contos horizontais

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Contos horizontais Contos para diversão e reflexão Flávio Martins

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Meu primeiro livro de contos disponível gratuitamente. Aproveitem, comentem, critiquem!!!

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Page 1: Contos Horizontais

Contos horizontais

Contos para diversão e reflexão

Flávio Martins

Page 2: Contos Horizontais

Autor de Reflexivas numa mesa de boteco

Livro registrado e catalogado. Reprodução proibida.

Belo Horizonte

Março 2007

Agradeço à Deus.

Page 3: Contos Horizontais

Se eu fosse virtual

“Chegou o tempo em que ou você é algué[email protected] ou você não é

ninguém”

Se pudesse ser uma coisa, uma outra coisa, eu queria ser um

software, digital, virtual. Não seria muito exigente. Bastava ser virtual.

Se eu assim fosse, eu dominaria as dimensões do tempo e do espaço e

viajaria pelo planeta digital e me deliciaria congestionando o tráfego

na Trafalgar Square. Literalmente passearia pelos sites literários e

num dia de sol enviaria um e-mail a Castro Alves e num navio

negreiro, navegaríamos por mares nunca dantes navegados em

companhia de Camões e Robinson Crusoe. Também por e-mail,

convidaria Helena e Capitu para ir à Espanha assistir a uma tourada e

mais tarde, em casa de Almodóvar, descansaríamos numa cama para

três.

Nas terras da Rainha, pesquisaria na Enciclopédia e com

pontualidade Britânica iria ao chá das cinco com Shakespeare e

Sherlock. Convidaria Rimbaud para um bate papo na Gallerie La

Fayette e numa sexta à tarde me conectaria com Belo Horizonte,

aonde iria ao clube da esquina, tomar um café com bytes em

companhia de Milton e Lô Borges.

Ah, se eu fosse virtual! Se eu fosse virtual, teria memória sem

limites e poderia guardar tudo do passado e do presente. Então, me

presentearia com um álbum dos Mutantes. Seria amigo de Vinícius, de

Chico e de Janis Joplin. Com Lennon e McCartney, Pena Branca e

Xavantinho, formaria uma banda larga inusitada e tocaríamos juntos

em MP3.. Seria virtual, mas com sentimentos e, com Noel e

Adoniram, choraria melosas canções de amor numa rádio digital.

Mesclaria Pixinguinha e Marisa Monte em uníssono, cantando Rosa,

em poesia não em prosa, para fazer alguém feliz. Se eu fosse virtual,

Bach me ensinaria que na música, a nota codifica o som, e eu o

explicaria que na informática, o bit codifica a ação.

Se eu fosse virtual e cometesse crimes, Dostoievski seria meu

advogado e meus castigos minimizados. Poderia até ser processado,

mas por processadores, que me mandariam pra Alcatraz. Lá eu

escreveria minhas memórias do cárcere e um postal eletrônico para

Marco Polo. Planejaria uma fuga lá para o reino de Khan, a quem eu

contaria de minhas andanças pelas terras do sem fim. Depois, criaria

um portal de games para jogar Dama com as Camélias e enviaria

Page 4: Contos Horizontais

flores virtuais para Madame Bovary. Digitalizaria o amor, para que

minha musa não guardasse de mim apenas impressões digitais e

fundaria com Gullar a Academia Brasileira de Bytes. Não seria um

Highlander, mas seria imortal.

Se eu fosse virtual, simularia o meu Taj Mahal, onde leria As

mil e uma noites em uma só, deitado confortavelmente em minha rede.

Iria ao Louvre e admiraria cada píxel da Mona Lisa. Materializaria-me junto

ao túmulo de Salvador e o tiraria dali para meu alívio e para a persistência

de sua memória. Gravaria em placas homenagens a Sebastião Salgado,

Picasso e Caetano constatando que a Guernica é aqui. Aprenderia com

Freud sobre Édipo e o Ego num site de psicologia e entenderia que quando

os sonhos assumem forma concreta, surge a beleza. Seria menino e correria

Brasil afora em busca de pica-paus amarelos ou de uirapurus cantantes.

Pularia carniça nas pinceladas de Portinari em companhia de Bardi e me

deixaria deslizar nas curvas generosas de Niemeyer. Imprimiria elogios de

louvor á brasilidade de Macunaíma e Mário de Andrade me convidaria para

um banquete antropofágico em casa de Tarsila, numa mensagem com a

Muiraquitã em anexo.

Se eu fosse virtual, conversaria com Da Vinci em código e

compilaria com Einstein o quântico dos contos . Instalaria-me com

Clarice em uma rede e a ouviria explicar sobre como (d)escrever o

amor. Entenderia grego, português, inglês e outras línguas porque

armazenaria todas as línguas na memória. Entraria nos arquivos do

FBI, do DOPS, do SNI e da CIA, de onde hackearia informações sigilosas e

as compartilharia com Henfil e Betinho. Criaria uma comunidade alternativa

no Orkut e Raul Seixas seria o síndico. Em uma página de poesia, jogaria

conversa fora com Drummond, depois andaríamos por uma rua qualquer de

Itabira, e no meio do caminho, nos assentaríamos em um banco de dados

também qualquer para escrever às crianças.

Se eu fosse virtual, programaria com Júlio Verne, dez voltas

ao redor da Terra, à velocidade de um download, num Led Zeppelin

amarelo. Buscaria no Google, um trabalho para Marx e trocaríamos

informações sobre workgroups. Após o almoço, Newton me ofereceria uma

maçã e eu o convidaria a ensinar física aos engenheiros da Apple por

videoconferência. Se eu fosse virtual, ao envelhecer, não me preocuparia

com a forma física e nem sofreria cirurgias plásticas ou lipoaspiração. No

máximo, Ivo Pitangui me atenderia em uma clínica de upgrades e eu sendo

velho, não morreria. Bastaria um update, um download, e eu me

renovaria como a Fênix.Tudo isso seria possível se Deus, o criador,

fosse programador e, se no ato de me criar, tivesse feito um software,

não um escritor. Ah, se eu fosse virtual.

Page 5: Contos Horizontais

Conto inflamado

Era uma vez um homem. Não. Não era uma vez um homem. É

a vez de um homem. Um homem simples, porém determinado e que

passava a vida vivendo fatos e experimentando decisões. Esse homem

era João Almeida, 43 anos, deputado e advogado. Separado pai de

duas filhas, uma lésbica e ele com problemas de memória.

Às vezes até brincava com coisas mais complexas, mas no

fundo sua vida era muito simples. Tudo ia bem ate o dia em que teve

uma overdose de absinto com Bauhauss. Foi na casa do Trindade. A

casa rodava, as pessoas também rodavam e elas eram meio retorcidas e

de um colorido meio misturado como tintas numa aquarela. Mas o que

o intrigava mesmo era a sensação de que flutuava e que tudo se

movimentava em câmara lenta. E que gosto amargo era aquele na

boca? Um misto de amargo e adocicado. Pela primeira vez na vida

João entendeu o significado do que era agridoce, e olhe que já tinha

recorrido ao Aurélio várias vezes. A vida apresenta fatos e fatores que

apenas podem ser compreendidos quando vividos e o agridoce era um

deles.

Dois meses depois João voltava a trabalhar e depois de um

longo dia de trabalho, resolveu reler aquele fim do Oeste Causticante.

Não conseguiu se concentrar e ligou a TV. Estavam mostrando a cena

em que Jody conversava com o terrorista irlandês que estava

encarregado de matá-lo. Adormeceu sentindo um torpor suave e vez

por outra um mosquito o perturbava e ele espantava o mosquito com o

Clarim Diário que estava amassado perto da poltrona. Novamente o

mosquito aparecia com seu zumbido supersônico e passeava próximo

ao seu ouvido com vôos rasantes. Ele se contorcia espantava o

mosquito novamente e logo se esquecia. Se sua memória ajudasse,

mandaria o mosquito para Pasárgada para atormentar o Rei, mas

esquecia-se facilmente das coisas desde aquela noite do absinto. Sua

memória de curto prazo estava avariada e a avaliação médica dizia que

certamente depois de alguns meses isso iria melhorar. Esqueceu-se até

da TV ligada e João adormecia e acordava na sua incansável batalha

contra o mosquito. De fato o que estava acontecendo era que ele se

esquecia do mosquito e quando se lembrava tinha medo de mata-lo.

Mas como pode um homem vivido e experimentado se deixar

amedrontar por um Anopheles Nyssurhynchus? Mas tinha, tinha medo

do mosquito e dos finais tristes dos filmes. Isso porque os fins de filme

sempre o deixavam confuso, já que se esquecia do que levara o filme

Page 6: Contos Horizontais

àquele final.A soma dos seus medos era tão intensa que se assustava

até mesmo com um ser desprezível e efêmero que vive por apenas três

dias.

