da semente da maçã ao silêncio da estrela. o percurso do narrar e da linguagem na obra de clarice...

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1 UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS (MESTRADO E DOUTORADO) DIEGO LUIZ MIILLER FASCINA DA SEMENTE DA MAÇÃ AO SILÊNCIO DA ESTRELA: O PERCURSO DO NARRAR E DA LINGUAGEM NA OBRA DE CLARICE LISPECTOR MARINGÁ 2013

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A maça do escuro; A hora da estrela; Clarice Lispector; Dissertação

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  • 1

    UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARING

    CENTRO DE CINCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS

    (MESTRADO E DOUTORADO)

    DIEGO LUIZ MIILLER FASCINA

    DA SEMENTE DA MA AO SILNCIO DA ESTRELA:

    O PERCURSO DO NARRAR E DA LINGUAGEM NA OBRA DE

    CLARICE LISPECTOR

    MARING

    2013

  • 2

    DIEGO LUIZ MIILLER FASCINA

    DA SEMENTE DA MA AO SILNCIO DA ESTRELA:

    O PERCURSO DO NARRAR E DA LINGUAGEM NA OBRA DE

    CLARICE LISPECTOR

    Dissertao apresentada ao programa de Ps-

    Graduao em Letras (Mestrado e Doutorado),

    da Universidade Estadual de Maring, como

    requisito parcial para obteno do ttulo de

    Mestre em Letras, rea de concentrao:

    Estudos Literrios.

    Orientadora: Prof. Dr. Marisa Corra Silva

    MARING

    2013

  • 3

    DIEGO LUIZ MIILLER FASCINA

    DA SEMENTE DA MA AO SILNCIO DA ESTRELA:

    O PERCURSO DO NARRAR E DA LINGUAGEM NA OBRA DE

    CLARICE LISPECTOR

    Dissertao apresentada ao programa de Ps-

    Graduao em Letras da Universidade

    Estadual de Maring, como requisito parcial

    para a obteno do ttulo de Mestre em Letras,

    rea de concentrao: Estudos Literrios.

    Aprovado em

    BANCA EXAMINADORA

    ________________________________________________________________

    Prof. Dr. Marisa Corra Silva

    Universidade Estadual de Maring UEM - Presidente -

    ________________________________________________________________

    Prof. Dr. Evely Vnia Libanori

    Universidade Estadual de Maring UEM

    ________________________________________________________________

    Prof. Dr. Maria de Lourdes Zizi Trevizan Perez

    Universidade do Oeste Paulista UNOESTE/So Paulo - SP

  • 4

    Acho com alegria que ainda no chegou a hora de estrela de cinema de

    Macaba morrer. Pelo menos ainda no consigo adivinhar se lhe acontece o

    homem louro e estrangeiro. Rezem por ela e que todos interrompam o que

    esto fazendo para soprar-lhe vida, pois Macaba est por enquanto solta no

    acaso como a porta balanando ao vento no infinito. Eu poderia resolver pelo

    caminho mais fcil, matar a menina-infante, mas quero o pior: a vida. Os que

    me lerem, assim, levem um soco no estmago para ver se bom. A vida um

    soco no estmago.

    (Clarice Lispector in A hora da Estrela)

    Dedico este trabalho a todos aqueles, que assim como eu,

    levam socos no estmago ao ler Clarice Lispector.

  • 5

    MEUS SINCEROS AGRADECIMENTOS A VOCS:

    Banca:

    Prof. Dr. Marisa Corra Silva,

    pela orientao segura, pela amizade sincera, por confiar em meu trabalho e por ter me

    apresentado o materialismo lacaniano;

    Prof. Dr. Evely Vnia Libanori,

    pela amizade, pela fundamental colaborao para a realizao desta pesquisa e por me

    guiar pacientemente pela fico de Clarice Lispector;

    Prof. Dr. Lcia Helena,

    pelas contribuies no exame de qualificao que enriqueceram esta dissertao;

    Prof. Dr. Zizi Trevizan,

    pela simpatia em aceitar prontamente nosso convite para compor a banca de defesa.

    Aos professores do DLE/PLE UEM, que contriburam diretamente para minha formao.

    Meus pais:

    Jane Maria Miiller e Sidinei Fascina, as sementes da ma,

    e a toda minha famlia, por todo amor, pacincia e dedicao.

