corpos produzidos e indícios de transformação. ligia balestra 07.2014

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Monografia de conclusão de curso de História da Arte sobre arte corporal indígena

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE SO PAULO ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTE DE HISTRIA DA ARTE

    Ligia Balestra Vasconcelos

    Corpos Produzidos e Indcios de Transformao

    So Paulo

    2014

  • Ligia Balestra Vasconcelos

    Corpos Produzidos e Indcios de Transformao

    Orientao: Prof. Dr. Marta Denise da

    Rosa Jardim

    Monografia de concluso de curso

    apresentado Universidade Federal de So

    Paulo como requisito parcial para obteno

    do ttulo de Bacharel em Histria da Arte

    rea de concentrao: antropologia da arte

    So Paulo

    2014

  • Balestra Vasconcelos, Ligia

    Corpos Produzidos e indcios de transformao / Ligia

    Balestra Vasconcelos. - So Paulo, 2014.

    51f.

    Trabalho de Concluso de Curso (graduao em Histria da

    Arte) Universidade Federal de So Paulo, Escola de Filosofia,

    Letras e Cincias Humanas, 2009.

    Orientador: Marta Denise da Rosa Jardim

    Ttulo em ingls: Produced bodies and evidence processing

    1. Antropologia da arte 2. Arte amerndia 3. Pintura corporal

  • Ligia Balestra Vasconcelos

    Corpos Produzidos e indcios de transformao

    Monografia de concluso de curso apresentado Universidade Federal de So

    Paulo como requisito parcial para obteno do ttulo de Bacharel em Histria da

    Arte.

    Orientao: Prof. Dr. Marta Denise da Rosa Jardim.

    Aprovao: ___/___/_____

    Prof. Dr. Marta Denise da Rosa Jardim

    Prof. Dr. Ilana Seltzer Goldstein

    Prof. Dr. Artionka Manuela Ges Capiberibe

  • Agradecimentos

    Agradeo a todos que me apoiaram e me incentivaram a buscar as minhas realizaes

    atravs da arte e de uma graduao pblica. Sobretudo, agradeo a minha famlia e amigos

    pela pacincia e compreenso diante das dificuldades encontradas e tambm pela motivao,

    fundamental, para que eu pudesse concluir essa etapa da minha vida.

  • O corpo, sendo o lugar da perspectiva

    diferenciante, deve ser maximamente diferenciado

    para exprimi-la completamente.

    (VIVEIROS DE CASTRO. 2002: 388)

  • Resumo

    A monografia Corpos produzidos e indcios de transformao apresenta uma reunio das

    fontes bibliogrficas sobre a etnografia de diversos povos amerndios da Amrica do Sul. Um dos

    principais objetivos analisar o repertrio grfico coletado evidenciando questes como a importncia

    dos padres visuais para as prprias sociedades estudadas, assim como seu envolvimento na estrutura

    social. Alm disso, o levantamento bibliogrfico proporcionar uma reviso acerca da metodologia

    utilizada pelos autores em relao interpretao das pinturas corporais amerndias bem como a

    esttica de tais sociedades.

    Palavras Chave: Antropologia da arte. Arte amerndia. Pintura corporal.

  • Abstract

    The monograph "Bodies and produced evidence of transformation" presents a meeting of the

    bibliographical sources on the ethnography of various Amerindian peoples of South America A major

    objective is to analyze the collected graphic repertoire highlighting issues such as the importance of

    the visual patterns companies themselves studied, as well as their involvement in the social structure.

    Moreover, the literature survey will provide a review of the methodology used by the authors in

    relation to the interpretation of Amerindian body painting as well as the aesthetics of such societies.

    Keywords: Anthropology of art. Amerindian art. Body painting.

  • Lista de figuras

    Figura 1 Menina piro deixando recluso durante o seu ritual de iniciao..............................18

    Figura 2 Desenho do corpo humano feito na folha de papel por Aju.....................................25

    Figura 3 Desenho do corpo humano feito na folha de papel por Avakar..............................26

    Figura 4 Padro ipirajuak asurini............................................................................................26

    Figura 5 Criana Wayana com pintura facial de jenipapo.......................................................30

    Figura 6 Pintura corporal waipi.............................................................................................32

    Figura 7 Pintura de mulheres..................................................................................................40

    Figura 8 Preparao da efgie..................................................................................................53

    Figura 9 Padro hototo ijatag..............................................................................................54

    Figura 10 Padro ihitinh.....................................................................................................54

    Firuga 11 Efgie com os ornamentos do morto.......................................................................55

  • Sumrio

    Introduo......................................................................................................................10

    1. Noes de beleza ................................................................................................15

    1.1 Os padres visuais como forma de conhecimento ..............................................16

    1.2 As mulheres e a produo da beleza coletiva .....................................................18

    1.3 Nomes de padres e referentes externos ............................................................19

    2. Mitos de origem ................................................................................................23

    2.1 Problemas de interpretao ................................................................................23

    2.2 O mito de Tuluper ............................................................................................27

    2.3 Os padres Kusiwa ............................................................................................30

    2.4 Os padres kene e a rvore mgica.....................................................................33

    3. Xamanismo e noo de pessoa .........................................................................34

    3.1 Corporalidade social entre os kayap .................................................................37

    3.2 Os padres visuais cantados ...............................................................................41

    3.3 Os apapaatai do Xingu ......................................................................................43

    3.3.1 A criao dos humanos ......................................................................................43

    3.3.2 Da doena festa ..............................................................................................45

    4. A morte e o ritual Quarup................................................................................48

    4.1 Morte e imagem .................................................................................................48

    4.2 A dualidade da alma kalapalo ............................................................................49

    4.3 O Quarup ...........................................................................................................51

    Consideraes finais ....................................................................................................56

    Bibliografia....................................................................................................................59

  • 10

    Introduo

    As ornamentaes corporais de sociedades amerndias sul-americanas so um tema

    complexo a ser desenvolvido pelas pesquisas acadmicas no somente no campo da

    antropologia, mas tambm da histria da arte. A histria da arte do Brasil, apesar de seguir a

    tradio europeia, ainda vem trilhando seu caminho e, para que ela se consolide de maneira

    menos eurocntrica, os elementos artsticos produzidos em sociedades amerndias devem ser

    includos nos estudos. Devemos ainda levar em considerao que as estticas amerndias so

    importantes no apenas para ampliar o repertrio de imagens produzidas no Brasil, mas

    tambm para multiplicar os referenciais estticos existentes na histria da arte brasileira para

    alm daqueles de origem ocidental. Alm da perspectiva esttica, conhecida em estudos sobre

    a arte ocidental, os ornamentos corporais amerndios apresentam expressivo envolvimento

    com alguns conceitos mais especficos das sociedades indgenas da Amrica do Sul, como o

    xamanismo, a noo de pessoa e os mitos, que sero mais bem elaborados durante o

    desenvolvimento do trabalho. A partir disso, os ornamentos corporais sero analisados dentro

    de seu contexto scio cultural, evidenciando as possveis relaes geradas entre as esferas

    cosmolgicas.

    A anlise do repertrio visual levantado durante a reunio bibliogrfica proporcionou

    tambm uma reviso dos estudos encontrados sobre o tema, evidenciando mudanas

    metodolgicas desde as etnografias de 1980 e at as mais atuais. Os estudos menos recentes

    como os de Terence Turner1, Lux Vidal

    2, e Regina Polo Miller

    3 apresentam certa defasagem

    quanto ao tratamento dos padres visuais encontrados nas sociedades estudadas quando

    comparados com os trabalhos de Aristteles Barcelos Neto4, Anne-Christine Taylor

    5 e

    Antnio Guerreiro Jr6, entre outros. Enquanto os trabalhos mais antigos tratam dos padres

    como um sistema simblico com significados passveis de uma traduo, as etnografias mais

    atuais buscam compreender os padres como ndices corporais de transformao. Em O

    pensamento selvagem, publicado em 1962 a questo sobre a classificao dos totens

    1 Antroplogo norte-americano que se dedica etnografia amaznica e, mas especificamente, aos kayap.

    2 Doutora em antropologia social, especialista em povos indgenas do Brasil Central e de origem norte-

    americana. 3 Livre-docente em antropologia da Universidade Estadual de Campinas nascida no Brasil.

    4 Antroplogo brasileiro e professor da Universidade de East Anglia no Reino Unido.

    5 Antroploga francesa, esposa do, tambm antroplogo, Descola Philippe e diretora do departamento de

    educao e pesquisa do museu Quaibranly, na Frana. 6 Antroplogo e professor doutor do departamento de antropologia da Universidade Estadual de Campinas.

  • 11

    abordados por Claude Lvi-Strauss7, j indicava que o sistema de nomes no apresenta uma

    relao importante com possveis referenciais externos, mas impulsionam formas de pensar,

    ou seja, eles no representam necessariamente a figura atribuda ao nome, e sim uma questo

    a ser pensada. Desse modo os dois primeiros captulos apresentaro exemplos da relao dos

    padres visuais com seus nomes e a relevncia que apresentam nas sociedades abordadas.

    Discusses sobre esttica

    Outro ponto importante na anlise dos repertrios visuais reunidos pela bibliografia

    o tipo de tratamento dado a esttica por autores de diferentes perodos. Darcy Ribeiro8, um

    dos principais pesquisadores sobre a cultura amerndia da dcada de 1950, marca a

    abordagem feita sobre produes acadmicas s artes amerndias. Em seus trabalhos

    publicados podemos notar a supervalorizao e a sua simpatia em relao s artes em questo.

    Desse modo o autor descreve a beleza encontrada nos objetos de uso dirio e a idealizao da

    esttica amerndia, como podemos observar no trecho a seguir:

    O importante, porm, que l qualquer arco comum de caa ou qualquer

    peneira reles de colher mandioca so muito mais belos e perfeitos do que seria

    necessrio para cumprir suas funes de uso. Essa perfeio buscada e alcanada

    com muito esforo e muito esmero, s se explica porque sua funo efetiva serem

    belas. Em consequncia, no universo indgena todos esses objetos podem ser tidos

    como criaes artsticas. (RIBEIRO. 1983: 49.)