João mantinha o significado das coisas fixo na memória e

associava o significado ás palavras, então o problema era que como

uma máquina, ele não conseguia mudar o significado de acordo com o

contexto. A semântica era uma verdade absoluta dentro do que ele

apreendia e isso não mudava, porque se algo era ambíguo, ele

assimilava logo o mais geral, não conseguia abstrair das palavras um

sentido diferente do que encontrava no dicionário.

João nunca sabia o que guardar e o que descartar e vivia a

confundir as coisas. Não sabia se Nero era um programa ou um

político como ele. Não sabia ainda que uma reação química resultante

de comburente, combustível e fogo resultam em modificações na

natureza da matéria. E essa reação química tinha nome: combustão.

Num lapso de lembranças semi-adormecidas, se apossou do jornal e

ateou fogo, ciente de que a fumaça espantaria o inseto repugnante. O

único problema era que o sofá em que estava deitado era de tecido

sintético e listrado

Atração sanguínea

Alto, magro e esguio, Morfino andava pela redondeza do

Maletta com um ar de preocupado. Sabia que seria um zeninguém se

não conseguisse uma nova vítima para seu plano. Morfino não

aparentava ter a idade que tinha, era muito mais velho e era impossível

determinar com quem se parecia. Diziam à boca miúda que era a cara

do Herchovich e que, mesmo feio, era um sedutor sem limites. Desde

que aparecera na região, dizia-se advogado, mas ninguém sabia ao

certo o que fazia ou de onde viera. Era uma incónigta. Diziam que

Mazinho foi parar no Galba Veloso por causa do distinto após

conhecê-lo

Um dia, bêbado no boteco do Sapão, deixou escapar um dos

seus muitos segredos: Morfino não sonhava. E isso acontecia há

muitos anos. Deixou transparecer também que vinha de longe, sempre

viajando para “ganhar a vida”. Morfino mora bem, mora em Santa

Teresa e gosta muito do à bolonhesa da esquina da praça. Se pudessem

averiguar sua vida, os taxistas descobririam que por não sonhar,

Morfino, sugava mentes alheias para viver dos sonhos das vítimas.

Ninguém sabia, mas Ele era um vampiro decadente. Filho do demo.

Page 7: Contos Horizontais

Em Santa Teresa Morfino conhecia vários taxistas, dentre esses

Adão, um ex-funcionário público aposentado, barrigudo e careca.

Adão era o que alguém poderia considerar como sendo peça rara e

sortudo. Usava roach, perfume da Avon, corrente de ouro e toda quinta

cortava cabelo no Mercado Central. Além do táxi, Adão tem uma

coceira gostosa no pé esquerdo e uma namoradinha de parar o trânsito.

Morfino nunca a tinha visto quando um domingo, andando pela praça

viu Adão conversando com uma morena gostosa que chamava a

atenção até de outras mulheres. Adão parecia bêbado pela mulher e a

despia com os olhos. Os olhares dos outros taxistas também pareciam

desnudar aquela Vênus cor de ébano. Morfino enlouqueceu, ia chegar

perto para se deliciar da visão, mas Adão deu algum dinheiro a tesuda

e ela se foi rebolando pela Mármore.

De manhã Morfino não sonhou, mas desejou aquela mulher

como se ela fosse a última do planeta. Bebeu algum vinho, fumou dois

Cadillacs e se deitou na varanda do apartamento. Maquinava uma

forma de se aproximar da morena, que imaginava, além de bela teria

muitos sonhos a realizar. À noite Morfino se levantou e foi ao Spa-

ghetto, o bar que fica em frente ao ponto de táxi. De lá de dentro,

podia ver o ponto e o movimento da praça.

Subitamente sente um toque no ombro. Era Adão.

-Diz ai ô Morfino gente boa, que cara é essa de desanimado

homem?

- Nada, só estou de veneta mesmo, tomando um ar.

-Rapaz você não dorme? Vi você ontem à noite andando pela

praça por horas.

-Sofro de insônia. Isso é coisa antiga e, além disso, gosto da

noite.

- Morfino, cê não me engana, acha que não vi como comia

minha mulher com os olhos?

O vampiro se assustou e fingiu não entender o tom de ironia.

-Ela é bonita. Cara sortudo você. Tem pelo menos uns 25

anos?

-Nada cara, ninfetinha a Natasha. Mas fica comigo pela grana,

ela não me ama. Mas mete como ninguém e não me amola. É tudo que

um velho como eu poderia querer.Só tem um problema. Ela me leva

toda a féria do fim de semana. Isso é osso. E eu que tenho que pagar as

prestações do carro, fico apertado.

Nesse momento os olhos fundos do ladrão de sonhos brilharam e ele

arriscou alto:

Page 8: Contos Horizontais

-Tá desistindo dela? Podemos dar um jeito nisso aí. Mas vai ter

que me ouvir.

O taxista, que era ganancioso até os ossos abanou a cabeça e ouviu o

plano do vampiro.

De salto alto, saia curta jeans e bustiê, Natasha mora num

prédio invadido em Santa Efigênia. Ela como toda jovem, sonha em

ser famosa, além de ser fã da Luciana Gimenez. O que a faz mais

orgulhosa e a destaca das amigas é um book feito na Sonora, ter sido

musa do boteco do Caixote e amante de Adão, o que lhe rende algum

dinheiro.

Natasha estava muito feliz porque Adão a levaria à final do

concurso Comida de Buteco, na Casa do Conde. Ajuntou seu

dinheirinho e foi à Paraná comprar um vestidinho na Binoca. Mas

Natasha estava se cansando de Adão porque ele não se resolvia com a

ex-mulher e nem assumia Natasha definitivamente.

Já Morfino, sabia bem o que queria e como o conseguir.

Assim, sentindo o cheiro da cobiça no espírito do taxista, lhe oferece

seu opala Comodoro e uma suíte no JK de frente pra Raul Soares em

troca de uma noite de amor com a beldade. Adão aceitou sem

hesitação:

-Putaquiupariu, isso é muito mais do que consegui em 25 anos

de repartição e 15 de táxi.

Feitos os acertos, Morfino foi pra casa arquitetar o plano de ataque e

Adão entrou no táxi e foi pra Lagoinha tomar uma Original pra

comemorar o negócio da China.

Fim de semana seguinte se encontram na Casa do Conde num

festão com muitos convidados e show do Martinho da Vila. Morfino

se aproxima de Adão. Adão se afasta de Natasha e acerta os últimos

detalhes com o capiroto. Ela lindamente num coladinho de barras

plissadas aparece e se insinua para o servo de Satã. Adão sai de

fininho e vai pra mesa onde está servido o frango ao molho pardo.

Enquanto o garçom lhe oferece um chouriço à palito, Morfino trava

uma conversa sem conteúdo com a ninfeta. Natasha está apalermada

por aquele homem que ela não saberia definir como bonito ou

charmoso, mas que a amarrava com as cordas da simpatia.

- Lingüiça de boi com arroz branco, vinho chapinha ou sangue

de boi.

-Nada não, prefiro só uma cachacinha com chouriço. E você

Natasha o que prefere?

Morfino tentava ser boa-praça enquanto Natasha recusava a comida.

Page 9: Contos Horizontais

-Ô seu Morfino, que tal a gente dar uma andadinha por ai?

Aqui tá meio cheio né?

- Sem formalidades mocinha. Pode me chamar de Morfino.

Foram para o lado esquerdo do pátio onde havia galpões vazios e

algumas velhas peças de locomotiva.

De dentro do galpão ouvem a música vindo de fora e o

Esquerdo convida a moça pra dançar, beijando-a com volúpia.

Morfino é esperto, ele sabe que ela cairá no seu plano e tira uma

garrafinha com ungüento de dentro do paletó. Enquanto dançam ele

fala palavras indecifráveis no ouvido da moça. Bêbada, Natasha acha

graça e se deixa levar pelo príncipe da escuridão. Assim que abre a

garrafinha o demo esfrega o líquido nos cabelos da moça, que já está

se contorcendo de prazer. Natasha quer sexo, Morfino quer sonhar.

Usa uma navalhinha de inox pra raspar os cabelos dela e ela o lambe

no peito magro e incolor. O cinzento joga o resto do chouriço no chão

e põe os cabelos da morena dentro do prato e ateia fogo. Natasha

apresenta os seios redondos à mostra e rasga o vestido ao meio,

Morfino aspira a fumaça do prato e entra em transe, transando, nu.

Natasha passa a retorcer o corpo como se estivesse possuída e está.

