crítica à tolerância

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Cale-se!: violncia e linguagem na era da (in)tolerncia

Renato de Almeida Freitas Junior Roan Costa Cordeiro

Quando a morte se inscreve na vida, sob o signo e o corpo da mera vida, as fronteiras entre o vivo e o morto suspendem-se. Impera a excepcionalidade no ncleo da prpria vida e da prpria morte. Tudo tornado imprprio, impedido, barrado, tanto a vida, naquilo que tem de mortalmente prprio, quanto a morte, enquanto vitalidade proponente. na medida dessa impropriedade que tudo se torna decidvel; o futuro, o presente e o passado dissolvem-se, assim como se dissolvem os tempos e os mundos. A esfera do poltico o poltico torna-se o campo da deciso sobre a vida e a morte. o quadro sem fim que realiza a astcia da razo; no mais h Penlope, mas apenas um tear que teia desteando: a deciso do indecidvel. O problema da solubilidade e da decidibilidade, da insolubilidade do indecidvel, portanto, est posto desde o incio, desde que posto, e permanecer at o seu fim, isto , at que seja deposto. A norma, tambm enquanto lei, juridicamente pensada, falada e constituda (operando nas nossas narrativas), atinge a vida na medida em que rompe os limites do que seja passvel de ser dito como vivo ou morto, pertencente ou excludo, fundando aquela uma totalidade, o que coloca, modernamente, o problema da totalizao. Mas se tornou mais do que isso: fora de destotalizao, na medida em que atua desarticulando sentidos. apenas diante desse quadro que podemos problematizar (isto , colocar problemas existentes) a tolerncia e a violncia. Cada polo qual uma face do polticojurdico moderno operar cises autonomizadoras foi uma miopia terica cuja genealogia e cujos efeitos

Aluno graduando do 4 ano noturno do Curso de Direito da Universidade Federal do Paran. Bolsista do Programa de Educao Tutorial (PET). Monitor de Direito e Sociedade. Aluno graduando do 4 ano diurno do Curso de Direito da Universidade Federal do Paran. Bolsista do Programa de Educao Tutorial (PET). Pesquisador voluntrio do CNPq. Monitor de Direito e Sociedade.

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ainda operantes restam por se fazer avaliar que se apresenta antiteticamente ao outro. Na medida da linguagem que podemos colocar tais problemas, mas intento buscar desmedi-la, isto , atingi-la desde o outro que de fato (e de no direito) se aproxima desde fora.

I

O ser humano foi abandonado na violncia. A violncia foi abandonada ao ser humano, tambm. A fico de um contrato pacificador a fico da paz como um estgio que supera uma violncia anterior tambm fictcia (variante moderna que acaba por fazer uma inverso do pecado natural: se antes havia um estado natural de pecado e libertinagem (estado de natureza), o contrato social acabou por fundar racional-utilitaristamente a liberdade (sociedade civil) percebemos, assim, que as narrativas nunca so to novas como parecem ou dizem ser). A violncia , mas o apenas enquanto relacional 1, liga (e desliga) no apenas seres no mundo, mas liga (e desliga) tambm os seres ao seu desejo, ser, aqui, que uma totalidade humana e inumana, tambm animal, mas que se diferencia dos demais animais na medida em que pode superar as necessidades, desloc-las. O senso comum relaciona-se com a violncia a partir do juzo valorativo que, imobilizando-a e retirando-a da narrativa na qual ela se manifesta 2, acaba por conceb-la como m, como o pecado que sempre retorna ao mundo das relaes contratualmente equilibradas, previstas, rompendo a previsibilidade dos papis. A exigncia ordinria da mdia (e do senso comum) sempre a de paz 3. A tradio intelectual trata a questo como tabu, apesar de certo fascnio dos intelectuais pela violncia, pois sabe que, em meio violncia desmedida em que vivemos, uma negao do imaginrio vulgar poderia ser de uma irresponsabilidade inconsequente. Os violentlogos inventam diversas frmulas1

A significao (social o que implica uma tautologia) da violncia surge quando h um reconhecimento dela por parte do violentado (FREIRE COSTA, Jurandir. Violncia e psicanlise, p. 39). H um qu de verdade nisso, mas no podemos deixar de esquecer a alienao perceptiva aprimorada pela midiatizao e dispositivos espetaculares. 2 Interessante notar o abismo entre significante e significado que caracteriza a violncia simblica inerente linguagem, a morte da coisa pela palavra. 3 No momento em que escrevemos h uma campanha da RPC, afiliada da Rede Globo, pela paz, cujo ttulo Paz sem voz medo. Por meio dela clamam pelo aumento do nmero de policiais, pelo aumento de cmeras de vigilncia na cidade e tambm se festeja o aniversrio de um ano da instituio do BOPE-PR.

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explicativas e sempre nos provam cientificamente que os pobres so degenerados moralmente e que as leis no so severas o suficiente. A intelectualidade de esquerda acaba por reduzir a questo ao momento revolucionrio 4, furtando-se ao debate ou mutilando-o ao considerar somente a violncia sistmica do capital. O sculo XXI j se pronunciou, ao contrrio dos anncios que o precederam, como outro sculo da guerra. A industrializao militarizada apenas o ponto de exposio de que a base tecnolgica sobre a qual e com a qual vivemos uma base de dominao, denunciando o carter poltico da tecnologia, que, podendo alimentar o mundo tantas vezes, tambm possibilita destruir o planeta muitas vezes mais do que as necessrias para destru-lo. A bomba de nutrons o smbolo do nosso progresso: ela destri as pessoas, deixando intactas as coisas. Mais uma vez, e no poderia deixar de ser, o progresso se apresenta como gmeo da barbrie. Escolhe-se no alimentar as pessoas, mesmo que sobre comida, escolhe-se fabricar armas, mesmo que as existentes sejam suficientes para matar cada um de ns ao menos 30 vezes. O FMI impe polticas econmicas que no dizem explicitamente que deve haver concentrao de riqueza, multiplicao da pobreza e desmantelamento da soberania nacional, tudo isto est implcito nelas. 5 A reduo salarial, a precarizao da educao e a omisso na sade no so comentadas nas recomendaes do FMI, da mesma forma que a criminalidade e a mortalidade infantil no constam na exposio de motivos da lei que institui o salrio mnimo. O processo histrico que consagrou a forma de sociedade do capital marcou-se pelo derramamento de sangue. Muitas afirmaes tornam-se erradas pelo excesso de historicizao, pois esse processo no se encerrou em alguma poca histrica de acumulao primitiva. O sangue uma exigncia do movimento estrutural dessa sociedade. A dialtica das formas altera o contedo, distorcendo-o, alterando-o, requisitando novas conformaes. No da mesma forma, mas tambm, as movimentaes epocais alteram e mesmo fundam novas formas. Nem por isso a barbrie e a crueldade

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Entendemos aqui que todo momento histrico possui sua potencialidade revolucionria. No h, para ns, uma antessala da espera infindvel que atua para o fim da histria. 5 GALEANO, Eduardo. Ns dizemos no, p. 11.

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deixam de s-lo, por mais que sejam e apaream diferentemente. A superexplorao um requisito de uma expanso sistmica que no se satisfaz na mera explorao. O sangue continua a ser derramado e, para alm dos desempregados crnicos, a destruio das comunidades tradicionais e a dominao econmica totalizante do mercado produziram o homem desejvel 6, desprovido de toda e qualquer utilidade ou utilizao e que pode ser morto pela polcia paulista ou pela SIDA na frica: dir-se- que ele tinha passagem na polcia ou que suas crenas primitivas (eufemismo, aqui, para o processo de animalizao que gostaria de dizer primatas quando no o diz, efetivamente) fizeram-no refm da seleo natural (divina). A excluso ltima do superexplorado, privando-o da possibilidade de atividade que o submeteria ao capitalista, ainda o mantm nos limites do mercado 7. Estamos diante, assim, da violncia ultraobjetiva, complemento das exploses de violncia tnico-culturais/subjetivas (violncia ultrassubjetiva):O homem desejvel , em forma afirmativa, um fenmeno social que aparece, contudo, como quase natural ou como a manifestao de uma violncia na qual os limites do que humano e do que natural esto tendenciosamente mesclados. Isso o que eu denominaria uma forma ultraobjetiva da violncia, ou, mais ainda, uma crueldade sem rosto. 8

