curso de silêncio - maria gabriella llansol e a escrita das imagens curativas
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7/24/2019 Curso de silncio - Maria Gabriella Llansol e a escrita das imagens curativas
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
FACULDADE DE LETRAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS:
ESTUDOS LITERRIOS
Erick Gontijo Costa
Curso de silncio
Maria Gabriela Llansol e a escrita das imagens curativas
Belo Horizonte
2009
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Erick Gontijo Costa
Curso de silncio
Maria Gabriela Llansol e a escrita das imagens curativas
Dissertao de Mestrado apresentada aoPrograma de Ps-Graduao em Letras:Estudos Literrios da Faculdade de Letras daUniversidade Federal de Minas Gerais, comorequisito para a obteno do ttulo de Mestre
em Teoria da Literatura, elaborada sob aorientao da Profa. Dra. Lucia CastelloBranco.
Belo Horizonte
Faculdade de Letras da UFMG2009
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Ficha catalogrfica elaborada pelos bibliotecrios da Biblioteca FALE/UFMG
Costa, Erick Gontijo.L791a.Yc-c Curso de silncio [manuscrito]: Maria Gabriela Llansol e a escrita das
imagens curativas / Erick Gontijo Costa. 2009.107 f., enc.
Orientadora: Lucia Castello Branco.rea de concentrao: Teoria da Literatura.
Linha de Pesquisa: Literatura e Psicanlise.
Dissertao (mestrado) Universidade Federal de Minas Gerais,Faculdade de Letras.
Bibliografia: f. 101-107.
1. Llansol, Maria Gabriela, 1931 - Amigo e Amiga: curso de silncio Crtica e Interpretao Teses. 2. Llansol, Maria Gabriela, 1931 Linguagem Teses. 3. Psicanlise e Literatura Teses. 4. Literatura Filosofia Teses. I. Castello Branco, Lucia. II. Universidade Federal deMinas Gerais. Faculdade de Letras. III. Ttulo.
CDD: 869.341
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Agradecimentos
A Lucia Castello Branco, pelo que passa como nada mais passa na vida, nada, seno ela,escrita.
A Maria Gabriela Llansol, pela santidade leiga.
A Isabela de Carvalho Monteiro, por suportar o peso de algumas palavras, quando eu j nomais podia.
A Ruth Silviano Brando, pelo atrito que o pensamento permite.
A Vania Baeta, por acolher estas palavras pobres que restam.
A Ram Mandil, por ser possvel caminhar sem olhar para baixo, quando no h mais cho.
A Maria Elisa Arreguy, pelo encontro inesperado do diverso na paisagem da escrita.
A Srgio Laia, pelo dilogo sobre as bordas da escrita.
A meus pais, distantes como a palma da mo.
A Alexandre Fantagussi e a Rafael Reis, pelas seriedades de nosso percurso comum.
A comunidade dos que se movem num instante fixo, Pausa.
A Joo Rocha, a Luciana Brando e a Dannielle Starling, companheiros filosficos.
A Jos Marcos Resende, pelo destino certeiro de uma carta.
A Faculdade de Letras da UFMG e a FAPEMIG, por terem viabilizado esta dissertao.
A todos os outros distantes, aqui.
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Sumrio
Agradecimentos....................................................................................................................................... 4
Sumrio ................................................................................................................................................... 5
Resumo.................................................................................................................................................... 7
Rsum.................................................................................................................................................... 8
Introduo - Prova improvvel................................................................................................................ 9
Captulo I A escrita, ophrmakon ..................................................................................................... 11
Efeitophrmakon.............................................................................................................................. 11
Salvao desastrosa........................................................................................................................... 13
Curso de silncio: tratamento pelo fulgor ......................................................................................... 15Suave narcose.................................................................................................................................... 19
Escrita, objeto encarnado .................................................................................................................. 23
Justa passagem .................................................................................................................................. 25
Do corpusmelanclico textualidade .............................................................................................. 27
Captulo II A cura, o fulgor................................................................................................................ 31
Conto e cura ...................................................................................................................................... 31
O curso silencioso do fulgor.............................................................................................................. 34
Um novo habitante ............................................................................................................................ 39
Cura Diris: o fulgor.......................................................................................................................... 43
Esquecimento, apagamento............................................................................................................... 55
Captulo III O corpascrever ............................................................................................................. 67
As figuras: ns construtivos.............................................................................................................. 67
A textualidade: o ressalto de uma frase............................................................................................. 69
O mundo em uma semente semntica ............................................................................................... 72
O corpo autnomo da escrita............................................................................................................. 77
A cura dos nomes .............................................................................................................................. 85
O corpascrever................................................................................................................................ 88
As imagens curativas......................................................................................................................... 91
A atividade fisiolgica textual........................................................................................................... 96
Concluso A condensao narrativa................................................................................................... 98
Referncias.......................................................................................................................................... 102
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Resumo
Este trabalho pretende investigar o efeito de tratamento da escrita na obra de
Maria Gabriela Llansol, atravs das operaes da condensao narrativa, da fulgorizao e
das imagens curativas. Para isso, articulamos conceitos extrados de textos da teoria da
literatura, da filosofia e da psicanlise que se propem analisar a experincia de escrita e
seus efeitos para o sujeito que escreve obra da autora portuguesa, mais especificamente, ao
livroAmigo e Amiga curso de silncio de 2004.
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Rsum
Ce travail veut faire des investigations sur les effets de traitement de lcriture
dans loeuvre de Maria Gabriela Llansol, travers des oprations de condensation narrative,
de la fulguration e des images curatives. Nous avons articul des concepts extraits des textes
de la thorie de la littrature, de la philosophie et de la psychanalyse lequels se proposent
danalyser lexprience de lcriture e ses effets pour le sujet qucrit a loeuvre de lauteur
portugaise, spcifiquement leur livreAmigo e Amiga curso de silncio de 2004.
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Introduo - Prova improvvel
preciso um ponto qualquer, arriscar uma palavra, para o comeo. Palavra, em
certa medida, escolhida ao acaso, por ningum. Palavra de ningum, a nossa. Um voto: que a
essa palavra mantenhamo-nos fiis, a despeito de ns mesmos, at o fim. Nossa primeira
palavra a experincia. Apagada, dura, permanecer: escrita. Mais ao fim, veremos: um
ponto que desde sempre esteve, permanecer l.
Dar passagem a essa palavra muda, viva, aquela resultante de um encontro, o
encontro com uma certa experincia de escrita. Sobre a experincia a que me refiro, Maurice
Blanchot, em seuEspao Literrio, afirma: Experincia significa, neste ponto: contato com o
ser, renovao do eu nesse contato uma prova, mas que permanece indeterminada1.
A experincia qual viso aqui dar testemunho regida pela leitura dos textos de
Maria Gabriela Llansol, da psicanlise freudiana e lacaniana e de tericos da literatura os
quais pensam a arte de escrita como uma experincia na qual vida e obra se perpassam, e no
exatamente como um artifcio de representao de uma vida dada a priori. Para orientar o
encontro e a separao entre esses textos de campos distintos, escolhemos uma terceira
palavra, para entrelaar experincia e escrita: tratamento, do ponto de vista psicanaltico;
cura, do ponto de vista do texto llansoliano. Assim, teramos como foco uma experincia de
escrita no exatamente literria mas tambm no completamente estranha literatura a
qual teria em seu horizonte algo prximo a um tratamento, no sentido psicanaltico.
Tratamento ou cura que se do no texto, ao texto, mas, certamente, tm efeitos na tradio de
escrita literria e nos que vivenciam tal experincia.
Talvez as questes aparentemente centrais desta dissertao possam derivar dadefinio blanchotiana de experincia anteriormente mencionada: como uma experincia de
escrita poderia, em alguns casos, modificar o eu que escreve, e, mesmo, (re)constitu-lo?
Que ponto toca a escrita e seria capaz da renovao, tratamento, cura daquele que por sua
experincia atravessado? Questes fundamentais nesta dissertao, as quais talvez
dissimulem uma questo mais central, ainda imprecisa, que parece dizer respeito abordagem
__________1BLANCHOT, Maurice. Oespao literrio.Traduo de lvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 1987, p. 83.
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de algo fugidio em meio escrita, e no apenas renovao de um eu. Um ponto mais alm,
algo de que o eu renovado por esse encontro s daria testemunho como uma prova
improvvel. Talvez se trate do encontro com o ser a que se refere Blanchot, um dos nomes
para o que a escrita toca, mas a ela escapa. Encontro a partir do qual, em nveis variados para
cada pessoa, no apenas o eu seria alterado, mas tambm o corpo que lhe serve como suporte
seria, em certa medida, reconfigurado em seu modo de operar. O encontro inesperado do
diverso2, afirmaria Llansol.
Antecipemos, de modo ainda e talvez para sempre vago, injustificado: uma
experincia de escrita atravessamento de espelhos, baliza do esquecimento, passagem de
vida, ascenso do que .
__________2 LLANSOL, Maria Gabriela. Lisboaleipzig 1 o encontro inesperado do diverso. Lisboa: Rolim,1994, p. 135-147.
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Captulo I A escrita, o phrmakon
Efeitophrmakon
Sabe-se, h muito, da capacidade de as palavras conduzirem aqueles que delas se
valem a caminhos desconhecidos, inseguros, sem garantias e muitas vezes sem retorno.
Felizmente, h tambm, no mesmo fio de perdio ditado pelas palavras, a chance de alguma
salvao, que de modo algum dispensa a errncia, o desastre, a travessia de runas, mas comdestino, com fim, o qual se busca s cegas e sem garantias, e que desde o princpio se faz
presente, invisvel, intangvel, imperativo. Derrida, comentando essa potncia ambgua da
palavra, demonstra, em A farmcia de Plato1, como o vocbulo grego phrmakon pode
remeter ao mecanismo das palavras que funcionam ao mesmo tempo como empecilho a
qualquer ordem (a discursiva), mas tambm como caminho para se chegar a ela. Assim, o
phrmakon apreendido na filosofia platnica como impureza, parasita, algo inessencial e,
no entanto, nocivo essncia, de um excedente que no se deveria ter acrescentado plenitude impenetrada do dentro2. Essa plenitude seria aquilo ao que o phrmakonno se
deveria ter acrescentado,parasitando-o,assim, literalmente: letra instalando-se no interior de
um organismo vivo para lhe tomar seu alimento e confundir a pura audibilidade de uma voz3.