    Ariane Fabreti e Thays Pretti, colegas de orientao, e

    Beatriz Godoy, Elerson Cestaro, Kellen Wiginescki,

    e tambm a toda turma do Mestrado/Doutorado em Estudos Literrios de 2011,

    pelos estudos, churrascos, cafs e pela amizade que perdurar;

    Renata Taroco, Marcela Greco e Patrcia Bastos,

    pelas frutferas discusses, esclarecimento de dvidas e emprstimo de livros;

    Fabrcio de Aguiar, Hlio Moblio, Thiago Chab e Cristiane Santos, irmos que a graduao me trouxe;

    Marcela Batalini, Sharlene Davantel Valarini, Thays Pretti e Wilma Coqueiro,

    pela leitura crtica e pelos apontamentos;

    Fernanda Cassim e Thays Pretti,

    pela reviso ortogrfica e formatao;

    Sem citar nomes, a todos os meus amigos,

    que no se envolveram diretamente com este estudo,

    mas que respeitaram meu sumio e torceram por mim;

    e um agradecimento especial minha chefe:

    Maria Angela Martins Molina Silvestre,

    por ter assumido o papel de segunda me neste percurso, respeitando minha necessria

    ausncia no trabalho e apoiando minha carreira acadmica.

  • 6

    No entanto, fui preparada para ser dada luz de um modo to bonito. Minha me j estava doente e, por uma superstio bastante espalhada, acreditava-se

    que ter um filho curava uma mulher de uma doena. Ento fui

    deliberadamente criada: com amor e esperana. S que no curei minha me.

    E sinto at hoje essa carga de culpa: fizeram-me para uma misso

    determinada e eu falhei. Como se contassem comigo nas trincheiras de uma

    guerra e eu tivesse desertado. Sei que meus pais me perdoaram eu ter nascido

    em vo e t-los trado na grande esperana. Mas eu, eu no me perdoo.

    Quereria que simplesmente se tivesse feito um milagre: eu nascer e curar

    minha me. Ento, sim: eu teria pertencido a meu pai e a minha me. Eu nem

    podia confiar a algum essa espcie de solido de no pertencer porque,

    como desertor, eu tinha o segredo da fuga que, por vergonha, no podia ter

    conhecido. A vida me fez de vez em quando pertencer, como se fosse para

    me dar a medida do que eu perco no pertencendo. E ento eu soube:

    pertencer viver. Experimentei-o com a sede de quem est no deserto e bebe

    sfrego os ltimos goles de gua de um cantil. E depois a sede volta e no

    deserto mesmo que caminho.

    (Clarice Lispector in A descoberta do mundo)

    Voc tem descortinado muito ultimamente, meu filho? - Tenho pai, disse contrafeito com a intruso de intimidade, toda vez que o

    pai quisera compreend-lo, deixara-o constrangido. - Como vo suas relaes sexuais, meu filho?

    - Muito bem, respondeu com vontade de mandar o pai para o inferno de onde

    tirara.

    (Clarice Lispector in A ma no escuro)

    A palavra o meu domnio sobre o mundo

    (Clarice Lispector in Perto do corao selvagem)

    E eis que percebo que quero para mim o substrato vibrante da palavra repetida em canto gregoriano. Estou consciente de que tudo o que sei no

    posso dizer, s sei pintando ou pronunciando, slabas cegas de sentido. E se

    tenho aqui que usar-te palavras, elas tm que fazer um sentido quase que s

    corpreo, estou em luta com a vibrao ltima.

    (Clarice Lispector in gua viva)

  • 7

    Era uma ma vermelha, de casca lisa e resistente. Pegou a ma com as duas mos: era fresca e pesada. Colocou-a de novo sobre a mesa para v-la

    como antes. E era como se visse a fotografia de uma ma no espao vazio.

    Depois de examin-la, de revir-la, de ver como nunca vira a sua redondez e

    sua cor escarlate ento devagar, deu-lhe uma mordida. E, oh Deus, como se fosse a ma proibida do paraso, mas que ela agora j

    conhecesse o bem, e no s o mal como antes. Ao contrrio de Eva, ao

    morder a ma entrava no paraso.

    S deu uma mordida e depositou a ma na mesa. Porque alguma coisa

    desconhecida estava suavemente acontecendo. Era o comeo de um estado de graa.

    S quem j tivesse estado em graa, poderia reconhecer o que ela sentia. No

    se tratava de uma inspirao, que era uma graa especial que tantas vezes

    acontecia aos que lidavam com arte.

    O estado de graa em que estava no era usado para nada.

    (Clarice Lispector in Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres)

  • 8

    RESUMO

    A proposta desta dissertao lanar um olhar sobre a fico de Clarice Lispector aps

    a publicao de seu quarto romance, A ma no escuro, de 1961. Utilizaremos as

    contribuies do materialismo lacaniano, do qual um dos maiores representantes o

    filsofo esloveno Slavoj iek, para apontar que a posio dos narradores clariceanos

    parte do tom monocntrico descrito por Benedito Nunes (1995), para assumir, em A

    ma no escuro, um tom crescentemente obsessivo que culminar em A hora da estrela.

    Essa obsesso, que no se restringe apenas figura do narrador, verificada na estrutura

    romanesca e na disposio da malha literria. Intencionamos, ainda, propor a

    visualizao do amadurecimento da escritura da autora: a partir de A ma no escuro,

    sua fico se aproxima gradativamente do Discurso da Histrica, uma das modalidades

    dos Quatro Discursos lacanianos. Esse romance lana o piloto de uma linguagem que

    atingir seu ponto culminante em A paixo segundo G.H., e que assumir tom radical

    com a publicao de gua viva.

