corrupção: causas, consequências e soluções

13
A corrupção: causas, conseqüências e soluções para o problema* Zani Andrade Brei * * Sumário: I. Introdução: 2. Perspecti\"as na explicação das causas. conseqüências e fun- ções da corrupção: 3. Soluções para o problema. Palanas-chave: corrupção: corrupção e moralidade na administração pública: corrup- ção política e corrupção administrati \a: ética e administração. Este artigo analisa as principais \"ertentes de pensamento existentes para o estudo e a explicação da, causas. comeqüências e funções da corrupção. São identificadas pro- postas de ,olução para o problema. dentro da di\"ersidade de enfoques analíticos. e apontados alguns aspecto, de interesse para in\"estigações futuras. Corruption: causes, conseQuences, and solutions This pape r analyses se\'eral approaches to the study of the causes. consequences and role of corruption for society. There are at least three approaches to the subject. The first relates corruption with characteristics of the social system. considering it a byproduct of the process of modemization and a de\"elopment inducer. The second looks at both sides of corruption: since the go\"emment is seen as an important pro\"ider of good, and ,enices. authority. and power. corruption would be a \\ ay to O\'ercome bureaucratic bottlenecks and to speed up decision making: at the same time. corruption is considered a generator of social inequality. injustice. and distrust. undermining the political system. The third approach is a strong reaction against the first one. and \\'orrie, about the caw,es - which can be social and individual. as well a, institutional - and possible means of sohing the problem. The paper ends by proposing a few topics for future study. 1. Introdução Por ser corrupção um fenômeno complexo. é util para sua investigação veri- ficar. antes de mais nada. as vertentes de pensamento desenvolvidas para o es- tudo do problema. através de uma análise mais detida das várias posições exis- tentes. As abordagens para análise da questão são diferenciadas no tocante às cau- sas. conseqüências e funções da corrupção no contexto das sociedades. assim como às propostas de solução para o problema. A síntese será di\idida em duas partes. A primeira tratará das explicações da- das às origens do fenômeno da corrupção e seus efeitos. A segunda abordará as * Artigo recebido em jun. 1995 e aceito em fe\". 1996 . . ,* em p,icologia social. e,peciali,ta em educação e administração pública. ex-profes,ora da e da UCMG. e técnica da Embrapa. RAP RIO DE J.\:\EIRO '111'1]11,·]0;. \1.-\IOIJL\. ]'!%

Upload: edmar-roberto-prandini

Post on 11-Nov-2015

61 views

Category:

Documents


1 download

DESCRIPTION

Corrupção: Causas, Consequências e Soluções

TRANSCRIPT

  • A corrupo: causas, conseqncias e solues para o problema* Zani Andrade Brei * *

    Sumrio: I. Introduo: 2. Perspecti\"as na explicao das causas. conseqncias e fun-es da corrupo: 3. Solues para o problema. Palanas-chave: corrupo: corrupo e moralidade na administrao pblica: corrup-o poltica e corrupo administrati \a: tica e administrao.

    Este artigo analisa as principais \"ertentes de pensamento existentes para o estudo e a explicao da, causas. comeqncias e funes da corrupo. So identificadas pro-postas de ,oluo para o problema. dentro da di\"ersidade de enfoques analticos. e apontados alguns aspecto, de interesse para in\"estigaes futuras.

    Corruption: causes, conseQuences, and solutions This pape r analyses se\'eral approaches to the study of the causes. consequences and role of corruption for society. There are at least three approaches to the subject. The first relates corruption with characteristics of the social system. considering it a byproduct of the process of modemization and a de\"elopment inducer. The second looks at both sides of corruption: since the go\"emment is seen as an important pro\"ider of good, and ,enices. authority. and power. corruption would be a \\ ay to O\'ercome bureaucratic bottlenecks and to speed up decision making: at the same time. corruption is considered a generator of social inequality. injustice. and distrust. undermining the political system. The third approach is a strong reaction against the first one. and \\'orrie, about the caw,es - which can be social and individual. as well a, institutional - and possible means of sohing the problem. The paper ends by proposing a few topics for future study.

    1. Introduo

    Por ser corrupo um fenmeno complexo. util para sua investigao veri-ficar. antes de mais nada. as vertentes de pensamento j desenvolvidas para o es-tudo do problema. atravs de uma anlise mais detida das vrias posies exis-tentes.

    As abordagens para anlise da questo so diferenciadas no tocante s cau-sas. conseqncias e funes da corrupo no contexto das sociedades. assim como s propostas de soluo para o problema.

