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O PROFESSOR PDE E OS DESAFIOS DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE 2009 Produção Didático-Pedagógica Versão Online ISBN 978-85-8015-053-7 Cadernos PDE VOLUME I I

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O PROFESSOR PDE E OS DESAFIOSDA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE

2009

Produção Didático-Pedagógica

Versão Online ISBN 978-85-8015-053-7Cadernos PDE

VOLU

ME I

I

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SECRETARIA DE ESTADO DA EDUCAÇÃO – SEED

SUPERINTENDÊNCIA DA EDUCAÇÃO – SUED

PROGRAMA DE DESENVOLVIMENTO EDUCACIONAL – PDE

PRODUÇÃO DIDÁTICO-PEDAGÓGICA

UNIDADE DIDÁTICA

A LITERATURA COMO MEIO DE PRAZER E EMANCIPAÇÃO

(“A história das interpretações de uma obra literária é uma troca de experiências ou, se quisermos, um jogo de perguntas e respostas.”)

Hans Robert Jauss

Professor PDE: Marlene Aparecida Scoparo Área: Língua Portuguesa Núcleo Regional de Educação: Jacarezinho Professor Orientador: Profª. Dra. Hiudéa Tempesta Rodrigues Boberg IES vinculada: Universidade Estadual do Norte do Paraná – UENP / Jacarezinho Escola de implementação: Colégio Estadual Dr. Generoso Marques – Ensino Fundamental e Médio Município: Cambará Público objeto da intervenção: Alunos da 1ª série do Ensino Médio Natureza da produção didático-pedagógica: Unidade didática

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1. LITERATURA COMO MEIO DE PRAZER E EMANCIPAÇÃO

Segundo o crítico Antonio Candido, a Literatura desenvolve em nós a quota de

humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a

sociedade, o semelhante. As produções literárias, de todos os tipos e de todos os níveis,

satisfazem necessidades básicas do ser humano, sobretudo através de incorporações que

enriquecem a nossa percepção e a nossa visão do mundo.

Isso posto, devemos nos lembrar de que além do conhecimento por assim dizer latente,

que provém da organização das emoções e do nosso contato com o mundo real, há na

Literatura níveis de conhecimento intencionais, isto é, planejados pelo autor e

conscientemente assimilados pelo receptor e que tornam essa matéria uma fonte de

questionamentos dos valores vigentes e de denúncia dos problemas sociais ao mesmo tempo

em que satisfaz, em outro nível, a necessidade de conhecer os sentimentos e a sociedade,

ajudando-nos a tomar posição frente a esses problemas. É aí que se situa a literatura social,

empenhada, originando-se de posições éticas, políticas, religiosas ou simplesmente

humanísticas.

Partindo dessas ideias, mergulharemos numa realidade literária que visa descrever,

analisar e, consequentemente, despertar para a tomada de posição face às iniquidades sociais.

Mas antes de iniciarmos nossa viagem ao mundo da Literatura, assistiremos a um

vídeo com a nova versão da música “We are the world”, gravada em 1º de fevereiro deste ano

(2010), em benefício das vítimas do terremoto que devastou o Haiti.

A nova versão da música é um convite ao mundo para que seja solidário ao povo

daquele país.

Com o intuito de incutir em cada um de nós a necessidade de enfrentamento para a

busca de soluções de problemas como a fome e a exclusão social, também em nosso país,

assistiremos ao filme “Ilha das flores”, de Jorge Furtado, com intuito de analisar as ações da

sociedade capitalista que restringe aos seres humanos, os seus direitos básicos, colocando-os à

margem da sociedade. De forma ácida e com uma linguagem quase científica, esse

curtametragem brasileiro, do gênero documentário, mostra-nos como a economia gera

relações desiguais entre os seres humanos.

<http://www.hiphopmovie.com/videos/3248/we-are-the-world--25-for-haiti---legendado-em-pt-br.html>.

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Ilha das Flores Encontro marcado com a miséria

Fonte: http://www.planetaeducacao.com.br/portal/artigo.asp?artigo=

Acesse o site http://www.youtube.com/watch?v=KAzhAXjUG28 e assista ao filme,

cuja produção é de 1989 e mostra a situação do ser humano animalizado perante a fome e a

miséria. Trata-se de um quadro ainda atual em nossa sociedade que, no filme, é mostrado com

evidência após a cena da coleta seletiva, quando humanos passam a disputar as sobras do

lixão de Ilha das Flores, que não servem nem aos porcos.

2 ARTICULANDO GÊNERO PARA ATENDER EXPECTATIVAS

A temática social sempre foi assunto presente na Literatura universal, inclusive muitos

escritores brasileiros abordaram e ainda abordam o problema apresentado no filme “Ilha das

flores”.

No poema “O bicho”, por exemplo, o escritor Manuel Bandeira enfoca o homem como

um ser marginalizado, animalizado pela degradação que o atinge física, psicológica e

socialmente.

Com aparente singeleza, Bandeira constrói um poema que emociona e desperta para a

reflexão, para perguntas imperiosas e que requereriam respostas mais que imediatas: por que

há pessoas abandonadas pela sociedade? Quem ganhou e ainda ganha com isso? Por que não

revolucionamos essa sociedade falha?

Para exemplificar, vejamos o texto, um pequeno-grande poema, de um poeta crítico

que nos leva a reflexões profundas sobre a condição humana.

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O bicho

Vi ontem um bicho

Na imundice do pátio

Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,

Não examinava nem cheirava:

Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão.

Não era um gato,

Não era um rato.

O bicho, Meu Deus, era um homem.

BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. 20 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,

1993, p. 201.

A construção poética de Bandeira inicia um discurso narrado em primeira pessoa e, de

imediato, revela-se uma tensão que se associa à figura “bicho”, deixando o leitor em alerta

para o que vem a seguir. O percurso narrativo vai mudando com a inserção de imagens. O

personagem do poema (o homem) se vê num estado lastimável, em situação tão miserável que

tem de submeter-se a catar os restos que as outras pessoas deixaram. Passa a agir como um

animal irracional, atendendo às suas necessidades primárias. Geralmente não é visto pela

sociedade, é um ser invisível. Esse homem é definido como bicho. Portanto, o processo de

construção do texto é metafórico.

Manuel Bandeira revela, em suas obras, a busca constante de novas formas de

expressão e também a opção pela liberdade formal e pela abordagem do cotidiano como

matéria poética. A partir do cotidiano o poeta recria poeticamente o mundo, dando a seus

temas dimensão universal. Porém o que mais fascina quem lê sua obra é a capacidade de

extrair algo banal do cotidiano e transformar em uma reflexão social e filosófica. Em “O

bicho”, por exemplo, o sofrimento que ele retrata não é apenas do homem, mas o do poeta,

numa forma de protesto que ataca as classes dominantes. Isso faz de sua poesia uma

ferramenta de luta social, e por extensão a literatura, criando um diálogo entre a realidade

estritamente poética e o mundo real que a circunda.

O escritor Manuel Bandeira participou do Modernismo brasileiro, um amplo movimento cultural que teve início com a Semana de Arte Moderna, realizada em São Paulo, em 1922, e repercutiu intensamente sobre a sociedade brasileira na primeira metade do século XX, sobretudo no campo da literatura e das artes plásticas. Didaticamente, divide-se o Modernismo em três fases: a primeira fase, mais radical e fortemente oposta a tudo que foi anterior, cheia de irreverência e escândalo; uma segunda mais amena, que formou grandes romancistas e poetas; e uma terceira, também chamada, por vários autores, de Pós-Modernismo, e se opunha de certo modo à primeira fase e por isso era chamada de neoparnasianismo.

