coprodução internacional e política audiovisual. o caso brasileiro … · 2014. 5. 27. · o...

12
Redes.Com Nº 6 83 Coprodução internacional e política audiovisual. O caso brasileiro e a relação com a América Latina Flávia PEREIRA DA ROCHA ABSTRACT The making of movies in an international co-production regime has been a tool favored by the Brazilian audiovisual policy. This article argues on the co-productive scenario between Brazil and other Latin American countries presenting data pointing and agreements. It brings up the question of cultural development and how it is really brought about. It discusses the inequality of production, and the parallel of ‘doing for the market’ as opposed to doing ‘to promote cultural diversity’. Finally, it proposes a reflection on the issue of cultural de-contextualization and the screenplay of films made under a co-productive regime. Keywords: international co-production, cinema, audiovisual policy in Brazil INTRODUÇÃO O cinema brasileiro vive um momento de relativa notoriedade no cenário global. Considera-se que a principal causa são as estratégias utilizadas para ampliar a participação do audiovisual brasileiro no mercado internacional através de coproduções. Esta forma de parceria tem sido vista como uma tendência na produção de filmes. O presente artigo mostra como o Brasil vem caminhando para ampliar suas fronteiras. Analisa o caso brasileiro, tendo entre outros questionamentos como está se dando a busca pela abertura de novos espaços no mercado internacional além da expansão e ocupação do mercado interno no país que é o segundo maior produtor de filmes na América Latina – perdendo apenas para o México. O termo coprodução cinematográfica pode designar uma parceria financeira, criativa ou técnica envolvendo dois ou mais países para a produção de uma obra cinematográfica, que será considerada nacional para as autoridades em ambos os países signatários. No caso brasileiro, esse mecanismo foi introduzido pela Lei Federal nº 11.437/06 e regulamentado pela Agência Nacional do Cinema (Ancine). A participação dos países se dá não apenas dividindo custos, mas também no desenvolvimento, na captação, na produção e na distribuição. No Brasil, como em vários países que dependem de incentivo fiscal para realizarem os seus filmes, a coprodução surge como uma oportunidade de fomentar a produção, difundir culturas e ampliar as fronteiras de distribuição. Os filmes realizados em coprodução através de acordos mediados pela Ancine devem ser realizados por atores, técnicos e intérpretes de nacionalidade brasileira ou do(s) outro(s) país(es) envolvido(s). Os filmes em coprodução internacional são considerados como filmes nacionais pelas autoridades competentes dos países envolvidos, sempre que sejam realizados de conformidade com as disposições legais em vigor em cada país. Os referidos filmes se beneficiam das vantagens previstas para os filmes nacionais. Numa tentativa de enfrentar a hegemonia dos Estados Unidos na indústria cinematográfica mundial, os projetos em coproduções principalmente entre países da

Upload: others

Post on 21-Mar-2021

2 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Coprodução internacional e política audiovisual. O caso brasileiro … · 2014. 5. 27. · O cinema brasileiro vive um momento de relativa notoriedade no cenário global. ... é

Redes.Com Nº 6 83

Coprodução internacional e política audiovisual. O caso brasileiro e a relação com a América Latina

Flávia PEREIRA DA ROCHA

ABSTRACT The making of movies in an international co-production regime has been a tool favored by the Brazilian audiovisual policy. This article argues on the co-productive scenario between Brazil and other Latin American countries presenting data pointing and agreements. It brings up the question of cultural development and how it is really brought about. It discusses the inequality of production, and the parallel of ‘doing for the market’ as opposed to doing ‘to promote cultural diversity’. Finally, it proposes a reflection on the issue of cultural de-contextualization and the screenplay of films made under a co-productive regime.