Para se livrar dele e se restabelecer a ordem, gerar algum centramento, em que haja
claramente demarcao entre dentro (essncia) e fora (inessencial) ordem pretensa, poder-
se-ia afirmar atualmente seria necessrio recorrer a ele mesmo, ao veneno que se torna
remdio:
A cura pelo lgos, o exorcismo, a catarse anularo, pois, o excedente. Masesta anulao, sendo de natureza teraputica, deve apelar quilo mesmo queela expulsa e ao excesso que ela pe fora. preciso que a operaofarmacutica exclua-se de si mesma4.
__________1 DERRIDA, Jacques. A farmcia de Plato. Traduo de Rogrio Costa. 3. ed. So Paulo:
Iluminuras, 2005.2Ibidem, p. 77.3Idem.4Idem.
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Eis, ento, que o remdio, a palavra (lgos) deve anular, na lgica platnica, o que
de si resto, o que de si excesso. Essa seria a cura pelo lgos, concebida platonicamente: a
palavra diurna, de pensamento claro, expulsando o dizer da noite. A sntese paradigmtica
dessa cura seria a expulso da palavra potica, parasita daplis.
Mas a literatura (ao menos a que aqui nos interessar) o que se compe
justamente de restos, de escombros, de letras decadas de uma vida. Letras que no
entenderemos exatamente como parasitas de corpos ordenados, acabados, e sim como o que
deles resta, quando atravessados pela lmina da palavra: Restante Vida5. O que deles
comporta uma vida autnoma, mnima, singular, sem nome que a possa evocar.
No campo das belas-letras, a literatura visaria a eliminar o que lhe parece
excessivo na suposta realidade a qual se pretende representar, a fim de que tudo esteja bemenquadrado, em foco, na justa medida, devidamente mimetizado. Entretanto, esse excesso
deitado fora invariavelmente retorna na cena da escrita, por exemplo, em estticas de
duplicao ou de estranheza, nas quais a palavra de sentido claro parece abismar-se, deparar-
se com seus limites.
Quanto s literaturas que parecem exceder o prprio campo, ou to-somente
escritas, escrituras, nas quais a representao j no est mais em primeiro plano, as vertentes
de remdio e veneno da palavra no se dissociam. o que sinaliza Jaques Derrida, mais aofim de suas reflexes em A farmcia de Plato: No se pode mais separ-las uma da outra,
pens-las parte uma da outra, etiquet-las, no se pode nafarmcia distinguir o remdio do
veneno, o bem do mal, o verdadeiro do falso, o dentro do fora, o vital do mortal, o primeiro
do segundo, etc6.
Decorre dessa condensao das potencialidades benficas e malficas da palavra
no mais uma aposta na escrita como algo que daria um tratamento ao excesso como o que se
__________5A Restante Vida ttulo de um livro de Maria Gabriela Llansol, de 1983, que compe, ao lado de Olivro das comunidades e Na casa de julho e agosto, de 1984, a trilogia intitulada "Geografia dosRebeldes". No prefcio de O livro das comunidades, assinado por A. Borges (talvez uma figurao deLlansol, talvez de Augusto Joaquim, um dos primeiros legentes), pode-se ler sobre a Restante Vida:Todos cremos saber o que o Tempo, mas suspeitamos, com razo, que s o Poder sabe o que oTempo: a Tradio segundo a Trama da Existncia. Este livro a histria da Tradio, segundo oesprito da Restante Vida (...) O escrever acompanha a densidade da Restante Vida, da outra Forma deCorpo (LLANSOL, Maria Gabriela. O livro das comunidades. Lisboa: Relgio Dgua, 1999, p. 9-
10). Nesta dissertao, utilizaremos o significante llansoliano Restante Vida, que se faz presente emdiversos momentos de sua obra, como uma nomeao da vida que se inscreve no texto, da vida quenele resta escrita.6DERRIDA, op. cit.,p. 122.
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deve excluir. Nem exatamente uma salvao puramente positiva, nem uma experincia de
pura perdio. Veremos, ao longo deste texto, o que vem a ser o duplo potencial potico das
palavras no qual se aposta encontrar alguma salvao.
Salvao desastrosa
Maurice Blanchot, em um ensaio intitulado Kafka e a exigncia da obra7, realiza
uma leitura da experincia de escrita kafkiana, na qual transparece uma certa funo da escrita
para o autor. A partir da leitura blanchotiana dos textos de Kafka, no caso, os dirios,podemos extrair uma lgica de funcionamento da escrita como salvao para Kafka, a qual
parece operar, em certa medida, no texto llansoliano.
Em um de seus dirios, no dia 28 de julho de 1914, Kafka escreve: Minha
incapacidade para pensar, observar, constatar, para me recordar, para falar e participar da vida
dos outros, torna-se cada vez maior; viro pedra... Se no me salvo pelo trabalho, estou
perdido8. O trabalho a que Kafka se refere, nesse momento desastroso de sua vida, o de
escrita. Sobre essa tarefa e sua funo, Blanchot ape:
Mas por que esse trabalho poderia salv-lo? Parece que Kafka teriaprecisamente reconhecido nesse terrvel estado de autodissoluo, onde estperdido para os outros e para si mesmo, o centro de gravidade da exignciade escrever. Onde ele se sente destrudo at ao fundo nasce a profundidadeque substitui a destruio pela possibilidade da criao suprema.Maravilhosa reviravolta, esperana sempre igual ao maior desespero, e comose compreende que, dessa experincia, ele extrai um movimento deconfiana que no questionar de bom grado9.
A exigncia de escrever se manifesta, para Kafka, em meio perdio, em meio
autodissoluo, ao desatamento dos laos que o unem s pessoas e realidade. O que aqui
mais nos interessa que, diante dessa situao de desvanecimento, Kafka responde
escrevendo. Escreve porque as condies necessrias escrita, na viso de Blanchot, esto
dadas. Diante do vazio, do desamparo, Kafka est diante da obra por se escrever. Perdido,
salva-se. O que o desespera, a sua situao, confere-lhe esperanas: Agora recebo o salrio
__________7BLANCHOT, op. cit., p. 50-79.8Ibidem, p. 56.9Ibidem, p. 56-57.
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da solido. , apesar de tudo, um salrio minguado. A solido s traz punies. No importa,
sou pouco afetado por toda essa misria e mais decidido do que nunca... Escreverei a despeito
de tudo, a todo o custo: o meu combate pela sobrevivncia. 10A escrita como instrumento
de salvao lhe aparece como uma deciso, uma postura tica no mundo que se desmorona a
sua volta. Escrita que, se no o salva da precria situao em que se encontra, salva-o,
entretanto, da completa perdio pessoal, ao conferir-lhe foras para continuar, ao menos,
escrevendo uma das mais geniais obras da literatura. Uma defesa do nada, uma precauo do
nada, um sopro de alegria emprestado ao nada, eis a arte11, podemos acrescentar com
Blanchot.
Se retomarmos a noo de escrita como phrmakon, veremos, ento, que no
momento em que recortamos da vida de Kafka, a partir da leitura blanchotiana, a escrita nooperou como veneno ou remdio, de modo excludente, mas como veneno e remdio ao
mesmo tempo. Foi necessrio a ele perder-se para se deparar com a obra por se fazer.
Escrever foi para o autor encontrar-se na perdio, salvar-se em meio a uma situao
desastrosa. Entretanto, no se trata de um eu que se reencontra, que se recupera pela escrita,
mas de um eu que se reinventa a si e ao mundo, por escrito. Afinal, escrever realizar uma
passagem, deixar a prpria voz ao sacrifcio e dar voz obra, passar do Eu ao Ele sem
rosto12
. A esse movimento de queda, necessrio para que o escrito advenha, Blanchot nomeiadesastre:
Se o desastre significa ser separado da estrela (o declnio que marca aerrncia, assim que se interrompeu a relao com o acaso do alto), ele indicaa queda sobre a necessidade desastrosa. A lei seria o desastre, a lei supremaou extrema, o excessivo da lei no codificvel: isso a que ns somosdestinados sem ser concernidos? O desastre no nos olha, ele o ilimitadosem olhar, o que no se pode mensurar em termos de fracasso nem como
perda pura e simples13.
Nesse movimento de se separar da prpria voz, algumas vezes j perdida antes de
se escrever, a obra imperativamente irrompe e algo se escreve. O eu submetido escrita
soobra, fracassa, mas a escrita, no. No h, pois, apenas perdas. Arrisca-se a prpria
identidade no escrito, mas algo advm: uma obra. Os efeitos dessa passagem se fazem sentir.
__________10
Ibidem, p. 57.11Ibidem, p. 67.12Ibidem, p. 20.13BLANCHOT, Maurice.Lecriture du dsastre. France: Gallimard, 1980, p. 9. Traduo nossa.
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Veremos mais claramente esse processo na anlise do texto sobre o qual nos voltaremos ao
longo desta dissertao.
Curso de silncio: tratamento pelo fulgor
O texto em questo a obra de Maria Gabriela Llansol, mais especificamente seu
livroAmigo e Amiga curso de silncio de 200414. Nesse texto, aquela que escreve abre-se a
uma experincia de escrita como quem se lana ao acaso, sabendo no haver garantias.
A aposta to-somente no vital e mortfero potencial potico das palavras, sua vertente facas lmina15, como diria Joo Cabral de Melo Neto, aquela capaz de, no mesmo golpe,
delimitar, precisar com seu corte, mas tambm ferir aquele que dela se vale. Uma espcie de
apoio sem apoio. Nas palavras de Llansol:
porque demasiado implacveis se podem mostrar as sombrasda vida
peo apoio aos que no tm onde se apoiar,
queles que conhecem com mais qualidade a fora da sombrae da excluso
e o recado que recebo sempre idntico (at que o meusouveja que assim )
o sem apoio apia-se na falta de apoioque leio (ou a ler)
o poema sem apoio16.
Diante das implacveis sombras da vida, Llansol aposta na escrita e no seu poderpotico como suporte de uma vida. A narrativa concentrada no seu poder de conteno, uma
condensao narrativa de uma vida, tecida pelo que a autora nomeia dom potico17. Sobre
essa condensao narrativa, a escritora afirma:
__________14 LLANSOL, Maria Gabriela. Amigo e Amiga curso de silncio de 2004. Lisboa: Assrio & Alvim,2006.15
NETO, Joo Cabral de Melo. Uma faca s lmina. In: Serial e antes. Rio de Janeiro: NovaFronteira, 1997, p. 181-195.16LLANSOL, Maria Gabriela. Onde Vais, Drama-Poesia? Lisboa: Relgio Dgua, 2000, p. 167-168.17Os significantes de Llansol sero utilizados em negrito, ao longo do texto.
