos obstculos. Quando os banhavam, mugiam at injetar-se de sangue o rosto. Animavam-se somente ao comer, ou quando viam cores brilhantes ou quando ouviam troves. Riam-se, ento, jogando para fora a lngua e rios de baba, radiantes de frenesi bestial. Tinham, em troca, certa faculdade imitativa; porm no se pode obter nada mais. Com os gmeos parecia haver-se concludo a aterradora descendncia. Contudo, transcorridos trs anos, desejaram de novo ardentemente outro filho, confiando em que o longo tempo transcorrido houvesse serenado a fatalidade.

No satisfaziam suas esperanas. E nesse ardente desejo que se exasperava, em razo de sua infrutuosidade, acidularam-se. At esse momento, cada qual havia tomado sobre si a parte que lhe correspondia na misria de seus filhos; porm a desesperana de redeno ante as quatro bestas que haviam nascido deles, jogaram fora essa imperiosa necessidade de culpar aos outros, que patrimnio especfico dos coraes inferiores..

Iniciaram-se com a troca do pronome: teus filhos. E, alm do insulto, havia a insdia, a atmosfera se carregava.Me parece disse-lhe uma noite Mazzini, que acabava de entrar e lavava as mos que poderias deixar mais limpos os meninos.

Berta continuo lendo como si no o houvesse ouvido.

a primeira vez refez-se a tempo que te vejo inquietar-te pelo estado de teus filhos.

Mazzini voltou um pouco a cara para ela com um sorriso forado:

De nossos filhos, me parece?

Bom; de nossos filho. Fica bem assim? levantou ela os olhos.

Desta vez, Mazzini expressou-se claramente:

Creio que no vais dizer que eu tenho a culpa, no?

Ah, no! sorriu Berta, muito plida porm eu tampouco, suponho...! No faltava mais...! murmurou

O qu, no faltava mais?

Que se algum tem a culpa, no sou eu, entenda-o muito bem! Isso o que queria te dizer.

Seu marido olhou-a por um momento, com um brutal desejo de insult-la.

Deixemos! articulou, secando-se por fim as mos.

Como quiseres; porm se quiseres dizer.

Berta!

Como quiseres!

Este foi o primeiro choque, e lhes sucederam outros. Porm, nas inevitveis reconciliaes, suas almas uniam-se com duplo arrebatamento e loucura por outro filho.

Nasceu assim uma menina. Viveram dois anos com a angstia flor da pele, esperando sempre outro desastre. Nada aconteceu, entretanto, e os pais puseram nela toda sua complacncia, que a pequena levava ao mais extremos limites do mimo e da m criana.

Se assim nos ltimo tempo Berta cuidava sempre de seus filhos, ao nascer Bertita, esqueceu-se quase de todo dos outros. S sua recordao a horrorizava, como algo atroz que a houvessem obrigado a cometer. A Mazzini, bem que em menor grau, acontecia o mesmo.

No por isso a paz havia chegado a suas almas. menor indisposio de sua filha, corria para fora, com o terror de perd-la, os rancores de sua descendncia podre. Tinham acumulado ressentimento de sobra para que o vaso ficasse tenso, e ao menor contato o veneno o veneno se esvaziasse para fora. Desde o primeiro desgosto inoculado, haviam-se perdido o respeito; e se h algo que o homem se sente trasladado com cruel gozo quando j se comeou a humilhar de todo a uma pessoa. Antes se continham pela mtua falta de xito; agora que este havia chegado, cada qual, atribuindo-o a si mesmo, sentia maior a infmia das quatro aberraes que o outro lhe havia forado a conceber.

Com estes sentimentos, no houve j para os quatro filhos maiores nenhum afeto possvel. A empregada domstica os vestia, dava-lhes de comer, deitava-os, com visvel brutalidade. Quase nunca os banhava. Passavam quase todo o dia sentados de frente para o muro, abandonados de qualquer remota carcia.

Deste modo, Bertita cumpriu quatro anos, e nessa noite, por causa dos doces que era aos pais absolutamente negar-lhe, a menina teve calafrios e febre. O temor de v-la morrer ou tornar-se idiota, tornou a reabrir a eterna ferida.

Fazia trs horas que no se falavam e o motivo foi, como quase sempre, os fortes passos de Manzini.

Meu Deus! No podes caminhar mais devagar? Quantas vezes...?

Bem, que me esqueo. Acabou-se. No o fao de propsito.

Ela sorriu com desdm:

No, no te acredito tanto!

Nem eu, jamais, tinha acreditado tanto em ti....tisiquinha!

Qu! Qu disseste...?

Nada!

Sim, ouvi algo de ti! Olha, no sei o que disseste; porm te juro que prefiro qualquer coisa a ter um pai como o que tens tido tu!

Manzini ficou plido.

Por fim! murmurou com os dentes cerrados. Por fim, vbora, hs dito o que querias!

Sim, vbora, sim! Porm eu tive pais sadios! Ouves? Sadios! Meu pai no morreu de delrios!Eu havia de ter tido filhos como os de todo o mundo! Esses so filhos teus, os quatro, teus!

Mazzini explodiu por sua vez:

Vbora tsica!Isso o que lhe disse, o que quero te dizer! Pergunta-o ao mdico, pergunta ao mdico quem tem a maior culpa da meningite de teus filhos: meu pai ou teu pulmo doente, vbora!

Continuaram cada vez mais com maior violncia, at que um gemido de Bertita selou instantaneamente suas bocas. uma da manh, a ligeira indigesto havia desaparecido, como acontece fatalmente com todos os casais jovens que tm se amado intensamente uma vez sequer, a reconciliao chegou, tanto mais efusiva quanto mais ofensivos foram os ultrajes.

Amanheceu um dia esplndido, e enquanto Berta se levantava, cuspiu sangue. As ms emoes e a m noite passada tinham, sem dvida, grande culpa. Mazzini a reteve abraada um longo tempo, e ela chorou desesperadamente, porm sem que nenhum se atrevesse a dizer uma palavra..

s dez decidiram sair, depois de comer. Como mal tinham tempo, ordenaram empregadaque matasse uma galinha.

O dia radiante havia arrebatado os idiotas de seu banco. De modo que enquanto a empregada degolava na cozinha a ave, dessangrando-a com parcimnia (Berta havia aprendido de sua me este bom modo de conservar a carne mais fresca), acreditou sentir algo como respirao atrs dela. Voltou-se, e viu aos quatro idiotas, com os ombros emparelhados um ao outro, olhando estupefatos a operao...Vermelho...Vermelho. Senhora, os meninos esto aqui na cozinha.

Berta chegou; no queria que jamais pisassem ali. E nem ainda nessas horas de pleno perdo e felicidade reconquistada, podia evitar-se essa horrvel viso! Porque, naturalmente, quando mais intensos eram os xtases de amor a seu marido e sua filha, mais irritado era seu humor com os monstros.

Que saiam, Maria! Expulse-os! Expulse-os, lhe digo!

As quatro pobres bestas, sacudidas, brutalmente empurradas, foram para seu banco.

Depois de almoar, saram todos. A empregada foi a Buenos Aires, e o casal a passear pelas chcaras. Quando o sol baixou voltaram, porm, Berta quis saudar um momento suas vizinhas de frente. Sua filha escapou-se em seguida rumo a casa.

Entretanto os idiotas no se haviam movido todo o dia de seu banco. O sol j havia transposto o muro, comeava a fundir-se, e eles continuavam contemplado os ladrilhos, mais inertes do que nunca.

De repente, algo se interps entre seu olhar e o muro. Sua irm, cansada de cinco horas junto ao pai, queria observar por sua conta. Parada ao p do muro, olhava pensativa o cume. Queria subir, isso no oferecia dvida. Por fim decidiu-se por uma cadeira, sem fundos, porm faltava mais. Recorreu ento a uma caixa de querosene e seu instinto topogrfico fez-lhe colocar o mvel na vertical, com o qual triunfou.

Os quatro idiotas, com o olhar indiferente, viram como sua irm lograva pacientemente dominar o equilbrio, e como, na ponta dos ps, apoiava a garganta sobre o topo do morro, entre suas mos delicadas. Viram-na olhar para todos os lados, e buscar apoio com o p para elevar-se mais.

Porm o olhar dos idiotas havia se animado. Uma mesma luz insistente estava fixa em suas pupilas. No afastavam os olhos de sua irm, enquanto uma crescente sensao de gula bestial ia transtornando cada linha de seus rostos. Lentamente avanaram at o muro. A pequena, que tendo conseguido calar um p, ia j montar a cavalo no muro e a cair do outro lado, seguramente, mas sentiu-se segura pela perna. Debaixo dela, os oito olhos cravados nos seus lhe deram medo.

Solta-me! Deixa-me! gritou sacudindo a perna. Porm foi atrada.

Mame! Ai, Mame! Mame, papai! chorou imperiosamente. Tratou ainda de agarrar-se borda, porm sentiu-se arrancada e caiu.

Mame, a! Ma... No conseguiu gritar mais. Um deles lhe apertou o pescoo e os outros arrastaram-na por uma s perna at a cozinha, onde essa manh haviam dessangrado a galinha, bem submissa, arrancando-lhe a vida por segundos.

Mazzini, na casa em frente, acreditou ouvir a voz de sua filha.

Me parece que te chama disse-lhe Berta.

Prestaram ateno, inquietos, porm no ouviram mais nada. Contudo, um instante depois se separaram, e enquanto Berta ia deixar seu chapu, Manzzini avanou no ptio:

Bertita!

Ningum respondeu.

Bertita! elevou mais a voz, j alterada.

E o silncio foi to fnebre para seu corao sempre aterrorizado, que a coluna se lhe gelou de um horrvel pressentimento

Minha filha! correu j desesperado at os fundos. Porm ao passar em frente da cozinha, viu no piso um mar de sangue. Empurrou violentamente a porta entreaberta, e lanou um grito de horror.

Berta, que j se havia lanado correndo por sua vez ao ouvir o aflito chamado do pai, ouviu o grito e respondeu com outro. Porm ao precipitar-se na cozinha, Manzini, muito lvido, interps-se, contendo-a.

No entres! No entres!

Berta conseguiu ver o piso inundado de sangue. S pde jogar seus braos sobre a cabea e abraar-se ao marido com um spero suspiro.O TRAVESSEIRO DE PENAS - Horacio Quiroga

Sua lua-de-mel foi um longo arrepio. Loura, angelical e tmida, o temperamento rude de seu marido enregelou seus sonhos infantis de noiva. Amava-o muito, entretanto, s vezes com um leve estremecimento quando, voltando noite juntos pela rua, lanava um olhar furtivo alta estatura de Jordn, silencioso j h uma hora. Ele, por sua vez, a amava profundamente, sem revelar seu amor.