    Palavras-chave: Clarice Lispector, crtica literria, materialismo lacaniano, Slavoj

    iek.

  • 9

    ABSTRACT

    The objective of this dissertation is to analyze Clarice Lispectors fiction published after

    her fourth novel A ma no escuro (The apple in the dark) in 1961. According to

    lacanian materialism, whose greatest name is Slovenian philosopher Slavoj iek, it

    might be concluded that the position of Lispectorian narrators goes from the

    monocentric tone, as described by Benedito Nunes (1995), to an increasingly obsessive

    tone in A ma no escuro (The apple in the dark), a process that reaches its climax in A

    hora da estrela (The hour of the star). This obsession, which is not restricted to the

    narrator, can be found trough the novels structure and in the literary plot. ieks

    theory is also used in order to analyze a development in the authors writing: starting in

    A ma no escuro (The apple in the dark), Lispectorian fiction can be read through the

    Discourse of the Hysteric, one of the Four Lacanian Discourses. This novel launches the

    first model of a language which will achieve its most acclaimed level in A paixo

    segundo G.H. (The passion according to G.H.) and its most radical aspect in gua Viva

    (The stream of Life).

    Keywords: Clarice Lispector, lacaniam materialism, Slavoj iek, literary criticism.

  • 10

    SUMRIO

    CAPTULO PRIMEIRO: TEMPO DE CLARICE LISPECTOR

    1.1. "................................................................................................................................ 12

    1.2. Os modernistas de 1945 ........................................................................................... 17

    1.3. No fcil ler A ma no escuro ............................................................................. 19

    CAPTULO SEGUNDO: O MATERIALISMO LACANIANO DE SLAVOJ

    IEK: A RENOVAO DO PENSAMENTO DA ESQUERDA

    2.1. Traos biogrficos de iek .................................................................................... 25

    2.2. O que materialismo lacaniano............................................................................... 27

    2.3. Materialismo lacaniano e Literatura ........................................................................ 31

    2.4. Conceitos bsicos de Jacques Lacan relidos por iek e as possibilidades de

    aplicao na literatura de Clarice Lispector ...................................................... .............34

    CAPTULO TERCEIRO : AS LACUNAS DA REALIDADE

    3.1. A fuga do Real traumtico em A ma no escuro....................................................45

    CAPTULO QUARTO: A OBSESSO AO NARRAR

    4.1. O narrador no romance moderno ............................................................................. 59

    4.2. Perto do corao selvagem e O lustre: As narrativas monocntricas.....................62

    4.3. Uma exceo regra: O narrador de A Cidade Sitiada............................................68

    4.4. A Ma no Escuro: Do narrador estrutura romanesca...........................................69

    4.4.1. Um encontro: O homem dos ratos, de Freud e O mito individual do neurtico, de

    Lacan...............................................................................................................................71

    4.4.2. O narrar obsessivo e as marcas dessa obsesso.....................................................76

  • 11

    4.5. A estrutura compulsiva em A quinta histria e em O ovo e a galinha................... 88

    4.6. As trs narrativas sufocando Macaba: A obsesso em A hora da estrela ............. 93

    CAPTULO QUINTO: A HISTERICIZAO DA LINGUAGEM

    5.1. Do risco ao rabisco: A escrita revolucionria de Clarice Lispector......................104

    5.2. O Discurso da histrica..........................................................................................108

    5.3. A Ma no escuro ou O grande pulo.....................................................................112

    5.4. A paixo segundo G.H. : Cristalizaes de um discurso histrico........................119

    5.5. gua viva: A escrita vertiginosa de um objeto gritante:.........................................128

    CONSIDERAES FINAIS......................................................................................136

    REFERNCIAS ......................................................................................................... 143

  • 12

    CAPTULO PRIMEIRO

    TEMPO DE CLARICE LISPECTOR

    1.1.

    bom, agora eu morri. Vamos ver se eu renaso de novo. Por enquanto eu estou

    morta. Estou falando do meu tmulo1, dizia Clarice Lispector no incio de 1977 ao

    jornalista Alex Lerner. Na poca, a autora havia terminado de escrever A hora da

    estrela e sua dificuldade em lidar com o perodo hiato que compreendia o findar de uma

    obra e o nascimento de outra era uma preocupao constante e facilmente perceptvel

    em suas falas. Dizia ficar oca, como se vegetasse, ansiosa para preencher as lacunas

    causadas pela publicao de um texto, embora o esvaziamento das ideias fosse visto

    como fundamental para que outras comeassem a se formar.

    Na mesma oportunidade, o jornalista questiona se ela se considerava uma

    escritora popular. A resposta no poderia ser mais sintomtica: U, me chamam at de

    hermtica. Como que eu posso ser popular sendo hermtica? E complementa: Eu me

    compreendo, de modo que eu no sou hermtica para mim 2.

