da constatação à construção sentidos de família nos dissertação paulo andré sousa teixeira

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Dissertação

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

    CENTRO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM PSICOLOGIA

    Da constatao construo: sentidos de famlia nos

    laudos psicolgicos das Aes de Guarda de crianas e

    adolescentes

    Paulo Andr Sousa Teixeira

    RECIFE/ PE

    2013

  • Paulo Andr Sousa Teixeira

    Da constatao construo: sentidos de famlia nos

    laudos psicolgicos das Aes de Guarda de crianas e

    adolescentes

    Dissertao apresentada ao curso de Mestrado em

    Psicologia, do Programa de Ps-Graduao em

    Psicologia, da Universidade Federal de

    Pernambuco, como requisito parcial para obteno

    do grau de Mestre em Psicologia.

    Orientadora: Prof. Dr. Maria Isabel Patrcio de

    Carvalho Pedrosa

    RECIFE/ PE

    2013

  • Catalogao na fonte

    Bibliotecrio Tony Bernardino de Macedo, CRB4-1567

    T266c Teixeira, Paulo Andr Sousa. Da constatao construo: sentidos de famlia nos laudos psicolgicos das aes de guarda de crianas e adolescentes / Paulo Andr Sousa Teixeira. Recife: O autor, 2013.

    112 f. ; 30 cm.

    Orientador : Prof. Dr. Maria Isabel Patrcio de Carvalho Pedrosa. Dissertao (mestrado) - Universidade Federal de Pernambuco. CFCH. Ps Graduao em Psicologia, 2013.

    Inclui referncia.

    1. Psicologia. 2. Famlia. 3. Psicologia jurdica. 4. Psicologia discursiva. I. Pedrosa, Maria Isabel Patrcio de Carvalho. (Orientadora). II. Titulo.

    150 CDD (22.ed.) UFPE (CFCH2013-149)

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

    CENTRO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM PSICOLOGIA

    Da constatao construo: sentidos de famlia nos

    laudos psicolgicos das Aes de Guarda de crianas e

    adolescentes

    Comisso Examinadora:

    _____________________________________________

    Prof. Dr. Maria Isabel Patrcio de Carvalho Pedrosa

    1 Examinador/Presidente

    _____________________________________________

    Prof. Dr. Pompia Villachan Lyra

    2 Examinador/Externo

    _____________________________________________

    Prof. Dr. Pedro de Oliveira Filhp

    3 Examinador/Interno

    Recife, 28 de Junho de 2013.

  • AGRADECIMENTOS

    Aos amigos da turma 2011 do Mestrado em Psicologia da UFPE, pelos momentos de aprendizado,

    reflexo e boas risadas;

    A Joo, secretrio do Programa, por visivelmente optar ir bem alm do essencial;

    A minha orientadora, Bel, pelo companheirismo de tornar a minha pesquisa nossa empreitada;

    banca examinadora, Profa. Pompia e Prof. Pedro. um privilgio ter pessoas que admiro na

    condio de avaliadores;

    Ao Tribunal de Justia de Pernambuco e ao Ministrio Pblico de Pernambuco, pela compreenso e

    apoio na realizao deste trabalho, nas pessoas, respectivamente, do Des. Luiz Carlos de Barros

    Figueiredo e do Dr. Josenildo Costa;

    Ao Centro de Ateno Psicossocial (CAP/TJPE), pela confiana e prontido na cesso dos relatrios

    psicolgicos, externados na pessoa da colega Sandra Mnica Rocha;

    Aos meus amigos recifenses, hoje tantos, mas especialmente a Dany e Paulo Steffanello, famlia

    escolhida;

    A minha famlia, razo de cada esforo e noite em claro. Quero ser melhor por/para vocs, Nega e

    Vincius.

  • RESUMO

    As diversidades e peculiaridades presentes nas dinmicas familiares continuam fomentando

    discusses acadmicas, bem como norteando importantes questes de repercusso social.

    Famlia, agora compreendida e expressa socialmente de forma diversificada, obriga os

    profissionais que atuam com esse pblico a tambm acompanharem as transformaes em

    termos de concepes, configuraes e demandas familiares. Nesse sentido, esta pesquisa

    visou discutir sentidos de famlia construdos no bojo dos laudos psicolgicos solicitados

    durante o trmite das Aes de Guarda de Crianas e Adolescentes. Para tanto, utilizamos

    uma pesquisa documental em 50 (cinquenta) relatrios psicolgicos, produzidos para

    subsidiar decises judiciais dos Processos de Guarda que tramitaram na Comarca do Recife -

    PE, entre os anos de 2000 a 2009. Foram utilizadas ferramentas da anlise documental e

    anlise discursiva para a interpretao do material coletado. A pesquisa teve por objetivo

    perscrutar como o psiclogo participa da produo dos discursos sobre famlia engendrados

    no/pelo poder judicirio, questionando o lugar que esse profissional se coloca(va). Afiliados a

    uma perspectiva discursiva em Psicologia, na qual a linguagem ganha relevncia tanto terica

    como metodolgica, entendemos que o parecer desses peritos faz circular determinados

    discursos, os quais influenciam a ulterior sentena judicial. As discusses levantadas

    reafirmam a pluralidade de concepes de famlia, mas tambm certa tendncia de posturas

    normatizantes/normalizantes por parte dos profissionais. Lugares historicamente reservados

    ao homem e mulher dificilmente so questionados, predominando o discurso que reifica

    papis de gnero de forma desigual. Sobreposies frequentes entre parentalidades e

    conjugabilidades alimentam conflitos, colocando crianas e adolescentes no lugar de objetos,

    contrariando a normativa vigente. Apesar de algumas excees, observamos a predominncia

    de laudos que se colocavam como reveladores de uma dada realidade, fomentando o debate tico em torno do saber/fazer psicolgico e os efeitos dos posicionamentos defendidos.

    PALAVRAS-CHAVE: Famlia, Aes de Guarda, Psicologia Jurdica, Psicologia

    Discursiva.

  • ABSTRACT

    Diversities and peculiarities that are present in family dynamics continue fostering academic

    discussions, as well as guiding important issues of social repercussions. Family, now

    understood and socially expressed in diverse ways, requires professionals who work with this

    population to also monitor the changes in terms of concepts, configurations, and family

    demands. In this sense, this research aimed to discuss family meanings that are constructed in

    the psychological reports requested during the processes of Guard of Children and

    Adolescents. To achieve our objective we used documentary research in fifty (50)

    psychological reports produced to support judgments of processes of Guard that were judged

    in the Court of Recife - PE, between the years 2000-2009. Documentary analysis and

    discourse analysis were used for the interpretation of the collected material. The research

    aimed to investigate how the psychologist participates in the production of discourses about

    the concept of family created in the judiciary, questioning the role of that professional in this

    creation . According to a discursive perspective in psychology, in which language becomes

    relevant both theoretical and methodological, we understand that the opinion of these experts

    proclaim certain discourses, which influence the subsequent court judgment. The discussions

    raised reaffirm the plurality of conceptions of family, but also a tendency of normalizing

    procedures pacticised by professionals. Places that are historically reserved for men and

    women are hardly questioned, also, the predominant discourse consolidates unequal gender

    roles. Parenthoods and concepts of marriage are become mixed au and confounded, and this

    confusion contributes to conflictsan, making children and adolescent appear as objects, what

    is contrary to current regulations. Despite some exceptions, we noticed the predominance of

    reports that were placed as "revealing" a given reality, promoting the ethical debate about the

    knowledge and practices constructed by psychologists and the effects of the positions that are

    defended.

    KEYWORDS: Family, Guard processes, Legal Psychology, Discursive Psychology.

  • SUMRIO

    INTRODUO 09

    1. PSICOLOGIA E JUSTIA: PROPOSTAS PARA A COMPREENSO DE UMA RELAO CONFLITUOSA

    13

    1.1 Histrico da Psicologia Jurdica: contornos de uma relao em construo 13

    1.2 Definies relevantes Psicologia Jurdica 15

    1.3 Percia judicial e avaliao psicolgica: aproximaes e distanciamentos 16

    1.4 Psicologia e Direito: pontos de (des)encontro 19

    1.5 Psicologia Jurdica como uma especialidade (in)dependente 22

    1.6 Psicologia Jurdica e produo de subjetividades 24

    1.7 Psiclogo na justia ou psiclogo da justia? 29

    2. FAMLIA(S): VISITANDO UM CONCEITO POLISSMICO 31

    2.1 Tipos de Guarda 40

    2.1.1 Guarda Alternada 40

    2.1.2 Guarda Monoparental, Exclusiva e nica 41

    2.1.3 Aninhamento ou Nidao 41

    2.1.4 Guarda Conjunta ou Compartilhada 42

    3. PSICOLOGIA DISCURSIVA: (DES)ENCONTROS PLURAIS 45

    3.1 Encontrando e desencontrando autores e teorias 46

    3.2 Nuances relevantes da linguagem em ao 55

    4. O MTODO 61

    4.1 O laudo pericial e o laudo psicolgico 62

    4.2 Pesquisa Qualitativa 67

  • 4.3 Anlise Documental 70

    4.4 Coleta e Anlise dos Dados 72

    5. SENTIDOS DE FAMLIA NOS LAUDOS PSICOLGICOS DAS AES DE GUARDA

    75

    5.1 Diversas vozes constroem a famlia 78

    5.2 Transgeracionalidades e Famlia 79

    5.3 O binarismo homem x mulher: ainda a guerra dos sexos? 81

    5.4 Da coadjuvncia ao protagonismo: novas possibilidades de paternidades 85

    5.5 Sobre a mercantilizao das relaes ou quanto vale um filho? 89

    5.6 A Psicologia na produo de sentidos de famlia 92

    5.7 Outros saberes, outros olhares, novas produes 95

    5.8 Parentalidades X Conjugabilidades 100

    REVERBERAES 104

    REFERNCIAS 109

    APNDICE

    ANEXO

  • 9

    INTRODUO

    O presente trabalho elegeu o laudo psicolgico em aes de guarda como objeto de

    estudo. Esse documento, diferentemente do que possa parecer, tem grande influncia no

    posicionamento do magistrado, o que justifica nosso interesse em estudar os circunscritores

    de sua realizao. A noo de circunscritor est atrelada Rede de Significaes,

    perspectiva terica da qual utilizamos alguns fundamentos, que sero explicitados no captulo

    reservado ao debate sobre a influncia da linguagem no cotidiano. Por ora, basta

    mencionarmos que os circunscritores so caractersticas que do condies para a existncia

    de um determinado fenmeno, ao passo que o limitam. So parmetros para que determinada

    situao possa acontecer, uma vez que tais balizadores ora funcionam possibilitando, ora

    restringindo e dando contornos a um objeto especfico (ROSSETTI-FERREIRA et al., 2004).