Keywords: international co-production, cinema, audiovisual policy in Brazil

INTRODUÇÃO

O cinema brasileiro vive um momento de relativa notoriedade no cenário global. Considera-se que a principal causa são as estratégias utilizadas para ampliar a participação do audiovisual brasileiro no mercado internacional através de coproduções. Esta forma de parceria tem sido vista como uma tendência na produção de filmes. O presente artigo mostra como o Brasil vem caminhando para ampliar suas fronteiras. Analisa o caso brasileiro, tendo entre outros questionamentos como está se dando a busca pela abertura de novos espaços no mercado internacional além da expansão e ocupação do mercado interno no país que é o segundo maior produtor de filmes na América Latina – perdendo apenas para o México. O termo coprodução cinematográfica pode designar uma parceria financeira, criativa ou técnica envolvendo dois ou mais países para a produção de uma obra cinematográfica, que será considerada nacional para as autoridades em ambos os países signatários. No caso brasileiro, esse mecanismo foi introduzido pela Lei Federal nº 11.437/06 e regulamentado pela Agência Nacional do Cinema (Ancine). A participação dos países se dá não apenas dividindo custos, mas também no desenvolvimento, na captação, na produção e na distribuição. No Brasil, como em vários países que dependem de incentivo fiscal para realizarem os seus filmes, a coprodução surge como uma oportunidade de fomentar a produção, difundir culturas e ampliar as fronteiras de distribuição. Os filmes realizados em coprodução através de acordos mediados pela Ancine devem ser realizados por atores, técnicos e intérpretes de nacionalidade brasileira ou do(s) outro(s) país(es) envolvido(s). Os filmes em coprodução internacional são considerados como filmes nacionais pelas autoridades competentes dos países envolvidos, sempre que sejam realizados de conformidade com as disposições legais em vigor em cada país. Os referidos filmes se beneficiam das vantagens previstas para os filmes nacionais. Numa tentativa de enfrentar a hegemonia dos Estados Unidos na indústria cinematográfica mundial, os projetos em coproduções principalmente entre países da

Page 2: Coprodução internacional e política audiovisual. O caso brasileiro … · 2014. 5. 27. · O cinema brasileiro vive um momento de relativa notoriedade no cenário global. ... é

ISSN 1696-207984

Ibero-América e da Europa vêm em constante crescimento, principalmente por conta de três organizações governamentais multilaterais: o fundo francês Fonds Sud, o primeiro a promover o filme de cooperação com países em desenvolvimento, criado em 1984; o fundo holandês Hubert Bals, criado em 1988; e o espanhol Fundo de Apoio Ibero-Americano Ibermedia, ratificado em 1997.1 Os produtores brasileiros de cinema dispõem de iniciativas governamentais e não-governamentais para o apoio à coprodução internacional. O Brasil mantém acordos bilaterais de coprodução cinematográfica com dez países: Argentina (1999), Alemanha (2008), Canadá (1999), Chile (1996), Colômbia (1983), Espanha (1963), França (1969), Itália (1974), Portugal (1985) e Venezuela (1990). Existem ainda os seguintes acordos multilaterais: 1) Convênio de integração cinematográfica ibero-americana; 2) Acordo de criação do mercado comum cinematográfico latino-americano; 3) Acordo latino-americano de coprodução cinematográfica. Sobre a visão da política audiovisual brasileira, Rangel (2009), presidente da Agência Nacional do Cinema (Ancine)2, fala em “aposta pela coprodução internacional” e destaca como importantes as “trocas entre agentes para além das fronteiras nacionais”. Rangel salienta ainda que “coproduzir é construir uma ponte para os mercados nacionais, mas sobretudo para o imaginário dos povos, a trajetória e o desafio das nações”. Em seguida, acrescenta: “é uma forma de por em prática a diversidade cultural”. Com tais declarações dá para trazer um delineamento sobre a visão da política audiovisual no Brasil, no entanto, apenas com uma pesquisa mais aprofundada será possível uma constatação sobre o que é apresentado no discurso e o que é realizado na prática. Quanto ao desenvolvimento histórico das coproduções na América Latina, Libia Villazana (em sua tese de doutorado “Co-Produção Cinematográfica Latino-americana: Economia e hegemonia desde 1980”, a qual foi publicada em livro intitulado “Transnational Financial Structures in the Cinema of Latin America: Programa Ibermedia in Study”) introduz:

A história do filme de coprodução na América Latina começa com uma intervenção espanhola, assim como grande parte da história latino-americana. Tudo começou em 1931 com a criação do Primeiro Congresso de Cinematografia Hispano-Americana (Primer Congreso Cinematográfico Hispanoamericano), realizada em Madrid, Espanha. As resoluções alcançadas nesta reunião sobre co-produção foram revisadas e ampliadas em uma segunda reunião, o Primeiro Concurso Hispano-Americana de Cinematografia (Primer Certamen Cinematográfico Hispanoamericano), realizada em Madrid em 1948. Esta segunda reunião deu origem a uma série de co-produções entre Espanha e América Latina - como Bella La salvaje (dir. Raúl Medina Cuba/Espanha, 1952). No entanto, em 1948 a co-produção cinematográfica já era uma prática comum dentro dos países do subcontinente, em particular entre o México e Cuba (Podalsky, 1994: p.p. 59-70 in Villazana, 2009, p. 31).