    Atravs do trecho citado podemos visualizar o tipo de tratamento dado arte

    amerndia durante a dcada de 1980. Nesse perodo autores como Darcy Ribeiro defendiam a

    distino entre esttica e funcionalidade desconsiderando outras relaes que os objetos

    etnogrficos podem proporcionar. Diferente do tratamento dado por Darcy ribeiro s artes

    amerndias, esse trabalho prope uma anlise sobre as relaes da esttica com as sociedades

    abordadas que ultrapassa a polaridade entre funo e beleza. Assim, junto anlise das

    pinturas, tatuagens, escarificaes e demais ornamentos corporais amerndios em seus

    contextos sociais, ser possvel tambm observar as mudanas sobre o tratamento de tais artes

    por diferentes autores e perodos, bem como o envolvimento da antropologia com a arte.

    Para analisar os padres visuais de povos amerndios, assim como de quaisquer outros

    povos ditos no ocidentais, a primeira observao a ser feita sobre a ideia de uma noo de

    7 Antroplogo francs conhecido por desenvolver a antropologia estrutural e as relaes de parentesco entre os

    povos indgenas brasileiros. 8 Antroplogo e poltico nascido em Minas Gerais.

  • 12

    beleza e de esttica que se diferencia dos conceitos da filosofia europeia. Muitos so os

    debates realizados acerca da utilizao do termo esttica em estudos antropolgicos para a

    anlise de expresses culturais e imagens que se distanciam da esttica de Kant9 (1993.).

    Fatores como a classe social e as experincias vividas por uma pessoa contribuem para que

    ela possa construir seu julgamento esttico sobre determinado objeto. Esse julgamento

    esttico no mundo ocidental fundamental para a compreenso e valorizao das produes

    artsticas. Entretanto, quando utilizado por ocidentais na abordagem de expresses culturais

    de sociedades no ocidentais, o julgamento esttico pode ser tendencioso. Ao assumir o

    referencial de beleza e valor artstico do pensamento eurocntrico como um padro esttico, a

    reflexo sobre outras culturas pode ser prejudicada na medida em que as caractersticas desse

    padro esttico no so encontradas. nesse momento que a arte no ocidental passa a ser

    valorizada de acordo com padres ocidentais e no pela tica da prpria sociedade em

    questo. O julgamento esttico ocidental das artes amerndias incapaz de sustentar e

    reconhecer os valores associados a essas expresses, tendendo a um discurso superficial por

    no se aprofundar em questes decisivas para seu entendimento, como seus objetivos e as

    aes e relaes geradas por tais expresses, e etnocntrico por reconhecer apenas um ponto

    de vista como parmetro. O termo esttica aplicado nesse trabalho almejando no uma

    viso a partir das belas artes ocidentais, mas um ponto de vista prximo recepo das

    expresses artsticas pelas sociedade amerndias, que parece tratar de tais produes como

    ndices de transformao, informao e conhecimento.

    Prope-se a utilizao do termo esttica como ferramenta para a compreenso de

    um conjunto complexo de expresses visuais, capaz de transmitir uma viso nica de sua

    cosmologia considerando que a recepo dessas expresses pelos prprios nativos das

    sociedades estudadas o que proporcionar um ndice dos valores sociais agregados a tais

    imagens. Peter Gow, etnlogo da regio da Amaznia, em um debate sobre esttica como

    categoria transcultural comenta que a utilizao da esttica por Lvi-Strauss a que mais se

    aproxima de uma anlise mais coerente das produes culturais no ocidentais: No h

    dvida de que Lvi-Strauss um esteta, com opinies fortemente discriminatrias. Mas o que

    importante em seu trabalho que ele usa a sua esttica no para a comparao com a

    esttica de outras culturas, mas como uma perspectiva sobre outras culturas. (GOW apud

    9 Filsofo alemo que desenvolveu , entre outras coisas, a noo de esttica como um julgamento humano.

  • 13

    INGOLD. 1993: 221. Traduo nossa.)10

    . O uso da esttica pelo antroplogo Lvi-Strauss

    parece ser o mais interessante at ento, visto que o autor prope uma abordagem sobre as

    expresses amerndias de acordo com suas concepes de produo visual, levando em

    considerao as motivaes para que elas sejam realizadas, da concepo do belo, que

    compreende a unicidade da cosmologia em que so feitos. Sua posio como esteta, no

    interfere em suas concluses, ao contrrio, quando ele estuda um determinado objeto o

    comparando com outro, de outra sociedade, ele prope considerar tal objeto com a mesma

    relevncia que o outro, dentro de suas especificidades e seu contexto social.11

    Estudos antropolgicos mais antigos envolvendo as artes amerndias tais como os de

    Alfred L. Kroeber12

    (1987) partiam de uma viso etnocntrica sobre as artes dos povos

    amerndios da Amrica do Sul, comparando-as com obras ocidentais facilmente encontradas

    em livros de Histria da Arte e as classificando como inferior s pinturas e esculturas,

    sobretudo, europeias. Sua opinio sobre a qualidade das expresses tratadas a ressaltada em

    seu trabalho, comprometendo a interpretao dos valores associados a elas. Acrescentado a

    isso, o fato de os povos amerndios das terras baixas sul-americanas supostamente no terem

    erguido uma grande civilizao, como a dos Maya e do Egito Antigo, intensifica o julgamento

    sobre suas produes culturais como objetos meramente exticos dentro da categoria de arte

    primitiva.

    O primitivismo outro ponto importante que deve ser considerado devido s

    interpretaes motivadas por ele. De maneira geral, o primitivismo tende a um discurso

    etnocntrico, que prope a desvalorizao das artes de povos no ocidentais. Ele traduz a arte

    de tais povos como produes visuais inferiores em relao s ocidentais. Na maioria das

    vezes, as artes ditas primitivas so associadas a pensamentos que definem os povos

    marginalizados pelo Ocidente como povos no civilizados, sem conhecimento tecnolgico,

    sem classes sociais, sem desenvolvimento de escrita, sem religio, sem desenvolvimento

    acadmico, entre outras caractersticas. (PRICE. 2000.). Podemos notar que o primitivismo

    associado ao discurso evolucionista para classificar tais artes como produes culturais de

    povos no desenvolvidos e no civilizados. Esse o tipo de abordagem adotada por Kroeber.

    O conceito de esttica que ele utiliza voltado s tradies e valores artsticos que no

    representam e no compreendem os valores agregados s expresses artsticas dos povos

    10

    Citao traduzida do original There is no question that Lvi-Strauss is an aesthete, with strongly discriminatory opinions. But what is important in his work is that he uses his aesthetic not for comparison with

    the aesthetics of other cultures, but as a perspective on other cultures. (Gow apud Ingold. 1993: 221) 11

    Sobre este tpico ver a obra Via das Mscaras de Lvi-Strauss. 12

    Antroplogo norte americano contemporneo ao tambm antroplogo Franz Boas.

  • 14

    amerndios sul-americanos. Cito a seguir dois trechos de um artigo de Kroeber sobre as artes

    da Amrica do Sul aos quais Gow faz referncia em seu artigo A geometria do corpo:

    Os nativos da Amrica do Sul no conseguiram atingir qualquer das artes

    realmente grandes da histria humana, embora diversos desenvolvimentos

    aproximem-se deste estgio. No h nada no continente que iguale os melhores

    produtos dos Maya.

    [...]

    Dentro da faixa do simplesmente meramente decorativo, e s vezes do

    simblico, as artes da Amrica do Sul frequentemente exibem originalidade e

    fantasia. So frgeis no acrescentar interesse e habilidade na representao, que

    levaria a produtos como os dos Maya ou dos egpcios e chineses nos quais a semelhana com a vida, uma aproximao s realidades da natureza, conseguida

    com a reteno da expresso decorativa quanto da religiosa. (KROEBER. 1987: 65.)

    O ponto de vista de Kroeber sobre uma possvel esttica amerndia privilegiava a

    comparao com a esttica ocidental. Os padres visuais indgenas foram julgados de acordo

    com as noes de beleza encontradas em sociedades ocidentais sem levar em considerao

    os sentidos dados pelos prprios nativos. Sobre o problema da esttica ocidental, Peter Gow

    diz:

    A esttica ocidental, ao mesmo tempo que se baseia em uma distino entre

    civilizao e povos no civilizados, gira em torno do significado, em termos de

    classe, dessas atividades. O trabalho dos operrios oposto ao no-trabalho da

    aristocracia ou da burguesia, e a insignificncia esttica daquele garante o potencial

    esttico deste ltimo. Pintura e escultura so artes puras, nas quais a tecnologia e a habilidade manual so subordinadas s emoes estticas. (GOW. 1999: 300.)

    A escolha pelo uso do termo esttica nessa pesquisa decorre da demanda de produes

    de grafismos em objetos e corpos presentes em inmeras sociedades amerndias e da

    necessidade de apresent-los no como artefatos etnogrficos, mas como elementos

    importantes na construo de uma noo de beleza elaborada pelas sociedades em questo.

    A esttica cabe aqui como uma opo analtica para apresentar as pinturas e grafismos

    amerndios, sobretudo, corporais, dentro de uma noo de belo e de um padro visual

    desenvolvidos de maneira local, especficos de cada povo. A partir da anlise feita por Gow

    do procedimento de Lvi-Strauss em A via das mscaras, tentarei aproximar uma ideia de

    esttica desarticulada de seus preceitos ocidentais, como uma perspectiva de estudo sobre

    culturas com outros valores e tradies

  • 15

    1. Noes de beleza

    Atravs dos estudos sobre os grafismos dos povos amerndios das terras baixas,

    podemos observar que, opondo-se a uma parte das belas artes ocidentais13

    , a arte indgena no

    se desenvolve em apenas uma esfera da sociedade, coexistindo com outras aes sociais. De

    modo geral, ela faz parte do cotidiano desses povos. capaz de gerar relaes sociais,

    movimentando e conectando informaes e conhecimentos entre os coletivos humanos. Alm

    disso, a circulao de imagens responsvel tambm, por viabilizar o contato entre os vivos e

    seus antepassados, seja em rituais de iniciao, ou em cerimnias de cura. O padro de beleza

    visualizado nas pinturas corporais e em todas as outras formas de arte amerndia ultrapassa o

    mbito da funcionalidade ou de uma possvel sistematizao de informaes para

    compreender como a recepo das imagens se estabelece para os prprios povos estudados.