    O que estamos produzindo com nossos relatrios psicolgicos, utilizados pelos juzes

    como fundamentos para resolver como ficar a dinmica de vrias famlias? Ser que estamos

    realmente fomentando situaes que garantam o bem-estar dos envolvidos, principalmente as

    crianas e adolescentes, ou estamos apenas corroborando a lgica adversarial que permeia as

    lides? Estamos realmente apropriados das repercusses de nossas opinies e, sobretudo, dos

    alcances em termos de produo de subjetividades?

    Ao longo da dissertao, estas e outras questes permearo o debate que se pretende

    aqui realizar, principalmente o debate sobre os fundamentos tcnicos e as consequncias

    ticas dos posicionamentos adotados pelos psiclogos. A Psicologia jurdica, ao fazer

    interface com o Direito, precisa ter conscincia do terreno em que est se instalando, o qual,

    muitas vezes, arenoso ou escorregadio. No recomendvel que haja uma simples

    transposio do arcabouo de conhecimento psicolgico acumulado em outros cenrios para o

    contexto da justia. Procedendo dessa forma, o profissional corre o risco de fazer intervenes

    que alternam entre a inocncia e a impercia, condies potenciais para srios prejuzos s

    partes envolvidas que procuram a justia.

    Iremos desenhar consideraes tericas e metodolgicas que levam em conta o

    conflito e a contradio como fundantes das relaes sociais, bem como inerentes s

    possibilidades de formatao das relaes familiares. Tentaremos manter uma coerncia

    epistmica no momento da anlise dos dados, trazendo para o debate aspectos que julgamos

  • 10

    importantes, dialogando com as ferramentas que escolhemos previamente, cientes de que no

    so respostas acabadas ao problema, mas alternativas interpretativas abertas a (re)construes.

    Este trabalho est situado no presente momento histrico, o qual apresenta como uma

    de suas caractersticas a franca expanso na busca pelo Poder Judicirio como alternativa para

    a resoluo de conflitos. Esse movimento historicamente construdo; o uso do pensamento

    normativo paulatinamente legitimado como critrio de regulao das condutas sociais.

    Muito embora existam formas alternativas de resoluo de conflitos - como a

    mediao, conciliao e arbitragem -, at o presente momento essas opes ainda no figuram

    como meios preferenciais para dirimir querelas individuais e coletivas. A busca crescente por

    um terceiro que possa resolver conflitos instaurados entre pessoas, geralmente realizada por

    um Juiz de Direito, pode ser entendida como uma tendncia judicializao da vida (REIS,

    2009). Esse movimento implica em duas concepes: primeiro, que as pessoas no so

    capazes de resolver seus prprios dilemas, seja pela ausncia de habilidades tcnicas ou pelo

    fato de que a imerso demasiada em seu prprio conflito a impea de enxergar o lado do

    outro, condio importante para uma soluo minimamente eficaz; segundo, a crena de que o

    Poder Judicirio, por comportar autoridades e figuras de suposta competncia tcnica, pode

    oferecer propostas justas para os problemas apresentados. Em razo de nosso vnculo

    profissional1 e pautando-nos antecipadamente nos relatrios analisados, podemos adiantar que

    ambas as concepes so discutveis.

    Entendemos que os sujeitos so os atores mais indicados para falar de si. certo que

    em alguns momentos de desorganizao pessoal (causados, por vezes, em razo da vivncia

    de lutos, rupturas ou mudanas inesperadas) as pessoas necessitam de um terceiro que as

    ajude, facilite suas buscas ou, a depender do nvel de fragilidade, decida por ela. A tomada de

    deciso pelo outro deve ser a ltima opo e no a primeira, como geralmente observamos

    nos casos das famlias que recorrem justia.

    Nosso objeto se circunscreve a um tipo bem delimitado de pedido de ajuda: as Aes

    de Guarda de crianas e adolescentes2 que tramitam nas Varas de Famlia da Comarca do

    1 O autor desta dissertao Analista Judicirio (apoio especializado em Psicologia) no Tribunal de Justia de

    Pernambuco TJPE, desde setembro de 2007. No incio deste curso de mestrado, a lotao se dava junto Vara Privativa da Infncia e Juventude da Comarca de Olinda. A partir de agosto de 2012, houve a transferncia de

    lotao para a Coordenadoria da Infncia e Juventude CIJ/TJPE. 2 O nome oficial constante na capa dos processos Guarda de Menores. Porm, em razo de divergncias

    conceituais com essa nomenclatura e o que ela representa (situada epistemologicamente nas bases menoristas,

  • 11

    Recife. Reconhecemos, de antemo, a complexidade dos casos e no estamos interessados em

    oferecer manuais de atendimento s famlias, muito menos apontar relaes causais fceis e

    prontamente consumveis. Nosso interesse tentar penetrar nas teias que envolvem as

    histrias que so contadas e, principalmente, como so contatas, j que o psiclogo tem papel

    de destaque nesse momento. As narrativas esto em ntima relao com as demandas do seu

    tempo. Os pleitos esto alinhados com aquilo que nossa sociedade entende que seu direito

    perquirir.

    Contudo, iremos perceber que nem sempre a questo da disputa pela guarda de uma

    criana ou adolescente, apesar de despontar como primeira demanda apresentada, ser o ponto

    central da discusso. So casos de relaes afetivas mal resolvidas, que usam os filhos como

    munio para atingir os ex-companheiros; situaes de tentativa de uso das crianas como

    forma de perpetuao de benefcios financeiros, no qual o cuidado com a guarda da criana

    aparece apenas como desculpa para o real intento, entre outros. Como poderemos ver no

    captulo final desta dissertao, so difceis e diversificados os pedidos direcionados

    inicialmente aos juzes de famlia, mas que acabam tambm resvalando nos chamados

    auxiliares de justia, como o caso do psiclogo que atua como perito.

    A compreenso de que um pedido pode, com grande frequncia, escamotear outro

    pleito uma das grandes contribuies que o profissional da rea de Psicologia pode oferecer

    ao Poder Judicirio. Por vezes, a nfase exacerbada naquilo que est escrito induz os

    operadores do direito a no levar em considerao as entrelinhas processuais, guardis

    privilegiadas de informaes fundamentais sobre as partes. Pensando a justia de forma

    sistmica, atrelada populao que a busca como pedido de socorro, no possvel prescindir

    desse tipo de anlise, posto que a recusa de perceber as demandas para alm do explicitado

    pode incorrer em decises judiciais infrutferas, j que no respondem s verdadeiras

    perguntas.

    Nosso objetivo, com essa dissertao perscrutar como o psiclogo participa da

    produo dos discursos sobre famlia engendrados no/pelo poder judicirio, questionando o

    lugar que esse profissional se coloca(va). Para tanto, centraremos especial ateno nos

    sentidos de parentalidade e conjugabilidade circulantes, bem como na discusso acerca das

    pautadas no antigo Cdigo de Menores), optamos pelo termo criana e adolescente, melhor afinado com a legislao vigente e a Doutrina da Proteo Integral que a norteia.

  • 12

    peculiaridades das configuraes familiares encontradas, sobretudo de como a percia

    psicolgica corrobora com essas nuances.

    Os captulos esto ordenados de forma que haja compreenso histrica do surgimento

    da Psicologia Jurdica e das discusses sobre o conceito de famlia. Na sequncia,

    apresentaremos nossos fundamentos tericos, eixos interpretativos que perpassaram todo o

    estudo. Finalmente, explicitaremos os percursos metodolgicos adotados, assim como o

    resultado de nossas inquietaes, dialogando com o material coletado.

  • 13

    1. PSICOLOGIA E JUSTIA: PROPOSTAS PARA A COMPREENSO

    DE UMA RELAO CONFLITUOSA

    Permaneam nas fronteiras, l que vocs faro as descobertas. (Wallon)

    Neste captulo, traaremos um panorama do percurso da Psicologia Jurdica como uma

    especialidade que foi historicamente construda como rea de reflexo e atuao do psiclogo.

    Tentaremos enfatizar as tenses, as interfaces e os desafios antigos e atuais que a Psicologia

    encontra ao buscar oferecer estratgias para os deslindes judiciais. Longe de ser um histrico

    linear e acabado, percebemos que a Psicologia Jurdica, apesar dos avanos, ainda carece de

    um arcabouo conceitual prprio, com reflexes intrnsecas ao seu cotidiano. Esta pesquisa

    tambm busca oferecer contribuies nesse sentido, atravs de um apanhado no exaustivo do

    que foi produzido at o momento, deixando explcito nosso posicionamento em algumas

    celeumas ainda frequentes.

    Buscaremos tambm fazer uma discusso sobre as sinuosidades da insero da

    psicologia no contexto jurdico, a partir do confronto das concepes de mundo, de sujeito e

    de cincia de cada uma das disciplinas. Os embates, no nosso entender, no so impeditivos

    desse dilogo, mas devem ficar explcitos, para que no haja uma atuao reativa, muito

    menos omissa por parte do psiclogo.

    1.1 Histrico da Psicologia Jurdica: contornos de uma relao em construo

    Os primrdios da Psicologia Jurdica datam de 1980, no mbito do Tribunal de Justia

    do Estado de So Paulo, com o trabalho de profissionais voluntrios que, posteriormente,

    foram efetivados atravs do primeiro concurso pblico, ocorrido em 1985 (BERNARDI,

    1999; FRANCO e MELO, 2007). Antes desse perodo, podemos considerar a publicao do

    Manual de Psicologia Jurdica de Myra y Lopes, publicado em 1932 e editado no Brasil em

    1955, como um marco nos estudos que delineavam o encontro entre a Psicologia e o Direito

    (SHINE, 2005).

  • 14

    Um dos momentos de importante reconhecimento para o lugar da Psicologia Jurdica

    no Brasil ocorreu com a edio da Resoluo N 14/2000, publicada no dia 22 de dezembro

    de 2000, na qual ficou criado o ttulo de Especialista em Psicologia Jurdica pelo Conselho

    Federal de Psicologia (CFP). Compreendemos a relevncia histrica desse fato pela

    visibilidade que a Psicologia Jurdica adquiriu para alm das j consolidadas atuaes em

    clnica, escola e organizaes. Esse marco institucional merece destaque, pois, ao passo que

    celebra a histria que lhe precedeu, tambm abre novas perspectivas, conferindo credibilidade

    social prtica do psiclogo em interface com a Justia.