Nossos olhos, moldados espetacularmente, somente conseguem ver a violncia subjetiva (roubos, sequestros, trfico de drogas, porte de armas...), pois da forma como se nos apresenta o fenmeno-violncia no conseguimos perceber as nuances do acontecimento, o que necessita de interpretao (ofuscada pela midiatizao que oferece um imediato). A violncia objetiva, sistmica, naturalizada a tal ponto que no conseguimos v-la como locus de irrupo da violncia subjetiva. A violncia subjetiva aparece como a perturbao do estado de coisas normalizado e normatizado (alguns diriam pacfico, com ou sem aspas), enquanto que a violncia objetiva exatamente o estado de normalizao e normatizao que permite quela aparecer como violao. Acostumamo-nos com a6 7

Noo de B. Ogilvie trabalhada por tienne Balibar (BALIBAR, tienne. Violencia, p. 11. Traduo nossa). O movimento de exteriorizao, a nosso ver, implica um movimento de (des)totalizao, fundando a Totalidade e a Exterioridade (sem antes ou depois: durante). Sendo assim, afirmaes como a seguinte, que contm o seu momento de verdade, devem ser lidas criticamente: o mercado mundial um absoluto sem exterior: quando voc um excludo, no pode buscar outra parte, uma Amrica na qual se estabelecer para recomear a histria (...). Uma situao que, longe de preparar uma superao dialtica, um fim da histria, parece destruir as bases objetivas (e no deixar subsistir seno a referncia utopia, isto , ao amor ou ao dio) (BALIBAR, tienne. Idem, p. 12. Traduo nossa). Ora, no h incluso plena, assim como no h excluso plena: os termos so referenciais, e no absolutos. A prpria dificuldade de expresso da exterioridade denuncia isso, apontando para os limites da linguagem da representao. 8 BALIBAR, tienne. Idem, p. 13. Traduo nossa.

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taxa diria de homicdios, pois os homens desejveis assim o so justamente pelo fato de que no valem nossas lgrimas 9, so os derrotados da histria, os massacrados do Carandiru, de El Dorado dos Carajs, de Canudos, os Maras de El Salvador... (10) Na interconexo entre violncia subjetiva e objetiva podemos compreender melhor fenmenos que aparecem como violncia gratuita, como excesso de violncia. A violncia homofbica perpetrada pelos jovens de classe mdia, assim, no excrecncia de uma sociedade tolerante e liberal, mas sim a essncia, o ncleo obsceno do gozo de uma sociedade patriarcal-machista-sexista que simbolicamente apoia tais ataques, pois estes so o complemento necessrio que possibilita o discurso de tolerncia e igualdade. Da mesma forma, no se pode afirmar ingenuamente que a polcia seja a traidora dos ideais do Estado Constitucional Democrtico (j nem sabemos mais qual a sua relao de parentesco com o Estado de Direito, talvez seja seu tataraneto, talvez portador de falsa identidade. Tais relaes, na verdade, apenas encobrem o seguinte: o Estado ainda Estado, por mltiplas que sejam suas aparies, levando em conta que estas podem gerar, em sua multiplicidade, diferentes efeitos, realidades e virtualidades) quando mata pessoas pobres ou promove grupos de extermnio, via de regra, dos desejveis: este o verdadeiro ncleo de permanncia institucional da polcia, no sua negao, mas ndice de que ela mesma o ponto de indiferenciao de formas de violncia que permite a atuao exterminadora

II

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Os ninguns: os filhos de ningum, os donos de nada. Os ninguns: os nenhuns, correndo soltos, morrendo a vida, fodidos e mal pagos: Que no so embora sejam. Que no falam idiomas, falam dialetos. Que no praticam religies, praticam supersties. Que no fazem arte, fazem artesanato. Que no so seres humanos, so recursos humanos. Que no tm cultura, tm folclore. Que no tm cara, tm braos. Que no tm nome, tm nmero. Que no aparecem na histria universal, aparecem nas pginas policiais da imprensa local. Os ninguns, que custam menos do que a bala que os mata. (GALEANO, Eduardo. O livro dos abraos, p. 71). 10 As reticncias so o nefasto peso de Absoluto da devastao sistmica, pois no sabemos apenas quem, mas sob quais formas de crueldade passaremos a cair (e at se no podemos cair sem cair, permanecendo, apenas, como corpos de um vazio), as quais, tambm como o poder, mas diferentemente, relacionam-se visceralmente com a fenomenologia da violncia, como indica Balibar. (BALIBAR, tienne. Idem, p. 11).

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O senso-comum acadmico contrape a linguagem violncia, partindo do a priori de que o processo de fala que informa as estruturas de contato se caracteriza pela renuncia violncia, de modo que empreg-la implica uma contradio em relao performance do falante como falante. Mas e se os humanos superassem os animais na sua capacidade de violncia precisamente porque falam? Como Hegel j sabia, h qualquer coisa de violento na prpria simbolizao de uma coisa, equivalendo sua mortificao 11. A linguagem, em sua apario constituinte, aquela que funda mundos, muito mais do que os expressa: o desdobramento exteriorizador da interioridade infinita um movimento de expresso incompleto. A exteriorizao serve como suporte de certa integridade da expresso interior, a qual aquele insondvel que s permanece ntegro enquanto permanea aquilo que : insondabilidade de nosso ser. A vida social, toda nossa vida, desentranha-nos, faz-nos, sempre performaticamente, estar em relao; no o entranhamento, portanto, seno uma funo da nossa instituio social performtica, de ns prprios enquanto sujeitos reconhecveis, da intruso que mutila a tentativa de nos mantermos minimamente irreconhecveis. A exigncia de reconhecimento, que j pertence instituio da ordem simblica, cria a necessidade de um ponto de basta: preciso haver no apenas a reduo da cadeia sem fim dos significantes, mas a sua convergncia para um nico ponto, aquele que Lacan denominou de Significante Mestre. O discurso fundante, portanto, aquele em que cada espao de discurso concreto, realmente existente, se funda em ltima instncia numa imposio violenta de um significante mestre que stricto sensu irracional: no pode basear-se noutras razes 12. A intersubjetividade no jamais simtrica, caindo por terra a ideia da reciprocidade enquanto horizontalidade absoluta das relaes. A barreira da linguagem que me separa para sempre do abismo do outro sujeito simultaneamente aquilo que abre e mantm esse abismo o prprio obstculo que me separa do Alm aquilo que cria a sua imagem 13. A linguagem e a necessidade da fala indicam no apenas falhas, mas que estas so criadas

11 12

ZIZEK, Slavoj. Violncia, p. 60. ZIZEK, Slavoj. Violncia, p. 60. 13 ZIZEK, Slavoj. Idem, p. 70.

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pelos limites dessa linguagem, da representao que obsta ou se interpem compreensivamente entre o suspiro e o toque expressivos. A linguagem dos conceitos, linguagem funcionalmente rica em sua capacidade de ordenar o mundo, chamada por Walter Benjamin de linguagem da comunicao, caracterizada pela capacidade de ordenar, representar e de projetar sobre o mundo uma violncia indita. Nunca sendo inocente, ela , sim, uma linguagem de conhecimento, e como tal, uma linguagem que julga, que pronuncia (uma sentena): Em meio a toda formao lingstica vige o conflito do pronunciado [dito] e pronuncivel [dizvel] com o impronuncivel [indizvel] e o impronunciado [no-dito] (...). Na considerao desse conflito v-se, pela perspectiva do impronuncivel, ao mesmo tempo a ltima essncia espiritual 14. O impronuncivel da linguagem, aquilo que no cede lgica representacional-pragmtica, irredutvel ao conceito, a experincia do impossvel, tal como a ideia de justia na desconstruo de Derrida. Essa linguagem e essa e justia no esto perdidas na histria, pois o presente guarda, ainda, debilmente uma luz messinica, capaz de trazer tona a linguagem nominativa e no violenta (poderamos dizer: uma linguagem Outra). A arbitrariedade da imposio da linguagem dos signos a decadncia o trajeto do declnio 15 da passagem da presena representao. Quando nos percebemos a, criamos as possibilidades de ver o quo arbitrria a cultura, e neste mesmo instante a politizamos, e politizamos os mundos, explicitando as condies de atuao na luta pelos significados. Essa luta a luta poltica, atrito com a institucionalidade, momento da luta de superfcie. O que resta por fazer, e que denota a luta de profundidade (e que se d nas profundezas dos seres atrito do meu ser com o ser do Outro), atingir a prpria debilidade da linguagem dos signos: nossa luta, radicalidade que visa solapar o prprio grande Outro 16, aquela que interfere nas prprias redes de significao, na fundao do signo, na imposio do significante e do significado, no conceito da representao e na representabilidade do conceito.