Durante trs meses casaram-se em abril viveram uma felicidade toda especial. Ela sem dvida desejaria menos rigidez naquele austero cu de amor, uma ternura mais atrevida e expansiva, mas o impassvel semblante do marido sempre a continha.A casa em que viviam influa um pouco em seus tremores. A brancura do ptio silencioso frisos, colunas e esttuas de mrmore produzia uma outonal impresso de palcio encantado. Dentro, o brilho glacial do gesso, sem o mais leve arranho nas altas paredes, acentuava aquela sensao de frio desagradvel. Ao passar de um cmodo a outro, os passos ecoavam por toda a casa, como se um longo abandono tivesse acentuado sua ressonncia.Nesse espantoso ninho de amor, Alicia passou todo o outono. Entretanto, acabou por lanar um vu sobre seus antigos sonhos e vivia entorpecida na casa hostil, sem querer pensar em coisa alguma at que chegasse o marido.

No era estranho que emagrecesse. Contraiu uma leve gripe que se arrastou insidiosa por dias e dias; Alicia no se recuperava. Finalmente, uma tarde pde ir ao jardim apoiada no brao do marido. Olhava indiferente de um lado para outro. De repente, com profunda ternura, Jordn passou-lhe a mo na cabea, e Alicia imediatamente comeou a soluar, envolvendo-lhe o pescoo com os braos. Chorou longamente todo o seu medo silencioso, redobrando o pranto menor tentativa de carcia. Ento os soluos foram rareando e ela ficou ainda por algum tempo escondida em seu colo, sem se mexer ou falar.

Foi esse o ltimo dia que Alicia passou de p. No dia seguinte amanheceu desfalecida. O mdico de Jordn examinou-a com todo o cuidado, ordenando-lhe calma e descanso absolutos.

No sei disse a Jordn na porta da casa, com a voz ainda baixa. Ela sofre de uma grande debilidade que no consigo explicar, e sem vmitos, nada... Se amanh acordar como hoje, me chame imediatamente.No dia seguinte, Alicia continuava a piorar. Nova consulta. Constatou-se uma anemia de evoluo agudssima, completamente inexplicvel. Alicia no sofreu outros desmaios, mas estava visivelmente a caminho da morte. Durante todo o dia o quarto esteve com as luzes acesas e em total silncio. Passavam-se horas sem que se ouvisse qualquer rudo. Alicia dormitava. Jordn praticamente vivia na sala. tambm com todas as luzes acesas. Andava sem parar de um extremo a outro, com incansvel obstinao. O tapete abafava seus passos. De vez em quando, entrava no quarto e continuava seu mudo vaivm ao lado da cama. olhando para a mulher sempre que caminhava na sua direo.

Logo Alicia comeou a ter alucinaes, confusas e nebulosas no incio, e que logo desceram ao nvel do cho. A jovem, olhos esbugalhados, s fazia olhar para o tapete dos dois lados da cabeceira da cama. Uma noite, parou de repente com o olhar fixo. Imediatamente abriu a boca para gritar e suas narinas e lbios se cobriram de suor.

Jordn! Jordn! gritou, tensa de espanto, sem parar de olhar para o tapete. Jordn correu para o quarto e, ao v-lo, Alicia deu um grito de horror. Sou eu, Alicia, sou eu!

Alicia olhou-o aturdida, olhou para o tapete, olhou de novo para ele e, depois de um longo momento de perplexa comparao, acalmou-se. Sorriu e tomou entre as suas a mo do marido, acariciando-a tremendo.

Entre suas alucinaes mais frequentes havia um macaco, apoiado no tapete sobre os dedos, que mantinha os olhos fixos nela.

Os mdicos voltaram inutilmente. Ali estava, diante deles, uma vida que se acabava, definhando dia a dia, hora a hora, sem que se soubesse como.

Na ltima consulta, Alicia jazia em estupor enquanto eles lhe tomavam o pulso, passando uns aos outros o punho inerte. Observaram-na por muito tempo em silncio e se dirigiram sala de jantar.

Xi... ergueu os ombros o mdico, desanimado. um caso srio... quase nada a fazer... Era s o que me faltava! grunhiu Jordn. E tamborilou bruscamente sobre a mesa.Alicia foi se extinguindo em seu delrio de anemia, agravado tarde, mas que sempre cedia nas primeiras horas. Durante o dia sua enfermidade no avanava, mas todas as manhs amanhecia lvida, quase em sncope. Parecia que durante a noite se lhe esvaa a vida em novas ondas de sangue. Tinha sempre ao despertar a sensao de estar derrubada na cama com um milho de quilos por cima. A partir do terceiro dia esse desmoronamento no mais a abandonou. Mal conseguia mover a cabea. No quis que tocassem na cama, nem que lhe arrumassem o travesseiro. Seus terrores crepusculares avanaram em forma de monstros que se arrastavam at a cama e subiam com dificuldade pela colcha.

Logo perdeu a razo. Nos dois dias finais delirou sem parar, a meia voz. As luzes continuavam funebremente acesas no quarto e na sala. No silncio agonizante da casa, nada se ouvia alm do delrio montono que saa da cama e do rudo abafado dos eternos passos de Jordn.

Finalmente morreu. A criada, que entrou depois para desfazer a cama, j vazia, olhou surpresa para o travesseiro.

Senhor! chamou Jordn em voz baixa. No travesseiro h manchas que parecem de sangue.Jordn aproximou-se rapidamente e se inclinou por sua vez. De fato, sobre a fronha, em ambos os lados do buraco deixado pela cabea de Alicia, viam-se manchinhas escuras.

Parecem picadas murmurou a criada depois de um instante de imvel observao. Levante-o perto da luz disse-lhe Jordn.A criada levantou-o, mas logo o deixou cair e ficou olhando para aquilo, lvida e tremendo. Sem saber por qu, Jordn sentiu que seus plos se eriavam.

O que h? murmurou com voz rouca. Est muito pesado balbuciou a criada, sem parar de tremer. Jordn levantou-o; estava pesadssimo. Saram com ele e, sobre a mesa de jantar, Jordn cortou fronha e capa de um s golpe. As penas superiores voaram e a criada deu um grito de horror com a boca muito aberta, levando cabea as mos crispadas: no fundo, entre as penas, movendo lentamente as patas peludas, havia um animal monstruoso, uma bola viva e viscosa. Estava to inchado que mal se distinguia sua boca.Noite aps noite, desde que Alicia cara de cama, aplicara secretamente sua boca, sua tromba, melhor dizendo s tmporas da moa, chupando-lhe o sangue. A picada era quase imperceptvel. A remoo diria do travesseiro sem dvida impedira seu crescimento, mas desde que a jovem deixou de se mover, a suco foi vertiginosa. Em cinco dias, em cinco noites, esvaziara Alicia.Esses parasitas das aves, diminutos em seu habitat natural, chegam a adquirir, em determinadas condies, propores enormes. O sangue humano lhes parece ser especialmente favorvel, e no raro encontr-los em travesseiros de penas.

O MEL SILVESTRE Horcio Quiroga

Tenho em Salto Oriental dois primos hoje j homens feitos que, aos doze anos, e por decorrncia das profundas leituras de Jlio Verne, meteram-se no profcuo desafio de abandonar a casa para viver na mata. Esta fica a duas lguas da cidade. Ali, viveriam primitivamente da caa e da pesca. Certo que os garotos no se lembraram de levar consigo escopeta e anzis; mas, de toda forma, a mata estava ali, com sua liberdade como fonte de felicidade, e seus perigos como encanto.Infelizmente, no segundo dia, foram encontrados por quem os procurava. Estavam bastante atnitos ainda, no pouco debilitados e, para o grande assombro dos irmos menores iniciados tambm em Jlio Verne , ainda conseguiam andar sobre os dois ps e ainda sabiam falar.Mas a aventura dos dois robinsons teria sido mais adequada se tivesse por teatro outra mata menos domingueira. Aqui, nas Misses, as escapadas conduzem a limites imprevistos, e a eles foi impelido Gabriel Benincasa, justamente pelo orgulho que tinha de suas botas de tempestade.

Tendo Benincasa concludo os seus estudos de Contabilidade Pblica, sentiu um fulminante desejo de conhecer a vida da selva. A isto no o induziu o seu temperamento, j que, devido sua excelente sade, Benincasa era um rapaz pacfico, gordalho e de face rosada. Portanto, era suficiente lcido para preferir um ch com leite e pasteizinhos a quem sabe que fortuita e infernal comida das matas. Mas, semelhana de um solteiro ajuizado, que acredita ser o seu dever, vspera do casamento, despedir-se da vida livre com uma noite de orgia em companhia de seus amigos, Benincasa, de igual modo, quis honrar a sua vida regrada com dois ou trs choques de vida intensa. Por esse motivo, subia ele o Paran, a caminho de um obraje estabelecimento de explorao florestal com as suas famosas botas de tempestade.Mal sara de Corrientes, calara as suas botas robustas, pois os jacars da margens j esquentavam a paisagem. Apesar disso, o contador pblico cuidava muito bem de seu calado, evitando os arranhes e os sujos contatos.

Deste modo, chegou ao obraje de seu padrinho, que, desde ento, teve de conter a afoiteza de seu afilhado:

Para onde voc vai agora? perguntou, surpreso. mata. Quero percorr-la um pouco respondeu Benincasa, que acabara de pendurar o winchester no ombro. Mas, infeliz! Voc no vai conseguir dar um passo. Siga a picada, caso queira. Ou melhor: deixe essa arma e amanh eu lhe mando um peo para acompanh-lo.

Benincasa abdicou do passeio. Entretanto, foi at a beirada do mato, detendo-se ali mesmo. Intentou, vagamente, um passo adentro, mas prostrou-se, quieto. Enfiou a mo nos bolso e olhou detidamente aquele emaranhado inextricvel, assoviando, baixinho, sopros incompletos. Depois de observar novamente, de um lado a outro, a mata, retornou bastante desiludido.

Entretanto, no dia seguinte, percorreu a picada central por uma lgua. Benincasa no lamentou o passeio, embora o seu fuzil tenha voltado profundamente adormecido. Pouco a pouco, as feras viriam.

Na segunda noite, elas chegaram, embora tivessem caractersticas um tanto peculiares.

Benincasa dormia profundamente quando foi acordado pelo padrinho.

Ei, dorminhoco! Levante-se, seno elas o comem vivo !

Benincasa sentou-se bruscamente na cama, deslumbrado pela luz de trs lanternas de vento que se moviam de um lado para o outro na pea. Seu padrinho e dois pees lavavam o cho.

O que foi? O que foi? perguntou, pondo-se de p.Banincasa j havia sido instrudo acerca das curiosas formigas a que chamamos tanoca. So pequenas, negras, brilhantes e marcham velozmente e em colunas mais ou menos largas. So essencialmente carnvoras. Avanam devorando tudo o que encontram em seu caminho: aranhas, grilos, escorpies, sapos, serpentes e qualquer ente vivo que no possa resistir a elas. No h animal, grande ou forte que seja, que no fuja delas. A invaso domstica supe o extermnio absoluto de todo ser vivente, pois no h canto ou buraco profundo em que no se precipite a coluna devoradora. Os ces uivam, os bois mugem e a todos imperioso abandonar a casa, sob pena de serem rodos, em dez horas, at o esqueleto. Permanecem no mesmo lugar um, dois, ou at cinco dias, conforme a sua abundncia em insetos, carne ou gordura. E, tendo devorado tudo, partem. Mas no resistem creolina ou substncia similar. E como no obraje h sempre creolina, em menos de uma hora o chal ficou livre da tanoca.