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Eu vou envelhecer com os cabelos puxados para trs _____cabelos grisalhos, corpo cheio, rugas e concentrao narrativa
vou envelhecercom os cabelos puxados para trs e sem quebra das minhasescalas musicais,apenas a seqncia dos nmeros dos episdios se quebrar18
Aposta-se na concentrao das imagens operao nomeada fulgor , no
tratamento do texto pelo fulgor, pela condensao narrativa que se vale da tcnica do poema,
de seu carter rtmico e concentrado. Operao realizada com o rigor numrico de quem conta
a vida de modo calculado, com a presena de excessos contidos, sem dispensar o acaso e certa
errncia. Resulta que:
no fim, h uma esfera de belo de um lado, e uma esfera depensamento no outro;no mesmo lugar as figuras percorrem um caminho que as de-sorienta como um pndulo;o estrondo da deflagrao sobe ____sou eu tentando segurar no meu peito a minha unidade ____
o leme que veio dar ao poema19
Portanto, uma narrativa que visa ao esttico, j que o seu leme, sua orientao, opoema ou aquilo a que a autora nomeia dom potico: O Dom potico , para mim, a
imaginao criadora prpria do corpo de afectos, agindo sobre o territrio das foras virtuais,
a que poderamos chamar os existentes-no-reais20.
A essa experincia de escrita, h, sem dvida, um corpo a lhe dar suporte, h a
transposio dos afetos em imagens, h a constituio de um corpo escrito, de um
corpascrever21, nas palavras da autora. Corpo enlaado entre o texto e a que escreve, corpo
de imagens nuas, corpo nem exatamente da que escreve nem do texto e de sua paisagem.Corpo dinmico na dependncia do movimento da escrita. Por isso a grafia d-se em um s
golpe: corpascrever.No seguinte fragmento, extrado de O comeo de um livro precioso,
__________18LLANSOL, 2000, p. 164.19Ibidem, p. 165.20LLANSOL, 1994, p. 120.21Trata-se de um significante llansoliano presente em diversos momentos de sua obra. No j referido
prefcio ao Livro das Comunidades, afirma-se: H, pela ltima vez o digo, trs coisas que metem
medo. A terceira um corp a screver. S os que passam por l, sabem o que isso. E que issojustamente a ningum interessa. (...) O escrever acompanha a densidade da Restante Vida, da OutraForma de Corpo (p. 10). Tomaremos o significante corpascrevercomo referencial para pensarmosa Outra Forma de Corpo, associando-o noo de Restante Vida.
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parece desdobrar-se essa idia de enlaamento entre quem escreve e o escrito como
fundamento de um corpo que se constitui.
A mancha de tempo sobre o tampo da secretriaRespirava na margem de um lago turvo. FragmentosDe um corpo interrompiam os caminhos por onde meuCorpo viera. E, mais longe, outros fragmentos continuavamA progredir na mesma direo esgarando as imagensQue, do exterior, obscureciam as janelas. Enquanto noMe reunisse (e as escrevesse), a claridade no seria aMedida do tempo que me liberta. S depois repareiQue um corpo tenso arfava nas imagens nuas queLhe serviam de aparelho de respirao22.
Nesse fragmento, no fcil afirmar com clareza de quem o corpo de que se
fala. H pronomes pessoais para orientar. Mas de quem a voz que fala? Os pronomes
imprecisam-se. No h um referencial exato, um pronome eu que nos permita dizer: sim,
a autora e apenas ela, o seu eu a falar. Quem, ali, relata a constituio de um corpo? Por ora,
mantenhamos a questo em suspenso. H, a princpio, um corpo e fragmentos de outro corpo.
H tambm, sem dvida, ao fim, um corpo resultante da reunio de fragmentos imagticos de
corpos, o qual respira (lembremos que o ritmo e a respirao so traos fundantes do poema),
arfa em meio a imagens nuas, imagens puras, imagens de si, imanentes a si. Aparelho poticoque permite a respirao, a escrita, a leitura. Ou to-somente corpascrever. Talvez seja ele
prprio a relatar sua construo.
Assim como Kafka aposta na escrita como salvao, no momento mesmo em que
a escrita sua perdio, Llansol, em Amigo e Amiga curso de silncio de 2004, faz uma
aposta e constata a eficcia, seja ela momentnea ou no, da escrita. O livro em questo volta-
se para a experincia da perda amorosa, da decepao da morte. Partindo desse ponto, h uma
tentativa de superao da perda, atravs do apagamento de seus traos. H uma vida tocadapor uma morte e a tentativa de seu apagamento. Procuraremos, inicialmente, apenas
apresentar a operao de escrita realizada nessa obra, o que certamente deixar por comentar
aspectos relevantes a serem desdobrados mais frente. Assim a autora apresenta o seu curso,
o curso de sua escrita e a vida que ali est em questo:
Estes fragmentos, curso de silncio de 2004, esto desprovidos de um elolgico. Eles contm a maior experincia de dor de uma mulher resistente.
Serviram de matria de ensino oral sobre a ferida da morte na escola do vale__________22LLANSOL, Maria Gabriela.O comeo de um livro precioso. Lisboa: Assrio & Alvim, 2003 (B), p. 324.
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e o aberto silncio envolvente; uma pequena aluna disse a outra queestudava o que tem sete dobras, ou sete lminas, num nevoeiro claro.
Quem o disse no fui eu, foi aquela outra,talvez minha constante semelhante; ela chorava, porque sofria a resistir.Depois, deixou de sofrer, numa alegria de decepao.
Melhor que lgrimas23.
Destaquemos, inicialmente, a expresso alegria de decepao. No ressoaria
nela a dupla vertente do phrmakon, operando simultaneamente como remdio e veneno,
conforme o apontamos em Kafka? E, se tal experincia melhor que lgrimas, visa
certamente a um atravessamento da dor, da perda, uma elaborao, um tratamento, uma
salvao. Desastrada24, no sentido blanchotiano, pois a voz que narra j outra. H uma
separao, uma passagem de um eu a um ele, a um constante semelhante, que inevitavelmente outro a quem se d voz. A que escreve aparta-se da dor da perda amorosa,
separa-se na escrita.
Para a dor, h uma dosagem, uma reduo. Mas, se o que d tratamento pode ser
tambm droga, no sentido txico, necessrio dosar para se obter um bom efeito. Operao
que poderamos traduzir no seguinte fragmento:
O amor tem dosagem.
Principia por ser um lquido escuro numa farmacopiaAbandonada. Espesso, espera ser dividido em poresMais lquidas, que o transformem numa poro de curaHomeoptica. Um prazer curado que regressa fulgurncia. No desejo raptoMas santidade25.
Passa-se da dor da perda amorosa, por meio de sua dosagem, sua reduo, ao
prazer curado, que retorna em fulgor. Sinteticamente, seria esse o mtodo do fulgor como
tratamento, o qual opera na obra em questo: de um sofrimento vivido a um prazer esttico.
Um gesto de santidade leiga da escrita, que arrebata (ou no) o leitor.
Essa passagem executada no texto, na qual um sofrimento vivido transpe-se em
objeto esttico, levanta-nos algumas questes, em que a psicanlise e as teorias literrias que
__________23LLANSOL, 2006, p. 35.24A traduo adequada ao termo francs dsastre seria desastre. Entretanto, propomos, no que serefere salvao no texto de Llansol, o termo desastrado. Cremos, assim, retirar a carga trgica
contida em desastroso, que no se aplica ao texto llansoliano. Desastrado parece recuperar a idiade queda do astro, presente no conceito blanchotiano. Agradecemos a Lucia Castello Branco pelasugesto de traduo.25LLANSOL, 2003b, p. 175.
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com ela dialogam podem nos ajudar. Que tipo de tratamento estaria em jogo no processo de
passagem a que nos referimos?
Suave narcose
Inicialmente, tomemos a seguinte afirmao de Freud, em seu Mal estar na
civilizao: No existe uma regra de ouro que se aplique a todos: todo homem tem de
descobrir por si mesmo de que modo especfico ele pode ser salvo26. Para ns, est em
questo uma salvao possvel pela escrita. Parece ser esse o caminho de salvao escolhidopor nossa autora. Se ao escritor dado escolher a escrita ou se ela se lhe impe seria tambm
outra questo. O fato que, se ela se impe a alguns, de algum modo ela opera como
tratamento, que pode levar a alguma salvao ou to-somente ao pior.
Pensemos, primeiramente, a partir do conceito freudiano de sublimao. Trata-se
de um conceito psicanaltico problemtico que, entretanto, nos auxiliar pontualmente neste
captulo, visando aos seus limites e ao que possvel arte, mais especificamente arte
llansoliana, realizar diante dos impasses da tarefa sublimatria.
A princpio, em seu Mal-estar na civilizao, Freud assim apresenta a operao
sublimatria: a tarefa aqui consiste em reorientar os objetivos pulsionais de maneira que
eludam a frustrao do mundo externo27. Tal seria, nas palavras de Freud, a alegria do
artista em criar, em dar corpo s suas fantasias28. Ento, o artista elabora suas fantasias em
objetos artsticos e est a salvo das restries que lhe impe o mundo externo? No, nada
to simples. Mais adiante, veremos, a partir de Lacan, que o mundo interior e o exterior ao
psiquismo no se delimitam to claramente, e que a tarefa sublimatria, por no operar de
modo ilimitado com o corpo, com os elementos pulsionais espcie de energias mortais e
vitais operantes no limiar entre corpo e mente , falha. Freud j o anunciara no mesmo texto
com o qual por ora trabalhamos: o mtodo no proporciona uma proteo completa contra o
sofrimento. No cria uma armadura impenetrvel contra as investidas do destino e
habitualmente falha quando a fonte de sofrimento o prprio corpo da pessoa29. E ainda: a
__________26FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilizao.In: Obras psicolgicas completas de Sigmund Freud:
edio standard brasileira.Volume XXI.Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 91.27Ibidem, p. 87.28Idem.29Idem.
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suave narcose a que a arte nos induz no faz mais do que ocasionar um afastamento
passageiro das presses, das necessidades vitais, no sendo suficientemente forte para nos
levar a esquecer a aflio real30. Entretanto, no desacreditemos to rapidamente em tal
operao. Afinal, o escritor, nas palavras de Freud, d corpo sua fantasia, e essa
consistncia corporal conferida pela escrita pode ser de grande eficcia. Trata-se, como j o
dissemos, de uma salvao precria, em algum nvel desastrada, de uma sada pelo duplo
potencial de remdio e veneno da palavra, a qual Freud nomeia, como vimos, Suave
narcose.