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Uma outra possibilidade de diálogo entre os gêneros, abordando a temática social, é a

música “O resto do mundo” de Gabriel, o Pensador. Observe o vídeo:

Agora faremos o acompanhamento com a letra para melhor entendermos a mensagem

que o compositor pretendeu transmitir quando criou esta música.

“O RESTO DO MUNDO” Eu queria morar numa favela Eu queria morar numa favela Eu queria morar numa favela O meu sonho é morar numa favela Eu me chamo de cheiroso como alguém me chamou Mas pode me chamar do que quiser seu dotô Eu num tenho nome Eu num tenho identidade Eu num tenho nem certeza se eu sou gente de verdade Eu num tenho nada Mas gostaria de ter Aproveita seu dotô e dá um trocado pra eu comer... Eu gostaria de ter um pingo de orgulho Mas isso é impossível pra quem come o entulho Misturado com os ratos e com as baratas E com o papel higiênico usado Nas latas de lixo Eu vivo como um bicho ou pior que isso Eu sou o resto O resto do mundo Eu sou mendigo um indigente um indigesto um vagabundo Eu sou... Eu num sou ninguém Eu tô com fome Tenho que me alimentar Eu posso num ter nome mas o estômago tá lá Por isso eu tenho que ser cara-de-pau Ou eu peço dinheiro ou fico aqui passando mal Tenho que me rebaixar a esse ponto porque a necessidade é maior do que a moral Eu sou sujo eu sou feio eu sou anti-social Eu num posso aparecer na foto do cartão postal Porque pro rico e pro turista eu sou poluição Sei que sou um brasileiro Mas eu não sou cidadão .................................... Veja a letra completa no site: < http://letras.terra.com.br/gabriel-pensador/72844/ >. Acesso em: 12 jan. 2010.

Gabriel, o Pensador, nome artístico de Gabriel Contino (Rio de Janeiro, 4 de março de 1974), é um cantor e compositor brasileiro de rap. Um dos maiores nomes do rap e pop brasileiro, Gabriel diferenciou-se de boa parte de seus pares (chegou a ser criticado por eles) por ser garoto branco de classe-média. Mas desde o começo fez das letras de crítica social e moral, uma forma de protesto, como acontece na música rap. Através de suas músicas, sempre muito críticas, o cantor fala da sociedade e da moral, mostrando a realidade do país.

< http://www.youtube.com/watch?v=eUt2p_SLiqY>. Acesso em: 20 dez. 2009.

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A leitura e análise do tema abordado nos gêneros que acabamos de estudar nos

possibilitam entender e refletir sobre o sofrimento e os sentimentos daqueles que vivem no

submundo da miséria.

Então, que tal mergulharmos nesta vasta possibilidade de informações e

aprendizagem? Para isso, primeiramente, faremos uma interpretação oral do filme a que

acabamos de assistir. Após, discutiremos as seguintes questões:

• O filme possui um título que contradiz a trama desenvolvida ao longo de seus 13

minutos de duração. Com que intenção você acha que o produtor fez isso?

• Que relação pode ser estabelecida entre esse curtametragem, o poema de Bandeira e a

música “O resto do mundo” de Gabriel, o Pensador?

• O termo “bicho”, usado por Manuel Bandeira, é uma metáfora. Podemos definir

metáfora como figura de linguagem que consiste em utilizar uma palavra, ou

expressão de forma comparativa, em lugar de outra, por haver entre elas uma estreita

relação de sentidos. Então, que significado a palavra “bicho” assume no poema?

• Em sua opinião, alguém que se encontre em uma situação miserável poderá

animalizar-se?

• No poema “O bicho” há figuras como bicho, comida, cão, gato e rato. Que relação

podemos depreender a partir dessas figuras?

• Que sentimentos a expressão ”O bicho, Meu Deus, era um homem”, colocada no

último verso quer expressar?

• Na música de Gabriel, o Pensador, o tema abordado é a mendicância, forma de vida

tão brutal e cruel, a ponto de o eu - lírico expressar o desejo de morar numa favela,

ressaltando este local como ideal se comparado à situação descrita na composição.

Você concorda com ele? Por quê?

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• Estabeleça uma relação entre a imagem a seguir e o conteúdo da música “O resto do

mundo”.

Imagem:Lange-MigrantMother02.jpg Fonte: Wikipédia, a enciclopédia livre

2.2 AMPLIANDO O CONHECIMENTO Para expandir seus conhecimentos referentes à época de surgimento do poema de

Manuel Bandeira, dividiremos a sala em dois grupos, os quais denominaremos “grupo 1” e

“grupo 2”.

• O primeiro grupo ficará incumbido de pesquisar as linhas gerais do Modernismo

brasileiro, movimento literário do qual o poeta fez parte. O segundo fará uma pesquisa

sobre a poesia de Manuel Bandeira.

• A turma terá um prazo para o levantamento dessas informações. Além disso, ambos os

trabalhos deverão ser resumidos e entregues à classe na versão impressa.

• Após esse período, será realizada, na sala de aula, uma exposição oral sobre os

assuntos pesquisados, com espaço para perguntas e discussões.

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3. ROMPENDO HORIZONTES

Agora você irá ler três textos que dialogam entre si quanto ao tema e abordagem do

assunto, revelando-nos as preocupações de uma sociedade capitalista e mostrando-nos a

indiferença do ser humano perante o sofrimento alheio.

Texto A

NOTÍCIA DE JORNAL

Leio no jornal a notícia de que um homem morreu de fome. Um homem de cor branca,

trinta anos, presumíveis, pobremente vestido, morreu de fome, sem socorro, em pleno centro

da cidade, permanecendo deitado na calçada durante setenta e duas horas, para finalmente

morrer de fome.

[...]

Um homem morreu de fome em plena rua, entre centenas de passantes. [...] Durante

setenta e duas horas todos passam ao lado do homem que morre de fome, com um olhar de

nojo, de desdém, inquietação e até mesmo piedade, ou sem olhar nenhum. Passam, e o

homem continua morrendo de fome, sozinho, isolado, perdido entre os homens, sem socorro e

sem perdão.

[...]

E ontem, depois de setenta e duas horas de inanição, tombando em plena rua, no centro mais movimentado do Rio de Janeiro, um homem morreu de fome.

Morreu de fome. Fernando Sabino

Leia o texto na íntegra no site: <http://www.pucrs.br/gpt/intertextualidade.php > . Acesso em: 20 de nov. 2009.

Texto B

UMA VELA PARA DARIO

Dario vinha apressado, guarda-chuva no braço esquerdo e, assim que dobrou a

esquina, diminuiu o passo até parar, encostando-se à parede de uma casa. Por ela

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escorregando, sentou-se na calçada, ainda úmida de chuva, e descansou na pedra o cachimbo.

Dois ou três passantes rodearam-no e indagaram se não se sentia bem. Dario abriu a

boca, moveu os lábios, não se ouviu resposta. O senhor gordo, de branco, sugeriu que devia

sofrer de ataque.

[...]

Ocupado o café próximo pelas pessoas que vieram apreciar o incidente e, agora,

comendo e bebendo, gozavam as delícias da noite. Dario ficou torto como o deixaram, no

degrau da peixaria, sem o relógio de pulso.

[...]

Fecharam-se uma a uma as janelas e, três horas depois, lá estava Dario à espera do

rabecão. A cabeça agora na pedra, sem o paletó, e o dedo sem a aliança. A vela tinha

queimado até a metade e apagou-se às primeiras gotas da chuva, que voltava a cair.