    Fumando sem parar e s vezes esboando um ar cansado que sugeria distncia,

    ainda na mesma entrevista, a autora confunde os espectadores, reforando a imagem de

    mistrio intocvel que ronda sua obra: em um lance afirma que no entendia o rtulo de

    hermtica atribudo a ela, uma vez que julgava escrever muito simples e sem enfeites,

    1 LISPECTOR, Clarice. Encontros. Organizao de Evelyn Rocha; [apresentao] Benjamin Moser. Rio

    de Janeiro: Beco do Azougue, 2011, p.185.

    2 Ibidem, p.178

  • 13

    ao passo que, momentos depois, dispara que um de seus contos, O ovo e a galinha, se

    fazia incompreensvel para ela mesma.

    De qualquer maneira, no se consegue classificar o inclassificvel. Yudith

    Rosenbaum (2002, p.08) diz que a obra da autora vista at hoje como uma

    experincia, no limite, indecifrvel, seja para seu pblico cativo, seja para os que dela se

    aproximam pela primeira vez. Tentar mensurar sua importncia, no apenas como

    escritora que, a seu modo, renovou as letras brasileiras, mas tambm como influncia de

    parte significativa do que encontraramos mais tarde em nosso plano literrio intil.

    Por mais estudos que sejam arrolados, sempre ficar muito por dizer; literatura

    novidade que se mantm novidade, disse Ezra Pound (2006, p.33).

    No caso de Lispector, a inovao operada ao organizar a estrutura de uma

    narrativa descontnua, que obriga a uma reflexo sobre a linguagem literria e seus

    mecanismos de representao da realidade, provoca em muitos uma reao pouco

    positiva, tamanha a novidade que sua obra mantm.

    Isso se d porque refletir a respeito deste tecido complexo, a densa corporeidade

    da qual feita o seu discurso, tem seu ato de criao finalizado na leitura. Em outras

    palavras, a escritura de quem afirma estou tentando escrever-te com o corpo todo

    (LISPECTOR, 1994, p.11) s pode ser lida por aqueles que sabem que a aproximao

    do que quer que seja se faz gradualmente e penosamente atravessando inclusive o

    oposto daquilo que se vai encontrar (LISPECTOR, 1998, p.5).

    A vontade da autora em renascer aps A hora da estrela no se concretizou.

    Nessa mesma poca, estaria ela organizando Um sopro de vida, que viria a ser

    publicado postumamente, tendo o fechamento organizado pela companheira Olga

    Borelli, que disse as seguintes palavras na apresentao da obra: Iniciado em 1974 e

    concludo em 1977, s vsperas de sua morte, este livro de criao difcil, foi, no dizer

  • 14

    de Clarice, escrito em agonia, pois nasceu de um impulso doloroso que ela no pode

    deter (BORELLI, 1978, s/p). Clarice faleceu no final de 1977, de um cncer brutal que,

    sem maiores alardes, impediu que ela conclusse sua ento derradeira obra.

    A tarefa de renascer Clarice cabe, ento, a ns, seus leitores e estudiosos.

    Mesmo aps 35 anos de seu passamento e depois dos muitos estudos j arrolados, os

    rtulos insistem em perdurar, como se fosse possvel enquadr-la tranquilamente num

    determinado estilo. Por outro lado, as pesquisas em torno de sua fico so incessantes e

    plurissignificativas. Quando talo Calvino (2011, p.11) diz que um clssico um livro

    que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer, ele ilustra a sensao de

    eterna incompletude e refora a possibilidade recorrente de uma obra abalizada ser

    revisitada e ser passvel de novas interpretaes.

    Na tentativa de contribuir para um dos muitos renascimentos da autora,

    adotamos como suporte terico para esta pesquisa o recente materialismo lacaniano de

    Slavoj iek. Trata-se de uma corrente inicialmente atrelada filosofia poltica, mas

    que j carrega em seu bojo algumas bem sucedidas relaes com o campo literrio.

    Estaremos, pois, nesta dissertao, lanando um novo olhar que contemple globalmente

    a obra da autora. De maneira panormica, nossa pretenso de contribuir para uma

    viso coletiva de grande parte da produo romanesca de Lispector, usando tambm

    alguns de seus contos.

    Na tentativa de concretizar os objetivos propostos, dividimos este estudo em

    cinco captulos. Este captulo, tempo de Clarice Lispector, o primeiro de nosso

    trabalho, preocupa-se em comentar o espanto causado pela literatura de Lispector e o

    motivo pelo qual os estudos a respeito da autora continuam de interesse para muitos. Na

    sequncia deste primeiro subtpico, traremos breves consideraes a respeito do

    momento literrio que a acolheu: trata-se do Modernismo de 45, poca de grandes

  • 15

    transformaes literrias, parte delas graas ao surgimento de Lispector. Na sequncia,

    A ma no escuro, romance de maior ateno neste trabalho, receber uma leitura

    tradicional, como a de Benedito Nunes (1995) e Olga de S (1979, 1993), tericos que

    sero resgatados tambm nos captulos analticos.