14

BENJAMIN, Walter. Gesammelte Schriften, II-1, p. 146. APUD SCHNEIDER, Paulo Rudi. A contradio da linguagem em Walter Benjamin, p. 200. 15 DERRIDA, Jacques. Fora de lei, p. 110. 16 ZIZEK, Slavoj. Em defesa das causas perdidas, p. 54.

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III

A crtica multiculturalista liberal violncia generalizada e a condena sumariamente, atravs do tribunal da boa inteno, excepcionando devidamente a violncia instituda, legtima, que, afinal, aquela a assegurar tal posio de fala, abstrai justamente desse condicionamento, no apenas daquele inerente ao seu locus institucional, mas tambm da violncia simblica que funda a prpria linguagem, da prpria imposio violenta do significante da no violncia que funda a posio do bom sujeito. O espectro que ronda a boa conscincia, usualmente, o terrorismo. Ele traz a fora instituinte da violncia, invadindo e desconfigurando as coordenadas do mapeamento da cotidianidade na qual est imerso. O politicamente correto surge no da negao do sistema scio-simblico do capital. Pelo contrrio, s poderia surgir no liberalismo, fonte do politicamente correto (que rene o multiculturalista liberal, a feminista verde, o esquerdista consequente e o comunista liberal) e tambm do politicamente incorreto, que tolerado diante do falseamento apregoado pela defesa da liberdade de expresso. Quando o terrorismo, portanto, no vem do terrorista pensando nos padres ocidentais de que este um fantico religioso mas de um de ns, logo tratam os mass media de faz-lo cruzar a fronteira que separa o prximo evitado do estranho condenado. Andrew Breivik, o terrorista noruegus, quem recentemente deixou de ser o prximo para ser uma falha, um caso isolado. No percebe ele, nem os crticos do politicamente correto, que o modo como atua e faz atuar constitui a medida inversa que complementa a injuno da tolerncia. Sua tradio nos permite perceber que a prpria coisa que constitui a ameaa o melhor remdio contra ela 17. Isso o que podemos ler como a definio mnima da poltica terrorista contempornea, termo no qual se pode verificar a coincidncia dos opostos18 entre o terrorismo e o policialismo. Se podem ocorrer formas violentas de exploso, rastreadas nos subrbios parisienses, nos ataques muulmanos s potncias ocidentais ou nos atos de um jovem noruegus que tratam logo de tornar mentalmente incapaz caracterizando a dialtica da patologizao -, quando ele prprio admite a responsabilidade pelos seus atos, porque h, por detrs17 18

ZIZEK, Slavoj. Violncia, p. 27. ZIZEK, Slavoj. En defensa de la intolerancia, p. 49.

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desses atos de violncia subjetiva, um quadro estrutural de violncia social, sistmica, a qual, quando se deixa mostrar, trata logo de ser recalcada pelo trabalho de ideologizao, que desloca o foco para a subjetivao, para a culpabilizao de indivduos ou grupos especficos, cujos atos so chancelados simbolicamente como consequncia de uma maldade intrnseca, transformando-os em um eles que se tornam a causa da questo da violncia. Quando o prximo se aproxima, ousando ingressar no espao restrito que marca a individualidade mondica, torna-se de imediato invasor violento, agressor (pois decai de sua condio humana), ao que s se pode responder com o banimento, com a guerra preventiva e suas consequentes terapias de choque, consagradoras do medo como matriz estratgica no apenas de interveno (nos pases, grupos e pessoas) mas de constituio da subjetividade, o que permite seguir os apontamentos de Zizek e afirmar que a biopoltica em ltima instncia uma poltica do medo que se centra na defesa contra o assdio ou a vitimizao potenciais 19. O medo constitutivo dos sujeitos, observado pela incessante busca por segurana na insegurana no do no possuir razes, mas da possibilidade de disp-las, encontra o seu correspondente na esfera pblica, colocando como centro dos direitos humanos, hoje, o direito a no ser assediado, que o direito de permanecer a uma certa distncia 20. Estamos diante, portanto, daquela face autntica do que significa tolerncia, que mais do que uma rejeio sobre algo relevante com que no concordo 21: poder dispor de tecnologias, instituies, aparelhos, tcnicas e mecanismos; o poder de poder dispor da alteridade, de tentar tecer relaes com aquilo que no pertence totalidade. Temos, por isso, a verificao da passagem de mecanismos de poltica liberal ineficientes para a eficcia eficiente da positivao da distncia segura. Se a tolerncia pode permanecer no senso comum e na teoria porque est compreendida em uma srie de relaes que a realizam no cotidiano como aquilo que ela : mobilizao da hostilidade constitutiva da performatividade requisitada pelos direitos civis fundamentalizados em textos que se fazem consagrar normativamente (mediante o dizer daqueles que so investidos simbolicamente para dizer com carter normativo). o lapso entre a prtica/aplicao e os19 20

ZIZEK, Slavoj. Violncia, p. 44. ZIZEK, Slavoj. Idem, ibidem. 21 FORST, Rainer. Tolerance is a fine art (Entrevista). Disponvel em: .

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requisitos normativos que indica o sintoma da despolitizao das relaes polticas (poltica sem poltica, ao estilo do caf sem cafena tantas vezes mencionado por Zizek) e econmicas. O poltico pensado em termos da esfera pblica contrai-se; ao mesmo tempo, expande-se a decidibilidade cabvel ao soberano sobre a suspenso das fronteiras entre a vida e a morte. Vivo e morto, morto-vivo: s pode combater o poder soberano aqueles que esto no nvel zero de mundanidade, e at mesmo de submundanidade. Perguntar onde se dar a luta revela um atraso imperdovel: a luta est a, sendo travada na ausncia de mundo assinalada em nosso tempo. As vises de mundo convergem, mas na cegueira que lhes retira aquilo que elas dizem ver.

IV

O Estado, um dos substratos das decises/indecises com as quais tratamos, aparentemente paradoxal, de um lado discursa ininterruptamente a favor da paz social, da ordem e da justia, enquanto de outro lado pratica a violncia com a desenvoltura que lhe caracterstica, promovendo guerras contra outros Estados ou no seu prprio interior contra o inimigo, caso em que o exrcito d lugar polcia. A definio de Estado incorporou necessariamente como afirmao terica legitimadora da fundao do fenmeno Estado capitalista (por mais que aparea como Estado moderno) a ideia de monoplio legtimo da coao fsica, tal como teorizada por Max Weber 22, e o Sistema Penal , por excelncia, o instrumento estatal para consecuo violenta de seus fins no mbito interno de sua soberania. Mas, no se pode compreender o direito vendo-o apenas como um meio, um instrumento estatal puro e simples, pois ele estabelece com o Estado uma relao interna, visceral, mais complexa do que aquilo que a viso instrumentalista diz ver. O direito, no que aqui propomos, acompanhando a leitura de Jacques Derrida, no se faz inteligvel somente pela anlise do tecido histrico no qual est inscrito, uma vez que a instituio do direito depende de uma deciso que rasga essa tessitura, e que, por isso, no se submete a

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Uma empresa com carter de instituio poltica denominamos Estado, quando e na medida em que seu quadro administrativo reivindica com xito o monoplio legtimo da coao fsica para realizar as ordens vigentes (WEBER, Max. Economia e sociedade [v.1], p. 34).