Morfino se contorce de prazer e renovo. Natasha é rasgada por dentro

e por fora e os bicos dos seios se endurecem. Rebola e dá gritinhos de

dor. Após longos minutos de peleja o vampirão uiva orgásmico. A

moça enfraquece e cai como um lençol, desmaiada e pálida. Pobre

corpo de vestido preto. Morfino se sente renascido. Agora é alto, forte

e tem uma tez saudável e corada. O galpão fede a enxofre e fumaça.

Lá fora a festa rola sem parar e o antes magro morcegão vai

andando, ajeitando as calças com as mãos e toma um táxi pro

aeroporto. Dentro do galpão Natasha é apenas uma mistura de sexo e

pano preto rasgados. Está careca e desfalecida. Está morta.

A polícia chega com a sirene das veraneios zoando e com os

braços do lado de fora. Descendo das viaturas, abrem o galpão e

sentem o cheiro forte de coisa queimada. No Boletim de Ocorrência

Policial redigida pelo soldado Sanguinetti pode-se ler: “cadáver

encontrado inerte em decúbito ventral, causa mortis desconhecida.

Acusado foragido do local, modus operandi também desconhecido.

Ausência de sangue no local e no corpo da vítima”.

Segunda feira de manhã, em uma kitchenete no edifício JK

Adão se diverte lendo no Diário da Tarde as notícias do seu Leão do

Bonfim e tomando uma cerveja gelada. No Rio, numa clínica em

Page 10: Contos Horizontais

Santa Teresa, um paciente alto e com cara de polaco está sentado em

uma máquina de hemodiálise e lê no jornal a notícia sobre um

assassinato em Belo Horizonte.

-Como se sente senhor?

A enfermeira não sabe, mas, para ele a hemodiálise é apenas um ritual.

Em sua cadeira o polaco relaxa:

-Não quero a cura, só quero trocar de alucinações.

X imagem de Y ou deslocamento ou a degola

Estou um ser periférico, deslocado do mundo real e sinto-me

perdido num labirinto cretino. Minha vida é um caleidoscópio mas

sobrevivo de desbotadas lembranças. Minha mente é seccionada em

duas e tenho dificuldade em me entender. Criei uma sub-língua mental

para me comunicar com um Eu que eu mesmo descobri. Esse eu é meu

amigo e meu inimigo, eu o amo e o odeio. Somos dois e somos um,

Abel e Caim, bem e mal, sim e não. Gêmeos da mesma placenta,

quase siameses. Se um lado meu é superficial, o outro é profundo,

visceral e sobrevive à minha revelia.

Há poucas pessoas com quem mantenho contato. Durkheim,

Freud, Borges e Eu. Sei ler em vários idiomas, mas o alemão revolve

minha alma. Meu único hábito é a leitura, às vezes me entrego à

contemplação. O meu outro ser, aquele que está em meu corpo, é

amante da música. Meu mundo se resume a um quarto e sala, um

banheiro, uma pequena biblioteca e um jardim nos fundos da casa.

Morei em vários lugares, mas meu canto preferido é Intuí. Meu

habitante, vou chamá-lo X, perdeu a capacidade de falar, mas se

comunica comigo no inconsciente. Tem um gato, um canário e já

Page 11: Contos Horizontais

morou em Barbacena.

Quando deixei minha casa e fui morar comigo mesmo, minha

mãe cuidava de um fantoche que pensava ser um filho. Meu pai a

trocou por meu tio, depois se suicidou. Das lembranças que minha

mãe me deixou, a que mais aprecio é a gaiola onde guardo minhas

fotos. Passo horas observando-as. Por vezes me surpreendi em

monólogo regurgitando poemas de Pessoa que nunca li, mas sei que

são dele. X acha que sofro de esquizofrenia, mas ele é egocêntrico

demais pra conhecer minhas verdades. A biblioteca é meu Éden e

passo horas cheirando meus livros. X acha isso repugnante, prefere se

deitar na rede que habita o jardim e ouvir Bach. X ainda insinua que

sou um relapso, um degenerado. Ele, que em outra vida foi um

caçador, é discípulo de Baco e ama as mulheres. X é impulsivo, diz

que tem ânsia de viver, mas é egoísta. Ás vezes, simplesmente ignora

minha presença e passa horas inerte, absorto. Eu não sou impulsivo,

mas tento estar racional. Demoro dias para tomar uma decisão. Com o

passar dos anos, X tornou-se indecifrável. Passa muito tempo

narrando mentalmente caçadas que fizera no passado. Isso me assusta.

Acho que ele era tão violento quanto um gladiador. Cismo até que

gostava de ver sangue.

Temos dois quadros em casa. O grito e A persistência da

memória. Amamos esses quadros e embora tenham características

estilísticas bem diferentes, descobrimos que ambos sintomaticamente

nos representam. Há vezes em que X quer se livrar de mim e evoca

Münch olhando o quadro. Ele acha que há algo querendo sair daquela

figura retorcida. Metáfora. Algo que quer se libertar. X já tentou o

suicídio, mas eu impedi. Não posso permitir que se vá. Somos co-

existentes. X é carne da minha carne. Somos areia e deserto.

Recipiente e conteúdo, cada um a seu tempo.

Um dia, ao me barbear em frente ao espelho, notei que X

estava estranho. Eu molhava o rosto e X afiava a navalha. Era sempre

assim. Barbear era um ritual no qual cada um de nós tinha uma função,

como um ato comunitário. Ouvíamos o epílogo das valsas nobres e

sentimentais de Ravel e X tremia muito, parecendo nervoso. Súbita e

determinadamente, X tomou a navalha na mão direita, levantou meu

rosto com a mão esquerda e se degolou num único golpe.

Page 12: Contos Horizontais

Encontro marcado

(livremente inspirado no poema Anônimo de Ana Cristina César)

Desceu rápido a Tupinambás e tomou a Bahia sem nem olhar

pra trás. Estava decidida. Iria ver um filme, qualquer que fosse.

Precisava mesmo era espairecer. A briga fora muito séria. Porque ele

tinha feito aquilo? Ela o queria como homem, ele a queria como

amante. Mas brigaram, brigaram feio no Parque Municipal. Ela se

sentiu só e desesperada saiu correndo deixando-o no parque. Ela

andava a toa e queria ver um filme. Ela era assim, amava cinema

embora não soubesse nada além das estórias por trás da tela. Gostava

mesmo era de um prazer momentâneo.

- Onde tem um cinema por aqui? Perguntou a um transeunte

que distribuía santinho do Valdivino do bordéu.O homem apontou em

uma direção desconfiado. Ela entrou pelo corredor rápida e ofegante.

Passou em frente a escritórios de contabilidade e a um cartório. Viu o

cinema e sem nem mesmo perguntar o nome do filme comprou um

ingresso do velho que estava à portaria.

Entrou e assentou-se numa das ultimas fileiras. O filme já tinha

começado. Um homem estava sentado na outra ponta da fileira.

Não via o filme, pois estava vazia de si mesma, mas sabia que

era de má qualidade. – Que me importa qualidade se a solidão me

consome? Indagou a si mesma. Qualquer filme servia.

Atentou-se ao filme no momento em que ouviu um casal à sua

frente gemer. Nem se importavam com as outras pessoas. Enquanto se

consumiam no chupa e lambe, Cicciolina se contorcia de prazer com

Rocco. O telefone vermelho. Era esse o nome do filme. Não deu

importância ao fato, mas notou que chorava. O homem na sua fileira

parecendo pressentir isso, se aproximou. Ela sentindo, permitiu e ele a

abraçou carinhosamente. Ela retribuiu como se precisasse proteção.

Ela sabia que o filme não importava, e se amanteigava nos braços dele.

Ela sentia que o cinema cheirava a desinfetante barato. Teve náusea.

Ela chora mais ainda e ele a aperta junto dele. Ela aceita reconhecendo

o perfume dele e se acariciam por longos minutos. (...)

O desejo escorre pra fora dela. Estão arfantes e suados quando

os créditos sobem na telona enquanto ela se sente mais mulher, mais

confiante.

Levantam-se e saem do cinema abraçados e calados. Junto

deles saem outras pessoas que não se conhecem na penumbra. Velhos,

noivos, negros, albinos, açougueiros e gordos. Trombadinhas e

Page 13: Contos Horizontais

morféticos. Todos viram o mesmo filme. Todos pulsando de desejo.

Ao chegar fora do cinema vê pela primeira vez o rosto do homem. Era

ele. Ele mesmo. O amante do parque.

Sorriem e ela diz enquanto caminham:

-Essa cidade é mesmo muito movimentada.

Atrás deles, em azul e vermelho brilha a placa do Cine Regina.