    Unem-se a essas leituras convencionais duas das leituras mais originais

    encontradas a respeito do romance: a tese de doutorado de Erclia Bittencourt Dantas

    (2006), a qual analisa este romance luz da Teoria Crtica, mais especificamente da

    Dialtica do Esclarecimento de Theodor W. Adorno e Max Horkheimer; e o estudo de

    Fernanda Mara Colucci Fonoff (2004), que, por meio de uma leitura psicanaltica,

    prope no romance a investigao de temas como individuao, formao de sujeito e a

    importncia da funo paterna para a introjeo das leis sociais. importante esclarecer

    que a leitura de Fonoff (2004) colabora para uma viso estritamente psicanaltica e no

    aborda os mesmos conceitos lacanianos que lanaremos mo em nossa leitura iekiana.

    O segundo captulo, de cunho terico, intitulado O materialismo lacaniano de

    Slavoj iek: a renovao do pensamento da esquerda, constitui-se de uma

    apresentao biogrfica do esloveno que lidera a corrente e, na sequncia, de uma

    exposio de informaes a respeito do materialismo lacaniano, bem como os principais

    paradigmas que iek utiliza em sua teoria. Em seguida, no subtpico Materialismo

    lacaniano e Literatura, so apontadas as leituras realizadas por iek e tambm outras

    realizadas, sobretudo aqui no Brasil. Os conceitos lacanianos de Real, Simblico,

    Imaginrio e Grande Outro so relidos pelo prisma do esloveno e posteriormente

    aplicados na literatura de Lispector. O conceito de paixo pelo Real, oriundo da

    releitura de Alain Badiou, tambm receber um exemplo clariceano.

    Finalmente, os captulos terceiro, quarto e quinto so analticos. No terceiro, As

    lacunas da realidade, iniciamos a investigao luz de iek, utilizando a trade Real-

  • 16

    Simblico-Imaginrio dando nfase aos dois primeiros conceitos para esclarecer o

    percurso do protagonista de A ma no escuro, apontando que a diviso romanesca,

    pode se assemelhar ao percurso da humanidade visto pelo prisma do existencialismo. E

    amparados pelos conceitos de neurose obsessiva e discurso da histrica, analisamos, sob

    dois vrtices progressivos, parte da obra da autora.

    No captulo quarto, cujo ttulo A obsesso ao narrar, nossa preocupao

    centra-se em perceber uma linha progressiva que, a partir de iek, pode ser entendida

    como obsessiva. Iniciamos o captulo com consideraes a respeito do narrador do

    romance moderno, tal como prev Adorno (2003) e Rosenfeld (1996). Percebe-se que, a

    princpio, a fico clariceana tem em Perto do corao selvagem e em O lustre

    romances bem definidos quanto apregoao de monocntricos, viso proposta por

    Nunes (1995). O mesmo no acontece com A ma no escuro e A hora da estrela,

    romances a serem analisados. Tomando-se, como apoio o materialismo lacaniano,

    verificar-se- que a progresso iniciada com o monocentrismo atingir grau menor (com

    A ma no escuro) e maior (A hora da estrela) de um narrar obsessivo. Os contos A

    quinta histria e O ovo e a galinha servem para esclarecer a viso obsessiva de algumas

    caractersticas formais presentes especialmente em A ma no escuro. Apesar de no

    contriburem diretamente para a anlise proposta, tais contos servem para entendermos

    que o narrar obsessivo no justificado apenas com a produo romanesca.

    O captulo quinto, intitulado A histericizao da escrita, preocupa-se tambm

    em propor uma leitura progressiva da linguagem de Clarice Lispector. Iniciamos nossos

    apontamentos levando em considerao a revoluo que a autora causou com a

    linguagem proposta em sua fico. Explorando estudos de Slavoj iek, nota-se que A

    ma no escuro transcende a revoluo moderna e delimita as fronteiras que separam

    linguagem arrojada e linguagem, que passa a ser mais bem visualizada a partir do

  • 17

    Discurso da histrica de Lacan. Na sequncia, abordamos A paixo segundo G.H.,

    romance que cristaliza as preocupaes com a linguagem geradas em A ma.

    Elegemos, porm, gua viva como texto que radicaliza essa viso, por se comportar

    como um romance que beira um delrio, possibilitando, a nosso ver, uma leitura do

    corpo narrativo tal qual um corpo histrico e, tambm, um olhar sob sua linguagem que

    acomoda tranquilamente tal discurso lacaniano.

    Por fim, considera-se que o materialismo lacaniano prope uma viso inovadora,

    induzindo para a construo de uma unidade no projeto literrio de Lispector, o que

    pode ser deveras enriquecedor para sua fortuna crtica. Esperamos que, com estas

    reflexes, nossa tentativa de renasc-la contribua para alargar o universo de seus

    leitores, servindo tambm para confirmar que sempre tempo de Clarice Lispector,

    escritora, por excelncia, do indeciso, do sugestivo, do espelho da mente e dos enigmas

    da vida.

