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CORPO & ALMA NAS VEREDAS DO SERTÃO Gisálio Cerqueira Filho 1 Nosso interesse aqui é anotar as emoções e sentimentos a partir de indícios inscritos no corpo e convertidos em manifestações visíveis e presentes na obra “Grande Sertão: Veredas”, de João Guimarães Rosa, e oferecidas à observação dos sentidos. De fato, são manifestações de paixões e afetos que se explicitam no corpo para os cinco sentidos: visão, audição, olfato, tato e paladar. Todavia, o importante mesmo é a função escópica presente em relação ao que não se vê, ouve, cheira, sabe ao tato ou ao sabor, mas sustenta visões, barulhos, cheiros, etc. tratando-se da distinção clássica entre a “visão e o olhar” no sentido mais geral. Talvez possamos apreender a distinção, proposta pela Psicanálise, entre o especular e o escópico; entre o que se vê e o que não pode ser visto, mas dá razão aquilo que se vê. Antonio Quinet 2 cita S. Freud para afirmar que a obra de arte pode ser tomada como a demonstração de uma estrutura, o denominado esquema “L”, introduzido por Jacque Lacan 3 para dar conta da pulsão escópica no interior da distinção entre o olhar e a visão. O olhar (campo pulsional) se distingue da visão (campo da percepção) e remete à distinção entre o especular e o escópico, Isto permitiria tratar a elaboração da estrutura do campo visual a partir da inclusão do gozo e portanto do lugar do olhar na construção da subjetividade. “E ela avermelhou as faces; mas veio; reparei que tinha as mãos aperfeiçoadas bonitas, mãos para tecer minha rede. A ela perguntei a graça. (...) E mal nem ouvi o nome com que ela me respondeu. 1 Professor Titular de Teoria Política e pesquisador sênior na UFF. Coordenador do Projeto de Pesquisa “Ethos e Pathos no Sertão” (LCP/UFF-PIBIC/CNPq.). Agradecimentos a Karenn dos Santos Correa, estudante de Graduação no Curso de História na UFF e Bolsista PIBIC/CNPq. no Projeto de Pesquisa “Ethos e Pathos no Sertão”. 2 Quinet, Antonio. O espelho e o quadro in Imagem rainha: as formas do imaginário nas estrururas clínicas e na prática psicanalítica. Rio de Janeiro: Editora 7 Letras, 1995. Ver também O Objeto Olhar em Psicanálise, Tese Doutoral em Filosofia, defendida em Paris VIII, mimeo., 1996. 3 Lacan. Jacques. O Seminário, Livro 11, Rio de Janeiro: Zahar, 1988. Ver ainda Scheinkman, Daniela. Da Pulsão escópica ao Olhar: um percurso, uma esquize, Rio de janeiro, 1995. E Cerqueira Filho, Gisálio. Emoção e Política. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 1997, p. 54.

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CORPO & ALMA NAS VEREDAS DO SERTÃO

Gisálio Cerqueira Filho 1

Nosso interesse aqui é anotar as emoções e sentimentos a partir de indícios

inscritos no corpo e convertidos em manifestações visíveis e presentes na obra “Grande

Sertão: Veredas”, de João Guimarães Rosa, e oferecidas à observação dos sentidos. De

fato, são manifestações de paixões e afetos que se explicitam no corpo para os cinco

sentidos: visão, audição, olfato, tato e paladar. Todavia, o importante mesmo é a função

escópica presente em relação ao que não se vê, ouve, cheira, sabe ao tato ou ao sabor,

mas sustenta visões, barulhos, cheiros, etc. tratando-se da distinção clássica entre a

“visão e o olhar” no sentido mais geral.

Talvez possamos apreender a distinção, proposta pela Psicanálise, entre o

especular e o escópico; entre o que se vê e o que não pode ser visto, mas dá

razão aquilo que se vê. Antonio Quinet2 cita S. Freud para afirmar que a obra de arte

pode ser tomada como a demonstração de uma estrutura, o denominado esquema “L”,

introduzido por Jacque Lacan3 para dar conta da pulsão escópica no interior da distinção

entre o olhar e a visão. O olhar (campo pulsional) se distingue da visão (campo da

percepção) e remete à distinção entre o especular e o escópico, Isto permitiria tratar a

elaboração da estrutura do campo visual a partir da inclusão do gozo e portanto do lugar

do olhar na construção da subjetividade.

“E ela avermelhou as faces; mas veio; reparei que tinha as mãos aperfeiçoadas bonitas, mãos para tecer minha rede. A ela perguntei a graça. (...) E mal nem ouvi o nome com que ela me respondeu.

1 Professor Titular de Teoria Política e pesquisador sênior na UFF. Coordenador do Projeto de Pesquisa “Ethos e Pathos no Sertão” (LCP/UFF-PIBIC/CNPq.). Agradecimentos a Karenn dos Santos Correa, estudante de Graduação no Curso de História na UFF e Bolsista PIBIC/CNPq. no Projeto de Pesquisa “Ethos e Pathos no Sertão”. 2 Quinet, Antonio. O espelho e o quadro in Imagem rainha: as formas do imaginário nas estrururas clínicas e na prática psicanalítica. Rio de Janeiro: Editora 7 Letras, 1995. Ver também O Objeto Olhar em Psicanálise, Tese Doutoral em Filosofia, defendida em Paris VIII, mimeo., 1996. 3 Lacan. Jacques. O Seminário, Livro 11, Rio de Janeiro: Zahar, 1988. Ver ainda Scheinkman, Daniela. Da Pulsão escópica ao Olhar: um percurso, uma esquize, Rio de janeiro, 1995. E Cerqueira Filho, Gisálio. Emoção e Política. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 1997, p. 54.

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Assussurrada, só gostei de ver como ela se mexia por ficar quieta – vergonhosa como uma coalhada no prato”. (Rosa, 2006, p. 456) 4. Em certo momento, Diadorim fala: “Mulher é gente tão infeliz...” (Rosa, p. 237).

O enrubescimento vem aqui associado ao falar baixo (sussurros) e à quietude,

tão vinculadas à figura feminina como qualidades a ela inerente, “natural”. A

comparação é inquietante: a vergonha enquanto qualidade feminina assume aqui a

placidez de uma “coalhada no prato”, placidez esta referida à inércia e ausência de

iniciativa. No sertão, em particular, inércia não é compatível com a figura masculina. Os

indícios observados em Diadorim traem a “farsa” da mulher travestida em homem... Há,

pois uma arraigada cultura machista no sertão que submete as mulheres mas, à qual a

personagem que veste o semblante de Diadorim que não se conforma e não se dobra.