Eu quero encontrar um amor

“Somos feito da mesma matéria que os sonhos”

William Shakespeare

Quero ler um livro, apenas mais um. Aquele que me indique o

caminho para encontrar um grande amor. Não precisa ser desses

amores de novela, nem daqueles para a vida toda, mas precisa ser

amor. Através de várias viagens, sou um cidadão do mundo mas

desconheço o amor. Tenho dividido os últimos anos de minha vida

entre os discos de bolero, meus livros e um grande sonho. Nunca

encontrei um grande amor. Sempre fui rodeado por sentimentos

passageiros, nunca amor. Quero mesmo é viver nos poemas de

Vinícius, porque acredito que lá o amor é um sentimento concreto,

embora isso possa parecer paradoxal. Quero amar.

Queria um amor denso, que durasse míseros 5 minutos, mas

que enquanto durasse fosse realmente amor. Alguém para se importar,

brigar, concordar e discordar, elogiar e criticar. Quero um amor

simples como um algodão doce, porque viver já é muito complicado.

Que meu amor não se importe se eu usar aquela camiseta amarelinha a

semana toda. Que meu amor goste de planta, arte, bicho, de cinema e

Page 14: Contos Horizontais

de conversar sobre tudo, mas que, sobretudo, me perceba quando eu falar

sobre nada. Que esse amor me dê carinho e respeito e que faça sexo num ato

de amor. Que meu amor seja amigo e que fale de política e me explique

quem é Deus, mesmo se não O conhecer. Quero um amor capaz de tornar

semântica a palavra família. Para ser meu amor não precisa ter dinheiro,

nem fama ou corpo de modelo. A idade não importa, basta me dar amor.

Que me faça sentir o coração como se sente um calo ou um espinho na

carne. Que me faça também ter certeza de que está ali, não precisa me

entender, mas que eu saiba que me ouve, pois sei que sou mesmo

complicado. Que meu amor me ligue num domingo de manhã sem razão.

Que nesse telefonema não se importe se eu não disser nada, mas que me

sinta. Quero um amor sem vergonha, sem timidez. Não precisa ter soluções

desde que me ajude a sobreviver aos problemas. Quero um amor pra andar

de mãos dadas pela rua, pela Bahia, que me faça descer pra floresta com

desejo. Que meu amor seja suave e selvagem, paradoxal, mas nunca prolixo.

Que não me sufoque nem me entristeça, mas que me faça sentir homem,

antes do fim do meu ciclo. Quero um amor romântico, shakespereano, um

amor Ágape, Eros. Quero um amor Amor.

Quero um amor, mas que meu amor não seja efêmero, afinal,

não se pode amar com pressa.

Instinto cibernético

“Porque, cientificamente não existem sentimentos”

Aquilo não nascera, passara a existir Era fruto de tecnologia de

ponta e fora criado por um grupo de estudantes e profissionais

fissurados por ficção científica e robótica.A princípio, era apenas uma

série de implantes corporais instalados no corpo de um gato em coma.

Depois, circuitos eletrônicos foram gerados para serem integrados a

sistemas inteligentes que formavam órgãos artificiais, funcionais. O

gato sofrera cirurgias plásticas, e através da infusão de drogas e de

mudança genética, a turma do GENEthicat pôde criar uma interface

cerebral e por conseqüência, uma inteligência artificial que era que um

complexo sistema neural fecundado por um chip de computador. Com

os recursos da robótica deram movimento ao ser híbrido e com ajuda

de computação gráfica simularam mundos virtuais que foram

mecanicamente instalados no cérebro-processador do animal. A

nanotecnologia ajudou na fusão das ligações eletrônicas com as

terminações nervosas graças à células-tronco modificadas. Neurônios

foram substituídos por microchips e glândulas por circuitos integrados.

Após três anos de noites mal dormidas, experimentos diversos e muita

Page 15: Contos Horizontais

dedicação, o embrião do projeto estava finalmente pronto. O gato já

podia andar e emitir sons. Tudo ainda muito mecânico e artificial. Mas

ainda havia um problema, a pele e a carne do animal apodreciam com

muita facilidade. Decidiram então trocar a pele por tecido e a carne

por estopa, mas ambos entravam em combustão após alguns minutos

de testes. Cádmio testou e sugeriu o uso de kevlar para substituir a

pele e de silicone pastoso em lugar da estopa. A partir daí, os

movimentos do bicho tornaram-se mais objetivos e suaves, menos

mecânicos. Aos poucos os cientistas iam aperfeiçoando o projeto de

tal forma que em pouco tempo teriam um robô tão perfeito quanto um

gato real.

Enquanto amantes da tecnologia, aqueles amigos buscavam

nos estudos meios para aperfeiçoar o robô. Cádmio, Nickel, Mercon,

Plânquio, Cúrio e Berílio se encontravam ás sextas-feiras e durante a

semana se dedicavam aos experimentos. Encontraram-se pela primeira

vez há três anos após contatos por e-mail através de um site que citava

Asimov e Hawking. Influenciados pelas idéias cyberpunks, os amigos

achavam mesmo que seria possível aproveitar o conhecimento

tecnológico existente para criar um andróide bem próximo de um gato

natural. Nos encontros decidiram criar o grupo de pesquisa chamado

GENEthicat. Dividiram as áreas de pesquisa por área e assim cada um

poderia se dedicar a uma parte do projeto sem se responsabilizar por

tudo. A partir daí, Plânquio, estudante de medicina, ficou responsável

pela estética e parte biológica; Nickel, letras, responsável pela parte

neurolinguística e de seleção de conteúdo a ser implantado; Cádmio,

químico e professor, responsável pela definição e análise dos materiais

a serem usados; Mercon, engenheiro mecânico e professor de

matemática, cuidava da anatomia e da cinética do robô e Cúrio e

Berílio, que eram estudantes da computação, ajudavam com o

conhecimento em eletrônica, lógica e processamento de dados.

Cádmio era o mais velho. Formara-se há 15 anos e o projeto era seu

grande sonho. Casara-se e tinha em sua única filha, Olga, a inspiração

para trabalhar. Olga era pequenina, cinco anos se tanto. Seus cabelos

vermelhos contrastavam com a pele alva e sardenta. Adorava brincar

com Mícron, um gatinho preto, vira-latas que ganhara de um vizinho.

Cádmio anotava todos os detalhes da relação afetiva que Olga,

desenvolvia com o gatinho. Olga era muito calada, parecia guardar

segredos infantis. Cádmio ficava várias horas observando o

comportamento da menina.. Um dia, Olga brincando no laboratório da

GENEthicat, achou o gato do projeto e o fez beber leite. Colocando

Page 16: Contos Horizontais

um copo na boca do animal-robô, deixou leite derramar na boca do

bicho e no corpo do animal. Como o robô estava desligado e não

respondia aos estímulos e indagações da menina, ela o apertava contra

o peito e chorava diante da imobilidade mórbida do bicho. Desistiu de

brincar com o robô após alguns minutos. Dias mais tarde, ao entrar no

laboratório, Cádmio e os amigos descobriram o módulo jogado a um

canto totalmente molhado em leite e quebrado. Após alguns minutos

constataram que quase todos os chips estavam avariados e os circuitos

e articulações começavam a oxidar em função do contato com o

líquido. Esse episódio fez com que o grupo pensasse na própria

segurança e sigilo do projeto GENEthicat. Decidiram não trabalhar no

projeto pelos próximos meses, período este que dedicaram à pesquisas

e à experimentação de materiais. Mercon desenvolveu um sistema

mecânico de segurança que impedia a entrada de pessoas estranhas no

laboratório. Cúrio e Berílio configuraram a rede de computadores do

grupo de modo a evitar invasões de hackers. Agora tinham uma

Ethernet, ou seja, uma rede que não poderia ser acessada por pessoas

de fora da própria rede. Isso aumentou o grau de sigilo e segurança do

projeto. Decidiram também por não mais permitir a alunos e curiosos

visitar o laboratório.

Após reestruturar a criação do robô e longos meses de

pesquisa, finalmente chegaram a uma nova proposta para o projeto.

Novos materiais foram incorporados e novas idéias haviam surgido.

Reconstruiriam o gato, mas dessa vez ele teria inteligência autônoma e

seria tão real quanto possível. Mercon havia recriado a estrutura óssea

com cromo molibdênio, um metal ultra-resistente e muitas vezes mais

leve que o aço. A pele seria mesmo kevlar, porém um pouco mais fino

e o silicone pastoso foram substituídas por fibras de silicone estriado.

Para o cérebro, Cúrio e Berílio haviam redesenhado o

microprocessador e apenas esperavam de Nickel o tipo de conteúdo

que seria implantado. Plânquio havia descoberto um meio de clonar o

cérebro animal e com auxílio da eletrônica reproduzí-lo. Havia

também uma nova unidade de processamento que cuidava

essencialmente da parte cinética e que ocupava o lugar de coração. Na

parte final de montagem do animal-robô, puseram garras de titânio,

resistente à oxidação. Duas webcams substituíam os olhos e enviavam

imagens para o cérebro-processador que as interpretava em até 256

cores e calculava tudo em 3D, assim o robô teria noção de espaço.