Benincasa observava, de pertinho, a placa lvida de uma mordedura no p.

Realmente, picam muito forte disse, surpreso, erguendo a cabea para o padrinho.O padrinho, para quem a observao no tinha qualquer valor, no respondeu; ao revs, felicitou-se por haver contido a tempo a invaso. Benincasa reatou o sonho, mesmo que sobressaltado, toda a noite, por pesadelos topicais.

No dia seguinte, adentrou mata, desta feita empunhando faco, pois afinal compreendera que este lhe seria muito mais til do que o fuzil. Mas certo que o seu pulso no era nenhuma maravilha, e a sua habilidade, muito menos. De qualquer maneira trinchava os ramos, aoitava o rosto e talhava a bota. Tudo de uma s vez.

A mata crepuscular e silenciosa logo o enfadou. Dava-lhe a impresso exata, de resto de um cenrio visto de dia. Da ativa vida tropical no h, nesta hora, mais que o teatro gelado. Nem um animal, nem um pssaro, quase nenhum rudo. Benincasa j retornava quando um zumbido lhe chamou a ateno. A dez metros, num tronco oco, pequenas abelhas aureolavam a entrada do buraco. Aproximou-se com cautela e viu, no fundo da abertura, doze bolas escuras, do tamanho de um ovo. mel disse a si mesmo o contador pblico, com ntima gula. Devem ser bolsinhas de cera, cheias de mel...Mas entre ele Benincasa e as bolsinhas interpunham-se as abelhas. Depois de um momento de descanso, pensou em fogo. Faria uma boa fumarada. Quis a sorte que, ao se acercar o ladro, cautelosamente, com a folhagem mida, quatro ou cinco abelhas pousassem na sua mo, mas sem pic-la. Em seguida, Benincasa colheu no ar uma delas e, pressionando-lhe o abdome, constatou que no tinha ferro. Sua saliva, j leve, se refinou em melfica abundncia. Maravilhosos e bons animaizinhos!Num instante, o contador desprendeu as bolsinhas de cera e, afastando-se um bocadinho, para escapar ao pegajoso contato das abelhas, sentou-se numa raiz de rvore. Sete das doze bolas continham plen, mas as demais estavam repletas de mel. Um mel escuro, de sombria transparncia, que Benincasa experimentou gulosamente. Tinha o gosto de alguma coisa. De que seria? O contador no conseguia apurar. Certamente de resina de frutas ou eucalipto. Por igual motivo, o denso mel deixava na boca um rano acre. Mas, em compensao, que perfume!

Benincasa, uma vez bem seguro de que umas cinco bolsinhas j lhe seriam teis, ps as mos obra. Sua ideia era simples: manter suspenso sobre a boca o favo gotejante. Mas, como o mel era espesso, teve, depois de haver permanecido meio minuto com a boca inutilmente aberta, de ampliar o buraco. Ento o mel aflorou, adelgaando-se em pesado fio at a lngua do contador.

Um aps o outro, os cincos favos se esvaziaram na boca de Benincasa. Foi intil suspender os favos por mais tempo, sobretudo porque j espremera as bolsinhas at esgot-las. Teve que resignar-se.

Entretanto, a posio da cabea, virada para o alto, o deixara um pouco tonto. Pesado de mel, quieto e com os olhos bem abertos, Benincasa contemplou novamente a mata crepuscular. As rvores e o sol adquiriam posturas demasiadamente oblquas e sua cabea acompanhava o oscilar da paisagem.

- Que tontura estranha pensou o contador. E o pior de tudo que...Ao levantar-se e intentar um passo, viu-se obrigado a cair de novo sobre o tronco. Sentia o corpo como chumbo, sobretudo as pernas, como se estas estivessem imensamente inchadas. E os ps e as mos formigavam.

muito esquisito, esquisito, esquisito! repetiu estupidamente Benincasa, sem perscrutar o motivo daquela estranheza. Era como se houvesse formigas... A tanoca concluiu.E, de sbito, secamente, num espanto, faltou-lhe a respirao.

Deve ser o mel! venenoso! Estou envenenado!

E num segundo esforo para reerguer-se, os seus cabelos eriaram-se de terror. No podia sequer se mover. Agora a sensao de chumbo e o formigueiro subiam at a cintura. Por um instante, o horror de morrer ali, miseravelmente s, longe de sua me e de seus amigos, lhe coibiu qualquer meio de defesa.

Vou morrer agora! J, j , morrerei! No consigo sequer mover a mo!

Constatou, em seu pnico, que no tinha febre nem ardor na garganta e que o corao e os pulmes conservavam o ritmo normal. Sua angstia mudou de forma.

Estou paraltico! a paralisia! E ningum vai me encontrar!

Mas uma visvel sonolncia comeava a apoderar-se dele, deixando-lhe intactas, todavia, as faculdades mentais, ao passo que a tontura se acelerava. Assim, acreditou notar que o solo oscilante tornava-se negro e se agitava vertiginosamente. Outra vez veio-lhe memria a lembrana da tanoca, e em seu pensamento fixou-se, como uma suprema angstia, a possibilidade de que aquilo negro que invadia o solo era...

Ainda teve fora para suplantar este ltimo espanto, e, ento, lanou um grito, um verdadeiro alarido, em que a voz de um homem recobra a entonao de uma criana apavorada: por suas pernas subia uma clere coluna de formigas negras. Em sua volta, a tanoca devoradora escurecia o solo, e o contador sentiu, sob a cueca, um rio de formigas carnvoras a subir.

Finalmente, dois dias depois, o padrinho encontrou, sem a menor partcula de carne, o esqueleto vestido com as roupas de Benincasa. A tanoca que ainda zanzava pelo lugar e as bolsinhas de cera deram-lhe claramente a explicao.No comum que o mel silvestre contenha tais propriedades narcticas ou paralisantes, mas pode-se encontr-lo, ainda assim. Flores com iguais caractersticas abundam nos trpico e o sabor do mel denuncia, na maioria dos casos, a sua condio: como o rano de resina eucalipto que Benincasa julgou sentir.

O FILHO Horcio Quiroga

um poderoso dia de vero nas Misses, com todo sol, calor e calma que a estao pode proporcionar. A natureza, plenamente aberta, sente-se satisfeita consigo mesma.

Com o sol, o calor e o calmo ambiente, o pai abre tambm o seu corao natureza.

Tenha cuidado, garoto diz ao filho, condensando nessa frase todas recomendaes, e o seu filho a entende perfeitamente. Sim, papai responde a criana, enquanto pega a escopeta e carrega de cartuchos os bolsos da camisa, fechando-os com cuidado. Volte na hora do almoo observa ainda o pai. Sim, papai repete o garoto.Equilibra a escopeta na mo, sorri ao pai, beija-o na cabea e parte. O pai o segue por um instante com os olhos, e volta aos afazeres do dia, feliz com a alegria do seu menino.

Sabe o que o filho educado desde a mais tenra infncia no hbito e na precauo ao perigo: pode manejar um fuzil e caar qualquer coisa. alto para a idade, mas tem apenas treze anos. E parecia ter menos, a julgar pela pureza dos olhos azuis, ainda frescos de surpresa infantil. O pai no precisa desviar os olhos dos afazeres, porque segue com a mente a marcha do seu filho.

J cruzou a picada vermelha e agora segue direto para o mato, atravs do caminho aberto entre as touceiras de capim.

Para caar no mato caa de pelo preciso mais pacincia que o seu menino pode render. Depois de atravessar essa ilha de mato, o filho contornar os limites de cacto at o charco, procurando pombos, tucanos ou certo casal de garas, que Juan, amigo dele, descobrira h alguns dias. Somente agora o pai esboa um sorriso lembrana da paixo cinegtica das crianas. s vezes, caam somente um jacu-touro, um surucu at menos ainda e regressam triunfantes: Juan fazenda, com o fuzil de nove milmetros, que ele lhe deu de presente; o filho, plancie, com a grande escopeta Saint-tienne, calibre 16, ferrolho qudruplo e plvora branca.Tambm com ele era assim. Aos treze anos, daria a vida para ter uma escopeta. Seu filho, daquela idade, j tem uma, e o pai sorri.

Todavia, no fcil para um pai vivo, sem outra f ou esperana que no a vida de seu filho, educ-lo como ele o tem feito, livre em seu curto raio de ao, seguro de seus pequenos ps e mos desde que tinha quatro anos, consciente da imensido de certos perigos e da insuficincia de suas prprias foras.

Esse pai teve de lutar bravamente contra o que ele considerava seu egosmo. Uma criana facilmente calcula mal, pisa no vazio e se perde um filho!

O perigo subsiste sempre para o homem em qualquer idade; mas sua ameaa arrefece se desde pequeno o filho acostumado a contar apenas com as prprias foras.

Deste modo, tem o pai educado o filho. E, para consegui-lo, teve de resistir no apenas ao prprio corao, mas tambm aos tormentos morais; porque esse pai, de estmago e vista dbeis, sofre, j h algum tempo, de alucinaes.

Viu, transmudadas em dolorosa iluso, as recordaes de uma felicidade que no mais deveria brotar do nulidade em que se enclausurara. A imagem de seu prprio filho no escapou a esse tormento. E viu o garoto rolar, coberto de sangue, no momento em que percutia, no torno da oficina, uma bala parabellum; mas, na verdade, a criana apenas limava a fivela do cinturo de caa.

Um acontecimento terrvel... Mas hoje, com o ardente e vital dia de vero, que parece uma herana do amor a seu filho, o pai se sente feliz, tranquilo e seguro do futuro.

Neste instante, no muito longe, soa um tiro.

a Saint-tiene... cogita o pai, ao reconhecer a detonao. Dois pombos a menos na mata.Sem mais atentar ao nfimo acontecimento, o homem se abstrai de novo em seu trabalho.

O sol, j muito alto, continua a subir. Para onde quer que se olhe pedra, terra, rvores , o ar rarefeito, como em um forno, vibra com o calor. Um profundo zumbido, que toca a plenitude, e impregna a atmosfera at onde a vista alcana, concentra nessa hora toda a vida tropical.O pai consulta o pulso: doze horas. Ento, levanta os olhos para a mata. Seu filho j devia estar de volta. Na mtua confiana que depositaram um no outro o pai de tmporas prateadas e a criatura de treze anos , no h lugar para mentiras. Quando o filho responde: sim, papai, cumprir com a palavra. Ele disse que voltaria antes do meio-dia, e o pai sorriu ao v-lo partir. Mas no voltou.O homem retoma os afazeres, esforando-se em concentrar a ateno em sua tarefa. mesmo fcil, to fcil, perder a noo do tempo dentro da mata, e sentar-se um pouquinho no cho, enquanto se descansa, imvel, no ?

O tempo passou. So doze e meia. O pai sai da oficina e, ao apoiar a mo no balco de mecnico, ressoa, do fundo de sua memria, o estampido de uma bala parabellum. Instantaneamente, pela primeira vez, j passadas trs horas, d-se conta de que, depois do tiro da Sain-tienne, no ouviu nada mais. No ouviu rolar o pedregulho sob um passo conhecido. Seu filho no voltou e a natureza se acha imvel na margem do bosque, a esper-lo.