“(...) nunca vi cara de homem fornecida de bruteza e maldade mais, do que nesse. Como que era urco (cavalo forte e bonito), trouxo (embrulho pequeno) de atarracado, reluzia um cru nos olhos pequenos, e armava um queixo de pedra, sobrancelhonas; não demedia nem testa. Não ria, não se riu nem uma vez; mas, falando ou calado, a gente via sempre dele algum dente, presa pontuda de guará. Arre, e bufava, um poucadinho. Só rosnava curto, baixo, as meias-palavras encrespadas. (...) Uma hora, uma daquelas laudas caiu – e eu me abaixei depressa, sei lá mesmo por que, não quis, não pensei – até hoje crio vergonha disso – apanhei o papel do chão, e entreguei a ele. Daí, digo: eu tive mais raiva, porque fiz aquilo; mas aí já estava feito. O homem nem me olhou, nem disse nenhum agradecimento. (...) esse Jazevedão, quando prendia alguém, a primeira quieta coisa que procedia era que vinha entrando, sem ter que dizer, fingia umas pressas, e ia pisava em cima dos pés descalços dos coitados. E que nessas ocasiões dava gargalhadas, dava... Pois, osga!” (Rosa, p. 18).

Estes trechos se referem a um delegado que Riobaldo conheceu ao ir consultar

um médico em uma região chamada Sete-Lagoas. Esse delegado se chamava Jazevedão

4 Todas as anotações da obra referem-se a edição que segue: Rosa, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.

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e, representa aqui um retrato de personagem masculino, por certo em oposição à figura

feminina. Ele havia tomado assento próximo a Riobaldo, no trem. Nesses fragmentos é

possível perceber como o narrador se sente intimidado, acuado diante de um sujeito que

é considerado bastante agressivo e frio ao demonstrar prazer diante da dor alheia. Aqui,

agressividade e frieza são exigidas do “ser macho”. Repare-se que as expressões

utilizadas, e destacadas em negrito no texto acima, ainda quando signifiquem beleza,

fazem alusão à força bruta animal. As palavras, elas próprias, são encrespadas, ao invés

de gentis e a brutalidade está inscrita no fato de que a autoridade gostava de pisotear

homens descalços num fingimento de pressa, cuja gargalhada denunciava o excesso do

gozo.

“Aquela gente toda sapirava (suava, transpirava), de olhos vermelhos, arroxeavam as caras. A luz assassinava demais. E a gente dava voltas, os rastreadores farejando, procurando. Já tinha quem beijava os bentinhos, se rezava. De mim, entreguei alma no corpo, debruçado para a sela, numa quebreira. Até minhas testas formaram de chumbo.” (Rosa, p. 51).

Este fragmento descreve o estado dos jagunços ao atravessar o Liso do

Sussuarão por ordem de Medeiro Vaz. Em função da seca, resultado do longo período

sem chuvas, muitos jagunços acabaram morrendo pelo caminho. Neste trecho, é

possível ver a insegurança e o medo das pessoas diante da dúvida sobre o fato de

conseguirem sair daquela região desértica com vida. Agarravam-se, inclusive, a crenças

religiosas. Muito mais do que isso, temos a transpiração a produzir feito cromático no

vermelho dos olhos e roxo das caras... O pavor diante das circunstâncias unificava corpo

& alma; entretanto antes, era a alma que se entregava ao corpo. Uma parte altaneira

desse mesmo corpo, a testa, transformava-se em metal sólido, chumbo.

“Eu estava respirando muito forte, com pouca paciência para o trivial; pelo tanto respondi alguma palavra só. (...) O Reinaldo se chegou para perto de mim. Quanto mais eu tinha mostrado a ele a minha dureza, mais amistoso ele parecia; maldando, isso pensei. Acho que olhei para ele

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com que olhos. Isso ele não via, não notava. Ah, ele me queria-bem, digo ao senhor.” (Rosa, p. 155)

Nesse outro trecho Riobaldo demostra impaciência e ansiedade diante da

aproximação de um possível embate com os zebebelos, porém ao encontrar Diadorim,

seu comportamento muda, o que mostra a afeição recíproca entre os personagens. Aqui

temos um ótimo exemplo para a função escópica

“E ele me deu a mão. Daquela mão, eu recebia certezas. Dos olhos. Os olhos que ele punha em mim, tão externos, quase tristes de grandeza. Deu alma em cara. Adivinhei o que nós dois queríamos – logo eu disse: – “Diadorim... Diadorim!” com uma força de afeição. Ele sério sorriu. E eu gostava dele, gostava, gostava.” (Rosa, p. 156).

A afeição e o bem-querer faziam a conversão recíproca; agora era o corpo

material que se convertia em alma imaterial (afeto). Esse trecho relata a reação dos

personagens logo após Reinaldo contar um segredo a Riobaldo: revela que seu nome

real é Diadorim. A partir das expressões dos dois personagens nesse fragmento é

possível perceber a proximidade que tinham entre si, mesmo quando, na maior parte do

tempo, fosse negada ou ocultada. A mão dada de um ao outro deu certeza e segurança.

A expressão “deu alma em cara” é bem sintomática, pois subverte a própria imagem a

partir do imaginário.

“Minha raiva deu em mim. Me mordi, me abri, me-amargo. Tanto tudo ia sendo sempre por minha culpa! E daí pedi tudo ao rifle é às cartucheiras. Eu atirava, atirava: queria, por toda a lei, alcançar um tiro em Zé Bebelo, para acabar com ele de uma vez, sem martírio de sofrimentos.” (Rosa, p. 253).

Cartucheira e rifle eram extensão da raiva e tudo sobreposto era extensão do

corpo. Aqui vai a revelação da reação de Riobaldo, durante uma batalha contra os

zebebelos, após se arrepender de ter inventado que Joca Ramiro pedira para que

capturassem Zé Bebelo e o entregassem vivo a ele. É importante lembrar que Riobaldo

cultivava uma certa afeição em relação a Zé Bebelo, visto que eles conviveram durante

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o período em que o narrador ainda não era jagunço e fora contratado como professor de

Zé Bebelo. Nesse fragmento, o arrependimento vem com sabor de amargo e seria pelo

fato de achar que a solução que havia encontrado para preservar a vida do jagunço teria

sentido contrário, supondo que caso Zé Bebelo fosse capturado vivo, sua morte seria

pior. Então, o próprio Riobaldo agora tentava matá-lo.

“Meus olhos firmavam no chão, agora eu via que tremia. (...) Ao menos Diadorim raiava, o todo alegre, às quase danças (...) Aquilo me rendia pouco sossego.” (Rosa, p. 254).

São as posições distintas e mesmo antitéticas entre Riobaldo e Diadorim. Nessa

ocasião Joca Ramiro já havia sido capturado e Riobaldo estava temeroso em relação ao

que aconteceria em seguida. Ao contrário de Diadorim, que se mostrava feliz, pois

considerava que agora a guerra entre os jagunços havia tido seu fim.