Dentro desse campo aparentemente fértil para os realizadores do cinema brasileiro, cabe indagar as implicações ideológicas que envolvem esse processo. Uma das indagações trazidas por Villazana (2009, p. 130) é “por que os atores e técnicos da América Latina muito raramente são convidados a participar de uma coprodução com a Espanha e o oposto é uma necessidade quando o filme é baseado em qualquer país da América Latina?”. Sobre questões de hegemonia no cinema latino-americano, Villazana considera que o programa “Ibermedia manifesta seu discurso neocolonizador de uma forma bastante sutil”.

“... a desigualdade rege estas alianças. No entanto, a iniciativa de estabelecer colaborações precisa ser colocado no lugar. Em outras palavras, o projeto atual de elaboração de um bloco que investir em interesses financeiros e

Flávia PEREIRA DA ROCHA

Page 3: Coprodução internacional e política audiovisual. O caso brasileiro … · 2014. 5. 27. · O cinema brasileiro vive um momento de relativa notoriedade no cenário global. ... é

Redes.Com Nº 6 85

culturais dos seus membros é o caminho para começar a quebrar o apego à Hollywood. Mas esta independência é invalidada se um novo tipo de dependência e submissão é criado.” (Villazana, 2009, p. 149)

Mesmo destacando essa pauta de discussão, não é papel desse artigo trazer contribuições mais aprofundadas sobre possíveis discursos neocoloniais envolvendo os acordos. A questão base que nos interessa é a economia política em torno das negociações de coprodução. É o como se dá a espacialização na tentativa de aproximação de um mercado global, as vantagens competitivas, a racionalização das suas operações. Lembrando que a espacialização acontece quando a comunicação torna-se global e é usada como negócio para criar e fabricar produtos de consumo em todo o mundo (Mosco, 1996).

UMA BREVE RETROSPECTIVA DA POLÍTICA AUDIOVISUAL BRASILEIRA

A produção do cinema brasileiro foi quase abolida no governo de Fernando Collor de Mello, quando foi sancionada a Lei nº 8.029, dispondo em 1990 sobre a dissolução ou privatização de entidades da Administração Pública Federal, entre elas a Empresa Brasileira de Filmes S.A. Criada em 1969, a Embrafilme representou, na sua primeira década de atuação, o auge da política cinematográfica brasileira. Com a extinção da empresa, “se encerrou mais um ciclo do cinema brasileiro” (Amancio, 2000, p.11). Como uma das medidas para diminuir a desigualdade na concorrência entre os filmes nacionais e os estrangeiros, foi proposta a entrada da Embrafilme “na ação no mercado externo através de um consórcio de exportação, além do sistema de coprodução” (Amancio, 2000, p. 29). No caso, a coprodução aí tratada refere-se a uma associação entre o produtor privado e o Estado, garantindo à Embrafilme uma “participação societária de 30% de todas as receitas auferidas durante a vida comercial do filme” (Amancio, 2000, p. 49). Atualmente, no Brasil, as políticas públicas audiovisuais estão relacionadas a dois órgãos ligados ao Ministério da Cultura: a Agência Nacional do Cinema (Ancine) – criada em 2001, no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, e a Secretaria do Audiovisual. A Ancine é uma agência reguladora, tendo como atribuições o fomento, a regulação e a fiscalização do mercado do cinema e do audiovisual no Brasil. Em 1991, foi criada a Lei nº 8.313, conhecida como Lei Rouanet, que institui políticas públicas para a cultura nacional. Em 1993, foi aprovada a Lei nº 8.685, conhecida como Lei do Audiovisual, para incentivar especificamente o setor audiovisual. Esta tem dois dispositivos principais: a) o artigo 1º determina que as empresas podem deduzir até 3% do total de seu imposto de renda se esse dinheiro for revertido para a produção de obras audiovisuais; b) o artigo 3º incentiva as distribuidoras estrangeiras a investir na produção nacional, permitindo a dedução de até 70% do imposto sobre suas remessas para o Brasil.