TREVISAN, Dalton. Uma vela para Dario. In: MORICONI, Ítalo (org.). Os cem melhores contos brasileiros do século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. p. 279 – 280.

Texto C

O MENDIGO SEXTA-FEIRA JOGANDO NO MUNDIAL

Lhe concordo, doutor: sou eu que invento minhas doenças. Mas eu, velho e sozinho, o

que posso fazer? Estar doente é minha única maneira de provar que estou vivo. É por isso que

frequento o hospital, vezes e vezes, a exibir minhas maleitas. Só nesses momentos, doutor, eu

sou atendido. Mal atendido, quase sempre. Mas nessa infinita fila de espera, me vem a ilusão

de me vizinhar do mundo. Os doentes são a minha família, o hospital é o meu tecto e o senhor

é o meu pai, pai de todos meus pais.

[...]

Eu sei, doutor, lhe estou roubando o tempo. Vou directo no assunto do meu ombro.

Pois aconteceu o seguinte: o dono da loja deu ontem ordem para limpar o passeio. Não queria

ali mendigos e vadios. [...] O que eu lhe peço, doutor, é que intervenha por mim, por nós os

espectadores do passeio da Avenida Direita. O proprietário do Dubai Shoping não vai dizer

que não, se for um pedido vindo de si, doutor.

[...]

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O que eu vi num adocicar de visão foi isto, sem mais nem menos: eu e os mendigos de

sexta-feira estamos no mundial, formamos equipa com fardamento brilhoso. E o doutor é o

treinador. [...] De repente, sofro carga do defesa contrário. Jogo perigoso, reclamam as vozes

aos milhares. Sim, um cartão amarelo, brada o doutor. Porém, o defesa continua a agressão,

cresce o protesto da multidão. Isso, senhor árbitro, cartão vermelho! Boa decisão! Haja no

jogo a justiça que nos falta na Vida.

Afinal, o vermelho é do cartão ou será o meu próprio sangue? Não há dúvida: necessito de

assistência, lesionado sem

fingimento. Suspendessem

o jogo, expulsassem o

agressor das quatro linhas.

Surpresa minha - o próprio

árbitro é quem me passa a

agredir. Nesse momento,

me assalta a sensação de

um despertar como se eu

saísse da televisão para o

passeio. Ainda vejo a

matraca do polícia

descendo sobre a minha

cabeça. Então, as luzes do

estádio se apagam.

COUTO, Mia. O fio das missangas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 82 – 84. 3.1 PROPONDO ATIVIDADE ORAL: DEBATE Em “Notícia de jornal”, há várias vezes o uso da expressão “morreu de fome” e

também de suas variações “morrer de fome”, “morrendo de fome” e “morre de fome”.

António Emílio Leite Couto, Mia Couto, é biólogo, professor universitário e escritor, nasceu na Beira (Moçambique), em 5/7/1955. É considerado um dos nomes mais importantes da nova geração de escritores africanos que escrevem em português. Este estatuto incontestado deve-se não só á forma como descreve e trata os problemas e a vida quotidiana do Moçambique contemporâneo, mas principalmente á inventiva poética da sua escrita, numa permanente descoberta de novas palavras através de um processo de mestiçagem entre o português "culto" e as várias formas e variantes dialetais introduzidas pelas populações moçambicanas.

A escrita tem sido, no entanto, uma paixão constante, desde a poesia, com que se estreou em 1983, até a escrita jornalística e a prosa de ficção. A questão do gênero literário não é, de resto, a mais importante para um autor cuja escrita prosa e poesia se contaminam e que escreve "pelo prazer de desarrumar a língua".

Questões mais importantes relacionadas com sua obra são as relacionadas com a vida do povo moçambicano, um dos mais pobres e martirizados do mundo, recém-saído de 30 anos de guerra civil e onde persiste uma forte tradição de transmissão da literatura e dos saberes essencialmente por via oral. Numa cultura onde se diz que "cada velho que morre é uma biblioteca que arde", Mia empreende uma escrita que liga a tradição oral africana à tradição literária ocidental, tal como no seu trabalho de biólogo liga, no estudo da floresta, o saber ancestral dos anciãos sobre o espírito das árvores e das plantas à moderna ciência da Ecologia. Essencial, num caso como noutro, é sempre a relação mais profunda entre o humano e a terra, entre um humano e outro humano, por vezes nas suas condições mais extremas.

Disponível em: <http://www.sudoestealentejano.com/literatura/paginas/mia_couto.htm> Acesso em: 04 de fev. 2010.

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• Com que intenção você acha que o autor fez uso dessas expressões que se repetem em

todo o texto?

• No 5º parágrafo o autor se utiliza de algumas afirmações, tais como “um homem

morreu de fome”, “um homem caído na rua”, “um bêbado”, “um vagabundo”, “um

mendigo”. Explique, tendo em vista essas afirmações, a perplexidade do autor ao dizer

“Não é um homem” e o que tal expressão indica.

• Que motivos levaram os comerciantes a pedirem auxílio a fim de remover o homem?

• Que relação há entre a atitude dos comerciantes do texto A e do texto C?

• Como você explicaria a atitude das pessoas referente aos objetos pessoais de Dario.

Há semelhanças com a atitude dos comerciantes dos textos A e C?

• Nos três textos, os motivos que contribuíram para a morte dos personagens estão

ligados à forma de vida instaurada pela sociedade capitalista? Por quê?

3.2 PROPONDO ATIVIDADE ESCRITA

• A ideia central do texto A é mostrar a indignação do autor diante de o fato “morrer de

fome” ser encarado sem nenhuma importância. Que expressões do texto demonstram

isso?

• Por meio da leitura dos três textos apresentados, podemos estabelecer uma relação

semântica entre os mesmos. Especifique tal relação, registrando-a em, no máximo, 10

a 15 linhas.

• Reestruturação dos textos (prática de análise linguística)

3.3 AMPLIANDO O CONHECIMENTO

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No conto “O mendigo Sexta-Feira jogando no mundial”, o narrador nos fala por meio

do próprio mendigo que ao longo das páginas faz com que o leitor tome ciência de um

sentimento universal: a dor. Literal e metaforicamente humana, a dor é explícita por um

realismo sem pregas, na voz do mendigo que chega a tocar o coração do leitor. Durante esse

instante metafísico, o mendigo descreve seu sentimento humano e real, ao sentir-se esmagado

pela falta de olhar dos homens e manifesta seu desejo de ser observado pelo outro.

Um sentimento de inveja surge no imaginário da personagem na medida em que se vê

no espelho cruel da vida ao comparar sua dor à de um jogador de futebol e isso o faz sonhar

com um dia de atenção dos homens. Este instante lírico é justamente o momento em que o

mendigo (narrador) se junta a outros mendigos que reservam o seu lugar na calçada para

assistir ao jogo pela televisão no Dubal Shoping.

Apesar da imagem do sonho e do devaneio do mendigo, as últimas frases do conto de

Mia Couto revelam a denúncia social e o desprezo aos seres humanos. Como se não

bastassem o abandono e a rejeição, surge o momento extremo do agressor. A agressão

simboliza a própria vida sendo apagada por falta de sensibilidade que poderia proporcionar a

igualdade social.

A partir dessa análise e da forma como o autor trabalha a linguagem no texto, vamos

refletir, debater e escrever um pouco mais.