“Mas, entre isso, o homem condenável, em cima da égua, amontado sempre, chorava por si mesmo, sensato sério; chorava, decerto, o ter crescido de sua longe meninice. Nem perguntei o nome dele, nem donde era que era. Um naqueles casos, de nada carecia nem necessitava. A cara dele, pelo malaventurar, se quebrava das formas e cor, e perpassava – ele era um ser com a cara desmanchada. Aí o Acauã, por um gesto de aviso meu, assestava nele, sobrestante; porque, mesmo no magoar do terror, por vez um se assopra de adoido, dá bote, dá nas armas. Agarrado todo na égua, só encolhido, encarapitado – o pobre.” (Rosa p. 475)

O parágrafo se refere a um homem que Riobaldo decidira matar no lugar de um

sujeito chamado Nhô Constâncio. O pranto do desditado acaba por desmanchar-lhe a

cara, que se perdia em formas e cor... Constâncio teria dito que conhecera o jagunço no

passado. No entanto, ao provar que não estava mentindo sobre o que havia falado,

Riobaldo considera poupar-lhe a vida, mas decide matar o primeiro sujeito que

aparecesse. No caso, seria esse homem que surgiu montado em uma égua. Nessa

passagem narrada pelo personagem, é dada a impressão de que o sujeito encontrado era

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miserável, sem muitas alegrias, vulnerável. Diferentemente do rico Nhô Constâncio que

Riobaldo pensara em matar anteriormente. Assim, o jagunço começa a refletir sobre o

fato de prosseguir ou não com a decisão de matar o sujeito desconhecido. Emerge um

sentimento de piedade. Esses fatos teriam acontecido, supostamente, por influência do

demo.

“Mas esbarrou, sem espiar para trás. Agora era que achava pranto, com bem de choro: estava chorando soluços fortes, igual se fosse criança pequena. Aquilo não tinha nenhuma sensatez e me dava gastura, astúcia que remexia com minhas resistências. Aborrecidos, os do meu pessoal gritaram com ele, que tornou a pegar a correr, ao tom dos brados. Ainda esbarrou, outra vez, devia de estar chorando, conforme os ombros dele se sacudiam. Arrochei. Assim foi em arrebrusco: sobreveio em mim a estúrdia arfagem de chorar também – eu nas margens do mar. Não quis e nem pude. Ânsia que meus olhos, para dentro, davam em escuro. As graças d’arte – sabe o senhor : na escuridão, não se chora, por não se ver, como não se pita cigarro... Com isso, desgostei de mim.” (p. 478)

Esta passagem se refere ao sujeito que Riobaldo havia decidido matar no lugar

de Nhô Constâncio. Essa ânsia de matar o primeiro sujeito que aparecesse

provavelmente fora uma tentativa de Riobaldo de provar/legitimar sua autoridade como

atual líder dos jagunços. No entanto, acaba arrependido e percebendo que sua decisão

não tinha sentido. Pensa na possibilidade de matar a cachorrinha desse sujeito, mas

acaba desistindo também. Esse trecho mostra a vulnerabilidade tanto do pobre sujeito

que Riobaldo quisera matar quanto do próprio narrador-personagem, que parece se

desapontar com seu próprio comportamento de piedade. Destaque para a “ânsia que

meus olhos, para dentro, davam em escuro. As graças d’arte – sabe o senhor : na

escuridão, não se chora, por não se ver”. O pranto portanto não é apenas para si, mas

para o outro também. E alusão ao que não se vê, mas sustenta o que se vê – 0

imaginário, portanto – ganha outro tipo de referência.

“Promovi meu revólver. Aquele de repente se encolheu, tremido; e tremeu tanto depressa, que as ramagens da árvore enroscaram um

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rumor de vento forte. Não gritou, não disse nada. Será que possuía sobra dalguma voz? Eu tinha de esmagalhar aquela coisa desumana.” (p. 492).

Esse fragmento retrata a reação de surpresa de Riobaldo, durante uma

caminhada, ao deparar com um enfermo escondido no alto de uma árvore. O narrador

coloca o doente numa posição de inferioridade ao descrever o medo que o sujeito

demonstra diante dele, mas ao mesmo tempo Riobaldo também parece inseguro, o que é

perceptível pelo fato de contar em seguida um acontecimento que Medeiro Vaz havia

lhe contado sobre um doente que ficava numa goiabeira contaminando as frutas de

forma que pudesse contaminar outras pessoas no futuro. Assim, Riobaldo logo aponta

seu revólver em direção ao sujeito como se estivesse livrando a si próprio e a outras

pessoas de um “mal”. Como se quisesse eliminar um sujeito que agisse de forma

predatória, sem saber se comportar em sociedade. No entanto, Diadorim aparece e

Riobaldo, inexplicavelmente, controla seu ímpeto de matar o doente.

“Mas o homem Deodato, distanciado duma minha pergunta dessas, esbarrou vez, demorão; mesmo, num desajeito, ele fungava. E ele comigo não tinha ajuste, mas não queria me ofender sem a razão. Chega olhou para os companheiros, que acenavam devagar com as cabeças, mas numa maneira brandazinha de sonsa, fora de tudo o mais, para não se entender se é sestro ou anuído, que é do jeito comum como essa gente costuma.” (p. 498).

Aqui a autoridade de quem está acabado de chegar a ela, é posta em questão.

Trata-se da reação dos jagunços que decidiram sair do bando logo após Riobaldo

assumir a liderança no lugar de Zé Bebelo. Diante dos questionamentos de Riobaldo

sobre a decisão desses homens de desertar o seu bando, os personagens refletem um

certo desconforto e intimidamento diante da recém revestida autoridade do líder. Tomar

partido da autoridade e submeter-se a ela é visto como atitude anuída (à qual se dá o

consentimento). Questionar a autoridade e rebelar-se contra ela, é percebido como

atitude sestra – de esquerda, sim – mas também sinistra ou agourenta. Anuir é sempre

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mais fácil, pois comporta obediência e submissão. Ao contrário, rebelar-se implica uma

tomada de posição contracorrente; a atitude assumida como destino.

“Aí escutei a voz – a voz dele tremia nervosa, como de cabrito; da maneira que gritou – à briga. Um desfeliz. Levei os olhos. (...) Estava falando contra comigo, reclamando, gritou uma ofensa. Homem zuretado, esbraseia os olhos. Eu, senhor de minhas inteligências, como fica dito. Eu estava podendo refletir, em passo de jumento. (...) Eu queria tolerar, primeiro: porque o demo não era homem para mandar em mim e me pôr em raiva. Aí, era só eu forçar calma, tenteador; depois, com palavras de energia boa, eu acautelava evitando a jerimbamba, e daí repreendia esse Treciziano, revoltoso, próprio por autoridade minha, mas sem pau nem pedra. Que dessa – chefe eu – o O não me pilhava...” (p. 512).

Nesse trecho é visível a forma como Riobaldo se refere a um homem que de

alguma forma faltou-lhe com o respeito apropriado. Ao mesmo tempo em que o sujeito

levanta a voz ao falar com o Riobaldo, se mostra vulnerável e assustado. Em seguida, o

próprio narrador-personagem se refere a esse sujeito como alguém que sofre de

problemas de saúde e, possivelmente, mentais. Assim, Riobaldo tenta se controlar para

não agir de forma violenta e repressiva com o homem, atribuindo uma influência do

demo a esse tipo de comportamento. Mais que isso, considera que esse sujeito seja uma

representação do demo que teria a intenção de desequilibrá-lo. Portanto, quando no fim,

acaba matando o homem com uma facada no pescoço, mais uma vez, acabará por

apiedar-se e arrepender-se de sua atitude.