COPRODUÇÃO CINEMATOGRÁFICA INTERNACIONAL: VANTAGENS E INICIATIVAS

Estudo do Observatório Audiovisual Europeu, com base em dados incluindo mais de 5.400 filmes lançados entre 2001 e 2007 em vinte mercados europeus, cita como as principais vantagens comerciais das coproduções internacionais os seguintes números:

Em média, as co-produções são lançadas em duas vezes mais mercados. 77% das co-produções são lançadas em pelo menos um mercado não-doméstico comparado com 33% de filmes de nacionalidade única; 2) As

Coprodução internacional e política audiovisual. O caso brasileiro e a relação com a América Latina

Page 4: Coprodução internacional e política audiovisual. O caso brasileiro … · 2014. 5. 27. · O cinema brasileiro vive um momento de relativa notoriedade no cenário global. ... é

ISSN 1696-207986

co-produções faturam, em média, 2.78 vezes mais do que filmes de nacionalidade única; 3) Em termos de ingressos vendidos, os mercados internacionais são mais importantes para co-produções do que para filmes de nacionalidade única. Ingressos de mercados internacionais para co-produções representam 41% do total, comparado com 15% para filmes de nacionalidade única. (Solot, 2009)

Além desses dados referentes ao mercado europeu, as principais vantagens, segundo Alessandra Meleiro, são3: 1) Geralmente é a única estratégia que permite a produtores acumularem orçamentos para produzirem filmes que possam efetivamente competir no mercado internacional; 2) Divisão de tarefas práticas e criativas (em todas as etapas: desenvolvimento, captação, produção e distribuição); 3) Possibilidade de atrair mais recursos financeiros; 4) Acesso a subsídios e incentivos governamentais no exterior; 5) Acesso ao mercado do parceiro; 6) Acesso ao mercado de um terceiro país.

“Cinema do Brasil”Tendo em vista tais vantagens, em 2006 foi criado o programa “Cinema do Brasil”, pelo Sindicato da Indústria Audiovisual do Estado de São Paulo (SIAESP) e financiado pela Agência de Promoção de Exportações e Investimentos (APEX-Brasil) e pelo Ministério da Cultura. A ideia é ampliar a participação do audiovisual brasileiro no mercado internacional através da criação de coproduções. O programa atualmente reúne mais de 100 empresas, participa de festivais e promove encontros com representantes de diversos países. Segundo Alessandra Meleiro, desde o início do programa Cinema do Brasil, as coproduções internacionais aumentaram 200%. “O resultado desse programa é que 30 filmes brasileiros foram exibidos em 17 países, tais como Israel, Grécia, Índia, China, França, Alemanha, Espanha, México e Colômbia”. Além destes resultados positivos, acrescenta a “participação em festivais como Rotterdam, Cannes, Clermont-Ferrand, assim como encontros de negócios em festivais brasileiros”. Meleiro acredita que “existe uma tendência para que as coproduções tornem-se o principal modelo de viabilização das produções futuras”. Em 2006, para ampliar a participação do audiovisual brasileiro no mercado internacional através da criação de coproduções, foi criado o “Cinema do Brasil”, pelo Sindicato da Indústria Audiovisual do Estado de São Paulo (SIAESP) e financiado pela Agência de Promoção de Exportações e Investimentos (APEX-Brasil) e pelo Ministério da Cultura. O programa atualmente reúne mais de 100 empresas, participa de festivais e promove encontros com representantes de diversos países.

Ibermedia O Brasil é um dos países financiadores do Fundo Ibero-americano de apoio Ibermedia, um programa criado em 1997 de estímulo à promoção e à distribuição de filmes Ibero-americanos, que faz parte da política audiovisual da Conferência de Autoridades Cinematográficas Iberoamericanas (CACI). Além do Brasil, há 17 países membros que financiam o programa através de cotas anuais: Argentina, Bolívia, Brasil, Colômbia, Costa Rica, Cuba, Chile, Equador, Espanha, Guatemala, México, Panamá, Peru, Portugal, Porto Rico, República Dominicana, Uruguai e Venezuela. O comitê intergovernamental do fundo promove quatro programas de apoio, um deles é o de apoio à Coprodução de filmes Ibero-americanos. Dentro desse campo aparentemente fértil para os realizadores do cinema brasileiro, cabe indagar as implicações ideológicas que envolvem esse processo.

Flávia PEREIRA DA ROCHA

Page 5: Coprodução internacional e política audiovisual. O caso brasileiro … · 2014. 5. 27. · O cinema brasileiro vive um momento de relativa notoriedade no cenário global. ... é