Oh! Um carter tranquilo e uma cega confiana na educao de um filho no so suficientes para afugentar o espectro da fatalidade que um pai de vista fraca v erguer-se dos confins da mata. Distrao, esquecimento, demora fortuita: nenhum desses insignificantes motivos, que podem retardar a chegada de seu filho, encontra acolhida naquele corao.

Um tiro... S um tiro ecoou, e h muito tempo. Depois do estampido, o pai no mais ouviu um rudo, no mais viu um pssaro, sequer uma s pessoa cruzou a clareira para anunciar-lhe que, ao cruzar uma cerca, uma grande desgraa...

Sem chapu e sem faco, o pai ganha caminho. Transpe a clareira de touceiras, entra no mato e contorna o muro de cactos, mas sem achar o menor sinal de seu filho.

E a natureza continua esttica. Mas quando o pai percorre as sendas conhecidas e, em vo, explora o charco, adquire a certeza de que cada passo que d o leva, fatal e inexoravelmente, ao cadver do filho.

Nenhuma censura a ser feita, lamentvel. S a realidade fria, terrvel e consumada: seu filho morreu ao cruzar uma cer... Mas, onde, em que lugar? H tantas cercas ali, e to, to sujo o matagal! Oh, muito sujo! Por pouco que ele se descuide ao cruzar os fios com a escopeta mo...

O pai reprime um grito. Viu levantar-se no ar... Oh, no o seu filho, no! E volta-se para outro lado, e para outro e outro ainda...

Nada se ganharia em ver a cor de sua pele e a angstia em seus olhos. Esse homem ainda no chamou pelo filho. Embora o seu corao clame por ele aos gritos, a boca continua muda. Sabe bem que o to s ato de pronunciar o seu nome, de cham-lo em voz alta, ser a confisso da morte do filho.

Meu garotinho! escapa-lhe de repente. E se a voz de um homem enrgico capaz de chorar, tapemos os ouvidos por misericrdia, ante a angstia que clama naquela voz.Ningum respondeu. Pelas picadas rubras de sol, envelhecido dez anos, segue o pai procurando pelo filho que acabara de morrer.

Meu filho! Meu menininho! clama ele num diminutivo que irrompe do fundo de suas entranhas.J antes, em plena felicidade e paz, esse pai sofrera uma alucinao, em que seu filho rolava com a fronte traspassada por uma bala de cromo-nquel. Agora, em cada rinco sombrio do bosque, ele v chispas de arame. E, ao p de um poste, com a escopeta descarregada ao lado de si, ele v seu...

Garotinho! Meu filho!

As foras que permitem entregar um pobre e alucinado pai ao mais atroz pesadelo tambm tm um limite. E o nosso sente que as suas foras se lhe escapam, quando v repentinamente assomar, de uma vereda lateral, o seu filho.

Para um garoto de treze anos bastante ver, a cinquenta metros, a expresso de seu pai sem faco, dentro da mata, para apressar o passo com os olhos midos.

Garoto... murmura o homem. E, exausto, deixa-se cair sentado na areia alvejante, cingindo com os braos as pernas de seu filho.A criatura, assim cingida, fica de p; e, como compreende toda a dor de seu pai, lhe acaricia lentamente a cabea:

Pobre papai...

Enfim, o tempo passou. J eram quase trs horas.

Agora juntos, pai e filho empreendem o regresso a casa.

Por que voc no se guiou pelo sol para saber a hora? murmura ainda o primeiro. Eu me guiei, pai. Mas, quando ia voltar, vi as garas de Juan e fui atrs delas.

O que voc me fez passar, garoto!

Paizinho... murmura tambm o garoto.Depois de um longo silncio:

E as garas... Matou-as? pergunta o pai. No.

Detalhe sem importncia, afinal. Sob o cu e o ar incandescentes, a descoberto pela clareira de touceiras, o homem volta a casa com seu filho, sobre cujos ombros, quase to altos quanto os seus, repousa o feliz brao de pai. Regressa encharcado de suor e, embora alquebrado de corpo e alma, sorri de felicidade.

Sorri de alucinada felicidade... Pois esse pai segue sozinho.

Afinal, ele no encontrou ningum, e seu brao se apoia no vazio. Porque atrs dele, ao p do poste, com as pernas erguidas, enredadas no arame farpado, seu adorado filho jaz ao sol, morto desde as dez horas da manh.

DERIVA Horcio Quiroga

O homem pisou algo brando e mole e, em seguida, sentiu a picada no p. Saltou para frente, e ao se voltar com um palavro, viu a jararacuu que se recolhia sobre si mesma; preparava outro ataque.

O homem lanou uma rpida olhada a seu p, de onde duas gotinhas de sangue engrossavam dificultosamente, e ento sacou o faco da cintura. A vbora viu a ameaa, e fundiu mais a cabea no centro mesmo de sua espiral; porm o faco caiu sobre ela, deslocando-lhe as vrtebras.

O homem abaixou-se para olhar a mordida, limpou as gotinhas de sangue, e durante algum tempo contemplou. Uma dor aguda nascia dos dois pontinhos violeta, e comeava a expandir-se por todo o p. Apressadamente, amarrou o tornozelo com o leno que trazia amarrado cintura, e seguiu pela picada at seu rancho.

A dor no p aumentava, e de repente, o homem sentiu dois ou trs fulgurantes pontadas que como relmpagos haviam-se irradiado da ferida, at a metade da panturrilha. Movia a perna com dificuldade; uma sede metlica na garganta, seguida de uma sede ardente, arrancou-lhe outro palavro.

Chegou finalmente ao rancho, e abraou a roda do moinho. O dois pontinhos violeta desapareciam agora na monstruosa inchao do p inteiro. Parecia-lhe enfraquecida, e a ponto de ceder, de to tensa. O homem quis chamar sua mulher, mas sua voz se quebrou num grunhido rouco de garganta ressecada. A sede o devorava.

Dorotea! conseguiu lanar um grito. Me d cachaa!Sua mulher correu com um copo cheio, que o homem sorveu de trs tragos. Porm no havia sentido gosto algum.

Te pedi cachaa, no gua! rugiu de novo. Quero cachaa! Mas cachaa, Paulino! protestou a mulher, espantada. No, me deste gua! Quero cachaa, te digo!

A mulher correu outra vez, voltando com o garrafo. O homem bebeu um atrs do outro trs copos, porm no sentiu nada na garganta.

Bom, isto est feio... murmurou ento, olhando seu p lvido e j com um brilho gangrenoso. Sobre a intensa atadura do leno, a carne transbordava como uma pavorosa morcela.

As dores fulgurantes sucediam-se em relmpagos contnuos, e chegavam agora virilha. Alm disso, a atroz sequido da garganta que o esforo parecia esquentar mais, aumentava. Quando pretendia encorpar-se, um fulminante vmito manteve-o meio minuto com a testa apoiada na roda de madeira.

Mas o homem no queria morrer, e descendo costa, subiu em sua canoa. Sentou-se na popa e comeou a remar at o centro do Paran. Ali, a correnteza do rio, que nas imediaes do Iguau corre por seis milhas, o levaria antes de cinco horas a Tacur-Puc.

O homem, com fatigada energia, pode efetivamente chegar at o meio do rio; no entanto, ali suas mos dormentes deixaram cair o remo na canoa, e por causa de um novo vmito de sangue esta vez -, dirigiu um olhar ao sol que transpunha a montanha.A perna inteira, at metade da coxa, era j um pedao disforme e durssimo que rompia a roupa. O homem cortou a ligadura e abriu a cala com a faca: a parte inferior desbordou inchada, com grandes manchas lvidas e terrivelmente dolorosas. O homem pensou que no poderia jamais chegar sozinho a Tacur-Puc, e decidiu pedir ajuda a seu compadre Alves, embora fizesse muito tempo estivessem intrigados um com o outro.

A correnteza do rio precipitava-se agora para a costa brasileira, e o homem pode facilmente atracar. Arrastou-se pela picada costa acima, porm a vinte metros, exausto, ficou estendido de costas. Alves! gritou com a fora que pode; e prestou ateno em vo. Compadre Alves! No me negue este favor! clamou de novo, levantando a cabea do solo.

No silncio da selva, no se ouviu um s rumor. O homem teve ainda foras para chegar at sua canoa, e a correnteza, apoderando-se dela de novo, levou-a deriva.O Paran corre ali no fundo de uma imensa depresso, cujas paredes, com altura para l de cem metros, estreitam funebremente o rio. Desde as margens cercadas de negros blocos de basalto eleva-se o bosque, negro tambm. Adiante, s costas, sempre a eterna muralha lgrube, em cujo fundo o rio afunilado se precipita em incessantes erupes de gua lodosa. A paisagem agressiva, contudo, sua beleza sombria e calma cobra uma majestade nica.

O sol havia j havia cado, quando o homem, estendido no fundo da canoa, teve um violento calafrio. E, de repente, com assombro, ps na vertical pesadamente a cabea: sentia-se melhor. Somente a perna lhe doa, a sede apagava-se, e seu peito, livre j, abria-se em lenta inspirao.

O veneno comear a ir-se, no havia dvida. Achava-se quase bem, e embora no tivesse foras para mover a mo, contava com a vinda do orvalho para repor-se todo. Calculou que antes de trs horas estaria em Tacur-Puc.

O bem-estar progredia e, com ele, uma letargia cheia de recordaes. No sentia mais nada na perna nem no ventre. Viveria ainda seu compadre Gaona em Tacur-Puc? Por acaso veria tambm seu ex-patro, mister Dougald, e o encarregado de obras?

Chegaria repentinamente? O cu, a poente, abria-se agora num resplendor de sangue, e o rio se havia avermelhado tambm. Da costa paraguaia, j em trevas, a montanha deixava cair sobre o rio sua frescura crepuscular, em penetrantes eflvios de flores de laranjeiras e mel silvestre. Um casal de araras cruzou o cu muito alto e em silncio at o Paraguai.

L embaixo, sobre o rio de ouro, a canoa derivava velozmente, girando de tempos em tempos sobre si mesma, ante a erupo de um remoinho. O homem que ia nela se sentia cada vez melhor, e pensava no tempo justo em que havia passado sem ver seu ex-patro Dougald. Trs anos? Talvez, no tanto. Dois anos e nove meses? Talvez. Oito meses e meio? Isso sim, certamente.

De repente, sentiu que estava gelado at o peito. Que seria? E a respirao

Ao madeireiro de mister Dougald, Lorenzo Cubilla, havia conhecido em Puerto. Esperana em Sexta-feira Santa...Sexta-feira? Sim, ou quinta-feira

O homem estendeu lentamente os dedos da mo. Uma quinta-feira...

E parou de respirar.

