da orogenia varisca à alpina: exploração cientifico ... · n100ºe, e uma extensão de cerca de...

4
829 Da Orogenia Varisca à Alpina: exploração cientifico-didáctica num corte de estrada From Variscan to Alpine orogeny: scientific and didactic study in a road cut Ferreira, P. [1], Ribeiro, M. A. [2], Vasconcelos, C. [2]. [1] Escola Secundária José Régio – Vila do Conde. [2] GIMEF - Departamento de Geologia da FCUP, Centro de Geologia da Universidade do Porto [email protected] ; [email protected] ; [email protected] SUMÁRIO A realização de actividades de campo, envolvendo a observação e análise em contexto real de aspectos geológicos, é uma estratégia facilitadora da compreensão de conceitos que requerem algum nível de abstracção. Propõe-se uma actividade de campo, num corte de estrada com características geológicas de rentabilização didáctica relevante no que se refere à evolução geológica da região, desde o Varisco ao Alpino recente, envolvendo análise de relações geométricas e cronológicas entre diferentes litologias e estruturas. Palavras- chave: Trabalho de Campo, Didáctica da Geologia, Orogenia Varisca, Tectónica Alpina. SUMMARY The accomplishment of field trips, involving the observation and analysis of geological aspects in real context, is a helpful strategy for the understanding of concepts that require some level of abstraction. A field trip in one road cut with excellent geological and didactics characteristic is considered. The cut road allows the study of the geological evolution of the region, since the Variscan to the recent Alpine. The activity involves analysis of geometric and chronological relations between different rocks and structures. Words key: Field Work; Geology, Didactic, Variscan Orogeny, Alpine Tectonic Introdução O trabalho de campo, apesar das dificuldades sentidas pelos professores na sua operacionalização, é considerado como uma estratégia fundamental no ensino das Geociências. Neste trabalho apresenta-se uma proposta para realização de uma actividade de campo, com alunos do Ensino Secundário, como estratégia facilitadora da (re)organização cognitiva auxiliada pela observação “in situ” de aspectos geológicos considerados cientifico-didacticamente relevantes. Em concreto, esta actividade motivadora será facilitadora da compreensão da dinâmica da litosfera desde há milhões de anos, envolvendo os alunos na "leitura" dessas marcas nas rochas aflorantes num pequeno corte de estrada. As litologias presentes e as respectivas relações geométricas e estruturais permitem uma abordagem a contéudos que realçam a história geológica de uma área, envolvendo litologias ígneas e metamórficas resultantes da Orogenia Varisca e evidências a movimentos tectónicos recentes de carácter inverso, que sobrepõem as rochas variscas a depósitos do “Quaternário”. O afloramento seleccionado apresenta características que o tornam particularmente favorável à abordagem do tema II do conteúdo programático para a disciplina de Geologia do 12º ano, cuja questão problema é: “Qual a história geológica da região onde a escola se insere”. Esta actividade de campo facilitará a compreensão, por parte dos alunos, de conceitos geológicos que requerem algum grau de abstracção, nomeadamente os relacionados com os princípios de datação relativa e o significado das descontinuidades

Upload: buidang

Post on 27-Jan-2019

218 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Da Orogenia Varisca à Alpina: exploração cientifico ... · N100ºE, e uma extensão de cerca de 30m, correspondendo ao talude norte da estrada. Fig. 1: ... têm como suporte conceitos

829

Da Orogenia Varisca à Alpina: exploração cientifico-didáctica num corte de estrada

From Variscan to Alpine orogeny: scientific and didactic study in a road cut

Ferreira, P. [1], Ribeiro, M. A. [2], Vasconcelos, C. [2].

[1] Escola Secundária José Régio – Vila do Conde.

[2] GIMEF - Departamento de Geologia da FCUP, Centro de Geologia da Universidade do Porto [email protected]; [email protected]; [email protected]

SUMÁRIO A realização de actividades de campo, envolvendo a observação e análise em contexto real de aspectos geológicos, é uma estratégia facilitadora da compreensão de conceitos que requerem algum nível de abstracção. Propõe-se uma actividade de campo, num corte de estrada com características geológicas de rentabilização didáctica relevante no que se refere à evolução geológica da região, desde o Varisco ao Alpino recente, envolvendo análise de relações geométricas e cronológicas entre diferentes litologias e estruturas.