Redes.Com Nº 6 87

Alguns apontamentos levantados ajudam a compor questões norteadoras desta pesquisa. O relatório de coproduções internacionais de 1995 a 2007 da Ancine4 mostra um crescimento no número de projetos em sistema de coprodução. Em 1995, apenas um filme foi realizado em coprodução. Em 1996, nenhum. Até o ano de 2002, o Brasil contabilizou 19 longas-metragens de coprodução internacional. De 2003 a 2007 foram 37 projetos. Só em 2007, há o registro de 11 filmes financiados e/ou apoiados por países diversos, o número é 1000% maior que dez anos antes. Os dados são referentes às obras que solicitaram à Ancine o enquadramento no regime de coprodução internacional, não estão aí incluídos os filmes que fecharam acordos diretos com outros países, sem a mediação da agência. Se o número de projetos de coproduções internacionais vem aumentando, como, então, vem sendo construído esse crescimento? Quanto à diversidade de países cooperadores, dados da Ancine mostram que desde 1995 o Brasil dividiu produções com 18 países. Apenas seis eram latino-americanos. Até 2009, contabilizava 103 experiências em coprodução internacional. A maioria com Portugal (37), seguido de Chile (14) e Argentina (5). “Budapeste”, “Jean Charles”, “Terra Vermelha”, “Infância Roubada”, “Ensaio sobre a Cegueira”, “Linha de Passe” e “Última Parada 174” são alguns exemples de filmes realizados em coprodução. “Ensaio sobre a Cegueira”, de Fernando Meirelles, uma coprodução entre Brasil, Japão e Canadá, foi o filme de abertura do Festival de Cannes 2008. “Linha de Passe”, dirigido por Walter Salles e Daniela Thomas, feito em cooperação entre três estúdios estrangeiros em parceira com a Vídeofilmes, foi vencedor do 61º Festival de Cannes (2008), um dos eventos do cinema mais importantes do mundo, levando o prêmio de melhor atriz para a brasileira Sandra Corveloni. Já “Última Parada 174”, de Bruno Barreto, é uma coprodução franco-brasileira da Moonshot Pictures, Movie&art, Mact Productions, Paramount Pictures e Globo Filmes com participação do Canal+. O filme “Última Parada 174” foi escolhido pelo Ministério da Cultura (MinC) para representar o Brasil nas seleções do Oscar 2009 - a 81ª Premiação Anual da Academy of Motion Pictures Arts and Sciences.

GLOBALIZAÇÃO, CULTURA E NÚMEROS

Com base nos dados tratados até agora, Williams (1992) comenta sobre os mercados ampliados:

Com exceção de algumas formas, mormente antigas, de sociedades fechadas ou auto-suficientes, os processos de importação e exportação cultural sempre foram importantes. Em geral, podemos ser interpretados como a difusão de arte e de idéias, mas com freqüência há importantes variáveis sociológicas nos processos concretos. (Williams, 1992, p.228)Para ele, decisões sobre o que importar, e quando, são freqüentemente muito semelhantes aos processos de uma tradição seletiva, onde elementos do passado são deliberadamente reintroduzidos ou revividos.

Caballero (2007) afirma que projetos de cooperação e integração cultural da União Européia com outras regiões, como a América Latina, terminam reproduzindo similares esquemas de desequilíbrio territorial que reproduzem, em parte, modelos assistenciais de ajuda ao desenvolvimento. Interpretando esse exposto, caberia uma analogia ao sistema de

Coprodução internacional e política audiovisual. O caso brasileiro e a relação com a América Latina

Page 6: Coprodução internacional e política audiovisual. O caso brasileiro … · 2014. 5. 27. · O cinema brasileiro vive um momento de relativa notoriedade no cenário global. ... é