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nenhum critrio de justia, no sendo, desta forma, justificado ou invalidado por discursos j existentes23

. Trata-se de um momento de violncia (performativa) que impe limites ao livre discurso, e, por isso,

o ato fundador pode ser chamado de mstico 24, j que no passvel de um filtro de justia ou de racionalidade e legitimidade. O ato fundador se sujeita a esse processo a posteriori25

, quando a

imposio violenta dos significados constri outra ordem de significao. A perda da origem que se reclama apenas a denncia de que no h algo que funde a no ser a prpria fundao: j que a origem da autoridade, a fundao ou o fundamento, a instaurao da lei no podem, por definio, apoiar-se finalmente seno sobre elas mesmas, elas mesmas so uma violncia sem fundamento. (...) Elas no so legais nem ilegais em seu momento fundador 26. No h, como se v, um fundamento universal que ampare a instituio do direito. Contudo, a histria nos demonstra que o discurso de legitimao gravitou, sobretudo, em torno duas correntes jurdico-filosficas, o jusnaturalismo e o juspositivismo. O direito natural funda-se (e funda) na viso de que os fins justos fazem justos os meios, isto , o emprego de violncia ou qualquer outro mtodo justificado desde que se atinjam fins justos. Essa violncia conhecida por natural porque seus adeptos defendem um exerccio de iure de todo poder que se investe de facto no contrato social. Oposta a esta tese est a corrente do direito positivo, que considera a dinmica mutacional-histrica do poder e do direito. Se o direito natural julga/avalia o direito mediante a crtica de seus fins, o direito positivopode avaliar qualquer direito que surja apenas pela crtica de seus meios. Se a justia o critrio dos fins, a legitimidade o critrio dos meios. No entanto, no obstante essa contradio, ambas as escolas esto de acordo num dogma bsico comum: fins justos podem ser obtidos por meios justos, meios justos podem ser empregados para fins justos. 27

23 24

DERRIDA, Jacques. Fora de lei, p. 24. DERRIDA, Jacques. Idem, p. 25. 25 Uma revoluo bem-sucedida, a fundao de um Estado bem-sucedida (um pouco no sentido em que falamos de um felicitous performative speech act) produzir a posteriori aquilo que ela estava destinada de antemo a produzir, isto , modelos interpretativos prprios para serem lidos retroativamente, para dar sentido, necessidade e sobretudo legitimidade violncia que produziu, entre outros, o modelo interpretativo em questo, isto , o discurso de sua autolegitimao (JACQUES, Derrida. Idem, p. 85-86). 26 DERRIDA, Jacques. Idem, p. 26. 27 BENJAMIN, Walter. Crtica da violncia crtica do poder, p. 161. Grifo nosso. Optamos alternar as tradues do texto Zur Kritik der Gewalt conforme cada uma traduza o trecho em questo da maneira mais adequada. Aqui a nova traduo comete um lapso imperdovel: a sntese benjaminiana, que fizemos questo em grifar, foi simplesmente suprimida (BENJAMIN, Walter. Para uma crtica da violncia, p. 124).

12

No entanto, a pretensa antinomia entre as duas correntes cai por terra quando se descobre que os meios legtimos (legitimados) e os fins justos (justificados) se encontram em termos de contradio irredutvel. A violncia inerente ao direito, e no o simplesmente por razes de justia, pois, se assim fosse, no se poderia criminalizar a justia pelas prprias mos28

quando esta no se

chocasse com os ideais de justia presentes no prprio direito. Desta forma pode-se concluir que o direito considera a violncia nas mos dos indivduos um perigo capaz de solapar a ordenao de direito 29 e no uma ameaa a determinados fins mais ou menos justos. Essa violncia monopolizada, em cada apario, fascina com seu poder que remete violncia primeira, fundante, instituidora da ordem vigente. Assim sendo, a violncia conservadora a representao repetitiva da violncia fundadora, mas com ela no se confunde, apesar da existncia da instituio encarregada de, justamente, atuar na zona cinzenta de transio entre uma violncia e outra, criando o direito ao mesmo tempo em que o conserva: essa instituio ignbil e abjeta da qual Benjamin faz meno a polcia 30; 31. Ainda seguindo os passos de Benjamin, vemos que toda violncia mtica est em relao com o direito, fundando-o ou conservando-o. Por isso, no h direito sem violncia:

E no apenas isso: do mesmo modo como o final, tambm a origem de qualquer contrato remete violncia. Ela no precisa estar imediatamente presente no contrato, enquanto poder instituinte do direito, mas est representada nele, na medida em que o poder que garante o contrato jurdico , por sua vez, de origem violenta, quando no , no prprio contrato, legitimamente institudo pela violncia. Quando a conscincia da presena latente da violncia dentro de uma instituio jurdica se apaga, esta entra em decadncia. 32

A nica possibilidade de sair da tautologia de fins justos e meios legtimos a adoo de um ponto de vista da filosofia da histria, no qual a violncia e o poder se relacionam dentro e fora do28

Cdigo Penal: Art. 345 - Fazer justia pelas prprias mos, para satisfazer pretenso, embora legtima, salvo quando a lei o permite: Pena - deteno, de 15 (quinze) dias a 1 (um) ms, ou multa, alm da pena correspondente violncia. 29 BENJAMIN, Walter. Para uma crtica da violncia, p. 126-127. 30 Exemplo dessa dualidade performativa so as UPPs, que criam um direito para melhor conserv-lo, pois esto alm do direito, nas favelas cariocas. Casas so invadidas sem ordem judicial ou flagrante delito, pessoas so mortas ou torturadas com a cincia e aprovao tcita, quando no expressa, do poder judicirio e de boa parte da populao refm da imprensa roxa. 31 A violncia empregada pelos grandes traficantes ou ladres tambm tem carter jurdico-criativo e por isso so os grandes inimigos da ordem, ao contrrio daqueles que a ordem permite roubar, j que estes no ameaam instituir um novo direito, pelo contrrio, o que estes ltimos fazem consolidar o direito existente. 32 BENJAMIN, Walter. Idem, p. 167.

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direito. S assim possvel discernir a violncia mtica, que funda o direito e lana uma promessa de legitimao, da violncia pura, que aniquila o direito sem exigir sacrifcios e sem derramar sangue 33.

VEm uma sociedade democrtica o limite da tolerncia o Cdigo Penal (...). 34 Toms y Valiente

A requisio de tolerncia a requisio de um sistema poltico-normativo por sua permanncia, a qual sempre ser um espectro que ronda a relao de tolerncia, traduzindo a ambiguidade interior insanvel no seu conceito, pois dentro, e apenas dentro, do esquematismo tolerante proposto que haver tolerncia e intolerncia como posies. A razo tolerante caracteristicamente antinmica, marcada pela possibilidade de servir de ponto de construo argumentativa (no meramente retrica, portanto) de narrativas opostas e no mediveis 35. A fixao de critrios serve apenas para uma melhor definio do que seja ou no enquadrvel. O contorno enquanto fora que traa da tolerncia d-se no no contorno que funda a soberania. O contorno da tolerncia, portanto, aquele do desvio. revelador, portanto, que, ao invs da estratgia textual de inscrever a complexidade do tema no incio do texto para escusar a anlise proposta, um dos textos de Rainer Forst apenas a alega no seu final, como (ltima) sentena: O conceito de tolerncia sempre foi e continua sendo um conceito ambivalente 36. Os critrios, portanto, so os critrios aplicados na excepcionalidade, daquilo que se aplica desaplicando, compreenso que deve contar com a lembrana de que o ingresso na ordem normativa performativo/generativo. Por isso seguir as regras do jogo algo vlido apenas para os jogadores. Quem no partilha desse jogo no pode nem reivindic-lo, nem diz-lo injusto, pois no tem existncia (simblica) diante da Lei que diz o direito e o torto nesse jogo. O jogo, desde que comeou, contudo, de propores de um sistema-mundo, e, antes de tudo, no um jogo, a no ser que queiramos afirmar o33 34

BENJAMIN, Walter. Crtica da violncia-crtica do poder, p. 173. TOMS Y VALIENTE, Francisco. Ensayo para una historia de la tolerncia. Disponvel em: . Traduo nossa. 35 ZIZEK, Slavoj. Violncia, p. 98. 36 FORST, Rainer. Os limites da tolerncia, p. 29.

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carter sdico que significa traduzir neste termo a degradao absoluta de milhares de seres humanos 37. Portanto, o valor do contedo da tolerncia, sua caracterizao, uma questo interna Totalidade, ordem normativa totalizada. O problema, na verdade, a instituio do significante, o trao constante que tateamos na inconstncia das definies historicamente verificveis do conceito. A contradio performativa no uma contradio com relao ao nvel zero da possibilidade de fala, mas condio de ingresso na normatividade, o que significa que a condio que possibilita a existncia normativa do sujeito. Vale dizer: uma vez que se entra na institucionalidade, autorizando a potestas, deixa-se de ser o que se e se passa a ser o que a normatividade gera. O que se tolera o simulacro gerado pela virtualidade da aceitao pela ordem: no o que o desejo por algum do mesmo sexo ou outro coloca, mas a formulao da persona gay, mulher, homem; no o outro em sua radicalidade, mas vizinho, prximo. Tolerar, efetivamente, no aceitar os modos de viver e ser de outrem em sua radicalidade abismal, o que no nenhuma novidade nas consideraes sobre a tolerncia. Isso no significa que no haja algo que permanea como substrato de vivncia: aceita-se tosomente que algo passe a estar na ordem; em ltima instncia, o que se aceita a normatividade da Lei generativa, em funo da qual no h um antes ou um depois 38. Isso o que significa afirmar que (...) aqueles que se queixarem de tratamento injusto no podero rejeitar esse princpio como arbitrrio, porque tero de recorrer a ele. Eles se encontrariam na situao paradoxal de rejeitar um princpio que ao mesmo tempo invocam 39, o que se refere no apenas ao custo de aceitar o intolerante, mas algo que 37