Vejamos, rapidamente, um exemplo de como se pode mostrar precria a sada
pela escrita, principalmente quando no se consegue dosar sua toxidez, suavizar seu efeito de
narcose. H um escritor portugus contemporneo, Al Berto, que afirma em seu dirio, cujottulo O medo31, algo interessante sobre essa potencialidade da palavra de levar aquele que
escreve adiante, dar-lhe alguma orientao em meio perdio, junto ao texto, enfatizando,
entretanto, o lado txico da palavra, sua narcose:
definha-se texto a texto, e nunca se consegue escrever o livro desejado.morre-se com uma overdose de palavras, e nunca se escreve a no ser que seesteja viciado, morre-se, quando j no necessrio escrever seja o que for,
mas o vcio de escrever ainda to forte que o facto de j no escrever nosmantm vivos. morre-se de vez em quando, sem que se conhea exactamentea razo, morre-se sempre sozinho.
nunca fui um homem alegre. morro todos os dias, como poderia estaralegre?
sento-me e medito na busca de novas palavras. tornou-se quase intilescrev-las; chega-me saber que, por vezes, as encontro, e nesses momentosreadquiro a certeza dalguma imortalidade32.
Nesse fragmento, apesar de sua aguda toxidez, parece-nos, ressoa tambm a dupla
vertente da palavra que vimos apontando. Definha-se na escrita e, se no se escreve, preserva-
se vivo para se tornar a escrever. Se a escrita carrega a certeza da morte, algumas vezes
irrompe tambm, certeira, a imortalidade, resultante do encontro com novas palavras.
Palavras que superam seu carter mortfero, que demovem a lngua de seus automatismos e de
seus lugares-comuns.
Ainda distante, mas um pouco mais prxima da obra llansoliana quanto
operao de dosagem a que j nos referimos33, h a obra da autora portuguesa Hlia Correia.
__________30Ibidem, p. 88.31AL BERTO. O medo. 2. ed. Lisboa: Assrio & Alvim, 2000.32Ibidem, p. 365.
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Em seu texto A escrita insuportvel34, Hlia desenvolve uma teoria sobre sua relao com as
palavras escritas, a partir da seguinte frase de Wiliam Burroughs: Language is a virus from
outer space35.
Para Hlia, a palavra-viral propaga-se como qualquer outro vrus, e o medo
da morte que o propaga entre ns, os humanos hospedeiros36. A palavra-viral , precisa a
autora, a palavra escrita. Seriam palavras que acometem, de modo peculiar, certo grupo de
escritores, no todos. A eles, os que do como perdida a luta pelo controle da escrita, Hlia
nomeia Os compelidos:
Esta espcie de escritores, os compelidos, como lhes chamo, assistem numpavor gerao daquilo que os deforma. Tornados monstruosos como velhosinchados pela gota, paralticos, rebentam finalmente em pedaos de textoque exalam purulncia, vomitam sobre a cama suas personagens, livram-se
por uns tempos, da doena que em breve recomea a sua incubao37.
A escrita, portanto, torna monstruoso o escritor, mas o livra do mal por algum
tempo, confere dignidade a esse mal, quando ele se apresenta em livro. Essa vertente dupla da
escrita permite autora elevar o mal, no ato de criao literrio, a um mal sagrado38. Sobre
a funo ambgua da escrita para os compelidos, para os tocados pela morte, pela palavra-
viral inoculada pelo medo da morte, a autora acrescenta:
Escrevemos para qu? Para durarmos, para tendermos imortalidade.Agindo sob o pavor da morte, os humanos criam a iluso do tempo pondo as
palavras por escrito. Mas a verdade que o tempo vai nutrir a morte: dandotempo ao que existe a morte que alimentamos. [...] A morte precisa dotempo para aquilo que ela vai matar se desenvolva39.
Tal como vimos em Al Berto, est em jogo a dupla vertente da palavra:
simultaneamente o carter mortfero e a busca de alguma imortalidade, por escrito. Palavrasescritas, exigentes. Aos compelidos no dado livrar-se delas permanentemente. Apenas se
livram de modo pontual, no acabamento de um livro.
33Ver item: Curso de silncio: tratamento pelo fulgor.34CORREIA, Hlia. A escrita insuportvel. In: BRANCO, Lucia Castello; BRANDO, Ruth Silviano(Org.).A fora da letra:estilo escrita representao.Belo Horizonte: Editora UFMG, 2000, p. 172-182.35A autora prope duas tradues, em seu texto, para a frase de Burroughs: 1 A linguagem umvrus extra-terrestre (p. 173) e 2 A linguagem um vrus que veio do espao interestelar (p. 175).36
CORREIA, op. cit., p. 172.37Ibidem, p. 173.38Ibidem, p. 178.39Ibidem, p. 172.
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Assim Hlia finaliza seu depoimento, testemunhando sua dependncia e sua
salvao pela escrita:
Eu por mim espero apenas que nenhuma vacina venha trazer-me a paz elibertar-me. Sou dependente da toxina das palavras e espero sempre,saturada, ansiosa, pela visitao das personagens, como esperamos pelachegada dos que amamos mas que nos vo alvoroar a casa.
O mundo da razo que me assusta se a ele me limitasse, endoidecia40.
Se o mundo da razo aquele em que o remdio a palavra (lgos) deveria
anular o que de si resto, o que de si excesso, o que parece sair da cena ideal de escrita, a
palavra de pensamento claro expulsando o dizer obscuro, Hlia parece saber que a escrita
justamente composta de restos, de escombros, de letras opacas, decadas de uma vida, nem
sempre significativas. Fora do mundo da razo, d-se sua salvao desastrada.
Mantidas as diferenas fundamentais, escritores como Maria Gabriela Llansol,
Hlia Correia e Al Berto ensinam algo a respeito da escrita que de grande importncia para a
psicanlise: a escrita poderia salvar-se a si e a quem a experiencia, ainda que seja uma
salvao sem garantias Esta doena que compele criao, se determina a violncia do
ataque, nada garante quanto aos resultados 41, afirma Hlia. Salvao que se d no instante
mesmo em que a escrita atinge a potncia de ato criativo, pois ela, ainda que devastadora,pode engendrar algo de eterno, de imortal.
Essa a hiptese de Alain Badiou, a respeito das operaes realizadas pelo poema
e pela anlise, quando bem sucedidos. Em seu texto Por uma esttica da cura analtica 42, o
autor desenvolve, a partir da leitura dos poemas de Mallarm, a tese de que a operao do
poema e a analtica criam, em seu fim, algo de eterno, de imortal, um sujeito de
pensamento:
Pode-se ento dizer que algo criado como um sujeito sobrenatural, eu digosobre-natural justamente no sentido de que a situao artificial e formal, oque quer dizer um sujeito que atravessou a perda e que no simplesmente a
presa, a vtima dessa perda. Isso pode ser chamado de um sujeito depensamento. [...] se h um sujeito de pensamento, se h uma vitria sobre aperda, ento preciso compreender que h algo ali que no est mais notempo, no no tempo natural. Precisaramos ento chegar a essa idiaextraordinria de que a anlise cria algo de eterno. Isso sempre foi dito do
__________40
Ibidem, p. 182.41Ibidem, p. 178.42BADIOU, Alain. Por uma esttica da cura analtica. Escola Letra Freudiana: A psicanlise & osdiscursos, Rio de Janeiro, n. 34/35, ano XXIII, (2004). Traduo de Analcia Teixeira Ribeiro.
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poema, o poema sempre teve a ambio de criar algo na lngua que fosseeterno, algo na lngua natural, que fosse sobrenatural43.
Retornaremos ao texto de Badiou, a fim de apresentar mais detalhadamente o que
a psicanlise pde aprender a partir da operao realizada pelo poema. Veremos,
principalmente, o modo como uma operao prxima a essa se d no texto llansoliano.
Antes de darmos prosseguimento s investigaes, lembremos que uma questo
fundamental na salvao e nos impasses da experincia de escrita parece localizar-se na
dosagem que cada autor consegue encontrar para essa dupla potncia da palavra em sua obra.
Ora parasita, ora vcio, ora suave narcose, ora alegria de decepao, ora algo que nos
parece ser uma direo mais interessante44: um prazer curado que regressa fulgurncia.
No exatamente palavras parasitas de corpos ordenados, acabados, e sim letras restantes de
corpos atravessados pela lmina da palavra. A Restante Vida: esta, prioritariamente, a
direo que pretendemos investigar.
Escrita, objeto encarnado
Outro ponto sobre o qual nos voltaremos foi j anunciado no dizer de Freud: o
escritor d corpo s suas fantasias. Seria a escrita uma encarnao da fantasia em objeto
artstico? Detenhamo-nos um pouco nesse ponto. Escrever as prprias fantasias no garante a
criao de um objeto esttico.
As fantasias, para o neurtico, e os delrios, para o louco, bem ou mal, servem
para encobrir algo que a arte, invariavelmente, exibe ou, se vem para encobrir, sabe muito
bem o que encobre. A arte sabe. J o artista, o cidado comum que escreve, pode no saber. A
arte a escrita sabe o que faz. Escrever uma tcnica. Tcnica que, entretanto, no dispensa
o acaso no-previsto pela tcnica. Sob esse ponto de vista, a arte consistiria em fazer algo, de
modo esttico, com o que escapa tcnica. Sublimar seria uma tcnica, um dom de alguns
artistas. Mas as tcnicas tm limites.
__________43
Ibidem, p. 242.44 Interessante enquanto efeitos de uma experincia literria para quem escreve ou l. Afinal, importante deixar claro, no pretendemos com tal afirmao fazer um juzo sobre a qualidade estticadas obras.
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No caso de Llansol, parece haver uma conscincia das limitaes do poder da
palavra utilizada pelo vis da representao, do sentido, da comunicao. Diante disso, a
autora passa a operar com a potncia literal das palavras, em detrimento do sentido. Nessa
operao, o texto no dispensa a tcnica, e sim cria sadas particulares para lidar com o acaso
na escrita. A princpio, deixemos apenas ressoar o nome de algumas figuras45que operam
nesse limiar da lngua: o desconhecido que nos acompanha; o encontro inesperado do
diverso.
Voltemos fantasia e ao seu papel na escrita. Freud, embora aponte
invariavelmente a fantasia como matria-prima para a criao artstica, percebe no se tratar
de uma simples transposio dos elementos fantasiosos em objeto esttico.