ISSN 1696-207988

coprodução cinematográfica, mais especificadamente, ao modo que é desencadeado entre o Brasil e outros países? No esquema neoliberal de uma sociedade globalizada, onde teoricamente todos podem comprar ou vender livremente em condições iguais, tal proposição se aplicaria também no âmbito das produções culturais. Porém, como em outros produtos mercadológicos, essa liberdade é comandada primordialmente por mercados economicamente mais fortalecidos. O Brasil (mesmo sendo um dos maiores produtores de cinema da América Latina) não escapa desse fenômeno global: os filmes mais assistidos não são nacionais, são estadunidenses. Números oficiais contabilizam uma queda vertiginosa da bilheteria do cinema brasileiro desde 2005. No referido ano, a audiência de filmes nacionais foi reduzida em 35%. Em 2008, o número de expectadores caiu 27%, comparando os meses de janeiro a julho com o mesmo período de 2007 (foram 5,2 milhões contra 3,7 milhões). Já a queda dos expectadores brasileiros de filmes estrangeiros foi de 1,5%, sendo 18 vezes menor que a diminuição da bilheteria das produções cinematográficas do Brasil. Depois de cinco anos em queda (de 2004 a 2008), o Brasil recuperou-se em 2009, alcançando um público de 16,848 milhões, o que representa quase o dobro do ano anterior. Já no primeiro semestre de 2010, a Ancine registrou uma nova queda no desempenho de público e renda se comparado ao do 1º semestre 2009 (o decréscimo foi, respectivamente, de 40,96% e 42,06%). Já em relação ao 2º semestre de 2009, houve recuperação do público e da renda desses filmes com índices de crescimento da ordem de 24,75% e 25,35% respectivamente. Nas criações cinematográficas brasileiras, nota-se uma grande ascendência pela escolha de temas sociais, como a vida na favela, o tráfico de drogas, a prostituição e a violência no Brasil. Observam-se ainda essas temáticas nos filmes com notoriedade internacional, através de indicações em prêmios como o Oscar, Sundance, Festival de Cannes, Globo de Ouro, Festival Internacional de Toronto, Festival de Berlim, dentre outros. Aí observamos mais um objeto de pesquisa: verificar a relação da escolha da temática com o sucesso de público e notoriedade nos festivais. Quais as demandas do público nacional e internacional das obras brasileiras? E com a identificação das demandas, como relacioná-las com novas propostas para a política cultural? As políticas da Secretaria de Audiovisual (SAV), vinculada ao Ministério da Cultura (MinC), visam o fomento da produção nacional de todas as regiões do país. Apesar disso, verifica-se que as produções estão concentradas basicamente nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo. Em 2007, de acordo com dados da Ancine, dos 78 filmes longa-metragem lançados no mercado de salas de exibição do Brasil, 42 (53%) eram de produtores do Rio de Janeiro, 25(32%) de São Paulo, quatro (5,12%) do Rio Grande do Sul, três (3,84%) de Minas Gerais, um (que representa 1,28%) do Paraná, um da Bahia, um do Ceará e um dos Estados Unidos. Apenas sete estados da federação brasileira lançaram filmes longa-metragem no mercado. Isso significa que 19 estados e o Distrito Federal ficaram à margem desse processo de produção. Esses dados servem para contextualizar a produção da indústria cinematográfica de uma forma geral. A tabulação desses dados se dá para analisar as coproduções internacionais dentro do todo no qual elas estão inseridas. E ainda: observar como está a ocupação da produção interna. Os projetos em coproduções vêm em constante crescimento, apesar de não terem ainda uma grande representatividade no Brasil, em 2007 foram 11 filmes concluídos nesse sistema, em 2008, nove obras, e em 2009, também nove. Investigar essas experiências é

Flávia PEREIRA DA ROCHA

Page 7: Coprodução internacional e política audiovisual. O caso brasileiro … · 2014. 5. 27. · O cinema brasileiro vive um momento de relativa notoriedade no cenário global. ... é

Redes.Com Nº 6 89

importante para proporcionar uma reflexão acadêmica e propor um olhar crítico sobre essas formas de relações produtivas que ganham cada vez mais espaço no mercado internacional. Os incentivos fiscais movimentam mais de R$ 100 milhões por ano, com base neste dado, torna-se importante investigar como o cinema brasileiro está buscando caminhos para se inserir no mercado audiovisual globalizado. Descobrir estratégias de produção e distribuição através dessas coproduções internacionais é relevante para entender a lógica de mercado e as políticas de incentivos nas quais estas obras cinematográficas estão inseridas. Entender como se dá essa dinâmica, concomitantemente à expansão e ocupação do mercado interno, torna-se importante para se criar argumentos que possibilitem, posteriormente, o fortalecimento da indústria cinematográfica nacional. A seguir, tabelas mostram que de 1995 a 2009, o Brasil contabilizava 103 experiências em coprodução. E, logo mais, uma tabela sobre a quantidade de filmes realizados por país.

Quantidade de coproduções internacionais realizadas por ano

Coprodução internacional e política audiovisual. O caso brasileiro e a relação com a América Latina

Page 8: Coprodução internacional e política audiovisual. O caso brasileiro … · 2014. 5. 27. · O cinema brasileiro vive um momento de relativa notoriedade no cenário global. ... é

ISSN 1696-207990

Quantidade de coproduções internacionais em realização

 Fonte: Ancine. Dados até 30/09/2009.

** 2009: até 30/09/2009.

Quantidade de coproduções internacionais realizadas por país*

 

(*) Em 2002, houve a edição do Decreto 4.456, de 4 de novembro de 2002, que transferiu à Ancine a competência pela gestão dos projetos audiovisuais apoiados por recursos federais.Fonte: Ancine. Dados até 30/09/2009.** 2009: até 30/09/2009.