Palavras- chave: Trabalho de Campo, Didáctica da Geologia, Orogenia Varisca, Tectónica Alpina.

SUMMARY The accomplishment of field trips, involving the observation and analysis of geological aspects in real context, is a helpful strategy for the understanding of concepts that require some level of abstraction. A field trip in one road cut with excellent geological and didactics characteristic is considered. The cut road allows the study of the geological evolution of the region, since the Variscan to the recent Alpine. The activity involves analysis of geometric and chronological relations between different rocks and structures.

Words key: Field Work; Geology, Didactic, Variscan Orogeny, Alpine Tectonic

Introdução O trabalho de campo, apesar das dificuldades sentidas pelos professores na sua operacionalização, é considerado como uma estratégia fundamental no ensino das Geociências. Neste trabalho apresenta-se uma proposta para realização de uma actividade de campo, com alunos do Ensino Secundário, como estratégia facilitadora da (re)organização cognitiva auxiliada pela observação “in situ” de aspectos geológicos considerados cientifico-didacticamente relevantes. Em concreto, esta actividade motivadora será facilitadora da compreensão da dinâmica da litosfera desde há milhões de anos, envolvendo os alunos na "leitura" dessas marcas nas rochas aflorantes num pequeno corte de estrada. As litologias presentes e as respectivas relações

geométricas e estruturais permitem uma abordagem a contéudos que realçam a história geológica de uma área, envolvendo litologias ígneas e metamórficas resultantes da Orogenia Varisca e evidências a movimentos tectónicos recentes de carácter inverso, que sobrepõem as rochas variscas a depósitos do “Quaternário”. O afloramento seleccionado apresenta características que o tornam particularmente favorável à abordagem do tema II do conteúdo programático para a disciplina de Geologia do 12º ano, cuja questão problema é: “Qual a história geológica da região onde a escola se insere”. Esta actividade de campo facilitará a compreensão, por parte dos alunos, de conceitos geológicos que requerem algum grau de abstracção, nomeadamente os relacionados com os princípios de datação relativa e o significado das descontinuidades

Page 2: Da Orogenia Varisca à Alpina: exploração cientifico ... · N100ºE, e uma extensão de cerca de 30m, correspondendo ao talude norte da estrada. Fig. 1: ... têm como suporte conceitos

830

litoestratigráficas. O tipo de unidades litológicas presentes e as estruturas, quer as resultantes da Orogenia Varisca, quer as resultantes de deformações recentes de idade alpina, ajudarão na compreensão da história geológica da região. Os aspectos geológicos evidenciados no corte de estrada poderão, também, ser utilizados na realização de actividades enquadradas no programa da disciplina de Biologia/Geologia do 11º ano, nomeadamente no que se relaciona com os princípios da datação relativa das rochas e com a geometria e os mecanismos de deformação das mesmas. Localização e enquadramento geológico O corte de estrada localiza-se no concelho de Vila do Conde, a cerca de 7 km a sudeste desta cidade, numa estrada municipal, no lugar de Joudina, correspondendo ao ponto de coordenadas M -526,525; P - 4573,625, na carta topográfica, 1/25000, nº 97, Trofa] (Fig. 1). O corte tem direcção N100ºE, e uma extensão de cerca de 30m, correspondendo ao talude norte da estrada.

Fig. 1: Localização geográfica (Carta Topográfica, escala 1/25 000, nº 97, Trofa). Em termos de enquadramento geológico o referido corte fica englobado na Carta Geológica de Portugal, escala 1:50 000, folha 9-A (Póvoa de Varzim), [1] e na Carta Geológica de Portugal, escala 1:200 000 folha 1 [2]. A descrição geológica constante das respectivas notícias explicativas [3][4], engloba esta região na Zona Centro Ibérica (ZCI). As litologias mais representadas na região em estudo são as rochas graníticas variscas e as rochas metamórficas pelíticas (micaxistos) encaixantes destas massas graníticas. Os contactos entre estas duas litologias são em geral concordantes e marcados por faixas mais ou menos extensas onde se verifica mistura das duas litologias por intercalação mútua de veios e lentículas. Estas litologias foram designadas por “Complexo xisto-granítico-migmatítico” (Xyz), e

consideradas como pertencentes ao “Complexo xisto-grauváquico, ante-ordovícico" [3]. Na região em estudo, para além destas litologias, estruturadas e geradas no decurso da Orogenia Varisca, ocorrem apenas depósitos conglomeráticos do Neogénico recente. Ou seja, há uma descontinuidade estratigráfica que engloba a lacuna de sedimentos desde o Carbonífero ao “Quaternário” [4]. O contacto entre os depósitos conglomeráticos e as rochas variscas (granitos e micaxistos) é, na maioria dos locais um contacto erosivo, mas localmente é um contacto tectónico por falha inversa. Estas falhas inversas associadas a actividade tectónica recente (Neotectónica) e com orientação ENE-WSW, afectam o NW de Portugal (Fig. 2).