    A sntese ser di\idida em duas partes. A primeira tratar das explicaes da-das s origens do fenmeno da corrupo e seus efeitos. A segunda abordar as

    * Artigo recebido em jun. 1995 e aceito em fe\". 1996 . . ,* ~Iestre em p,icologia social. e,peciali,ta em educao e administrao pblica. ex-profes,ora da CF~IG e da UCMG. e tcnica da Embrapa.

    RAP RIO DE J.\:\EIRO '111'1]11,]0;. \1.-\IOIJL\. ]'!%

  • propostas para soluo do problema. acrescentando. ao final. breves concluses a respeito.

    2. Perspectivas na explicao das causas, conseqncias e funes da corrupo

    Johnston (1982) apresenta trs perspectivas para explicar a corrupo:

    a) as explanaes personalsticas. pelas quais a corrupo vista como "ms aes de gente ruim". como vinda do povo. da fragilidade da natureza humana. Seu foco est na investigao psicolgica ou na ganncia e racionalizao huma-nas como causas:

    b) as explanaes institucionais. para as quais a corrupo decorre de problemas de administrao. que podem ser de. pelo menos. dois tipos. o decorrente de est-mulo exercido por lderes corruptos. que levam a corrupo a se reproduzir intra e interinstitucionalmente. e o advindo dos "gargalos" criados por leis e regula-mentos que trazem rigidez burocracia: e

    c) as explanaes sistmicas. para as quais a corrupo emerge da interao do governo com o pblico. constituindo parte integrante do sistema poltico. como uma entre as vrias formas de influncia.

    Tais tipos de explanaes se alternam. dependendo da percepo nica de cada observador. Numa viso histrica. contudo. o que se verifica a emergn-cia. a partir da dcada de 50. de volume significativo de produes. sobretudo nos EU A, estudando a questo. .

    Podem-se distinguir trs abordagens acadmicas do problema. A primeira a dos autores que analisam a corrupo associando-a s caractersticas do sistema social. percebendo-a como preenchedora de funes positivas. principalmente em relao integrao social e ao desenvolvimento poltico: a viso funciona-lista. mais preocupada com os efeitos e o papel da corrupo do que com suas causas e solues. Uma segunda abordagem inclui os autores que realam tanto os aspectos positivos quanto os negativos do fenmeno. E uma terceira. que criti-ca. sobremaneira. a viso funcionalista, destaca os efeitos negativos da corrupo sobre a sociedade. preocupando-se mais com a anlise das causas do problema e com sua minimizao.

    Um dos estudiosos que mais influenciaram os dois primeiros grupos de pes-quisadores foi Merton (1957). ao tentar estabelecer as bases e a estrutura do tipo de teoria social chamada anlise funcional. utilizada nos campos da sociologia. psicologia social e antropologia social para estudo da conduta dos homens em sociedade.

    10-1 RAP 3/96

  • A anlise funcional releva o papel da estrutura social como produtora de mo-tivaes novas e fonte estrutural da conduta divergente. O ponto de vista funcio-naI se ope ao individualista, ao afirmar que condutas divergentes no so devi-das a diferentes propores de personalidades patolgicas nos grupos, mas resul-tantes de presses da prpria estrutura social e cultural. Essas presses so parte intrnseca da dinmica e da mudana social. Por exemplo, as deficincias funcio-nais da estrutura oficial geram outra estrutura (no-oficial) para satisfazer de ma-neira eficaz necessidades existentes.

    A viso funcionalista afinna no serem sempre ruins e importantes os resul-tados da corrupo. Eles so, muitas vezes, positivos, pois o prprio interesse p-blico pode requerer algumas dessas prticas.

    A corrupo vista como subproduto da modernizao e. at, como estmulo ao processo de desenvolvimento. Ela passa a ser um meio alternativo que cria de-mandas sobre o sistema e pennite que indivduos e grupos margem do sistema possam com ele se relacionar e realmente dele participar.

    Considera-se que as reaes emocionais e as noes populares prejudicam a anlise mais racional do fenmeno. Em algumas sociedades em fase de transio, detenninadas prticas, como nepotismo, espoliao e suborno, podem mesmo contribuir para certos aspectos do desenvolvimento poltico, em tennos de unifi-cao e estabilidade. participao da populao nos negcios pblicos e desen-volvimento de partidos polticos viveis. Tais prticas no constituem danos irre-parveis, podendo ser amplamente boas e aceitveis, desempenhando funes importantes para uma sociedade em dado momento histrico. A corrupo pode, assim. ser vista mais como canal nonnal de atividade poltica do que como caso patolgico ou desviante que requeira punio: parte regular e integral da opera-o da maioria dos sistemas polticos.