Segundo o Dicionário Aurélio, a inveja é “1. desgosto ou pesar pelo bem ou

felicidade de outrem. 2. Desejo violento de possuir o bem alheio. 3. objeto da inveja”

• Por que o mendigo Sexta-Feira é tomado pelo sentimento da inveja? Qual é o objeto

de desejo, o bem alheio que deseja possuir?

• Nos dois últimos parágrafos, metaforicamente o instante vivido pelo mendigo Sexta-

Feira e seus companheiros é comparado a um jogo de futebol. Porém, nas regras de

um jogo (conforme o texto) há um elemento que o difere do sistema de vida

apresentado no decorrer da história. Que palavra representa este elemento? E por que

não está presente na vida do personagem Sexta-feira?

O texto de Mia Couto é rico em figuras de linguagem. A inventiva poética da sua

escrita o torna uma espécie de mágico da língua, criando, apropriando, recriando, renovando a

língua portuguesa em novas e inesperadas direções. Por isso, devido a essa autêntica

revolução de inventiva linguística, esse escritor africano tem sido muito apropriadamente

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comparado a outro grande nome da Língua Portuguesa do século XX, o escritor brasileiro

João Guimarães Rosa.

Nos dois últimos parágrafos da narrativa, há um jogo de imagens que desperta a

atenção, trabalha com as nossas sensações e nos remete à situação descrita como se

fizéssemos parte daquele momento.

• Você poderia apontar, no texto, para alguma construção nesse sentido? Em que isso

contribui para a nossa maneira de ver e de entender a situação vivida pelo mendigo no

final do texto?

• Existe uma figura de linguagem chamada sinestesia, que consiste em aproximar

sensações percebidas por diferentes órgãos dos sentidos, como a visão e a audição, por

exemplo. Você acha que houve, no texto, algum tipo de aproximação nesse sentido?

Por quê?

• O apagar das luzes no final do texto surge duplamente figurado, pois além de apelar

para a nossa visão também nos mostra uma forma de abrandar um fato chocante que

acontece no fim da história. Que fato é esse e que expressão foi utilizada neste

sentido?

• No jogo, o papel do juiz é o de apaziguar os conflitos e fazer valer as regras. Por que,

no texto, esse papel se inverteu?

3.4 ARTICULANDO TEXTOS

Poema tirado de uma notícia de jornal

João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da Babilônia num barracão sem [número. Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro Bebeu Cantou Dançou Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.

Fonte: Literatura comentada (Manuel Bandeira). Nova Cultura: São Paulo, 1988, p. 44.

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• Nos três textos analisados há a presença do elemento morte como consequência do

descaso do ser humano para com o outro, da indiferença e do jogo de poder

instaurados pela sociedade capitalista. Esses fatores podem ser aplicados também

como causa para a morte nesse poema de Manuel Bandeira? Por quê?

• O poema de Bandeira foi criado a partir de uma notícia de jornal. Que características

do texto comprovam isso?

3.5 PROPONDO ATIVIDADE ESCRITA

Agora é sua vez de inventar. Use a imaginação!

• Como você pôde observar, é possível montar um poema tendo como subsídio uma

notícia de jornal. Para isso, a classe será dividida em grupos de, no máximo, cinco

alunos (as). Cada grupo escolherá uma notícia em um jornal que seja de circulação

regional e, com base no assunto abordado pelo gênero em questão, o grupo irá compor

um poema, parodiando esse criado por Bandeira, e o mesmo será exposto no mural da

escola. O texto que deu origem àquele que o grupo criou deve ficar disposto ao lado da

nova produção.

• Reestruturação dos textos (prática de análise linguística).

3.6 PESQUISANDO

Você leu, no tópico três, uma crônica e um conto de dois autores consagrados de

nossa Literatura. Agora vamos conhecer melhor quem são esses escritores, fazendo uma

pesquisa sobre eles. Também vamos conhecer um pouco mais sobre a Literatura africana e o

escritor Mia Couto.

Para isso, dividiremos a sala em três grupos, sendo que o grupo 1 buscará informações

sobre Fernando Sabino, o grupo 2 sobre Dalton Trevisan e o grupo 3 sobre a Literatura

africana e o escritor Mia Couto. A tarefa é pesquisar:

• a época em que escreveram;

• influências que receberam;

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• estilo de cada um.

Também será interessante saber quem é o escritor Guimarães Rosa, cuja influência é

bastante acentuada no estilo de Mia Couto. Por isso, faremos um sorteio e cada grupo ficará

incumbido de pesquisar um dos itens mencionados acima, sobre o referido autor brasileiro.

O resultado da pesquisa de todos os autores será apresentado sob a forma de cartazes,

com exposição oral pelos grupos e posterior fixação em murais da escola.

4. QUESTIONANDO E AVALIANDO O CONHECIMENTO Chegou o momento da discussão em grupo, do debate e apresentação dos trabalhos

realizados nas etapas anteriores. Cada grupo fará sua discussão e organização interna e, após,

irá expor, oralmente, suas pesquisas e produções. Em seguida, será feita a socialização na

escola com a fixação dos mesmos em murais. Também serão debatidas, na sala, as questões

que se encontram a seguir.

Por meio dos gêneros trabalhados até aqui, vimos, numa primeira fase, a animalização

de seres humanos na busca para saciar a fome e, num segundo momento, pudemos constatar a

indiferença e a brutalidade de outros, fatores que contribuem para o aumento da desigualdade

social.

A exclusão social, analisada por meio dos textos e vídeos apresentados, suscita

situações em que a fome, a miséria e a indiferença humana são delatadas como forma de

reflexão e questionamento contra a falta de justiça provocada pelo individualismo e pelo estilo

de vida instaurado pela sociedade moderna.

• Você conhece outros textos ou filmes que abordam o assunto em discussão? Comente

sobre eles.

• O que você acha que pode ser feito para amenizar o quadro de pobreza em que muitos

seres humanos se encontram?

• Já presenciou alguém se alimentando de resto de lixo? Se a resposta for positiva, que

sensação isso provocou em você? Se for negativa, como acha que reagiria se

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presenciasse uma cena como a descrita pelo poeta Manuel Bandeira, no poema “O

bicho”?

• Se passasse por uma rua e visse uma pessoa caída, o que faria?

• Imagine que você seja o gerente de uma grande loja. Que atitude teria se ela fosse

frequentada por uma pessoa como o mendigo Sexta-Feira?

• Faça uma análise dos vídeos e textos trabalhados até o momento e responda: qual

deles retrata melhor os motivos que levam à exclusão social?

Vimos até agora a exclusão social causada pela pobreza e pela indiferença humana.

Agora iremos conhecer outros motivos que levam a esse quadro, como o preconceito racial,

por exemplo.

Para exemplificar isso, introduziremos um vídeo com a música que Caetano Veloso

criou para o poema “O navio negreiro”. Em estilo rap, ele a canta juntamente com Maria

Bethânia. Veja no site: <http://www.youtube.com/watch?v=1Osbp0IMYRM >.

Após, faremos leitura jogralizada desse poema épico-dramático que integra a obra

“Os escravos”, e constitui uma das maiores realizações poéticas de Castro Alves, fundador da

poesia social e engajada no Brasil.

O tema de “O navio negreiro” é a denúncia da escravidão e do transporte de negros

para o Brasil. Quando o poema foi escrito, em 1868, já fazia dezoito anos que vigorava a lei

Eusébio de Queirós, que proibia o tráfego de escravos, mas a escravidão no país persistia.

Sem preocupação de escrever sobre a realidade imediata, Castro Alves faz uma

recriação poética das cenas dramáticas do transporte de escravos no porão dos navios

negreiros. Para isso, valeu-se em grande parte dos relatos de escravos com quem conviveu, na

Bahia, quando menino.

