curriculo cultura e intercultura (nerling)

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  • 8/16/2019 Curriculo Cultura e Intercultura (NERLING)

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    Maria Andréia Maciel Nerling

    CURRÍCULO, CULTURA E INTERCULTURA

    Dissertação apresentada ao Curso de Pós-Graduação

    em Educação, da Faculdade de Educação, da

    Universidade de Passo Fundo, como requisito

    parcial e final para a obtenção do grau de Mestre em

    Educação, tendo como orientador o Prof. Dr. Telmo

    Marcon.

    Passo Fundo

    2006

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    _________________________________________________________________

    I. N448c Nerling, Maria Andréia Maciel

    Currículo, cultura e intercultura / Maria Andréia Maciel Nerling.

    – 2006.

    112 f. ; 29 cm.

    Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade de

    Passo Fundo, 2006.

    Orientação: Dr. Telmo Marcon.

    1. Currículos. 2. Programas de ensino. Educação intercultural. I. Marcon,

    Telmo, orient. II. Título.

    II.CDU: 371.214

    _________________________________________________________________

    Catalogação: bibliotecária Daiane Citadin Raupp - CRB 10/1637

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    Dedico este trabalho aos  Josés  da minha vida, em

    nome de todas as crianças, na esperança de ummundo mais justo e solidário.

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    A presente dissertação é resultado do envolvimento

    de várias pessoas que, com sabedoria e ternura,contribuíram na realização deste trabalho. Assim,

    agradeço ao meu orientador Prof. Telmo Marcon,

    aos professores do Programa de Pós-Graduação em

    Educação, da Universidade de Passo Fundo, bem

    como a CAPES, instituição financiadora, que

    permitiu tornar o meu curso uma realidade.

    Agradeço a minha família pelo incentivo e carinho

    na construção deste percurso. Agradeço aos amigos

    e amigas que com seu apoio foram parceiros nesta

    trajetória e aos colegas da turma 2003, que se

    tornaram amigos e partilharam os vários momentos

    desta etapa. Finalmente, aos professores EldonHenrique Mühl e Oswaldo Alonso Rays, agradeço

    pela contribuição para concluir este trabalho.

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    “Da mesma forma como o operário tem na cabeça o

    desenho do que vai produzir em sua oficina, nós

    mulheres e homens, como tais, operários ouarquitetos, médicos ou engenheiros, físicos ou

    professores, temos também na cabeça, mais ou

    menos, o desenho do mundo em que gostaríamos de

    viver. Isto é a utopia ou o sonho que nos instiga a

    lutar. (...) Por isso, aceitar o sonho do mundo melhor

    e a ele aderir é aceitar entrar no processo de criá-lo.

    Processo de luta contra qualquer tipo de violência.

    De violência contra a vida das árvores, dos rios, dos

    peixes, das montanhas, das cidades, das marcas

    físicas de memórias culturais e históricas. De

    violência contra os fracos, os indefesos, contra as

    minorias ofendidas. De violência contra os

    discriminados não importa a razão da discriminação.

    De luta contra a impunidade que estimula no

    momento entre nós o crime, o abuso, o desrespeito

    aos mais fracos, o desrespeito ostensivo à vida. (...)

    E tudo isso, com momentos, apenas, de desencanto,

    mas sem jamais perder a esperança. Não importa em

    sociedade estejamos e a que sociedade pertençamos,

    urge lutar com esperança e denodo”.

    (FREIRE, 2000, p. 133)

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    RESUMO

    Esta pesquisa propõe-se a investigar a possibilidade de construção de um currículo

    capaz de enfrentar a fragmentação social e cultural do conhecimento, onde a estruturação do

    currículo formal organizado em disciplinas funciona como um poderoso instrumento de

    desrespeito à diversidade cultural, contribuindo, assim, para fazer da escola um espaço de

    seleção e de exclusão. Discute-se o currículo escolar como produto de relações interpessoais e

    sociais que ocorrem pela interação entre os indivíduos no contexto social e cultural,

    questionando a natureza do conhecimento que é objeto do ensino e da aprendizagem, as

    relações entre a educação escolar e a construção histórica do conhecimento. A pesquisa trata

    o currículo com uma orientação intercultural capaz de romper com o modelo tradicional de

    conhecimento e a organização curricular numa perspectiva de cultura vista enquanto

    totalidade. Dessa forma, com uma pesquisa bibliográfica, busca-se compreender, de forma

    dinâmica e histórica, o currículo escolar como processo social, constituído por diferentes

    concepções, ideologias e tradições, a partir de uma abordagem crítica do processo de

    organização curricular, superando o modelo fragmentado e compartimentado de

    conhecimento, presente na estrutura curricular atual, fundamentada no isolamento dos

    conteúdos. Ao discutir uma perspectiva intercultural de educação, retoma-se o conceito de

    cultura, enfatizando o diálogo como o elemento fundamental na interação entre sujeitos e

    grupos diferentes, e destacando a necessidade de repensar e ressignificar a concepção de

    educador.

    Palavras-chave: currículo, cultura, conhecimento, intercultura.

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    ABSTRACT

    This research intends to investigate the possibility of construction of a curriculum

    capable to face the social and cultural fragmentation of the knowledge, in which the

    structuring of the organized formal curriculum in disciplines works as a powerful disrespect

    instrument to the cultural diversity, contributing, like this, to do a selection space of the

    school and of exclusion. The school curriculum is discussed as product of relationships

    among people and social that they happen for the interaction among the individuals in the

    social and cultural context, questioning the nature of the knowledge that is object of the

    teaching and of the learning, the relationships between the school education and the heroic

    construction of the knowledge. The research treats the curriculum with and inter-cultural

    orientation capable to break with the traditional model of knowledge and the curricular

    organization in a perspective of seen culture while totality. In that way, with a bibliographical

    research, it is looked for to understand, in a dynamic and historical way, the school

    curriculum as social process, constituted by different conceptions, ideologies and traditions,

    starting from a critical approach of the process of organization curricular, overcoming the

    fragmented model and knowledge subdivided, present in the structure current curricular,

    based in the isolation of the contents. When discussing a perspective inter-cultural in the

    education, the culture concept is retaken, emphasizing the dialogue as the fundamental

    element in the interaction between subjects and different groups, and detaching the need to

    think and to mean the conception of the educator.

    Keywords: curriculum, culture, knowledge, inter-culture.

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    SUMÁRIO

    CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS............................................................................... 09 

    1 PERSPECTIVAS TEÓRICAS DO CURRÍCULO ............................................................. 17

    1.1 Teorias não críticas ........................................................................................................ 18

    1.2 Teorias críticas .............. ................................................................................................. 21

    1.3 Pós-colonialismo, multiculturalismo, estudos culturais e intercultura .......................... 29

    2 POLÍTICAS DE EDUCAÇÃO E CURRÍCULO ............................................................... 33

    2.1 Aspectos históricos do currículo no Brasil ........................... ....................................... 33

    2.1.1 As origens do currículo no Brasil:

    da chegada dos Jesuítas à Reforma Pombalina ................................................... 33

    2.1.2 O currículo no Império ........................................................................................ 36

    2.1.3 O currículo desde a proclamação da República até o golpe de 1964 .................. 38

    2.1.4 O currículo durante o Regime Militar:

    controle ideológico e avanço do tecnicismo ...................................................... 46

    2.1.5 A década de 1980 ................................................................................................ 50

    2.1.6 A década de 1990 ................................................................................................ 52

    2.1.7 Tendências no início do século XXI .............................. ..................................... 55

    2.2. A diversidade cultural na legislação ................................. ........................................... 56

    3 CONHECIMENTO, CURRÍCULO E CULTURA ............................................................. 62

    3.1 Currículo como disciplina ............................................................................................. 62

    3.2 Ciência e cultura ............................................................................................................ 67

    3.2.1 Um pouco da história da ciência ......................................................................... 68

    3.2.2 Conhecimento e ciência ..................................................................................... 73

    3.2.3 Conhecimento e Currículo na Pedagogia Crítica ............................................... 74 

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    4 CULTURA, INTERCULTURA E CURRÍCULO:

    PERSPECTIVAS E POSSIBILIDADES ............................................................................. 81

    4.1 Cultura ............................................................................................................................ 82

    4.2 Intercultura ..................................................................................................................... 86

    4.3 O diálogo na relação intercultural .................................................................................. 94

    4.4 O papel do educador num currículo intercultural .......................................................... 97

    CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................ 102

    REFERÊNCIAS .................................................................................................................... 108

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    CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS

    A Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada em 1948, defendeu o ¨direito

    de todos à instrução¨ gratuita e obrigatória pelo menos nos graus elementares e fundamentais.

    Diz ainda que a ¨instrução promoverá a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as

    nações e grupos raciais ou religiosos, e coadjuvará as atividades das Nações Unidas em prol

    da manutenção da paz¨.

    Porém, com o desenvolvimento do capitalismo, principalmente desde a segunda

    metade do século XIX, e mais recentemente com a proliferação de políticas neoliberais, o

    direito à educação não se estende para toda a população do mundo. De acordo com a

    Declaração Mundial sobre Educação para todos de Jomtien, na Tailândia, em 1990, ¨há mais

    de 100 milhões de crianças, das quais pelo menos 60 milhões são meninas, que não têm

    acesso ao ensino primário; mais de 900 milhões de adultos, dois terços dos quais mulheres,

    são analfabetos; mais de 100 milhões de crianças e incontáveis adultos não conseguem

    concluir o ciclo básico, e outros milhões, apesar de concluí-lo, não conseguem adquirir

    conhecimentos e habilidades essenciais¨.