    Tratando do histrico da Psicologia Jurdica, mas agora no Tribunal de Justia de

    Pernambuco (TJPE), Fernandes (2001) faz um importante levantamento para a histria da

    categoria, socializando as informaes obtidas sobre as primeiras inseres da psicologia na

    corte pernambucana; essas incurses se deram no mbito da justia criminal e da infncia e

    juventude, com a cesso de 02 (dois) psiclogos pela Procuradoria do Estado de Pernambuco

    para a 3 Vara Cvel da Comarca de Olinda (privativa de menores abandonados e infratores),

    no ano de 1986, quela poca coordenada pelo ento Juiz Luiz Carlos de Barros Figueiredo,

    atualmente desembargador do TJPE e coordenador da infncia e juventude.

    O trabalho do Centro de Apoio Psicossocial (CAP), nosso locus de pesquisa, tambm

    se insere como uma das aes pioneiras do trabalho do psiclogo no contexto da justia

    pernambucana. Em 1992, foi criado um Servio Psicossocial, com apenas uma psicloga e

    uma assistente social atuando, as quais prestavam assessoria especializada para as Aes que

    tramitavam junto 4 Vara de Famlia de Recife. J no ano de 1993, foi realizado o primeiro

    concurso pblico para o cargo de psiclogo do TJPE, com lotao na Vara da Infncia e

    Juventude da capital. Temos em 1995 o surgimento do Ncleo de Apoio Psicossocial,

    embrio do CAP, mas que j gozava de maior autonomia e respaldo institucional em relao

    ao servio anterior. Apenas em 1997 o CAP foi criado formalmente, com uma chefia geral e

    duas outras coordenaes por rea, tanto para a psicologia, quanto para o servio social.

    Segundo Brito (1999), uma das primeiras demandas trazidas para a Psicologia,

    advindas do Judicirio, foi na rea de psicopatologia, atravs do uso acrtico do diagnstico

    psicolgico para classificar e controlar as pessoas. Tal postura engrena um discurso calcado

    em modelos tericos naturalistas e naturalizantes, centrados no sujeito, como se fosse possvel

    a este se forjar desconectado do seu entorno.

  • 15

    [a psicologia emerge] intensamente influenciada pelo iderio positivista e

    privilegiando o mtodo cientfico empregado pelas Cincias Naturais,

    particularmente a Biologia, a Psicologia Jurdica tambm teve sua origem

    ligada aplicao de testes, quando determinava-se que a compreenso dos

    comportamentos passveis de ao jurdica deveria ser aferida atravs de

    instrumentos de medida desenvolvidos pela Psicologia (BRITO, 1999, p.

    222).

    Vamos perceber que essas caractersticas herdadas historicamente pela Psicologia

    Jurdica ainda reverberam nas demandas produzidas atualmente. Continuaremos nossa

    argumentao com os pontos que consideramos importantes para uma discusso mais

    aprofundada das tenses entre a cincia psicolgica e o mundo do direito.

    1.2 Definies relevantes Psicologia Jurdica

    A Psicologia Jurdica um dos ramos da cincia psicolgica, que tem por objetivo

    oferecer contribuies, a partir de teorias e tcnicas que lhe so prprias, aos diversos tipos de

    demandas judiciais, tendo como lugar de reflexo e atuao as intersees entre a Psicologia e

    o Direito (CARVALHO e MIRANDA, 2007). Por ser uma disciplina recente, ainda no conta

    com uma vasta bibliografia que possa subsidiar a prtica cotidiana dos profissionais que

    atuam nesse ramo.

    Em termos conceituais, precisamos diferenciar o uso da nomenclatura Psicologia

    Forense de Psicologia Jurdica, pois dizem respeito a nveis diferentes de ramificaes. No

    primeiro caso, concordamos com Shine (2005) quando este argumenta que o uso da acepo

    forense se aplica exclusivamente ao poder judicirio, pois se limita ao foro judicial. De

    outra monta, temos que a expresso Psicologia Jurdica mais abrangente, pois contempla

    as intersees da Psicologia com o Ministrio Pblico, presdios, delegacias, Defensoria

    Pblica, etc. Podemos dizer que nosso objeto de estudo est no mbito da Psicologia Forense,

    porm nossas reflexes esto campo da Psicologia Jurdica, posto que visam trazer

    contribuies para alm da relao do saber psicolgico com espao restrito ao Frum.

    Importante esclarecer que esse tipo de diviso no pacfico na literatura, mas a entendemos

    como mais adequada para os nossos objetivos.

  • 16

    Apesar de enfatizarmos as colaboraes desta pesquisa para a atuao do psiclogo

    jurdico, ressaltamos que a colaborao vai para alm de um receiturio tecnicista, reduzindo

    a possibilidade interventiva a uma seriao de procedimentos. Entendemos que da reflexo

    tica dos posicionamentos, sobretudo dos apontamentos constantes nos relatrios

    psicolgicos, que teremos como ponderar sobre as possveis reverberaes desses documentos

    na dinmica familiar dos grupos atendidos pelos psiclogos nas Aes de Guarda.

    A participao da Psicologia na esfera judicial , certamente, uma abertura paulatina

    ao reconhecimento de que o contexto processual atravessado por histrias de vida, afetos,

    sentimentos, dinmicas das mais variadas que fogem alada dos operados do Direito. Em

    nossa prtica forense, escutamos, com frequncia, a mxima da cultura judiciria que

    assevera: aquilo que no consta nos autos inexiste no mundo jurdico3. Apesar da atuao

    do psiclogo jurdico tambm se situar nesse contexto (posto que as consequncias de sua

    atuao sero documentadas em um laudo psicolgico), possvel que ele considere vrias

    relaes, desejos e perspectivas que, possivelmente, fugiriam ao alcance do que privilegiado

    cons(ta)tar nos autos judiciais.

    1.3 Percia judicial e avaliao psicolgica: aproximaes e distanciamentos

    Antes de discutirmos os meandros da avaliao psicolgica para fins judiciais,

    chamada tambm de percia psicolgica (CUNHA, 2000), importante definir o que

    estamos entendendo por percia, latu sensu, posto que alguns embates entre a expectativa do

    operador do direito e o que efetivamente o saber psicolgico tem a oferecer decorre, dentre

    outras razes, pela falta de delimitao do que seria uma percia psicolgica, em

    contraposio a outros tipos de percia, como a do engenheiro, do mdico, do contador, etc.

    Segundo Silva,

    3

    Como estamos trabalhando no mbito da Psicologia Discursiva, acreditamos ser importante visibilizar alguns

    aspectos do cotidiano do judicirio que podem ajudar na compreenso dos seus cdigos, apesar de no constar

    formalmente nos autos judiciais. Nossa experincia de quase 06 (seis) anos nesse contexto possibilita esse tipo

    de anlise. A frase acima transcrita uma delas, buscando resumir a supremacia conferida ao que est

    documentado atravs dos ofcios, transcries de audincias, pareceres ministeriais, laudos tcnicos , em detrimento ao que porventura tenha sido vivenciado e verbalizado pelas pessoas envolvidas em um determinado

    litgio.

  • 17

    a prova pericial produzida pelo perito, profissional habilitado para

    investigar e analisar fatos especficos, a fim de produzir provas de causa e

    efeito, ou seja, estabelecer o nexo causal entre o dano, fato ou ocorrncia e o

    objeto de pedir da ao promovida. (2003, p. 03, grifo do autor).

    Como podemos observar, esse lugar previamente formatado. Alm disso, como

    iremos discutir mais adiante, a configurao para o trabalho pericial se encaixa com mais

    facilidade aos nexos causais formulados pelas cincias exatas, em razo de haver maior

    adequao epistmica aos moldes positivistas. No nosso caso, tendo a subjetividade4 e a

    dinmica familiar como objeto, fica difcil estabelecer essa relao de causa e efeito, de forma

    direta, objetiva e inequvoca, atendendo a expectativas semelhantes s formuladas para as

    demais reas do conhecimento.

    Certamente, reconhecemos a existncia de alguns parmetros, advindos

    principalmente dos estudos em Psicologia do Desenvolvimento e da Psicologia da

    Personalidade, que podem dar indcios de prognsticos importantes nos casos das Aes de

    Guarda. A violncia fsica e psicolgica, a exposio a situaes humilhantes, o abuso sexual

    e outras formas de opresso no podem/devem ser relativizados, nem tolerados, em hiptese

    alguma.

    Existem algumas concepes de percia psicolgica as quais no estamos de acordo.

    Vejamos, por exemplo, a descrio abaixo:

    Assim, pode-se afirmar que a percia psicolgica [...] consiste em um exame

    que se caracteriza pela investigao e anlise de fatos e pessoas, enfocando-

    se os aspectos emocionais e subjetivos das relaes entre as pessoas,

    estabelecendo uma correlao de causa e efeito das circunstncias, e

    buscando-se a motivao consciente (e inconsciente) para a dinmica

    familiar do casal e dos filhos (SILVA, 2003, p. 06, grifos nossos).

    H uma demanda comum, advinda principalmente por parte de alguns juzes e

    promotores, que confunde o trabalho do psiclogo com uma atividade de cunho investigativo,

    denotando certo aspecto policialesco. Isso se consubstancia quando as autoridades judicirias

    acima citadas determinam que o psiclogo faa diligncias, ou quando decidem quem so

    as pessoas que devem ser ouvidas pelo perito. Ora, fazer diligncia est na seara da polcia e 4 Estamos entendendo o conceito de subjetividade a partir de Gonzlez Rey (2003), que a compreende como

    produto da intrincada relao do sujeito com o mundo que o cerca e no como epifenmeno de conceitos

    psicolgicos intrapsquicos.

  • 18

    deve ser feita pelo delegado e seus auxiliares. O psiclogo faz estudo de caso e, na

    circunstncia de atividades externas, realiza visitas domiciliares ou institucionais, com

    objetivos e tcnicas distintas de outros profissionais como o assistente social visto que

    partem de referenciais terico-metodolgicos diferenciados.

    No somos favorveis a essa perspectiva, posto que corolrio desse pensamento a

    busca por culpados, atravs de uma polarizao da realidade. No nosso entendimento, a

    Psicologia deve contribuir na compreenso da complexidade dinmica das relaes. Por

    vezes, no existe um jogo binrio de certo e errado, nem um culpado e o outro inocente,

    mas dinmicas familiares disfuncionais (para usar um termo da abordagem sistmica),

    adoecidas no seu modo de funcionar ou mesmo passando por crises situacionais. O olhar

    psicolgico, nesse sentido, deve alternar entre os indivduos que compem o agrupamento

    familiar e o grupo visto como um todo, este entendido como uma gestalt, para alm do

    somatrio de suas partes.

    Por certo que temos valiosas contribuies compreenso judicial das relaes

    familiares; porm, elas no precisam estar circunscritas a parmetros que limitam a prpria

    anlise desses fenmenos. preciso deixar claro ao demandante o que temos a oferecer, como

    o estudo pode ser feito (levando em considerao os aspectos tcnicos e ticos) e o tempo que

    precisamos dispor para faz-lo.