Devem estar lembrados de que eu disse que o indivduo que devaneiaoculta cuidadosamente suas fantasias dos demais, porque sente ter razes
para se envergonhar das mesmas. Devo acrescentar agora que, mesmo queele as comunicasse para ns, o relato no nos causaria prazer. Sentiramosrepulsa, ou permaneceramos indiferentes ao tomar conhecimento de taisfantasias. Mas quando um escritor criativo nos apresenta suas peas, ou nosrelata o que julgamos ser seus prprios devaneios, sentimos um grande
prazer, provavelmente originrio da confluncia de muitas fontes. Como oescritor o consegue constitui seu segredo mais ntimo. A verdadeira ars
poetica est na tcnica de superar esse nosso sentimento de repulsa, sem
dvida ligado s barreiras que separam cada ego dos demais. Podemosperceber dois dos mtodos empregados por essa tcnica. O escritor suavizao carter de seus devaneios egostas por meio de alteraes e disfarces, enos suborna com o prazer puramente formal, isto , esttico, que nos oferecena apresentao de suas fantasias46.
Haveria, portanto, um tratamento esttico conferido pelo artista fantasia, que
permitiria sua manifestao como arte. Atentemo-nos honestidade de Freud em no afirmar
com certeza, mas, sim, declarar quejulga sera criao resultante de devaneios, de fantasias
__________45Assim a autora define a noo de figura, em seu livro Um falco no punho, no fragmento Gnese esignificado das figuras: medida que ousei sair da escrita representativa em que me sentia to mal,como me sentia mal na convivncia, e em Lisboa, encontrei-me sem normas, sobretudo mentais.Sentia-me infantil em dar vida a personagens da escrita realista porque isso significava que lhes deviaigualmente dar a morte. Como acontece. O texto iria fatalmente para o experimentalismo inefvel e/ouhermtico. Nessas circunstncias, identifiquei progressivamente do texto, a quechamo figuras e que, na realidade, no so necessariamente pessoas mas mdulos, contornos,delineamentos. Uma pessoa que historicamente existiu pode ser uma figura, ao mesmo ttulo que uma
frase (), um animal ou uma quimera (LLANSOL,Maria Gabriela. Um falco no punho.Lisboa: Relgio Dgua, 1998, p. 130-131).46FREUD, Sigmund. Escritores criativos e devaneios. In: Obras psicolgicas completas de Sigmund
Freud: edio standard brasileira.Volume IX. Rio de Janeiro: Imago, 1969, p. 157-158.
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suavizadas, alteradas, disfaradas47. O escritor seria aquele capaz de suavizar a obscenidade da
fantasia e compartilh-la, no mais como algo a ele pertinente. H uma separao em jogo,
um apagamento daquele que se expe na escrita. H uma neutralidade atingida pela arte, uma
passagem da vida de um eu, de um cidado com identidade, a to-somente uma vida, com a
indeterminao que o artigo indefinido lhe confere. Operao que permite o
compartilhamento social da... Fantasia? Talvez o segredo mais ntimo que permita ao
escritor a neutralidade de sua obra seja fazer com que tal fantasia no seja mais a sua, mas
uma fantasia de ningum. Vejamos o que seria esse apagamento, essa passagem de algo
fantasioso a objeto esttico.
Justa passagem
Para Blanchot, um grande mrito de Kafka a sua capacidade de, ao escrever,
no fazer de sua desgraa pessoal a medida do infortnio comum48. Assim, a obra de Kafka
se constitui sem medida comum, sem par, sem proporo, sob o signo dessa passagem da voz
de um indivduo a uma voz dispersa, indiferenciadamente coletiva ou de ningum, mas
paradoxalmente singular, j que porta uma assinatura visvel, por exemplo, em um adjetivo
corrente no discurso comum: o kafkiano.
Estranha palavra, j no-pertencente ao eu, fora do curso do mundo, presente
como falha nos discursos correntes, desatada. Palavra escrita:
Escrever quebrar o vnculo que une a palavra ao eu, quebrar a relao que,fazendo-me falar para ti, d-me a palavra no entendimento que essa palavrarecebe de ti, porquanto ela te interpela, a interpelao que comea em mim
porque termina em ti. Escrever romper esse elo. E, alm disso, retirar apalavra do curso do mundo, desinvesti-la do que faz dela um poder peloqual, se eu falo, o mundo que se fala, o dia que se identifica pelotrabalho, a ao e o tempo49.
__________47Ver fragmentos em negrito na citao freudiana.48BLANCHOT, 1987, p. 66.49Ibidem, p. 17.
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Mantidas algumas particularidades, seria essa tcnica de operar com a palavra de
modo desenlaado, sem elos lgicos suficientemente consistentes os quais possam garantir
uma comunicao e a existncia de um eu que fala para um outro que escuta, a qual,
entretanto, no dispensa uma transmisso pelo poder literal de toque da palavra, o que busca
Llansol em seu Curso de silncio de 2004. Retomemos um excerto dessa obra para que ressoe
um pouco mais: Estes fragmentos, curso de silncio de 2004, esto desprovidos de um elo
lgico. Eles contm a maior experincia de dor de uma mulher resistente. Serviram de matria
de ensino oral sobre a ferida da morte na escola do vale e o aberto silncio envolvente50.
Uma mulher registra uma experincia e a transmite maneira de um curso.
Atentemos indeterminao provocada pelos artigos indefinidos e palavra curso. No a
identidade da que escreve; to-somente uma mulher. A escrita corre em um curso, em umadireo, que serve de curso no sentido de ensino, ou melhor dizendo, transmisso, j que
aparentemente no h uma didtica lgica, mas apenas um poder de toque das palavras.
H uma passagem. Uma vida que se conta e passa. Evoquemos a formulao de
Deleuze: A literatura passagem de vida51. E acrescentemos: a escrita de Llansol, no
exatamente literria, tambm passagem, no sentido deleuziano. E, se o que se conta no a
minha vida, a vida dela, mas umavida, sem possessivos, talvez j no nos seja preciso
pensar a escrita como narrao constituda de fantasias, delrios e, conseqentemente,estruturada como reflexo da estrutura do psiquismo em suas formas de neurose ou psicose.
Apresentemos a formulao de Deleuze que nos servir, mais frente, como suporte para se
pensar essa passagem que aqui propomos: No se escreve com as prprias neuroses. A
neurose, a psicose no so passagem de vida, mas estados em que se cai quando o processo
interrompido, impedido, colmatado52.
Por ora basta-nos, a partir do que apresentamos do pensamento de Deleuze e de
Blanchot, saber que no se escreve sem passagem de vida, sem neutralidade, semapagamento, sem desaparecimento do eu que escreve e conseqente passagem de vida. O que
tambm apontado por Freud, ao dizer de uma ars potica que permita ao escritor
compartilhar seu escrito.
__________50LLANSOL, 2006, p. 35.51DELEUZE, Gilles. Crtica e clnica. Traduo de Peter Pl Pelbart. So Paulo: Editora 34, 1997, p. 11.52Ibidem, p. 13.
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Do corpusmelanclico textualidade
At aqui, apresentamos o projeto llansoliano, a partir do livro sobre o qual nos
deteremos, como a experincia de um processo de tratamento e sua transmisso. Entretanto,
esse recorte insere-se em um projeto maior, de dar tratamento a todo um cenrio tradicional
da escrita literria. Como passagem de um eu a um ele sem rosto, a obra faz lao entre um
cenrio particular e uma tradio a ser retificada. Esse projeto maior no ser o nosso foco,
embora, metonimicamente, ao apresentarmos um ponto da obra, acreditamos tocar em todo o
corpo da obra. Como afirma a prpria autora, tudo est ligado a tudo e sem o tudo anterior
no existe o tudo seguinte53. Vamos apenas apresentar, ento, esse projeto maior, a fim de
demonstrar o ponto de partida de nossas questes.
O cenrio sobre o qual a autora busca fazer incidir sua prtica o da escrita e de
todos os campos que dela se valem. Sem dvida, um campo extenso. Pensemos em uma
escrita sobre a qual Llansol busca fazer ressoar a sua prtica: a escrita literria. A despeito do
que seu texto possa sugerir, em termos de ruptura dos gneros literrios, a autora afirma
escrever, em ltima instncia, algo no campo do romance:
_______escrevo,para que o romance no morra.Escrevo para que continue,mesmo se, para tal, tenha de mudar de forma,mesmo que chegue a duvidar se ainda ele,mesmo que o faa atravessar territrios desconhecidosmesmo que o leve a contemplar paisagens que lhe so to difceis denomear54
Nesse fragmento, extrado de um discurso intitulado Para que o romance no
morra, proferido por ocasio do Grande Prmio do Romance e da Novela, atribudo pelaAPE ao livro Um beijo dado mais tarde55, em 1991, a autora menciona a morte do romance e
uma mutao desse gnero operada em sua escrita, a fim de garantir-lhe sobrevida. Vejamos
qual esse cenrio mortificado a que a autora se refere, quando pensa o romance.
Sabemos tratar-se de um gnero assinalado, desde suas origens, por uma
fragilidade, pela ameaa de seu desaparecimento, pela sua prpria morte, pode-se dizer. o
__________53
LLANSOL, citada por BRANCO, Lucia Castello. Os absolutamente ss Llansol A letra Lacan.Belo Horizonte: Autntica; FALE/UFMG, 2000, p. 24.54LLANSOL, 1994, p. 116.55LLANSOL, Maria Gabriela. Um beijo dado mais tarde. Lisboa: Rolim, 1990.
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que nos apontam, de maneira geral, as teorias do romance e a crtica literria. Georg Lukcs
afirma, em sua Teoria do romance:
O romance, em contraposio existncia em repouso na forma consumadados demais gneros, aparece como algo em devir, como um processo. Porisso ele a forma artisticamente mais ameaada...56
Massaud Moiss, por sua vez, afirma emA Criao Literria:
...a identificao do romance com o Romantismo lhe trouxe uma srie deconseqncias. Uma delas, certamente a mais grave, a seguinte: a
burguesia, fadada a desaparecer no inexorvel ritmo da histria, levaria
consigo o romance? possvel, mas tambm pode ser que se transformenoutra arte, ou noutra forma paralela de expresso literria57.
Desse fragmento, extramos uma primeira indicao para se pensar a textualidade
proposta por Llansol: uma outra arte, uma forma paralela de expresso literria. Veremos,
ao longo desta dissertao, em que se constitui essa outra forma, paralela expresso literria.