    Esse problema também se faz sentir no Brasil, pois, segundo o MEC, “o décimo mais

    rico da população apresenta a média de 10,7 anos de estudo; já os 10% mais pobres não

    atingem, em média, quatro anos de estudo” (MEC, 2003. p. 45). “Hoje são 65 milhões detrabalhadores com mais de 18 anos sem Ensino Médio: 80% dos alunos que estão na escola

    estão na escola pública; destes, 60 % no ensino noturno, que é onde ocorrem os grandes

    fracassos, aonde a repetência chega a quase 50% e a evasão é acima de 15%” (Idem, p. 48).

    A exclusão de milhares de pessoas da escola, impedidas de ter acesso à escrita e à

    leitura, nega um dos direitos fundamentais do ser humano que é o acesso à escrita e, por

    conseguinte, à cidadania. Trata-se de um número muito grande de pessoas, homens e

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    mulheres, adultos e crianças, que estão à margem de uma sociedade que mantém relações de

    poder desiguais e alimenta conflitos sociais de classe, raça, gênero, religião, etc.

    O acesso e o domínio do conhecimento obedece, cada vez mais, às regras de um

    sistema global, baseado nas leis do mercado, responsável por uma brutal desigualdade entre

    os seres humanos. O conhecimento avança a passos gigantescos, atendendo a uma minoria

    incluída que usufrui os benefícios tecnológicos do mundo moderno, deixando de lado grandes

    contingentes de excluídos desses processos. Vivemos numa sociedade que não alimenta a

    esperança de dias melhores, não estimula princípios de solidariedade, de ética e de

    democracia. Assistimos a proliferação da violência e, em certas situações, a instalação da

    barbárie. O predomínio de uma racionalidade instrumental, definida pelos grupos dominantes

    como progresso, passou a pautar as relações humanas e, como conseqüência, vem o

    desrespeito pelos seres humanos, bem como pela natureza.Embora nem todos aceitem, a escola com sua organização, está comprometida com as

    questões que dizem respeito à desigualdade e exclusão sociais, a violência e o autoritarismo, o

    desrespeito ao ser humano e à natureza. Essas questões perpassam desde as políticas mais

    amplas da educação até a ação do professor em sala de aula. A organização curricular e o

    conhecimento divulgado na escola estão permeados de uma racionalidade instrumental que se

    faz presente em nossa sociedade, definindo os princípios e os valores vividos e repassados

    pelos grupos sociais. Discutir tal racionalidade é oportuno, a fim de prepararmo-nos para

    enfrentar as contradições de uma sociedade onde a informação se multiplica quase ao infinitoe se convive com as mais avançadas criações tecnológicas e, por outro lado, permanecem

    lutas básicas por condições materiais minimamente humanas. Essa concepção de mundo é

    resultado do enfrentamento entre valores em um campo de conflitos onde a dignidade humana

    e a preservação da natureza vêm sendo rejeitados, vistos como incompatíveis com o progresso

    e o lucro máximo.

    Nesse sentido, Weber diz que a racionalidade do mundo ocidental justifica os fins pela

    ação dos meios e que as ações sociais dos indivíduos são mediadas por algum tipo de

    interesse com um sentido subjetivo. A partir disto, fundamenta-se os elementos de umaracionalidade instrumental, sob um aspecto utilitarista, no qual os meios estão justificados na

    busca de determinados fins, baseados na individualização da ação social. Na definição dos

    conceitos de ação e razão, em Weber, a configuração de racionalidade moderna ocidental

    fundamenta a lógica moderna da sociedade, isto é, o utilitarismo racional, econômico e

    político, bem como estrutura a conduta dos indivíduos em suas ações sociais. Na obra “A

    Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”, o pragmatismo ocidental está associado a ética

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    religiosa protestante de base calvinista. Essa racionalidade não se limita ao campo meramente

    econômico, pois perpassa o campo político, social e cultural, a partir de uma ética e moral

    próprias. Dentro desse aspecto, Weber tem como preocupação compreender como o processo

    de racionalidade que se constituiu entre os séculos XVI e XVIII na Europa se faz presente na

    institucionalização e na ação racional da sociedade ocidental. Na sociologia weberiana a

    civilização ocidental se caracteriza como gestora de fenômenos culturais universalizados. O

    desenvolvimento e o reconhecimento da ciência como única a validar o conhecimento é prova

    e exemplo que poderia ser citado para justificar tal afirmação. Dentro dessa concepção o

    capitalismo é um dos fatores de maior significação na constituição do desenvolvimento

    ocidental que ocorre da forma mais racionalizada possível, na lógica da modernidade.

    Na “Dialética do Esclarecimento”, Adorno e Horkheimer, formulam uma crítica à

    cultura com base no conceito de racionalidade instrumental, segundo o qual o processológico-matemático de formação do conceito moderno de razão é fundamental. Segundo os

    autores, é típico da racionalidade instrumental um procedimento matemático que transforma o

    pensamento em coisa ou instrumento. Segundo Adorno e Horkheimer, os iluministas

    acreditavam que, através da ciência e da razão, o ser humano conseguiria alcançar a

    felicidade, a justiça e a igualdade. No entanto, a sociedade que se criou com base na

    racionalização ocidental hegemônica foi uma sociedade injusta e discriminadora. A evolução

    da ciência e a ânsia pela dominação trouxeram consigo um processo que, ao invés de

    aproximar, distanciou o homem da felicidade. A tese de Adorno e Horkheimer é a que a

    racionalidade formal é, em última análise, equivalente à racionalidade instrumental, ou seja,

    equivalente a uma racionalidade “coisificante”, cuja meta é o controle de processos naturais e

    sociais. 

    Habermas, por sua vez, busca constituir uma forma de reflexão crítica sobre tal

    instrumentalidade racional como forma de emancipação social. Ele desenvolve na “Teoria da

    Ação Comunicativa” uma análise teórica e epistêmica da racionalidade como sistema

    operante da sociedade. Na idéia de mundo da vida, Habermas mostra a racionalidade dos

    indivíduos mediada pela linguagem e pela comunicação. Esses elementos se constituem em

    instrumentos de construção racional dos sujeitos baseado na estruturação de três universos: o

    objetivo, o subjetivo e o social. Habermas abrange as várias manifestações da razão dos

    indivíduos em todo seu aspecto, na relação com o mundo, tanto nas ações diretas do

    relacionamento do homem com a sociedade de uma forma geral, quanto nas expressões

    simbólicas que intermediam a relação do sujeito com o mundo onde ele vive. Conforme

    Dalbosco (2003), interessando-se especificamente pelo conceito simbólico de ação, focaliza

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    particularmente as ações lingüísticas e, mais especificamente as ações comunicativas. É no

    confronto com o emprego da linguagem em seu sentido pragmático, enquanto ação falada,

    que Habermas vai discutir o conceito de racionalidade instrumental, definindo como

    instrumental toda ação na qual a linguagem é empregada como meio para se alcançar

    interesses particulares. Assim, a ação instrumental não assume a busca pelo entendimento

    baseado num consenso fundado racionalmente como mecanismo de coordenação de sua ação.

    Por sua vez, comunicativa é a ação na qual a linguagem é empregada como fim, visando o

    entendimento entre os parceiros do diálogo e, com isso, nos aproximando de uma

    compreensão mais adequada da sociabilidade e solidariedade humanas.  

    Buscando relacionar tais reflexões às questões do currículo, com vista a superar a

    dicotomia entre escola e realidade, inúmeros esforços, em vários países, estão sendo feitos

    para desencadear processos de elaboração e de implementação de novas políticas curriculares.Em algumas dessas reformas tornam-se explícitas as relações de poder, constituindo-se em

    instrumentos de regulação e de auto-regulação por indivíduos e grupos. Por meio de tais

    reformas, pretende-se instituir determinadas maneiras de ver, sentir e entender o mundo. Em

    outras, a reorganização dos currículos move-se pela intenção de responder, ainda que de

    formas distintas, à reestruturação dos locais de trabalho e às demandas do mercado. Nessas

    reformas, sejam as que visam à formação de futuros trabalhadores em consonância com as

    competências que o sistema produtivo parece desejar, sejam as que visam formar

    trabalhadores críticos, autônomos e flexíveis, as recentes reformas educacionais curricularesocupam um papel de destaque e levam em conta e procuram atender as necessidades das

    recentes mudanças na organização do mundo do trabalho.

    Mas há um aspecto inquietante quando se pensa nos processos de reorganização

    curricular: o caráter multicultural das sociedades. Inegavelmente plurais, as sociedades

    abrigam diferentes grupos sociais, culturais e étnicos. Essas diferenças culturais, cada vez

    mais marcantes, pautam-se por relações de poder que oprimem determinados grupos e

    indivíduos. Esses grupos oprimidos reagem e respondem às ações de xenofobia, racismo,

    fundamentalismo e terrorismo. Tem-se buscado, nos novos currículos, algumas respostas parao complexo problema da diversidade cultural. Essas respostas têm correspondido tanto à

    intenção de harmonizar e integrar os diferentes grupos na cultura hegemônica quanto ao

    propósito de tornar visíveis, questionar e desestabilizar as relações assimétricas entre esses

    diferentes grupos. 

    Diante dessa realidade, é fundamental discutir o papel da escola, analisando a relação

    entre o trabalho escolar e as questões étnico-culturais que afetam inúmeros grupos sociais e a

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    sociedade como um todo. Nessa direção, esta pesquisa propõe-se a investigar a possibilidade

    de construção de um currículo capaz de fazer frente à fragmentação social e cultural do

    conhecimento. Para tanto, critica a estruturação do currículo formal organizado em disciplinas

    que funciona como um poderoso instrumento de dominação e de desrespeito à diversidade

    cultural.Assim sendo, contribui para fazer da escola um espaço de seleção e de exclusão.