O HOMEM ADRENOTRPICO Keith Brooke

Assassinaram-me a 22 de Junho de 1997, por volta do meio dia. Encontra-va-me a caminho de um almoo de trabalho na baixa, com o director regional, destacado durante alguns dias para se submeter quilo a que chamamos de consultas, ou seja, a minha misso era verificar-lhe todas as contas bancrias cujo saldo demasiado elevado no correspondia ao respectivo salrio. Detive-me durante alguns instantes na New Carnaby Street, para espreitar por uma montra o fim dos saldos da Boutique Macco Mans. Esbocei um sorriso. Tinha acabado de vender por bom preo, ainda h poucas semanas, todas as aces da Macco; pelos vistos o meu empurrozinho foi o suficiente para lhes deitar abaixo todo o castelo de cartas. Dentro de mais um ou dois meses, contava apanhar do cho todos os pedacinhos ao preo da chuva. Mas isto foi antes de ser assassinado.

O reflexo sorriu-me do outro lado do vidro. Um reflexo com trinta e seis anos, mas que ainda parecia estar na casa dos vinte; nem sinais da barriga dos executivos.

Sempre gostei de me manter em boa forma. Se controlarmos o corpo, tambm podemos controlar a mente. Desde a adolescncia que me tenho vindo a sujeitar a um rigoroso regime de exerccio fsico, acompanhado de comida saudvel. De facto, atribuo mesmo o meu recente sucesso nos negcios a esta fora interior de corpo e alma.

Virei as costas loja e prossegui passeio abaixo. O reflexo acompanhou-me, saltando de montra em montra.

Estremeci quando algum esbarrou comigo. Era um indivduo pequenote, com um fato s riscas, cara de fuinha, cabelos brancos colados cabea por uma mistura de Brylcream e leos naturais. Mas que merda vem a ser esta?, berrei, recuando aos tropees, sob a fora inesperada do impacto. Mil desculpas, chefe, murmurou o tipo, para logo de seguida se perder no meio da multido que andava s compras na hora de almoo. Durante alguns instantes, no momento em que ele se desculpava, os nossos olhares cruzaram-se e eu percebi tudo. Percebi mesmo. Este tipo era suposto assassinar-me. Limpar-me o sarampo com uma pistola automtica da janela de um Cadillac negro, ou estoirar com o meu apartamento. Enfim, coisas que deviam ser feitas com um certo estilo. Mas comigo no aconteceu assim. Afinal enviaram-me um meia leca de um Cockney jarreta, que estaria mais vontade na bancada de um mercado, do que a fazer as vezes de assassino. O meu antebrao exposto doa-me e eu comecei a esfreg-lo, preocupado.

Max Riesling, jovem empresrio americano, fundador e director administrativo da GenGen. Sabia perfeitamente que andavam atrs de mim, sabia que tinham posto a correr o anncio da minha execuo desde os finais de Maio, e mesmo assim continuei a expor-me vista de todos. Nem sequer contratei seguranas para tomar conta dos meus interesses. No fiz coisa nenhuma, abri-lhes todas as portas.

Vamos l manter a calma, toda esta excitao no serve para nada. Excitao sim, esse o termo correcto. Acalma-te. Vai mais devagar.

Mandaram-me a notcia pelo correio. Nada de vidfonemas, nem 'lecmails, limitaram-se a enviar-me um papel no interior de um envelope, entregue pelos servios do Pronto Postal Co., correio normal.

Mr. Riesling:

As suas aces no nos deixaram outra alternativa. Discutir pessoalmente estes assuntos no serve de nada com gente da sua ndole. Pode ter a certeza que j no vai estar vivo para falar no Inqurito. Seguem-se os devidos pormenores.

Com os melhores cumprimentos,

Grupo da Aco Verde.

Mas no havia pormenores nenhuns includos na carta, excepo de um clipe de papel. Espreitei no interior do envelope e descobri l dentro o documento solto, um folheto promocional sobre investimentos lucrativos. O panfleto tinha sido modificado para se ajustar presente situao.

Passei a maior parte da minha infncia nos States, principalmente nas cidades de Washington e New York. Foi ento que Rick, o meu pai, conseguiu um bom trabalho na indstria e mudmo-nos para Chicago. Esta cidade ventosa um lugar duro para se crescer. O nosso apartamento estava situado num condomnio um tanto ou quanto chungoso l para o Southside, um bairro agressivo, mas cujas ruas so uma boa escola da vida. Tive uns quantos empregos nos States, fui subindo a pulso as escadas das corporaes, mas, quando a oportunidade surgiu, mudei-me logo para Londres. J aqui tinha passado dois anos, quando era puto, e o Rick trabalhava no corpo diplomtico da Embaixada. Gostei tanto da cidade, que procurei sempre continuar a par das novidades sobre o que acontecia na Inglaterra. No incio do ano de 89, o Evening Post que costumava receber pelo correio, publicou um artigo sobre os Bioconstrutores, uma pequena firma de biotecnologia que tinha fechado por motivos de falncia.

Contactei o meu banco mas eles nem queriam saber. Ento dirigi-me pessoalmente ao Banco do Rick. Maxwell Riesling. Filho de Mister Riesling? Ora essa, claro que lhe prestamos toda a assistncia, meu caro senhor. Logo que consegui comprar os Bioconstrutores, arrendei um apartamento no bairro de Chelsea. Depois transferi a firma de Ealing para a zona rural do Dorset, apanhando pelo caminho vrios subsdios do Estado. Novos trabalhadores, um local diferente, nova administrao.

Afinal tudo o que eu realmente tinha comprado no passava de umas quantas peas de equipamento, j de si obsoletas, e o nome da companhia. Nome que mudei logo de seguida.

A General Genetics Research teve um comeo humilde. Depois tudo mudou. Os Bioconstrutores tinham-se especializado na produo em massa de produtos medicinais. Os microorganismos biotransformados produziam plasma sanguneo, insulina, e esse tipo de derivados. Tudo isto com um esforo mnimo, especializao nula e inovao zero. Era uma empresa de segunda categoria. De incio, quando a GenGen me passou para as mos, continuou a agarrar-se aos contratos de natureza mdica. Depois, logo que pudemos, deixmo-nos disso e fomos procurar aventuras mais alargadas. Em vez de nos limitarmos a produzir, agarrmo-nos investigao mdica. Estudmos novos meios de desenvolvimento agrcola e toda uma nova gama de produtos cosmticos biodegradveis capazes de se dissolverem no espao de uma noite.

Porm, aquilo que nos transformou numa das melhores empresas do mercado foi um produto caracterstico dos nossos tempos. Como a SIDA ainda continuava activa no final da dcada, ns no fizemos mais do que receber os dividendos desta exploso comercial. Com a ajuda da tecnologia disponvel, foi muito fcil separar uns quantos microorganismos com o respectivo complexo gentico e contactar os melhores fabricantes de ltex. As manipulaes seguintes produziram um neolatex merecedor de toda a confiana. Umas alteraezinhas na habitual lata de aerossol, mais uns quantos testes rigorosos e a GenGen acabou por ser dona do primeiro preservativo do mundo em spray, por ns chamado Vemda. De natureza orgnica, geralmente no alrgico, bastava aspergir e descasc-lo logo que o entusiasmo faltasse.

Selmos o nosso sucesso ao contratar a Anita Alveaux para fazer os anncios. Uma Anita que espreitava pelo ecr do televisor a sussurrar: Diz-lhe Vem da e espera pela resposta. Uma resposta que garantiu o futuro das vendas da GenGen por muitos anos. A partir dessa altura, quem quer que dissesse vem da, com todas as slabas bem articuladas, estava a proferir a maior das piadas dos anos 90.

O nico fracasso comercial da GenGen encontrou-se no produto seguinte. As massas acfalas simplesmente no gostaram da ideia de se construrem microorganismos dedicados higiene pessoal. Garantimo-lhes que no seria mais preciso lavar o cabelo ou escovar os dentes. Os microorgs dariam conta do recado. Mas no vendeu.

O Alimentos No-C, o nosso novo produto, tornou-se num tremendo sucesso.

Uma vez mais, no foi necessria nenhuma grande revoluo tecnolgica bastou-nos ter uma boa ideia com um desenvolvimento e produo relativamente simples.

Todas as molculas orgnicas tm certas caractersticas comuns. Os acares, por exemplo, tendem a ser D ou dexorrotatrios; por outro lado, a maior parte dos aminocidos so L ou levorrotatrios; tudo isto se relaciona com a estrutura tridimensional das molculas. Como os enzimas digestivos operam numa base estrutural, no conseguem agarrar-se s molculas L: acares L, protenas D, tudo o que no se adeque ao sistema, passa por ele sem ser digerido. Resultado: alimentos com zero calorias.

Em 96, Mel Slaney, um dos nossos geniozinhos de servio, ento a trabalhar no novo laboratrio de Buxton, iniciou uma outra linha de desenvolvimento. Os infusores j existiam h muito tempo, mas nunca se tinha conseguido arranjar uma aplicao prtica para eles, num esquema larga escala. A Mel mudou tudo isto. A verso dela parecia-se com uma esferogrfica com almofadinha, com cerca de um centmetro quadrado numa das pontas. O cartucho com a droga era inserido na outra extremidade enquanto que a almofada era comprimida contra a superfcie apropriada do corpo: depois, bastava uma pequenina descarga elctrica para transferir a droga atravs da pele at ao interior do corpo. Depois disto, excepo do terceiro Mundo, as injeces passaram histria.

Aps este sucesso, Mel e o seu grupo recm transferido, criaram logo um outro, com uma variedade de drogas infusveis. Como seria de esperar, depois dos sucessos do Vemda, a GenGen colocou no mercado um contraceptivo infusvel para as mulheres, Ovoidance. Este era um mercado em vias de crescimento depois da morte da SIDA.

Outra das nossas drogas infusveis, produzida sob contrato com o governo, tambm se vendeu muito bem no estrangeiro. O Disciplinafusor uma obra-prima da biotecnologia. Infunde adrobato, uma droga adrenotrpica desenvolvida pelo grupo da Mel. O adrobato permanece adormecido no sangue at que a produo de adrenalina atinja um certo nvel. Nesse momento a droga entra em aco, anulando os efeitos da adrenalina e voltando a pr o corpo num estado normal e relaxado. A Corporativa das Prises Nacionais viu logo o potencial do Disciplinafusor. Os seus clientes deixaram de ter acessos de violncia. O Disciplinafusor tornou-se tambm parte integrante das alas psiquitricas dos hospitais. Alguns grupos de presso ideolgica causaram problemas quando os usos do Disciplinafusor foram publicitados. Insistiam eles que os acessos de adrenalina no eram s resultantes dos estados de raiva, uma posio vlida, mas que nada tinha a ver com o caso. Estes grupos tinham pouca influncia; bastou prender alguns dos contestatrios mais barulhentos e dar-lhes pessoalmente um antegosto do Disciplinafusor. E os protestos desapareceram como por encanto.