    1.2. Os modernistas de 1945

    No momento em que Clarice Lispector despontou, em meados de 1943, com

    Perto do Corao Selvagem, nossa literatura se preparava gradativamente para uma

    reviso crtica e para uma renovao no Modernismo. Anterior a essa necessidade de

    mudana, havia o romance regionalista de 1930 que, segundo Antnio Soares Amora

    (1969), formalizou as ideias lanadas na poca do Simbolismo, reforadas na dcada de

    1920, de que o Brasil era mais que uma federao de Estados, um pas de regies

    antropoculturais bem definidas e, portanto, inconfundveis entre si (AMORA, 1969,

    p.158). Na esteira dessa concluso, s se poderia compreender de fato essas regies

    quando fossem exploradas suas tradies e principais caractersticas.

  • 18

    Tal fico abordou os inmeros problemas de um Nordeste decadente desde que

    os polos culturais e polticos do Brasil se transferiram para o Sul. A misria, as relaes

    do homem do povo com o poder e com os poderosos, a hostilidade do meio estril e

    ingrato, o descaso dos polticos com esse estado de coisas condicionaram novos estilos

    ficcionais marcados pela rudeza, pela captao direta dos fatos, enfim por uma retomada

    do naturalismo (BOSI, 2006, p.389). Dentre os autores reconhecidamente magistrais

    na representao desses estilos, possvel citar Graciliano Ramos, Rachel de Queirz,

    Jos Lins do Rgo, Jorge Amado e rico Verssimo, entre outros.

    No entanto, nossa pesquisa se situa no momento em que o Modernismo se

    preparava para esse novo ciclo de renovao, tanto na prosa quanto na poesia. A

    chamada Gerao de 45 trouxe retrocessos formais e inovaes na poesia,

    especialmente com Joo Cabral de Melo Neto. A prosa deu continuidade a tendncias

    de 30, por meio da transfigurao do regionalismo e tambm de uma vertente urbana e

    cosmopolita que havia surgido simultnea a essa, a do romance de denncia social.

    Juntam-se a elas as propostas revolucionrias de Joo Guimares Rosa e a de Clarice

    Lispector, sendo que esta ltima, segundo Silviano Santiago (2004, p.233), mesmo

    acoplada a tal momento literrio, um rio que inaugura seu prprio curso.

    No olhar de Amora (1969), essa gerao aperfeioou dois aspectos da gerao

    passada: o regionalismo e o intimismo. Como precursores do intimismo de Clarice

    Lispector, havia, dentre outros, Lcio Cardoso, Cyro dos Anjos e Cornlio Pena, os

    quais registraram o incio dessa prosa qualificada como intimista, com uma forte

    notao psicolgica. No entanto, so Rosa e Lispector que renovaram ou aperfeioaram

    a literatura daquele decnio, preocupando-se no muito com os fatos a serem tratados,

    mas com a maneira como so tratados esses assuntos. Em outras palavras, iniciava-se

    um novo caminho a ser percorrido pela literatura brasileira que, gradativamente, se

  • 19

    desprendia das suas matrizes mais contingentes, como o regionalismo, a obsesso

    imediata com os problemas sociais e pessoais, para entrar numa fase de conscincia

    esttica generalizada (CANDIDO, 1970, p. 160).

    Perto do corao selvagem, que, como observou Antonio Candido (1970),

    representou uma bem-sucedida tentativa de levar nossa lngua a domnios pouco

    explorados, e Sagarana, de Guimares Rosa, publicada em 1946, so a mxima do

    empenho literrio que esses escritores tiveram para se espraiar dos moldes romanescos

    de denncia social brasileira e tornar-se essencialmente obra de arte.

    E obra de arte compreendida como produto do domnio da lngua, em todos

    os seus aspectos [...], em todas as suas pocas [...], em todas as suas reas

    dialetais brasileiras e em todos os seus nveis [...], compreendida tambm

    como domnio de tcnicas construtivas das realidades da fico; e

    compreendida, ainda, no apenas como o referido domnio dos materiais e tcnicas construtivas da obra de fico, mas tambm e sobretudo como criao original, ou melhor, como inveno do autor, no que respeita aos referidos processos expressivos e construtivos. E mais: com os ficcionistas

    neomodernistas passamos a compreender que era preciso libertar nossa

    literatura ficcional de suas limitaes locais, regionais, nacionais e

    circunstanciais, e dar-lhe, em oposio, uma significao universal, o que foi

    conseguido, em grande nmero de autores, pela depurao do assunto at sua

    essncia mtica (AMORA, 1969, p.171)

    Mediante o elevado nvel artstico que tais romances representaram, o pblico

    leitor esboou as mais diversas reaes e, de uma maneira geral, esses livros ficaram

    abandonados nas prateleiras e continuou-se a ser fiel literatura de 1930. De qualquer

    modo, os ficcionistas no deixaram de se impor e criaram obras que, posteriormente,

    foram consideradas as principais da dcada, como o caso de Grande serto: Veredas,

    de Guimares Rosa, e A ma no escuro, de Clarice Lispector, que receber viso

    crtica a seguir.