    Nesse sentido, o grande desafio da educação é construir um currículo intercultural, que leve

    em consideração a relação existente entre conhecimento e cultura, numa perspectiva

    intercultural. Pretende-se, com esta reflexão, discutir o currículo escolar como produto de

    relações interpessoais e sociais que ocorrem pela interação entre os indivíduos no contexto

    social e cultural. Para isso, é fundamental questionar a natureza do conhecimento que é objeto

    do ensino e da aprendizagem, as relações entre a educação escolar e a construção histórica do

    conhecimento socialmente existente, visto que uma nova perspectiva curricular, exige umavisão de escola contextualizada e uma nova concepção de saber.  A pesquisa propõe-se a

    discutir o currículo com uma orientação intercultural capaz de romper com o modelo

    tradicional1 de conhecimento e na organização curricular numa perspectiva de cultura vista

    enquanto totalidade. A possibilidade de construção de novas alternativas para o currículo

    exige muito mais do que modificações metodológicas ou a introdução de novas disciplinas. É

    necessária uma mudança de ordem epistemológica que seja capaz de provocar mudanças na

    concepção de conhecimento e nas relações entre escola e sociedade.

    Cada vez mais se consolida no mundo a convicção de que a pluralidade cultural écentral para a construção de sociedades democráticas. A cultura como identificadora do

    sujeito e dos grupos sociais, ao mesmo tempo em que pode criar laços necessários à vida

    comunitária e à cidadania, implica também no respeito à diferença. Num país como o Brasil,

    plural pela sua formação étnico-histórica, coloca-nos uma variedade enorme de características

    e elementos culturais e, por isso, a discussão sobre a pluralidade torna-se indispensável no

    currículo. O grande desafio é de como elaborar um currículo numa perspectiva intercultural

    perpassado pela questão da diversidade cultural. Trabalhar a pluralidade cultural na escola

    significa reconhecer e valorizar as diferenças, mas acima de tudo, significa mudar a lógica daescola, visto que a tradição escolar não é trabalhar a diversidade, mas sim a homogeneidade.

    A escola tende a olhar o aluno a partir de um modelo e aproxima a todos a esse modelo

    idealizado.

    1  Pensa-se o tradicional com base no modelo curricular baseado nas disciplinas fragmentadas.

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    A minha experiência como professora em escolas de educação básica, tem mostrado

    como o currículo envolto por uma pedagogia cujos saberes são meramente reproduzidos, tem

    como única preocupação avaliar e aplicar instrumentos que possam mensurar com precisão o

    quanto as habilidades impostas pelo mercado foram aprendidas, sem levar em conta uma

    reflexão sobre o contexto ou uma definição adequada de objetivos. Neste cenário, o professor

    limita-se a executar tarefas pré-determinadas, em tempo e conteúdo, oriundas de um currículo

    descontextualizado e construído por outros. O aluno, por sua vez, convive com a assimilação

    dos saberes que lhes são impostos, sem qualquer reflexão sobre a relação entre estes e as

    questões sociais, culturais e institucionais que permeiam suas posições de sujeito no mundo.

    Ao se pensar no currículo, não se pode simplesmente depositar   informações prontas

    esperando que os estudantes as recebam e as assimilem. É na relação do aluno com o

    conhecimento produzido que este será transformado em instrumento de compreensão docontexto, como parte da ação humana para buscar significados e esclarecer a realidade. O

    processo de escolarização deve, portanto, possibilitar que os alunos adquiram conceitos

    fundamentais para a compreensão de seu mundo e de seu tempo, permitindo que construam

    uma autonomia no processo de construção e aquisição de novos conhecimentos. Para isso, é

    determinante a compreensão do currículo como processo coletivo que considera a realidade, a

    história, os diferentes conhecimentos, as culturas e os seus significados para diferentes grupos

    e classes sociais, contrariando um conceito que entende o currículo como simples lista de

    conteúdos a serem desenvolvidos no período escolar. Por outro lado, a pluralidade culturalexistente tem se tornado uma questão importante para os movimentos sociais, para a academia

    e para as políticas educacionais. A diversidade e a desigualdade mostram-se como grandes

    desafios da educação na sociedade em que vivemos, para enfrentar os preconceitos contra a

    discriminação e a exclusão e, por isso, devem estar contempladas no processo de organização

    e elaboração curricular.

    Para fazer a reflexão em torno destas questões, optou-se por uma pesquisa de caráter

    bibliográfico, mesclada com observações da minha prática docente e dos elementos que

    emergiram de uma pesquisa de campo realizada na fase inicial do trabalho em escolaspúblicas de Palmeira das Missões.2 A pesquisa bibliográfica caracteriza o trabalho elaborado a

    partir de material já publicado, livros, artigos de revistas periódicos e, atualmente, com

    material disponibilizado na internet. Tal bibliografia, segundo Manzo (apud Lakatos, 1991, p.

    183), “oferece meios para definir, resolver, não somente problemas já conhecidos, como

    2 Município localizado na região norte do Rio Grande do Sul, com aproximadamente 39 mil habitantes.

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    também explorar novas áreas onde os problemas não se cristalizaram suficientemente”.

    Assim, “a pesquisa bibliográfica não é mera repetição do que já foi dito ou escrito sobre certo

    assunto, mas propicia o exame de um tema sob novo enfoque ou abordagem, chegando a

    conclusões inovadoras” (LAKATOS, 1991, p. 183 ).

    Assim sendo, busco compreender, de forma dinâmica e histórica, o currículo escolar

    como processo social, constituído por diferentes concepções, ideologias e tradições. Pretende-

    se aprofundar uma abordagem crítica do processo de organização curricular, discutindo uma

    concepção de currículo baseada na interdependência entre os diversos campos de

    conhecimento, superando o modelo fragmentado e compartimentado de conhecimento,

    presente na estrutura curricular atual, fundamentada no isolamento dos conteúdos.

    A perspectiva que orienta a investigação é a de que é possível pensar o conhecimento

    (e o currículo) dentro de uma ampla rede de significações que trabalhe com a diversidadecultural numa perspectiva de totalidade das atividades humanas. Para enfrentar essa questão,

    propõe-se discutir uma orientação intercultural no currículo escolar. Visando explorar essas

    possibilidades metodológicas, faz-se uma discussão sobre a necessidade do diálogo entre as

    culturas, situando a intercultura como uma proposta capaz de enfrentar a diversidade e a

    multiplicidade das práticas escolares. Na era da globalização o grande desafio reside na

    valorização das diferentes culturas para que elas dialoguem e, nesse diálogo, se completem e

    se ajudem. É compromisso da escola trazer à tona os conflitos de natureza étnico-cultural,

    bem como aprofundar as discussões sobre fatos que evidenciam preconceitos ediscriminações. É compromisso da pesquisa ajudar alunos e professores a lidarem com as

    diferenças, tão comuns dentro da própria sala de aula, mas que discriminam pessoas: o

    gordinho, o magrela, o que usa óculos, a deficiência física e mental, entre outras.

    Procurando dar conta desses desafios, estruturou-se a pesquisa em quatro capítulos,

    seguidos de considerações finais. No primeiro deles, “Perspectivas teóricas do currículo”, faz -

    se uma retomada das principais concepções teóricas do currículo, a partir do início do século

    XX, com a proliferação das teorias tradicionais, para as quais o currículo era concebido como

    uma questão meramente técnica, passando pelas teorias críticas, que discutem o conhecimentoe as relações de poder e pelas questões multiculturais, de identidade e intercultura.

    No segundo capítulo, “Políticas de educação e currículo”, faz -se uma retomada

    histórica do currículo no Brasil desde a educação jesuítica, no século XVI, até os dias atuais,

    na perspectiva de como as políticas educacionais e curriculares atenderam os interesses do

    sistema e da classe dominante, em detrimento da grande maioria da população que no

    decorrer do tempo permaneceu à margem de um processo de ensino de qualidade. Também,

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    se faz uma análise da presença do tema da diversidade cultural como política educacional,

    com base nos documentos da UNESCO e da legislação educacional brasileira a partir dos

    anos de 1990 aos dias atuais. Desse estudo, busca-se entender como a legislação trabalha e

    reconhece a pluralidade cultural como uma questão importante e atual a ser considerada na

    escola e na organização do currículo, pois mesmo com todos os documentos oficiais que

    tratam da questão cultural, na prática, tem encontrado muitas dificuldades para ser

    implementada. Além disso, essa discussão envolve muitos outros elementos para que seja de

    fato incorporado às práticas docentes cotidianas e aos currículos de fato.

    No terceiro capítulo, “Conhecimento, currículo e cultura”, discute -se a

    disciplinarização do currículo e a compartimentalização do conhecimento, a fim de atender as

    exigências de uma sociedade dividida em classes, baseada numa concepção positivista de

    educação e de sociedade. Faz-se uma discussão relacionando conhecimento científico ecultura, apontando vários enfoques dados à ciência no decorrer da história e a sua influência

    na construção do conhecimento divulgado na escola. Procura-se compreender as relações

    entre o conhecimento construído na escola e a interação com a sociedade onde os sujeitos

    desse conhecimento atuam, buscando fundamentos na pedagogia crítica para discutir a

    construção do currículo escolar na perspectiva da intercultura.