“A curto, respondeu a algumas duas ou três coisas; e, logo depois de falar, apertava demais a boca fechada, estreitos finos beiços. Mas falava quase assoviado. Figuro que não mascava fumo nem cachimbava, mas mesmo assim cuspia em roda; mas não passava a sola do pé, por cima, para alimpar o chão, como é costume de se fazer, nessas condições. (...) Ela soubesse que não se pertencia com a gente. Aceitou meu olhar, seca, seca, com resignação em quieto ódio; pudesse, até com as unhas dos pés me matava. Enrolou a cara num xale verde; verde muito consolado. Mas eu já estava com ela – com os olhos dela, para a minha memória.

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Magreza, na cara fina de palidez, mas os olhos diferiam de tudo, eram pretos repentinos e duráveis, escuros secados de toda boa água. E a boca marcava velhos sofrimentos? Para mim, ela nunca teve nome. Não me disse palavra nenhuma, e eu não disse a ela. (...) E ela ficava assim embiocada, sem semblantes, com as mãos abertas, de palmas para cima – como se para sempre demonstrar que não escondia arma de navalha, ou porque pedisse esmola a Deus.” (p..516). (...) Essa mulher, conforme vinha, num definitivo mau silêncio, a cara desaparecida pelo xale verde, escanchada em seu cavalo. Tinham dado a ela um chapéu-de-palha de ouricuri, por se tapar do forte sol baiano. A mais, dela não se ouviu queixa ou reclamação; nem mesmo palavra. O que eu desentendia nela era aquela suave calma, tão feroz; que seria aferrada em esperar; essa capacidade. Se o ódio, só, era que dava a ela certeza de si, o ódio então era bom, na razão desse sentido: que às vezes é feito uma esperança já completada. Deus que dele me livrasse!” (p. 518).

Estes trechos se referem a mulher de Hermógenes que o bando de jagunços

liderados por Riobaldo decidira sequestrar de forma que atraísse o bando rival para um

embate. O mais interessante desse fragmento é que as manifestações de sentimentos não

são vistas apenas nas expressões corporais, mas também na ausência delas. A mulher

parece mostrar distanciamento e talvez indiferença, visto que no futuro comentará

algum tipo de insatisfação em relação ao “companheiro” Hermógenes. Assim, o que

parece é que, para a mulher, não fazia diferença estar sob a guarda do bando de

Hermógenes ou do de Riobaldo. Aparentemente, o desconforto de Riobaldo devido a

presença daquela mulher é bem mais significativo. Ao ponto dele medir com cuidado

cada ação e expressão dela. Todavia, ao mesmo tempo que essa mulher desconhecida se

mostra como uma possível ameaça, parece atrair o narrador-personagem com o seu xale

verde e seus “olhos pretos repentimos e duráveis”. Talvez por esse motivo, ele decide

se afastar e não quer saber nem mesmo o nome dela. No fim, Riobaldo comenta a forma

como as mãos da mulher estavam posicionadas e que ele só encontrou duas formas de

interpretá-las: como forma de demonstrar que não portava nenhuma ameaça física ou

mais como um tipo de sujeição a religião como forma de obter o favor de alguma ajuda.

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A mulher se encontrava, então, em uma posição de inferioridade e vulnerabilidade para

o jagunço.

“Requeri dele o prêmio – que marquei em arras de sete contos – e ele se desesperou, conforme caretas, e suas costas das mãos, mesmas, uma e depois a outra, diversas vezes ele beijava. Sempre gemendo que não e que sim, pediu vênia de me noticiar como os negócios da lavoura para ele nos derradeiros três anos andavam desandando, com peste que no gado deu e redeu, e praga no canavial: por via dela, nem fervia mais safra. E, tudo que falava, explicava e redizia (...).” (p. 536).

As caretas aqui se referem a um sujeito chamado Zabudo que era dono de uma

fazenda em que os jagunços de Riobaldo ficaram hospedados devido a um período de

chuvas. Como era de costume, os donos de propriedades por onde os jagunços

passavam forneciam alguns animais, comidas e dinheiro, além do período de

hospedagem. Porém, Zabudo tentou fugir desse “dever” de diversas maneiras, querendo

mostrar-se pobre e incapaz de fornecer qualquer tipo de ajudar material. Para isso se

utilizou de fala exagerada, gesticulação excessiva e caretas, além de outros artifícios

identificados por Riobaldo.

“Agora eu mudava, para motivos: chega estremeci de influência, aos ares de guerra. Deixei de parte a cisma, do mesmo jeito com que, ainda fazia pouquinho, eu tinha afrouxado ânimo; ah, a gente larga urgente o real desses estados. (...) Só esses pressentimentos, sozinho eu senti. O sertão se abalava?” (p. 572).

Esse fragmento retrata a insegurança e a vulnerabilidade de Riobaldo diante da

guerra eminente e o medo de que algo pudesse acontecer a Otacília, que ele julga estar

próxima, e então manda alguns jagunços levá-la para um lugar seguro, e também a

Diadorim.

“Nele o nenhum negar: no firme do nuto, nas curvas da boca, em o rir dos olhos, na fina cintura; e em peito a torta-cruz das cartucheiras. Os mais, zelando nas armas, corriam os dedos, apalpavam por afago.

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Conversei com todos. Aqui a guerra – que queriam guerra. Assim os meus catrumanos: quais as caras deles iam ficando de demônios; mais feio no demônio é o nariz e os beiços...” (p. 572).

No primeiro momento, Riobaldo descreve as expressões faciais de Diadorim que

estava alegre com a guerra que estava prestes a começar e em que vingaria a morte de

seu pai, Joca Ramiro. Depois Riobaldo relata as mudanças corporais dos outros

jagunços, com ênfase nas alterações faciais, diante do evento, considerando-as próximas

relação em relação às supostas características do demônio. E os indicadores do Demo

seriam o nariz e os beiços.

“Pelejei para recordar as feições dele, e o que figurei como visão foi a de um homem sem cara. Preto, possuindo a cara nenhuma, feito se eu mesmo antes tivesse esbagaçado aquele oco, a poder de balas... E tudo me deu um enjôo. Tinha medo não. Tinha era cansaço de esperança.” (p. 574).

Estamos diante da sensação de Riobaldo em relação a Hermógenes, antes do

embate que haveria entre os jagunços. Anteriormente a essa passagem, Riobaldo

menciona como os jagunços de seu bando se referiam a Hermógenes, sem citar seu

nome. Provavelmente esse comportamento reflete o fato de acharem que o tal homem

havia feito um pacto com o demo. Em seguida, Riobaldo tem dificuldade de lembrar as

feições do sujeito, conseguindo apenas vê-lo preto e sem rosto, o que pode ser

relacionado a uma possível ligação que esse Hermógenes teria com o demo, como se o

homem pudesse ser uma representação do diabo; ou, como o próprio Riobaldo afirma,

essa (ausência de) aparência estaria vinculada ao fato de imaginá-lo após encher o

jagunço inimigo de tiros. Contudo, independente do motivo, isso teria causado um

grande desconforto ao narrador-personagem.

“O quase que o legal, agora, era de se caçoarem uns dos outros, desafiando quem fosse ser medroso ou duvidado na coragem. Razão disso meava uma confiança, a mais, eu escutando satisfeito aquelas bobices com que eles porfiavam (...). Pelos risos e debiques que divertissem, de todos eu percebia a forte certeza. Cada cada-um, dali a

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pouco, ia ser perigoso, de nele se encostar, feito um sapo que espirra.” (p. 575).