    Em pases subdesenvolvidos. o governo pode estar em mos de uma elite tra-dicional ou de intelectuais interessados em outros objetivos. ambos tomando a burocracia hostil, super-reguladora e indiferente ao investimento e inovao. A corrupo vem, no caso, atender s presses por eficincia da burocracia, funcio-nando como mecanismo regulador do mercado e emoliente nos conflitos.

    A corrupo , pois, vista como uma disfuno funcional, muitas vezes tni-ca, no txica, para o desenvolvimento poltico e o crescimento econmico. in-separvel do processo de modernizao, que lhe cria oportunidades por introduzir novos valores, aumentar a movimentao de recursos no mercado e criar novos centros de poder, incentivos e oportunidades. Sob esse prisma. desenvolvimento poltico e corrupo se articulam num equilbrio mvel. reduzindo-se a corrupo no declnio do intenso processo de transio acarretado pelo processo moderniza-dor: avanando a democracia, o problema se toma relativamente raro, no exigin-do solues especficas.

    Comungam desses pontos de vista. em nveis diferenciados, Wertheim (1963), Leys (1965). Huntington (1970), Abueva (1970), Leff (1970), Tilman (1970), Klaveren (1970), Lippman (1970), McMuIlan (1970) e Scott (1972).

    CORRCPAo CALSAS. CO,,"SEQLbcIAS E SOLLES 105

  • Uma segunda abordagem do problema reala-lhe tanto os aspectos funcio-nais quanto os disfuncionais. Exemplificam-na Bayley (1970). Nye (1967). Me-dard ( 1986) e Johnston ( 1986).

    Por essa perspectiva. o governo representa um grande poder: importante fonte de bens e servios. recursos. decises e autoridade. Por isso. muitos indiv-duos e grupos disputam seus benefcios. podendo a burocracia impor "gargalos" como barreiras aos que demandam servios e recompensas. estimulando aes corruptas. Estas surgem como forma de tomar as decises mais geis ou favor-\eis. Da a afirmao de que. em alguns casos. as ms condutas so insignifican-tes ou at mesmo benficas. Numa viso extrema. a corrupo vista at como forma de melhorar a qualidade do funcionalismo pela suplementao salarial. que retm os mais capazes em face das foras cooptativas do mercado externo.

    Porm. se por um lado a corrupo pode solucionar muitos dos problemas re-lacionados ao desenvolvimento. isso depende da dimenso desses problemas e das alternativas existentes. A questo pesar custos e benefcios. Toma-se im-posswl. por essa abordagem. uma resposta geral questo das causas e conse-qncias da corrupo. Ela pode ser funcional numa perspectiva. mas disfuncio-nal em outra.

    o problema no diz respeito unicamente aos pases subdesenvolvidos. No existe monoplio americano ou europeu da moral. As causas que so diferentes e. portanto. so tambm provavelmente diferentes os efeitos em pases desenvol-\'idos e subdesenvohidos.

    Nos ltimos. constata-se muitas vezes a ausncia de um forte sentido de na-cionalidade. grande desigualdade na distribuio da renda. o acesso riqueza fei-to principalmente por meio de cargos polticos e a baixa legitimidade das institui-es de governo. Da os custos de atos corruptos se manifestarem por certo nvel de decomposio do Estado e da sociedade civil. pela instabilidade gerada pela maior destruio da legitimidade das estruturas polticas. pelo desperdcio de re-cursos em decorrncia da e\aso de riquezas para outros pases. e at mesmo pela alienao de bons servidores civis. reduo de seus esforos ou sua retirada do pas.

    A corrupo. portanto. tambm mina o sistema poltico e a confiana. Pode transformar-se numa forma regressiva de intluncia. servindo aos que tm a ex-pensas dos que no tm. ampliando e fortalecendo injustias e desigualdades so-ciais. Por ela. importantes reformas podem ser retardadas. atenuadas ou de todo evitadas.

    A terceira e ltima abordagem acadmica do problema se apresenta como uma forte reao ao "oportunismo" e racionalizao da abordagem funcionalis-ta. preocupando-se mais com as causas e posswis modos de reduo do proble-ma. Os defensores desse modo de anlise se subdividem em dois grupos: os que situam as causas tanto no nvel individual quanto no social. como Myrdal (1968). Dobel (1976). Hoetjes (1986) e Hope (1987). e os que as localizam mais no nvel

    106 R.-\P .1/96

  • institucional. como Caiden e Caiden ( 1977). Werner ( 1983) e Becquart-Leclercq (1989).