    No quarto capítulo, “Cultura, intercultura e currículo”, consideram -se as perspectivas

    culturais diversas e se discute a relação entre cultura, intercultura e currículo. Aponta-se para

    as perspectivas e possibilidades de concretização, no espaço escolar, de uma proposta

    curricular que considere de modo especial a diversidade cultural. Discutem-se, brevemente, as

    teorias que relacionam as diferentes culturas, trazendo a intercultura como uma proposta para

    se construir uma sociedade plural e democrática. Pensa-se em novas estratégias de relação

    entre sujeitos e grupos diferentes, enfatizando o diálogo como o elemento fundamental nessa

    interação. Ao se discutir uma perspectiva intercultural de educação, destaca-se a necessidade

    de repensar e ressignificar a concepção de educador, bem como redimensionar a sua

    formação.

    Nas considerações finais retomo as principais idéias discutidas ao longo dos capítulos,

    reafirmando a necessidade de discutir o currículo escolar a partir da fragmentação do

    conhecimento em disciplinas e propondo uma abordagem intercultural na organização

    curricular, firmada no diálogo e na formação de um docente crítico e transformador, capaz de

    contribuir para que tenhamos uma educação que verdadeiramente garanta o acesso a todos.

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    1 PERSPECTIVAS TEÓRICAS DO CURRÍCULO

    Segundo Goodson (1995, p. 31), a expressão “currículo vem da palavra latina

    Scurrere, correr, e refere-se a curso (ou carro de corrida). As implicações etimológicas são

    que, com isso, o currículo é definido como um curso a ser seguido, ou, mais especificamente,

    apresentado”. O conceito de currículo, no entanto, depende das concepções pedagógicas, de

    educação e de conhecimento que se tem. Assim, pode-se pensar em currículo como mera

    prescrição ou descrição de conteúdos ou, numa perspectiva histórica e crítica, como um

    processo coletivo que leva em conta o contexto, a história, os diferentes conhecimentos,

    culturas e os seus significados para determinados grupos e classes sociais.

    No final do século XIX e início do século XX, com a expansão da economia

    americana baseada na produção industrial de larga escala, foi necessário ampliar o número de

    empregados. Com isto, intensificaram-se os processos de imigração, urbanização e

    industrialização, trazendo como conseqüência o aumento de alunos na escola. A escola torna-

    se, assim, um espaço institucional capaz de transmitir os valores e os comportamentos

    compatíveis com a sociedade americana da época, principalmente adequando-se às novas

    necessidades da economia. Neste contexto “considerou -se o currículo como o instrumento por

    excelência do controle social que se pretendia estabelecer” (MOREIRA e SILVA, 1995,

    p.10). O currículo surge, então, como uma forma de controle e eficiência da sociedade. Mais

    do que mera descrição de conhecimentos a serem transmitidos, o currículo escolar passou a

    prescrever uma visão de sociedade e a sua organização econômica, política e cultural. “As

    palavras classe e currículo parecem ter entrado no tratado educacional numa época em que aescolarização estava se transformando em atividade de massa” (HAMILTON e GIBBONS

    apud GOODSON, 1995, p. 31). 

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    Assim, incorporado ao vocabulário educacional, o termo currículo inspira o

    surgimento de várias teorias que discutem e analisam este campo de estudos. Algumas dessas

    teorias são retomadas a seguir.

    1.1 Teorias não-críticas 

    No início do século XX, são observadas duas tendências teóricas, denominadas teorias

    não críticas, na elaboração do currículo. Uma delas representa o pensamento de Dewey,

    preocupada com a construção da experiência democrática no espaço escolar. A segunda,

    apoiada nos trabalhos de Bobbit, apregoava que o sistema educacional deveria ser tão

    eficiente quanto uma empresa. “Bobbit queria transferir para a escola o modelo deorganização proposta por Frederic Taylor. Na proposta de Bobbit, a educação deveria

    funcionar de acordo com os princípios da administração científica proposta por Taylor”

    (SILVA, 1999, p. 23).

    O taylorismo se caracteriza por um conjunto de medidas criadas por Frederick Taylor,

    no fim do século XIX, para economizar o tempo gasto pelos trabalhadores na produção,

    aumentando, assim, a quantidade produzida e diminuindo a autonomia dos trabalhadores no

    domínio das máquinas. A revolução dos sistemas de produção faz com que o trabalho se

    fragmentasse. Dessa forma, alguns pensam e outros obedecem. O resultado é que o serhumano perde sua autonomia e isso reflete nos sistemas educacionais impedindo a reflexão

    crítica e fazendo crescer a submissão à autoridade. O que importava nessa escola produtiva

    era a obediência e a submissão tanto de professores quanto de alunos, bem como a

    memorização, que repercute nas notas escolares. O taylorismo trabalha com o mínimo

    possível de tempo, eliminando as perdas e produzindo o necessário, usando como estímulo

    prêmios para uma qualidade total3. Na indústria isso se reflete numa diminuição de pessoal,

    aumento da competitividade e ocultação das hierarquias. Na educação se faz realidade através

    da descentralização, autonomia e flexibilidade. Fala-se de “padrões de q ualidade” na escolaassim como nas fábricas. Educar não significa mais o trabalho do “preceptor para formar o

    nobre”, mas a ação da escola para produzir o operário produtivo e dócil. Esta tendência,

    3  O termo qualidade total  aparece com o modelo de gestão e produção denominado “toyotismo”, durante adécada de 1950 e 1960, e “refere -se ao processo de detectar o quanto antes os defeitos de produção ecomercialização, eliminando-os desde o início, sem recorrer ao aumento de custos. (...) Para chegar a estecompromisso, estimula-se sua competitividade mediante prêmios e incentivos econômicos, fazendo com quetrabalhadores e trabalhadoras se comprometam com os objetivos de qualidade e produtividade propostos pelaempresa” (SANTOMÉ,1998, p.17).

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    representada pelo pensamento de Bobbit, baseada no taylorismo, influenciou o sistema

    educacional em vários países e chegou ao Brasil através do que se chamou de tecnicismo. 4 

    Neste modelo pensado a partir do taylorismo, a preparação dos jovens tem em vista a

    incorporação no modelo onde as relações de trabalho, de produção e a organização da

    sociedade, são pautadas pela economia. Nele, a maioria não pode interferir ou tomar decisões

    visto que há a compartimentação dos conteúdos em disciplinas e/ou matérias, em temas e

    lições, sempre detalhados com rigor e exatidão. A idéia da produção em série, organizou as

    aulas5  em matérias, horários, notas, padrões, etc. O conhecimento é abstrato, sem conexão

    com a realidade e, por isto, incompreensível. Segundo Santomé (1998, p. 14), “os conteúdos

    culturais que formavam o currículo escolar com excessiva freqüência eram

    descontextualizados, distantes do mundo experiencial de alunos e alunas. As disciplinas

    escolares eram trabalhadas de forma isolada e, assim, não se propiciava a construção e acompreensão de nexos que permitissem sua estruturação com base na realidade”.

    John Dewey, um dos fundadores da Escola Ativa, deu origem ao movimento

    denominado Escola Nova e, em contraposição a Bobbit, defendia que o planejamento

    curricular deveria considerar os interesses e as experiências dos alunos. Para Dewey, a escola

    deveria preparar os jovens para o trabalho e para a atividade prática. No entanto, o princípio

    norteador era de que só o aluno poderia ser o autor de sua experiência, ou seja, para a vida.

    Por isso, Dewey faz uma forte crítica às instituições de ensino que “obrigam os alunos a

    trabalharem com uma excessiva compartimentação da cultura em matérias, temas, lições ecom grande abundância de detalhes simples e pontuais” (SANTOMÉ, 1998, p. 14). A

    característica mais marcante do escolanovismo é a valorização da criança, vista como um ser

    dotado de potencialidades individuais, cuja liberdade, iniciativa, autonomia e interesses

    devem ser respeitados. Enfatizando a importância da experiência na aprendizagem, Dewey

    afirma que

    4 Como numa linha de montagem, esse modelo é aplicado à escola. Nele, há uma hierarquia que passa a serexercida pelo Diretor, Supervisor, Coordenador e outras figuras do corpo técnico administrativo, os quais

    administram o professor, o aluno, o secretário, o auxiliar de serviços gerais e são administrados pelos Delegadosde Ensino, Secretários de Educação, etc. Mesmo que a teoria taylorista tenha perdido forças no contexto atual,nas escolas esse tipo de administração continua ainda em vigor.5 Ao referir-se à aula e à sala de aula como espaço formal de transmissão do conhecimento na escola, é oportunorecorrer a Rays (1998, p. 268) , quando afirma que “a aula, como forma de organização do processo de ensino -aprendizagem, surge, assim, juntamente com a escola, como a principal promotora de educação formalizada.Essa será a encarregada de promover a formação das novas gerações para a vida adulta e para o mundo dotrabalho (...) A aula comporta assim, espaços político, social, cultural e comunicativo, cujo eixo nuclear émediado por ações pedagógicas e educativas que envolvem, de forma correlacional, o ensino e a aprendizagem,visando proporcionar ao educando condições de conhecer e sentir o mundo da cultura e o mundo da natureza, nosentido de apreende-los criticamente, com o intuito de intervir criticamente – via prática social – na históriaconcreta do desenvolvimento da sociedade”.

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    os fatores humanos e sociais são, assim, os que passam, e podem ser passados, mais

    prontamente, de experiência a experiência. Fornecem o material mais adequado ao

    desenvolvimento das capacidades generalizadas do pensamento.Uma razão pela qual

    muito do ensino elementar é tão inútil para o desenvolvimento de atitudes reflexivas

    é que, ao ingressar na escola, a criança sofre uma ruptura em sua vida, uma ruptura

    com as suas experiências, saturadas de valores e qualidades sociais. Pelo seu

    isolamento, o ensino escolar é, portanto técnico; e a maneira de pensar que a criançapossui não pode funcionar, porque a escola nada tem de comum com suasexperiências prévias (DEWEY,1979, p.75). 