    Veremos como exemplo de noo de beleza amerndia os estudos de Peter Gow sobre

    a sociedade piro14

    publicados em dois artigos15

    . Esses artigos apresentam de forma clara a

    importncia em se considerar a esttica a partir do ponto de vista local, proporcionando uma

    maior aproximao do valor das artes para o prprio povo abordado. Seu estudo sobre a

    sociedade piro analisa os tipos de grafismos que constroem sua esttica. Primeiramente, a

    relao entre beleza e os padres visuais nos esclarecida pelo autor atravs do termo piro

    yonchi. Yonchi significa padres e pode ser entendido como um termo relacionado

    diretamente a esttica piro. Para as coisas serem belas, elas necessariamente devem ser

    recobertas por yonchi. Para os piro yonchi so padres que apresentam grande contraste e

    complexidade interna, encontrados nas pinturas de vasos de cermica e no corpo, bem como

    nas peles de animais como a cobra sucuri, a ona pintada e alguns anfbios. Nesse caso, pode-

    se notar que a textura visual proporcionada por esses padres fundamental para que eles

    sejam considerados kigle, bonitos, o que nos permite afirmar que quanto maior a

    complexidade dessa textura, maior o seu valor esttico. Os animais e plantas que no

    apresentam padres em sua superfcie no so vistos como belos, mas tambm no so

    considerados mugle, feios, como a arara azul e a maioria dos vegetais. Ao contrrio disso,

    existem algumas caractersticas visuais que so relacionadas noo de feiura. Manchas de

    mofo, a forma do cadver em estado de putrefao e as manchas da pele do boto, exemplos

    dados pelo prprio autor, so vistas como feias e fazem parte do repertorio esttico piro.

    13

    Me refiro a parte das belas artes que produzida para e pelas altas classes sociais, sendo de pouco acesso s

    classes populares e aceita como pura por no haver contato com a indstria cultural. 14

    Povo da Amaznia peruana habitante do rio Urubamba e falante de lngua da famlia Arawak. 15

    GOW. 1999; Gow. 1999b.

  • 16

    Assim como em qualquer outra sociedade amerndia, a esttica piro no ser compreendida e

    devidamente analisada se for julgada de acordo com os preceitos da esttica ocidental. Ao

    contrrio disso, Peter Gow procurou evidenciar o que os prprios piro pensavam sobre beleza,

    buscando seus gostos para compreender o padro esttico encontrado na regio.

    1.1 Os padres visuais como forma de conhecimento

    Na sociedade piro os padres possuem quatro divises de acordo com sua origem.

    Existem os de espcies naturais, encontrados na pele ou superfcie de animais ou vegetais, os

    produzidos pelos seres humanos, como aqueles encontrados em vasos, os visualizados atravs

    da ingesto de alucingenos em rituais xamnicos e os padres encontrados nos rgos

    internos do corpo humano. Nota-se que mesmo havendo as divises entre eles, o valor

    esttico presente em todos os padres sendo maior ou menor de acordo com sua textura

    visual. Os padres produzidos pelos seres humanos, yineru yona, so realizados tambm por

    outros povos vizinhos, como os Shipibo-Conibo16

    , gerando um modelo esttico especfico da

    regio, um tipo de sistema visual17

    gerado pela ao social que pintar, pois para isso

    necessrio cumprir algumas especificaes exigidas pela sociedade; e gerando tambm uma

    ao social, que produzir o belo para a sociedade.

    A produo dos yineru yona entre os piro, tanto em cermicas quanto nas roupas ou no

    corpo uma atividade exclusiva das mulheres, no de todas, mas daquelas que apresentam as

    qualificaes necessrias para produzir os padres. Durante o aprendizado a mulher

    ensinada a produzir quatro tcnicas de yonata, pintar padres, essas tcnicas se diferenciam

    de acordo com a tinta utilizada e a superfcie em que aplicada. Para os piro, como evidencia

    Gow, a inteligncia fundamental para apontar quais mulheres so capazes de elaborar

    padres bonitos,18

    ela o elemento que potencializa o valor esttico do padro. Um bom

    padro decorre de uma boa tcnica adquirida pela inteligncia, gerando o acmulo de

    conhecimento ideal que a maioria das idosas possui. A inteligncia funciona como uma

    ferramenta capaz de transformar os padres em desenhos19

    apreciados por toda a sociedade

    16

    Povo da Amaznia peruana e falante de lngua da famlia pano. 17

    Me refiro sistema visual no sentido de conjunto de elementos visuais que possuem algum tipo de relao

    entre si, e no um sistema visual em que os elementos so necessariamente um signo. 18

    Entende-se por inteligncia, nesse caso, todo o processo de aprendizagem da mulher junto ao desenvolvimento

    de sua tcnica de produo de grafismos. Podemos entender que a inteligncia capaz de gerar o conhecimento

    das mulheres idosas, valorizado por todos os piro. Esse conhecimento reproduzido e transmitido a outros

    nativos atravs da beleza. 19

    Desenho, aqui, a composio de vrios padres aprendidos pela mulher anteriormente e interligados por

    linhas e espaos, no conotando, necessariamente a forma figurativa.

  • 17

    piro. A valorizao do desenho atribuda de acordo com a maneira como padres menores

    so interligados entre si, originando um desenho. De maneira criativa, os padres so

    alternados e complementados com linhas e espaos que estruturam um desenho maior, mas

    para que ele seja perfeito, a mulher deve saber visualiza-lo pronto em sua imaginao antes de

    reproduzi-lo em qualquer superfcie. A respeito disso, Peter Gow comenta:

    Aqui, inteligncia nshinikanchi. Devido a seu nshinikanchi, as mulheres idosas conquistam o gimatkalchi, o conhecimento a respeito dos padres, que lhes permite produzir beleza. A beleza o produto da boa arte manual, que produto de

    conhecimento, que produto da reflexo, que a definio piro de sua condio

    humana.

    (GOW. 1999: 307)

    Dentre as variadas maneiras em que se manifestam os padres, umas delas o

    geyonchi. Geyonchi, padro original, presente nos vasos sanguneos da placenta, a

    primeira viso do feto dentro da barriga de sua me. No nascimento do feto, ele ainda no

    considerado uma pessoa. Tal reconhecimento estabelecido a partir do momento em que o

    bebe se desliga da placenta, e, portanto, do geyonch, com o corte do cordo umbilical. A

    perda do padro original responsvel pela distino da pessoa piro de outros povos e pelo

    desenvolvimento do senso esttico encontrado entre esses nativos. Como o prprio Peter Gow

    diz: o corpo humano singular pelo fato de ter perdido o seu padro original, a placenta,

    como uma precondio para vir a ser humano aos olhos de outros seres humanos (GOW.

    1999: 310). A mulher, nesse sentido, passa pela perda do padro original pela segunda vez

    no momento de sua primeira menstruao, marcada pelo ritual de iniciao, kigimawlo. Nesse

    momento se inicia uma nova etapa na vida da menina, que passa a ser considerada como

    mulher por sua sociedade. Na vspera do ritual, a menina tem o corpo coberto por padres

    pintados pela av e apresentada no dia do ritual aos demais de sua aldeia para que todos

    apreciem a beleza dos padres feitos por uma mulher madura, na ltima etapa de sua vida

    social. Nesse ritual pode se obervar mais claramente como a pintura funciona como uma ao

    social, ela no feita apenas para a menina, figura principal da cerimnia, mas feita para

    que os outros admirem a beleza dos padres. Interessante notar que, a menina, ao perder

    novamente o padro original, pois j o havia perdido em seu nascimento, inicia sua vida de

    aprendizado em busca do conhecimento e do domnio sobre os padres. A perda de uma

    forma visual d incio a um ciclo social, a uma busca pela perfeio em se reproduzir outras

    formas visuais, os padres ensinados com a inteno de tornar evidente o belo.

  • 18

    Figura 1. Menina piro deixando recluso durante o seu ritual de iniciao.

    Fonte: Gow. 1999b.

    Outros padres so tambm valorizados pelos piro e fazem parte do repertrio de

    desenhos pintados sobre o corpo em ocasies especiais, mas mesmo existindo uma

    preferncia sobre determinados padres sua ausncia no implica em qualquer tipo de feiura.

    Ao contrrio, o no uso de pinturas corporais no cotidiano se d devido ao desligamento do

    feto com a placenta, padro original, da me e, portanto, seu reconhecimento como pessoa

    no momento de seu nascimento. Essa distino realizada no nascimento de qualquer pessoa

    faz com que os ornamentos corporais sejam reservados apenas a rituais e festas, pois a

    ausncia deles os caracteriza como humanos, como piros.

    1.2 As mulheres e a produo da beleza coletiva

    A produo dos padres em vasos e no corpo, designada yineru yona, padres de

    pessoas tarefa exclusiva da mulher, como comentado acima. Tais padres so feitos atravs

    de um processo de aprendizado em que uma mulher jovem apenas observa as formas que uma

    mulher mais velha desenha, visto que um desenho composto por vrios padres que se

    interligam por diferentes linhas. Esse processo funciona como uma espcie de interiorizao

  • 19

    dos desenhos vistos pela aprendiz para que posteriormente ela possa produzir outros padres

    em outra pessoa. O importante nessa etapa do aprendizado que a mulher no reproduza o

    mesmo desenho, mas que atravs da visualizao ela consiga elaborar outro desenho com as

    mesmas caractersticas no traado. Peter Gow comenta que para os piro no h memorizao,

    e sim uma absoro, uma interiorizao dos padres aprendidos, no sentido de que ao

    observ-los sua capacidade em produzi-los ampliada. Entretanto, nota-se que o processo de

    memorizao20

    faz parte de vrias aes sociais, como o aprendizado das canes e, nesse

    caso, o aprendizado dos padres. O processo de memorizao fica evidente quando nos

    lembramos de que os nomes dos padres servem como um dispositivo de memria que ao ser

    acionado, resgata a memria da imagem referente quele nome. Talvez, se no houvessem

    padres preestabelecidos e seus referenciais, se tais padres no fossem limitados, a memria

    no faria diferena na reproduo fsica desses padres. No entanto, sem a memria tais

    padres no seriam reprodutveis.

    O repertrio visual importante porque faz com que a mulher possa visualizar o

    padro que ir desenhar de maneira precisa, facilitando a finalizao do desenho sobre uma

    superfcie. Sendo assim, a forma de execuo de um nmero limitado e nomeado de padres

    infinita, ela depende do conhecimento, do repertrio visual absorvido por uma mulher ao

    longo de sua vida para ser realizada. Alm disso, a organizao dos padres e dos elementos

    que fazem a conexo como as linhas, pode transformar o desenho final em bonito ou feio, de

    acordo com a esttica piro. Tal habilidade pode gerar o reconhecimento da inteligncia da

    mulher pela sua sociedade, atribuindo a ela um tipo de status social, valorizado pelas

    mulheres que produzem os padres.