Confira essas informações no texto a seguir, que, para melhor entendimento, será lido

em forma de jogral.

O Navio Negreiro, de Castro Alves.

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Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro <http://www.bibvirt.futuro.usp.br> A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais. Texto-base digitalizado por: Jornal da Poesia - http://www.e-net.com.br/seges/poesia.html Este material pode ser redistribuído livremente, desde que não seja alterado, e que as informações acima sejam mantidas. Para maiores informações, escreva para <[email protected]>.

Navio Negreiro Castro Alves

Imagem disponível em: <http://www.diaadia.pr.gov.br/tvpendrive/arquivos/Image/conteudos/imagens/fisica/2navio.jpg>.

I

'Stamos em pleno mar... Doudo no espaço Brinca o luar — dourada borboleta; E as vagas após ele correm... cansam Como turba de infantes inquieta.

'Stamos em pleno mar... Do firmamento Os astros saltam como espumas de ouro... O mar em troca acende as ardentias, — Constelações do líquido tesouro...

'Stamos em pleno mar... Dois infinitos Ali se estreitam num abraço insano, Azuis, dourados, plácidos, sublimes... Qual dos dous é o céu? qual o oceano?...

'Stamos em pleno mar. . . Abrindo as velas Ao quente arfar das virações marinhas, Veleiro brigue corre à flor dos mares, Como roçam na vaga as andorinhas...

Donde vem? onde vai? Das naus errantes Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço? Neste saara os corcéis o pó levantam, Galopam, voam, mas não deixam traço.

Bem feliz quem ali pode nest'hora Sentir deste painel a majestade! Embaixo — o mar em cima — o firmamento... E no mar e no céu — a imensidade!

Oh! que doce harmonia traz-me a brisa! Que música suave ao longe soa! Meu Deus! como é sublime um canto ardente Pelas vagas sem fim boiando à toa!

Homens do mar! ó rudes marinheiros, Tostados pelo sol dos quatro mundos! Crianças que a procela acalentara No berço destes pélagos profundos!

Esperai! esperai! deixai que eu beba Esta selvagem, livre poesia Orquestra — é o mar, que ruge pela proa, E o vento, que nas cordas assobia... ..........................................................

Por que foges assim, barco ligeiro? Por que foges do pávido poeta? Oh! quem me dera acompanhar-te a esteira Que semelha no mar — doudo cometa!

Albatroz! Albatroz! águia do oceano, Tu que dormes das nuvens entre as gazas, Sacode as penas, Leviathan do espaço,

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Albatroz! Albatroz! dá-me estas asas.

II

Que importa do nauta o berço, Donde é filho, qual seu lar? Ama a cadência do verso Que lhe ensina o velho mar! Cantai! que a morte é divina! Resvala o brigue à bolina Como golfinho veloz. Presa ao mastro da mezena Saudosa bandeira acena As vagas que deixa após.

Do Espanhol as cantilenas Requebradas de langor, Lembram as moças morenas, As andaluzas em flor! Da Itália o filho indolente Canta Veneza dormente, — Terra de amor e traição, Ou do golfo no regaço Relembra os versos de Tasso, Junto às lavas do vulcão!

O Inglês — marinheiro frio, Que ao nascer no mar se achou, (Porque a Inglaterra é um navio, Que Deus na Mancha ancorou), Rijo entoa pátrias glórias, Lembrando, orgulhoso, histórias De Nelson e de Aboukir.. . O Francês — predestinado — Canta os louros do passado E os loureiros do porvir!

Os marinheiros Helenos, Que a vaga jônia criou, Belos piratas morenos Do mar que Ulisses cortou, Homens que Fídias talhara, Vão cantando em noite clara Versos que Homero gemeu ... Nautas de todas as plagas, Vós sabeis achar nas vagas As melodias do céu! ...

III

Desce do espaço imenso, ó águia do oceano! Desce mais ... inda mais... não pode olhar humano Como o teu mergulhar no brigue voador! Mas que vejo eu aí... Que quadro d'amarguras! É canto funeral! ... Que tétricas figuras! ...

Que cena infame e vil... Meu Deus! Meu Deus! [Que horror!

IV

Era um sonho dantesco... o tombadilho Que das luzernas avermelha o brilho. Em sangue a se banhar. Tinir de ferros... estalar de açoite... Legiões de homens negros como a noite, Horrendos a dançar...

Negras mulheres, suspendendo às tetas Magras crianças, cujas bocas pretas Rega o sangue das mães: Outras moças, mas nuas e espantadas, No turbilhão de espectros arrastadas, Em ânsia e mágoa vãs!

E ri-se a orquestra irônica, estridente... E da ronda fantástica a serpente Faz doudas espirais ... Se o velho arqueja, se no chão resvala, Ouvem-se gritos... o chicote estala. E voam mais e mais...

Presa nos elos de uma só cadeia, A multidão faminta cambaleia, E chora e dança ali! Um de raiva delira, outro enlouquece, Outro, que martírios embrutece, Cantando, geme e ri!

No entanto o capitão manda a manobra, E após fitando o céu que se desdobra, Tão puro sobre o mar, Diz do fumo entre os densos nevoeiros: "Vibrai rijo o chicote, marinheiros! Fazei-os mais dançar!..."

E ri-se a orquestra irônica, estridente. . . E da ronda fantástica a serpente Faz doudas espirais... Qual um sonho dantesco as sombras voam!... Gritos, ais, maldições, preces ressoam! E ri-se Satanás!...

V

Senhor Deus dos desgraçados! Dizei-me vós, Senhor Deus! Se é loucura... se é verdade Tanto horror perante os céus?! Ó mar, por que não apagas Co'a esponja de tuas vagas De teu manto este borrão?...

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Astros! noites! tempestades! Rolai das imensidades! Varrei os mares, tufão!

Quem são estes desgraçados Que não encontram em vós Mais que o rir calmo da turba Que excita a fúria do algoz? Quem são? Se a estrela se cala, Se a vaga à pressa resvala Como um cúmplice fugaz, Perante a noite confusa... Dize-o tu, severa Musa, Musa libérrima, audaz!...

São os filhos do deserto, Onde a terra esposa a luz. Onde vive em campo aberto A tribo dos homens nus... São os guerreiros ousados Que com os tigres mosqueados Combatem na solidão. Ontem simples, fortes, bravos. Hoje míseros escravos, Sem luz, sem ar, sem razão. . .

São mulheres desgraçadas, Como Agar o foi também. Que sedentas, alquebradas, De longe... bem longe vêm... Trazendo com tíbios passos, Filhos e algemas nos braços, N'alma — lágrimas e fel... Como Agar sofrendo tanto, Que nem o leite de pranto Têm que dar para Ismael.

Lá nas areias infindas, Das palmeiras no país, Nasceram crianças lindas, Viveram moças gentis... Passa um dia a caravana, Quando a virgem na cabana Cisma da noite nos véus ... ... Adeus, ó choça do monte, ... Adeus, palmeiras da fonte!... ... Adeus, amores... adeus!...

Depois, o areal extenso... Depois, o oceano de pó. Depois no horizonte imenso Desertos... desertos só... E a fome, o cansaço, a sede... Ai! quanto infeliz que cede, E cai p'ra não mais s'erguer!... Vaga um lugar na cadeia, Mas o chacal sobre a areia Acha um corpo que roer.

Ontem a Serra Leoa, A guerra, a caça ao leão, O sono dormido à toa Sob as tendas d'amplidão! Hoje... o porão negro, fundo, Infecto, apertado, imundo, Tendo a peste por jaguar... E o sono sempre cortado Pelo arranco de um finado, E o baque de um corpo ao mar...