Fig. 2: Localização e contextualização da região em termos de estruturas de tectónica recente [5]. Descrição geológica do corte Na parte mais ocidental do corte é possível observar uma falha com uma atitude de N060º; 45ºNW (Figs. 3 e 4). O bloco superior ou bloco de tecto da falha é constituído por granito de grão fino, medianamente alterado, essencialmente moscovítico. No bloco inferior ou bloco a muro da falha encontra-se um depósito conglomerático de matriz suportada, com matriz arenosa fina, amarelada com pequenas palhetas de moscovite. Os clastos são essencialmente quartzosos com elevado grau de arredondamento e considerável esfericidade (existem alguns clastos alongados, mas bem rolados). Este depósito sedimentar corresponde a um terraço fluvial (50 a 60 m) [1] com razoável coesão devido à cimentação ferruginosa. Não apresenta estruturação interna evidente, nomeadamente estratificação planar ou lenticular. Os clastos de maior dimensão têm cerca dois centímetros e verifica-se fraca calibração entre esta dimensão e a dimensão da matriz. A fracção clástica mais abundante tem

M - 526

M - 527

P -4574

P -4573

Localização do corte

Page 3: Da Orogenia Varisca à Alpina: exploração cientifico ... · N100ºE, e uma extensão de cerca de 30m, correspondendo ao talude norte da estrada. Fig. 1: ... têm como suporte conceitos

831

dimensão entre 0,5 a 1 cm. No contacto por falha ocorre alguma brechificação com mistura dos dois materiais em contacto (granito e conglomerado). Fig. 3: Esboço geológico do corte de estrada, evidenciando as litologias e estruturas.

Fig.4: Aspecto da falha inversa do sector ocidental do corte, resultanto na sobreposição do granito (bloco superior da falha) aos depósito conglomeráticos (bloco inferior da falha).

Os critérios para a interpretação do tipo de falha são, em primeira ordem, de natureza litológica. Trata-se de uma falha com um bloco superior de composição granítica e com um bloco inferior de composição conglomerática com pouca coesão. A posição relativa destas duas litologias resultou, necessariamente, de um movimento de subida do bloco superior da falha. Sendo o granito uma rocha magmática plutónica gerada no processo orogénico varisco e o depósito conglomerático uma rocha sedimentar de idade muito mais recente (Neogénico recente ou “Quaternário”) a sua posição relativa indica-nos um movimento inverso ou de cavalgamento no plano de falha - falha inversa. Através deste acidente tectónico é possível concluir, ainda, tratar-se de um movimento resultante da

actuação de forças compressivas de actividade recente, isto é, pós-deposição do conglomerado quaternário. [1] Cerca de 5m mais para Este o substrato do terraço é composto por xisto, com xistosidade N150º; 80ºE, que macroscopicamente se identifica como de micaxisto, com lentículas pegmatíticas e quartzosas paralelas à foliação. Ao longo do afloramento, no sentido W-E, ocorrem micaxistos com granitos intercalados, com diaclasamento N035º; 55ºNW anterior à deposição do terraço porque não o afecta. Seguindo o sentido anteriormente referido, a cerca de 15m, aparece um granito de duas micas de grão médio a grosseiro, com lentículas pegmatíticas centimétricas, apresentando um sistema de diaclasamento N165º; 50ºSW. No interior da massa granítica existem lentículas de micaxisto que mantêm a orientação da foliação: N140º; 80ºNE. Poucos metros mais para oriente a mistura de níveis mais ou menos lenticulares (centimétricos) de rochas com composição e textura granítica com rochas micaxísticas, de modo concordante, permite caracterizar esta litologia como rochas migmatíticas, com foliação N125º; vertical. Junto ao portão que marca o fim do afloramento surge um granito discordante com a foliação dos micaxistos, possibilitando uma relação cronológica entre as duas unidades litológicas. Também, neste local é possível observar uma superfície topográfica antiga (paleorelevo) em que o granito é recoberto pelo terraço, através de uma superfície irregular, e ainda o terraço a recobrir os micaxistos numa clara discordância angular. Objectivos e recomendações didácticas do TC Objectivos específicos e competências No âmbito do presente estudo, para a realização do trabalho de campo proposto, foram estabelecidos os seguintes objectivos específicos: - Reconhecer uma superfície topográfica antiga (paleorelevo). - Observar e descrever os contactos do terraço em dois pontos diferentes. - Caracterizar a falha em termos de atitude e de movimento relativo dos dois blocos. Em termos de competências a desenvolver, o trabalho de campo ambicionou a adopção de metodologias personalizadas de trabalho e de aprendizagens adequadas aos objectivos visados, assim como realizar actividades de forma autónoma e responsável. Sendo estas competências gerais a alcançar no final da educação básica, e dirigindo-se a actividade proposta para o ensino secundário, foi ainda pretensão deste trabalho de campo: (i) desenvolver a manifestação de curiosidade e criatividade na formulação de problemas e