    1.3 Nomes de padres e referentes externos

    A origem dos padres herdada de mulher para mulher, proporcionando inmeras

    combinaes entre os desenhos. Cada modelo de padro humano possui seu nome em

    funo da semelhana visual com algumas partes de animais, por exemplo, sapnapatlgga,

    linha formiga-leo, gimnuga, linha-serpente, mgengklugojistsejga, linha da perna de r,

    entre outros. A associao dos padres com possveis referentes externos no clara. Ainda

    que os nomes dos padres se refiram as caractersticas fsicas de alguns animais Peter Gow

    afirma que a origem dos modelos no est relacionada aos animais, os nomes so atribudos

    20

    A memria como capacidade da espcie humana indissocivel da reproduo dos padres, pois estes ficam

    arquivados mentalmente pelas mulheres sem que haja um modelo fsico para ser copiado em qualquer superfcie.

  • 20

    aps a confeco dos padres. Alm disso, tais padres formam desenhos feitos

    especificamente para uma determinada superfcie, acentuando a beleza das cermicas, das

    roupas, ou mesmo do corpo humano com objetos que no condizem com seus nomes. Do

    mesmo modo, para os marubo21

    , os nomes dos padres no possuem tanta relevncia. A

    relao entre os padres e os referentes parece ser mais em funo da memria visual que de

    um possvel significado. A circulao de um estoque de nomes auxilia a memorizao do

    padro sem veicular algum significado, pois padro e referente so aproximados atravs da

    semelhana da forma. No toa que o antroplogo Pedro de Niemeyer Cesarino22

    , em um

    artigo sobre os marubo diz que

    Chamar um padro de shon shena, lagarta de samama, no quer dizer que ele seja uma tentativa de representao por observao de determinados

    aspectos de tais animais. Para o xamanismo, alis, mais importante cham-lo por

    sua categoria abrangente: yove kene, desenho esprito. [...]

    A categoria indica, ademais, que este padro importa sobretudo pelo que

    faz (transformar a pessoa em algum bom/belo/correto, roaka), e que no pelo que

    diz (o seu nome, lagarta de samama, que alis no parece ser relacionado a nenhum aspecto especfico do xamanismo marubo). (CESARINO. 2012: 106.

    Parnteses e aspas do autor.)

    Devemos levar em considerao que em sociedades ocidentais as artes visuais tendem

    a ser classificadas como figurativas ou abstratas. Essas divises so facilmente compreendias

    pelo expectador ocidental. J em sociedades amerndias, as formas visuais no seguem o

    mesmo tipo de classificao, como o exemplo do caso piro apresentado at agora. Grafismos

    e padres no so sinnimos de formas abstratas, tampouco os desenhos formados pelos

    padres so obrigatoriamente formas figurativas. Ambos so formas de expresso que podem

    ou no conter algum significado. Se, de fato, a questo do figurativo e abstrato fosse

    realmente relevante na cosmologia amerndia, os padres seriam classificados como tal e

    ainda seriam ressaltados seus significados icnicos. No entanto, apesar de vrias sociedades

    amerndias sul-americanas terem em seu vocabulrio algum termo que defina, por exemplo,

    yonchi, padres, yagluchi, fotografia, como no caso dos piro, no podemos afirmar que

    yonchi um desenho no figurativo e yagluch um desenho figurativo.

    A questo do nome no parece ser importante para os povos estudados. Os nomes

    existem porque sempre existiram e sempre foram atribudos aos padres. Mesmo que em

    21

    Povo de lngua Pano, habitante do Amazonas. 22

    Antroplogo que atuou como professor do departamento de histria da arte da Universidade federal de So

    Paulo durante o perodo de 2010 a 2013 e que me orientou na pesquisa de iniciao cientfica que deu origem a

    essa monografia.

  • 21

    algum momento na origem dos padres o nome tenha sido a representao de seu referente,

    no possvel afirmar qualquer tipo de relao entre o nome do padro e seu objetivo. O que

    devemos considerar que eles fazem parte do processo de transformao da pessoa e, por

    vezes, a torna completa23

    . Para tais povos o que relevante a informao transmitida pelo

    padro pessoa que o observa, como no caso dos shuar e achuar24

    . As pinturas faciais jivaro

    descritas por Anne-Christine Taylor (TAYLOR. 2003.) so um indcio de que a pessoa

    pintada esteve em contato com um arutam, espectro de um jivaro morto. Esse encontro

    proporciona ao jivaro uma viso capaz de torn-lo uma pessoa completa. A pessoa que

    recebeu a viso pinta sobre seu prprio rosto padres que informam aos outros sobre sua

    realizao como pessoa. Esses padres no exercem nenhum tipo de representao icnica,

    so intraduzveis para aqueles que os observa. Apenas so um vestgio de que algo aconteceu

    com a pessoa pintada, so um agente que permite ao outro identificar uma transformao.

    Pode-se afirmar ento, que os padres so indicadores de transformaes, as pessoas pintadas

    j se transformaram no outro ou esto passando pelo processo de transformao.

    De acordo com o observado, a produo dos padres parece ser realizada menos pelos

    seus significados referenciais e mais pelo contedo que a superfcie recobre. Voltando para os

    piro, no caso da cermica, os padres podem ser relacionados cerveja de mandioca e a

    alimentos preparados pelos nativos, considerando que alimentos no preparados no possuem

    padres em seu recipiente. A pintura corporal igualmente relacionada ao contedo da

    superfcie pintada, o interior do corpo. Devemos considerar ainda que no caso da pintura

    corporal, ela recobre a superfcie de um interior j coberto por padres e que so vistos apenas

    com a ingesto da ayahuasca. Para Peter Gow a pintura corporal tambm apresenta uma

    questo de amadurecimento da pessoa. Ao esmaecer da pintura no corpo ocorre o

    amadurecimento da pessoa, como no caso do ritual de iniciao feminino. O termo gitlika,

    esmaecer, tambm pode ser entendido como amadurecer. Alm disso, para o autor a

    pintura corporal :

    A mais radical das tcnicas, pois enfatiza que a pele/superfcie humana ,

    por sua vez, o continente de um contedo. Isso se liga obviamente ao primeiro padro, a placenta, na qual o feto esteve embrulhado dentro do tero, e que o beb perde para se tornar humano durante o ritual do nascimento. (GOW. 1999. p. 309.)

    23

    A transformao da pessoa no outro analisada e descrita por Eduardo Viveiros de Castro como

    Perspectivismo Amerndio. (Viveiros de Castro. 2007. pp. 345-400.) 24

    Subgrupos jivaro, habitantes da Amaznia pertencente ao sudeste do Equador e falante de lngua jivaro.

  • 22

    A noo de beleza piro formada por vrias particularidades fundamentais na

    compreenso das diferenas entre as expresses visuais ocidentais e as expresses visuais

    piro. A pintura corporal, anteriormente, uma expresso visual em funo do interior do

    corpo piro, tornando visvel para a condio humana o que normalmente no poderia ser

    visto. Por exemplo, a pele recoberta de padres lembra o que o feto enxerga enquanto ainda

    no humano dentro da placenta de sua me. O que ele v so os padres de seu prprio

    interior corporal (GOW. 1999. p.311.). A condio humana no permite que os piro vejam o

    mundo igualmente como o feto, mas ao ingerir a ayahuasca, a viso piro se transforma e passa

    a enxergar o que no era possvel anteriormente. A ayahuasca tem a capacidade de conduzir a

    pessoa em seu devir. Ela fica ao mesmo tempo no estmago e na parte externa do corpo, em

    forma de jiboia. O bebedor, ao se transformar em esprito, passa a enxergar a forma produzida

    intencionalmente pelos espritos, visto que estes no possuem aparncia esttica. Durante a

    transformao, o bebedor do alucingeno passa a ouvir as canes dos espritos e as

    transformam em padres visuais. Esse processo caracterstico do xamanismo e apresenta

    relaes significativas entre padres visuais e msica.

    Nota-se que a traduo das canes ouvidas durante a ingesto da ayahuasca pelos

    xams, se faz presente, sobretudo, entre os povos amerndios da Amaznia ocidental. Para os

    shipibo-conibo25

    , povo que compartilha do mesmo gosto pelos padres visuais com os Piro, a

    relao entre msica e padres expressivamente presente nos rituais xamansticos. Os

    processos de cura feitos exclusivamente pelos xams so fundamentalmente realizados

    atravs de canes espirituais e padres visuais. Angelika Gebhart-Sayer26

    descreve em um de

    seus artigos sobre os Shipibo-Conibo (GEBHART-SAYER. 1986) como acontece o processo

    de cura com a transformao da msica em padres. A msica cantada pelos espritos

    responsveis pela cura cantada pelo xam, que atravs de ritmos diferentes visualiza padres

    diferentes.

    A medida em que a cano serpenteia no ar, acontece uma segunda transformao, novamente visvel apenas para o xam e os espritos. A cano toma

    agora a forma de um motivo geomtrico (o desenho curativo resultado da minha cano), um yora quene, desenho corporal, que penetra no corpo do paciente e se instala permanentemente. (GEBHART-SAYER. 1986: 196. Traduo nossa. Aspas

    e parnteses da autora. ) 27

    25

    Povo que habita a Amaznia peruana e falante de lngua pano. 26

    Antroploga e professora da Universidade de Marburgo, na Alemanha. 27

    Citao traduzida do trecho original A medida que la cancin serpentea em el aire, tiene lugar una segunda transformacin, solo visible otra vez- para el chamn y ls espritus. La cancin toma ahora forma de um motivo geomtrico (el diseo curativo es resultado de mi cancin), um yora quene (diseo corporal) que penetra el cuerpo Del paciente y se instala permanentemete. (GEBHART-SAYER. 1986. p. 196.)

  • 23

    A esttica shipibo-conibo, mostra-se nesse caso, de extrema importncia para que a

    cura do paciente seja efetiva. A conexo dos padres visuais com a msica se apresenta como

    um sistema de informaes. Os padres so um indcio de que o xam se transformou em

    esprito e foi capaz de contatar outros espritos importantes no ritual de cura. Outra

    transformao observada durante o mesmo processo a do paciente, que somente com os

    padres fixados em seu corpo passa da condio de doente para a condio de saudvel.