Ontem plena liberdade, A vontade por poder... Hoje... cúm'lo de maldade, Nem são livres p'ra morrer... Prende-os a mesma corrente — Férrea, lúgubre serpente — Nas roscas da escravidão. E assim zombando da morte, Dança a lúgubre coorte Ao som do açoute... Irrisão!...

Senhor Deus dos desgraçados! Dizei-me vós, Senhor Deus, Se eu deliro... ou se é verdade Tanto horror perante os céus?!... Ó mar, por que não apagas Co'a esponja de tuas vagas Do teu manto este borrão? Astros! noites! tempestades! Rolai das imensidades! Varrei os mares, tufão! ...

VI

Existe um povo que a bandeira empresta P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia!... E deixa-a transformar-se nessa festa Em manto impuro de bacante fria!... Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta, Que impudente na gávea tripudia? Silêncio. Musa... chora, e chora tanto Que o pavilhão se lave no teu pranto! ...

Auriverde pendão de minha terra, Que a brisa do Brasil beija e balança, Estandarte que a luz do sol encerra E as promessas divinas da esperança... Tu que, da liberdade após a guerra, Foste hasteado dos heróis na lança Antes te houvessem roto na batalha, Que servires a um povo de mortalha!...

Fatalidade atroz que a mente esmaga! Extingue nesta hora o brigue imundo O trilho que Colombo abriu nas vagas, Como um íris no pélago profundo!

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Mas é infâmia demais! ... Da etérea plaga Levantai-vos, heróis do Novo Mundo! Andrada! arranca esse pendão dos ares! Colombo! fecha a porta dos teus mares!

Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=1786>. Acesso em 29 abr. 2010.

4.1 EXPLORANDO A ESTRUTURA E AS IMAGENS ALEGÓRICAS DO POEMA

O texto que você leu é um poema épico porque possui personagens, tempo, espaço,

ação e narra, em versos, um fato histórico, ou seja, a trajetória do navio negreiro e os abusos

cometidos contra o negro durante a escravidão no século XIX.

• Você já havia lido algum poema desse tipo? Qual (is)? Comente com a sala.

“O navio negreiro” é também conhecido pelo subtítulo “Tragédia no mar” e apresenta

estrutura composta por seis cantos, por meio dos quais Castro Alves denuncia o tráfico de

escravos.

Utilizando-se de imagens alegóricas, esse poeta romântico toma o partido das vítimas

da narrativa e mostra as marcas do sofrimento do outro, daquele que é silenciado pela história

oficial. Essa alegoria não é uma mera técnica de ilustração através de imagens, mas uma

Frederico de Castro Alves (14/03/1847- 06/07/1871) nasceu em Curralinho, hoje cidade Castro Alves, Bahia. Foi um grande poeta da terceira fase do Romantismo brasileiro. Influenciado pelo poeta francês Victor Hugo, como todos da fase de 1850 a 1870, assumiria uma retórica altaneira, cheia de antíteses e hipérboles, abordando temas sociais e políticos. Mas o hugoanismo, termo tirado do nome do poeta francês, passou a denominação de condoreirismo, devido à sua inspiração tão profunda quanto à altura do vôo do condor, símbolo da América do Sul nos Andes. Castro Alves não foi o primeiro poeta romântico a tratar do tema da escravidão. Antes dele, Gonçalves Dias, Fagundes Varela e outros abordaram a questão. No entanto, nenhum poeta foi mais veemente e engajado à causa social e humanitária do abolicionismo como ele. Na poesia abolicionista, procurou aprofundar as implicações humanas da escravatura adequando a sua eloqüência condoreira à luta abolicionista. Retrata o escravo de modo romanticamente trágico para despertar a sociedade, habituada a três séculos de escravidão, para o que há de mais desumano neste regime. Apresentou-se fecundado por sincera adesão a essa causa social e humanitária, de caráter atual, e deu expansão ao seu talento de orador. Embora tenha apresentado ampla vertente lírica dentro do Romantismo, ressaltamos dele apenas as suas características do espírito reformista, sua fé e sua liberdade criadora, tão presentes na coletânea de “Os escravos” (1883), que reúne, além de O Navio Negreiro e Vozes d’África, outros poemas abolicionistas.

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linguagem e uma escrita do modo como as coisas se configuram no mundo despedaçado.

Vejamos como Castro Alves trabalha com nossa imaginação, nossa sensibilidade, no decorrer

do poema “O navio negreiro”, por meio das atividades a seguir:

• Como esse texto está dividido em seis cantos, vamos organizar os alunos em seis

grupos. Em seguida, os cantos serão transpostos em cartazes e então iremos ao

laboratório de informática, onde os grupos pesquisarão o vocabulário do canto de que

estão de posse e também buscarão mais informações a respeito do poema.

• Concluído este trabalho, os grupos irão ilustrar cada um dos cantos e criar um

subtítulo, demonstrando assim o seu entendimento do texto.

• Para finalizar, todos os grupos farão exposição oral dos desenhos à classe e posterior

socialização dos mesmos no mural da escola.

4.2 TRABALHANDO A LINGUAGEM DO TEXTO

Como vimos, o poema de Castro Alves revela grande força expressiva em razão de sua

plasticidade, criada a partir das fortes imagens e das sugestões de cor, de som e

movimento que envolvem as cenas, por meio de figuras como metáforas, hipérboles,

antíteses, sinestesias, ritmos, rimas, dando a sensação de que estamos vendo cada cena

como se estivéssemos num teatro.

O andamento do poema revela que as marcas deixadas para trás pelas espumas são

tanto expressão da compulsão da força do barco sobre as águas quanto metáforas das marcas

da violência representadas pela escravidão, ainda desconhecida para o leitor no começo do

poema.

É uma poesia retórica, feita para ser declamada e o exagero das imagens é intencional,

deliberado, para reforçar a ideia do poema e levar o leitor à ação, para transformar e não só

para deleitar. Trata-se de uma arte engajada na divulgação das ideias sociais e política.

No início da epopeia, o poeta descreve o mar, a natureza, a força do navio. Em

seguida, faz elogios aos marinheiros e às suas façanhas. Somente a partir do terceiro canto

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ele toma consciência do que está acontecendo e então demonstra sua indignação mediante o

que vê.

• Em que estrofe isso fica evidente? Transcreva os versos que comprovam sua resposta.

• No quarto canto (3ª e 6ª estrofes), as palavras “orquestra” e “serpente” foram

empregadas em sentido metafórico. Sabendo que metáfora é o uso de uma comparação

direta entre termos, por apresentarem estreita relação de sentido, a que se referem

essas expressões?

• Ainda no quarto canto, duas cores são postas em contraste na 1ª e na 2ª estrofes.

Quais são elas e o que representam?

• Além das antíteses (contraste de ideias ou palavras), também foram empregadas

hipérboles no poema. A hipérbole é uma figura de linguagem que se caracteriza pelo

exagero na expressão. Destaque-a nas primeiras estrofes do 4º e 5º cantos.

• De modo geral, é bastante explorada, no poema, a sinestesia,figura de linguagem que

consiste em aproximar sensações percebidas por diferentes órgãos dos

sentidos,representada aqui por meio de palavras ou expressões que sugerem

sonoridade e movimentos. Aponte alguns versos que demonstrem isso.

• Na primeira estrofe do canto V, o poeta utiliza a palavra “borrão” para designar o

navio negreiro. Explique as possíveis conotações para essa palavra.