    Como membro do primeiro grupo. Myrdal ( 1968) afirma que existem na so-ciedade crenas que orientam as pessoas no julgamento da corruptibilidade de atos polticos ou administrativos. As pessoas supem que qualquer um. em posi-o de poder. ir explor-las em razo de interesses pessoais prprios. de famlia ou de outros grupos sociais. Tais crenas constituem parte do retlexo do que elas fariam se lhes fossem dados os meios. Sentindo um clima de corrupo. tornam-se todos corruptos.

    necessrio que se considere ainda o mecanismo social. que Myrdal chama de folclore da corrupo. que a refora e mantm. envolvendo todas as crenas e emoes a ela ligadas quando fatos so trazidos ao debate pblico. quando acon-tecem as fofocas ou medidas pblicas vagamente rotuladas de campanhas ami-corrupc7o. ou quando so tomadas outras medidas legais ou administrativas. ten-do em vista garantir e "reforar" a integridade de funcionrios pblicos. Esse fol-clore retlete. na realidade. um fraco senso de lealdade organizao social. no resolvendo o problema.

    Quanto freqente tentao de caracterizar a corrupo sumariamente como enraizada na vida. fluindo da natureza humana. ou como ato individual isolado. Dobel (1976) aponta a concordncia quase unnime. entre os tericos. no sentido de que a fonte da corrupo sistemtica est em certos padres de desigualdade e falta de coeso social. A corrupo surge como explicao da decadncia da con-fiana. lealdade e considerao entre cidados de um Estado.

    Num sentido estrito. esclarece ele. a maior parte dos atos corruptos requer es-colha moral do indivduo e depende do nvel de sua avareza e maldade. Entretan-to. a corrupo do Estado resulta das conseqncias da natureza humana indivi-dual interagindo com sistemticas e permanentes desigualdades em riqueza. po-der e status. Estas so sempre injustas e corruptas. Considere-se. contudo. que o fim da desigualdade no assegura a eliminao da corrupo. por ser ela tambm parte da condio humana. A corrupo do Estado e a corrupo do povo ca-minham juntas. Por isso. a soluo do problema est tanto na educao moral do povo quanto na sua participao no processo poltico. acompanhada de maior igualdade econmica.

    Hoetjes (1986). por sua vez. faz srias perguntas ao retletir sobre as causas da corrupo. observando que. enquanto alguns indivduos do o passo para o comportamento corrupto. outros parecem ter uma adequada resistncia que pre-vine tal passo. A principal questo colocada : que tipo de indivduo. em que cir-cunstncias. realmente d esse passo? A resposta aponta para o indivduo bem-sucedido financeiramente e o hOI/l colega que. gradualmente. se torna corrupto sob presso de seu grupo. A relao com a chefia vai-se tornando fraca e. com os clientes. forte. A corrupo. como forma de comportamento de grupo. passa a ser mais difcil de detectar que a individual. Os fatores que parecem aumentar a pro-babilidade de corrupo so:

    CORRCP.-'.O C.HS."S. CO:\SEQL'V""S E SOU'OES 107

  • a) contato freqente entre funcionrios e pblico, o que desejvel num sistema democrtico, mas merece cuidados, para que trocas de presentes e favores sejam abertos e pblicos, no criando obrigaes por parte do funcionrio;

    b) hostilidade ou indiferena do pblico em relao aos objetivos do funcionrio;

    c) decises que afetam interesses econmicos vitais do cidado.

    Acontece com freqncia, em pases em desenvolvimento, a administrao burocrtica enfatizar a soberania de polticos. em vez da supremacia da adminis-trao. A presena da corrupo poltica largamente responsvel pela corrup-o administrativa, que a utilizao de posies oficiais para ganhos privados (Hope, 1987). As razes que levam a corrupo a proliferar em pases em desen-volvimento, para esse autor, so:

    a) ausncia de uma tica do trabalho no servio pblico, falta de comprometi-mento e responsabilidade, ocorrendo desrespeito a regras e regulamentos;

    b) pobreza e desigualdade, forando indivduos a tolerarem ou at a se envolve-rem com aes corruptas;

    c) liderana e disciplina ineficientes por parte dos polticos, pela fraca noo do que seja o interesse nacional;

    d) expanso do papel do Estado e da burocracia, com crescimento do poder dis-cricionrio do funcionrio, o que possibilita abusos;

    e) atitudes culturais e padres de comportamento que privilegiam as orientaes tradicionais ao invs das modernas;

    f) a existncia de uma opinio pblica fraca e aptica, que no funciona como uma contrafora.