    A proposta de Bobbit, por sua vez, procurou adaptar a escola e o currículo à ordem

    capitalista que estava se consolidando, pois “propunha a construção de um homem novo

    dentro do projeto burguês de sociedade. Poucos foram os pedagogos escolanovistas que

    ultrapassaram o pensamento burguês para evidenciar a exploração do trabalho e a dominação

    política, próprias da sociedade de classes” (GADOTTI, 1994, p.144). Ao discutir o

    escolanovismo, Sacristán (1998, p. 158), faz a seguinte análise:

    O movimento da  Escola Nova na Europa e o  Movimento Progressista nos EstadosUnidos são expressões da mentalidade liberal moderna que contribuiu para moldar o

    pensamento pedagógico mais recente. A educação “centrada na criança”, a pretensão

    de criar climas favoráveis para a auto-expressão, o aprender em liberdade, o ensino

    baseado nos interesses do aluno/a, a adequação do que se transmite para suas

    capacidades, o fomento dos métodos ativos no ensino para favorecer a experiênciapessoal de aprendizagem e a conseqüente relativização dos conteúdos das disciplinas

    herdadas, junto à necessidade de sua reorganização ao apresentá-los aos alunos/as,

    são princípios que orientaram a educação moderna e que continuam sendo fonte de

    sugestões para uma prática que se distancia de realizá-los satisfatoriamente (1998, p.

    158). 

    No Brasil, o movimento escolanovista preconizava a solução de problemas

    educacionais, prioritariamente numa perspectiva interna de escola, não se preocupando tanto

    com a realidade nos seus aspectos político, econômico e social. O problema educacional passa

    a ser uma questão escolar e pedagógica. A ênfase recai no ensinar bem, mesmo que para uma

    minoria. A influência da Escola Nova na formação de professores e na legislação em vigor,

    desde os anos de 1920, foi forte e absorvida de forma significativa. O acento foi,

    fundamentalmente, no caráter prático e técnico do processo de ensino e aprendizagem com a

    prioridade da experiência sobre a parte teórica.

    Com Ralph Tyler, na metade do século XX, o modelo da produção industrial ganha

    força na educação. O pensamento de Bobbitt é consolidado e passa a dominar o campo do

    currículo nos EUA, influenciando outros países, inclusive o Brasil. O currículo, nessa

    perspectiva, é essencialmente uma questão técnica, cujo paradigma está centrado na sua

    organização e desenvolvimento. Nesse sentido, segundo Tyler (1977, p. 5), “educação é um

    processo que consiste em modificar os padrões de comportamento das pessoas. Isto é usar a

    palavra comportamento num sentido lato que inclui pensamento e sentimento, além da ação

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    manifesta. Quando a educação é considerada deste ponto de vista, torna-se claro que os

    objetivos educacionais representam os tipos de mudança de comportamento que uma

    instituição educacional se esforça por suscitar nos alunos”.

    Essa tendência tecnicista marca a educação brasileira, principalmente, nas décadas de

    1960 e 1970, assumindo como pressuposto a neutralidade científica, com base na

    racionalidade instrumental, na eficiência e na produtividade. Buscou-se a objetivação do

    trabalho pedagógico da mesma maneira que ocorreu no trabalho da fábrica. Instalou-se na

    escola a divisão do trabalho sob a justificativa de produtividade, propiciando a fragmentação

    do processo de ensino e aprendizagem, acentuando a distância entre quem planeja e quem

    executa. O professor torna-se um mero executor de objetivos instrucionais, de estratégias de

    ensino e avaliação. Todo o processo passa a ser objetivado num manual instrucional

    facilmente controlável. A educação passa a desempenhar um importante papel na preparaçãoadequada de recursos humanos necessários ao crescimento econômico e tecnológico da

    sociedade, de acordo com as exigências do projeto de desenvolvimento implantado pela

    ditadura militar. Acima de tudo, a educação deveria preparar braços para a execução de

    tarefas exigidas pelo mercado.

    Ao discutir as noções fundamentais sobre a avaliação, Tyler enfatiza o caráter técnico

    do ensino proposto naquele momento. Segundo ele, “o processo de avaliação consiste

    essencialmente em determinar em que medida os objetivos educacionais estão sendo

    realmente alcançados pelo programa do currículo e do ensino. No entanto, como os objetivos

    educacionais são essencialmente mudanças em seres humanos – em outras palavras, como os

    objetivos visados consistem em produzir certas modificações desejáveis nos padrões de

    comportamento do estudante – a avaliação é o processo mediante o qual se determina o grau

    em que essas mudanças de comportamento estão realmente ocorrendo” (TYLER, 1977, p.

    99).

    1.2 Teorias críticas

    Em oposição às teorias tradicionais do currículo, assentadas segundo Silva (2004), nas

    categorias de ensino, aprendizagem, avaliação, metodologia, didática, organização,

    planejamento, eficiência e objetivos, aparecem as chamadas teorias críticas, resultando num

    movimento que, segundo Goodson (1995), passou a ser denominada “reconceptualização do

    currículo”. Esse movimento surge como expressão da insatisfação constante de estudiosos do

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    campo do currículo com os parâmetros tecnocráticos estabelecidos pelos modelos de Bobbitt

    e Taylor. Tal movimento se apoiou nas concepções fenomenológicas, hermenêuticas e

    autobiográficas. Inicia-se o período da crítica neomarxista às teorias tradicionais do currículo

    e de seu papel ideológico a serviço da classe dominante. Estas teorias criticam o currículo

    tradicional e questionam o papel da escola como reprodutora da sociedade capitalista, que

    produz injustiças e desigualdades sociais. Contrariando as teorias tradicionais, preocupadas

    apenas com a organização dos conteúdos escolares, sem problematizar ou criticar os

    conhecimentos recebidos, o currículo passa a ser visto, dentro de uma visão crítica, como o

    resultado de uma construção social, no qual estão implicadas relações de poder, contextos

    históricos e sociais, questões políticas e econômicas. “Desse modo, o neomarxismo, a teoria

    crítica da Escola de Frankfurt, as teorias da reprodução, a nova Sociologia da Educação

    inglesa, a psicanálise, a fenomenologia, o interacionismo simbólico e a etnometodologiacomeçaram a servir de referencial a diversos teóricos preocupados com questões curriculares”

    (MOREIRA e SILVA, 1995, p. 14).

    Dentro dessas teorias críticas, pode-se destacar o papel da teoria da reprodução enquanto

    crítica da educação na manutenção da ordem social e econômica dominante. Entre os teóricos

    defensores dessa perspectiva, pode-se mencionar, mesmo que com posições distintas, Louis

    Althusser, Pierre Bourdieu e Jean Claude Passeron. Para esses autores a educação reproduz a

    sociedade. Esses autores investigaram a estreita relação entre a educação e a produção e

    disseminação da ideologia, apontando a escola como um espaço de reprodução da sociedade

    capitalista. Louis Althusser, em seu ensaio “A ideologia e os aparelhos ideológicos do

    Estado”, publicado em 1969, defende a teoria da escola como aparelho ideológico do Estado

    com a função de reproduzir a sociedade capitalista. Sendo assim, toda ação pedagógica, bem

    como a organização curricular, é uma imposição da classe dominante. Para Althusser, a

    classe dominante produz uma ideologia e usa o poder do Estado, como a escola, para dominar

    as classes subordinadas. “Além disso, a ideologia atua de forma discriminatória: ela inclina as

    pessoas das classes subordinadas à submissão e à obediência, enquanto as pessoas das classes

    dominantes aprendem a comandar e a controlar” (SILVA, 2004, p. 32). Segundo Althusser, a

    própria cultura é produzida pela classe dominante e a escola tem a função de socializá-la a

    partir dos conteúdos e da prática pedagógica.

    Essa visão determinista de Althusser lhe rendeu muitas críticas. A persistir nos seus

    pressupostos praticamente nada mais resta a fazer na escola, visto que ela é uma extensão da

    classe dominante com a função de inculcar a sua ideologia sobre as classes dominadas. Uma

    das críticas mais ferrenhas ao estruturalismo, proposto por Althusser, foi feita por Edward

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    Thompson (1981). A principal crítica incide no fato de que Althusser praticamente excluiu os

    sujeitos históricos em nome das estruturas e foi incapaz de apreender as contradições

    históricas e das instituições sociais. Thompson reconhece o papel das experiências sociais que

    são vivenciadas concretamente e construídas nas resistências individuais e coletivas. Ele

    propõe uma aproximação do conceito de cultura, enquanto modos de viver, com a noção de

    experiência, que é gerada no interior das práticas e da vida material dos grupos sociais. Para

    Thompson, o conhecimento não está desvinculado da construção de um projeto político e

    deve considerar, nesse processo, a luta de classes. Essa luta não é apenas econômica mas

    perpassa as práticas sociais.

    Decorre dessa perspectiva, uma compreensão de que é papel da escola trazer conteúdos

    concretos e indissociáveis da realidade social do aluno e, pela intervenção do professor, passar

    de um saber espontâneo, fragmentado, acrítico, a um saber elaborado. Assim, a escola nãotem a função de adaptar o indivíduo à sociedade, mas proporcionar a ele uma atitude cidadã

    de transformação da sociedade. Os conteúdos não podem ser simplesmente ensinados, mas

    precisam estar ligados à significação humana e social do estudante. Trata-se, de um lado,

    fazer com que o aluno tenha acesso aos conteúdos, ligando-os com a experiência e, de outro,

    proporcionar elementos de análise crítica que ajudem o aluno a ultrapassar a experiência, os

    estereótipos, a ideologia dominante.