A circular que o Grupo de Aco Verde me mandou referia-se ao Disciplinafusor. As alteraes que eles tinham feito no panfleto indicavam que seria eu o prximo a ser infundido. S que tinham cortado todas as referncias ao adrobato. No citavam a substncia que era suposto infundir-me. Limitavam-se a descrev-la nuns rabiscos margem do papel:

A nossa droga vai matar-te. A adrenalina, acima de uma concentrao Fulviana de 0.36, despoleta uma reaco em cadeia. A tua produo de adrenalina vai crescer a um ritmo exponencial, at atingir a overdose. Por isso tem muita calminha, meu...E tudo isto por causa das chatices da burocracia relacionadas com o Inqurito Pblico. Aqui para ns, considero que a sentena no verdadeira. A minha situao o resultado inevitvel de anos de batalhas entre a Indstria e os ecomarados. Ou melhor, eco-fascistas, como costumavam chamar-lhes. Comportavam-se como se tivessem todas as respostas e as pessoas devessem obedecer-lhes em tudo. Que se fodam! O que eles no gostam das mudanas, do progresso.

Calminha. V l se te acalmas, sim? Isto no est a servir de nada. No posso excitar-me. O controlo do corpo o controlo da mente. Isto tem sido o meu mantra desde o dia 22. O controlo do corpo o controlo da mente. Melhor assim. No vou deixar que eles ganhem. J passaram 27 horas desde o meu assassinato e ainda continuo aqui. O meu esprito est relaxado. A adrenalina no atingiu aquele nvel fatal. Sou eu quem continua a mandar.

A minha primeira reaco foi pensar na vingana, mas logo percebi que ela me seria fatal. Demasiada excitao. O primeiro antegosto bastou para me avisar contra os malefcios deste tipo de atitudes. Falhei o encontro com o director regional, mas mais tarde informaram-me que a conta bancria dele tinha sido engordada por um certo indivduo abastado que era suposto ter ligaes prximas com grupos ambientalistas. O meu ex-empregado foi disciplinado. Ou melhor, disciplifusado. Mas s o estmulo de instigar tal aco foi quase demasiado para a minha sade. As pulsaes aceleraram, a testa enrugou-se, a adrenalina correu-me nas veias. Demorei vrios minutos a recuperar o controlo, com o problema a ser exacerbado pelo medo de que tivesse ido demasiado longe. Mas permaneci dentro dos limites. Continuei vivo.

Esta experincia ensinou-me que o nvel 0.36 um nvel elevado. Eles no queriam que eu batesse a bota s por chocar contra o assassino. Deram-me um certo espao de manobra.

Planeio agora uma vingana bem mais doce: vou venc-los. Vou conseguir sobreviver at data do Inqurito. Felizmente a minha presena s vai ser necessria durante uma curta sesso. No vai haver problemas.

O Inqurito no passa de um teste. H muito que eles andavam a pedir um confronto directo. Tudo o que o Inqurito visa examinar um caso de libertao-de-organismos-geneticamente-transformados-no-meio-ambiente. E at irnico pensar que as nossas algas modificadas foram feitas apenas com a inteno de processar dejectos e, terminado este servio, at podiam ser recolhidas e transformadas em papel.

Tudo para proteger o meio ambiente. Mas no era essa a opinio dos verdes. Eles insistiam que as algas podiam comear a gostar de comer outras coisas, despoletando assim uma nova ameaa imprevisvel sobre o nosso frgil mundo. O fim est prximo! ( Tem calma, meu! Tem calma... )

Mas a questo de facto um bocadinho mais complicada do que as algas da GenGen. Se eles conseguirem parar este projecto, conseguem parar com todos os outros. J h muito tempo que nos andam a fazer a cama. Vamos ter de os calar de uma vez por todas. Mas eu posso resolver o assunto. O juiz disse-me que era fcil.

Pode ser que todos os grupos de presso andem a juntar-se contra mim, mas a verdade que tambm tenho gente poderosa do meu lado. Gente com ligaes. Somos demasiado grandes para os verdes. O que o juiz mais quer que haja boas razes para votar em nosso favor. O que compreensvel. Tudo o que ele pede um discurso firme da parte da GenGen. Um discurso capaz de por o povo ou pelo menos parte dele do nosso lado. Esse dever coube-me a mim. Uma escolha mais que bvia. Alm de eu ser o director administrativo desta empresa, sou bom naquilo que fao. Aconselharam-me a meter-me na poltica, disseram-me que eu tinha aquele tipo de carisma que funciona muito bem na TV. Com toda a honestidade sou forado a concordar. Desde a adolescncia que consigo dar a volta a toda a gente. O discurso que vou proferir no Inqurito vai ser gravado e transmitido para milhares de lares, vai aparecer em todos os noticirios. No vai haver problemas. Os verdes vo ficar encostados.

S me resta sobreviver at l. Entretanto permaneo fechado em casa, no meu apartamento. Ningum me pode deitar a mo. A segurana aqui sempre foi boa, mas agora tenho o conforto acrescentado de haver guarda-costas aqui mesmo junto porta e junto entrada do prdio. Mandei a Mel e o grupo dela investigar uma cura e multipliquei amostras do meu sangue de modo a poderem testar as respectivas poes. A Mel disse-me que eu devia infundir algum adrobato de modo a manter em baixa os nveis de adrenalina, mas eu respondi-lhe que no. No me costumo apoiar em meros palpites, verifico sempre tudo antes de agir. E desta vez estava certo. O adrobato produz bolhas de nitrognio no meu sangue contaminado. Examinei a amostra: toda ela borbulhava. As perspectivas para uma cura no so boas. Tenho a certeza que nada ser descoberto antes do Inqurito.

Continuo aqui. Estou a aprender a meditar. fcil, quando se tem tanto controlo do corpo como eu tenho do meu. O controlo do corpo o controlo da mente.

H j cinco dias que permaneo aqui. As meditaes esto cada vez melhores. O controlo do corpo o controlo da mente.

A minha vida mudou radicalmente desde o dia 22. At a sempre fui aquele tipo de homem de negcios hipercintico: cinco horas de sono, pequeno almoo de trabalho, trabalho propriamente dito, almoo de negcios, mais trabalho, ceia com clientes e depois recuperar o tempo perdido noutros trabalhos, antes das minhas prximas cinco horas de sono. Agora j no me posso arriscar a ter todas estas actividades. O estmulo poderia ser fatal: adrenalina a mais. E ficaria exposto ao Grupo de Aco Verde. H muita coisa que eu posso fazer atravs do computador, com a consola minha frente. Mas no me parece certo. No consigo trabalhar num sistema de part-time. Sinto-me demasiado isolado para mexer no computador, sabendo que a verdadeira GenGen se encontra muito para alm das minhas possibilidades.

Continuo sem ter grandes perspectivas de cura. Tenho de permanecer calmo.

Respirar fundo. s vezes at isso custa. Uma descontraco permanente causa muita ansiedade. Sinto o pulso a acelerar-se, o suor a perlar-me a pele. Calma, calma...

Leio muito. Chamo os livros na consola, mando imprimir tudo e que se fodam as despesas. Pushkin, Dostoievsky, Tolstoi, gosto dos velhos russos, so to densos, to distantes do meu modo de vida. Tambm oio msica, igualmente a partir da consola, j percorri todos os clssicos, coisa que nunca tinha feito antes. At agora o Mozart foi o melhor de todos, as melodias dele assombram-me sem que eu consiga explicar porqu. Sinto que chamam por mim. Baixinho.

s vezes sou assolado por crises de escurido. Certo dia invoquei uma Enciclopdia Mdica. Adrenalina. Hormona estimulante segregada pelas glndulas supra-renais, de aco simpaticomimtica. Tambm chamada de epinefrina. Acelera o corao, dilata os vasos sanguneos do corao e dos msculos, contraindo todos os outros; da o aumento da presso sangunea. Eleva o teor de acar no sangue, produz calor ( calorignica, o termo), dilata as pupilas. Aumenta a produo de suor e saliva enquanto contrai os msculos lisos da pele. J chega, tenho de permanecer calmo.

Quais seriam os resultados de uma overdose? Demasiado calor, excesso de suor... Ser possvel morrermos afogados na nossa prpria saliva? Ser que a pele era capaz de contrair-se tanto ao ponto de me estrangular? Tenso arterial j de si elevada, a crescer exponencialmente. Vises de veias estoiradas e capilares rasgados. Ou limitar-me-ia apenas a morrer de um simples enfarte? Calma. O pulso a acelerar, a pele tensa, pensar nestas coisas pode ser o fim. Preocupo-me demasiado.

Om mane padme hum. Aqui est uma frase que apanhei nas minhas leituras.

Servem-se dela para meditar, para focar o esprito no nada. boa. Ajuda a descon-trair-me.

Om mane padme hum. Vejo pssaros atravs do vidro prova de bala. Existe um, especialmente, num ninho feito de lama, junto minha janela, por baixo do telheiro. De um azul escuro, com a barriguinha branca, a esvoaar nos cus deste fim de Junho. A consola diz-me que uma andorinha. Que nome to estpido para uma criatura to bonita. Fico sentado a observ-la.

Batem porta e um dos seguranas entra com um pedacinho de papel na mo.

Sem grandes dificuldades reprimo um acesso de raiva por esta falta de civismo. No posso deixar que ele abuse da minha condio para ganhar um ascendente sobre mim.

Nenhum deles sabe o que realmente se passa. Trata-se de um segredo bem mantido.

Entrega-me o papel percebo agora que se trata de um envelope e diz-me: O Correio Pronto trouxe isto. Depois vira-me as costas e vai-se embora. A carta seguiu em correio normal.

Om mane padme hum. O controlo do corpo o controlo da mente. Todas as mantras s minhas ordens. Tem calma.

E fazendo os possveis para me acalmar, abro o envelope e desdobro a nica folha de papel que se encontra no interior.

Mr. Riesling,

Parabns. Ainda est vivo. Deve ter uma personalidade forte. Mas a excitao do Inqurito vai dar cabo de si. Se ns no dermos antes.

Com os nossos melhores cumprimentos.

O Grupo de Aco VerdeDesta vez no vem nada em anexo. Assustei-os. Estou a ganhar.

O Inqurito comea amanh, mas so apenas os preliminares. O meu discurso s ser no dia seguinte. Estou morto por isso. Entretanto, fico espera.

Om mane padme hum.Amanh vou discursar. Estou mais que treinado. O fluxo de adrenalina continua a crescer, tal como eu j esperava. Mas j sei control-lo. Medito, deixo o mundo andar s voltas, enquanto me concentro em coisa nenhuma. Om mane padme hum. O essencial da meditao sermos um com o mundo. Com o Cosmos. Deixar as coisas correr. Desliga o esprito, descontrai-te, deixa-te ir na corrente. Isto no morrer. No , garanto. O mbito da minha msica expandiu-se. O Lennon sabia o que estava a dizer. Abandona os pensamentos, rende-te ao vazio. Um vazio que brilha. Podem crer que verdade. Eu vi tudo isso.

Nada parece ter sentido. Toda essa gente sempre a correr de um lado para o outro. Sempre julguei que tinha tudo o que queria ter. Mas a verdade que no tinha nada. S podemos ir na corrente, acompanhar o ritmo das coisas. As meditaes mostraram-me o vazio que era a minha vida. Tratou-se de uma experincia transcendental. Om mane padme hum.

Neste estado de meditao o tempo nada significa. Levanto os olhos e l fora faz escuro. Amanh. Amanh tenho de... fazer o qu?

A escurido forma um padro curioso de sombras sobre sombras. Ainda h um minuto no fazia escuro.