    As conseqncias so disfuncionais, indo da elevao desnecessria dos cus-tos dos programas governamentais exportao do comportamento corrupto para outras instituies, pressionando e influenciando outros funcionrios. A cor-rupo administrativa prejudica o profissionalismo do servio pblico e frustra os funcionrios honestos, afetando seu desempenho e reduzindo sua produtivida-de.

    J os autores do segundo grupo, que situam as causas da corrupo mais no nvel institucional. criticam tanto as anlises que restringem as causas do proble-ma natureza e maldade humanas quanto as concluses da corrente funciona-lista.

    108 RAP 3/96

  • Caiden e Caiden (1977) destacam os desvios institucionais ou sistmicos como os mais importantes. Quando uma organizao se toma corrupta, ou a cor-rupo se toma um meio aceitvel para transao nos negcios oficiais, a corrup-o sistmica domina o modo de operar da organizao, destruindo a credibilida-de pblica e a efetividade organizacional. A violao da lei e da norma se toma a regra de conduta, passando a existir crescente discrepncia entre a norma escrita e a conduta real dos funcionrios: violadores so protegidos, e no-violadores so penalizados.

    Para esses autores, no se justifica a corrupo sistmica, mesmo que se con-sidere, como os funcionalistas, que a corrupo individualizada minimiza a rigi-dez da burocracia nas suas relaes com a sociedade. A corrupo sistmica blo-queia todos os esforos de reforma e modernizao da burocracia, leva perda da autoridade moral, amplia as oportunidades para o crime organizado, encorajando a violncia, minando as decises polticas, produzindo o uso ineficiente dos re-cursos. trazendo vantagens para os inescrupulosos e desvantagens para a socieda-de. Precisa, portanto, ser combatida.

    Reforando essa linha de pensamento, Werner (1983) refuta inicialmente a suposio de que uma das principais causas da corrupo em pases subdesenvol-vidos seja a herana cultural. Considera que muitas das prticas corruptas resul-tam da imposio de valores ocidentais. Existe mesmo uma defasagem entre as leis - geralmente oriundas e impostas por padres externos - e as normas so-ciais informais tpicas dessas sociedades.

    Ainda. contrariamente tese funcionalista de que prticas corruptas so au-todestrutivas, reduzindo-se com a evoluo do processo de modernizao, insiste Werner em que elas tm vigorado tambm nos pases avanados, fazendo parte do estilo nacional e do modus operandi na maior parte do mundo. fenmeno universal. no uma varivel dependente do desenvolvimento. Manifesta-se nos pases desenvolvidos tambm com nefastas conseqncias e com tendncia au-toperpetuao.

    Essa vocao multiplicativa da corrupo (spillover eftect) acontece. segun-do Werner, de trs formas:

    a) por meio de efeitos-demonstrao do comportamento de lderes que, sendo o paradigma do corpo poltico, exercem importante papel na formao da opinio pblica e no comportamento social;

    b) por meio da tolerncia a violaes pequenas. chegando-se a um senso geral de impunidade, que encoraja tipos mais srios de corrupo;

    c) por meio do efeito-demonstrao da corrupo no nvel institucional que, ape-sar de pouco documentada, reproduz tambm a si mesma, graas interao cor-rupta de lderes.

    CORRCPAo: CACSAS. CO:-;SEQt:-;CIAS E SOLCES 109

  • J Becquart-Leclercq (1989). criticando o funcionalismo. salienta a exis-tncia de um paradoxo nas relaes da sociedade com o fenmeno da corrup-o. Em meio a sentimentos profundos de desaprovao. emerge a aceitao latente ou a legitimao da corrupo como parte inerente ao exerccio do po-der.

    Os cidados. por exemplo. mantm. em rgos pblicos. polticos suspeitos de corrupo. numa espcie de cumplicidade. A explanao funcional. como res-posta s necessidades do sistema. se mostra insuficiente. porque ignora a intera-o dos atores concretos. sua rede de relaes e hierarquias. tanto quanto seus in-teresses especficos. A estrutura relacional em que a corrupo se apia essen-cialmente assimtrica pela desigualdade das posies dos atores. o que permite abusos de poder. Prticas corruptas tendem a beneficiar aqueles que dispem de fontes de relacionamento que lhes permitem obter benefcios. Em razo do segre-do que cerca tais prticas. o contgio generalizado. A corrupo se expande pela penerso do prprio sistema.