    Para isto, é fundamental que haja uma reflexão sobre a importância da escola valorizar

    os “conteúdos historicamente acumulados” e as práticas consolidadas e enraizadas, que não

    permitem a mudança, principalmente as dificuldades em perceber a relevância das questões

    sociais e culturais no cotidiano da escola. Não se pode perder de vista que a inclusão ou

    exclusão no currículo de temas e questões tem conexões com a inclusão ou exclusão na

    sociedade e que, por isso mesmo, a transformação exigirá uma mudança de postura de todos.

    Todavia, o que vemos prevalecer nas escolas é um senso comum pedagógico e no contexto

    brasileiro assistimos a reprodução de estruturas dominantes e preconceitos. Muitas escolas se

    inserem neste contexto e atuam na comercialização do conhecimento e na adaptação do

    indivíduo, segundo interesses de mercado. Como tendência, o que se observa é que as escolas

    públicas trabalham com as massas pobres enquanto as escolas particulares reproduzem os

    interesses da elite. O papel é invertido no ensino superior, pois, de um modo geral, quem tem

    acesso às universidades públicas é a elite, enquanto que as instituições privadas atendem aos

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    que não têm acesso ao ensino público. E esse atendimento não se faz exatamente segundo

    interesses de classe, mas de imposições do mercado de trabalho.6 

    Na crítica da escola capitalista, Bourdieu e Passeron desenvolveram a teoria que a escola

    é o melhor instrumento do capitalismo para reproduzir as relações de poder e a ideologia

    dominante. Para eles, toda ação pedagógica é objetivamente uma violência simbólica

    enquanto imposição, por um poder arbitrário, baseado na divisão da sociedade em classes, que

    é a cultura dominante. A ação pedagógica tende à reprodução cultural e social,

    simultaneamente. Segundo Bourdieu e Passeron, apud Silva, “o currículo da escola está

    baseado na cultura dominante: ele se expressa na linguagem dominante, ele é transmitido

    através do código cultural dominante” (2004, p.35).   É preciso salientar que as teorias 

    reprodutivistas têm um papel fundamental, na medida em que libertam a pedagogia do espaço

    meramente escolar, relacionando escola/educação com os aspectos políticos, econômicos esociais. A escola não se explica por si. Outra contribuição importante é a demonstração dos

    fatores culturais que a escola incorpora e reproduz. Em resumo, a grande contribuição de

    Bourdieu e Passeron para a compreensão sociológica da escola foi a de terem ressaltado que

    ela não é neutra. Formalmente, a escola trata a todos de modo igual, todos assistem as mesmas

    aulas, são submetidos às mesmas formas de avaliação, obedecem às mesmas regras e,

    portanto, supostamente, tem as mesmas chances. Bourdieu e Passeron mostraram que as

    chances são desiguais. Alguns estariam numa condição mais favorável do que outros para

    atenderem às exigências, muitas vezes implícitas, da escola.Ao sublinhar que a cultura escolar é a cultura dominante dissimulada, Bourdieu e

    Passeron abrem caminho para uma análise crítica do currículo, dos métodos pedagógicos e da

    avaliação escolar. Os conteúdos curriculares são selecionados em função dos conhecimentos,

    dos valores e dos interesses das classes dominantes. A própria valorização de cada disciplina

    está associada a sua maior ou menor afinidade com as habilidades valorizadas pela elite

    6 A lógica do mercado é cada vez mais forte em todo o mundo e a educação, na sociedade dominada pelo capital,

    torna-se apenas um meio para atender às exigências do mercado. Nesta perspectiva, a inclusão de competênciasnos projetos pedagógicos e currículos das escolas, vem atender a uma concepção onde a educação é o agentepropulsor básico da modernização brasileira, dando vigor à competitividade, eficiência e eficácia que o mercadono âmbito da produção exige. Segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais (1997), "o novo paradigma emanada compreensão de que, cada vez mais, as competências desejáveis ao pleno desenvolvimento humanoaproximam-se das necessárias à inserção no processo produtivo". Isto é, somos conduzidos a uma educação quetem como fim o mercado. Conforme Benjamin (2001, p. 21), “fortalece -se, assim, um projeto educacional quenão pretende generalizar uma base cultural como fundamento da cidadania. Ao contrário, existe para gerar eaumentar discriminações. (...) Assim concebida, esta será uma educação centrada na técnica, porque a demandado mercado é, antes de tudo, uma demanda de técnicos”.

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    cultural. 

    Nesta perspectiva, a avaliação dos professores vai além da simples verificação do

    aprendizado, constituindo, na prática, num verdadeiro julgamento social, baseado na maior ou

    menor discrepância do aluno em relação às atitudes e comportamentos valorizados pelas

    classes dominantes. 

    Mesmo assim, as teorias reprodutivistas sofreram várias contestações ao longo dos

    últimos anos, pois, “de acordo com este tipo de crítica, as teorias da reprodução supõem uma

    sociedade em que os interesses e a ideologia da classe dominante são impostos sobre a classe

    dominada quase sem nenhuma oposição ou resistência de parte desta última. Essa descrição

    não corresponderia ao que de fato ocorre na realidade, em que o triunfo dos desígnios da

    classe dominante nunca é definitivo, porque eles são continuamente contestados, estão

    permanentemente em conflito com a classe dominada”  (SILVA, 1992, p. 43). Para estas

    teorias, o ciclo de reprodução é infinito e ignora elementos fundamentais como o conflito, aresistência e a luta contra-hegemônica. Os conteúdos transmitidos, os métodos pedagógicos,

    as formas de avaliação, tudo é organizado em benefício da perpetuação da dominação social.

    Contrapondo-se a essa perspectiva, há quem afirme que o conteúdo escolar não pode ser

    totalmente definido como sendo um arbitrário cultural dominante, pois parte dos

    conhecimentos veiculados pela escola seria epistemologicamente válida e merecedora de ser

    transmitida.

    Bourdieu e Passeron (1982), identificam parte do problema. O que temos na escola é

    um “arbitrário cultural”, imposto pelos grupos e classes dominantes aos estudantes, mas

    também experiências e possibilidades de fazer emergir elementos da cultura subalterna. Essa

    contradição é que precisa ser aprofundada. Dizer que o “aluno faz seu próprio currículo” não

    é um processo simples.7  Por outro lado, embora ainda poucas, há iniciativas que buscam

    promover uma aproximação mais respeitosa entre a cultura escolar e a cultura de origem dos

    alunos através da organização do ensino a partir dos conhecimentos anteriores trazidos pelos

    alunos, respeitando e valorizando a diversidade.

    Identificado por suas análises críticas sobre o currículo, Michael Apple é um autor que

    influenciou as teorias educacionais e as práticas curriculares críticas. Ele analisa as relações

    entre as classes, as questões de gênero, de raças e as respectivas formas culturais de

    resistência e de como essas questões interferem nos currículos. Michael Apple começa seu

    7 Conforme o depoimento dos professores das escolas investigadas, se reconhece o quanto é difícil selecionar os

    conteúdos a serem trabalhados. Por isso, na maioria das vezes, acabam optando pelos conhecimentos pré-

    estabelecidos pela Secretaria de Educação/RS ou previstos nos Parâmetros Curriculares Nacionais. Os critérios

    utilizados para fazer a seleção dizem respeito ao nível de ensino, à idade e desenvolvimento da criança, aos pré-

    requisitos necessários para a série seguinte, entre outros. Entretanto, aspectos sociais e culturais não são citadoscomo relevantes na hora de selecionar conteúdos. 

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    trabalho com uma discussão sobre os elementos centrais da crítica marxista da sociedade,

    destacando a conexão entre a organização da economia e do currículo. Mas, para Apple essa

    não é uma relação mecânica; o campo cultural não é um simples reflexo da economia: ele tem

    a sua própria dinâmica. Para ele, o currículo e as questões educacionais são atrelados à

    história política e ideológica (conflitos de classe, raça, sexo e religião). Segundo o autor, leva-

    se para a escola a crise econômica e a relação de autoridade que afeta as práticas e políticas de

    grupos dominantes. Desse modo, a escola envolve-se com o mundo real das relações de poder

    desiguais. Por isso, é preciso transmitir na escola o “conhecimento de todos” e não só o da

    “elite”, pensando nos aspectos pessoal, ético e político, pois a escola distribui valores

    ideológicos e conhecimento, ajuda a produzir o conhecimento para manutenção social, mas

    representa também a resistência. Nesse sentido, Apple diz:  

    As escolas não são “meramente” instituições de reprodução, instituições em que oconhecimento explícito e implícito ensinado molda os estudantes como serespassivos que estarão então aptos e ansiosos para adaptar-se a uma sociedade injusta.Esta interpretação é falha sob dois aspectos centrais. Primeiramente, ela vê osestudantes como internalizadores passivos de mensagens pré-fabricadas. Qualquercoisa que a instituição transmita, seja no currículo formal ou no currículo oculto, éabsorvida, não intervindo aí modificações introduzidas por culturas de classe ou pelarejeição feita pela classe (ou raça ou gênero) dominada das mensagens sociaisdominantes. Qualquer um que tenha ensinado em escolas de classe trabalhadora, ouescolas localizadas nas periferias, sabe que não é assim que as coisas se passam. Oque é mais provável que ocorra é a reinterpretação por parte do estudante, ou namelhor das hipóteses, somente uma aceitação parcial, e muitas vezes a rejeição purae simples dos significados intencionais e não intencionais das escolas. Obviamente,as escolas precisam ser vistas de uma forma muito mais complexa do que apenasatravés da simples reprodução (1989, p. 30).