Aí está o comportamento dos jagunços do bando de Riobaldo pouco antes de

ocorrer o conflito com os jagunços de Hermógenes. Eles brincavam uns com outros de

forma que se auto afirmassem, o que é de extrema importância no momento que se

encontravam, às vésperas de um embate. Certamente, aproximação desse embate devia

deixá-los bastante inseguros e receosos em relação ao que estava por vir. Além disso, o

narrador-personagem relata que eles riam e se divertiam; o que poderia ser considerado

como mais uma alternativa para aliviar a tensão. Os risos e debiques conotavam

nervosismo e ansiedade.

“Três-tantos impossível, que eu descuidei, e falei. – ... Meu bem, estivesse dia claro, e eu pudesse espiar a cor de seus olhos... –; o disse, vagável num esquecimento, assim como estivesse pensando somente, modo se diz um verso. Diadorim se pôs pra trás, só assustado. – O senhor não fala sério! – ele rompeu e disse, se desprazendo. “O senhor” – que ele disse. Riu mamente. Arrepio como recaí em mim, furioso com meu patetear. – Não te ofendo, Mano. Sei que tu é corajoso... – eu disfarcei, afetando que tinha sido brinca de zombarias, recompondo o significado. Aí, e levantei, convidei para se andar. Eu queria airar um tanto.” (p. 577).

Provavelmente devido a insegurança e incerteza em relação ao conflito que se

aproximava fez com que Riobaldo involuntariamente expressasse sua afeição em

relação a Diadorim. Riobaldo chega a fazer uma declaração de afeto a Diadorim. Em

uma conversa que os dois tiveram após, segundo o narrador-personagem, Diadorim

mais uma vez veio demonstrar algum tipo de ciúme em relação a Otacília. Assim, como

um acidente, Riobaldo deixou que a emoção falasse mais alto, o que logo foi

contornado por ele que fingiu ser apenas uma brincadeira. Afinal, esse tipo de

sentimento seria inaceitável entre dois homens.

“Assim ouvi, sussurro muito suave, vozinha mentindo de muito amiga minha. O meu medo? Não. Ah, não. Mas meus pêlos crescendo em todo o

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corpo. Mas essa horrorizância. Daquela doçura nojenta de voz. E senti meu corpo muito grande. Me xinguei. Um sujeito vinha correndo, nele eu quase atirei.” (p. 580).

O bando de Riobaldo acabou sendo pego de surpresa pelos jagunços de

Hermógenes que atacaram sem que eles esperassem. Vendo que a guerra havia saído de

seu controle, Riobaldo fica assustado e começa a ouvir vozes, como se falasse com ele

próprio para que abandonasse os jagunços, visto que não tinha esperanças de conseguir

melhorar sua posição no conflito. Assim, acaba entrando em um conflito interno sobre o

que deveria fazer em sua posição de chefe do bando, colocando inclusive a culpa nos

jagunços por terem agido por conta própria e por isso a guerra havia ficado ruim para o

lado deles. Na verdade, Riobaldo parecia estar apenas imerso na atmosfera de medo que

a guerra havia criado e, de alguma forma, tentava achar soluções para conseguir sair

vivo, mas sem ter que carregar o peso da culpa. Medo que fazia os pelos crescerem em

todo o corpo...

“(...) e o menino Guirigó e o cego Borromeu, assentados no banco, encostado na parede para o interno. Esses dois, muito juntos, como que tremiam um tanto; deviam de estar rezando.” (p. 585)

Riobaldo retrata o comportamento que notou no menino Guirigó e no cego

Borromeu ao entrar na casa em que estavam refugiados em meio ao conflito com os

hermógenes. Dentro do bando de Riobaldo, esses dois personagens parecem ser os mais

vulneráveis, o que é perceptível pelos adjetivos permanentemente atribuídos a eles

(“menino” e “cego”). Nesta passagem, enquanto os outros jagunços lutam contra os de

Hermógenes (e contra o medo), o menino Guirigó e o cego Borromeu não temem

demonstrar suas fraquezas e parecem recorrer à religião.

“Mas eu permaneci. Disse que não, não, não. Minhas duas mãos tinham tomado um tremer, que não era de medo fatal. Minhas pernas não tremiam. Mas os dedos se estremecitavam esfiapado, sacudindo, curvos, que eu tocasse sanfona.” (p. 589).

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Mesmo diante do ataque dos hermógenes que estavam destruindo a tiros a sala

onde Riobaldo se encontrava e o alerta de seus jagunços para que recuasse, ele se

manteve em sua posição, ainda que tremendo. Parece que recuar e assumir o medo não

seriam ações que pudessem ser dignas de um líder. Dessa forma, Riobaldo as nega.

“O menino Guirigó – uma mão apertando as costas da outra, seguidos esses estremecimentos, repuxava a cara, mas com os beiços abertos em dor, tudo uma careta. Ele era um menino. E o cego Borromeu fechava os olhos.” (p. 590).

Mais um trecho referente a vulnerabilidade do menino Guirigó e do cego

Borromeu. No entanto, neste episódio, Riobaldo se inclui. Visto que a guerra já estava

praticamente vencida pelos hermógenes e os jagunços de Riobaldo que restavam no

sobrado haviam descido para lutar com os outros. Porém, os únicos que permaneceram

lá, protegendo-se das balas, foram o menino, o cego e Riobaldo. Ao mesmo tempo em

que Riobaldo tenta mostrar-se como uma líderança forte e destemida, ele acaba

sucumbindo ao medo. E não conseguie mais negá-lo. Um fato interessante nesse trecho

é que a atmosfera de terror parecia ser tão contagiante que o narrador afirma que o cego

fechava os olhos. Como se assim nada pudesse sustentar o que cego (não) via...

“Gago, não: gagaz. Conforme que, quando ia principiar a falar, pressenti que a língua estremecia para trás, e igual assim todas as partes de minha cara, que tremiam – dos beiços, nas faces, até na ponta do nariz e do queixo. Mas me fiz. Que o ato do medo não tive. Mandei o cego se sentar, e ele obedeceu, ele estava no aparvoado; mas não se abancando no banco: que melhor se agachou, ficou agachado. Riu, de me dar nojo. Mas nojo medo é, é não?” (p. 591-592).

O bando de Riobaldo parece começar a mudar a situação e vencer a guerra.

Paralelamente, Riobaldo começa então a se exaltar e atribuir essa melhora a sua boa

liderança e ausência de medo. No entanto, ele ouve um riso que acaba sendo atribuído

ao Sertão, que antes sugere uma relação com “Satanás” e “Sujo”. Perturbado, Riobaldo

pergunta ao cego (supõe-se que seria o personagem mais próximo ao narrador-

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personagem no momento) se ele seria o Sertão, mas ele nega. Então, Riobaldo se mostra

mais assustado por não achar uma explicação racional para o que acontecera. Assume

certa dificuldade para falar, seu rosto treme. No entanto, afirma que não tem medo e dá

uma ordem para o cego que a obedece. Essa ação de Riobaldo poderia ser interpretada

como uma forma que o personagem achou para afirmar sua autoridade e poder, negando

qualquer tipo de vulnerabilidade que pudesse ser atribuída a ele no momento. Nessa

hora ele se faz (liderança).