    Apesar de a corrupo dar a impresso de ser resultante da anomia social. no o . Pelo contrrio. ela introduz normas quando no existem. conformando os atores. As regras so paralelas e implcitas. porm claras para quem est no jogo. A maior \"tima a sociedade civil. Mas. pode-se acrescentar. uma vtima no de todo inocente.

    Conclui Becquart-Leclercq que uma maneira de identificar causas e nveis de corrupo est na verificao de que os sistemas culturais de todos os grupos so-ciais tm uma estrutura normati\a dual com:

    a) uma dimenso simblica. que a viso idealizada que a sociedade tem de si mesma. mantida por leis. discurso poltico e ao dos meios de comunicao:

    b) uma dimenso operacional. que a prtica confrontada com a realidade social.

    As duas interagem em \

  • 3. Solues para o problema

    Nem sempre a corrupo identificada como problema. Os estudiosos que a vem como problema que deve ser diagnosticado e tratado so os que no ..,e ca-racterizam como funcionalistas extremados.

    Bayley (1970). por exemplo. considera qUe pode ser adotada uma poltica para conteno das formas mais grosseiras de corrupo. enquanto se espera por mudanas nas circunstncias para remover a utilidade funcional de tais prticas. urna estratgia essencialmente passiva. influenciada pela crena de que a cor-rupo no exercer conseqncias nefastas que prejudiquem o progresso.

    Para esse autor. as estratgias no devem ser exclusivas. mas mistas. Deciso a respeito depende do carter do regime e tambm do conhecimento do papel que a corrupo desempenha numa sociedade particular. A corrupo pode ser erradi-cada. mais do que comumente se pensa. pela exortao e rea\ivamento da mora-lidade nacional. Mas pode. ao mesmo tempo. ser resistente e no reagir a tais t-ticas. A dificuldade est na insuficincia de conhecimento para se efetuar esse julgamento antecipadamente.

    Para Huntington (1970). quando se torna necessrio reduzir a corrupo. a sada organizar a participao. Tanto a primeira quanto a segunda se orientam por princpios antagnicos em si mesmos. Os partidos polticos so. no mundo moderno. as principais instituies que podem desempenhar essa funo. Se a corrupo se desef1\ohe a partir da desorganizao. da ausncia de relaciona-mentos estveis entre grupos e de padres reconhecidos de autoridade. ento o recomendvel ser o desenvolvimento de organizaes polticas que exercitem autoridade efetiva e dem origem a unidades organizadas de interesses. que transcendam os indidduos e grupos sociais em geral. Enquanto a corrupo con-sulta interesses individuais. privados e secreto~. a participao tende a favorecer articulaes baseadas em obrigaes pblicas explcitas.

    Outros autores. como Leff (1970). vislumbram mudanas apenas a prazo maior. porque. socialmente. eliminar a corrupo requer a emergncia de no\os centros de poder fora da burocracia e o desef1\ohimento de polticas competiti-vas. Tais mudanas viro apenas como resultado de longo perodo de desef1\ohi-mento social e econmico.

    A melhor garantia contra a corrupo. segundo Brasz ( 1963). est na estrutu-ra hierrquica das organizaes. O poder derivado de tais estruturas pode ser contido em canais claramente definidos e sujeitos a estrita superviso. Outra so-luo. em termos de preveno. o esprit de corps como meio de controle social interno. caso medidas organizacionais falhem.

    O comportamento exemplar por parte dos superiores e um cdigo estrito de superviso so tambm sugeridos por Echenburg (1970) corno mais efetivos que normas legais.

    Hope (1987) prope reformas administrativas que induzam a mudanas es-truturais e de procedimentos na burocracia pblica. assim como nas atitudes e

    CORRl'pAo C .... los'\S. CO\;SEQl:\C!.\S E SOLl(;

  • comportamentos dos administradores. Alm do treinamento de servidores. reco-menda a descentralizao das funes administrativas e o profundo comprometi-mento da liderana poltica com uma administrao eficiente e efetiva.

    Outras sugestes. incorporadas por Myrdal (1968) a partir de relatrio do Santhanam Committee. elaborado aps estudo sobre a corrupo no Sul da sia. incluem:

    a) reduo ao mnimo de poderes discricionrios dos funcionrios:

    b) melhoria dos status social e econmico dos servidores. por meio da reviso dos baixos salrios:

    c) simplificao e preciso de normas e procedimentos para decises polticas e administrativas que afetem pessoas e empresas privadas:

    d) alteraes do cdigo penal e outras leis. para punir funcionrios corruptos mais rpida e efetivamente:

    e) adoo de medidas contra setores privados que corrompam servidores:

    f) limitao extrema de reserva ou confidencialidade de documentos pblicos.