    2. Mitos e origem dos padres

    A origem dos padres encontrados nas sociedades amerndias sul-americanas no

    possui uma nica fonte. Cada povo analisado aparenta ter caractersticas especficas

    apontadas como a origem dos padres. Outro ponto recorrente na cosmologia amerndia a

    presena de mitos que elucidam o incio do uso dos padres pelos seus nativos. Em grande

    parte dessas sociedades existem mitos que tratam da origem dos padres e da maneira como

    passaram a circular entre as esferas cosmolgicas. Podemos notar novamente que a anlise

    realizada por Lvi-Strauss em A via das mscaras cabe aqui como um meio para pensar os

    padres visuais no somente como ndices de transformao, mas tambm em relao aos

    mitos e as trocas de informao entre as esferas sociais.

    2.1 Problemas de interpretao

    Os mitos de origem podem indicar as origens dos padres e os sistemas de circulao

    de conhecimento entre as esferas cosmolgicas, expondo a importncia da relao com o

    outro. O exemplo a seguir elucida como os padres visuais foram visualizados pela primeira

    pelos asurini do Xingu28

    . Entretanto, atravs dos estudos de Regina Polo Miller, poderemos

    observar tambm que o mtodo de interpretao dos padres visuais utilizado pela autora

    segue conceitos ocidentais que no so relevantes para os asurini e que, portanto, no se

    aproximam da realidade em que os padres so produzidos.

    O mito do desenho dos asurini e descrito por Polo Mller29

    , apresenta a origem dos

    padres pelo contato com o sobrenatural. O mito conta que Anhyngavu, caador, ao caar um

    veado viu Anhynga kwasiat, o esprito do seu tio e achou muito belos os desenhos em seu

    corpo. Para copiar os padres da entidade, Anhyngavu passou a matar veados e a chamar

    28

    Povo que se autodenomina awaete, de lngua de famlia lingustica Tupi-Guarani e habitante do Par. 29

    POLO MLLER. 1993: 252.

  • 24

    Anhynga kwasiat. Enquanto a entidade, Anhynga kwasiat, lutava com o veado morto,

    Anhyngavu observou os desenhos de todas as partes de seu corpo e os copiou em flechas e

    arcos. No decorrer de sua vida, Anhyngavu ensinou os padres para outras pessoas, que

    ensinaram para seus filhos e estes, por sua vez, tambm ensinaram para seus filhos.

    O mito mostra que os padres so um conhecimento adquirido pela humanidade

    atravs do contado com o outro, o mundo sobrenatural que representado pelo esprito de um

    parente morto. O conhecimento transmitido de gerao para gerao, se tornando parte da

    vida social das pessoas. A autora analisa o mito o dividindo em duas partes, uma que se refere

    absoro do conhecimento sobrenatural pela humanidade e a outra que diz respeito

    transmisso de tal conhecimento pelas geraes humanas. No vou me ater a tal anlise, mas

    vale notar que o conhecimento referente aos padres absorvido pela humanidade atravs do

    roubo das imagens. O fato de Anhyngavu se esconder de Anhynga Kwasiat para copiar os

    padres mostra que no h nenhum tipo de consentimento da entidade para que seus padres

    sejam reproduzidos na Terra. Contudo, no h evidncias no mito de que a entidade tenha

    confrontado esse roubo, visto que a circulao de informaes entre o mundo terrestre e o

    sobrenatural uma ao constantemente presente na cosmologia asurini. Ao mesmo tempo

    em que a origem dos padres se d no mundo sobrenatural, esses padres tambm so

    utilizados em rituais xamansticos com o objetivo de proporcionar ao xam um contato com

    as entidades mitolgicas

    Regina Polo Mller prope uma anlise formal e semntica dos padres asurini, mas

    como vimos anteriormente, a atribuio de significados atravs de possveis referentes

    externos insustentvel. Ademais, sua anlise baseada em classificaes ocidentais de

    desenhos geomtricos, como o losango, que aproximam os padres em representaes

    abstratas. Um dos exemplos utilizados pela autora o padro tayngava. Devemos considerar

    que o nome tayngava tambm pode ser usado para se referir ao boneco do marak30

    . Sabendo

    disso, a autora buscou evidenciar um elemento mnimo do padro o relacionando a uma parte

    do boneco. O trao mnimo do padro de desenho tayngava pode ser considerado o

    brao/perna desta figura, como indicaram as mulheres asurin ao identific-lo. (POLO

    MLLER. 1993: 244.). Porm, ao definir que os traos so referentes ao boneco, a autora

    prope a leitura de apenas um recorte de um padro, quando ele deveria ser observado pelo

    30

    Marak um ritual xamanstico asurini que busca tratar das relaes entre os seres do cosmos que possuem a

    substncia vital ynga atravs de um boneco de taquarinhas e algodo chamado tayngava.

  • 25

    seu total. Os padres so malhas grficas31

    infinitas que recobrem as superfcies. Essas malhas

    feitas por padres podem ser vistas como uma extenso do corpo e dos objetos, pois recobrem

    a superfcie como todo. Outra problema observado em tal anlise a utilizao dos termos

    figurativo e abstrato. Tais termos so tratados para definir ou no padres como uma

    representao da figura humana. Essa abordagem tambm deve ser questionada, pois, atravs

    dos prprios exemplos encontrados nos estudos de Mller, podemos notar que as

    representaes humanas no so pensadas atravs das distines (esquemtico e figurativo)

    que fundam a noo de imagem no Ocidente. Em desenhos feitos pelos prprios asurini sobre

    o corpo humano, observados nas figuras 2 e 3, a autora afirma haver uma abstrao

    geomtrica do elemento mnimo do padro tayngava, o mesmo relacionado ao boneco

    tayngava. Vale evidenciar aqui, em primeiro lugar que, o elemento mnimo indicado por

    Mller associado forma antropomrfica do boneco, e portanto, tal elemento considerado

    uma representao do corpo humano. Em segundo lugar, a abstrao geomtrica pode no

    ser um conceito asurini. Ademais, afirmar que h uma transio do figurativo para o abstrato,

    ou do abstrato para o figurativo talvez no d conta do sistema visual asurin, que no parece

    se constituir a partir da referida dicotomia em ambos os desenhos.

    Figura 2. Desenho do corpo humano feito na folha de papel por Aju.

    Fonte: Polo Mller. 1993.

    31

    Me refiro a malhas grficas no sentido de os padres serem visualizados como uma rede no espao sem

    limites, capaz de recobrir variadas superfcies e conect-las atravs da esttica local.

  • 26

    Figura 3.Desenho do corpo humano feito na folha de papel por Avakar.

    Fonte:Polo Mller. 1993.

    Figura 4. Padro ipirajuak asurini.

    Fonte: Vidal.[org]. 1992: 235

  • 27

    2.2. O mito de Tuluper

    Ao que diz respeito s formas e a organizao, bem como ao local onde so aplicados

    os padres visuais, possvel perceber a presena de figuras semelhantes em vrios mitos,

    como por exemplo, a figura da anaconda, presente no mito de Tuluper dos wayana32

    , citado

    por Els Lagrou33

    em seu trabalho sobre arte indgena34

    . Esse mito relata que enquanto os

    wayana matavam a cobra-grande que os impedia de visitar seus parentes, os aparai, puderam

    admirar os desenhos em sua pele e depois imit-los em determinados objetos e em seu corpo.

    A visualizao dos dois lados de tuluper durante a luta permitiu aos aayana ter um grande

    repertrio de padres aplicados em objetos, como cestos e panelas. O Tuluper um animal

    de dupla identidade, a cobra-grande e a larva de borboleta, possuindo caractersticas que o

    define como feroz e predador, alm da aparncia colorida. Els Lagrou comenta que para os

    wayana, a beleza est relacionada ferocidade do animal, beleza e perigo andam juntos, para

    os wayana, e quanto mais monstruoso o ser mais este decorado e belo. (Lagrou. 2009. p.).

    A esttica wayana tambm envolve diferentes seres que habitam o cosmos. Entretanto, os

    ornamentos corporais so especficos do ser humano. justamente devido capacidade de

    modificar a sua aparncia (principalmente de acordo com as etapas de sua vida social) que o

    ser humano se diferencia dos outros seres na cosmologia wayana. Essa transformao

    temporria dos ornamentos corporais como expresso social chamada de anon pelos

    wayana, e significa tinta ou pintura. O anon, como explica Lucia Van Velthem35 em seu

    estudo sobre os wayana36

    , pode ser considerado um indicador da condio social dos corpos e

    objetos, expressando a ideia de mudana e as transies sociais durante sua vida.37

    As cores utilizadas nas pinturas variam entre tons de vermelho, branco, cinza e negro.

    Entretanto, as cores que predominam as pinturas so o vermelho e o negro por serem as mais

    presentes nos padres encontrados na Tuluper. Enquanto aos padres de maneira isolada, o

    termo utilizado mirikut e significa motivo, desenho, pinta. Os mirikut, so desenhos que

    representam aquilo que significam, ou seja, so formas visuais ou imagens que permitem o

    reconhecimento dos diversos elementos representados, sejam artefatos, vegetais, animais ou 32

    Povo de lngua Karib localizado entre a fronteira do Suriname, Guiana Francesa e Brasil. 33

    Professora doutra do departamento e antropologia da universidade Federal do Rio de Janeiro. 34

    LAGROU. 2009. 35

    Doutora em antropologia e pesquisadora da Subsecretaria de Coordenao das Unidades de Pesquisa (SCUP) 36

    VIDAL [org]. 2007. p. 56 37

    Devido complexidade e a relevncia, no desenvolverei nesse momento a questo sobre o corpo como

    agente social. Ela ser devidamente abordada em um captulo mais a frente sobre a construo do corpo e a

    importncia dos ornamentos corporais.

  • 28

    entes imaginrios (VIDAL [org]. 2007: 56). Entretanto, a esttica wayana no busca

    apresentar atravs dos padres formas figurativas ou realistas, mas sim evidenciar os detalhes

    ressaltando as caractersticas dos modelos usados. A representao do modelo original de

    Tuluper dividida em dois tipos diferentes. O primeiro representa por inteiro esse modelo no

    padro desenhado, j o segundo representa apenas a caracterstica principal do modelo. Esses

    estilos de representao indicam uma espcie de hierarquia entre os padres encontrados em

    tuluper que se dividem naqueles encontrados em seus flancos e aqueles observados em seu

    dorso e membros.