Uma tinta impermeável fora usada para pintar a pele de kevlar em

preto e o gato ficou parecido com uma pantera. Nickel apresentou o

Page 17: Contos Horizontais

conteúdo a ser inserido na memória do animal. Havia informações

sobre movimentos, hábitos felinos e um banco de dados com

informações lingüísticas. Foi incluído um sistema áudio-sensorial, que

permitia ao robô emitir sons e obedecer a comandos de voz. Havia

ainda uma seção que agrupava todas as anotações que Cádmio havia

feito baseado nas ações e reações do gatinho preto e de Olga. Tudo foi

inserido num micro-disco rígido acoplado ao cérebro-processador.

Agora tinham um robô ágil, com inteligência autônoma e rápida, mas

faltava a fonte de energia. No projeto anterior haviam usado pilhas

recarregáveis, mas a capacidade de sustentar a carga elétrica era

reduzida. Duas pequenas células fotoelétricas foram então instaladas

na parte superior da cabeça, atrás das orelhas. Este equipamento

absorvia energia solar e assim abastecia o bichano por até 3 dias. Este

sistema contava também com um dispositivo de economia de energia

que utilizava um capacitor e baterias que armazenava a carga

excedente produzida nas células fotoelétricas. Todo o corpo do robô

era revestido de material impermeável.

A primeira experiência foi com uma bola de borracha, que o

híbrido abraçava, corria atrás e fazia rolar. Depois colocaram o gato-

robô numa cama elástica. Um computador emitia ordens sonoras em

várias línguas e o robô obedecia e respondia com movimentos e sons.

O gato era capaz de identificar sons, imagens, pessoas e sua

inteligência artificial lhe permitia calcular movimentos e ter vontade

própria. Podia, por exemplo, andar em duas ou quatro patas, arrastar-

se ou deitar, de acordo com a necessidade. Era também capaz de

assimilar formas e tinha capacidade de análise do ambiente graças às

simulações geradas no cérebro-processador. O GENEthicat estava

quase aprovado, o projeto funcionava perfeitamente. Tudo estava

pronto e o teste final deveria ser com pessoas, afinal o gato é um

animal doméstico. Resolveram testar a docilidade do animal deixando-

o com Olga por uma semana, já que Mícron, o gatinho dela, havia

sumido. Queriam desenvolver as habilidades lúdicas e ativar uma

possibilidade de tornar o bicho menos máquina e mais animal.

Durante este período, Berílio e os outros pesquisadores observavam o

animal durante muitas horas e lançavam as notas num computador que

gerava gráficos e calculava resultados. Isso tudo formava um arquivo

que o grupo consultava para melhorar a performance do robô. A cada

dia o gato, chamado de Genésio, tinha suas habilidades apuradas e

surpreendia as pessoas com suas capacidades e suas ações. Genésio

possuía agilidade e rapidez incomuns e a memória do bicho era

Page 18: Contos Horizontais

impressionante. Olga adorava brincar de jogos de memória com

figuras coloridas com o gato, que sempre acertava onde estavam os

pares. Já Cádmio o fazia descobrir uma bola de meia escondida dentro

de um copo, que virado era embaralhado com outros quatro. O animal

era capaz de reconhecer textos de autores clássicos pela simples leitura

que Nickel fazia em voz alta. O gato confirmava o autor assentando-se

no nome correspondente escrito no chão. Além disso o gato parecia ter

gosto por autores específicos e, por exemplo, miava alto ao ouvir

textos de Poe e Baudelaire.

De acordo com autores cyberpunks, movimento cultural que

apresentou ao mundo a possibilidade dos andróides, os replicantes são

robôs feitos à semelhança do homem, graças à evolução das

descobertas na área da genética. Têm inteligência artificial

independente e são mais fortes e resistentes que os próprios criadores,

porém são frios e pragmáticos, incapazes de se deixar levar pelas

emoções. O problema é que alguns replicantes atingiam tal grau de

autonomia que se tornavam incontroláveis. Genésio era assim. Um

gato que não era gato. Um robô que era mais que um robô. Um

replicante. Por apenas alguns minutos Cádmio o deixou brincando

com Olga enquanto comemorava o sucesso do projeto inovador com

os amigos. A criatura híbrida era fria. Muito fria. A menina era

inocente. Pegou o pescoço do animal-robô com as mãozinhas e tentou

fazê-lo de boneca. Pôs um vestidinho no bichano e com uma tesoura

tentava cortar o rabo do bicho. O bichano não gostou. Pulou na mesa

de ferramentas e de lá se arremessou contra Olga com as unhas em

riste. Eram unhas fortes, afiadas como navalha. Matou a filha de

Cádmio sufocando a menina e cravando as garras no pescoço dela.

Ficou brincando com os cabelos de Olga como se fosse um novelo de

lã. A tecnologia havia criado tudo, mas Genésio, o gato que era

perfeito, não tinha alma.

Page 19: Contos Horizontais

Investigação sobre nomes próprios no português brasileiro

Nos longínquos anos de antigamente, vovó e suas comadres

costumavam batizar os filhos, com os nomes de santos contidos na

Folhinha Mariana. A criança era nomeada de acordo com o nome do

santo do dia. Daí vieram Cosme e Damião, Mateus e Marcos, Pedro e

Tiago (muito antes dos sertanejos) e surgiram verdadeiras pérolas

como as Ana Lúcias, os Antonio Sebastiões e a interminável série de

combinações possíveis e impossíveis para Maria, os infinitos Josés

(Disso e Daquilo), Joões e outros mais.

Apenas considerando os nomes dos santos e a maluca

criatividade matri-paterna, podemos apresentar vários nomes

engraçados, feios, bonitos, ridículos, insignificantes, curtos, longos,

malucos, comuns. Mas podemos também selecionar alguns dados que

podem ajudar a compreender um pouco mais dos nomes de pessoas

que conhecemos. Aposto que você conhece alguma Maria do

Rosário, Maria do Perpétuo Socorro, Maria da Anunciação, Maria da

Glória, Maria das Graças, Maria da Penha ou alguma maria assim

bem comum. Como era de se esperar, há também uma linha de nomes

próprios que combinam com determinados sobrenomes e destes não se

separam jamais. Por exemplo, eu garanto que nem todo Geraldo que

você conhece é Magela, mas quase todo Magela é Geraldo. Carlos

Alberto, Roberto Carlos, Pedro Paulo, Lúcio Mauro e assim vai

indefinidamente.

Existem ainda os nomes mistos: Mariângela, Analu, Luciana,

Anamaria, Claudianderson, Neivan. Mas o que o brasileiro gosta

mesmo é de misturar nomes importados com nomes mais comuns.

Alguns anos atrás, um jornal de grande circulação publicou uma nota

na seção policial onde se lia: “João Michael foi morto a facadas na

Rocinha”. Mas ainda há os casos de Marylin de Souza, Antonio Roger,

Juan Florisvaldo, John Rodrigues, Lorraine Michele, Uochinton

Almeida. Nota-se ainda que brasileiro tem também a mania de nomear

filhos homenageando personagens famosos: Romário de Oliveira,

Frank Benevides Sinatra, Tomas Jéferson Santos. Este ano constatei a

incrível aparição de um jogador do Guarani de Campinas por nome de

Creedence Clearwater e de outro no Vitória da Bahia chamado Alan

Delon, tudo isso além de um Cannigia, sendo este meu vizinho.

Certa vez, num programa de rádio aqui mesmo da capital, foi

aberto um espaço para que os ouvintes falassem a respeito dos nomes

próprios, e apareceram uns mais esdrúxulos e engraçados que já soube.

Page 20: Contos Horizontais

Os ouvintes disseram conhecer gente por nomes estranhos como, por

exemplo, Agesípolis, Vasco, Rudinan, Manfredso, Correlato,

Abrilina, Cheropita e até uma possível, mas inacreditável Urinícula.

Recentemente, um deputado apresentou um projeto de lei que

proíbe nome de pessoas em animais. Pobres crianças, que agora só

poderão chamar seus animais de Totó, Bilu ou Xerife, mesmo

adorando nomes como Sacha, Xuxa e Ronaldinho.

Conhecemos algumas pessoas com nomes diferentes, mas que

têm origem histórica assim como Athaíde, Austregésilo, Sócrates,

Dídimo. Conhecemos também pessoas que têm sobrenomes extensos

como Dom Pedro II, que tendo vários nomes, penso, nem ele próprio

era capaz de se lembrar. Para terminar vou falar a respeito da teoria

formulada por um amigo meu chamado Charly Darvin Oliveira :

“Toda a criança ao nascer deveria receber um apelido, ou na

pior das hipóteses um número e assim que ela chegasse a uma idade

em que pudesse responder por ela mesma, ela escolheria um nome de

acordo com sua própria vontade, afinal somos nós todos

desconhecidos como pessoas e conhecidos como números, vide CPF,

RG, cartão de crédito etc...”.