Flávia PEREIRA DA ROCHA

Page 9: Coprodução internacional e política audiovisual. O caso brasileiro … · 2014. 5. 27. · O cinema brasileiro vive um momento de relativa notoriedade no cenário global. ... é

Redes.Com Nº 6 91

CONCLUSÃO

Ao mesmo tempo em que se vê a crise de audiência do cinema brasileiro, do outro lado observa-se uma conjuntura viável ao crescimento da produção audiovisual, em virtude do apoio em que o governo brasileiro vem demonstrando com as políticas de incentivo à coprodução internacional. Embora esse “boom” na atualidade da estratégia da coprodução como oportunidade tanto para dividir custos e atrair investimentos privados, como também para o cinema autoral e por fim a comunicação do cinema, nota-se ainda uma incipiência no assunto, tanto por parte dos realizadores como da política audiovisual nacional. Observa-se na coprodução uma saída para fugir do cinema comercial, ampliando-se as oportunidades da divulgação das culturas dos países envolvidos. Enquanto isso, os países latino-americanos desperdiçam essa oportunidade. Como mostra a tabela acima, no Brasil, dos 18 projetos de coprodução concluídos entre os anos de 2008 e 2009, seis envolviam parcerias com países da América Latina: Argentina, Chile, Colômbia, Cuba, México e Venezuela. Uma proposta coerente para a valorização da cultura latino-americana e alavancar o mercado cinematográfico da região é somar forças entre esses países para o incentivo a essa estratégia, que não é nova, mas apresenta-se profundamente coerente e frutífera no contexto atual. Outra saída para promover a diversidade audiovisual nos países latino-americanos é pensar não apenas a coprodução internacional, principalmente entre os países da região, mas também a coprodução entre os estados de cada federação. No Brasil, vive-se um grande problema de desigualdade de produção entre as regiões. Há uma super concentração nos estados de São Paulo e do Rio de Janeiro. A maioria dos outros estados fica completamente à margem desse processo, inviabilizando a diversidade da divulgação cultural, dificultando a livre circulação das idéias através da palavra e da imagem, como também desperdiça espaço no terreno da audiência, considerando que com o aumento da produção local abrem-se mais portas no mercado interno. Acima do ponto de vista industrial, a preocupação primária deve ser a democracia audiovisual. Muito além do “desenvolvimento” no seu viés puramente capitalista, a inquietação primordial dever ser pela identidade, pela luta em busca do exercício dos direitos culturais, da manifestação da originalidade, do gosto por expressar novos olhares, novos pensares, novos modos de criar, distanciando-se da possibilidade de uma dominação cultural por um país privilegiado economicamente. O que se propõe é uma reflexão sobre como somar forças pelo poder da realização democrática. É importante refletir sobre a questão do como são feitos os filmes em regime de coprodução internacional. No acordo latino-americano de coprodução cinematográfica (1998), por exemplo, está explícito o objetivo de divulgação da cultura das nações envolvidas. Os países signatários, membros do convênio de integração cinematográfica ibero-americana devem estar “conscientes de que a atividade cinematográfica deve contribuir para o desenvolvimento cultural da região e para sua identidade”, como expressa oficialmente o acordo. Embora pareça evidente a intenção desses acordos, é necessário discutir como as culturas dos países signatários estão inseridas nessas obras audiovisuais. Por fim, é adequado propor uma reflexão acadêmica detalhada sobre a questão da contextualização ou descontextualização cultural nos roteiros dos filmes feitos em coprodução entre dois ou mais países. Os roteiros estão organicamente adaptados ou verifica-se uma

Coprodução internacional e política audiovisual. O caso brasileiro e a relação com a América Latina

Page 10: Coprodução internacional e política audiovisual. O caso brasileiro … · 2014. 5. 27. · O cinema brasileiro vive um momento de relativa notoriedade no cenário global. ... é