N 100º E

Falha N 060º; 45NW

Granito

Depósito conglomerático

N100E

Talude norte

Page 4: Da Orogenia Varisca à Alpina: exploração cientifico ... · N100ºE, e uma extensão de cerca de 30m, correspondendo ao talude norte da estrada. Fig. 1: ... têm como suporte conceitos

832

hipóteses; (ii) apreciar a importância da Geologia na melhoria da gestão ambiental. Recomendações didácticas As recomendações didácticas, inerentes ao trabalho de campo proposto, têm como suporte conceitos de geologia e critérios de campo. Assim, recomenda-se que sejam observados no campo: - as características geológicas que permitem a classificação das falhas como normais e inversas; - os aspectos que permitem a identificação da discordância e a sua classificação; - aspectos de cronologia relativa que auxiliem os alunos na compreensão da sequência dos eventos que ocorreram desde a deposição dos materiais mais antigos até à situação actual observada. Actividade A actividade que a seguir se apresenta foi elaborada de uma forma orientada, no sentido de auxiliar os alunos na realização de determinadas observações que lhes permitam a (re)organização conceptual de conceitos/processos geológicos, partindo de dados concretos. Tal caminho contribuirá para a elaboração de conceitos mais abstractos, que requerem observação no afloramento, interpretação e relacionamento. Fig. 5 – Esquema interpretativo do corte de estrada. Observe o corte esquemático apresentado na figura 5 e responda: 1) Indique o tipo de falha, justificando a classificação atribuída. 2) Localize a discordância da figura, classifique-a e explique a sua formação. 3) Ordene cronologicamente os diferentes tipos litológicos que o corte apresenta, bem como a falha e a discordância.

Referências Bibliográficas [1] Carta Geológica de Portugal, escala 1:50 000, folha 9-A (Póvoa de Varzim). Serv. Geol. Portugal, 1965. [2] Carta Geológica de Portugal, escala 1:200 000, folha 1. Serviços Geológicos de Portugal, 1992. [3] Teixeira, C., Medeiros, A.C. & Assunção, C.T., 1965. Carta Geológica de Portugal na escala 1/50 000. Notícia

Explicativa da folha 9-A (Póvoa do Varzim). Serv. Geol. Portugal, Lisboa, 50p. [4] Pereira, E. (coord), Cabral, M., Cramez, P., Moreira, A., Noronha, F., Oliveira, J.M.S., Farinha Ramos, J.M., Reis, M.L., Ribeiro, A., Ribeiro. M.L. & Simões, M, 1992. Carta Geológica de Portugal, escala 1/200 000. Notícia Explicativa da folha 1. Serv. Geol. Portugal, Lisboa, 83p. [5] J. Álvarez, B Andeweg, P.M. Andriessen, F. Beekman, E Burov, A. Carbó, A. Casas, S. Cloetingh, G. De Vicente, F.J. Elorza, D. Garcia-Castellanos, J. Giner, J.M. González-Casado, J. Guimerà, N. Heredia, S. Martín-Velázquez, J. Morales, A. Muñoz-Martín, A. Oláiz, L.R. Rodríguez-Fernández, J.L. Simón, D. Stich, R. Vegas y J.A. Vera., 2005. Estrutura alpina del antepaís Ibérico . In: J.A. Vera Eds, Geologia de España, SGE IGME.