    1.3. No fcil ler A ma no escuro,

    obra de elaborao complexa em que a autora empregou toda a grande

    quantidade de recursos de que dispe; muito mais difcil estimar o valor do

  • 20

    romance, principalmente situ-lo na atual conjuntura de nossa histria

    literria (LUCAS, 1963, p.153)

    notvel que a cada nova publicao, Clarice Lispector desnorteava no apenas

    os leitores, mas tambm a crtica literria. O mesmo aconteceu com Perto do corao

    selvagem e, aps A ma no escuro, insegurana parecida aconteceria, especialmente,

    com a recepo de pelo menos mais dois romances: A paixo segundo G. H. e gua

    viva.

    De fato, esse romance teve gestao atpica. No final de 1950, Clarice parte com

    o marido diplomata para a Inglaterra, em razo de compromissos com o Itamaraty.

    Solitria e avessa vida social necessria para acompanhar o trabalho de Maury, o

    marido, a autora comea a rascunhar as primeiras linhas de A ma no escuro, que ainda

    no possua esse nome. Tempos depois, Clarice passa uma curta temporada no Brasil,

    onde colabora, rapidamente, com o Jornal Comcio, escrevendo algumas crnicas na

    pgina feminina. No final de 1952, parte novamente para a Inglaterra e Paulo, seu

    segundo filho, nasce em meados de 1953. Entre viagens e interrupes para escrever os

    contos de Laos de famlia, a autora concluiu o romance em maro de 1956.

    Foi um livro fascinante de escrever, ela contou a Fernando Sabino em setembro. Aprendi muito com ele, me espantei com as surpresas que ele me deu mas foi tambm um grande sofrimento. Mas, se ela pensava que o sofrimento tinha terminado quando deu os ltimos retoques no dcimo

    primeiro rascunho do livro, estava enganada. A Ma No Escuro teve o

    destino de muitas obras aclamadas posteriormente como obras-primas: quase

    no chegou a ser publicado (MOSER, 2009, p.335).

    Com os manuscritos prontos, iniciou-se uma peregrinao at a publicao do

    romance. A princpio, Clarice enviou cpias para seu amigo e compadre, rico

    Verssimo, e para Fernando Sabino, que j havia sido seu agente literrio. Entre

    desencontros, propostas no cumpridas por inmeras editoras, esperanas frustradas e

    muita humilhao para a autora que j havia cogitado a hiptese de pagar para public-

    lo, o romance finalmente saiu em 1961. Com A ma no escuro, encerra-se um hiato de

  • 21

    quase uma dcada sem lanamentos e marca-se, definitivamente, a consagrao da

    escritora, que, em menos de um ano, havia produzido a coletnea Laos de famlia e o

    novo romance. Em 1963, um jornalista escreveu:

    Clarice Lispector deixou de ser um nome e se tornou um fenmeno em nossa

    literatura. Um fenmeno com todas as caractersticas de um estado

    emocional: os admiradores de Clarice entram em transe diante da mera

    meno ao seu nome... E a grande autora de Perto do Corao Selvagem foi

    transformada num monstro sagrado (MOSER, 2009, p. 359)

    A crtica recebeu o novo romance de maneira muito calorosa. Antonio Olinto

    (1966, p.214) afirmou que A ma no escuro seu melhor livro, um lanamento

    importante na literatura deste sculo, obra da mais alta beleza como romance que narra

    e como arcabouo de palavras; para Renard Perez (1971, p.76), o novo romance um

    livro admirvel; e, para Temstocles Linhares (1987, p.414), este seu romance mais

    caracterstico, a sua maior criao no gnero, como obra-prima de densidade

    psicolgica e tambm de linguagem tensa e bela, encarada da forma mais completa. A

    prpria autora, concordando com a opinio da crtica, afirmaria tempos depois: A ma

    no escuro foi o livro mais bem estruturado que escrevi (LISPECTOR apud BORELLI,

    1981, p.88).

    As contribuies mais prolficas so de Benedito Nunes (1970, 1995) e de Olga

    de S (1979,1993). O filsofo paraense escreveu dois estudos a respeito do romance. De

    incio, quando entrou em contato com a literatura da autora, expressou seu

    encantamento num ensaio intitulado O mundo imaginrio de Clarice Lispector,

    publicado, originalmente, em 1966. Nesse ensaio, Nunes (1969) faz uso de conceitos

    oriundos da filosofia da existncia para analisar os romances Perto do corao

    selvagem, A paixo segundo G.H., A ma no escuro e o conto Amor, de Laos de

    famlia. Em 1973, ao lanar Leitura de Clarice Lispector, o terico dissolve o primeiro

    estudo, espraia e sistematiza sua anlise para elementos constituintes dos romances

  • 22

    publicados at Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, levando em considerao o

    estilo de escritura da autora, a temtica existencial e, ainda, aborda demais contos das

    coletneas Laos de famlia, A legio estrangeira e Felicidade clandestina.