H uma forma de acusao errnea, tipicamente conservadora, cuja obsesso mensurar nmeros de mortos. Ora, falsa e vil a afirmao de que existncia teria um valor mais alto que a existncia justa, quando se toma existncia apenas no sentido da mera vida e esse o sentido do termo na referida reflexo (BENJAMIN, Walter. Crtica da violncia Crtica do poder, p. 174. Grifo nosso.). A centralizao da vida deve ser entendida como uma forma de caracterizar a constituio do campo poltico moderno especificamente como campo biopoltico (de trabalho, de concentrao, de extermnio...). A pergunta de Kierkegaard ainda assoladora, principalmente depois dos campos de concentrao, dos gulags, das ditaduras e dos atuais Estados de choque (os quais geram o efeito prtico de uma mortificao geral por meio da constituio em massa de formas de mera vida): o que legitima minha existncia? Ou, efetivando um deslocamento crucial, o que legitima nossa existncia? Particularmente, temos por distinto o sentido evocado por Benjamin daquele trabalhado por Agamben quanto concepo da mera vida, por mais que haja remisses, inclusive. Est em jogo aqui, portanto, a diferena entre o homo sacer e o homo otarius (ZIZEK, Slavoj. Bem-vindo ao deserto do Real, p. 90), que marcado pelo hedonismo vazio do consumo massivo da destruio, pela ausncia de excesso de vida, pela desconsiderao do inumano: a humanidade despida de todos os destroos simplesmente no mais. O embate, portanto, no diz respeito defesa de um ser, mas sim ao vcuo entre o ser e aquilo que no , porque ainda no pode s-lo, porque no o mais ou porque no pode s-lo, porque pertence ao mbito fugidio do estar. 38 A ordem transforma normativamente a constituio de algum como sujeito, retroagindo desde o seu ser. Vale lembrar aqui as admoestaes kantianas sobre a menoridade: quem no est na ordem no partilha da maioridade dos sujeitos. 39 FORST, Rainer. Idem, p. 28.

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essencial para o prprio tolerado: a reflexividade custa, e seu custo aquele da manuteno do ciclo tautolgico da Lei. O limite da tolerncia, portanto, ao contrrio do que afirmam aqueles que releem o seu conceito, um limite utilitarista estabelecido conforme as idas e vindas da potestas. preciso dissociar a construo terica da tolerncia, portanto, da Ideia de democracia 40. No por acaso que os discursos da tolerncia e da livre expresso (de opinio) se confundam na esfera pblica, um servindo como ponto de apoio para o outro. Nesse sentido, temos de ter em vista que as afirmaes multiculturalistas e de tolerncia, antes de tudo, so de base liberal, operando a reduo dos problemas do poltico, com sua normatividade prpria, aos problemas culturais que so passveis, pretensamente, de resoluo jurdica. A culturalizao da poltica41

, outro nome para o mesmo processo, implica aquela

constituio normatizadora dos sujeitos, mas aqui tingidos com traos culturais que se dizem inultrapassveis e que constituem uma identidade (performtica e contraditoriamente). A ciso que a tolerncia liberal multiculturalista pressupe aquela entre quem est identificado com a cultura, constitudo culturalmente, e aquele que livre para escolh-la, sendo este, sem dvida, a posio onde se encontra o liberal. O triunfo da tolerncia e da livre expresso no a superao dos totalitarismos (ou das ditaduras), mas sim o sintoma da falncia das matrizes instituintes modernas: a violncia instituinte, aquela que o espectro que aterroriza os poderes institudos, pois imperium, suspenso de toda ordem, a-nomos, o que causa pavor e admirao. Isso indcio da prpria traio da violncia em sua forma instituinte e a sua manifestao o terrorismo contemporneo. A confuso que acarreta no ingnua: toda violncia, com exceo daquela mantenedora do imprio de direito, condenada. Por isso a violncia instituinte tambm o , pois visa outro grande Outro para a ordem40

WOOD, Ellen Meiksins. Democracia contra capitalismo, p, 199. Seguindo os passos cruciais da teoria da democracia que encontramos em Ellen Wood, devemos insistir na separao e mesmo na contraditoriedade entre liberalismo (entendido aqui como um corpo de princpios geralmente relacionados a governo limitado, a liberdades civis, a proteo da esfera da privacidade contra a invaso pelo Estado, junto com a nfase na individualidade, na diversidade e no pluralismo (WOOD, Ellen Meiksins. Idem, p. 197)) e democracia, sendo a frmula moderna democracia liberal (tentativa de cooptao da democracia pelo liberalismo, adotando seu lugar e efetivamente substituindo-a) uma reconstituio da democracia apenas permitida pelo capitalismo, o qual, em suas relaes constitutivas, antittico constituio efetiva da ideia de democracia. No deveria causar espanto, portanto, que o pensamento democrtico generalizado, na verdade, diz respeito aos cnones do liberalismo e pouco tem a ver com a democracia, efetivamente. O problema que o espanto existe, retratando no uma confuso terminolgica difundida e difusa no senso comum, mas o modo de constituio do prprio pensamento poltico na forma de sociedade capitalista. 41 ZIZEK, Slavoj. Violncia, p. 125.

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simblica, objetivando, novamente, fund-la, ao passo em que a violncia pura (ou divina) no conta com a figura espetacular do grande Outro, no sendo por ele coberta42; 43

. Nesse sentido, violncia

instituda e instituinte encontram-se sobre o mesmo significante de violncia mtica, a violncia da potestas, de todo o institudo. a violncia que funda e mantm o direito e o Estado e tambm aquela forma de violncia que de potentia passa a potestas, que retorna no terrorismo como violncia instituinte, como violncia fundadora que traduz a autoinstituio dos Estados 44. No por acaso que nos deparamos com a violncia esconjurada ao questionarmos a racionalidade tolerante. Assim como o Estado funda-se, tautologicamente, em si prprio, como violncia no fundada que institui e funda os aparelhos ditos legtimos, os quais se transformam no justo e no direito (aquele porque este), a razo tolerante apoia-se na mesma violncia que tenta impedir. Falhar em tal objetivo no uma falha, um erro de projeto, mas a conditio mesma dessa tentativa de mediao. O fracasso da razo tolerante o sinal do seu triunfo, tal qual a mitificao que regressa na cientificidade esclarecida.

VI

Esperar que nos ouam o sentido da tolerncia, que se torna um voto, uma atitude de dar tempo ao outro falante para que submeta ao crivo crtico o nosso argumento 45. Mas se o clamor for contra as injustias do tempo, no tempo, trazidas naquele momento de agora em que se pode construir a memria de injustia de marias e joss? E se estivermos diante do no tempo de uma pretenso de justia? o momento da solidariedade, que se faz no movimento de aceitar e se pr a lutar pelas pretenses do Outro, daquele que est fora da marca institucional, das fronteiras, mesmo estando dentro delas: est nas inmeras zonas de suspenso simblicas, quando no at mesmo jurdicas (ao lembrarmos dos homini sacer).42 43

ZIZEK, Slavoj. Robespierre, ou a divina violncia do terror, p. 29. ZIZEK, Slavoj. Violncia, p. 174. 44 ZIZEK, Slavoj. Idem, p. 107. 45 DUSSEL, Enrique. Desconstruccion del concepto de tolerancia, p. 3.