    Os mirikut podem ser analisados atravs de grupos que se diferenciam no s atravs

    do nvel tcnico e formal, mas tambm pelo objetivo especfico de cada um como a

    afirmao tnica ou, ento, para a apropriao de qualidades desejveis, a comunicao

    espiritual ou ainda para a reflexo cosmo-filosfica (VIDAL [org]. 2007. 58), totalizando

    quatro grupos. O maior desses grupos chamado de tuluper imirikut motivos da cobra-

    grande e abrange elementos da fauna e flora da regio. Essa categoria de padres consiste

    naqueles que referem-se ao mesmo tempo cobra-grande (a origem dos padres), a um

    elemento da terra que nomeia o padro, como algum animal ou planta, e seu epnimo

    sobrenatural. Lucia Van Velthem exemplifica essa questo com o padro meri,quatipuru38,

    que representa o roedor, um ser sobrenatural com caractersticas semelhantes e tambm se

    refere cobra-grande. Um nico padro compreende uma pluralidade de elementos da

    cosmologia wayana, sendo reproduzidos, sobretudo, em pinturas corporais realizadas para fins

    rituais.

    Alm da organizao e diviso dos grafismos pelos significados e suas

    representaes, o uso desses padres no se d de qualquer maneira. A permisso para tal uso

    explicada por outro mito chamado de O mito da lagarta Kurupak citado por Lucia Van

    Velthem:

    Havia um tempo em que Wayana no se pintava, certo dia, uma jovem ao

    se banhar viu boiando ngua vrios frutos de jenipapo recobertos de figuras. Ah! Para eu me pintar exclamou.

    Nessa mesma noite, um rapaz procurou-a na aldeia at a encontrar.

    Tornaram-se amantes, dormindo juntos noite aps noite. Entretanto, ao alvorecer, o

    jovem sempre desaparecia. Uma noite, contudo, o pai da moa rogou-lhe que

    permanecesse. E ele ficou. Quando clareou perceberam que seu corpo era

    inteiramente decorado com meandros negros. Como o acharam belo, pintou a todos,

    ensinando-lhes essa arte.

    Um dia o jenipapo terminou. O jovem desconhecido chamou a amante e

    foram a sua procura. Prximo ao jenipapo, pediu-lhe que o aguardasse, enquanto

    38

    Sciurus aestuans. Animal roedor.

  • 29

    colhia os frutos. Ela no obedeceu, foi v-lo subir na rvore. O que viu, entretanto,

    no foi o amante, mas uma lagarta, toda pintada com os mesmos motivos.

    Enfurecida, disse-lhe para nunca mais voltar a sua aldeia, pois seus irmos iriam

    mat-lo. Arrecadou os frutos que estavam cados no cho e regressou, sozinha. Foi

    assim.39

    O mito conta como os Wayana passaram a produzir seus corpos com a tinta de

    jenipapo e com os padres tradicionais. Alm disso, ele apresenta outros pontos fundamentais

    para as expresses amerndias, as distines entre natureza, cultura e sobrenatural. Como

    vimos at agora, a cosmologia amerndia no se resume ao ambiente terrestre e muito menos a

    espcie humana40

    conhecida no mundo ocidental. Grande parte dos seres do cosmos pode se

    relacionar e adotar o ponto de vista um do outro atravs de suas caractersticas humanas, se

    metamorfoseando no ouro, como veremos no prximo captulo. O que nos importa nesse

    momento que a transformao da pessoa impulsiona a circulao de imagens contribuindo

    na formao do repertrio visual wayana. Os padres, aqui, so formas estticas que circulam

    entre homens animais e entidades. Mais especificamente, as pinturas de Kurupak, como diz

    Van Velthem41

    so referentes a trs tipos de peles pintadas que fazem aluso ao jenipapo, no

    cultivado, mas conectado com a natureza, a dualidade do homem-lagarta como transformao

    sobrenatural e aos homens desejosos de ornamentos. atravs desse mito que a utilizao dos

    padres permitida e entendida no como uma apropriao de imagens, mas como uma

    concesso de uso, ou seja, os wayana no se assumem como donos dos padres, mas os

    utilizam livremente ainda que a autoria deles seja atribuda aos ip, os sobrenaturais. Desse

    modo, os padres so encarados como parte dos costumes wayana, e considerados

    fundamentais para a caracterizao e diferenciao do corpo e, portanto, dos humanos.

    Podemos notar que existe uma dinmica de circulao de informao que transcende o espao

    fsico da aldeia e a classificao entre humanos e no humanos. O transito de conhecimentos

    entre homens, animais e antepassados contribui para uma espcie de desenvolvimento de

    formas expressivas, ou de tecnologias usadas por quase todos os coletivos do cosmos. Essas

    tecnologias (ou conhecimento em forma de padres visuais) tambm evidenciam o corpo

    como espao de extrema distino humana e de interao entre os diversos usurios dos

    padres, proporcionando relaes sociais entre as esferas cosmolgicas.

    39

    O Mito da lagarta Kurupak. VIDAL [org] . 2007: 53. 40

    Homo Sapiens. 41

    VIDAL [org]. 2007.

  • 30

    Figura 5. Criana Wayana com pintura facial de jenipapo.

    Fonte: Vidal [org]. 1992: 55.

    2.3 Os padres Kusiwa

    A mesma origem dos padres em animais ou seres de outras camadas do cosmos

    tambm identificada na mitologia waipi42

    . Dominique T. Gallois43, autora do artigo Arte

    iconogrfica Waipi44, descreve algumas passagens da mitologia waipi que relatam a

    origem dos padres kusiwa. Esses padres so traduzidos por ela como formas geomtricas

    no figurativas produzidas, de modo geral, para fins decorativos. Contrariamente aos Kusiwa,

    os taanga, (termo genericamente traduzido por imagem), se referem s representaes

    figurativas, como a fotografia, e como os bonecos zoomorfos de palha ou madeira

    encontrados em rituais waipi e similares aos tayngava dos Asurini.

    Um dos mitos que relatam o surgimento dos padres elucida como foram aprendidos

    por um jovem durante a dana das sombras dos mortos. O rapaz, escondido no teto da casa em

    que danavam, arrancou a ponta do basto de dana de um morto e o levou para sua aldeia.

    No dia seguinte, as pessoas da aldeia puderam notar os motivos aprendidos pelo rapaz e

    passaram a us-los. Esse mito indica a expressiva importncia dos seres sobrenaturais e dos

    inimigos na produo dos padres, promovendo uma espcie de comunicao entre o mundo

    dos mortos e dos vivos. Alm disso, os kusiwa podem ser observados em diferentes aldeias da

    regio, cada qual com categorias especficas e influncia de padres de outros povos que

    42

    Os Waipi, de modo geral, se localizam na rea do Amapari, no Amap e nas regies fronteirias do Par com

    a Guiana Francesa. 43

    Professora Doutora do departamento de antropologia da Universidade de So Paulo. 44

    VIDAL. [org]. 2007

  • 31

    tiveram contato, como por exemplo os waipi do Oiapoque45

    , que apresentam padres com

    representaes estilizadas de animais (VIDAL [org]. 2007:211). A semelhana entre as

    noes de beleza pode ser notada entre os subgrupos waipi mas, ainda assim, alguns padres

    produzidos no so reconhecidos por todos, como o padro iane kusiwa, traduzido como

    nossos motivos. No caso dos waipi do Oiapoque, as representaes de animais no so

    reconhecidas como kusiwa por outras aldeias e recebem o nomes taanga.

    Quanto organizao dos padres, Dominique Gallois comenta no artigo acima que,

    apesar da catalogao durante sua pesquisa de, aproximadamente, 25 padres, apenas 6 destes

    eram utilizados com frequncia na pintura corporal, indicando algum tipo de mudana no

    padro esttico vivenciado naquele momento. Os padres mais utilizados recebem nomes

    genricos, como moj, cobra, pira ka we, espinha de peixe e pan pepokwer, borboleta.

    Dominique Gallois comenta que cada padro pode apresentar variaes em sua forma e

    disposio, recebendo um nome especfico que o diferencia dos outros. Por exemplo, o padro

    cobra serve para indicar padres referentes, de alguma maneira, a esse animal, e

    especificamente ele pode ser denominado anaconda, assim como espinha de peixe pode

    ser tambm espinha de peixe pacu. No caso do padro cobra, nota-se que na maioria das

    vezes esse padro chamado tambm como moju, anaconda, superior s demais espcies

    aquticas. Entretanto, como vimos acima, no possvel afirmar que os padres foram

    produzidos com base em algum referente externo, nem que os nomes desses padres tenham

    algum significado.

    A esttica waipi compreende uma infinidade de composies de padres de acordo

    com o repertrio visual do artista que os produz. Assim como em qualquer outra etnia, os

    waipi possuem especificaes para julgar suas pinturas como belas. O ideal que cada

    desenho ou corpo receba uma composio complexa e nica de padres decorativos, com

    traos firmes e sem manchas.

    A circulao dos padres notada aqui como instrumento para a decorao waipi.

    Apesar de haver uma captura de conhecimentos especficos, eles se desenvolvem entre os

    waipi de acordo com outras questes referentes ao tipo da tinta usada para pintar os padres

    e as restries de uso, quando houver. A pintura com jenipapo, um dos itens mais valorizados,

    feita somente para a decorao do corpo. Em grande parte das sociedades amerndias

    comum observarmos a mistura de carvo e jenipapo com a inteno de tornar as pinturas

    corporais mais ntidas. Porm, nota-se que os waipi no usam o carvo nas pinturas do

    45

    Rio localizado na Guiana Francesa.

  • 32

    corpo. Os padres feitos com jenipapo devem ser produzidos sobre uma camada homognea

    de urucum com gordura, preparo feito exclusivamente pelas mulheres. Essa camada contribui

    para que os padres fiquem contrastantes e definidos. Alm do jenipapo e do urucum, resinas

    feitas com urucum, leite de maaranduba e patchuli, uma resina cheirosa do Par, por

    exemplo, so usadas nas pinturas corporais para acrescentar cheiro a elas. A resina sipy,

    mistura do lquido retirado dos cascalhos dos igaraps com a gordura vegetal ou animal,

    reservada produo de padres kusiwa sobre o rosto.