Para finalizar pergunto-me: por que será que meu amigo

Charly desenvolveu esta teoria? Ah, e se você estiver curioso para

saber meu nome, também tenho um nome importante. Eu sou Uéris

John, que vem do inglês.

Page 21: Contos Horizontais

James Choice

“Amanhã morrerei e quero aliviar minha alma(...)” Edgar Allan Poe1

James caminha até a barca que atravessa o Mississipi e vai até

o outro lado. Desce da barca, caminha uns quinze metros, pensativo, e

entra à esquerda numa ruazinha estreita. Pela sétima vez naquela

semana, vai ao pub inglês. Entra, vai ao balcão e pede uma dose de

Everclear. Bebe vagarosamente, enquanto observa um inglês com

camisa do Red Devils e um americano magrela jogando dardos. Fica

no balcão por uns minutos ainda, depois entra no banheiro. Assenta-se

no vaso, vê fotos de Diana e da Rainha coladas no teto e um poema de

Baudelaire colado atrás da porta. Jean ama Jane, Mary esteve aqui,

Yankees campeões, fora Bush, são alguns dos muitos rabiscos bêbados

nas paredes. Decide ir embora e volta para a balsa. Passa por outro

caminho, pela praça e entrando na Bourbon indo para a rua da casa de

Faukner, seu favorito. Olha para a casa do escritor em silêncio por

algum tempo. Tem a ligeira impressão de que está sendo seguido. Um

1 In O gato preto

dos escritos na parede do banheiro do bar permanece em sua mente.

Amanhã morrerei e quero aliviar minha alma. Poe era mesmo

instigante e obscuro.

Volta para a praça e segue em direção a um táxi parado. Decide

ir pra casa andando, mas o táxi parece atraí-lo. Caminha em direção ao

carro sentindo como se fosse induzido a fazê-lo. Entra, cumprimenta o

motorista e pede que o leve ao mercado francês. Por instantes tem a

impressão de que o taxista é seu conhecido. Após alguns minutos,

avista o French Quarter, desce do carro e caminha direto passando em

frente a Funeral Vodoo onde uma bandinha toca Jazz. Trôpego,

James vai até a estátua de mulher no fim do corredor e a beija, sem

saber porque faz isso. Sente o gosto frio de metal na boca, mas não se

importa. Volta ao táxi. O motorista no lado esquerdo do carro tenta

conversar. James se deixa levar pelo bate papo enquanto se esvai em

pensamentos.

Tudo estava acontecendo muito rápido. Casara-se no mês

anterior em Salém e em seguida foi com a mulher passar o Mardi Gras

em New Orleans. Ficara bêbado, abandonara a mulher num quarto do

Marriot´s e fora se divertir com mulheres numa boate. Separam-se

depois de apenas sete dias de casados, fora passar a vida a limpo no

Page 22: Contos Horizontais

maior cassino da cidade e, não se sabe se num lance de sorte, ou acaso,

ganhara um milhão de dólares. Desde então, aquela era sua rotina nos

últimos dois meses, beber e vagar pela cidade remoendo suas dores

pelos cabarés e shows baratos de jazz que sempre aconteciam pelas

ruas.

Solteiro repentinamente, James sofria de um mal terrível que

com a separação só piorou, não conseguia se decidir por nada e, agora

rico, corroia-se em dúvidas e não sabia o que fazer de seu próprio

futuro. Poderia sugerir uma reconciliação à mulher, ou ainda mudar-se

para outro estado. Sempre fora assim, sem capacidade de decisão, e se

casara devido à pressão das famílias e da noiva. Na separação brigara

com todos. Portanto, agora estava rico e sozinho.

- É mesmo difícil essa decisão. Caminhos tortuosos se

apresentam e as decisões, essas, nunca saberemos se foram acertadas.

Agora que é rico, não deve voltar para sua mulher.

- Ei, como você sabe sobre mim? Pergunta James ao soturno

taxista que parecia saber ler pensamentos.

-Prazer te conhecer também, sou Lucianno. Nessa profissão

sempre se sabe mais que as pessoas pensam. Já carreguei pessoas de

todos os graus de conhecimento, de toda sorte de pensamento, com

toda espécie de problemas. Nunca estudei, mas conheço como poucos

a mente humana e suas fraquezas.

-Mas, você me parece familiar. Por acaso, é de Salém2,

Massachussets?

- Minha casa é casa de muitos moradores. Moro no centro de

tudo e posso dizer que sou como um rei louco de um reino perdido.

Sem entender bem o que o taxista dizia e semibêbado, James ignora as

respostas e diz:

-Fiquei rico, mas sou um atolado em dúvidas. Minha vida é uma

incerteza só. Quando criança, eu gostava de ler, porque sempre encontrava

as respostas que precisava. Depois, na faculdade conheci Eve, e ela sempre

tomava as decisões por mim. Mas brigamos. Numa das minhas primeiras

decisões, fui ao cassino. Ganhei no jogo e perdi a mulher. Briguei com a

família e estou perdido numa cidade que conheço. Queria dar um fim a tudo

isso, mas não posso. Sou fraco e indeciso.

-As decisões dependem de você unicamente e para isso você recebeu

uma dádiva, o livre arbítrio.

-O que é o livre arbítrio quando não se sabe o que quer? Como posso

2 Salém, nos arredores de Boston, é conhecida como a cidade das bruxas.

Page 23: Contos Horizontais

viver se a cada momento tenho que fazer escolhas e tenho medo? Eve era

quem decidia por mim, além disso, deixo a vida ir acontecendo porque

acredito convictamente em destino.

-Destino, palavra doce como o mel, no entanto, dura como uma

pedra. Nem mesmo quem controla os desejos e sabe tomar decisões pode ter

certezas a respeito do destino. Veja meu caso. Eu era o filho preferido de

meu pai, o mais brilhante dos meus irmãos. Meu pai muito rico e rígido, não

aceitou minha desobediência. Foi errar uma vez e fui jogado no abismo.

Conto aos passageiros minha história e ouço seus problemas. Transporto

desejos que já foram meus. Levo pessoas e trago lembranças do passado que

decidiu meu destino. Mulheres são um perigo quando tomam decisões.

Através de uma o Mal entrou no mundo. Eve, nome oportuno.

Vagarosamente, pararam num semáforo na Jackson Square e havia

um grupo de pessoas num restaurante a comer Gambo3. James sentiu fome e

sem esperar respostas disparou perguntas ao estranho Lucianno:

-Então, já foi rico também? Fez a escolha errada? Por isso sofro,

sempre existe a possibilidade de estar cometendo um erro. Entre duas

opções, sempre pescoço cheio de beads. Uma mulher bêbada também cheia

3 Comida típica de New Orleans, cozido feito à base de camarão, vegetais, ervas e

pimenta.

de beads4 se arrasta pelo corredor a dizer impropérios. Em New

Orleans às 4 da manhã é assim, quem não está bêbado está indeciso.

4 Colar de contas plásticas usado por turistas no carnaval (Mardi Gras) de New

Orleans, na Louisiana, Estados Unidos.

Page 24: Contos Horizontais

Namoro virtual5

“Se um cara chamado portões ficou rico vendendo janelas que vivem

quebrando, acho que posso abrir minhas portas”6

Tudo aconteceu num cybercafé. Ela era teen e amava um chat.

Ele era hacker e estudava sistemas. Marcaram um encontro na Café

com Bytes, uma mistura de café, boate e ponto de encontro dos

usuários de computador. Ela foi de micro-saia, laptop vermelho e

sapatos salto alto. Ele foi de walk-machine, óculos escuros, aro de

tartaruga. Entrou, escaneou a área do bar e a localizou perto da

máquina de refrigerante. Se reconheceram pelas fotos que exibiam na

Internet. Cumprimentaram-se e ele viu que não precisava perguntar

como ela era. Instalaram-se numa giratória e pediram um suco natural.

Tudo cooperava para o encontro e o ambiente era compatível. Falaram

5 Conto escolhido para a prova de redação da Universidade Estadual de Maringá, PR

em 2005.6 Brincadeira com o nome de Bill Gates e Windows; Gates = portões e Windows =

janelas.

das imagens que criaram um do outro, do tempo e da nova

configuração política mundial depois da guerra, mas tudo soava muito

superficial. A verdade é que a conversa estava uma chatice. Nada a ver

com o Chat onde sempre tinham assunto.Olhavam-se envergonhados e

ficaram horas compartilhando o suco invisível que acabara há muito

tempo. Até que ele sugeriu um programa diferente e ela aceitou.