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Para as fronteiras da totalidade, a exterioridade s se faz visvel de duas formas: integrando-se ordem simblica instituda, reivindicando reconhecimento, ou reivindicando existncia prpria e uma nova ordem, que no se paute no movimento exteriorizante e reificador do desdobramento das relaes de opresso/excluso. Isso sempre violncia para a ordem, para os direitos da ordem, para o maquinrio totalizador annimo. um movimento que aparece como ilegtimo, sendo sempre combatido, criminalizado, quando no simplesmente destrudo. A crtica dos meios alternativos serve sempre para condenar a violncia libertadora daqueles que sofrem a sua (no) existncia, conduzindo aos caminhos institucionais que ns j sabemos cujos resultados nos trazem, nenhum deles efetivamente libertador quando muito, atuam como liberadores da necessidade de conscincia, de assumir posies e de endoss-las responsavelmente. A violncia do oprimido resposta, jamais iniciativa 46: essa violncia no (momento no qual os significantes mostram os seus pesos) sangue, mas palavra/linguagem em potncia, uma resposta carnalidade do Total 47. Passamos a falar, aqui, de solidariedade, tratando no do Prximo, mas de um Outro. Mais do que a des-poltica vigente, a biopoltica ps-poltica, a via parlamentar, a longa marcha atravs das instituies, interessa-nos o campo do poltico a ser mapeado enquanto politizao radical que atravessa a Totalidade vigente e indica a Exterioridade, no movimento de configurao de mundos. O Prximo aquele que est (des)qualificado diante da ordem simblica, aquele que possui ou passa a possuir identidade, lembrando que o custo do possuir o de se deixar tornar propriedade daquilo que se assume: no se mais o que era, mas sim mulher, homem, judeu, cristo. A esfera do Prximo a esfera do cidado, da compreenso tradicional do reconhecimento, daqueles que formalmente detm direitos e garantias perante a ordem instituinte 48, sem deixar de traduzir, ainda, ainda, as injunes crists de amor na incondicionalidade do ser do outro, mas desde que este permanea como representao do Mesmo na proximidade. Quando Freud e Lacan insistem na natureza problemtica da injuno judaico-crist46 47

LABICA, Georges. Democracia de revoluo, p. 78. DUSSEL, Enrique. De la fraternidad a la solidariedade, p. 22. 48 A problemtica (da) transferncia dos problemas de identidade para o mbito privado indica um modo de tentar conter em uma esfera pretensamente isenta da cobertura da normatividade pblica o curto-circuito entre o identitrio e o antiidentitrios. Na verdade, trata-se de deixar os problemas entregues a uma normatividade sui generis, que encontra apoio delimitador e interveniente no campo estatal, o qual atua de modo a assegurar esse esfera prpria que auxilia a fundar.

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fundamental ama o teu prximo (...) afirmam uma tese muito mais forte sobre a incompatibilidade entre o Prximo e a prpria dimenso da universalidade. O que resiste universalidade a dimenso propriamente inumana do Prximo 49. O Outro no se aproxima, pois destri as redes da aproximao, que devem ser lidas como a forma de capturar um sujeito como Prximo, colocando, destarte, em funcionamento modos de captao. Pelo contrrio, tornar-se Outro assumir a interpelao como solidariedade com a inumanidade mutilada pelo Prximo, inumanidade presentificada daquilo que no tem corpo (e, quando o tem, ele monstruoso algo mais do que a apario monstruosa), daquilo que escapa aos sentidos institudos e inscritos no Simblico e a partir dele. O multiculturalista liberal no consegue compreender (...) que a nica comunicao autntica a da solidariedade na luta comum, quando descubro que o atoleiro em que eu estou tambm o atoleiro no qual est o Outro 50. A tolerncia multicultural encontra seu modo de tolerncia em posturas objetivas que no toleram sequer a proximidade, demonstrada pela sua lgica das medidas que funda assim o seu direito indiferena/indiferenciao/tolerncia. Ao contrrio do Outro, o Prximo define-se pela medida de seu aproximar, ou, melhor dizendo, pelo dever de no se aproximar demasiadamente. O momento da presena conspurcado pela medida. O que definiria o cara a cara j aquilo mesmo que exclui: inclui-se a calculabilidade mensurvel do devido. Na Totalidade, assim, podemos encontrar na fraternidade o recalque dos princpios polticos da modernidade, trados pelas falsificaes tolerantes, as quais selam a misria das relaes, desertificando a experincia (que poderia ser dita experincia dos osis). Inscrevem-se, assim, portanto, duas lgicas na Totalidade: h a tolerncia, referida ao Mesmo, e a fraternidade, referida ao Prximo. O momento que queremos e devemos afirmar aquele do movimento que parte da Exterioridade: s podemos fundar a efetiva libertao, que solapa as coordenadas anteriores de excluso/exteriorizao, mediante a solidariedade com o Outro.

49 50

ZIZEK, Slavoj. Violncia, p. 56. ZIZEK, Slavoj. En defensa de la intolerancia, p. 61. Traduo nossa.

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VIIO sr. K. no achava necessrio viver num determinado pas. Ele dizia: Posso passar fome em qualquer lugar. Mas um dia passou por uma cidade que era ocupada pelo inimigo do pas no qual vivia. Ento cruzou com um oficial do inimigo, que o obrigou a descer da calada. O sr. K. desceu, e notou que estava aborrecido com esse homem, e no apenas com ele, mas sobretudo com o pas ao qual ele pertencia, de modo que desejou que esse pas desaparecesse da face da Terra. Por que me tornei um nacionalista por um minuto?, perguntou o sr. K. Por ter cruzado com um nacionalista. por isso que se deve eliminar a estupidez, porque ela torna estpido aquele com quem cruza. 51 Sr. K [tambm dito Keuner], O amor ptria, o dio s ptrias

A relao com o passado implica, para ns, uma relao de atualizao, pois parte sempre de uma interpretao que o presente faz do passado, a qual crtica, complexa e, sobretudo, de relevncia poltica. Neste sentido o passado construdo no como realidade acabada, no como objeto esttico e esgotado, mas sim como objeto aproprivel porque dinmico e mutvel, sendo produto do acontecido e das demandas, interrogaes e interpretaes que o presente faz a si mesmo. No h um passado objetivo, neutro, que possamos, atravs de um olhar cientfico e totalizante, reconstruir, pois fazemos poltica com o passado 52. Essa apropriao do passado que reivindicamos no nega a existncia material da poca citada, aquilo que no se pode mudar sem negar a prpria histria, o ncleo de permanncia, o que Benjamin denomina a verdade do acontecido (por isso falar em atualizao do acontecido). Todo passado devolve, portanto, as marcas da injustia, escravido, guerras, colonizao, dor, mas tambm nos recorda de seus impulsos redentrios, seus desejos postergados, suas lutas inconclusas. Para compreender e reivindicar esse passado deve-se negar o axioma ordem e progresso, ler o lugar da dor, do sofrimento, daqueles que caram no esquecimento ao serem devastados pela tempestade aterradora do progresso. A rememorao histrica dos vitimados que pode tornar inacabado o sofrimento aparentemente definitivo das vtimas do passado. O ano no mais teolgico, no sentido daquele que prepara a vinda, pois ns j aqui estamos, presena da no presena que deve constituir o

51 52

BRECHT, Bertolt. Histrias do sr. Keuner, p. 19. Grifo nosso. Interessante observar que a cultura dos oprimidos reconheceu essa poltica muito antes que a cultura acadmica, a msica Palmares 1999 do grupo Natiruts demonstra tal entendimento: A cultura e o folclore so meus / Mas os livros foi voc quem escreveu / Quem garante que palmares se entregou / Quem garante que Zumbi voc matou / Perseguidos sem direitos nem escolas / Como podiam registrar as suas glrias / Nossa memria foi contada por vocs / E julgada verdadeira como a prpria lei / Por isso temos registrados em toda histria / Uma msera parte de nossas vitrias / por isso que no temos sopa na colher / E sim anjinhos pra dizer que o lado mal o candombl.

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presente. No h o Messias, ns o somos. A ns tambm foi dada uma parcela fraca de poder messinico pela histria dos oprimidos a fim de redimir o passado. Cabe histria iluminar os cadveres das valas comuns do cotidiano, uma vez que somente assim se poder invoc-los para a luta no presente, luta que pode ser vitoriosa e redentora. O progresso uma p de terra na cova dos mortos. A histria tem a misso de ressuscitar profanamente os mortos e alist-los na luta do presente: O marxismo no tem sentido se no for tambm o herdeiro e o executante testamentrio de vrios sculos de luta e de sonhos de emancipao 53. Trata-se de uma relao dialtica entre o hoje e o ontem, pela qual o presente d cognoscibilidade ao passado 54, e este, quando compreendido, d a fora messinica necessria para o xito da luta presente. Os mortos fazem-se ouvir, o sangue cifrado pelas derrocadas de outrora ganha significado novo no corpo dos que se sublevam hoje. Dessa forma a luta pelo passado , antes de tudo, uma luta atual e poltica, pois aqueles que vencem no escravizam s os oprimidos de hoje, mas reafirmam a espoliao dos que j morreram. O olhar, ao contrrio da filosofizao ocidental, no o sentido da especulao, mas apenas uma das vias de construo/destruio da experincia. A solidariedade passa tambm por corpos, corporifica, naquele que responde interpelao da alteridade, o Outro, momento em que passa a responder como Outro. Todo o ser est em jogo. As vias para o futuro, assim, para sua abertura e possibilidade de presentificao, no mais visto como o Abstrato que consome nossa existncia, do-se pela redeno e reescrita do passado, da histria, o que se faz na ao presente. O estado de exceo se apresenta como regra, cabendo a ns uma correspondncia que vir como uma interrupo no continuum da histria atravs do lao dialtico entre presente e passado e que se dar atravs de uma violncia pura, divina. Se o anjo da histria estiver olhando para frente, o amontoado de corpos e escombros ser em vo. A luta ter um recomeo a cada derrota. Estamos no inferno, ssifos que se amontoam em um incessante trabalho que progressivamente aumenta, e sempre recomea a cada jornada, conforme os encantos do canto do progresso: a sobrevivncia mais imediata,

53 54

LWY, Michel. Aviso de incndio, p.57. A tarefa do presente, enquanto momentaneidade, tempo do acontecer, construir um elo de cognoscibilidade entre presente e passado, pois a historia pode nos escapar se no nos reconhecermos nela.