Um outro aspecto do romance, que aqui nos interessa, est de certo modo
associado ao fracasso do gnero romanesco: o fato de que ele est fadado a ser um recorte
subjetivo. Um recorte, em certa medida, autobiogrfico, j que, segundo Lukcs, a formaexterior do romance essencialmente biogrfica58. A forma romanesca , portanto, um
fragmento subjetivo do mundo, um recorte de carter biogrfico, ao qual s possvel abordar
o que lhe seja anterior ou posterior em mera perspectiva e em pura referncia ao problema59.
H, portanto, um conflito temporal estruturante na forma romanesca. Trata-se de uma
assimetria, de uma no-equivalncia entre a representao narrativa limitada pela experincia
de uma vida e a eternidade de um suposto mundo objetivo a ser representado. Decorre da a
melancolia do curso histrico, do transcorrer do tempo, que se expressa no fato de as atitudes
eternas e os contedos eternos perderem o sentido, uma vez passado seu tempo; de o tempo
poder passar por cima do que eterno60.
Dessa dissonncia entre a vastido inapreensvel de um suposto mundo objetivo e
o restrito ato de uma subjetividade que deseja represent-lo, a partir de um dado momento
histrico, decorre, ento, um segundo trao do romance: a melancolia. A respeito dessa
__________56LUKCS, Georg.A teoria do romance. So Paulo: Editora 34, 2006, p. 72.57
MOISS, Massaud.A criao literria. So Paulo: Cultrix, 1986, p. 95.58LUKCS, op. cit., p. 77.59Ibidem, p. 83.60Ibidem, p. 107.
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limitao estrutural do romance, Lukcs acrescenta: a evidncia de que o fracasso uma
conseqncia necessria de sua prpria estrutura interna, de que ela, em sua melhor essncia e
em seu valor supremo, est fadada morte61.
Diante desse impasse, a subjetividade, quando da criao de um romance, divide-
se, reflete sobre si mesma, sobre sua limitao, tendo em vista uma autocorreo do excesso
de subjetivismo, visando a certa objetividade na forma romanesca, para que essa possa
representar adequadamente um mundo supostamente dado a priori.Tal seria o recurso da
ironia romntica62. Entretanto, para Lukcs, a mais profunda melancolia de todo grande e
autntico romance63 apareceria justamente como sinal do fracasso dessa tentativa de uma
subjetividade ocultar-se em meio forma romanesca, visando objetividade:
A objetividade do romancista para tanto um simples sucedneo formal: eletorna possvel a configurao e arremata a forma, mas a prpria maneira doremate indica com um gesto eloqente o sacrifcio que se teve de fazer, o
paraso eternamente perdido que foi buscado mas no encontrado, cuja buscainfrutfera e desistncia resignada do fecho ao crculo da forma64.
Diante desse cenrio certamente pessimista, melanclico, em que no se v mais
perspectivas para o romance, Lukcs conclui:
A evoluo histrica no foi alm do tipo do romance da desiluso, e a maisrecente literatura no revela nenhuma possibilidade essencialmente criativa,
plasmadora de novos tipos: h um epigonismo ecltico de antigas espciesde configurao, que apenas no formalmente inessencial no lrico e no
psicolgico parece ter foras produtivas65.
Da saturao do paradigma melanclico do romance, Llansol parece saber bem. A
autora aponta o cerne da questo, o seu ponto vazio em que algo outrora se apresentou:
... se, h muito, se fala da morte do romance e,apesar disso, se continua a escrever romances, porque,dessa escrita,a vibrao definitivamente se ausentou...66
__________61Ibidem, p. 122.62A respeito, ver LUKCS, op. cit., p. 74 e 75.63
LUKCS, op. cit., p. 86.64Idem.65Ibidem, p. 158-159.66LLANSOL, 1994, p. 118-119.
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Frente a esses sinais de desgaste e a possvel morte por saturao do romance, a
autora lana a seguinte questo: Como romper estes cenrios de j visto e revisto que nos
cercam?67Em resposta, ela se prope a deslocar a direo desse paradigma, operar um corte
na tradio do romance melanclico, por meio de sua textualidade.
Para isso, Llansol prope um tratamento da lngua e uma diferente postura em
relao experincia da escrita literria. Tal tratamento consiste na mutao do estilo, das
frases e dos vocbulos:
minha convico que, se se puder deslocar o centro nevrlgico doromance, descentr-lo do humano consumidor de social e de poder, operaruma mutao da narratividade e faz-la deslizar para a textualidade um
acesso ao novo, ao vivo, ao fulgor, nos possvel68
.
[...]
Pela mutao do estilo, pela mutao frsica e pela mutao vocabular, pelotratamento do que mais universal foi dado ao homem um lugar e umalngua , ela (a textualidade) abre caminho emigrao69das imagensdos afectos, e das zonas vibrantes da linguagem70.
Desse projeto, extramos nossa direo: o deslocamento do centro nevrlgico do
romance, a mutao da narratividade, o acesso ao fulgor, o tratamento da lngua por meio do
dom potico, a emigrao das zonas vibrantes da linguagem.
Vejamos, agora, o percurso da autora na obra Amigo e Amiga curso de silncio
de 2004, de modo um pouco mais detalhado, a fim de tentar fazer avanar as questes
lanadas.
__________67
Ibidem, p. 120.68Grifo nosso.69Grifo e parntesis nossos.70LLANSOL, 1994, p. 116 e 123.
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Captulo II A cura, o fulgor
Conto e cura
Retomemos a hiptese que, at aqui, orientou-nos: no ofcio de escrita, est em
jogo alguma salvao, algum tratamento, seja ele parte explcita ou no de uma obra. O
escritor visa prioritariamente a escrever: sua necessidade a construo de um objeto esttico.
Entretanto, a experincia de escrita tem, contingencialmente, efeitos sobre quem escreve oul. Na obra de Maria Gabriela Llansol, o efeito contingencial de tratamento da escrita
testemunhado em vrias passagens. Especialmente, como veremos, no livroAmigo e Amigo
curso de silncio de 2004.
EmRua de mo nica1, de Walter Benjamin, h um fragmento intitulado Conto e
cura, que parece convergir com a hiptese da existncia de um efeito de tratamento na
escrita:
A criana est doente. A me a leva para a cama e se senta ao lado. E entocomea a lhe contar histrias. Como se deve entender isso? Eu suspeitava dacoisa at que N. me falou do poder de cura singular que deveria existir nasmos de sua mulher. Porm, dessas mos ele disse o seguinte: Seusmovimentos eram altamente expressivos. Contudo no se poderia descreversua expresso... Era como se contassem uma histria. A cura atravs danarrativa, j a conhecemos das frmulas mgicas de Merseburg. No sque repitam a frmula mgica de Odin, mas tambm relatam o contexto noqual ele as utilizou pela primeira vez. Tambm j se sabe como o relato queo paciente faz ao mdico no incio do tratamento pode se tornar o comeo de
um processo curativo. Da vem a pergunta se a narrao no formaria oclima propcio e a condio mais favorvel de muitas curas, e mesmo se noseriam todas as doenas curveis se apenas se deixassem flutuar para bemlonge at a foz na correnteza da narrao. Se imaginarmos que a dor uma barragem que se ope corrente da narrativa, ento vemos claramenteque rompida onde sua inclinao se torna acentuada o bastante para largartudo o que encontra em seu caminho ao mar do ditoso esquecimento. ocarinho que delineia um leito para essa corrente.2
__________1BENJAMIN, Walter.Rua de mo nica. So Paulo: Brasiliense, 19952Idem, p. 269.
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H, para Benjamin, um clima, uma condio favorvel a muitas curas na
narrativa. Se h a dor como barragem, h, tambm, a narrao como possibilidade de
superao da impotncia de dizer. Mas, nesse ponto, apresenta-se tambm o risco: que a
inclinao que permite a narrativa se acentue demasiadamente e se perca o controle da escrita.
J o vimos no primeiro captulo: h um duplo potencial na escrita. O fio que leva a alguma
salvao pode ser o mesmo que conduz perdio. H, necessariamente, errncia, quando
escrever uma experincia limtrofe. Seria, ento, necessria uma medida, uma dosagem,
para que a inclinao narrativa acentue-se apenas o suficiente. Medida que se pode traduzir
em tratamento dado ao texto. Como resultado dessa dosagem, h um apagamento, um
esquecimento a operar na escrita. Retornaremos a esse ponto de esquecimento, ainda neste
captulo.No fragmento final do livro A Restante Vida3, intitulado O Pensamento de
Algumas Imagens, Llansol explicita a relao entre escrita e efeito de tratamento, de cura,
para a qual nos voltamos. Observando a foto de uma paisagem vazia, de cho ressecado,
cortado ao meio por um fino curso dgua, escreve:
A mesma paisagem, sem , este cho um horizonte.S muito mais tarde me dei conta do que significou passar por estes lugares.
Onde escrita e vontade de curar se confundiram. Curar, uma espcie deefeito com agente ausente; trazer algum fala, atravs do fio de gua de si.O texto pertence ao mesmo sinal. Quem se cura, no conta, uma narrativa
pobre, um cho quase seco, um olhar em toda a parte.4
Primeiramente, ressaltemos o fato de a cura pela escrita, para Llansol, ser um
efeito de agente ausente. Quanto a essa ausncia de agente, trata-se do fato de a cura realizar-
se como um efeito a mais, no-programado. A esse respeito, Llansol, na obra Amigo e Amiga
curso de silncio de 2004, afirma: Mandei, pelos ares, ao doente uma folha branca, como
sinal do meu compromisso. A cura faz-se, e no sei o que isso quer dizer. Simplesmente
lembrei-me.5Se a cura um efeito de agente ausente, um efeito no-programado, ela pode,
contingencialmente, ocorrer.
interessante, tambm, a possibilidade de leitura do ttulo do fragmento anterior
O Pensamento de Algumas Imagens de mais de uma maneira. As imagens so pensadas e
pensam. Nesse sentido, afirmar que Llansol pensa uma imagem coincide com dizer que uma__________3
LLANSOL, Maria Gabriela.A Restante Vida. Lisboa: Relgio Dgua, 2001.4Idem, p. 112 e 113.5LLANSOL, Maria Gabriela.Amigo e Amiga curso de silncio de 2004.Lisboa: Assrio & Alvim,2006, p. 21.