Foram para o reservado, no nível de cima do bar. Haviam pcs

conectados em cabines individuais e o som ambiente tocava “Nunca te

vi sempre te amei” da Broadband, o novo mp3 que era um record nos

sites de download.

Ele se assentou de frente pra um pc compaqto, enquanto ela

alisava os cabelos com um pentium de lítio. Ela ligou o laptop, ele já

estava on-line e conectaram-se. Virtualmente iniciaram o namoro

teclando elogios, depois ele a convidou para visitá-lo em casa. Ela

tinha duas opções; não e ficar no bar e sim, continuar. Preferiu a

segunda opção e foram para o endereço dele.

Era uma casa muito grande mobiliada com muitos arquivos e

algumas janelas sobrepostas, parecendo um office moderno. Na casa

havia um cômodo especial. Era uma área de trabalho pequena, mas

pintada em branco e azul tinha-se a impressão que era maior. Na sala

Page 25: Contos Horizontais

ele ligou o DVD e colocou um disco no dispositivo. Era o filme “ICQ

– Episodio I seek you”. Assentaram-se num banco de dados que ali

havia e assistiam ao filme trocando carícias. Minutos depois ele disse

que iria à despensa buscar algo para comer. Não achou o milho de

pipoca, embora soubesse que havia armazenado mais que o suficiente.

Optou por um chocolate em placas. Ela ainda estava sentada, mas não

parecia interessada no filme. Ele como que por efeito mágico tira do

bolso um anel de cristal liquido, que ela recebe estupefata enquanto

come o chocolate. Beijaram-se contidamente, mas ele sabia que as

mulheres têm os mesmos códigos, apenas a combinação poderia ser

diferente. Ela apertou a orelha dele e sussurrou algo sobre um local

mais à vontade. Ele como em automático a arrastou para outro

compartimento com um wallpaper amarelinho claro. Era seu gabinete.

Ele abriu uma pasta, tirou uma proteção antivírus e assoviou.

Carregando-a, deitou-a na rede acoplada no cômodo e retirou o

pesado boot que estava calçado. Amam-se virtualmente. No ápice da

conexão amorosa eles fazem leituras dos próprios pensamentos

através de um prolongado movimento de olho no olho. Amam-se

novamente e toda a interação é reiniciada. Todos os sentidos são

ativados pelo tato através das relações neurais. Isso traz às suas

memórias uma sensação nada virtual. A ação sexual é realizada pela

terceira vez, esta porém, numa webcama, que estava atrás de uma

pesada porta serial. Dormem.

Ele acorda preguiçosamente e num impulso analisa a cama à

procura dela. Não encontra e rastreia o quarto. Ela se foi. Tomou

algum caminho que ele não sabia qual. Escapou de sua rede enquanto

ele hibernava. Tudo que compartilharam estava no passado, mas não

seria esquecido como um papel na lixeira e nem ele queria deletar isso

da memória.Tinha perdido-a e teria que recuperá-la, mesmo sem saber

qual foi seu erro. Ainda sonolento ele maquina uma forma de

reconquistá-la. Talvez enviasse flores. Talvez a convidasse a ir ao

sitio, lá ele tinha uma torre onde poderiam simular Rapunzel. Talvez

se acendesse uma tela Jesus poderia salvar a relação. Adormeceu

novamente processando informações sobre como atraí-la.

No mundo virtual é assim, após cada encontro é preciso

reiniciar.

Page 26: Contos Horizontais

Nostalgia pueril ou fluxo e refluxo

“Because I am a dreamer, and I dream my life again, again, again

(...)”

Ozzy Osborne

Quando eu era criança eu sonhava. E sonhava muito e meus

sonhos tinham personagens lendários e mágicos. Cenas tão reais que

pareciam cenas vividas. Eu sonhava transcendental, mesmo sem saber

o que era isso. Sonhava natural, sonhava ficção e romance. Nos meus

sonhos havia sempre uma ponte que caía e uma situação de perigo.

Havia também uma vontade louca de chegar a algum lugar

desconhecido. Nos meus devaneios pueris eu voava sem ter asas e

quando alguém me perseguia, eu corria sem sair do lugar e escapava.

Às vezes, eu ficava confuso com um rio ou uma torneira que aparecia

e eu fazia xixi na cama. Sonhava que estava num balanço muito alto,

sem medo de cair, e o balançar era eterno, seguro. Sonhava com o

papai me levando pra tomar sorvetes e amanhecia com sede. Sonhava

com a professora de matemática e amanhecia molhado.

Nos meus sonhos eu tinha medo, no entanto era um medo

estimulante. Meus inimigos eram fortes, porém imaginários. Meus

medos eram ventos num milharal, sempre rápidos e passageiros. Eu

me assustava e corria e corria e vencia. Meus inimigos eram

continuamente derrotados. Sempre aparecia uma escada ou um

precipício e eu caia e não me machucava. Nos meus sonhos havia

abismos e cavalos. Sempre sonhei com cavalos. Quantas vezes

sonhava, acordava, e o sonho continuava como um filme com

intervalo comercial! Meus sonhos eram como labirintos e davam

voltas. Eram cíclicos, se na época eu soubesse o significado dessa

palavra. Meus sonhos eram tão imagéticos como a aquarela de

Toquinho e Vinícius.

Quando criança, assim que aprendi a escrever, costumava

anotar meus sonhos num caderninho que se perdeu no tempo. Hoje,

ainda escrevo, mas não anoto o que sonhei, escrevo ilusão, crio

fantasias. As que sonho, essas me fazem sofrer. Não tenho pretensão

alguma de ser reconhecido pelo que escrevo ou sei, todavia sou

assolado pelo que não sei. Sou um especialista em nada. Sei muito de

algo que é apenas um detalhe. O que escrevo nada tem de novo,

escrevo sobre a angústia humana sobre o futuro, sobre o devir, sobre o

há de ser. Muitas vezes eu tenho vontade de fazer coisas, mas, ou me

falta coragem, ou a profissão e a condição social me proíbem. Então

Page 27: Contos Horizontais

escrevo e quando escrevo, sou um super herói. Enfrento o mundo. Sou

invencível e, se este mundo não me basta, eu crio, sonho um outro.

Mas a verdade é que quando sou real, tenho um medo que não é mais

estimulante, desafiador como noutros tempos. É um medo real. É

Medo. Meu medo hoje é para além do aspecto onírico. É um dragão

que consome meus dias a partir de cada manhã. Meu lado imaginário é

hoje tomado por um Bucefálo negro e ameaçador que pisoteia minhas

esperanças e meus desejos. Não acredito que sonho, entretanto, sinto

que sofro. Sofro de um mal chamado fluxo de consciência. Sonhar é

sofrer dormindo, sofrer é sonhar acordado um sonho com um abismo

real e amedrontador. Não há mais o Gato que elucida o caminho no

labirinto que é meu pesadelo. Quem dá as cartas agora é um palhaço

com cara de ditador e que me assusta. Meus personagens da infância

são hoje meus vilões, cresceram comigo.

Quando era criança eu pensava que sonhar era viver uma outra

vida enquanto dormia. Hoje acredito que sonhar é como uma lei da

Física. Com ação e reação, fluxo e refluxo. O mundo real é o lado real.

O sonho é o lado avesso, upside down, e a loucura é um sonho vivido.

Sonhar é como viver em capítulos, uma estória que não tem fim e que

é contada por um narrador onipresente, onipotente. Nos meus sonhos,

vivo representando um papel que não é meu. Sou dirigido por um

diretor maluco que me faz interpretar uma estória dentro da estória,

dentro da estória, dentro da estória. Sou um ator-fantoche e o enredo

da minha vida é um fractal. Para mim, sonhar é sofrer aos

pedacinhos, fragmentando. Meu balançar ainda é eterno como nos

sonhos de criança, mas agora tenho medo de cair. Tenho saudades dos

meus sonhos infantis. Tenho lembranças das estórias ouvidas ao pé da

cama que embalavam meu sono e desenhavam na minha memória

desejos em forma de sonho. Meus sonhos hoje são pesadelos terríveis

como rabiscos malcriados e por isso, pelo menos mais uma vez,

gostaria de ouvir a mamãe dizendo:

-Passe a mão na cabeça, menino, que assim você esquece o

sonho.