“E que não pronunciei insultos e gritos, mesmo porque minha boca, a modo que naquele preciso tremor, me mal-obedecia. Sapateei, em vez, bati pé de pilão nas tábuas do assoalho tão surdo – o senhor é capaz que escute, como eu escutei? E que o furor da guerra, lá fora, lá em baixo, tomava conta de mim, que a quase eu deixava de dar fé da dôr-de-cabeça, que forte me doía, que doesse vindo do céu-da-boca, conforme desde, aos poucos, que o fogo tinha começado. E que água não provei bebida, nem cigarro pitei.” (p. 592).

Uma vez mais a ausência de emoções corporais visíveis se torna expressiva

como forma de retratar o estado do personagem em vista a quantidade de emoções a que

estava submetido no momento. Riobaldo não consegue nem mesmo gritar. Seu próprio

corpo não lhe obedece mais. Começa a sentir dores, é puro sintoma. Agora espera

apenar o destino ruim que parece se aproximar, nem mesmo um cigarro ou uma bebida

seriam uma alternativa. É como se, paradoxalmente, estivesse tão entregue às emoções

que Riobaldo não tivesse mais nenhum controle possível sobre seu próprio corpo.

“Querer mil gritar, e não pude, desmim de mim-mesmo, me tonteava, numas ânsias. E tinha o inferno daquela rua, para encurralar comprido... Tiraram minha voz. (...) Atirar eu pude? A breca torceu e lesou meus braços, estorvados. Pela espinha abaixo, eu suei em fio vertiginoso. Quem era que me desbraçava e me peava, supilando minhas forças? – “Tua honra... Minha honra de homem valente!... “ – eu me, em mim, gemi: alma que perdeu o corpo. O fuzil caiu de minhas mãos, que nem pude segurar com o queixo e com os peitos. Eu vi minhas

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agarras não valerem! Até que trespassei de horror, precipício branco.” (p. 594).

Repentinamente o barulho dos tiros cessa em meio ao conflito com os

hermógenes, para surpresa de Riobaldo. Porém, logo descobre que fora proposto um

desafio e que este inclui Diadorim, o que desespera Riobaldo. Diante da situação, o

narrador-personagem percebe que não há nada que possa fazer para impedir com que

Diadorim continuasse com aquilo que podia custar-lhe a vida. Nem mesmo sua

autoridade de chefe dos jagunços poderia mudar aquilo agora. Tiraram-lhe a voz. Em

seguida continua relatando sobre a incapacidade de fazer algo que pudesse parar aquela

situação. Mais uma vez as emoções tiraram o controle que Riobaldo tinha sobre seu

próprio corpo. Sua alma perdeu o corpo.

“Naquilo, eu então pude, no corte da dor: me mexi, mordi minha mão, de redoer, com ira de tudo... Subi os abismos... De mais longe, agora davam uns tiros, esses tiros vinham de profundas profundezas. Trespassei. (p.595).

(...) Diadorim tinha morrido, mil-vezes-mente, para sempre de mim; e eu sabia, e não queria saber, meus olhos marejavam.” (p. 596).

Riobaldo assiste inquieto a luta entre Diadorim e Hermógenes. Este acaba

levando uma facada do outro. Em seguida, Riobaldo perde Diadorim de vista e em meio

ao seu desespero e sem ter o que fazer, se mexe, se morde e por fim, acaba desmaiando.

Depois dos cuidados de seus jagunços que lhe deram água e lhe assistiram até que

acordasse, Riobaldo descobre que seu amigo amado havia morrido, que o havia perdido

para sempre e seus olhos marejam. É uma circunstância de sentimento condoído diante

de uma possiblidade sempre presente nas lutas do sertão.

“Suspendi minhas mãos. Vi que podia. Só o corpo me estivesse meio duro, as pernas teimando em se entesar, num emperro, que às vezes me empalhava. Sendo que me levantei, sustentando, e caminhei os passos; as costas para a janela eu dava.” (p.. 596).

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TrIste sina. Após a notícia de que Hermógenes havia morrido, os jagunços de

Riobaldo passam a comemorar a vitória e o fim da guerra. No entanto, não fazia sentido

para Riobaldo visto que o motivo que o levara a entrar naquela vida, de seguir como

jagunço pelo Sertão, já não existia mais. Diadorim morrera. Riobaldo, então, percebe

que consegue sair daquela sair daquela posição em que estava há tanto tempo e com um

pouco de dificuldade dá as costas para janela que dava vista para o embate que ocorrera

há pouco. Essa ação poderia ser considerada também como um adeus para a vida de

jagunço.

“Ou eu ainda não estava bem de mim, da dôr que me nublou, tive de sentar no banco da parede. (...) Eu deixei minhas lágrimas virem. (...) Pelas lágrimas fortes que esquentavam meu rosto e salgavam minha boca, mas que já frias já rolavam.(...) Sufoquei, numa estrangulação de dó.” (p. 597 – 598).

Os jagunços do bando de Riobaldo abriram o quarto para que a viúva de

Hermógenes pudesse sair para ver o corpo de seu marido. Imaginaram que a Mulher

sofreria com a morte dele, mas pelo contrário, ela dissera que tinha ódio de

Hermógenes. Riobaldo estremeceu, não sabia se pelo que a Mulher falara ou se por

ainda não estar recuperado de sua dor pela perda de Diadorim. Em seguida, a Mulher

pediu que trouxessem o corpo de Diadorim e Riobaldo não conseguiu mais conter suas

lágrimas. Ao demonstrar sua vulnerabilidade, sem conseguir segurar o choro, Riobaldo

está posicionado entre o cego Borromeu e o menino Guirigó.

“Ela era. Tal que assim se desencantava, num encanto tão terrível; e levantei mão para me benzer – mas com ela tapei foi um soluçar, e enxuguei as lágrimas maiores. Uivei. Diadorim! Diadorim era uma mulher. Diadorim era mulher como o sol não acende a água do rio Urucuia, como eu solucei meu desespero. (...) Eu estendi as mãos para tocar naquele corpo, e estremeci, retirando as mãos para trás, incendiável: abaixei meus olhos. E a Mulher estendeu a toalha, recobrindo as partes. Mas aqueles olhos eu beijei, e as faces, a boca.” (p. 599).

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Ao descobrir que Diadorim é uma mulher, é interessante que Riobaldo afirma

que “se desencantava num encanto terrível”. Poder-se-ia atribuir a isso o fato de

Riobaldo se desencantar por antes estar apaixonado pelo Diadorim homem, mas ao

mesmo tempo se encanta ao saber que ele é na verdade mulher e isso é mais aceito, seria

o correto. Sente portanto um alívio, embora retrospectivamente Se soubesse dessa

informação antes, não haveria empecilhos que o impedissem de ficar com Diadorim.

Porém, agora não havia mais o que fazer, ele estava morto. E, de fato, o alívio não

proporciona consolo em reação à causa perdida.Toda essa informação parece deixar

Riobaldo desconcertado. A mulher de Hermógenes cobre o corpo de Diadorim, porém

se se tratasse ainda de um homem, será que ela agiria do mesmo jeito? Apesar da

surpresa e de seu estado, Riobaldo beija Diadorim, visto que essa seria sua última

chance para fazê-lo.