    O papel dos professores é fundamental para que se ultrapasse a perspectiva da escola

    como espaço de reprodução cultural. Os educadores, para responderem as questões de relação

    entre cultura e economia e como opera a ideologia, devem fazê-lo dentro do contexto da

    instituição escola, repensando currículo8 e as relações sociais dentro da sala. 

    Assim como Apple, Henry Giroux destaca-se como um dos teóricos da chamada teoria

    da resistência. Este conceito é fundamental para a sua teorização sobre a pedagogia e o

    currículo. Segundo Silva (2004, p. 53), “contra a dominação rígida das estruturas e conômicase sociais sugeridas pelo núcleo duro das teorias críticas da reprodução, Giroux sugere que

    8  O currículo da educação básica é fortemente influenciado pelo que as universidades cobram em seusvestibulares. Boa parte do que se ensina em nossas escolas públicas e privadas é influenciado pelos métodos epelos conteúdos que são passíveis de serem aferidos em exames. Um aluno pode ter três anos de Física noEnsino Médio e aquilo que ele ali aprende pouco serve além de permitir responder algumas questões dovestibular. Quando, por exemplo, olhamos os cadernos dos alunos do Ensino Fundamental encontramos além deuma série de conceitos equivocados, uma grande quantidade de conhecimentos descartáveis. É preciso enfrentara questão: que conteúdos são relevantes? 

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    existem mediações e ações no nível da escola e do currículo que podem trabalhar contra os

    desígnios do poder e do controle. A vida social em geral e a pedagogia e o currículo em

    particular não são feitos apenas de dominação e controle. Deve haver um lugar para a

    oposição e a resistência, para a rebelião e a subversão”.

    Para o desenvolvimento de suas idéias e a construção de uma “pedagogia radical”,

    Giroux partiu da teoria crítica da Escola de Frankfurt, bem como do referencial teórico de

    Gramsci. Essas contribuições foram fundamentais para que elaborasse o conceito dos

    “professores como intelectuais transformadores”. Para ele, em determinadas conjunturas

    históricas, os professores podem desempenhar um papel transformador mais intenso e

    explícito e, mesmo em conjunturas desfavoráveis, podem atuar como agentes da contra-

    hegemonia, enquanto intelectuais transformadores. Nessa perspectiva, Giroux afirma que

    o discurso da democracia sugere algo mais programático e radical. Primeiramente,

    ele aponta o papel que professores e administradores poderiam desempenhar como

    intelectuais transformadores que desenvolvem pedagogias contra-hegemônicas que

    não apenas fortalecem os estudantes ao dar-lhes o conhecimento e habilidades

    sociais necessárias para poderem funcionar na sociedade mais ampla como agentes

    críticos, mas também educam-nos para a ação transformadora. Isto significa educá-

    los para assumirem riscos, para esforçarem-se pela mudança institucional e para

    lutarem contra a opressão e a favor da democracia fora das escolas, em outras

    esferas públicas de oposição e na arena social mais ampla (GIROUX, 1997, p. 28)

     

    Para Giroux, o currículo envolve a construção de significados e valores culturais; o

    currículo é o local onde se produzem e se criam significados sociais, que estão ligados a

    relações sociais de poder e desigualdade. Para ele, o currículo deve ser analisado a partir da

    noção de política cultural.9 

    Outras vertentes que analisam as teorias curriculares são as perspectivas pós-

    estruturalistas10

     e pós-modernas11

    . Segundo Pacheco (2000, p.19), “as idéias veiculadas pelo

    9 Política cultural é entendida como um empreendimento pedagógico que considera com seriedade as relações de

    raça, classe, gênero e poder na produção e legitimação do significado e experiência.  “Político, neste sentido,

    significa possuir os instrumentos cognitivos e intelectuais que permitam uma participação ativa em talsociedade” (GIROUX., 1997, p.87).10  O  pós-estruturalismo  pode ser caracterizado como um modo de pensamento, um estilo de filosofar e umaforma de escrita, embora o termo não deva ser utilizado para dar  qualquer idéia de homogeneidade,

    singularidade ou unidade. O termo "pós-estruturalismo" é, ele próprio, questionável. Mark Poster (1989, p. 6)

    observa que o termo "pós-estruturalismo" tem sua origem nos Estados Unidos e que a expressão "teoria pós-

    estruturalista" nomeia uma prática tipicamente estadunidense, uma prática baseada na assimilação do trabalho de

    uma gama bastante diversificada de teóricos. De forma mais geral, podemos dizer que o termo é um rótulo

    utilizado na comunidade acadêmica de língua inglesa para descrever uma resposta distintivamente filosófica ao

    estruturalismo que caracterizava os trabalhos de Claude Lévi-Strauss (antropologia), Louis Althusser (filosofia),

    Jacques Lacan (psicanálise) e Roland Barthes (literatura). (PETERS, 2000, 54) 11

     Nome aplicado às mudanças ocorridas nas ciências, nas artes e nas sociedades avançadas, nos anos de 1970, o

     pós-modernismo  ganhou um grande impulso com a crítica dirigida à cultura ocidental. Entre os elementosreveladores da pós-modernidade está a invasão da tecnologia eletrônica, da automação e da informação, que

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    pós-estruturalismo e pós-modernismo têm mudado os discursos sobre a teorização curricular,

    sobretudo, no que diz respeito à valorização do contexto micro como local de produção

    política, o esclarecimento da complexidade existente na relação poder/conhecimento, na

    aceitação da classe, gênero e raça como elementos dominantes na definição das práticas e, por

    último, a idéia do sujeito descentrado, cuja identidade se constrói a partir das políticas e

    práticas em que está envolvido”. Para Moreira e Silva (1995, p.34), “a contestação pós -

    moderna coloca em questão o papel da razão e da racionalidade que têm sido centrais ao

    projeto cognitivo moderno e, derivadamente, àquilo que entendemos como conhecimento

    educacional (currículo)”.

    Entre os pós-estruturalistas é fundamental referir dois pensadores: Foucault e Derrida.

    Foucault se destacou por desenvolver uma nova noção de poder. Para ele, o poder está na

    origem do processo de formação do indivíduo; não existe saber que não seja resultado de umavontade de poder, bem como não existe poder que não se utilize do saber. O pós-

    estruturalismo estende consideravelmente o alcance do conceito de diferença a ponto de

    parecer que não existe nada que não seja diferente. Não se pode falar propriamente de uma

    teoria pós-estruturalista do currículo, mesmo porque o pós-estruturalismo, tal como o pós-

    modernismo, tem aversão à sistematização. Mas há certamente uma atitude pós-estruturalista

    em muitas das perspectivas atuais sobre currículo. A atitude pós-estruturalista enfatiza a

    indeterminação e a incerteza também em questões de conhecimento. O significado não é

    preexistente: ele é cultural e socialmente produzido. O importante então é examinar as

    relações de poder envolvidas na sua produção. A questão não é saber se algo é verdadeiro,

    mas sim, saber por que esse algo se tornou verdadeiro.

    A escola, segundo Foucault, é o espaço onde o poder disciplinar produz o saber. Nessa

    perspectiva, o poder disciplinar conquista um lugar privilegiado nos discursos e nas ações,

    sendo o principal personagem das relações que compõem o universo escolar. A escola e suas

    técnicas disciplinares fazem com que os indivíduos aceitem o poder de punir e de serem

    punidos. As normas pedagógicas têm o poder de marcar, salientar os desvios, reforçar a

    imagem de alunos tidos como problemáticos”, marcados como o “negrão”, o “índio”, o

    “maloqueiro” ou o mo rador da “favela”. A escola, ao dividir os alunos e o saber em séries e

    graus, salienta as diferenças, recompensando os que se sujeitam aos movimentos regulares

    impostos pelo sistema escolar. Os que não aceitam a passagem hierárquica de uma série a

    causam certa perda de identidade nos indivíduos e também certa desintegração. O pós-moderno surge

    exatamente como uma crítica à modernidade, diante da desilusão causada por uma racionalização que levou o

    homem moderno à tragédia das guerras e à desumanização. Nega-se o sistema, para se afirmar o indivíduo, odiferente, o atípico. (GADOTTI, 1994, P. 310)

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    outra são punidos com a ‘retenção’ ou a ‘exclusão’. Assim, a escola se constitui num centro

    de discriminação, reforçando tendências que existem na sociedade. O modelo pedagógico

    instituído efetua uma vigilância constante, o que permite diferenciar os “infratores” dos

    “normais”. 12 

    1.3 Pós-colonialismo, multiculturalismo, estudos culturais e intercultura

    Mantendo a análise crítica do currículo, mas tendo como centro da discussão a

    diversidade cultural, teorias mais recentes vêm se constituindo como importante campo de

    pesquisa. Nestas perspectivas teóricas, conceitos como identidade, diferença cultural,

    linguagem, resistência, entre outros, tornam-se fundamentais na área do currículo. Entre estas

    teorias está o que se chama de pós-colonialidade, que questiona as relações de poder e as

    formas de conhecimento que colocaram o imperialismo na atual posição de privilégio. Stuart

    Hall, Homi Bhabha e Frantz Fanon são alguns teóricos que fazem a reflexão sobre a chamada

    cultura das periferias (colônias). Conforme Bhabha, a teoria da pós-colonialidade, 