    Para Johnston ( 1982), as medidas de curto e mdio prazos devem ser toma-das a partir de um importante cuidado. Aqueles que pretendem combater a cor-rupo devem distinguir os casos menos e mais prejudiciais. Algumas formas de corrupo constituem importante mecanismo que atenua sutilmente os desequil-brios entre oferta e procura. reduz o descontentamento com as condies sociais existentes e beneficia muitas pessoas. Eliminada essa espcie de corrupo, preciso que os reformadores decidam o que colocar em seu lugar. Por outro lado. algumas outras espcies de corrupo merecem, sim, ataque mais srio. por re-presentarem maior ameaa s instituies e processos existentes. Ento. h que se decidir reunir e utilizar fora de combate para a parte mais pesada da batalha. ou diluir a pouca energia disponvel investindo na parte mais leve. reforando, por isso mesmo. as condies naturais de persistncia dos casos mais graves e ameaadores.

    J Werner (1983) examina. numa tentativa de busca de soluo para o pro-blema. como o povo, e no a lei. pode impedir a corrupo ou prevenir o crime: o povo. e no a lei. que faz as coisas funcionarem. Somente pela justia comuni-tria se pode esperar liberar a sociedade do problema e lev-Ia a controlar o cri-me. Tribunais comunitrios populares descentralizados foram usados com suces-so em pases socialistas como a ex-URSS e a China. Eles suplementaram a ina-dequao de sistemas legais formais. Enquanto o corrupto racionaliza seus atos responsabilizando um sistema impessoaL a justia comunitria pode ser maiS efetiva por contribuir para a internalizao de igual presso.

    112 RAP 3196

  • Como pode ser observado. so muitas as sugestes sobre como lidar com a questo da corrupo. A tentativa de resumir as vrias abordagens utilizadas para a anlise do problema permite concluir que a corrupo um fenmeno social complexo e multi facetado. com vrias manifestaes.

    A reviso das vertentes de pensamento existentes revela grande diversidade de enfoques quando se trata de identificar causas e conseqncias de atos corrup-tos. Dependendo do investigador. ora so ressaltados aspectos relativos nature-za humana. ora fatores econmicos. polticos. sociais e culturais. assim como inadequaes nos sistemas de gerenciamento pblicos. As propostas de soluo vo de estratgias essencialmente passivas a aes de interveno mais estrutura-das e sistemticas.

    Quanto a prticas corruptas no governo. tem-se a acrescentar que nada ainda foi realizado para medir seus efeitos e conseqncias numa perspectiva compara-tiva entre pases. Estudos tm sido limitados. inicialmente por divergncias con-ceituais quanto ao fenmeno. e subseqentemente pela ausncia de metodologia rigorosa para analisar o problema. crtica e empiricamente. em tennos do desem-penho governamental. dos efeitos sobre os recursos pblicos. custos sociais e so-bre a prpria moral do servio pblico.

    So tambm quase inexistentes levantamentos e avalies sobre os mecanis-mos experimentados por outros pases no controle e combate corrupo admi-nistrativa. seja pela via das instituies oficiais. seja pela das instituies inde-pendentes. Todos esses so estudos que forneceriam elementos para validar. ou no. determinadas conceituaes e afirmaes e subsidiar formulaes tericas que viriam a contribuir para ampliar a compreenso da questo e fundamentar in-tervenes adequadas.

    Referncias bibliogrficas

    Abueva. J. V. The contribution of nepotism: spoils and graft to political de\elopment. East- Hest c ellter Rn-iell' U )A5-54. 1970.

    Bayley. D. H. The effects of corruption in a developing nation. In: Heidenheimer. A. 1. Poltica! corruptioll readillgs cO/llparati\'e alla!rsis. :\ew York. Holt. Rinehart and Winston. 1970.

    Becquart-Leclercq. J. Paradoxes of political corruption: a French view. In: Heidenheimer. A. J. Johnston. ~1. & Vine. V. T. I eds.). Poltica! corruptioll: (/ I/{/Ildhook. I'\ew Brunswick Transaction. 1989.

    Brasz. H. A. Some notes on the sociolog~ of corruption. Sociologia Neer!alldica. 1(2):117-25. 1963.