• Há também, nessa 5ª parte do poema, versos que se relacionam à situação do negro

na sua terra de origem e outros versos que expressam a situação do negro aprisionado.

Localize-os e faça um paralelo entre as duas situações. Em seguida, teça comentários

sobre a atual posição do negro em nossa sociedade, após mais de um século de

libertação.

• No sexto canto, o poeta fala que nossa bandeira, que já foi motivo de orgulho, tornou-

se motivo de vergonha. Por quê?

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• O poema estudado tem uma finalidade política e social evidente. Qual é essa intenção

e de que modo o poeta procura atingir o público e convencê-lo de suas ideias?

4.3 ATIVIDADE PARA PESQUISA, REFLEXÃO E DEBATE

ATENÇÃO!

Para essa etapa deverá ser sugerida uma pesquisa interdisciplinar junto aos

professores de História e Sociologia, abordando os temas discutidos nas questões a seguir.

• O Navio Negreiro foi declamado por Castro Alves em 1868, em São Paulo, dezoito

anos após a promulgação da Lei Eusébio de Queirós (1850), que proibiu o tráfico de

negros no Brasil. Mas pergunta-se: será que ouvimos ou lemos notícia de trabalho

escravo, ainda hoje, no Brasil do século XXI?

• Na época em que Castro Alves escreveu esse poema, que interesses havia para que se

transgredisse a lei e continuasse a prática do tráfico de seres humanos? Quem

representava a parte interessada?

• A impunidade e a “lei dos mais fortes” ainda existem em nosso país. O que podemos

fazer contra esse sistema?

• Após mais de um século de libertação a luta do negro continua, agora não mais pela

abolição, mas pelo fim do preconceito racial e cultural, da desigualdade de

oportunidades, da discriminação racial. A discussão em torno da igualdade de direitos

entre negros e brancos tem se ampliado no país e já chegou à universidade através do

sistema de cotas. O assunto tem causado polêmica, inclusive na comunidade negra. E

você, o que pensa a respeito?

• Vamos assistir ao filme “A lista de Schindler” para concluir essa etapa, fazendo um

paralelo entre o negro escravizado e os judeus que eram levados aos campos de

concentração, na Alemanha, durante a Segunda Guerra Mundial.

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4.4 INTERTEXTUALIDADE

Confira o vídeo da música de Caetano Veloso, com imagens do filme “Amistad”, do

diretor Steven Spielberg, que mostra o transporte de escravos da África para os Estados

Unidos no século XIX.

< http://www.youtube.com/watch?v=fwRu0MOxfRw>. Acesso em: 15 de dez. 2009.

Vale a pena assistir ao filme “Amistad”, para aprofundamento do assunto discutido

aqui.

Agora, para entender melhor a situação de muitos negros na sociedade atual, vamos ler

um pequeno conto de Marcelino Freire.

SOLAR DOS PRÍNCIPES

Quatro negros e uma negra pararam na frente deste prédio. A primeira mensagem do porteiro foi: “Meu Deus!” A segunda: “O que vocês

querem?” ou “Qual o apartamento?” Ou “Por que ainda não consertaram o elevador de serviço?”.

“Estamos fazendo um filme”, respondemos. [...] Filmando? Ladrão é assim quando quer seqüestrar. [...] A gente não só ouve samba. Não só ouve bala. Esse porteiro nem parece preto,

deixando a gente preso do lado de fora. O morro tá lá, aberto 24 horas. A gente dá as boas-vindas de peito aberto. [...]

Começamos a filmar tudo. Alguns moradores posando a cara na sacada. O trânsito que transita. A sirene da polícia. Hã? A sirene da polícia. Todo filme tem sirene de polícia. E tiro. Muito tiro.

Em câmara violenta. Porra, Johnattan pulou o portão de ferro fundido. O porteiro trancou-se no vidro. Assustador. Apareceu gente de todo tipo. E a idéia não era essa. Tivemos que improvisar.

Sem problema, tudo bem. Na edição a gente manda cortar.

Leia o texto na íntegra no livro:

FREIRE, Marcelino. Contos negreiros. 2 ed. Rio de Janeiro: Record, 2008, p. 21-27.

• Reflita sobre o poema de Castro Alves e o conto apresentado. Após, faça uma análise

crítica a respeito da visão que a sociedade apresenta em relação ao negro atualmente.

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5. AMPLIANDO OS HORIZONTES

Agora partiremos para mais uma etapa que irá contribuir para a ampliação do

entendimento referente ao assunto abordado nesta unidade didática.

Observe esta imagem que se encontra disponível em: <http://www.diaadia.pr.gov.br/tvpendrive/modules/mylinks/viewcat.php?cid=4&min=40&orderby=titleA&show=10>.

Agora leia o poema “Morte e vida severina” de João Cabral de Melo Neto.

O RETIRANTE EXPLICA AO LEITOR QUEM É E A QUE VAI

— O meu nome é Severino,

como não tenho outro de pia.

Como há muitos Severinos,

que é santo de romaria,

deram então de me chamar

Severino de Maria;

como há muitos Severinos

com mães chamadas Maria,

fiquei sendo o da Maria

do finado Zacarias.

Mas isso ainda diz pouco:

há muitos na freguesia,

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por causa de um coronel

que se chamou Zacarias

e que foi o mais antigo

senhor desta sesmaria.

Como então dizer quem fala

ora a Vossas Senhorias?

Vejamos: é o Severino

da Maria do Zacarias,

lá da serra da Costela,

limites da Paraíba.

Mas isso ainda diz pouco:

se ao menos mais cinco havia

com nome de Severino

filhos de tantas Marias

mulheres de outros tantos,

já finados, Zacarias,

vivendo na mesma serra

magra e ossuda em que eu vivia.

Somos muitos Severinos

iguais em tudo na vida:

na mesma cabeça grande

que a custo é que se equilibra,

no mesmo ventre crescido

sobre as mesmas pernas finas,

e iguais também porque o sangue

que usamos tem pouca tinta.

E se somos Severinos

iguais em tudo na vida,

morremos de morte igual,

mesma morte severina:

que é a morte de que se morre

de velhice antes dos trinta,

de emboscada antes dos vinte,

de fome um pouco por dia

(de fraqueza e de doença

é que a morte severina

ataca em qualquer idade,

e até gente não nascida).

Somos muitos Severinos

iguais em tudo e na sina:

a de abrandar estas pedras

suando-se muito em cima,

a de tentar despertar

terra sempre mais extinta,

a de querer arrancar

algum roçado da cinza.

Mas, para que me conheçam

melhor Vossas Senhorias

e melhor possam seguir

a história de minha vida,

passo a ser o Severino

que em vossa presença emigra.

[...]

Leia o poema na íntegra no site:

<http://www.nead.unama.br/site/bibdigital/pdf/oliteraria/219.pdf>. Acesso em 10 jun. 2010.

Ou no livro:

MELO NETO, João Cabral de. Morte e vida severina e outros poemas para vozes.4 ed. Rio de Janeiro: Nova

Fronteira, 2000 ( Coleção Venha Ler – SEED/PR).

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Considere as questões que seguem para refletir sobre o texto:

• Que relação de sentido há entre o Quadro de Portinari e o poema de João Cabral de

Melo Neto?

• Como vimos, tanto o quadro quanto o poema apresentados mostram a situação de

miséria do nordestino que foge da seca e da fome, em busca de uma vida melhor. Que

fatores provocam esse tipo de condição de vida e por quê?