    Temos ainda a referncia da autora acima (SILVA, 2003) busca de motivaes

    inconscientes. Precisamos analisar com bastante cautela essa afirmao, visto que nos remete

    a um tema que foi percebido tambm na anlise dos dados. No fica claro se a referncia ao

    inconsciente diz respeito apenas aos materiais no acessveis imediatamente conscincia ou

    se o termo se reporta ao constructo psicanaltico. Partindo do pressuposto de que a autora est

    se referindo segunda opo, a psicanlise , certamente, uma forma de compreenso do

    comportamento humano que traz valiosas contribuies para as diversas reas de atuao do

    psiclogo, incluindo a judicial. O que no concordamos trazer como necessria a referncia

    a uma alternativa terica. Um dos problemas percebidos durante a anlise dos laudos, os quais

    sero discutidos ulteriormente, a apropriao fraturada de alguns conceitos psicanalticos.

    Foi comum a referncia a conceitos como funo paterna e funo materna diferentes de

    como a bibliografia especializada aponta, situando esses termos de forma desviada e/ou

    reducionista.

  • 19

    Estes e outros temas precisam ser discutidos para minimizar os equvocos constantes

    na atuao do psiclogo a servio da justia. Aprofundaremos outros temas adiante, com um

    enfoque mais epistemolgico, os quais somados s questes tcnicas podero oferecer pistas

    valiosas s inseres mais crticas e criativas do psiclogo jurdico.

    1.4 Psicologia e Direito: pontos de (des)encontro

    Apesar de se constiturem como disciplinas independentes, Psicologia e Direito

    possuem um ponto de intercesso: o interesse pelo comportamento humano. Certamente

    estamos levando em conta a diversidade de correntes psicolgicas, no intentando generalizar,

    apenas considerar que a compreenso, a predio e o controle so o ponto de encontro, em

    muitos aspectos, dos interesses de certas Psicologias5 e de terminado ramo do Direito

    (ROVINSKI, 2004). Contudo, apesar do encontro em relao ao objeto de estudo, temos o

    Direito mais voltado ao mundo do dever ser, enquanto a Psicologia se debrua para o mundo

    do ser. Esta ltima tem seu foco de anlise nos processos que governam a natureza humana,

    enquanto aquela supe essas regularidades e decide em razo do juzo do certo e errado para o

    convvio em sociedade. Rovinski resume a relao entre essas disciplinas de forma

    esclarecedora:

    [...] o plano do ser e do dever ser se justapem e se entrelaam de maneira

    inextricvel, em que um no pode ser compreendido sem o outro. No

    poderamos entender o mundo da lei sem o recurso de todos os modelos

    psicolgicos que, de maneira mais ou menos explcita, o inspiraram. E,

    muito menos, poderamos compreender o comportamento humano

    (individual, grupal, organizacional) sem intuir como a lei transpassa nossas

    fronteiras interiores, sem entender como o direito positivo, as tradies e os

    costumes chegam a constituir o nosso prprio self, nossa identidade, nosso

    ser social (2004, p. 14 - 15).

    5 Para os juristas, a multiplicidade de pontos de vista da Psicologia entendida como uma cincia no-confivel ou contraditria (ROVINSKI, 2004, p. 39).

  • 20

    Um dos pontos que consideramos estar na base das divergncias entre essas disciplinas

    a forma como cada uma lida com a cobrana social na busca por uma competncia tcnica.

    Ao demandar a efetivao dos seus direitos ao Judicirio, o cidado espera que esse Poder -

    socialmente legitimado para dirimir conflitos possa oferecer solues s questes que os

    indivduos julgam ser incapazes de resolver sozinhos. A Psicologia entra em cena sob a

    mesma expectativa, ou seja, de responder a uma demanda objetiva, mas que foi inicialmente

    dirigida ao rgo judicial.

    Podemos entender, como bem argumenta Coimbra et al. (2010), que a busca por uma

    competncia tcnica uma produo histrica, tendo o pensamento liberal e a lgica

    positivista como um de seus alicerces. Como desdobramentos no mbito da cincia (estando a

    Psicologia tambm vista nesse lugar, tanto para os operadores do direito, quanto para as partes

    atendidas), temos a busca pela objetividade, neutralidade e previsibilidade. Um dos problemas

    que a lgica positivista adota a naturalizao das relaes ao atribuir uma essncia aos

    fatos sociais (COIMBRA et al., 2010, p. 21), pressuposto epistmico dessa corrente

    cientfica que vamos de encontro, pois estamos entendendo a realidade, as relaes

    intersubjetivas e, em especial, a dinmica familiar, como construes scio-histrica-poltico-

    culturais, atravessadas por vozes6 diversas, no havendo um famlia prvia a ser buscada.

    A naturalizao da realidade est intimamente ligada a uma justificativa poltica de

    exerccio de poder, posto que, quando se concebe uma relao essencializada, pode-se exercer

    domnio sobre esta. Dito de outra forma, tudo que coloca em xeque o bom funcionamento

    das relaes hegemnicas, consideradas naturais, passa a ser rotulado de anormal, doentio,

    patolgico que necessita ser diagnstico (COIMBRA et al., 2010, p. 21). Como a Psicologia

    Jurdica, inserida nesse contexto e ciente desses dilemas, poderia propor caminhos opcionais

    que no repetissem esses lugares comuns, modos diferenciados de atuao que pudessem

    permitir o surgimento do novo e do diferente? Esperamos que as reflexes trazidas nessa

    pesquisa, bem como a anlise acurada dos dados, possam contribuir no sentido de uma

    Psicologia mais crtica e menos produtora seriada de padres estereotipados.

    Estes (des)encontros de objetivos entre a Psicologia e o Direito resultam,

    cotidianamente, em conflitos que, em parte, foram percebidos durante a nossa anlise. Um

    exemplo desses foi a questo do tempo, j que a necessidade de celeridade de grande

    6 Discutiremos mais detidamente a noo bakhitiana de vozes, entrelaada com outros conceitos, no captulo

    dedicado discusso terica sobre a Linguagem.

  • 21

    importncia para os operadores do direito. De outra monta, algumas dinmicas psicolgicas

    necessitam de mais tempo para serem compreendidas/analisadas. A linguagem adotada foi

    tambm outro ponto de divergncia, alternando entre laudos que adotam uma linguagem

    extremamente judicializada - numa tentativa de aproximao ou submisso (?) ou que se

    fecham em jarges psicolgicos, possivelmente dificultando a compreenso dos demais atores

    envolvidos no litgio.

    Nesse contexto, a deciso tica7 do psiclogo se torna um ponto central: j que a todo

    o momento alterna entre canalizar seus esforos para a produo de um documento rpido,

    que atenda a contenda judicial, ou aproveite os encontros com as partes tambm como forma

    de reflexo, indo alm da avaliao, fazendo das entrevistas tambm momentos de mediao e

    conciliao, conforme proposto em uma experincia trazida por Ribeiro (2001).

    Estamos apresentando essas diferenas quanto aos valores, premissas e mtodos entre

    as disciplinas no como forma de superao, mas entendendo que, ao explicitar tais

    peculiaridades, a atuao do psiclogo jurdico nesse contexto pode ser mais embasada e

    menos ingnua. patente que a viso de homem e de mundo da Psicologia e do Direito

    entram em choque em vrios momentos. nesse sentido que a prxis psicolgica deve/pode

    ser pautada na contradio, na incerteza, na imprevisibilidade e, sobretudo, no conflito.

    Buscar, por vezes, uma realidade monoltica reificar os lugares-comuns, reproduzindo

    noes que normalizam e normatizam as famlias atendidas. O discurso jurdico no deve

    engolir a realidade subjetiva das partes envolvidas, apesar de ser essa a inteno s vezes

    percebida no transcorrer processual. No estamos defendendo uma queda de brao entre os

    saberes, mas que, na considerao das divergncias, haja possibilidade de dilogo e

    demarcao dos respectivos espaos e limites de cada uma.

    Silva (2003) vai tratar esse embate, valendo-se da leitura de que o psiclogo se

    encontra em uma:

    encruzilhada entre a tica do cuidado (ideal teraputico) e a lgica da Justia

    (produo da verdade). Sua funo oscila entre limitar-se a tarefa de resolver o conflito do casal e o de transcender ao mero maniquesmo

    certo/errado, ganhador/perdedor, inocente/culpado esperado pelo Judicirio

    (p. 28).

    7 A tica, em uma perspectiva foucaultiana, tem como foco principal a criao de novas formas de existncia, a

    produtividade do ser, o carter criados da vida como critrio de valor e no qualquer espcie de forma que a vida

    tenha tomado, ou venha a tomar. (ROLNIK, 1994, p. 171)

  • 22

    Tambm entendemos que o trabalho do psiclogo jurdico marcado por hibridismos,

    principalmente de origens ticas. Para o advogado, por exemplo, comum usar de todas as

    provas admitidas em direito para defender sua tese, em favor do seu cliente. A lgica

    adversarial, binria e belicosa parece estar no DNA das atividades de parte desses

    profissionais. Para o psiclogo (ou deveria ser) diferente, j que, eticamente, somos

    responsveis, sobretudo, pela garantia da sade psquica das pessoas que atendemos.

    Discordamos, em parte, da forma como Silva (2003) exps seu pensamento por dois

    motivos. Primeiramente, no concordamos que a tica do cuidado seja atrelada apenas ao

    ideal teraputico. Isso porque no somos favorveis ao discurso que preceitua independente

    de ser no consultrio, todo profissional leva a escuta clnica para os seus espaos de trabalho.

    No podemos generalizar a escuta clnica como se fosse uma chave mestra para o trabalho

    do psiclogo. Isso vai de encontro ao desenvolvimento da profisso, no qual precisamos criar

    mecanismos, tcnicas, mtodos e teorias que respondam aos questionamentos especficos dos

    espaos em que somos convidados a atuar. A tica do cuidado no um ideal teraputico,

    mas um parmetro profissional.

    Alm dessa ressalva - na qual a autora coloca em oposio a tica do cuidado e a

    produo de verdades -, a assertiva permite a interpretao de que s podemos ter uma coisa

    ou a outra, afirmativa que tambm no comungamos. Para ns, a produo de verdades no

    uma opo, mas uma consequncia inerente ao trabalho institucional, posto que o lugar de

    saber ocupado pela Psicologia na nossa sociedade, atrelado ao poder de quem diz uma

    verdade desse lugar, no permite uma prtica apartada desses regimes de verdade.

    1.5 Psicologia Jurdica como uma especialidade (in)dependente

    Alm das aproximaes e distanciamentos da Psicologia com o Direito, importante

    tambm refletirmos sobre os contornos da Psicologia Jurdica em contraste com outras

    especialidades psicolgicas, especialmente a Psicologia Clnica. comum a referncia

    atuao do psiclogo em instituies (seja escola, empresas, e mesmo no mundo jurdico)

    apenas como uma mera transposio da prtica clnica para outra conjuntura.