Pelo repugnar e revoltar, primeiro eu quis: – “Enterrem separado dos outros, num aliso de vereda, adonde ninguém ache, nunca se saiba...”. Tal que disse, doidava. Recaí no marcar do sofrer. Em real me vi, que com a Mulher junto abraçado, nós dois chorávamos extenso. E todos meus jagunços decididos choravam. (p. 600).

Depois que a Mulher já havia lavado e vestido o corpo de Diadorim, Riobaldo

pede que enterrem-no longe de todos, em um lugar exclusivo, que ninguém ache ou

saiba. Que enterrem o corpo de Diadorim adorad(o/a) numa “Vereda” do Sertão; o que

dá título à obra de João Guimarães Rosa.Talvez, como forma de fazer com que ele

mesmo não acreditasse que Diadorim morrera. Seria a maneira que ele encontrara para

não aceitar o que havia acontecido. No entanto, ao se dar conta mais uma vez do que

estava acontecendo, caiu a chorar outra vez, agora junto da Mulher (que parecia ter uma

relação mais próxima de Diadorim do que do próprio Hermógenes) e dos jagunços.

Vereda aqui tem um sentido de escondido, recalcado, ali ”adonde ninguém ache,

nunca se saiba”... Mas tem também o sentido daquilo que, recalcado, um dia possa

retornar. Conforme a célebre máxima de Sigmud Freud, “wo es war, soll ich werden”

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Na morna, baqueei, não podendo mais. Me levaram, por primeiro, de revexo. Depois me botaram para dentro duma casa muito pobre. Desembestei doente. Por último, como perdi meu conhecimento, estavam me deitando num catre. Que foi febre-tifo, se diz, mas trelada com sezão, mas sezão forte especial – nas altíssimas! Que a febre que eu tinha era tamanha tanta, como nunca se viu – o Alaripe depois me disse ; que no decorrer dos acessos eu tresvariava. (p. 601).

Após desapoderar-se, largar o bando depois de repartir o dinheiro, só levou

consigo o cego, o menino e dois jagunços que precisavam ser levados a algum lugar. No

caminho, na viagem ao deusdar, depois de descobrir que não estavam nas Veredas-

Mortas, mas nas Veredas Altas, Riobaldo adoece. Começa a ter febre e fica um tempo

em uma casa pobre até se recuperar. Nesse período, Riobaldo começa a tresvariar e

contar histórias que os jagunços que o acompanhavam não conseguiam entender. Esse

adoecimento de Riobaldo poderia ser devido às intensas emoções que teve em um curto

período de tempo.

A nós, recordou Édipo, já cego, em Colono, acompanhado da filha a vagar...

XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX

X

A história presente em Grande sertão: veredas é uma narrativa da vida do

jagunço Riobaldo feita por ele mesmo. Narrativa na primeira pessoa. Uma espécie de

autobiografia que começa a partir de crises existenciais do personagem principal, seja

sobre as questões religiosas, que se referem a existência ou não do demo; seja sobre a

sua afeição pelo jagunço Diadorim que vai sendo ora negada, ora afirmada, durante seus

relatos. Relatos esses que são feitos a um interlocutor invisível, que bem pode ser o

leitor. Aqui se coloca a questão da alteridade nos termos “o Eu é sempre um outro”.

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Isto parece ajudar o personagem a contar e entender melhor suas próprias memórias.

Alguns acreditam que esse interlocutor funciona como um analista5, mas seria esse

interlocutor um personagem do livro ou o próprio leitor? Seria o leitor, então,

transformado em possível analista de Riobaldo?

O primeiro terço do livro é uma espécie de “emaranhado” referente à crises

existenciais do narrador-personagem. Em seguida, ele começa a contar suas memórias a

partir de eventos, ainda que não sigam uma linearidade. Conta episódios desde sua

infância, em que conviveu apenas com sua mãe, sem a presença paterna; o período que

viveu com seu padrinho/pai Selorico Mendes; a relação que possuiu com líderes dos

jagunços, como Joca Ramiro; os momentos em que esteve com Diadorim, sua

“neblina”6; entre outros fatos. A narrativa causa um certo desconforto no leitor. É densa

e seca. Enigmática. Assim como o sertão.

Sobre a obra em geral, houve alguns aspectos que chamaram mais a atenção: a

questão da subjetividade das memórias do narrador; o regime autoritário e violento do

sertão; a questão dos territórios múltiplos; e o modelo de sociedade patriarcal afirmado.

Entretanto, a memória é moldada a partir de experiências do presente. E também é

particular e, por isso, subjetivada. O próprio Riobaldo, em certo momento da narrativa

diz “O que falei foi exato? Foi. Mas teria sido?” (ROSA, 2006, p. 253). O que ele narra

que se “passou no sertão no tempo dos relatos, é reflexo do que ele é agora. Não

necessariamente todas as pessoas que estiveram naquele contexto, compartilham das

mesmas memórias. É heterogêneo. Individual. Freud considera que a imaginação é

construída a partir do desejo e que as memórias são, (em parte), fruto da imaginação,

ou seja, do desejo”.7

Poder-se-ia dizer, simplesmente: essas situações de vida, no encontro analítico,

têm a possibilidade de serem recordadas – no sentido etimológico de recordar =

5 MENESES, Adélia Bezerra de. Cores de Rosa: ensaios sobre Guimarães Rosa. São Paulo: Ateliê

Editorial, 2010. p. 28

6 ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. p. 24. 7 MENESES, Adélia Bezerra de. Cores de Rosa: ensaios sobre Guimarães Rosa. São Paulo: Ateliê Editorial, 2010. p. 26.

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colocar de novo no coração. E assim, ressignificadas no sentido profundo, no nível dos

afetos (MENESES, 2010, p. 27)

A narrativa é feita após a descoberta do sexo de Diadorim. Teria isso implicado

na forma como Riobaldo se referiu ao amigo jagunço durante o relato? Em alguns

momentos ele aceita que aquilo que sentia por Diadorim era mais intenso do que

amizade. Será que Riobaldo poderia considerar isso na época ou apenas agora devido ao

fato de saber que Diadorim é, na verdade, Maria Diadorina?

A questão do autoritarismo hoje ainda é motivo de muita polêmica, inclusive ao

nível micro-político ou da microfísica do poder. No entanto, alguns historiadores

contemporâneos vêm analisando essa questão.

Esse tipo de relação autoritária parece estar presente também no Grande sertão:

veredas. O autoritarismo no Sertão de Rosa é omnipresente. Por exemplo, na utilização

da violência como via de legitimação, mas não somente isso, também a relação de

consentimento, de apoio das pessoas. Além da força da liderança carismática e a

idolatria que muitos praticam.

O consentimento funciona como uma espécie de produto do consenso. Aliás

como a própria expressão já alude. Ele é dado porque o consenso é construído

previamente. E de alguma forma ele foi construído no Sertão. Seja devido a inexistência

de uma alternativa de governo devido a incapacidade de abrangência do Estado em

todas as regiões do Brasil profundo ou, talvez, por causa de algum tipo da fascinação

que o movimento dos jagunços poderia provocar.