Deve ter sido um minuto muito grande.

Sinto-me incomodado por rudos que vm do exterior. O cu est a tingir-se de um azul delicado que pressagia a manh. Entra um segurana logo seguido de um tipo mais pequeno. O fuinha. Ainda vestido com o fato s riscas e transportando vejam l um saco de plstico dos Harrods. Sorrio.

Este cavalheiro diz que tem uns assuntos para tratar consigo, Mr. Riesling. O segurana mal pode conter um esgar de satisfao, de poder. Depois vai-se embora.

Tenho pena dele.

E o mundo continua a girar.

Recebeu a nossa carta?

Sorrio, e o fuinha parece incomodado. Pela minha parte sinto-me feliz, contente.

Pela primeira vez estou em paz com o mundo. Preparado para receber o brilho desse vazio. Om mane padme hum.

O fuinha ajoelha-se e comea a mexer no saco de plstico verde. Pergunto a mim mesmo como que me vo matar desta vez.

O AUTOR FALA DE SUA OBRA:

Por um triz no me tornei contabilista...

Isso ainda me parece uma ideia horrvel, mesmo agora passados quinze anos. Em meados dos anos 80, a contabilidade era uma opo popular para estudantes que no se decidiam sobre as suas carreiras futuras popular para os conselheiros vocacionais, pelo menos, j que havia vagas aos montes. Fui a algumas entrevistas, foram-me orefecidos alguns empregos, aceitei um deles e foi ento que o horror me atingiu: contabilidade! Uma vida inteira de fato e gravata, sem tirar os olhos de folhas de clculo, estudando leis fiscais e estratgias de investimento. Aquilo simplesmente no era eu.

A minha noiva empurrou-me na direco certa. Farta de me ouvir resmungar acerca da perspectiva de passar uma vida na contabilidade, disse: "Bem, porque no tiras um ano?

Podes escrever aquele livro que andas sempre a dizer que queres escrever". Nessa altura j escrevia h um par de anos. Tinha vendido algumas histrias a revistas pequenas mas no mais do que isso: escrever a tempo inteiro era um risco enorme, mas a Alison falava a srio ela iria sustentar-me enquando eu escrevia.

Acabmos os cursos, casmos e o meu ano de escrita comeou. Escrever um romance parecia-me um passo demasiado grande, portanto comecei a pensar em ideias para contos.

O Homem Adrenotrpico apareceu-me um belo dia: a ideia de um homem a contar o seu prprio assassnio e sendo transformado pela experincia de formas insuspeitadas. Assim que tive esta ideia soube que era muito melhor que qualquer ideia que tivera at ento. medida que ia escrevendo essa sensao ia aumentando, e quando acabei soube que a minha escrita tinha subido a um novo patamar.

Enviei o conto Interzone e o sub-editor, Simon Ounsley, respondeu dizendo que tinha gostado mas que havia uma ou duas falhas na lgica. Tinha razo, portanto fiz algumas pequenas alteraes ao conto, reenviei-o e ele foi aceite: a primeira histria que produzira como escritor a tempo inteiro transformara-se na minha primeira venda profissional.

A histria era futuro prximo quando a escrevi, mas actualmente as datas situam-se no passado prximo todas as histrias de futuro prximo acabam desta forma, como uma espcie de histria alternativa. No me parece que tenha envelhecido muito mal: algo como isto poderia facilmente ter acontecido nos anos 90.

Keith Brooke, Outubro de 2001

O CASO DO DESFILADEIRO COULTER Ambrose Bierce

Voc acredita, coronel, que seu valente Coulter gostaria de colocar um de seus canhes aqui? - perguntou o general.

No parecia falar srio: aquele, verdadeiramente, no parecia um lugar onde nenhum artilheiro, por valente que fosse, gostasse de colocar um canho. O coronel pensou que possivelmente seu chefe de diviso queria lhe dar a entender, em tom de brincadeira, que em uma recente conversao entre eles e se exaltou muito o valor do capito Coulter.

Meu general - replicou, com entusiasmo - Coulter gostaria de colocar um canho em qualquer parte que alcanasse essa gente - com um gesto da mo apontou em direo ao inimigo.

o nico lugar possvel - afirmou o general.

Falava srio, ento.

O lugar era uma depresso, uma fenda na cpula escarpada de uma colina. Era um passo pelo qual se chegava a uma rota de pedgio, que alcanava o ponto mais alto de seu trajeto serpenteando por um bosque grande e logo havia descida similar, embora menos abrupta, em direo ao inimigo. Em uma extenso de quilmetro e meio direita e quilmetro e meio esquerda, a cadeia de montanhas, embora ocupada pela infantaria federal, assentada justamente detrs da escarpada cpula como mantida pela s presso atmosfrica, era inacessvel artilharia.

O nico lugar utilizvel era o fundo do desfiladeiro, apenas o bastante largo para estabelecer o caminho. Do lado dos confederados, esse ponto estava dominado por duas baterias apostadas sobre uma elevao um pouco mais baixa, ao outro lado de um arroio, em meio quilmetro de distncia. As rvores de uma granja dissimulavam todos os canhes exceto um que, como com descaramento, estava colocado em uma clareira, justo em frente de uma construo bastante destacada: a casa de um plantador. O canho, entretanto, estava bastante protegido em sua exposio porque a infantaria federal tinha recebido a ordem de no atirar. O desfiladeiro de Coulter, como chamou depois, no era um lugar, naquela agradvel tarde do vero, onde a ningum agradasse colocar um canho.

Trs ou quatro cavalos mortos jaziam no caminho, trs ou quatro homens mortos estavam ordenadamente colocados em fileira um do lado do outro, um pouco para trs, no pendente da colina. Todos menos ns eram soldados de cavalaria da vanguarda federal. Ns ramos Furriel. O general que comandava a diviso e o coronel em chefe da brigada, seguidos de seu estado maior e de sua escolta, tinham cavalgado at o fundo do desfiladeiro para examinar a bateria inimiga, que se tinha dissimulado imediatamente depois de umas altas nuvens de fumaa. Seria intil bisbilhotar sobre uns canhes que se camuflavam como as spias, e o exame tinha sido breve. Quando terminou, a pouca distncia do lugar onde tinha comeado, produziu-se a conversao que relatamos parcialmente. o nico lugar - repetiu o general com ar pensativo - de onde chegaremos a eles.

O coronel olhou-o com gravidade.

S h espao para um canho, meu general. Um contra doze.

verdade... para um s cada vez - disse o comandante da diviso esboando algo parecido a um sorriso-. Mas, ento, seu bravo Coulter... tem uma bateria nele mesmo.

Seu tom irnico no deixava lugar a dvidas. Ao coronel ele irritou, mas no soube o que dizer. O esprito de subordinao militar no promove a rplica, nem sequer a tcita desaprovao.

Naquele momento, um jovem oficial de artilharia subia lentamente a cavalo pelo caminho, escoltado por seu clarim. Era o capito Coulter. No devia ter mais de vinte e trs anos. De mdia estatura, muito esbelto e flexvel, montava seu cavalo com algo do ar de um civil. Em seu rosto havia algo singularmente distinto dos homens que o rodeavam; era magro, tinha o nariz grande e os olhos cinzas, um ligeiro bigode loiro e um comprido, bastante desordenado cabelo, tambm loiro. Seu uniforme mostrava sinais de descuido: a viseira do gasto quepe estava ligeiramente inclinada; a jaqueta, s abotoada altura do cinturo, deixava ver bem uma camisa branca, bastante limpa para aquela etapa da campanha. Mas aquela indolncia s afetava seu traje e seu porte: a expresso de seus olhos cinzas demonstrava um profundo interesse para tudo quanto o rodeava: escrutinavam como faris a paisagem a direita e esquerda; depois se detinham um momento no cu que se via sobre o desfiladeiro: at chegar ao ponto mais alto do caminho, no havia nada mais que ver naquela direo.

Ao passar em frente a seus chefes de diviso e de brigada pelo lado do caminho, os saudou mecanicamente e se disps a prosseguir. O coronel lhe indicou por gestos que parasse.

Capito Coulter disse - o inimigo situou doze peas de artilharia na colina contiga. Se compreender bem ao general, ordena a voc que convoque um canho aqui e inicie o combate.

Houve um inexpressivo silncio. O general olhou, impassvel, um regimento distante que subia apertadamente e muito devagar pela colina, atravs da densa mataria, em espiral, como uma desalinhavada nuvem de fumaa azul. Pareceu que o capito Coulter no tinha observado o general. Depois falou, lentamente e com aparente esforo:

Na prxima colina, diz voc, meu coronel? Esto os canhes perto da casa?

Ah, j percorreu voc este caminho antes! Sim, bem diante da casa.

E ... necessrio... abrir fogo? A ordem formal?

Falava com voz rouca e entrecortada. Tinha empalidecido visivelmente. O coronel estava surpreso e mortificado. Lanou um olhar de nojo ao general. Nenhum indcio naquele rosto imvel, to duro como o bronze. Um momento depois, o general se afastava cavalgando, seguido dos membros de seu estado maior e de sua escolta.

O coronel, humilhado e indignado, dispunha-se a ordenar que prendessem o capito Coulter quando este pronunciou em voz baixa umas poucas palavras dirigidas a seu clarim, saudou e se dirigiu cavalgando em linha reta para o desfiladeiro. Quando chegou ao topo do caminho, com os gmeos ante os olhos, mostrou-se recortado contra o cu, e ele e seu cavalo desenharam uma ntida figura equestre.

O clarim tinha baixado o pendente a toda carreira e desapareceu detrs de um bosque. Ento, ouviu-se soar seu clarim entre os cedros e, em incrivelmente pouco tempo, um canho seguido de um furgo de munies, cada qual tirado por seis cavalos e dirigido por sua equipe completa de artilheiros, apareceu estralando e arrasando a costa em meio de um torvelinho de p. Ento, foi empurrado a mo at a cpula fatal, entre os cavalos, que ficaram mortos. O capito fez um gesto com o brao, os homens que carregavam o canho se moveram com assombrosa agilidade e, quase antes que as tropas que seguiam o caminho tivessem deixado de escutar o rudo das rodas, uma enorme nuvem branca se abateu sobre a colina com um ensurdecedor estrondo: o combate do desfiladeiro de Coulter tinha comeado.

No se pretende aqui relatar com detalhe os episdios e as vicissitudes deste horrvel combate, um combate sem incidentes e com as nicas alternncias de diferentes graus de desespero. Quase no momento em que o canho do capito Coulter lanava sua nuvem de fumaa como um desafio, doze nuvens se elevaram em resposta por entre as rvores que rodeavam a casa da plantao, e o rugido profundo de uma detonao mltiplo ressonou como um eco quebrado. Desde esse momento at o final, os canhes federais lutaram sua batalha sem esperana, em uma atmosfera de ferro candente cujos pensamentos eram relmpagos e cujas faanhas eram a morte.