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combinada com falsas necessidades, aperfeioa a mutilao sensorial dos dominados. A histria das derrotas deve nos ensinar que, no momento de perigo, de luta e de crise do sistema vigente, as armaduras dos antepassados pesam nos ombros dos homens do presente 55. Aqueles so convocados (e invocados) para esta guerra que ainda no acabou. Apesar de terem perdido inmeras batalhas, a guerra (a barbrie) ainda persiste. Quando o oprimido fala, a voz que sai de sua boca a voz de milhes que se afogaram no prprio sangue, e que, por isso, se tornaram inaudveis diante do discurso e linguagem sistmicos. interessante notarmos, no cotidiano frentico das prises, que h, comumente, um fundo ruidoso e sinistro. Quando h o silncio, contudo, a ordem das coisas suspensa, e com ela, a pronunciabilidade. Estamos diante da especfica presena do impronuncivel, que explicita a incapacidade da linguagem da representao, da representabilidade, da tentativa miticamente violenta (jurdica) de conteno da luta. Por isso a pseudoatividade da cotidianidade prisional o anseio ordinrio da diretoria, porque a mola resiste, mas tambm mostra que a ordem funciona. A afirmao e a negao no direito so sintomas do funcionamento do sistema. O silncio e a inatividade radical so a verdadeira radicalidade. No so comportadas pela linguagem que exige um falatrio generalizado reprodutor da injuno ao dilogo monolgico 56. No h silncio antes da fala. A posio silente, enquanto silncio insurgente, surge da necessidade de romper uma fala que comunica apenas os rudos do vigente. O silncio das horas o silencio de chronos. O silncio que ultrapassa a mortificao aquele de kairos, do Tempo, transcorrer das interrupes, continuidades, labor e sofrimento que assinalam a existncia e que tambm nos indicam, ao mesmo tempo, um no transcorrer. O silncio, aqui, surge como55

Sabia Marx que o passado atualiza o presente e delimita as condies do prprio atuar, de acordo com a filosofia da prxis, o que no deixou de expressar, apesar de suas ressalvas de homem ilustrado no progresso, na sua principal obra histrica, O 18 Brumrio de Lus Bonaparte: Os homens fazem a sua prpria histria, mas no a fazem segundo a sua livre vontade, em circunstncias escolhidas por eles prprios, mas nas circunstncias imediatamente encontradas, dadas e transmitidas pelo passado. A tradio de todas as geraes mortas pesa sobre o crebro dos vivos como um pesadelo. E menos quando estes parecem ocupados a revolucionar-se, a si e s coisas, mesmo criar algo de ainda no existente, precisamente nessas pocas de crise revolucionria que esconjuram temerosamente em seu auxilio os espritos do passado, tomam emprestados os seus nomes, a suas palavras de ordem de combate, a sua roupagem, para, com esse disfarce de velhice venervel e essa linguagem emprestada, representar a nova cena da histria universal (MARX, Karl. O 18 Brumrio de Lus Bonaparte, p. 207-208). 56 O tarefismo exacerbado requisitado pelo movimento estudantil nada mais do que a verso vulgarmente simplificadora da interpassividade: A reside a estratgia tpica do neurtico obsessivo: ele freneticamente ativo para evitar que a coisa real acontea (ZIZEK, Slavoj. Como ler Lacan, p. 37). Oblitera-se, assim, o verdadeiro objeto de disputa, mediante um trabalhar que incessantemente faz deslocar do foco da luta, de modo que o obsessivo impede a apario do desejo do Outro (ZIZEK, Slavoj. En defensa de la intolerancia, p. 121).

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necessidade da expresso de voz outra, de linguagem outra, de discursos e corpos totalmente Outros. Inseridos na expresso de um mundo que no seu, os condenados da terra, na terra, interpelam pelo levante, pela rebelio, pela revoluo. Dar novos tons aos mundos comea por retirar de suas rbitas as prprias tonalidades instituintes da diviso social tambm cromtica. O condensamento temporal que inscreve o presente na histria apresenta o adensamento do momento que traz a fora da voz ao mundo. Contra a tempestade erguem-se as vozes dos insepultos, enterrados e sobreviventes (e tambm daqueles que se moveram pela solidariedade e se tornaram Outros) da maquinaria mutiladora. A exploso que chama luta violncia/linguagem pura que expressa apenas a si mesma. Nossa misso romper esse continuum da histria e ordenar todas as revoltas anteriores 57, redimindo o presente e o passado. V-se, assim, que, sem o horizonte histricouniversal, a verdadeira experincia , mais uma vez, mutilada e atropelada pela vivncia imediata que atua por choques e obriga o individuo a reagir, e no agir. A histria como acmulo de injustias, sofrimentos, degradaes e espoliaes no conta com um ponto de saturao, ela j saturada. Uma vez estabelecida essa relao de cognoscibilidade (percebendo a histria como sua histria), a esfera de deciso surge em sua radicalidade, o que tambm revela uma ciso. A de-ciso manifesta-se na resposta ao chamado do Outro, o que implica lutar ao seu lado, na sua misria, ou no, o que acaba por apontar a ciso existente que separa os amigos dos inimigos 58. O Outro, enquanto inimigo da Totalidade, aquele que rompe a cadeia de identificao (afetiva) por ela fundada. Mais do que nos abrirmos voz do Outro, estabelecendo uma espcie de dilogo que se orienta por uma comiserao da ordem de um utilitarismo moral, devemos possibilitar que ele exprima o impronuncivel, fruto da experincia. nesse ponto que devemos passar do condicionamento da verdade para a verdade condicionada, da interpretao dos oprimidos para a interpretao oprimida. No cenrio de inverso tico-epistmica, a violncia tornada mito desmancha-se no ar. Agora, ela vista no pano de fundo do

57 58

Os condenados da Terra, p. 240. Aqueles que procuram a expiao no conflito esto ao lado do inimigo. A boa inteno no salva nem diante da mais intensa convico, nem do vazio obrar objetificado.

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cenrio social, saturando as relaes e determinando os rumos da histria; a poltica e o direito perdem o vu da obscuridade. A linguagem por um momento a mesma e aqueles que at ento jogavam pedras no espelho enxergam que: terrvel matar, mas no s a outros, e sim tambm a ns mesmos. Quando necessrio matamos, pois somente com violncia se pode mudar esse mundo mortfero 59. Essa clera transposta em discurso refere-se ao opressor como objeto e no como irmo, pois se pretende criar um verdadeiro estado de exceo que corresponda realidade vivida pelos oprimidos 60. A violncia sair do territrio sacro-diablico para servir profanamente aos ideais redentores daqueles que ganham sua voz enquanto o sangue do algoz escorre: um processo duplamente vitorioso, ao mesmo tempo em que morre o algoz nasce o ser 61, por isso:Sem ideais no h nem liberao nem resistncias s piores formas da violncia, sobretudo no h violncia coletiva (uma resistncia que no fora coletiva seria apenas uma resistncia); e, no obstante, no pode haver nenhuma garantia concernente ao bom uso e ao mau uso dos ideais. Digamos melhor: h, certamente, graus na violncia que acompanha a formulao e execuo dos ideais, mas no um grau zero. No h, pois, no violncia. Isso o que no deveramos esquecer enquanto nos levantamos contra os excessos de violncia em suas diferentes formas. 62