    Caiden. E. G. & Caiden. 1\. Administrati\e corruption. PlIblc Admillistratioll Rniell. 37:301-8. 1977.

    CORRL'PAo c..\lS.-\S. CO'\SEQlE'\CIAS E SOLl'ES 113

  • Dobel. 1. P. The corruption of a State. Tile AlI/erical1 Poli rica I Sciel1ce Rninl'. 72:958-73. 1976.

    Echenburg. T. The decline 01' the bureaucratic etho, in the Federal Republic. In: Heidenheimer. A. J. Polirical corrupriol1 readil1g.\ cOlllpararin' al1alysis. :\ew York. Holt. Renehar! anJ Winston. 1970.

    Hoetje,. B. J. S. Admini,trati\'e corruption in the :\etherlands: recent cases and recent de\'elop-menh. Corrupriol1 al1d Reform. 1(2): 133--l1. 1986.

    Hope. K. R. AJministrati\ e corruption anJ aJministratiw reform in de\eloping State,. Corrupriul1 (///(/ Refrm. 2(2l:l27--l7. 1987.

    Huntington. S. P. ~1odernization anJ corruption. In: HeiJenheirner. A. J. Polirical corrupriol1 read-il1gs comparari\'e {///(//nis. :\ew York. Holt. Rinehar! and Winston. 1970.

    John,ton. ~. Political corrupriol1 al1d pllhlic policy il1 Alllerica. Monterey. Brooks/Cole. 1982.

    ----,. Right & wrong in American politics: popular conceptions 01' corruption. Tile JOllmal of ,\'orrileasrern Polirical Sciel1ce Aswciatiol1. 18( 3 ):367-91. 1986.

    Kla\'eren. J. The concept 01' corruption. In: Heidcnheimer. A. 1. Polirical corrupriol1 re{/(lil1g\ ('0111-!mruti\'e (/l1a/\\is. :\e\\ York. Holt. Rinehart and Winston. 1970.

    Leff. :\. H. Econornic de\'eloprnent through bureaucratic corruption. In: Heidenheirner. A. J. Poliri-cal corrupriol1 readil1gs cOlllparati\'e al1alysis. Ne\\ York. Holt. Rinehart anJ Winston. 1970.

    Le) s. C. What is the problem about corruption') JOlln/(/1 of Jfodem Afi'iml1 Srlldics. 3( 2 ):215-2-l. 1965.

    Lippman. W. A theory about corruption. In: HeiJenheirner. A. 1. Polirical corrupriol1 reilifil1g.\ colII!mrati\'e al1a/nis. :\e\\ York. Holt. Rinehart anJ Winston. 1970.

    ~1c~lullan. M. Corruption in the public senice, 01' British colonies anJ e:\-colonies in West Africa. In: HeiJenheirner. A. J. Polirical corruptiol1 rcadil1gs cOlllparari\'e (///(//nis. ;-";e\\ York. Holt. Rinehar! anJ Winston. 1970.

    ~IeJard. 1. F. Public corruption in Africa: a cornparati\'e perspecti\'c. Corrupriol1 al1ti Refiml1. I (2): 115-31. 1986.

    ~kr!on. R. K. Sociologia: teoria e estrutllra. So Paulo. ~1estre Jou. 1957.

    ~1yrJal. G. Corrupriol1. irs callses al1d effect.\: al1 el1qllir\' il1ro rile !)()\'erry of l1ariol1s. :\e\\ York. Twentieth Century. 1968. \'. 2.

    :\ye. J. S. Corruption and political de\'eloprnent: a coast-benefit analy,is. AmeriCi/11 Political Sci-1'11('(' R('\'ic \I '. 61(2)AI7-27. 1967.

    Scott. J. C. Comparatiw political corruption. In: LaPalornbara. J. (ed.). Conternporary comparati\e politics series. Englewood Clifts. Prentice-Hall. 1972. p. 1-16-l.

    Tilman. R. O. BIack-rnarket bureaucracy. In: Heidenheirner. A. J. Political corrupriol1 readil1gs cOIII!JUrati\c {///(//nis. :\ew York. Holt. Rinehar! and Winston. 1970.

    II-l R,-\P3/%

  • Werner. S. B. New directions in the slUd~ 01' administrati"e corruption. PlIhlic Administration ReIin\". p. 1'+6-S-L Mar./Apr. 1983.

    Wertheim. W. F. Sociological aspects 01' corruption in Southeast Asia. Sociologia Neerlandicll. ](:2):129-52.1963.

    CORRLP.:i.o C\lS.-\S. CO'\SEQL'\CIAS E SOUES 115