ISSN 1696-207992

adaptação grosseira só porque seus produtores estão recebendo dinheiro de outros países? A importância estratégica de aproveitar a oportunidade das coproduções para fomentar a diversidade cultural e a pluralidade das identidades está sendo tratada com rigor entre os produtores? Com o desenvolvimento dessas ideias, o campo da realização audiovisual e das políticas culturais ganha mais forças para diminuir o problema da desigualdade de produção que afeta a maioria das nações.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Agência Nacional do Cinema. Número de co-produções tem aumentado. Rio de Janeiro. Recuperado em 15, setembro, 2008, de http://www.ancine.gov.br/cgi/cgilua.exe/ sys/ start.htm? infoid=11570&sid=83.Agenda Regulatória 2010-2011. Recuperado em 21 julho, 2010, de http://www.ancine.gov.br/media/Agenda_Regulatoria_2010-2011.pdf. Informe de acompanhamento do mercado. Superintendência de Acompanhamento do Mercado 2010. Semanas 1 a 26 (01 de janeiro a 01 de julho de 2010); Coordenação de Cinema e Vídeo; SADIS Agregado (Atualização em 20/07/2009). Recuperado em 19 julho, 2010, de http://www.ancine.gov.br/media/SAM/Informes/2010/informe_semestral01.pdf.Relatório de Co-produções Internacionais 1995-2007. Recuperado em 20 julho, 2010, de http: //www.ancine.gov.br.Amancio, T. (2000). Artes e Manhas da Embrafilme. Cinema estatal brasileiro em sua época de ouro (1977-1981). Niterói, RJ: EdUFF.Brasil. (1998). Decreto nº 2761, de 27 de agosto de 1998. Promulga o Acordo Latino-Americano de Coprodução Cinematográfica, assinado em Caracas em 11 de novembro de 1989. Poder Executivo, Brasília, DF, 1998. Recuperado em 10 julho, 2010, de http://www.ancine.gov.br/media/acordo_latino_americano_co-producao.pdf. Caballero, F. (2007). Política e Tendências da Sociedade da informação na União Européia: uma análise crítica. In Ramos, M. C. & Santos, S. dos (Orgs.). Políticas de Comunicação – buscas teóricas e práticas (pp. 224-225). São Paulo, SP: Editora Paulus.Lei Federal n 11.437 de dezembro de 2006. (2006). Altera a destinação de receitas decorrentes da Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional -CONDECINE,; altera a Medida Provisória no 2.228-1, de 6 de setembro de 2001, e a Lei no 8.685, de 20 de julho de 1993, prorrogando e instituindo mecanismos de fomento à atividade audiovisual; e dá outras providências. Brasília. Recuperado em 15 julho, 2010, de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11437.htm.Mosco, V. (1996). The Political Economy of Communication – rethinking and renewal. London: Sage Publications.Observatorio MERCOSUR Audiovisual-oma. Recuperado em 14 junho, 2008, de http://www.oma.recam.org.Rangel, M. (2009). Prólogo. In Solot, S. (Coord.). Incentivos fiscais para a produção e a Co-produção audiovisual na Ibero-América, Canadá e Estados Unidos. Rio de Janeiro: Latin American Training Center.Solot, S. (Coord.). (2009). Incentivos fiscais para a produção e a Co-produção audiovisual na Ibero-América, Canadá e Estados Unidos. Rio de Janeiro: Latin American Training Center.Villazana, L. (2009). Transnational Financial Structures in the Cinema of Latin America:

Flávia PEREIRA DA ROCHA

Page 11: Coprodução internacional e política audiovisual. O caso brasileiro … · 2014. 5. 27. · O cinema brasileiro vive um momento de relativa notoriedade no cenário global. ... é

Redes.Com Nº 6 93

Programa Ibermedia in Study. Saarbrücken: VDM Dr. Müller.Williams, R. (1992). Cultura. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

Notas

1. Mais detalhes sobre as três organizações ver em Villazana, Libia. Transnational Financial Structures in the Cinema of Latin America: Programa Ibermedia in Study, 2009.

2. Visão do presidente da Ancine, Manoel Rangel, no prólogo do livro “Incentivos fiscais para a produção e a Co-produção audiovisual na Ibero-América, Canadá e Estados Unidos”, organizado por Solot (2009).

3. Alessandra Meleiro, professora e pesquisadora da Universidade Federal Fluminense (UFF), em artigo intitulado “A co-produção internacional”. Recuperado em 26 outubro, 2010, de www.cinemasemfronteiras.com.br.

4. O presente relatório, publicado em abril de 2008, procurou reunir todos os dados disponíveis na ANCINE referentes às obras audiovisuais realizadas em regime de coprodução com países com os quais o Brasil possua ou não acordos de coprodução internacional, desde que reconhecidas como obras audiovisuais brasileiras.

Coprodução internacional e política audiovisual. O caso brasileiro e a relação com a América Latina

Page 12: Coprodução internacional e política audiovisual. O caso brasileiro … · 2014. 5. 27. · O cinema brasileiro vive um momento de relativa notoriedade no cenário global. ... é

ISSN 1696-207994