    A ornamentao corporal uma prtica do cotidiano waipi, opondo-se s

    especificidades da pintura corporal piro que, como vimos acima, realizada somente em

    cerimnias e rituais. A produo do corpo com pinturas e outros elementos decorativos mais

    presente entre jovens solteiros de ambos os sexos e entre as crianas, que so pintadas

    frequentemente com os padres kusiwa por suas mes. Entretanto, os padres kusiwa no

    apresentam diferenas de acordo com a categoria social ou mesmo com os sexos. O que h

    uma preocupao com as partes do corpo em que so pintados os padres, as crianas tm o

    corpo todo pintado por no usarem nenhuma outra espcie de roupa, como o caso das

    mulheres que usam saia e por isso no pintam suas coxas. A principal diferena entre homens

    e mulheres na pintura corporal a tcnica utilizada e o acabamento, tornando as pinturas

    nicas de acordo com o padro de beleza local.

    Figura 6. Pintura corporal waipi.

    Fonte: Vidal [org]. 1992:219.

  • 33

    2.4 Padres kene e a rvore mgica

    O contato entre homens e outros humanos46

    da cosmologia amerndia constante nas

    narrativas sobre a origem dos padres e pode ser observado tambm em um dos mitos

    traduzidos por Pedro Cesarino no livro Quando a Terra deixou de falar. Rachando rvore,

    mito do povo marubo47

    , narra como uma rvore mgica abriga desenhos, cachorros e espigas

    de milhos. (CESARINO [org]. 2013. p. 29)

    Dentre tantas coisas que a rvore abriga esto os padres kene, termo traduzvel por

    padres. Esses padres so principalmente utilizados na ornamentao do corpo pelos

    marubo. Eles so uma espcie de tecnologia do conhecimento potencialmente reservada a

    cada coletivo do cosmos como maneira de pensar. Alm disso, os duplos existentes em cada

    pessoa so capazes de pensar atravs desses desenhos. Em outro estudo sobre os marubo,

    Cesarino comenta:

    A pessoa marubo no ser capaz de falar ou de pensar (e, por consequncia, de

    memorizar longas sries de cantos) sem que seu duplo tenha sido alterado ou

    magnificado por uma produo esttica caracterizada pelo porte de implementos

    rituais [...] (CESARINO. 2012. p. 86)

    possvel notar que a questo do duplo fundamental na construo da pessoa e de

    sua capacidade cognitiva, no somente para os marubo, mas tambm para outras sociedades

    amerndias. Nesse caso, o uso dos padres kene um instrumento de comunicao entre a

    pessoa e outros humanos do cosmos. Entretanto, no vou me ater a essa questo nesse

    momento, visto que terei a oportunidade de desenvolv-la no capitulo seguinte.

    Os padres (kene), encontrados na rvore mgica da mitologia marubo, so projetados

    em forma de desenho traado e apresentados pelos seus nomes. Assim, mulheres do Povo Sol,

    observam e aprendem os padres surgidos nos galhos. A seguir citarei um trecho da narrativa

    que indica o momento da visualizao dos padres:

    Enquanto isso

    Suas irms

    Num lado da rvore

    Desenho Cabea de sapo

    Desenho ali traado

    Elas aprendem

    Noutro lado da rvore

    Desenho Trana de Milho

    O desenho traado

    46

    Como vimos acima, humanos podem ser homens, animais e seres sobrenaturas. 47

    Povo habitante do Vale do Javari de lngua pano.

  • 34

    Elas aprendem

    Noutro lado da rvore

    Desenho Rabo de Macaco

    O desenho traado

    Elas aprendem

    Noutro lado da rvore

    Desenho Bacaba

    O desenho traado

    Elas aprendem

    Num galho da rvore

    Desenho Galho de rvore

    O desenho traado elas aprendem

    Desenho P de Pssaro

    Elas aprendem48

    Atravs do mito da rvore comentado acima, podemos notar que a origem dos padres

    a mesma que de alguns nomes pessoais, entre outros elementos. Atravs dos exemplos

    citados acima, podemos notar que esttica corporal amerndia dos povos das terras baixas sul-

    americanas intrnseca origem dos padres, sendo definida pelas caractersticas especficas

    de cada povo. A partir da elucidao sobre a importncia de tais questes dada acima, ser

    possvel compreender de maneira mais clara outros pontos importantes que contribuem para o

    desenvolvimento dos ornamentos corporais, como o xamanismo, a morte, a guerra, a noo de

    pessoa e corpo e o perspectivismo amerndio.

    3. Xamanismo e noo de pessoa

    Os padres visuais puderam ser observados at aqui atravs da noo de esttica local

    das sociedades analisadas e tambm pelos seus mitos de origem. A importncia da imagem

    gerada pelas pinturas corporais, perfuraes e outros tipos de marcaes corporais em

    sociedades amerndias revela a complexidade estrutural de tais sociedades e, sobretudo,

    apresenta uma noo de pessoa no comum na viso eurocntrica. No entrarei no mrito das

    teorias ocidentais sobre a noo de pessoa de autores como Marcel Mauss49

    , Clifford Geertz50

    e Louis Dumont51

    . Entretanto, importante salientar que a noo de pessoa para estes autores

    48

    CESARINO [org]. 2013:303. 49

    Socilogo e antroplogo nascido na Frana, que defende a noo de pessoa como categoria varivel a cultural

    local. 50

    Antroplogo norte-americano que estudava as formas simblicas (imagens e palavras) para chegar a uma noo

    de pessoa. 51

    Antroplogo francs que seguiu os ensinos de Mauss.

  • 35

    tende a categorias de pensamento nativas52 construdas de acordo com as especificidades

    culturais do local observado. Para abrir esse captulo usarei como referncia principal um

    estudo sobre a noo de pessoa e corpo em sociedades amerndias realizado por Viveiros de

    Castro53

    , Roberto da Matta54

    e Anthony Seeger55

    (1979). Esse estudo, alm de fazer referncia

    tradio de Mauss comentada acima, prope tratar da corporalidade como elemento

    fundamental na noo de pessoa e na estrutura social amerndia.

    Partindo para uma categoria do esprito humano de Mauss (2003: 269), notamos

    que a noo de pessoa em sociedades amerndias foge ao alcance de conceitos ocidentais para

    ser esclarecida, como o de indivduo56

    , que prope uma dualidade entre corpo e alma no

    existente na cosmologia amerndia. A pessoa, nesse caso, no se limita ao corpo fsico e no

    se resume a apenas uma identidade individual, podendo transitar entre as esferas

    cosmolgicas, impulsionando a circulao do conhecimento. O corpo, por sua vez, tambm

    no se limita ao corpo fsico, este apenas serve como um abrigo para todos os seres e corpos

    que totalizam a pessoa, por isso possvel notar que em vrias sociedades amerndias corpos

    invisveis habitam corpos fsicos. Ademais, a aparncia de um esprito, por exemplo,

    encarada por ele como um corpo. Isso significa que o ponto de vista de uma pessoa pode

    identificar uma forma visvel como um corpo. O corpo exterior, visvel para os humanos,

    local da produo esttica individual e coletiva, ele ajuda a definir a pessoa, alm dos nomes e

    das identidades cerimoniais, fundamental para a noo de pessoa.57

    A noo de pessoa para essas sociedades, antes de tudo, acontece no momento em que

    a distino entre humanos e no humanos feita. Retomando a ideia do perspectivismo

    amerndio apresentada anteriormente, a distino entre o que potencialmente uma pessoa

    prossegue junto ao multinaturalismo, que permite a vrias criaturas, como homens, animais e

    espritos, adotarem o ponto de vista humano. A partir disso, a definio de pessoa se torna

    mais complexa de acordo com o ponto de vista adotado por algum, sua perspectiva. Essa

    questo ficar mais clara na medida em que o xamanismo for mais bem desenvolvido a

    seguir.

    Quando nasce uma criana em sociedades ocidentais, imediatamente a identificamos

    como uma pessoa, um indivduo que, ao longo de sua vida, desenvolver diferentes papeis 52

    1979:5 53

    Doutor em antropologia e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro. 54

    Antroplogo e professor da Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro. 55

    Antroplogo norte-americano e professor da Universidade da Califrnia. 56

    O conceito moderno de Indivduo implica que sob os papis sociais de uma pessoa, existe algo que

    individual e intransmutvel, o prprio indivduo. A tradio de Durkheim prope uma dualidade entre corpo e

    alma como parte do indivduo. 57

    (1979: 4)

  • 36

    sociais. No caso amerndio, a pessoa reconhecida conforme seu desenvolvimento individual

    se relaciona com a sociedade, como a puberdade, que se torna uma ao do coletivo atravs

    dos rituais de iniciao. Por exemplo, quando uma menina piro inicia seu primeiro ciclo

    menstrual (visto no primeiro captulo) h um processo coletivo de rituais e produo do corpo

    que contribui para que o ideal feminino e de pessoa, se realize por completo. Desse modo, o

    corpo da menina coberto por pinturas feitas pela av que marcam a transformao da pessoa

    e contribuem para um tipo de embelezamento social, pois o corpo exposto para que todos

    possam apreci-lo.

    A corporalidade em sociedades amerndias aparece nas etnografias como prioridade na

    construo da pessoa. a partir do corpo fsico que ocorrem as transformaes necessrias

    para que o devir58

    pessoa possa ser completo. Por essa tica possvel notar que o corpo

    um local em que sociedade e pessoa se relacionam, gerando uma srie de ornamentos e

    pinturas corporais que informam as transformaes promovidas por essas relaes. Como diz

    Viveiros de Castro, Roberto da Matta e Anthony Seeger :

    Ele o elemento pelo qual se pode criar a ideologia central, abrangente,

    capaz de, nas sociedades tribais Sul Americanas, totalizar uma viso particular do

    cosmos, em condies histrico-sociais especficas, onde se pode valorizar o

    homem, valorizar a pessoa, sem reificar nenhum grupo corporado (como os cls ou

    linhagens) o que acarretaria a constituio de uma formao social radicalmente

    diversa. (1979: 13)

    Podemos entender o corpo fsico como um espao de transformaes em potencial.