Page 28: Contos Horizontais

Sobrevôo

A princípio pensou que estava perdido e se desesperou ao

imaginar a possibilidade de não se encontrar em meio ao

desconhecido, mas na situação em que estava não se importava nem

um pouco com convenções geográficas ou mesmo com o futuro. De

fato ele começou a notar que o lugar era estranho, porém muito bonito

e agradável. Então ele ia se movimentando como se voasse e notou

que embora não soubesse onde estava, passava por vários lugares

conhecidos. A paisagem era de uma beleza tão intensa e de uma

riqueza tão táctil que sua mente lhe permitia sensações prazerosas

como se ele fosse ter orgasmos visuais. O lugar era muito arejado,

soleado e verdejante com morros muito altos Todas as portas eram

azuis veludo e tinham uma maçaneta dourada. As casas eram

pequeninas e estavam á beira-rio e nas pequenas pontes que podia ver,

reconheceu imagens de animais tropicais esculpidos nos beirais. Uma

cobra, um tamanduá ou mesmo um passarinho verde naturais. Um rio

muito colorido sibilava entre as casinhas e fazia voltas molhadas pela

pequena cidade. O rio era furta-cor e era um riacho caudaloso, embora

pequeno e silencioso. Ás margens do riacho havia árvores de várias

formas e feitios e figueiras por toda parte. Havia também crianças que

jogavam futebol e amarelinha. Elas também eram pequenas, mas

pareciam tristes. Muitas crianças corriam e não havia nenhum carro

nas ruas que eram muito limpas. Ele olhou mais uma vez para as

casas e as crianças e reconheceu casas e amigos de infância. Amigos

inocentes, casas todas novinhas e limpas.

Foi chegando a um lugar que dentre todos os outros ele

desconhecia. Era um atalho cheio de mato a beira da estrada ladeada

ainda pelo rio. Era uma favela. Toda pintada em azul e amarelo e que

tinha nos gatos* sombras de passarinho, pura ironia da natureza. Mas

ele nunca tinha visto uma favela. Aquela visão o perturbou porque viu

casebres miseráveis habitados e viu pobreza e simplicidade conviver

com harmonia. Os primeiros habitantes eram magros, pequenos e

alegres. Caminhavam e falavam numa língua que ele não conhecia,

mas que, no entanto, compreendia. Á entrada do morro havia um

portal e um grande monumento provavelmente feito de entulho no

qual se destacava uma cobra com um nó próximo ao meio do corpo. O

corpo era furado por objeto por ele desconhecido.

De um lado um muro cheio de pichações artisticamente

coloridas e do outro uma escola amarela e com uma placa onde se lia:

Page 29: Contos Horizontais

“Escola da vila”. Nesse ponto ele pode descer ao solo e começou a se

ater ás coisas que os moradores falavam, mas eles pareciam não vê-lo.

Descobriu que aquelas pessoas eram favelados quanto à moradia,mas

não quanto à atitude.Eram muito inteligentes e havia na escola um

grupo de senhoras que eram encarregadas de guardar as memórias e

estórias populares em livros. Descobriu ainda que o conhecimento do

povo era muito evoluído. As pessoas velhas eram jovens e os jovens

eram conscientes. Falavam de política e de evolução das espécies entre

as refeições e ele que nem mesmo sabia o que era fidelidade

partidária...

Caminhou por uma rua larga ao lado da escola e viu barracas e

vendas que vendiam doces, manguezada e dondó. As vendedoras

mascavam fumo e cuspiam no chão. Aquilo era para branquear os

dentes. Notou que os pobres favelados não eram tristes e sempre

estavam sorridentes e contando estórias.

Do alto da favela viu a parte da cidade que já tinha passado e

percebeu que era um lugar muito diferente se visto do morro. As casas

não eram tão pequenas e as árvores não eram tão bonitas mais. As

belezas que antes eram tão fascinantes agora eram encobertas pela

distância, as crianças que corriam não mais sorriam, não se podia vê-

las. As portas azuis eram de longe negras e estavam todas fechadas. O

que era verde parecia cinza e o rio corria em direção oposta.

O morro, a favela, a encosta, a vila era outro mundo, outra realidade.

Era artisticamente construída por arquitetos e engenheiros sem

diploma e analfabetos. Os carros, ah eles não tinham carros, tinham

bicicletas, tinham rádio comunitária que levava e trazia noticias do

outro mundo. As crianças corriam peladas, porém vestidas de

felicidade. Subiu então aos ares e lá de cima viu o mundo, viu a cidade

e a favela, viu o rio e o morro. Só então entendeu o que era até aquele

momento obscuro. O morro era um país diferente, uma outra

dimensão de felicidade.

*Gato: nome dado ao emaranhado de fios que roubam

eletricidade dos postes nas favelas.

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Tecnostalgia ou notícias do mundo de lá

Belo Horizonte, 12 de abril de 2006

À alguém, à algum, ao século passado

“Caríssimos amigos os, fatos que vou narrar compreendem minha

rotina diária e a saudade que sinto dos anos dourados, da infância

alegre e do mundo menos tecnológico . “

“Assento-me numa cadeira de frente a um laptop e não há mais

escrivaninha, caneta ou bloquinho de anotações. Esqueçam os cadernos de

caligrafia, agora tenho um editor de textos que tem sempre a mesma letra,

porque a moda agora é ser virtual. Um mundo evoluído em que a

inteligência biológica se confunde com a artificial, o proibido com o

permitido, a ética com a estética. O mundo se rendeu à cibernética. O

processo de criação se distanciou do Criador. Qualquer um pode ser

dadaísta. É tudo um jogo de dados. A inspiração já não vem dos Céus, vem

do Acaso. As musas do Olimpo foram globalizadas e agora tem

sobrenome ponto com. Temos sites, programas, plágio e dicionário

eletrônico. As bibliotecas agora são virtuais, mas seus livros não têm

cheiro. O bit é inodoro, insalubre. O Joyce e o Pessoa, as tragédias e as

comédias que outro dia impressionavam nas estantes, hoje cabem

todos num disquinho de plástico. Plástico também não tem gosto. A

evolução é pertinente, o que incomoda é a impessoalidade. Não há

mais tantos saraus literários, criaram os blogs. Para que ler se a Rede

me dá tudo resumido? Enciclopédia para que? Como no sexo, só

preciso de uma conexão. E a conexão também oferece prazer. Porque

o apelo sexual agora é mais visual, voyer. Uma imagem vale mais que

mil carinhos. O telegrama agora pesa mais de uma tonelada, é mais

leve mandar um e-mail. Precisamos nos atualizar porque as janelas

foram lançadas em nova versão e esta não é mais compatível com

serenatas! A reciclagem agora é também de conhecimento e o bit matou a

letra cursiva. As teclas tomaram o lugar que sempre foi das canetas, do lápis.

Tudo é digital, inclusive as digitais, livro, foto, diário, música e saudade.

Todo mundo tem um fotolog e posso fazer e selecionar os membros da

minha própria comunidade. Até Da Vinci virou código. Entretanto, o

conhecimento é nulo se não há inspiração. Rendi-me e transformei a letra

em bit e à luz da literatura crio um hipertexto, não uso mais caneta e

papel. Não saberia dizer se as relações pessoais evoluíram ou

involuíram. O que sei é escrevi meu último texto num plano curvo de

modelo variável dentro de um livro de luz! Encontro a solução táctil

Page 31: Contos Horizontais

quando digito uma palavra que já não é mais palavra, é comando.

Aperto teclas e mordo o lábio porque a caneta é inútil. Minha opinião nem

é tão importante porque minha pátria é minha Rede, e essa Rede é minha

Língua. Meu cérebro agora é um periférico (hardware) ! Minha memória é

fruto de uma compilação de dados extraídos de vários sites. Antes eu sabia

falar, hoje minha voz são meus dedos e minhas palavras são Words. Tenho

convulsões e minha mente medula pelo lóbulo da minha orelha. Sou uma

antena móvel acessível ao mundo digital. Download, upload. Envio, recebo.

Se fujo disso, fico marginal. Minha letra é um signo, um símbolo

matemático. Lançaram mais um jogo, eletrônico, porque pôquer é

coisa do passado, futebol com os amigos só se for online! Não moro

mais. Agora me hospedo em um provedor. Na minha antiga casa havia

uma sala que se cansou de estar, queria ser, e hoje é sala de bate papo.

Talvez esteja me tornando um homem-máquina alienado por um

Sistema que não aceita aquele menino do interior. Mas apesar disso

ainda sou capaz de chorar porque lágrima é água em estado

sentimental (dígito não pode molhar). Se escrever ainda é arte, a

minha escrita é uma oração pela volta ao paraíso.”

Flávio Martins da Silva, também conhecido como Nickel nasceu em

João Monlevade e desde muito cedo escreve contos e poemas. Desde

2003 é licenciado em Letras/ Inglês pela UFMG e publica seus contos

e poemas em sites literários do Brasil e Portugal. Desde 2000 é

professor de Língua Inglesa, trabalhando em várias escolas, dentre as

quais o Centro de Extensão da Faculdade de Letras da UFMG, o

Centro Acadêmico de Ciências Sociais da FAFICH - UFMG e a

Prefeitura de Contagem.

Impresso por conta própria. Se você quiser contactar o autor, não

hesite:

[email protected].

2007