• Ao iniciar a narrativa de “Morte e vida severina”, o poeta dá voz ao retirante

Severino, personagem do poema, para que se apresente. Entretanto, ele sente

dificuldade para fazer essa apresentação. Por quê?

• Em busca de uma forma de apresentar-se ao leitor, a personagem constrói um

panorama de sua vida e da situação em que se encontra. O que esse panorama nos

revela?

• A construção do trecho apresentado acima ocorre de forma crescente, isto é, as

características de Severino vão se somando umas às outras para que nós, leitores,

possamos formar uma imagem dele. Esse recurso de linguagem chama-se gradação.

Em sua opinião, por que o poeta utiliza esse recurso?

No trecho:

“Mas, para que me conheçam

melhor Vossas Senhorias

e melhor possam seguir

a história de minha vida,

passo a ser o Severino

que em vossa presença emigra.”

Severino parece finalmente encontrar uma característica que o difere dos demais

Severinos.

• Que característica é essa?

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• Em sua opinião, essa característica o distingue realmente dos demais Severinos?

Justifique sua resposta.

• Para justificar sua condição de vida, o personagem cria um adjetivo a partir de seu

nome. Que adjetivo é esse? O que significa?

• No início do poema, Severino descreve a “morte severina”. Em sua opinião, e também

pensando no sentido do adjetivo severina, a que o poeta pretende dar destaque ao

iniciar o relato da vida de Severino com comentários sobre a morte?

• “Morte e vida severina” é uma obra também conhecida pelo subtítulo “Auto de natal

pernambucano”. Qual a relação desse subtítulo com o nome e assunto do poema?

5.1 AMPLIANDO O CONHECIMENTO SOBRE A ESTRUTURA COMPOSICIONAL

DO TEXTO

Morte e Vida Severina, o texto mais popular de João Cabral de Melo Neto, é um auto

de Natal, que, seguindo a tradição dos autos medievais, faz uso da redondilha maior (versos

sonoros, com sete sílabas poéticas), do ritmo e da musicalidade, recursos de agrado popular.

Escrito entre 1954-55, O auto de Natal “Morte e Vida Severina” possui estrutura

dramática: é uma peça de teatro. Nessa ocasião, Maria Clara Machado, que dirigia o teatro

Tablado, no Rio, pedira que João Cabral escrevesse algo sobre retirantes. O poeta escreveu,

então, um grupo de poemas dramáticos, para "serem lidos em voz alta". A obra possui o

subtítulo Auto de Natal pernambucano e tem inspiração nos autos pastoris medievais ibéricos,

além de espelhar-se na cultura popular nordestina.

Estruturalmente está dividida em 18 partes; no entanto, sua linha narrativa segue dois

movimentos que aparecem no título: "morte" e "vida". No primeiro, temos o trajeto de

Severino, personagem-protagonista, para Recife, em face da opressão econômico-social.

Severino tem a força coletiva de uma personagem típica: representa o retirante nordestino. No

segundo movimento, o da "vida", o autor não coloca a euforia da ressurreição da vida dos

autos tradicionais, ao contrário, o otimismo que aí ocorre é de confiança no homem, em sua

capacidade de resolver os problemas sociais.

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Como vimos, os autos são de origem medieval e representam um nascimento, quase

sempre o de Cristo, geralmente encenado por ocasião das festas de Natal.

Embasados nessa afirmação, agora vamos analisar a obra a partir do nascimento do

menino (13ª parte).

A chegada da criança é recebida pelos vizinhos por meio de oferendas, de acordo com

o que o local lhes proporciona. Também aparecem, nos arredores, duas ciganas que fazem

previsões da sorte do menino.

• A presença dessas duas personagens confere ambientação mística à cena e fazem

lembrar de personagens que participaram da cena do nascimento de Jesus Cristo. Que

personagens são essas e o que há em comum entre o bebê nascido e Cristo?

• Ambas as ciganas fazem previsões quanto ao futuro do bebê. Em que se diferenciam

essas previsões?

• Em que se assemelham?

Antes do nascimento, há uma conversa entre Severino e mestre carpina, em que o

retirante lhe pergunta qual a melhor saída: a de continuar ou “a de saltar numa noite,/fora da

ponte da vida?”. De acordo com o texto:

• Quem acaba respondendo a Severino?

• Qual a resposta dada?

Nos últimos versos, para justificar a importância da vida, mestre carpina diz:

“E não há melhor resposta

Que o espetáculo da vida:

[...]

mesmo quando é uma explosão

como a de há pouco, franzina;

mesmo quando é a explosão

de uma vida severina.”

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Severino é um substantivo próprio, o nome do retirante. Entretanto, nesses versos a

palavra severina é empregada como adjetivo novamente.

• Qual o seu sentido no contexto?

• O texto, no conjunto, faz uma forte crítica social. Mas, pela óptica que ele apresenta,

há esperança?

5.2 PESQUISANDO

• Para saber mais sobre os autos medievais, faremos uma pesquisa na internet e cada

grupo escolherá um auto para ler e comentar na sala de aula.

Os grupos deverão fazer também uma pesquisa sobre o escritor João Cabral de Melo

Neto, observando os seguintes aspectos:

• a época em que escreveu;

• influências que recebeu;

• estilo literário.

5.3 PROPONDO ATIVIDADE ESCRITA

A explosão de mais “uma vida severina” parece dar continuidade a essa corrente de

severinos. Eles não estão somente no sertão do Nordeste, estão em todo o país, lutando contra

a “morte em vida”.

• Mas afinal, quem são os severinos deste país?

• Quais são as consequências da miséria e de todas as formas de exclusão social a que

temos presenciado?

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Para responder a essas questões você irá elaborar um texto, por meio do qual poderá

expor sua opinião a respeito dos questionamentos, ou seja, você irá escrever um artigo de

opinião.

Até aqui, você seguiu por um caminho de muitas leituras, reflexões e ponderações

intertextuais. Cada autor propôs, à sua maneira, uma forma de enxergar, expor ou denunciar a

exclusão social. Todas essas informações contribuíram para ampliação de seus horizontes e

você, com certeza, já possui seu próprio ponto de vista, ideias peculiares sobre o assunto

estudado.

Por isso, é chegado o momento de você expor sua opinião a respeito do que foi

discutido nessa trajetória. Mas antes disso, iremos pesquisar o que é um “artigo de opinião” e

descobrir como ele pode ser desenvolvido. Concluída essa pesquisa, faremos uma atividade

de produção textual em que você desenvolverá um texto, abordando inicialmente a questão da

exclusão social e, desenvolvendo, a seguir, argumentos para sustentar suas considerações e

pontos de vista a respeito das formas como se dá a exclusão e quais suas consequências.

Ao concluir seu texto, não se esqueça de criar um título que seja coerente com o

assunto discutido.

5.4 TRABALHANDO A DRAMATIZAÇÃO

• Formação de grupos para dinamizar o trabalho.

• Resumo da obra “Morte e vida severina” para uma breve apresentação teatral.

• Seleção do elenco e equipe de apoio.

• Ensaios.

• Apresentação na escola.

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SUGESTÕES DE LEITURA

Como o método proposto evolui em espiral, sempre dando origem a um novo ciclo,

apontamos, a seguir, algumas leituras que permitirão a sequência desse trabalho com

textos literários que explorem a temática social e estabeleçam relação entre Literatura e

vida prática.

• Os miseráveis – Vitor Hugo

• Capitães da areia – Jorge Amado

• Ponciá Vicêncio – Conceição Evaristo

• Vidas secas – Graciliano Ramos

• Auto da Compadecida – Ariano Suassuna.

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