    Essas transformaes permitem aos seres a troca de tecnologia e conhecimento que circulam

    em um mesmo universo cultural. Primeiramente, devemos levar em considerao que

    natureza e cultura so entendidas pelas sociedades amerndias atravs de outra tica. No

    mundo ocidental temos a natureza como algo comum a todos os homens. A humanidade59

    algo peculiar ao homem e no se estende aos animais. Por outro lado, o que diferencia os

    homens uns dos outros a sua cultura. Seus hbitos, suas formas de expresso e seu ponto de

    vista sobre o mundo so especficos de cada ser. Essa caracterstica torna os homens

    ocidentais multiculturalistas. Em sociedades amerndias possvel notar que o aspecto que

    diferencia as pessoas o multinaturalismo60. A humanidade caracterstica de quase todos

    os seres da sociedade, at mesmo seres sobrenaturais como entidades mitolgicas, pois

    apresentam o mesmo ponto de vista. Isso significa que animais, homens e espritos so

    58

    Vir a ser, transformar-se em outro. 59

    Qualidade referente aos seres que os coloca como agentes sociais. 60

    Sobre o tpico ver Viveiros de Castro. 2002: 377.

  • 37

    considerados pessoas porque enxergam o mundo como tal, ou seja, todos potencialmente

    humanos porque so agentes sociais que apresentam os mesmos hbitos. Se todos so vistos

    como pessoa o que os torna diferentes uns dos outros sua natureza, seu corpo e, portanto,

    podem ser considerados multinaturalistas. Assim, Viveiros de Castro diz:

    Se a lua, as cobras e as onas veem os humanos como antas ou porcos

    selvagens, porque, como ns, elas comem antas e porcos selvagens, comida

    prpria de gente. S poderia ser assim, pois, sendo gente em seu prprio

    departamento, os no-humanos veem as coisas como a gente v. Mas as coisas que eles veem so outras: o que para ns sangue, para o jaguar cauim; o que para as

    almas dos mortos um cadver podre, para ns mandioca pubando; o que vemos

    como um barreiro lamacento, para as antas uma grande casa cerimonial... (2002:

    379. Itlico do autor.)

    O corpo um marcador de diferena porque faz com que as espcies enxerguem

    coisas diferentes da mesma maneira. A pessoa depende do corpo para adotar um ponto de

    vista e se relacionar com outras pessoas.

    3.1 Corporalidade social entre os Kayap

    A noo de pessoa em sociedades amerndias sul-americanas pode ser observada

    atravs dos variados tipos de produo do corpo. O valor como pessoa consiste em uma

    pluralidade de nveis que vo alm da esfera terrestre, agregando seres invisveis ao olhar

    humano e fazendo do corpo um espao coletivo. Entender como o corpo age dentro de sua

    sociedade e, mais alm, entender a importncia de seus ornamentos e pinturas equivalente a

    entender os vrios seres capazes de transformar algum em uma pessoa completa, madura.

    Ademais, os padres pintados no corpo podem ser visualizados atravs de uma malha grfica

    espacial. Essa malha grfica pode preencher todas as superfcies de um corpo com os padres,

    o que nos permite entender que um corpo no somente um corpo biolgico, mas pode ser

    tambm uma vasilha de cermica.

    Em sociedades Kayap61

    podemos observar que a corporalidade est presente em

    diversas situaes sociais. O artigo Social body and embodied subject: bodiliness,

    subjectivity, and sociality among the Kayap do autor Terence Turner (1995), apesar de

    apresentar os padres e ornamentos corporais como um sistema simblico, elucida a

    importncia do corpo e sua produo esttica na noo de pessoa amerndia. A interpretao

    dos padres visuais apresentada por Turner tende a evidenciar as imagens produzidas no

    61

    Povo falante de lngua J habitante da regio entre Mato Grosso e Par.

  • 38

    corpo como smbolos relacionados a um referente externo e a algum significado. Ainda assim,

    um sistema simblico no o suficiente para compreender a complexidade e diversidade de

    situaes em que os padres so realizados. Novamente necessrio reforar a ideia de que,

    em muitos casos, no possvel afirmar que tais padres compem um sistema de leitura. Em

    muitas vezes eles no so percebidos pelas sociedades amerndias dessa maneira, sendo antes

    de qualquer smbolo e significado um ndice de transformao da pessoa. Por outro lado,

    Turner exemplifica, atravs dos Kayap, o valor do corpo em sociedades amerndias.

    O corpo para os Kayap, e igualmente para outras sociedades amerndias da Amrica

    do Sul, um elemento importante na noo de pessoa. Primeiramente, os cuidados com a

    parte fsica da pessoa, como banhos dirios e a remoo de pelos, so fundamentais para o seu

    padro de beleza e para a manuteno da sade, no somente de forma individual, mas

    tambm social. As doenas do corpo fazem parte de um problema de integrao social do

    doente. Assim como em outras sociedades amerndias, as doenas so efeitos corporais

    causados ou por um acidente, como picadas de cobra, ou por algum feitio jogado por

    algum, provavelmente um xam. Ao desejar algo ruim para algum esse sentimento

    depositado no corpo, causando a doena. O xam, por sua vez, uma figura importante para o

    desenvolvimento de curas e processos de transformao. Cada sociedade defini de maneiras

    diferentes os seus xams, que so sempre do sexo masculino. Ele responsvel pela cura da

    pessoa e, portanto, pelo fim do feitio jogado nela. Outra caracterstica essencial do xam o

    seu multinaturalismo. Ele aquele capaz de adotar pontos de vista diferentes e caminhar entre

    as diferentes esferas cosmolgicas, ou, como Viveiros de Castro diz, apenas os xams,

    pessoas multinaturais por definio e ofcio, so capazes de transitar entre as perspectivas,

    tuteando e sendo tuteados pelas subjetividades extra-humanas sem perder a prpria condio

    de sujeito. (2002: 395) Atravs de rituais xamansticos, o xam capaz de entrar em contato

    com espritos e iniciar o processo de cura, mantendo uma ligao direta com o corpo do

    doente, que, junto ao, ou, aos duplos62

    , tambm o foco da cura. Sobre isso Terence Turner

    diz:

    A presena da sujeira (natural e, particularmente animal) sobre a superfcie do

    corpo social, representa para os kayap, a ruptura das relaes sociais atravs de

    elementos e foras anti-sociais. A limpeza, definida pela remoo de toda a

    excrescncia natural a partir da superfcie do corpo, , assim, o primeiro passo

    essencial na socializao entre o mbito pessoal e a sociedade, incorporada em

    termos concretos pela pele. Nesse, assim como em outros contextos de

    ornamentao corporal, a pele e os cabelos, que constituem o limite fsico do corpo,

    62

    Os duplos so entidades que habitam o corpo fsico de algum e que fazem parte da pessoa. Diferentemente do

    que ocidentalmente chamamos de alma, os duplos podem variar em sua quantidade, autonomia e destino aps a

    morte de acordo com a sociedade analisada. O conceito de duplo, antes disso, foi utilizado pelo helenista francs

    J. P. Vernant , nascido em 1914 e falecido em 2007.

  • 39

    so apropriados como um ndice simblico da fronteira entre o ator individual,

    culturalmente formado como sujeito, e o objeto do mundo externo. A pele fsica do

    corpo se torna uma pele social de signos e significados que vinculam e representam

    a auto-socializao atravs da mediao das relaes sociais com o mundo.

    (TURNER. 1995: 149. Parnteses do autor. Traduo nossa) 63

    A limpeza, como descrita pelo autor, o primeiro momento em que notamos o corpo

    como espao de relao entre a pessoa e a sociedade. O corpo sujo gera o isolamento da

    pessoa, que abriga na pele elementos prejudiciais a sade e ao seu comportamento social.

    Ainda que o autor ressalte a ideia de signos e smbolos marcados na pele, novamente,

    podemos lembrar que, os padres visuais, sejam eles pintados, tatuados ou marcados com

    escarificaes, no necessariamente carregam consigo significados, mas representam um

    momento de mudana, que, nesse caso, pode ser exemplificada pela limpeza do corpo e a

    integrao social proporcionada por ela. As transformaes, ento, so comunicadas aos

    outros atravs da imagem que funciona como um ativador da memria. A produo do corpo

    pode ser observada como um ndice entre os kayap desde a infncia at a velhice atravs dos

    cortes de cabelos, pinturas corporais e outros ornamentos, tendo em vista o reconhecimento

    social como uma pessoa kayap. Turner comenta, entre outras coisas que, as crianas,

    pintadas por suas mes, apresentam o mesmo tipo de pintura em ambos os sexos. (1995: 151)

    Essas pinturas so realizadas at o perodo de desmame dos meninos. J as meninas podem

    ser observadas ocasionalmente com o mesmo padro de pintura. Na infncia, as pinturas

    usadas no tm nomes, mas marcam a etapa de socializao da criana e a formao de sua

    identidade, ressaltando assim, a valorizao das pinturas como algo relacionado s constantes

    transformaes ocorridas ao longo da vida e que completam a pessoa. Obviamente, sem o

    corpo fsico no h uma pessoa, mas, o que se destaca a sua potencialidade como mediador

    entre a identidade pessoal e sua interao e integrao social, pois, a relao entre duas etapas

    distintas de vida representadas pela criana e pelo adulto proporcionada pela ao de pintar.

    Outro tipo de relao entre o corpo e a sociedade pode ser observado ainda no artigo

    de Turner. As cores usadas nas pinturas corporais, o vermelho e o preto, apresentam uma

    63 Citao traduzida do trecho: The encroachment of dirt (natural, and particularly animal) on the surface of the social body represents, for the Kayapo, the disruption of social relations by asocial elements and forces.

    Cleanliness, defined as the removal of all natural excrescence from the surface of the body, is thus the essential

    first step in socializing the interface between self and society, embodied in concrete terms by the skin. In this as

    in other contexts of bodily adornment, the skin and hair that constitute the physical boundary of the body is

    appropriated as a symbolic index of the boundary between the individual actor as culturally formed subject and

    the external object world. The physical skin of the body becomes a social skin of signs and meanings that bound

    and represent the socialized self by mediating its relations to the ambient social world. (TURNER. 1995: 149)

  • 40

    relao entre a espacialidade da aldeia e as partes do corpo. A cor vermelha, kamrek, obtida

    da semente de urucum e usada nas extremidades do corpo, como mos ps e olhos, estabelece

    um dilogo com a periferia da aldeia64

    . Se no corpo a tinta vermelha responsvel pelo

    isolamento do interior contra energias e fluidos exteriores, na aldeia, a casa do centro do

    cr