  • 23

    Entendemos esse raciocnio como tecnicamente equivocado, alm de eticamente

    questionvel. A atuao do profissional de psicologia intrinsecamente relacionada ao seu

    lugar de insero, no podendo prescindir das caractersticas, smbolos, linguagem e cultura

    prpria da instituio que requisita seus servios. Nesse sentido, a passagem mecnica e

    acrtica da compreenso bipessoal que se tem no setting teraputico (clnico) para a avaliao

    dos casos judiciais (jurdico) pode acarretar em problemas para as partes envolvidas (so

    demandas e expectativas diferentes) e para o laudo pericial (que possivelmente ficar aqum

    do esperado, j que fugir ao seu objetivo central, que seria uma anlise com vistas a subsidiar

    uma deciso judicial).

    Uma primeira grande diferena a ser delineada a questo da voluntariedade. Na

    clnica, em geral, as pessoas procuram o atendimento psicolgico espontaneamente, a fim de

    resolver algum sofrimento que lhe assola. J na Justia, apesar do ingresso da Ao de Guarda

    ser voluntrio, geralmente as fases processuais no so encaradas da mesma forma, como a

    questo do estudo psicolgico, principalmente para o polo passivo da Ao8. A volitividade

    vai repercutir diretamente na abertura para a entrevista, na cooperao com as informaes

    que precisam ser prestadas, assim como no possvel manejo de estratgias de escamoteamento

    de fatos e situaes importantes de serem trabalhadas.

    Um segundo ponto que merece ateno a questo da finalidade. Na terapia, o

    psiclogo tem por objetivo o tratamento de questes pessoais, do abrandamento de

    sofrimentos. Na avaliao psicolgica no contexto judicial, seu objetivo ltimo a redao de

    um laudo, que subsidiar o juiz na prolatao de uma sentena. O objetivo final da avaliao

    ser, sempre, atravs da compreenso psicolgica do caso, responder a uma questo legal

    expressa pelo juiz ou por outro agente jurdico (ROVINSKI, 2004, p. 43).

    O terceiro tpico est diretamente ligado ao segundo e j foi mencionado alhures, j

    que a durao temporal nos estudos periciais delimitada, enquanto na clnica psicolgica

    no h uma demarcao de tempo prvia. s vezes, o juiz remete o processo para o psiclogo

    com um prazo exguo, como 30 (trinta) ou 60 (sessenta) dias para todo o processo avaliativo,

    compreendendo o estudo documental, o contato e marcao de entrevista com as partes, a

    entrevista propriamente dita, a anlise do contexto e a finalizao com a confeco do

    8

    No modelo adversarial de justia, geralmente temos dois polos que disputam uma determinada questo. Nas

    Aes de Guarda, encontramos a parte que entrou com o pedido, que pode ser chamada de requerente ou polo

    ativo, em contraposio parte requerida ou polo passivo ou ainda chamada de ru, numa acepo influenciada

    pelo Direito Penal.

  • 24

    relatrio. Isso sem contar que, raramente, um psiclogo tem apenas um processo sob sua

    responsabilidade, devendo respeitar esse trmite em todos, com a qualidade que a

    complexidade do caso e a tica profissional exigem.

    Acrescente-se ainda que, ao submeter-se a uma avaliao psicolgica judicial, os

    sujeitos no so avaliados em si, mas em comparao a uma srie de normas culturais e

    sociais em que esto inseridos. Ou seja, o conhecimento psicolgico est circunscrito pelas

    leis vigentes, pelos costumes socialmente legitimados e por todo arcabouo discursivo que o

    alimenta, ao passo em que o delimita. Por essa razo, compreendemos o trabalho do psiclogo

    jurdico tambm como uma crtica cultural, pois, ao se posicionar sobre o litgio familiar,

    tambm legitima e (re)produz padres que podem vir a ser perpetuados, em detrimento de

    outros. A dinmica entre indivduo e sociedade se aproxima e se intercruza, nesse sentido.

    por essa razo que, no captulo dedicado discusso terica sobre o conceito bakhitiano de

    vozes, alm do captulo reservado para a anlise dos dados, levaremos em considerao que

    o relatrio resulta de um intercruzamento entre o que foi dito nas entrevistas, o que foi

    documentado no processo, as leis vigentes e o que est tacitamente posto nos cdigos de

    conduta morais.

    1.6 Psicologia Jurdica e produo de subjetividades

    Uma questo polmica em Psicologia Jurdica, mas que precisa ser abordada,

    principalmente por se tratar de um ponto nevrlgico para a atuao do psiclogo em Varas de

    Famlia, diz respeito aos limites dos pareceres psicolgicos ou, dito de outra forma, at que

    ponto as opinies sobre uma dinmica subjetiva dos envolvidos pode/deve estar atrelada ao

    ponto central da questo jurdica em discusso. No tocante s Aes de Guarda, podemos nos

    perguntar se tecnicamente interessante e eticamente vivel a manifestao clara do

    profissional sobre quem deve exercer a guarda da criana ou adolescente envolvidos.

    Corroboramos com Shine (2007) em relao ao posicionamento de que inexistem teorias

    psicolgicas que estabeleam, de forma inequvoca, uma relao causal entre comportamentos

    parentais e um determinado desenvolvimento infanto-juvenil esperado.

    Primeiramente, a dinmica relacional entre pais e filhos, a idiossincrasia das

    subjetividades e a permanente interao dos sujeitos com um contexto sociocultural

  • 25

    impossibilitam esse tipo de raciocnio linear, como se fosse possvel isolar, nos moldes de

    uma cincia positiva, o comportamento parental como varivel independente (manipulvel) e

    o desenvolvimento da criana como varivel dependente (observvel). Alm desse entrave

    tcnico, temos ainda a questo tica: o que seria um desenvolvimento infanto-juvenil

    esperado? Ou, dizendo de outra forma, haveria um comportamento normal que deveria

    ser alcanado, a partir de determinadas orientaes paterno-maternais?. Fica patente o vis

    perigoso desse tipo de pensamento.

    Ainda sobre o posicionamento do psiclogo jurdico nas Aes de Guarda, tambm

    estamos questionando um suposto lugar de neutralidade que ele possa querer se colocar.

    Imparcialidade um pressuposto tico, o qual requer exerccio contnuo na busca de se ouvir,

    empaticamente, todos os lados em questo. Por suposto que a neutralidade diz de outra ordem,

    como se houvesse possibilidade de um no afetamento do psiclogo com a realidade a ser

    investigada, pensamento que entendemos como equivocado. na considerao/aceitao

    ativa de que a dinmica familiar avaliada tambm remete a outras dinmicas encontradas na

    cultura, inclusive aquelas que so/foram da convivncia do prprio profissional, que o

    psiclogo dever/poder atuar de uma maneira mais isenta, nunca neutra.

    s vezes, esse discurso de neutralidade alimenta a prtica de no implicao da

    Psicologia com a realidade que se produz, induzindo o magistrado a pensar que existe um

    contexto a priori que foi revelado, descoberto ou descortinado. Algumas definies,

    encontradas na bibliografia, sobre atuao do perito, abrem margem para esse tipo de

    interpretao. Citamos como exemplo um trecho de um pensamento que avaliamos estar

    alinhado com esse tipo de compromisso: Assim, voltando ao papel do perito na avaliao

    psicolgica, pode-se dizer que sua tarefa descrever, da forma mais clara e precisa

    possvel, aquilo que o periciado sabe, entende, acredita ou pode fazer (ROVINSKI, 2004, p.

    77, grifo nosso).

    O trecho acima emblemtico para apontar o rano positivista circulante na

    Psicologia, mesmo em autoras e correntes tericas que criticam essa perspectiva ou que

    consideram a questo superada. O profissional colocado no lugar de observador, no

    participante de uma determinada relao. Em outro texto, Silva (2003, p. 39), ao discutir sobre

    as especificidades do trabalho do psiclogo jurdico nas Varas de Famlia, afirma:

  • 26

    seu objetivo o de destacar e analisar os aspectos psicolgicos das pessoas

    envolvidas em que se discutam questes afetivo-comportamentais da

    dinmica familiar ocultas por trs das relaes processuais, e que

    garantam os direitos e o bem-estar da criana e/ou adolescente, a fim de

    auxiliar o juiz na tomada de deciso que melhor atenda s necessidades

    dessas pessoas (grifo nosso).

    Mais uma vez o trabalho do perito psiclogo associado a algo que vai em busca do

    escondido. No entanto, defendemos a perspectiva de que a dinmica psquica e as relaes

    sociais no so uma caixa de pandora9, mas textos que necessitam de bons leitores. Estes

    textos so permanentemente reescritos e reinventados, com interpretaes diversas a partir do

    lugar de quem as escreve e l. A posio de implicao do psiclogo com o produto parte de

    uma concepo diferenciada de cincia, redundando em uma prtica que se repensa

    constantemente, pois a prpria Psicologia deve questionar a finalidade e utilizao dos

    laudos e pareceres elaborados nos processos (SILVA, 2003, p. 197).

    incomum encontrarmos na literatura especializada uma meno implicao do

    psiclogo nas produes das subjetividades das famlias avaliadas, de como o saber

    psicolgico baliza determinadas formas de existncia, como prescreve modos de ser e

    legitima maneiras de ser famlia que limitam a criatividade e a infinidade de possibilidades de

    atuao das figuras que a compem, assim como as configuraes que poderiam assumir.

    Na busca por um pai ideal, uma me ideal, um filho normal e uma famlia

    padro, deixa-se de considerar que fora da norma esperada existem formas de existncia que

    podem ser interessantes aos membros daquele arranjo especfico. O uso de um crivo

    previamente demarcado limitante, alm de ferir a individualidade dos sujeitos e dos grupos,

    pressuposto caro a determinadas correntes da Psicologia, dentre as quais ns nos afiliamos.

    Em nosso material emprico, encontramos casos de uso de drogas, alm de pais que possuem

    algum tipo de transtorno mental que, antes de qualquer coisa, so considerados inaptos ao

    exerccio de suas funes parentais, somente por fugirem ao padro idealizado pelo

    psiclogo/sociedade e/ou por aquilo que ele acredita que a autoridade judicial vai julgar.

    Ora, a questo do uso de substncias entorpecentes, como a maconha, por exemplo,

    pode ser encarada pelo profissional como a exposio a qualquer outro tipo de alucingeno,

    9 Para maiores informaes sobre o mito, consultar: http://pt.wikipedia.org/wiki/Caixa_de_Pandora. Acesso em:

    04/06/2013, s 10h20.