    é um salutar lembrete das relações “neocoloniais” remanescentes no interior da“nova” ordem mundial e da divisão de trabalho multinacional. Tal perspectivapermite a autenticação de histórias de exploração e o desenvolvimento de estratégias

    de resistência. Além disto, no entanto, a crítica pós-colonial dá testemunho dessespaíses e comunidades – no norte e no sul, urbanos e rurais – constituídos, se mepermitem forjar a expressão, “de outro modo que não a modernidade”. Tais cultura sde contra-modernidade  pós-colonial podem ser contingentes à modernidade,descontínuas ou em desacordo com ela, resistentes a suas opressivas tecnologiasassimilacionistas; porém, elas também põem em campo o hibridismo cultural desuas condições fronteiriças para “traduzir”, e portanto reinscrever, o imagináriosocial tanto da metrópole como da modernidade. (2003, p. 26)

    O pós-colonialismo chama a atenção para o domínio cultural imposto pelos

    colonizadores sobre os países colonizados e de como essa dominação é incorporada pelos

    sujeitos. A “invasão cultural” se dá nos vários aspectos da organização social, passando pelos

    12 Ao observarmos o cotidiano de nossas escolas constatamos que boa parte do tempo de nossos diretores eprofessores é despendida procurando (sem sucesso no caso da escola pública e com mais sucesso na escolaprivada) disciplinar e padronizar os alunos, valorizando a heteronomia em detrimento da autonomia intelectual eda autodisciplina, incutindo conteúdos de pouca relevância e valorizando aspectos formais do conhecimento.Fala-se muito em conteúdo, em “seguir o programa” mas o que mais se vê em nossa escola é um desperdíciogigantesco de tempo. Desorientados os educadores tendem a jogar a responsabilidade sobre os alunos. É aí quesurgem as expressões carregadas de preconceito: “alunos problema”, “famílias que não participam”; “reprovaçãocomo instrumento para melhorar a qualidade do ensino”.

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    hábitos, modos de vestir, linguagem, música, bem como definindo qual conhecimento deve

    ser ensinado na escola.13 Segundo Silva (2004, p. 130), “uma perspectiva pós -colonial exige

    um currículo multicultural que não separe questões de conhecimento, cultura e estética de

    questões de poder, política e interpretação. Ela reivindica, fundamentalmente, um currículo

    descolonizado”. Não só os lugares são diferentes, mas também as identidades e a cultura são

    diferentes e devem ser respeitadas.

    No quadro das teorias do currículo que enfatizam a diferença e a identidade cultural,

    aparecem o multiculturalismo, os estudos culturais e a intercultura. O multiculturalismo – que

    teve origem nos países dominantes do norte – principalmente dos Estados Unidos - é um

    movimento de reivindicação dos grupos culturais dominados no interior daqueles países para

    terem suas formas culturais reconhecidas e representadas na cultura nacional. Silva (2004),

    diz que há uma continuidade entre a perspectiva multicultural e a tradição crítica do currículo.A tradição crítica inicial chamou a atenção para as determinações de classe do currículo. O

    multiculturalismo apresenta outro foco de origem da desigualdade em matéria de educação e

    currículo, pautado nas questões de gênero, raça e sexualidade. Tais questões podem ser vistas

    também como uma solução para os “problemas” que a presença de grupos raciais e étnicos

    coloca, no interior daqueles países, para a cultura nacional dominante. Num currículo

    construído a partir do multiculturalismo crítico, a diferença é colocada permanentemente em

    questão, indo além da tolerância e do respeito, pois, segundo essa perspectiva teórica, as

    diferenças estão constantemente sendo produzidas e reproduzidas através de relações depoder.

    Segundo Silva (2004, p.131), “o campo de teorização e investigação conhecido como

    Estudos Culturais tem sua origem na fundação, em 1964, do Centro de Estudos Culturais

    Contemporâneos, na Universidade de Birmingham, Inglaterra. O impulso inicial do Centro

    partia de um questionamento da compreensão de cultura dominante na crítica literária

    britânica”. Até então era considerada cultura as “grandes obras da literatura e d as artes em

    geral”. A partir da década de 1960, tendo como um dos marcos a obra de Raymond Williams

    “Culture and Society”, publicado em 1958, começa a ser discutida uma outra concepção decultura, ou seja, a cultura passa a ser pensada como representação da realidade vivenciada

    pelos sujeitos de um grupo social, num determinado espaço. Ela é pensada como “campo de

    produção de significados no qual os diferentes grupos sociais, situados em posições

    13 As escolas, normalmente, fazem homenagens isoladas em datas como o Dia da Mulher ou o Dia do Índio, semenvolver esses temas numa problemática mais ampla que permita discutir questões como gênero, raça,organização da sociedade, herança cultural. Desse modo, torna-se uma comemoração isolada, distante da lista deconteúdos e objetivos a serem cumpridos, que não relaciona conhecimento e cultura.

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    diferenciais de poder, lutam pela imposição de seus significados à sociedade mais ampla”

    (SILVA, 2004, p. 133). Nessa perspectiva, o currículo é resultado de um processo de

    construção social, no qual se enfatiza o papel da linguagem e do discurso. A linguagem, com

    esse sentido, assume o caráter de produto e veículo de identidades culturais e sociais. Como

    produto ela pode se tornar objeto de discriminação entre os homens. Isso ocorre quando os

    homens se esquecem de vê-la em sua dimensão mais ampla, possibilitadora da interlocução

    do homem consigo mesmo, com seus semelhantes e com o mundo, numa interação que não se

    esgota, nem se restringe ao aqui e ao agora, uma vez que, pela linguagem, se estabelece o

    diálogo entre diferentes gerações, diferentes culturas, em tempos históricos diversos.14  Nessa

    linha de raciocínio podemos pensar com Hall, quando diz que 

    nós podemos utilizar a l íngua para produzir significados apenas nos posicionando no

    interior das regras da língua e dos sistemas de significado de nossa cultura. A línguaé um sistema social e não um sistema individual. Ela preexiste a nós. Não podemos,em qualquer sentido simples, ser seus autores. Falar uma língua não significa apenasexpressar nossos pensamentos mais interiores e originais; significa também ativar aimensa gama de significados que já estão embutidos em nossa língua e em nossossistemas culturais (2004, p. 40). 

    Para os Estudos Culturais o conhecimento não é uma revelação ou um reflexo da

    natureza ou da realidade, mas o resultado de um processo de criação e interpretação social,

    onde se enfatiza o caráter construído e interpretativo do conhecimento. Desse modo, as

    diversas formas de conhecimento são, de certa forma, equiparadas, pois são vistas como

    resultado de um processo social e cultural com seus significados, não havendo separação entreo conhecimento considerado escolar e o conhecimento cotidiano das pessoas envolvidas no

    currículo.

    Por sua vez, a intercultura emerge no contexto das lutas contra os processos crescentes

    de exclusão social. Surgem movimentos sociais que reconhecem o sentido e a identidade

    cultural de cada grupo social. Mas, ao mesmo tempo, valorizam o potencial educativo dos

    conflitos e buscam desenvolver a interação e a reciprocidade entre grupos diferentes, como

    fator de crescimento cultural e de enriquecimento mútuo. Assim, em nível das práticas

    educacionais, a perspectiva intercultural propõe novas estratégias de relação entre sujeitos e

    14 Em nossa sociedade, porém, persiste um discurso autoritário definindo o que é o certo  em relação à língua,sendo reprovadas as variações que se distanciam daquela considerada como padrão. É tendência nas escolas oinvestimento no aprendizado da escrita, deixando-se de lado a expressão oral. Na verdade, é papel da escolainvestir na escrita, uma vez que esse aprendizado se realiza de forma sistematizada na instituição escolar. Alíngua falada, contudo, não deve ser desprezada, porque revela aspectos que identificam a criança e o meio ondeela vive.

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    entre grupos diferentes, buscando a construção de identidades sociais e o reconhecimento das

    diferenças culturais, sem deixar de sustentar a relação crítica e solidária entre elas.

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    2 POLÍTICAS DE EDUCAÇÃO E CURRÍCULO 

    2.1 Aspectos históricos do currículo no Brasil 

    Propor uma discussão sobre o currículo escolar da atualidade, exige a recuperação deaspectos da história da educação brasileira, desde a missão dos jesuítas que aqui aportaram,

    em 1549, até os dias de hoje, a fim de construir um referencial com a evolução da política

    curricular no Brasil, sem esquecer que fomos colônia de exploração, em parte povoada com o

    excedente que a Europa rejeitou e que isto ficou fortemente marcado em nossa sociedade.

    2.1.1 As origens do currículo no Brasil: da chegada dos Jesuítas à Reforma

    Pombalina

    Pode-se afirmar que nos primeiros séculos do Brasil Colônia, a educação formal

    esteve nas mãos da Igreja Católica, sendo que os primeiros colégios do Brasil foram fundados

    pelos jesuítas em São Vicente (SP) e Salvador (BA). O processo educacional formal iniciado

    pelos jesuítas, que perdurou por aproximadamente duzentos anos, dirigia-se prioritariamente à

    catequização e à instrução dos índios e, para tanto, foram criadas escolas de primeiras letras

    que propagavam os ideais católicos. Com o fim de propagar a fé, os jesuítas portugueses

    lançaram as bases de um sistema educacional que se desenvolveu progressivamente com a

    expansão territorial da colônia. Estabeleceram-se no litoral e daí penetraram nas aldeias

    indígenas, fundando conventos e colégios. Por dois séculos, foram eles, fundamentalmente, os

    responsáveis pela educação formal no Brasil. Criaram, também, colégios destinados a formar

    sacerdotes, bem como preparar para os estudos superiores jovens que não buscavam a vida

    sacerdotal. Dessa forma, os padres da Companhia de Jesus possuíam total poder no setor

    educacional, que desde o início es