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imagem se pensa a si, ou to-somente que o texto pensa. Trata-se da restante vida, da
imagem de uma vida escrita6, presentificada em texto. Paisagem ou texto sem eu. Paisagem
ressecada, texto reduzido ao mnimo, onde um fio de gua, de narrativa, atravessa. Fio de
gua da paisagem, fio de palavras de algum, retido em uma imagem, em uma cena fulgor7.
Lembremos que, nas palavras da autora, o texto no avana por desenvolvimentos temticos,
nem por enredo, mas segue o fio que liga as diferente cenas fulgor. 8 essa a pobreza do
texto curado: sem excessos representativos, sem adereos ficcionais; apenas escrita reduzida
ao ponto de olhar em toda a parte. Olhar em toda parte, mas contido, circunscrito por
palavras em uma cena fulgor. Operao que, possivelmente, tem efeitos de tratamento sobre
quem escreve ou l: um efeito no-programado, com agente ausente. Lembremos que um
olhar em toda parte permite-nos pensar no apenas no texto reduzido a um olhar, mastambm no olhar do leitor.
importante demarcar, ainda, uma certa diferena entre o que aponta Benjamin
em Conto e cura o fato de que a barragem de dor poderia ser rompida por uma narrativa, o
que nos leva a pensar em uma possvel catstrofe: um excesso de palavras sem orientao, se
no canalizadas e a operao llansoliana, que se d na reduo da narrativa a um fio
contnuo, uno, em direo a um curso que, ainda que se apresente aparentemente sem lgica,
orienta-se pelas cenas fulgor.__________6O significante vida escrita, que nos auxiliou nesse ponto a pensar a relao entre vida e obra, referente ao livro A vida escrita, de Ruth Silviano Brando. Assim a autora define o que seria umavida escrita: O que chamo de vida escrita a unidade entre escrever e viver e vice-versa, pois aescrita se faz por seus traos de memria marcados, rasurados ou recriados, no tremor ou firmeza dasmos, no pulsar do sangue que faz bater o corao na ponta dos dedos, na superfcie das pginas, datela, da pedra, e onde se possam fazer traos, mesmo naquilo que resta desses traos, naquilo que nose l, o que se torna letra, som ou sulco, marcas dessa escavao penosa que fazemos no real.(BRANDO, Ruth Silviano.A vida escrita. Rio de Janeiro: 7 letras, 2006, p. 28.)7
Assim a autora define a noo de cena fulgor, em seu livro Um falco no punho, no fragmentoGnese e significado das figuras: medida que ousei sair da escrita representativa em que mesentia to mal, como me sentia mal na convivncia, e em Lisboa, encontrei-me sem normas, sobretudomentais. Sentia-me infantil em dar vida a personagens da escrita realista porque isso significava quelhes devia igualmente dar a morte. Como acontece. O texto iria fatalmente para o experimentalismoinefvel e/ou hermtico. Nessas circunstncias, identifiquei progressivamente do texto, a que chamo figuras e que, na realidade, no so necessariamente pessoas mas mdulos,contornos, delineamentos. Uma pessoa que historicamente existiu pode ser uma figura, ao mesmottulo que uma frase (), um animal ou uma quimera. Oque mais tarde chamei cenas fulgor. Na verdade, os contornos a que me referi envolvem um ncleocintilante. O meu texto no avana por desenvolvimentos temticos, nem por enredo, mas segue o fioque liga as diferentes cenas fulgor. H assim unidade, mesmo se aparentemente no h lgica, porque
eu no sei antecipadamente o que cada cena fulgor contm. O seu ncleo pode ser uma imagem, ouum pensamento, ou um sentimento intensamente afectivo, um dilogo. (LLANSOL, Maria Gabriela.Um falco no punho. Lisboa: Relgio Dgua, 1998, p. 130-131.)8LLANSOL, 2001, p. 130-131.
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O curso silencioso do fulgor
Para pensarmos o modo de encadeamento das partes do texto Amigo e Amiga
curso de silncio de 2004, tomemos a palavra curso, presente no subttulo. Um curso exige
elaborao. Curso no sentido de ensino, de transmisso. Nessa obra transmite-se, dentre
outras coisas, uma operao de cura da narrativa. Uma indicao interessante desse sentido
atribudo a curso so as palavras escolhidas para dar nome s divises do ndice do livro:
Tbua de matrias. Matrias a serem aprendidas, como em um estudo. Matrias
subdivididas em quatro partes e uma adenda: a primeira, O GOLPE; a segunda, DELRIO
EM PARASCEVE; a terceira, estere e a quarta, ESTOU BEM_________.
Chama a ateno a grafia das palavras que nomeiam as subdivises do livro.
Arriscaramos dizer que, no texto llansoliano, todo tratamento dado s palavras, s letras, ao
corpo textual9, tem algum propsito. Primeiramente, pode-se fazer uma analogia superficial
entre a grafia e a quantidade de texto contida em cada parte do livro: estere, que se grafa em
minsculas, d nome parte do livro que contm o menor nmero de fragmentos: 22, ao todo.
As partes nomeadas O GOLPE, DELRIO EM PARASCEVE e ESTOU
BEM_________ constituem-se, respectivamente, de 34, 44 e 81 fragmentos. As dimenses
do corpo textual se apresentam, portanto, no modo de grafar as palavras que do nome a cadaparte do livro. possvel desdobrar um pouco mais essa indicao grfica do texto. No
Aurlio, estere significa medida de volume para lenha10. Da lenha, faz-se o papel. No
papel, a escrita. No texto de Llansol, a escrita apresenta-se sob uma medida mnima: a da
densidade da matria. Palavras que se adensam na pgina, narrativa que se reduz e se
condensa no elemento mnimo da escrita: a letra.
Pensemos no conceito de letra, a partir das elaboraes lacanianas, ao longo de
seu ensino. Uma letra pode ser a unidade mnima da escrita. Pode ser tambm uma imagemque evoca um som. Mas no apenas. Letra, na psicanlise, refere-se a um conceito que
comporta certa fluidez, como tpico da rede conceitual lacaniana. Se tomarmos a letra
conforme a pensa Lacan, em seu Lituraterra 11 como uma demarcao litoral entre o que
nas palavras simbolizao e o que nelas comporta algo somtico, vivo, libidinal, pulsional,
__________9A noo de corpo textual ser desenvolvida no terceiro captulo, paralelamente noo llansoliana
de corpascrever.10 ESTERE. In: FERREIRA, Aurlio Buarque de Holanda. Novo dicionrio Aurlio da lnguaportuguesa. 3. ed. Curitiba: Positivo, 2004.11LACAN, Jacques. Lituraterra. Che vuoi, Porto Alegre, v. 1, n. 1, p. 17-23, 1986.
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em termos freudianos, expresses a que, em seu ensino, Lacan far convergir na noo de
gozo12, poderemos avanar um pouco mais em nossa investigao.
Pensar a letra apontada no texto llansoliano, por exemplo, na figuraestere
como um litoral entre campos heterogneos, permite-nos ler a inscrio de algo vivo no
espao da pgina, articulado em texto, em forma de linguagem. Diramos uma espcie de
lamela textual que comporta, simultaneamente, algo de simblico e algo de vivo.
Assim Lacan apresenta esse aspecto limtrofe da letra, em seu Lituraterra: A
borda do buraco no saber que a psicanlise designa justamente como abordagem da letra, no
seria o que ela desenha? [...] Entre o gozo e o saber, a letra constitui litoral.13Tomemos o
saber como aquilo que se constitui simbolicamente na linguagem e o buraco como um ponto
de impossvel representao. Algo heterogneo em relao lngua se apresenta como umburaco em meio a ela. Ao bordejar esse buraco no saber, ao apontar o lugar em que a
lngua falha em sua funo simblica, ao demarcar pontualmente uma inoperncia dos
significantes de uma lngua, a letra, paradoxalmente, presentifica, na linguagem, um ponto
impossvel, mais alm de si, projetado no infinito, vertiginoso, mas escrito. A letra desenha,
demarca a juno, que tambm separao, entre o que na palavra h de vivo e o que nela h
de smbolo.
No texto llansoliano, inscreve-se, no espao da unidade mnima da rede simblica, a letra algo de vivo. Vivo e silencioso. Ponto em que se d, simultaneamente, a juno e a
disjuno entre o que vivo e o que palavra. Assim Llansol apresenta tal operao, em seu
texto:
que nos separa
ou o silncio ao ouvido
_________ deslocando-se no seu metro cbico de lenha, salva odia de estere a sua concentrao num ponto. No precisa de nome pr-
prio com maiscula ____________ o fogo que h-de acender sua madeira_______ arde.
__________12Em seu texto A letter, a litter, Ram Mandil apresenta uma interessante definio de letra, referente rede conceitual psicanaltica, que nos permite pensar em que medida a letra indica, na lngua, umasubstncia a ela distinta, sem representao, mas nela presente. Em termos lacanianos, indica o gozoem meio lngua: possvel dizer que, em uma leitura retroativa, a letra, pensada como distinta dosignificante, seria o que, na ordem da linguagem, permitiria apreender a circulao dessa substncia,
dessa materialidade qual Lacan gradativamente associa o gozo. In: MANDIL, Ram. Os efeitos daletra Lacan leitor de Joyce. Rio de Janeiro/Belo Horizonte: Contra-Capa Livraria/Faculdade deLetras da UFMG, 2003, p. 4713LACAN, 1986, p. 23
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palavra. No se sucumbe na noite obscura 16que habita o texto. A vida e a morte correm em
um curso silencioso, dosado pelas imagens e pelas palavras.