  • 27

    como o lcool ou outros medicamentos controlados. De forma semelhante podemos pensar

    em relao aos portadores de algum transtorno mental. A depender do tipo de patologia, a

    forma de tratamento, o nvel de estabilizao, o autocuidado, a retaguarda familiar e dos

    equipamentos sociais disponveis, a faculdade de cuidar do outro (seja uma criana ou

    adolescente) no estar necessariamente prejudicada, merecendo ateno e avaliao

    pormenorizada, considerando-se caso a caso. Esses episdios no foram aprofundados no

    captulo analtico por terem fugido aos ncleos temticos escolhidos, apesar de merecerem

    outras pesquisas, em razo da relevncia social dos temas.

    No estamos, com isso, advogando a favor de um relativismo irresponsvel e sem

    parmetro. Como a funo do psiclogo nessa seara , antes de tudo, avaliativa, entendemos

    que certos referenciais so importantes e at necessrios. O que estamos querendo ressaltar

    que esses critrios avaliativos devem estar claros, tanto para o profissional que avalia, quanto

    para o magistrado que ter acesso ao laudo, permitindo um acompanhamento da linha de

    raciocnio adotada, visibilizando o argumento para que este possa ser refutado ou acolhido.

    Feito de outra forma, teremos apenas a repetio dos rtulos, uma psicologia que no est

    preocupada com o surgimento de outras formas de existir, um conhecimento utilizado apenas

    para fazer girar a engrenagem judicial fabricadora de sentenas.

    No podemos nos furtar de pensar que o fortalecimento da psicologia como saber que

    assessora a mquina jurdica na resoluo de conflitos familiares vai ao encontro de uma

    tendncia que vem crescendo paulatinamente, que diz respeito judicializao da vida.

    Essa tendncia insinua que a grande maioria das querelas cotidianas s podem ser resolvidas

    por intermdio de uma deciso judicial. Isso tem causado um aumento considervel no

    ingresso de Aes, movimento que no foi acompanhado pela Justia, causando um enorme

    contingente processual reprimido, sem que pudesse haver o clere andamento das causas10

    .

    As questes de famlia, outrora tratadas como privativas do mbito domstico, agora

    so publicizadas em peties, narradas em audincias e exaustivamente perscrutadas durante

    as avaliaes psicolgicas. Certamente que esse movimento social deve ser entendido dentro

    de um contexto mais amplo, no qual as relaes esto mais fluidas e a noo da separao

    entre o pblico e o privado cada vez mais relativizada.

    10

    Para maiores informaes sobre a taxa de congestionamento processual do Judicirio pernambucano:

    http://www.cnj.jus.br/component/content/article/96-noticias/7245-para-corregedor-nacional-dificuldades-

    denunciadas-no-judiciario-de-pe-sao-observadas-em-outros-estados- . Acesso em 04/06/13, s 11h20.

  • 28

    A judicializao da vida e a tnue diviso entre o pblico e o privado se somam a um

    terceiro movimento que pode dar pistas para uma melhor compreenso para a enxurrada de

    Aes de Guarda que adentram as Varas de Famlia: a psicologizao do cotidiano e da vida

    social (COIMBRA et al., 2010, p. 21). Isso fica bem evidente quando percebemos que os

    argumentos que municiam as disputas de guarda so repletos de inferncias sobre a

    dinmica psicolgica do oponente, j que adjetivos como emocionalmente imaturo,

    afetivamente instvel, dentre outros, so comumente utilizados nos relatrios para descrever

    o perfil do rival. No nosso entendimento, a circulao desse tipo de discurso refora a

    produo de subjetividades seriadas, que servem para a manuteno de um determinado status

    quo.

    Apostamos na viabilidade de caminhos diferentes, na afirmao de modelos que

    produzam individualidades plurais. s vezes, parece que apenas os objetos do mundo

    direcionam nossa conduta. Contudo, partindo de uma premissa construcionista11

    , acreditamos

    que nossas prticas, em especial as discursivas, tambm atuam na construo daquilo que

    podemos chamar de objeto, mundo ou realidade.

    A atuao do psiclogo jurdico, nos contextos das disputas de Guarda, poderia ser

    redirecionada para a potencializao da famlia como instituio capaz de resolver seus

    prprios dilemas. Quanto mais as pessoas forem livres umas em relao s outras, quanto

    mais esse jogo de poder for aberto, seja nas relaes familiares, sexuais ou amorosas, tanto

    mais ele ser atraente e fascinante (REIS, 2009, p. 99). Certamente, cada famlia possui

    limites prprios de abertura para um trabalho nesse sentido. Muitas delas diramos que a

    maioria procuram o judicirio para que haja o menor nvel possvel de implicao subjetiva

    nas decises e acordos a serem firmados. Buscam o apoio de um terceiro no caso, o juiz

    para diminuir a necessidade de dilogo com o outro lado.

    Existem vrias formas de atuao do psiclogo jurdico, desde uma avaliao

    psicolgica da dinmica familiar mais distanciada, at uma proposta de interveno mais

    diretiva, que aproveita o momento avaliativo como promotor de mudanas. Entendemos que

    no deva haver um nico modelo a ser seguido, mas que o profissional tenha segurana e

    sensibilidade para utilizar o modus operandi mais eficaz, oferecendo alternativas resoluo

    do conflito instaurado. Geralmente, em famlias mais reservadas e com conflitos

    11

    Tpico que ser comentado no captulo reservado discusso sobre a Psicologia Discursiva. Resumidamente, podemos dizer que o alicerce do Construcionismo a compreenso de que o mundo socialmente construdo,

    em especial pelas relaes lingusticas que intrinsecamente o constituem.

  • 29

    historicamente mais consolidados, a atuao mais avaliativa e estruturada poder subsidiar

    melhor a deciso judicial.

    Em outros casos - quando se percebe abertura para o dilogo e a reflexo -, possvel

    um trabalho mais longitudinal e criativo, no qual so elaboradas metodologias a partir da

    interao dos membros da famlia com o profissional, algo muito aproximado ao trabalho de

    mediao proposto por Ribeiro (2001). Ao adotar essa postura, o psiclogo estaria facilitando

    tambm a autonomia da famlia, ressignificando o trabalho judicial de encontro s abordagens

    punitivas, polarizadas e belicosas. Ampliando esse horizonte reflexivo e questionando

    determinados discursos circulantes em relao ao papel da justia na sociedade, Coimbra et

    al. (2010b, p. 34) segue questionando: A justia no seria tambm uma polcia das famlias,

    punindo-as e corrigindo-as, assumindo a funo de escola de pai para a populao que l

    chega, tutelando-a e ensinando-a a cuidar de seus filhos?

    1.7 Psiclogo na justia ou psiclogo da justia?

    impossvel fazer uma reflexo crtica sobre a atuao do psiclogo jurdico sem

    tambm analisar o contexto em que ele est inserido e quais so os discursos que transitam

    socialmente no tocante ao alcance de uma deciso judicial na vida das pessoas. Ao requerer

    uma prestao jurisdicional, fica difcil diferenciar o operador do direito, aquelas figuras que

    movimentam o processo advogado, juiz, defensor pblico e promotor de justia dos

    auxiliares da justia, como os peritos dentre eles o psiclogo e os demais serventurios

    judiciais tcnicos, analistas e oficiais de justia.

    Sendo assim, ao adotar estratgias que fogem ao padro esperado no mundo jurdico, o

    psiclogo (por ser visto como integrante desse sistema) poder fazer circular outros discursos

    e valores. Fazemos questo de destacar isso para explicitar que outras formas de insero so

    possveis. Uma vez integrante do sistema justia, a Psicologia pode usar (d)esse lugar para

    diversificar as subjetividades produzidas, os sentimentos valorizados e os cdigos morais

    outrora tidos como nicos.

    Essa discusso est umbilicalmente ligada a outra, que diz respeito ao posicionamento

    tico-poltico do profissional diante das relaes de poder que esto, de forma inerente,

  • 30

    compondo as relaes sociais, especialmente no mbito do jurdico. Estamos entendendo o

    conceito de poder a partir de uma leitura foucaultiana, no qual o poder s existe em ao

    (FOUCAULT, 2007), no se constituindo em um lugar ou em um objeto. Ao contrrio, o

    poder se constituiria e circularia a partir da batalha cotidiana, do enfrentamento. No existiria

    uma deteno rgida do poder, mas um exerccio de poder a partir dos lugares que se ocupa

    em um determinado contexto. A compreenso do funcionamento em rede do poder retira dos

    grupos sociais (como a famlia) a conotao destes como alvos inertes e consentidos daquele,

    pois so, ao mesmo tempo, efeitos e seus centros de transmisso12

    .

    Esta concepo importante, principalmente para a Psicologia, pois corremos o risco

    de restringir o poder ao exerccio judicante do magistrado e das demais autoridades que

    compem o judicirio, esquecendo-se de que o prprio processo de avaliao psicolgica e o

    laudo pericial tambm compem a engrenagem do poder e fazem circular formas diversas de

    poder, uma vez que as relaes de saber e poder esto intrinsecamente relacionadas.

    No lugar de pensar ser possvel atuar fora das relaes de poder, mais interessante o

    perito redimensionar o questionamento para que tipo de subjetividades eu quero favorecer,

    partindo das minhas condies objetivas e subjetivas de trabalho? Ou que discursos eu opto

    fazer circular na instituio, a fim de propiciar modos de existncia mais condizentes com

    uma proposta tica que prima pela pluralidade e diversidade? Esse tipo de implicao

    profissional afronta outros modelos, de cunhos positivistas, que pressupem a possibilidade

    de aes neutras, fora das relaes de poder circulantes.

    Consoante com o que foi discutido anteriormente, para Shine (2007), o carter arbitral

    faz parte das atribuies desse profissional. A questo que, em sua formao, o psiclogo

    no preparado para manejar as relaes de poder que permeiam sua prtica. A conscincia

    dessa faculdade, em parte, decisria, pode contribuir para posicionamentos mais coerentes em

    relao s dinmicas familiares que se intenta fomentar. A verdade que proferida (no laudo)

    ganha respaldo a partir do lugar que dita (judicirio), no havendo separaes com a

    histrica legitimao do saber (psicolgico) produzido, o qual induz formas de vida pelas

    relaes de poder que faz circular.

    12

    Estamos utilizando o conceito de poder, tal como concebido por Foucault: A multiplicidade de correlaes de fora imanentes ao domnio onde exercem e constitutivas de sua organizao; o jogo que, atravs de lutas e

    afrontamentos incessantes as transforma, refora, inverte; os apoios que tais correlaes de fora encontram

    umas nas outras [...]; enfim, estratgias em que se origina e cujo esboo geral ou cristalizao institucional toma

    corpo nos aparelhos estatais, na formulao da lei, nas hegemonias sociais (FOUCAULT, 1997, p. 88).