A figura do líder também é emblemática na trama de Rosa. Ao mesmo tempo

que se impõe de forma diretiva, as vezes repressiva e até violenta, cria uma atmosfera

de respeito, idolatria. Algo como uma figura paterna. Esse tipo de relação é comum em

regimes autoritários. São criadas representações que colocam esses tais líderes como

pessoas excepcionais. Essa imagem é perceptível em quase todas as vezes que Riobaldo

se refere a Joca Ramiro. Como neste trecho:

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“E corri lembrança em Joca Ramiro: porte luzido, passo ligeiro, as botas russianas, a risada, os bigodes, o olhar bom e mandante, a testa muita, o topete de cabelos anelados, pretos, brilhando. Como que brilhava ele todo. Porque Joca Ramiro era mesmo assim sobre os homens, ele tinha uma luz, rei da natureza”. (ROSA, 2006, p. 46).

Ou quando avalia a figura que Joca Ramiro assumia às vistas de Zé Bebelo:

“Joca Ramiro tinha sido a admiração grave da vida dele: Deus no Céu e Joca Ramiro na

outra banda do Rio.” (ROSA, 2006, p. 43)

Após a morte de Joca Ramiro, Riobaldo acaba assumindo a liderança do bando.

Ao mesmo tempo em que, durante suas memórias, expressa que não sente desejo em se

tornar chefe, acaba ascendendo a esse posto por opção própria. “Ser chefe, por fora um

pouquinho amarga; mas, por dentro, é rosinhas flores.” (ROSA, 2006, p. 84). Além de

toda essa aura paterna que Joca Ramiro possuía às vistas de Riobaldo, havia também a

adoração que seu pai ausente Selorico Mendes possuía em relação aos jagunços,

principalmente em relação a esse em particular. “Semanas seguintes, meu padrinho só

falou nos jagunços. Dito que Joca Ramiro era um chefe cursado: muitos iguais não

nascem assim – dono de glórias!” (ROSA, 2006, p. 164). Teria sido, então, essa

adoração de seu pai a Joca Ramiro que influenciou o que Riobaldo sentia por esse

jagunço?

Essa relação entre afeto e poder é vista também, por exemplo, no processo de

unificação alemã. O caso de Gyorgy Schorener, em particular, reflete essa característica

de adesão subjetiva a um regime autoritário devido a ressentimentos cultivados em

relação a seu pai. Ele acaba assumindo uma postura radicalmente oposta a assumida

pelo seu pai no passado8. Com Riobaldo, apesar de, essencialmente, seguir a mesma

lógica de Schorener, ao invés de um afastamento em relação a postura paterna, ocorre

uma aproximação. No entanto, nos dois casos, os sujeitos se valem de aspectos afetivos

para incorporação de mecanismos de caráter autoritário.

A partir dessa análise referida a regimes autoritários, é importante relacionar

ainda com a questão dos múltiplos territórios que coexistem no sertão. Os bandos de

8 FILHO, Gisálio Cerqueira. Autoritarismo afetivo: a “Prússia” como sentimento. São Paulo: Editora Escuta, 2005. p. 48.

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jagunços com os seus líderes existindo paralelamente ao poder do Estado. É necessário

analisar como essa territorialização é definida, levando em consideração o contexto do

sertão de Rosa.

Para Rogério Haesbaert, o território se dá a partir das apropriações do espaço

através de estruturas de poder. Seja pelo caráter simbólico ou pelo uso efetivo da

violência.

O termo “território” possui uma significação bem ampla. Existem dicionários

que o dão até seis significados diferentes. Ele pode ser definido pelo senso comum

como um espaço social qualquer ou também com um sentido mais etológico, como um

espaço defendido por determinados grupos de animais. No entanto, etimologicamente,

território vem do latim territorium que se refere a “terra”. Para outros, tal raiz

etimológica está relacionada ao terror imposto num território (terra); sendo que o terror

é dominante sobre a terra. Tal terror impõe obediência e exige reverência.

Apesar de o território se apoiar no espaço, eles não são sinônimos. O conceito de

espaço lhe é anterior. Portanto, o homem se apropria dele, territorializando-o, criando

relações, campos de poder. Assim, “o espaço é a ‘prisão original’, o território é a prisão

que os homens constroem para si”9.

O conceito de território diverge na concepção de alguns autores. Raffestin, por

exemplo, definiu as ligações com o território (territorialidade) a partir de um processo

de coletividade. Ou seja, que a territorialidade está baseada nas relações que geram uma

ordem coletiva seja através de instrumentos ou mediadores.

Existem três vertentes básicas relacionadas ao conceito de território: a política, a

cultural e econômica. Em Grande sertão: veredas predomina a vertente política que é a

relacionada a noção de espaço-poder. Território é visto como um espaço delimitado sob

o domínio determinado poder. No entanto, no sertão existe uma pluralidade de poderes

no mesmo espaço. É interessante pensar nas consequências que essas relações geram na

construção da obra.

9 RAFFESTIN, Claude. Por uma geografia do poder, São Paulo, Ática, 1993. p. 144

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Por último, mas não menos importante, um aspecto que chamou a atenção foi a

afirmação da sociedade patriarcal presente na obra. O homem é colocado como

dominador, como agente ativo na trama. As mulheres geralmente aparecem relacionadas

ao ambiente doméstico.

Segundo Pierre Bourdieu, essa característica da sociedade falocêntrica de

colocar a figura masculina como padrão, superior às demais, é algo que faz com se

acredite ser natural, biológico. No entanto, é socialmente construído. A dominação

masculina seria, então, produto de um trabalho histórico de reprodução. Desde pequenos

os homens são estimulados a negarem características consideradas femininas, como

através do incentivo ao gosto por atividades violentas e a repressão a demonstrações de

sentimentos. Ao contrário do que acontece com as mulheres. Essas aprendem sobre a

arte de “se fazer pequena”. São criados de limites e regras que gerem desde o modo de

se vestir até o tom de voz usado por elas, e até mesmo , em certos casos, o caminhar;

como se as mulheres estivessem permanentemente pisando ‘em ovos’.

É possível assim perceber a fronteira sutil existente entre na relação do

dominador com o dominado, a partir de emoções e sentimentos do sujeito situado quer

na posição de mando, quer na posição de submissão. Afetos que se convertem em

indicadores corporais vísiveis como quisemos demonstrar.

Referências bibliográficas

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.

CERQUEIRA FILHO, Gisálio. Autoritarismo afetivo: a “Prússia” como sentimento.

São Paulo: Editora Escuta, 2005.

__________________ Anotações de aula no Seminário realizado no Programa de Pós-

graduação (Doutorado) – PPGCP/UFF – intitulado O Brasil na Teoria Política e a

Teoria Política no Brasil a partir de "Grande Sertão Veredas", de João Guimarães

Rosa (EGH 00.172) Área de Concentração: Teoria Política. Niterói: mimeo., 2011.1

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__________________ Projeto de Pesquisa “Ethos e Pathos no Sertão”. GCP/LCP/UFF,

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