Retomemos a estruturao do livro. A palavra curso, do subttulo da obra,
tomada at aqui como transmisso, pode remeter tambm noo de paisagem. Paisagem
fulgorizada. o curso de um rio, um fio de gua, um fio de gua de si, sob um cho quase
seco.17O curso silencioso da paisagem escrita. A Tbua de matrias agora outra. Evoca
elementos mnimos da paisagem: a matria a ser figurada. Pois o texto llansoliano, como a
dado momento afirma uma figura, nmada, (nmade, diramos no Brasil)
[...] precisa de matria figural
para transformar.18
O que se l no verbete tbua, por exemplo, no dicionrio Aurlio:
Grande erva (at 3m) da famlia das tifceas (Typha domingensis), que viveem guas paradas e rasas, pois radica-se no fundo lamacento por meio de umrizoma, que comestvel. Tem folhas ensiformes, pontudas e resistentes,flores unissexuais e inconspcuas arrumadas em espigas grossas ecompactas, de sexos separados, e espigas frutferas com plos que parecem
paina. As folhas servem para tecer esteiras e cestos, e podem dar celulosepara papel.19
Matria mnima do papel, suporte de escrita que se fixa por um rizoma, vida
inscrita no texto, sob a medida de outra figura: estere. Lembremos: estere a medida de
__________16Lembremos que noite obscura um significante extrado por Llansol do poema Noite obscura,de So Joo da Cruz, tambm ele uma figura de sua obra. Em seu texto, Llansol, como tpico domtodo de figurao, retira dessa expresso a carga semntica religiosa que, dito de um modosumrio, refere-se unio da alma do poeta com algo irrepresentvel Deus e confere-lhe umestatuto quase conceitual, no sentido de que noite obscura parece referir-se, em alguns momentos, safeces corporais que as palavras podem transmitir, mas no simbolizar. Seria esse um dos aspectosque nos permitem constatar, no texto llansoliano, uma operao com a letra, no sentido que a elaconfere a psicanlise. Neste captulo, deter-nos-emos novamente nas referncias llansolianas ao poemade So Joo da Cruz. Sobre a noite obscura, ver: CRUZ, San Juan de la.Poesas completas. Madrid:M.E. Editores, 1994.17
Ver a quarta citao, deste captulo.18LLANSOL, 2006, p. 49.19 TBUA. In: FERREIRA, Aurlio Buarque de Holanda. Novo dicionrio Aurlio da lngua
portuguesa. 3. ed. Curitiba: Positivo, 2004.
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volume para lenha.20Pouco a pouco, entenderemos: a alegria no o que cremos dela, nem
supomos. o primeiro passo para a contemplao da nervura da folha.21
A respeito do modo como se constri o Curso, a autora afirma:
Compor este curso em que os ouvintes gozam, como eu, de liber-dade de conscincia e do dom potico,
seguir um cardume de peixes,quem me procurou,quando eu o vi evoluir no fundo do mar.
Estou a chamar aos peixes fragmentos ou fragmentos aos peixes,a mergulh-los na operao do azul. O que eu desejo para a morte de
Nmada pulsa, em cardume de fragmentos,
em azul igual.
A colcha da cama branca,porque eu quero deitar sobre ela: Sou pobre. Ficar to pobre de-sorienta-me, neste caudal de sentimentos de linguagem. isso, alngua sente a perda da lngua companheira_________ essa a desco-
berta do dia. Quem no sente esse contato direto__________ ficciona.Ficcionar repulsivo para o silncio.22
Trata-se de um curso composto de fragmentos dispersos como um cardume de
peixes, mas, como eles, coesos, a vagar em meio gua. Realiza-se na escrita a operao doazul, a de transformar a matria viva em vida figural, em restante vida. Vida curada,
reduzida no texto, enlaado rizomaticamente por tnues fios de escrita. Fragmentos que
asseguram a quem escreve a unidade aparentemente dispersa do corpo textual: permanecer
no inseguro, subtra-lo de algumas das suas partes, atirar-lhe o salva-vidas dos fragmentos.
Inquieto-me porque, quotidianamente, devemos fazer os despejos do presente.23
Se, como j vimos, Quem se cura, no conta, uma narrativa pobre, um cho
quase seco, um olhar em toda a parte
24
, o curso em questo, em que vrios efeitos de cura, detratamento, esto em jogo, remete a um texto, tambm ele, dotado de pobreza. A pobreza
como o dom de no ficcionalizar, de ir ao cerne silencioso, nodal da questo: atravessando um
sentimento de linguagem, saber que a perda elaborada na escrita deAmigo e Amiga curso de
silncio de 2004 a de uma lngua em relao outra que partiu, sem alarde. Se se perde um
__________20 ESTERE. In: FERREIRA, Aurlio Buarque de Holanda. Novo dicionrio Aurlio da lngua
portuguesa. 3. ed. Curitiba: Positivo, 2004.21
LLANSOL, 2006, p. 77.22Ibidem, p. 26.23Ibidem, p. 14.24LLANSOL, 2001, p. 112-113.
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lao na lngua, possvel recuperar-se da perda atravs de um outro enlaamento: uma
passagem: da vida que parte restante vida escrita. Alegria de decepao, Melhor que
lgrimas.25
Um novo habitante
A princpio, o Amigo que passa definitivamente ao texto ser nomeado, no Curso
de silncio, nmada. A princpio, pois, como veremos, as figurasesto em processo contnuo
de mutao at o nvel literal de seus nomes. Eis como se d, para ele, a passagem ao espaoednico26, no fragmento que abre o livro:
curso de silncio
a partir do momento em que tudo ao meu alcance se imobiliza, sintoa copa da rvore verdejante, entrada de um ramo; vindo de um
ponto movimentado da vila prxima,um trilhador dos mundos senta-se na soleira de um barraco de cristal.
Est centrado sobre um objecto que deixou_______ o estudo do textoem que escrevo e que lhe conferiu (necessitaria ele?) o estatuto denmada. Sem situao social no conhecimento. As folhas adoram vaga-mundos. A vagueao. E as daquele pltano, e rvores limtrofes, no soexcepo regra. Assim, ele, partido em fragmentos, move-se, flutuan-do, por impulso do ar. um homem quotidiano, sem nenhum sinal deilustrao nas mos e/ou no rosto. Os olhos percutentes encontram osmeus. Quem diria que so olhos dormentes? O silncio. O silncio.
__________25LLANSOL, 2006, p. 35.26Assim Llansol precisa o que o espao ednico, em seu livro Na casa de julho e agosto: Esselugar vem nomeado vrias vezes no texto: o espao ednico. At hoje no encontrei termo maisadequado, apesar de ao cham-lo assim me ver obrigada a desconstruir uma tradio religiosa. O quemuitas vezes pura perca de tempo. Mas se conseguires imaginar um espao ednico que no estejana origem do universo, como diz o mito; que seja criado no meio da coisa, como um duplo feito denovo e de desordem; que sempre existiu e no s no princpio dos tempos; que est correndo o risco dedesaparecer aqui e a novidade de aparecer, alm, incgnito e irreconhecvel; que no fixo, comosugere a tradio, mas elaborvel segundo o desejo criador do homem, compreenders o que entendo
por espao ednico. um espao que vive confrontado, como o texto mostra, com o poder e com asimagens de incio, com o tropel de imagens que vem do horizonte; em termos psicolgicos, esse espaovive confrontado com a opresso poltica e/ou a obrigatoriedade de viver identificado com a depresso.(LLANSOL, Maria Gabriela.Na casa de julho e agosto. Lisboa: Relgio Dgua, 2003 (A), p. 146.)
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Quando o azul desce, e se transforma no negro chumbado danoite, acende-se sobre ele uma densidade que o protege, e lhe permitecontinuar a vadiar. Convido-o para o meu quarto,que se desfaz na espuma do texto.27
O fragmento inicia-se com uma letra minscula, no meio de uma frase
interrompida em outro lugar e continuada no texto. Resta escrito um olhar percutente, um
olhar com potncia de toque. Mas o fulgoro circunscreve. A imagem se adensa em palavras e
paira sobre ela a proteo da espuma do texto. Opera-se uma libertao do cenrio cotidiano
da vida biogrfica e passa-se cena da escrita. Desdobremos um pouco o modo como tal
processo ocorre com afiguranmada.
O texto de Llansol exige uma leitura que suporte a vagueao de elementos
mnimos extrados da vida, que suporte acompanhar um tnue fio de encadeamento, em que
se far sentir a mutao das figuras. Nmada aquele que no tem habitao fixa, que se
apresenta como errante. H indicaes, no livro Amigo e Amiga,de que o que serve de base
para a construo dessa figura, de matria figural, nas palavras do livro, seria um legente28
que partira. Partira para habitar o texto, lugar de constante vagueao. O prprio texto incita-
nos a forar a lngua, no limite de sua legibilidade, para decifrar algumas pistas que indicam o
processo de mutao das figuras. Por exemplo:
O ininteligvelSe pe e decompe em jangadas, jias-anis, conceitos, anagramas queenaltecem os nomes, imagens resvaladas, aves de livros, radiais de verbos.29
Sugere-se a presena de operaes de ciframento no texto. Algo ininteligvel, mas
explicvel, apresenta-se, por exemplo, nos anagramas. Um anagrama para nmada seria,
justamente, amado. E a figurado amado no deixa de se apresentar em Amigo e Amiga:
Amadodifcil, insubstituvel nos pedidos oportunos de exigncia, e nos rarssimos outros emque a alegria do mtuo que nos oferecamos teve peculiares seminais gotculas de sangue
[...].30Poderamos, ento, dar um passo arriscado e ligar a figurado amado, na obra, quele
que partira e que, em vida, fora o companheiro da que escreve, de Maria Gabriela Llansol?
__________27LLANSOL, 2006, p. 11.28
Assim Llansol nomeia os leitores de seu texto que se abrem experincia dessa escrita, tal comoela se pretende conceber.29LLANSOL, 2006, p. 180.30Ibidem, p. 78.
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Nesse texto, a prpria autora quem o afirma, escrever o duplo de viver.31O duplo no ,
certamente, o mesmo. Mas o duplo pressupe ntima ligao, no caso, entre a escrita e a vida.
Talvez, recorrendo prpria obra, possamos afirmar que, em algum nvel, o amado coincida
com Augusto, aquele que, em vida, fora o companheiro de Llansol. H um fragmento, em
Amigo e Amiga, que aponta para essa co-incidncia:
ouvindo
__________ este no o primeiro dos sonhos que tenho tido sobre A.Nmada.Estou a conversar cordialmente com I. Numa sala que abre sobre umquarto onde o Augusto est deitado. Doente?
A sala adquire a funcionalidade de um lugar de encontro, e eu es-pero que leitores cheguem, sentada com um livro sobre os joelhos. Aochegarem, um deles diz-me que quer ir visitar o Augusto. Se pode. Euhesito porque sei que habitualmente ele prefere no ver ningum no ter visitas. Salvo com rarssimas excepes. Quando o primeiro vi-sitante entra no quarto contguo que tem uma porta branca com dois
batentes, pressinto que ele foi recebido com muita alegria. E assim su-cessivamente, medida que os visitantes vo entrando. Ento ouo asua voz que pergunta:
Por que que a Maria Gabriela no vem ver-me?(de 20 para 21 de dezembro/domingo)32
Trata-se de um fragmento aparentemente destoante dentro do livro, j que o
nico datado e com um tom mais prximo a anotaes, algo incomum na obra llansoliana em