  • 31

    2. FAMLIA(S): VISITANDO UM CONCEITO POLISSMICO

    Famlia! Famlia!

    Papai, mame, titia

    Famlia! Famlia!

    Almoa junto todo dia

    Nunca perde essa mania...

    (Arnaldo Antunes/ Toni Bellotto Tits)

    Neste captulo, visamos situar a noo de famlia em seus aspectos histricos e

    conceituais. Entretanto, acreditamos que esse conceito bastante amplo, merecendo um

    aprofundamento maior em relao ao que nos propomos, face ao enquadramento possvel

    numa dissertao de mestrado. De fato, a escolha por um tema abrangente foi proposital, visto

    que ele abarca uma ampla margem de relaes e dinmicas que temos por intento discutir, tais

    como: lugares paternos e maternos (tambm chamados de parentalidades), relaes conjugais

    (ou conjugabilidades), os aspectos de gnero que permeiam as relaes familiares e a

    compreenso da famlia como um sistema aberto, no qual circulam significados tanto no seu

    interior, quanto no seu contato com o macrocontexto.

    Essa dinmica discursiva faz da famlia um objeto de investigao valioso, pois ao

    mesmo tempo em que circunscreve um grupo afetivamente relacionado e socialmente

    delimitado, tambm interage dinamicamente com outros grupos sociais, fazendo-o produtor e

    produto de um determinado tempo e espao.

    O tratamento conceitual noo de famlia na contemporaneidade uma tarefa que

    demanda uma srie de interconexes. Isso porque nenhuma disciplina isoladamente seja a

    Psicologia, o Direito, a Histria, a Antropologia, a Sociologia, a Biologia, etc13

    . pode

    oferecer respostas acabadas a um fenmeno histrico e ainda em permanente mutao. Nesse

    sentido, ressaltamos que partiremos de uma leitura eminentemente psicolgica (mas no

    exclusiva) do fenmeno famlia. Para tanto e considerando a complexidade inerente ao

    objeto de estudo, dialogaremos com vrios saberes, com destaque ao Direito, face o nosso

    13

    Para Jacob Burckhardt, se nas cincias necessrio ser um especialista e se podemos controlar apenas um campo limitado do conhecimento, preciso ser tambm amador no maior nmero possvel de outros domnios,

    se no quisermos perder a faculdade de julgar as coisas no seu conjunto (MORIN, 2012, p. 58).

  • 32

    campo de pesquisa. Nascimento (2009), em seu estudo jurdico sobre a transformao do

    conceito de famlia, alerta para a necessidade dessa articulao multidisciplinar:

    H dificuldade em se construir uma concepo de famlia que atenda ou d

    conta deste fenmeno. Quando so ressaltadas algumas das caractersticas,

    outras so deixadas de fora, no sendo possvel contemplar todas as

    vertentes. At mesmo dentro de alguns ramos do Direito, esse instituto

    visto de forma polifacetada, para dizer o mnimo acerca das tenses que

    nesse campo se verificam. (p. 12)

    importante resgatarmos o que algumas disciplinas construram sobre essa noo,

    entendendo que a vivncia objetiva das pessoas influencia a formao dos preceitos

    cientficos, mas tambm as prprias concepes formuladas pela academia circunscrevem

    comportamentos, normatizando-os no momento em que os nomeiam. A psicologia, o servio

    social, a sociologia e a psiquiatria so frequentemente convocadas para auxiliar na resoluo

    dos conflitos familiares com excelentes resultados (ASSUNO, 2001, p. 29).

    Para alguns estudos antropolgicos, por exemplo, famlia est ligada aos laos de

    parentesco, sangue e dependncia, gerando relaes de solidariedade, tenso, conflito e afeto

    entre seus membros (BRUSCHINI apud NASCIMENTO, 2009). J para estudos no mbito

    jurdico, fica patente a noo de famlia como celula mater da sociedade, pois esta

    considerada o primeiro grupo social de insero do indivduo no mundo, lugar de

    compartilhamento dos valores do seu grupo social.

    Essa ideia circulante nas leis e nas decises judiciais encontra guarida em muitas

    correntes psicolgicas, como aquelas que entendem a famlia como uma matriz de

    identidade, como Minuchin (1990). Souza e Miranda (2007) tambm centralizam na famlia

    as bases para o desenvolvimento humano. No entanto, relativizam o seu modo de

    compreender o fenmeno famlia quando afirmam que, dependendo do teor qualitativo das

    relaes (afeto, apego, segurana, disciplina, aprendizagem e comunicao), ela pode se

    tornar um fator tanto de sade como de doena.

    Donatti, adotando uma perspectiva relacional da noo de famlia, afirma que tal

    anlise:

  • 33

    [...] no sincrtica; tenta ir ao corao da famlia no sentido de reconhecer

    sua peculiaridade, a originalidade da relao familiar, como distinta de todas

    as outras relaes. Ela procura encontrar e compreender a relao familiar a

    partir daquilo que constitui sua unicidade, porque a famlia diferente da

    relao de amizade, de trabalho, mdico-sanitria. (DONATTI, apud

    NASCIMENTO, 2009, p. 22).

    A compreenso de famlia da escola relacional traz um cuidado importante para a

    nossa pesquisa, j que a busca da definio de um conceito deve incluir tambm o que no

    estamos entendendo como relaes familiares, ressaltando os limites do objeto visado. Nesse

    sentido, no podemos generalizar, afirmando que qualquer agrupamento de pessoas pode ser

    chamado famlia. Isso porque a questo fsica, e at mesmo geogrfica, apenas um dos

    aspectos que merecem ateno quando estamos refletindo sobre as famlias na modernidade.

    A maior democratizao dos meios de comunicao (com destaque para a Internet) e o maior

    acesso aos meios de transporte (especialmente o avio) produziram outras noes de tempo e

    espao que merecem ser consideradas.

    Dialogando com o enfoque relacional, temos ainda a abordagem familiar sistmica,

    que visualiza a famlia de uma forma mais ampla, na qual seus membros se comunicam e

    interagem entre si, bem como com a totalidade que a cerca (SILVA, 2003). Qualquer conflito

    familiar que entendido por essa escola como um sintoma que outrora pesava apenas

    sobre um dos seus membros, agora visto como representante das interaes familiares. Para

    essa abordagem, as mudanas na famlia podem ser provocadas tanto por fatores internos,

    quanto externos, a depender das suas caractersticas objetivas de funcionamento.

    Olhando em perspectiva, de um ponto de vista histrico, percebemos como as relaes

    familiares mudaram no decorrer dos sculos. A ttulo de comparao, fica evidente como

    aquilo que chamamos famlia na atualidade completamente diferente daquilo que se

    concebia como famlia h trs sculos. A capacidade de ajustes na formatao e na funo da

    famlia, em relao s diversas mudanas na sociedade, parece ser a chave de sua

    permanncia como forma possvel de organizao social na contemporaneidade. [...] Apesar

    de todas essas transformaes acontecidas no interior da famlia, podemos dizer que ela ainda

    se mantm idealizada e desejada por todos (AMAZONAS E BRAGA, 2006, p. 179).

    Muitas dessas mudanas que vm ocorrendo nas famlias, sobretudo nos

    comportamentos de homens e mulheres, podem ser circunscritas aos acontecimentos scio-

    histricos que despontaram em torno da dcada de 1960, desde a expanso do sistema

  • 34

    capitalista e os avanos tecnolgicos/biomdicos, at os movimentos intitulados

    contracultura, como o feminismo, LGBT e ecolgicos (REIS, 2009). Ressaltamos que no

    estamos entendendo as mudanas em termos de substituio, mas como outras formas de

    subjetivao, que trazem em seu bojo o amlgama do velho e do novo.

    Ao longo do sculo XX, rpidas e profundas transformaes continuaram

    acontecendo. A maior frequncia nos rompimentos conjugais, famlias nucleares se

    transformam em monoparentais, as quais, em seguida, tornam-se famlias recasadas (que, por

    sua vez, em um breve intervalo temporal, cambiaram para a monoparentalidade novamente) e

    a dispensabilidade da interao sexual como condio da gerao de crianas (substituveis

    pelas procriaes assistidas) so apenas alguns dos exemplos mencionados por Brito e

    Peanha (2010) como demonstrativos da agilidade dessas mudanas. Essas novas

    configuraes familiares formam o que se tem convencionado chamar famlia mosaico,

    revelando-se uma tendncia mundial (SHINE, 2007).

    Por seu turno, a Psicologia pode pensar as relaes familiares como vnculos

    duradouros, nas relaes de afeto e na possibilidade de trocas significativas (CARVALHO,

    2005). Fonseca, pesquisadora antroploga que estuda famlias, define laos familiares de

    modo muito prximo Psicologia, entendendo-os como relaes marcadas pela identificao

    estreita e duradoura entre determinadas pessoas que reconhecem entre elas certos direitos e

    obrigaes mtuos (2005, p. 54). Corroborando com essas definies de famlia, temos a

    contribuio de Virgnia et al. (2001, p. 143), que a entende como um grupo de pessoas

    ligadas por parentesco, afeto, solidariedade, necessidade de reproduo, garantindo uma

    identidade social e, por conseguinte, a socializao.

    Observamos que a incluso da temtica da afetividade, compreendida como

    constituinte das relaes familiares, transformou tambm a forma das outras cincias

    abordarem a noo de famlia. A partir de dados histricos, foram os estudos do francs

    Philippe Aris (1981) que apontaram as mudanas sentidas no trato diferenciado dado aos

    infantes, as quais tambm repercutiram na configurao familiar. Ao contrrio das relaes de

    famlia da Idade Mdia, pautadas, sobretudo, no aspecto moral e social da criana (esta como

    herdeira e representante de uma linhagem), tinham-se nas relaes familiares, a partir da

    chamada Modernidade, maior considerao aos aspectos afetivos. A intensificao com os

    cuidados de sade e educao das crianas, quando transformados em indispensveis,

  • 35

    reorientou as atenes tambm para uma nova maneira de organizao do grupo familiar,

    posto que os filhos passaram a ser a prpria razo de existncia da famlia.

    A noo de vnculo afetivo valiosa para a Psicologia, pois partir dela que a pessoa

    capaz de, interacionalmente, constituir-se em suas potencialidades. Vale ressaltar, segundo

    Carvalho (2005), que esse conceito no est preocupado com a valorao moral do vnculo:

    pode-se ter tanto vinculaes consideradas positivas como negativas; o fundamental do

    vnculo a indispensabilidade do outro como constituidor do eu, sendo a famlia locus

    privilegiado dessa construo.