Aqui fica clara a ciso, de um lado o institudo, o posto, e as formas de instituio de uma nova dominao, e de outro a destruio do que a est, sem promessas futuras, j que ela mesma a realizao da promessa: a violncia pura que governa, e no a violncia que serve de instrumento de governo. Essa violncia revolucionria, na problematizao de sua presena, parece-nos distante e nublada, j que o campo de atuao e prtica para o qual ela voltada no consegue fazer traduzir a sua

59 60

BRECHT, Bertolt. [Sem ttulo], [sem pgina]. APUD HORVAT, Brbara Valle. Mito e violncia, p. 13. Creio que se deva dizer que o dio contra o explorador e a opresso , mesmo le, uma elemento humano e humanista. verdade: no curso de uma movimento revolucionrio, desenvolve-se indubitvelmente uma forte carga de dio, que, ademais, indispensvel causa, porque sem ela a libertao no seria sequer possvel. Por outro lado, nada mais repugnante do que a prdica pietista, no odeie o teu adversrio, pronunciada em um mundo no qual o dio inclusive institucionalizado. No prprio curso do processo revolucionrio, sse dio pode naturalmente transformar-se em crueldade, em brutalidade e em terror. Mas o limite entre o dio e suas degenerescncias terrvelmente incerto. Sbre sse assunto, no posso dizer seno o seguinte: uma de nossas tarefas consiste, precisamente, em impedir na medida do possvel uma tal transformao, ou seja, demonstrar como a brutalidade e a crueldade pertencem ao sistema repressivo e como a luta de libertao no tem a menor necessidade dessa transformao do dio em sentimentos to deteriorados. Pode-se golpear, pode-se vencer um adversrio, sem que para isso seja necessrio cortar-lhe as orelhas ou as pernas ou tortur-lo. MARCUSE, Herbert. O fim da utopia, p. 41. 61 SARTRE, Jean Paul. Prefcio [de Os condenados da terra], p. 39. 62 BALIBAR, tienne. Idem, p. 14. Traduo nossa.

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linguagem sem destru-la: no h fundamentao fora do experienciado, fora da histria, fora dos que esto fora. chegado o momento de deixar expressar-se uma linguagem outra, que vem e aponta os limites da linguagem, a limitao da expresso da alteridade 63, uma vez que a linguagem, na qual nos fazemos, s pode ser redimida com o seu desfazimento, significando que temos de desfazer a ns prprios. Expressando a tenso dos limites, mediante metamorfoses incessantes que se fazem necessrias, presentificando relaes radicais de solidariedade, que no apenas fazem escutar o Outro, mas lhe do voz, somando-se a ele e fazendo-lhe a crtica (dos limites), comeamos as passagens, na tenso do silncio e da voz do Outro, concluindo o presente ensaio, com a msica Declarao de Guerra do rapper carioca MV Bill:

Ei, me, acorda que o terror vai comear / Coloque a janta, pode ser a ltima se p / Se eu no voltar, sorria / Vou em busca da alegria / Vou incentivando o dio (quem diria) / tudo pela salvao / Em nome da razo / Acenda a vela / o cdigo da rebelio / Os generais nem imaginam nosso plano / Pensam que mais um engano / Jesus est voltando / Os pretos que esto do lado de c / So soldados mascarados aliados ao PPPomar / Os diretores forjam as fugas / Tenso nas celas, bueiros, so verdadeiros sanguessugas / Libere a fuga diretor! Solte os detentos / Pelados pela rua, escura, sem lamentos / A nossa tropa s tem doido, / Resto, lixo, bicho, praga / Vou jogar mais vinho na sua gua / So pessoas que vivem na amargura / No nos resta mais ternura / A batalha vai ser dura / Eu avisei que a guerra era inevitvel / Pra quem t na condio desfavorvel / Subestimaram, pagaram pra ver, e to vendo / Ignoraram a nossa coragem, to morrendo / A violncia no fui eu que inventei / Somos condenados a servios de um rei / Chega de ouvir esse discurso social / Chega de ouvir a lenga-lenga racial / Sou animal sou (sou), sou canibal sou (sou), eu sou letal / O verbo que populariza o mal / Vo tirando a fantasia de artista / No tem mais carnaval / Acabou o show pra turista / Que venham vrios pagodeiros e sambistas / A luta o corao de um guerreiro ativista / Convoque os ndios, convoque os canibais / Convoque os sonhos, dos nossos ancestrais / Vou invadir mais um hospcio / Vivemos bem no precipcio (que que isso) / Quero mais guerrilheiros pra esta noite /Vida longa para os pretos, fim do aoite / Vou maquinar mais homicdio pra esse dia / Fim de vida aos brancos, da covardia / So benedito por favor nos proteja / Tragam todos os fiis que esto orando na igreja / Sem terra, sem teto, sem nada nos dentes / Sem fama, sem grana, sem luz, sem parentes / Se foi torturado - siga-me / Se t rebelado - siga-me / Se tiver bolado - siga-me / Ham siga-me, ham siga-me / Se cair seus dentes - siga-me / Se for estuprada siga-me / Se o nome for maria - siga-me / Ham siga-me, ham siga-me / Eu vou pedir mais oraes aos crentes / A guerra turva, e deus necessita estar com a gente / So meia noite o blackout geral / Sirenes, apitos, breu total / Ficou pra trs a nossa dor / L no passado que restava todo amor / Uma criana pede o fim da guerra / Entre vermelhos e terceiros / Me lembra que somos brasileiros / Mais ideologia, menos conflito / No faam de ns mais um grupo de risco / O alemo no apita na favela / Confira voc mesmo, e olhe pela sua janela / Fale seu partido que eu preciso saber! / PMDB, PT, Sat ou TC [Terceiro Comando] / Se for de esquerda, no me contemplou / Se for de direita, me ignorou / Se for de bandido um caso a63

Na msica que segue podemos perceber o campo tensional que se estabelece entre o contedo vivencial da carncia, o vazio que preenche, e a forma j dada de uma musicalizao enquadrada. Os limites todos, aqui, apontam o papel da solidariedade: da crtica terica com a crtica prtica, da crtica esttica com a crtica social e alm, pois no devemos recair na postura ridcula dos homens prticos.

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pensar / Vou me filiar preciso arriscar / Adestrador prepare os ces, no d comida, / Avise aos lobos que a pele branca e a carne viva / Fazendeiro no h mais tempo pra remorso / Vamos transformar seu paraso em destroos / A luta racial / A luta social / Mais ningum se espanta / Porque a guerra santa / preta, marrom, mestia e branca / E quem no decidir em que lado est, vira planta / Eu sou ateu, protestante, sou judeu / Eu sou maom, rosa cruz, e fariseu, zulu / Eu sou a luz do universo em desencanto / No sou mais nada, s a voz do acalento / Levei 500 anos para entender esse pas / Se querem me entender eu s queria ser feliz! / Maria, d veneno pra rainha sua patroa / Volte pro QG com as jias da coroa / Agora cai por terra toda arrogncia / Vamos celebrar, viva a voz da ignorncia! / Deus vai perdoar, deus vai entender / Deus vai lhe ajudar, chega de padecer / De um lado humanos, do outro, manos / Todos armados ento so desumanos / Falam que a briga no nos leva a nada / O mar no tem cabelo, quem se afoga nada / No d pra exigir de quem no come nada / Aqui seu diploma no vale de nada / Ns no somos nada / Ns no temos nada / Branco camarada, largue a espada / Acabou o desafio, no pode pensar / Imagino deve ser difcil aceitar / Essa guerra que j foi vencida / Solte suas armas e comece a despedida / Abaixe a cabea, faa o ltimo pedido / Pea qualquer coisa menos ser meu amigo / No, no faz sentido / Sou heri ou bandido? / A sirene t gritando / Perigo / Os pretos que vo te julgar / Voc t na bola / Ento comece a chorar / Devolva meu samba, a nossa cultura / A capoeira, o ax e a vida das pessoas que moram na rua / A histria foi queimada, ofendida / A morte o fim, a guerra a vida / Durante muito tempo eu vi o mundo girar / De braos cruzados esperando a morte chegar / Foi o despertar, comece a sua prece / Dessa vez vai ou racha / Ou d ou desce / Se perdeu o juzo - siga-me / T no prejuzo - siga-me / No quer ser escravo - siga-me / Ham siga-me, ham siga-me / J matou tarado - siga-me/ Se perdeu o seu emprego - siga-me / Se foi derrotado - siga-me/ Ham siga-me, ham siga-me!

REFERNCIA

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