Como no desejava ver os esforos que no podia apoiar, nem a matana que no podia impedir, o coronel tinha escalado a cpula at um ponto situado a quatrocentos metros esquerda, de onde o desfiladeiro, invisvel mas impulsionando sucessivas massas de fumaa, assemelhava-se a cratera de um vulco em erupo. Observou os canhes inimigos com seus prismticos, constatando at onde podia os efeitos do fogo de Coulter - se Coulter vivia ainda para dirigi-lo. Viu que os artilheiros federais, ignorando as peas do inimigo cuja posio s podiam determinar pela fumaa, consagravam toda sua ateno ao que continuava convocado no terreno aberto: a grama de diante da casa.

Ao redor e por cima deste duro canho explodiam os obuses a intervalos de poucos segundos. Alguns fizeram exploso na casa, como se pde ver por umas magras colunas de fumaa que subiam pelas brechas do teto. Viam-se claramente formas de homens e cavalos prostrados no cho.

Se nossos homens esto fazendo to bom trabalho com um s canho - disse o coronel a um ajudante de campo que estava perto - devem estar sofrendo como o demnio o fogo de doze. Baixe e apresente a quem dirige esse canho minhas felicitaes pela eficcia de seu fogo.

Voltou-se para seu ajudante maior e adicionou:

Observou voc a maldita resistncia de Coulter em obedecer ordens?

Sim, meu coronel.

Bom, no fale disto com ningum, por favor. No acredito que o general se preocupe de formular acusaes. Ter sem dvida bastante o que fazer para explicar seu papel neste modo to pouco usual de divertir retaguarda de um inimigo em retirada.

Um jovem oficial se aproximou da parte de baixo, escalando sem flego o morro.

Quase antes de saudar, exclamou, ofegando:

Meu coronel, envia-me o coronel Harmon para lhe informar que os canhes do inimigo se acham ao alcance de nossos fuzis e quase todos so visveis desde numerosos pontos da colina.

O chefe de brigada olhou-o sem demonstrar o menor interesse.

Sei - respondeu, tranquilamente.

O jovem ajudante estava visivelmente sobressaltado.

O coronel Harmon quer autorizao para silenciar esses canhes.

Eu tambm - replicou o coronel no tom de antes-. Sade de minha parte ao coronel Harmon e lhe diga que ainda reinam as ordens do general para que a infantaria no abra fogo.

O ajudante saudou e se retirou. O coronel afundou os calcanhares em terra e deu meia volta para continuar olhando os canhes do inimigo.

Coronel - disse o ajudante maior, no sei se deveria dizer, mas h algo estranho em tudo isto. Sabia voc que o capito Coulter do Sul?

No. mesmo?

Ouvi que o vero passado, a diviso que o general comandava ento se encontrava nas cercanias da plantao de Coulter; acampou ali durante umas semanas e...

Escute! - interrompeu o coronel levantando a mo. Ouve isso?

Isso era o silncio do canho federal. O estado maior, os assistentes, as linhas de infantaria situadas detrs da cpula, todos tinham ouvido e olhavam com curiosidade na direo da cratera, de onde no ascendia j fumaa a no ser s algumas nuvens espordicas procedentes dos obuses inimigos. Ento chegou o toque de um clarim e o rudo dbil de umas rodas. Um minuto mais tarde, as agudas detonaes comearam com redobrada atividade. O canho destrudo tinha sido substitudo por outro, intacto.

Sim - disse o ajudante maior, continuando sua histria-, o general conheceu a famlia Coulter. Houve problemas, ignoro de que natureza... Algo que concernia esposa de Coulter. uma raivosa secesionista, corno quase todos na famlia, exceto Coulter, mas uma boa esposa e uma dama muito educada. No quartel geral do exrcito se recebeu uma queixa. O general foi transferido a esta diviso. Parece estranho que depois disso a bateria de Coulter tenha sido atribuda a ela.

O coronel se levantou da rocha onde estava sentado. Seus olhos flamejavam de generosa indignao.

Diga-me, Morrison - disse, olhando seu fofoqueiro oficial do estado maior diretamente cara-, contou-lhe essa histria um cavalheiro ou um embusteiro?

No quero revelar como me chegou, meu coronel, a menos que seja preciso avermelhou ligeiramente - mas por minha vida que verdade.

O coronel se virou para um carriola de oficiais que estava a certa distncia.

Tenente Williams! -gritou.

Um dos oficiais se separou do grupo e, adiantando-se, saudou e disse:

Desculpe-me, meu coronel, acreditava que estava voc informado. Williams morreu abaixo, ao p do canho. No que posso lhe servir, senhor?

O tenente Williams era o ajudante que tinha tido o prazer de transmitir ao oficial que comandava a bateria as felicitaes de seu chefe de brigada.

V -disse o coronel - e ordene a retirada dessa pea imediatamente. No... Irei eu mesmo.

Desceu correndo a encosta que conduzia parte de atrs do desfiladeiro, franqueando rochas e moitas, seguido de sua pequena escolta, entre uma tumultuosa desordem.

Quando chegaram ao p da encosta, montaram Seus cavalos, que os esperavam, enfiaram a trote rpido pelo caminho; dobraram uma curva e desembocaram no desfiladeiro. O espetculo que encontraram ali era horripilante!

Naquele desfiladeiro, apenas suficientemente largo para um s canho, tinham amontoado os restos de pelo menos quatro peas. Tinham percebido o silncio de apenas o ltimo inutilizado, era porque tinham faltado homens para substitui-lo rapidamente por outro. Os refugos se pulverizavam de ambos os lados do caminho; os homens tinham conseguido manter um espao livre no meio em que a quinta pea estava agora fazendo fogo. Os homens? Pareciam demnios do inferno!

Todos sem boina, todos nus at a cintura, sua pele, fumegante, negra de manchas de plvora e salpicada de gotas de sangue. Todos trabalhavam como dementes, dirigindo o arete e os cartuchos, as alavancas e o gancho de disparo. A cada golpe de retrocesso, apoiavam contra as rodas seus ombros tumefactos e suas mos ensanguentadas, e encaixavam de novo o pesado canho em seu lugar. No havia ordens. Naquela enlouquecida revoada de alaridos e exploses de obuses; entre o assobio agudo das lascas de ferro e das lascas que voavam por toda parte, no se tinha ouvido nenhuma ordem. Os oficiais, se que ficaram oficiais, no se distinguiam dos soldados. Todos trabalhavam juntos, cada um, enquanto aguentava, dirigido por olhadas. Quando o canho era vazio, carregava-se; quando estava carregado, apontava-se e se atirava. O coronel viu algo que no tinha visto jamais em toda sua carreira militar, algo horrvel e misterioso: o canho sangrava pela boca! Em um momento em que faltava gua, o artilheiro que esponjava a pea tinha empapado a esponja em um atoleiro de sangue de um de seus camaradas. No havia nenhum conflito em todo aquele trabalho. O dever do instante era bvio. Quando um homem caa, outro, pouco mais limpo, parecia surgir da terra em lugar do morto, para cair por sua vez.

Com os canhes desfeitos jaziam tambm os homens desfeitos, ao lado dos restos, por cima e por debaixo. E, retrocedendo pelo caminho, uma horripilante procisso!

Arrastavam-se com as mos e os joelhos os feridos capazes de mover-se. O coronel, que compassivamente tinha enviado a sua escolta para a direita, teve que passar com seu cavalo por cima dos que estavam definitivamente mortos para no esmagar aqueles que ainda conservavam um resto de vida.

Manteve seu caminho com tranquilidade em meio daquele inferno, aproximou-se do lado do canho e, na escurido da ltima descarga, golpeou na bochecha ao homem que sustentava o arete, que se caiu acreditando que tinha morrido. Um demnio sete vezes condenado brotou entre a fumaa para ocupar seu posto, mas se deteve e fixou no oficial a cavalo um olhar inumano; os dentes lhe brilhavam entre os lbios negros; os olhos, selvagens e exagerados, ardiam como brasas sob as sobrancelhas ensanguentadas. O coronel fez um gesto autoritrio lhe apontando a parte de atrs. O demnio se inclinou, em sinal de obedincia. Era o capito Coulter.

Simultaneamente ao sinal de alto do coronel, o silncio caiu sobre todo o campo de batalha. A procisso de projteis deixou de correr naquele desfile de morte porque o inimigo tambm tinha deixado de atirar. Seu exrcito tinha desaparecido h horas; o comandante da retaguarda, que tinha mantido sua posio com a esperana de silenciar o canho federal, tambm tinha feito calar suas peas naquele estranho minuto.

No estava consciente do alcance de minha autoridade -disse o coronel sem dirigir-se a ningum, enquanto cavalgava para o topo da colina para averiguar o que tinha ocorrido.

Uma hora mais tarde, sua brigada entrava no campo inimigo, e os soldados examinavam com respeito quase religioso, como fiis ante as relquias de um santo, os corpos de uma vintena de cavalos escancarados e os restos de trs canhes imprestveis. Os feridos tinham sido retirados; seus corpos desmembrados e rasgados teriam satisfeito muito ao inimigo.

Naturalmente, o coronel se alojou com sua famlia militar na casa da plantao.

Embora bastante ruda, era melhor que um acampamento ao ar livre. Os mveis estavam muito desarrumados e quebrados. As paredes e os tetos tinham cedido em algumas parte e um aroma de plvora o impregnava tudo. As camas, os armrios para a roupa feminina e as despensas no estavam muito danificados. Os novos inquilinos de uma noite se instalaram como em sua casa, e a virtual aniquilao da bateria de Coulter lhes brindou um animado tema de conversao.

Durante o jantar, um assistente que pertencia escolta apareceu na sala de jantar e pediu permisso para falar com o coronel.

O que ocorre, Barbour? -perguntou o coronel amavelmente, tendo escutado suas palavras.

Meu coronel, no poro se passa algo estranho. No sei o que... acredito que h algum ali. Eu tinha descido para registrar.

Descerei para ver - disse um oficial do estado maior, levantando-se.

Eu tambm - reps o coronel. Que outros fiquem. Guie-nos.

Tomaram um castial da mesa e desceram as escadas do poro. O assistente tremia visivelmente. O castial iluminava fracamente, mas em seguida, enquanto avanavam, seu estreito crculo de luz revelou uma forma humana sentada no cho contra a parede de pedra negra que eles tinham seguido.

Tinha os joelhos em alto e a cabea arremessada para trs. O rosto, por ver-se de perfil, permanecia invisvel porque o homem estava to inclinado para diante que seu comprido cabelo o ocultava. E, de um modo estranho, sua barba, de uma cor muito mais escura, caa em uma grande massa enredada e se desdobrava sobre o cho a seu lado.

Detiveram-se involuntariamente. Depois, o coronel, tomando o castial da tremente mo do assistente, aproximou-se do homem e lhe examinou com ateno. A barba negra era a cabeleira de uma mulher morta. A mulher morta apertava entre seus braos um beb morto. E o homem estreitava os dois entre seus braos, apertava-os contra seu peito, contra seus lbios. No cabelo do homem havia sangue. A meio metro, perto de uma depresso irregular da terra fresca que formava o cho do poro - uma escavao recente, com um pedao convexo de ferro e nas beiradas visveis em um dos lados-via-se o p de um menino. O coronel elevou o castial o mais alto que pde. O piso do quarto de cima tinha desabado e as lascas de madeira penduravam-se apontando em todas dire