    Outras concepes de famlia, muitas vezes compartilhadas por diversos segmentos da

    Psicologia, no levavam em considerao as mltiplas possibilidades de configuraes

    familiares. Apontamos uma expresso comum na literatura psicolgica, a qual diz respeito a

    uma suposta estrutura familiar, pressupondo haver alguma formatao/estrutura prvia a ser

    considerada/buscada (GROENINGA apud NASCIMENTO, 2009). Corolrio dessa

    compreenso so as taxaes estigmatizantes das famlias desestruturadas, as quais no

    obedeceriam a esse padro predeterminado, possivelmente pautado nas expectativas de

    determinados setores da sociedade que elegem comportamentos familiares e os descrevem

    como estruturados ou normais (FONSECA, 2005). O uso desses jarges geralmente

    abriga preconceitos de cunho moral, partindo de uma anlise fragmentada, focalista e

    individualizante das questes familiares (BARBOSA, et al., 2001).

    Nossa contribuio ao conceito de famlia tenta ir de encontro a esses tipos de

    formatao. Ao considerarmos vrias disciplinas, abrimos um leque de possibilidades para as

    funes e configuraes que elas possam assumir. A caracterstica marcante de uma famlia

    deixa de ser o padro nuclear (surgido no contexto da Revoluo Industrial e da formao dos

    grandes centros urbano) e passa a ser a congregao (no necessariamente fsica) de pessoas

    por laos afetivos e que se reconheam como integrantes desse ncleo afetivo.

    A proposta aqui , pelo contrrio, pensar o modo de vida como fenmeno

    histrico, fruto de determinadas circunstncias econmicas e polticas, e que

    d prova da criatividade de indivduos agindo em sociedade. Quero insistir

    que essa perspectiva, evidente nas propostas de pesquisadores, como Elsen e

    Althoff (2004) e Dytz (2004), no um acrscimo cincia j existente.

    Representa algo revolucionrio, uma reviravolta no senso comum, superando

    abordagens neocolonialistas e apontando o caminho para um espao de

    verdadeiro dilogo nos programas de interveno. (FONSECA, 2005, p. 58)

  • 36

    Fonseca (2005) nos alerta ainda que olhar para as diversidades de famlias com uma

    viso estreita, geralmente tendo como referencial a famlia nuclear burguesa, atuar junto a

    elas com uma camisa de fora. A criatividade das relaes limitada por normas

    reducionistas. A ao cotidiana seria, para a autora, um permanente cenrio para novas

    prticas, atravs da constante renegociao dos comportamentos e da transformao de

    valores.

    Outra relativizao necessria ao se trabalhar com famlias decorre do recorte de

    acordo com a classe social. Segundo Duarte, o valor famlia tem grande peso em todas as

    camadas da populao brasileira. No entanto, significa coisas diferentes dependendo da

    categoria social (apud FONSECA, p. 51). Enquanto entre as elites predomina o orgulho do

    patrimnio e do sobrenome, nas classes mdias h um investimento exacerbado na

    manuteno da famlia nuclear. J nos grupos populares, a vivncia familiar est ancorada

    pelas atividades cotidianas, em especial as domsticas, e em relaes mais coletivistas,

    principalmente de ajuda mtua. Importante ressaltar que estamos falando de tendncias, e no

    de uma realidade estanque, passvel de ser enclausurada em conceitos predeterminados.

    [...] o advento da famlia moderna no se deu de forma homognea em todas

    as camadas da sociedade, mas, ao contrrio, seguiu trajetrias distintas e

    produziu efeitos diferenciados. Vale dizer que o prprio recentramento da

    famlia sobre si mesma, ocorrido, tanto nas famlias burguesas como nas

    populares, adquiriu sentidos diferentes, na medida em que, para os

    burgueses, tratou-se de retraimento ttico, com o fim de controlar um

    inimigo interior, que eram os serviais, enquanto que, para os pobres, tratou-

    se muito mais de uma relao circular de vigilncia sobre os membros da

    famlia tal como incentivada pelos higienistas contra as tentaes exteriores da rua. (REIS, 2009, p. 31).

    J no mbito jurdico, o delineamento da famlia a partir da Constituio Federal de

    1988 (BRASIL, 1988) formado por trs aspectos: o casamento (art. 226, 1), a unio

    estvel de um homem com uma mulher (art. 226, 3) e por um dos pais e seus descendentes

    (art. 226, 3). Fica patente que tal noo, a despeito dos avanos em relao s legislaes

    anteriores, principalmente em relao ao carter mais plural e democrtico das configuraes

    familiares, continua invisibilizando outras possibilidades, como a formada por casais

    homoafetivos. Ademais, o interesse maior do Judicirio, como um dos poderes do Estado

  • 37

    socialmente legitimado, exercer, atravs da famlia, sua funo de controle social, tendo nela

    um lugar privilegiado para a regulao dos comportamentos.

    De sorte que o Estado, na preservao da prpria sobrevivncia, tem

    interesse primrio em proteger a famlia, por meio de leis que lhe assegurem

    o desenvolvimento estvel e a intangibilidade de seus elementos

    institucionais. Da a interferncia por vezes exagerada do Estado nas

    relaes familiares. (RODRIGUES apud NASCIMENTO, 2009, p. 18).

    O conceito foucaultiano de biopoltica (FOUCAULT, 1997) nos ajuda a

    compreender como o sentimento moderno de famlia surgiu inicialmente nas camadas

    burguesas e, em seguida, foi reproduzido tambm pelas demais classes sociais, tudo atrelado

    ao seu uso como forma de controle social. Segundo a ideia do autor, a biopoltica corresponde

    a um campo de prticas responsveis pela disseminao de tecnologias polticas, as quais iro

    incidir sobre os corpos de uma populao. Dito de outra forma, so as tecnologias que vo

    investir sobre as regras de sade/doena, alimentao, moradia e demais condies de vida de

    um povo.

    Atrelado historicamente a essas formas de controle e visando manter a regularidade

    das relaes sociais, o Direito de Famlia se restringia regulao da transmisso de bens e

    dos patrimnios das famlias que se uniam por meio do casamento civil. (ZARIAS, 2010).

    Paulatinamente, uma nica organizao familiar aceita juridicamente foi sendo substituda por

    novos arranjos, ainda que atualmente limitados do ponto de vista da norma. Havia, antes da

    Constituio Federal de 1988, uma associao direta e limitadora entre famlia e casamento,

    admitindo-se legalmente apenas os filhos havidos dentro do matrimnio.

    O que a nova Carta Magna fez foi tornar formalmente plural aquilo que no cabia mais

    em uma concepo unvoca e anacrnica.

    O que ontem era pensado segundo a lgica do patrimnio, hoje, reveste-se

    de um novo manto: o da afetividade ou o da lgica dos direitos pessoais

    vistos a partir de um conjunto de princpios de direito emanados da

    Constituio de 1988. (ZARIAS, 2010, p. 65).

  • 38

    Segundo Alves (2001), o moderno Direito de Famlia, alm do abrigamento de novas

    entidades familiares, tambm exigiu uma abordagem multidisciplinar, reconhecendo a

    complexidade no trato de temas conflituosos e a necessidade da interdisciplinaridade dos

    ramos da cincia para a compreenso da dinmica familiar.

    Assuno critica a noo cunhada por Clvis Bevilquia, famoso jurista cearense, o

    qual definia o Direito de Famlia como:

    o conjunto de princpios que regulam a celebrao do casamento, sua

    validade e os efeitos que dele resultam, as relaes pessoais e econmicas da

    sociedade conjugal, a dissoluo desta, as relaes entre pais e filhos, o

    vnculo de parentesco e os institutos complementares da tutela, da curatela e

    da ausncia. (2001, p. 27).

    A ressalva em face da incompletude da definio segue a mesma esteira discursiva

    utilizada por ns, ao entender que a famlia no pode ficar adstrita ao contrato matrimonial.

    Essa ligao historicamente construda entre famlia e casamento provoca ainda

    interpretaes equivocadas, como se a crise vivenciada pelo segundo, em razo dos nmeros

    crescentes de divrcios, tivesse uma relao de dependncia necessria com a primeira

    (SHINE, 2007). Contundo, no entendemos profcuo aderir ao posicionamento

    diametralmente oposto, que defende uma separao absoluta entre esses dois institutos, uma

    vez que muitas configuraes familiares ainda so pautadas nas unies conjugais e, no caso

    particular de nossa pesquisa, nas repercusses provocadas pela sua dissoluo.

    Vale a pena apresentar a evoluo da Taxa geral de divrcios, ndice utilizado pelo

    Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE)14

    , para acompanhar o movimento

    populacional em relao s dissolues conjugais. Temos, no perodo de 1984 a 2007, um

    aumento do ndice de 0,46 para 1,49, uma evoluo de, aproximadamente, 200% em um

    perodo de 23 anos. Esse ndice medido a partir da diviso dos nmeros de divrcios

    concedidos pelo quantitativo populacional:

    14

    http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/registrocivil/2007/default.shtm. Acesso em 26/01/2013, s

    19h10.

  • 39

    Ressalte-se ainda que, segundo Foucault (1997), a ideologia do amor conjugal tambm

    uma inveno, no sentindo de ser uma forma de regulao entre o casal que foi

    paulatinamente se desenhando no transcorrer da histria, incentivada principalmente pelo

    movimento higienista, como uma estratgia diferenciada para o controle da sexualidade. Com

    a burguesia, a famlia conjugal confiscou a sexualidade, elegendo o casal legtimo como

    modelo e norma a serem seguidos. Esses mecanismos visavam, dentre outras coisas,

    solidificar as funes de paternidade e maternidade, principalmente em relao s

    consequncias da rigidez desses papis na relao com os filhos.

    Considerando esse aumento na taxa de divrcio nos ltimos anos, tambm cada vez

    mais frequente o aumento na solicitao de pedidos de guarda de crianas e adolescentes,

    resultantes dessas relaes desfeitas. Existem algumas possibilidades no exerccio do

    direito/dever de guarda, tais como veremos na seo adiante.

  • 40

    2.1 Tipos de Guarda

    O interesse dessa dissertao no servir como um manual de Psicologia Jurdica, mas

    fazer uma reflexo sobre como a Psicologia pode (re)produzir determinadas formas de ser

    famlia e quais os possveis efeitos disso na produo de subjetividades. Por isso, importante

    mencionarmos algumas distines que sero teis nas anlises do material emprico que

    traremos ulteriormente, como, por exemplo, quais os tipos de guarda existentes no nosso

    regramento jurdico atual.

    2.1.1 Guarda Alternada

    Segundo Souza e Miranda (2007), nesse tipo de regime de guarda, um cnjuge o

    detentor da guarda, enquanto ao outro reservado o direito de visitao. Passado um

    determinado perodo, o qual foi acordado pr