    Posteriormente, em 1985, Nunes (1995) revisa esses textos e inclui estudos a

    respeito de gua viva, A hora da estrela e o pstumo Um sopro de vida. Utilizamos

    nesta dissertao, para fins didticos, essa ltima obra, por englobar o mais longo

    estudo que o crtico realizou a respeito da obra da autora e para evitarmos conflitos

    entre as datas de publicao. Essa obra, intitulada O Drama da Linguagem: Uma leitura

    de Clarice Lispector, tambm d nome ao captulo que se preocupa em analisar A ma

    no escuro.

    O filsofo chama a ateno para duas linhas de ao neste corpus, que se

    amalgamam e vo do ato transgressor de Martim ao fracasso dessa rebeldia. A primeira,

    nitidamente romntica, une-se ao itinerrio de tal ao e assume a forma de sbita

    converso religiosa do protagonista, que parece ver no seu ato de violncia um ardil

    irnico de Deus, em funo de insondveis desgnios (NUNES, 1995, p.41). E a

    segunda, de carter mstico, une-se primeira e preocupa-se em estabelecer a imagem

    de uma peregrinao simblica da alma (p.41), pois Martim realiza um percurso que

    parte dele e volta a si mesmo.

    Assim, A ma no escuro funcionaria como uma parbola da mxima

    evanglica, segundo a qual aquele que perde sua vida h de ganh-la (p.45); no

    entanto, esse aspecto no se sobressai ao romntico, quando aps a contemplao das

    coisas e o relacionamento com Vitria e Ermelinda, o homem rompe uma parte do

    silncio que lhe caracteriza, para iniciar a gestao de uma nova existncia.

    Atrelada possibilidade de reconstruir um novo existir, est a necessidade de se

    renovar a linguagem padro. Como linguagem de A ma no escuro recebe um

  • 23

    captulo, optamos por expor as contribuies de Nunes, especificamente, no momento

    da anlise. Em linhas muito gerais, podemos adiantar que o protagonista est a servio e

    a favor da linguagem e, no fechar do romance, percebe-se que esse drama da linguagem

    explode internamente a narrativa, reduzindo-a ao problema do ser e do dizer (p.57).

    Nas trilhas da leitura bblica, Olga de S (1979), aps a anlise cuidadosa dos

    elementos narrativos que o constitui, prope em A escritura de Clarice Lispector, que A

    ma no escuro uma nova escritura dessa velha tentao paradisaca em termos de

    fico (1979, p.194). Martim funciona como uma espcie de Ado, que atravs da

    peregrinao da linguagem, tentado por essa ma no escuro, que a palavra.

    Na Bblia, no den, antes da queda, conhecer os seres j se identifica com o

    domnio da linguagem. Ado deu nome a todos os animais dos campos e a

    todos os pssaros do cu e todo o nome que o homem ps aos animais vivos, esse o seu verdadeiro nome (Gn 2, 19). Esse conhecimento era, portanto, um dom da inocncia primordial [...] Seu itinerrio inverte o itinerrio

    bblico, porque ele parte da cidade para o den: o espao mtico da fazenda

    isolada, onde vivem Vitria e Ermelinda. Ali, morando num depsito,

    entregue aos trabalhos do campo (terra), ele tenta a aventura de agarrar uma

    ma (terra/ar) na escurido (luz). A rvore existente na fazenda uma

    rplica da velha rvore do conhecimento (S, 1979, p.194)

    Assim como Ado, Martim cai do den, quando Vitria, temendo se envolver

    de maneira mais ntima com o forasteiro, o denuncia polcia. Seu ato defensivo faz

    com que o protagonista seja reabsorvido pelo sistema que ele havia negado como se

    observa no incio do romance.

    Em Clarice Lispector: A Travessia do Oposto, S (1993) se preocupa com a

    maneira pela qual o livro recebido pelo leitor. Esse romance , segundo a autora, uma

    floresta de signos, livro de ruminao, de digesto difcil, exige certa categoria do

    leitor: aquele disposto a ruminar tambm, capaz de vislumbrar, de ler sussurros, leitor

    que no se interesse somente por fatos e aes (S, 1993, p.75). O que S chama de

    sussurros, de ao rarefeita, foram pontos importantes para o momento em que

    analisamos a presena da obsesso no romance, pelo fato de que essas observaes

  • 24

    acusam caractersticas obsessivas que, longe de causarem prazer ao leitor, propem

    desconforto e instabilidade.

    Fernanda Fonoff (2004) se vale da psicanlise freudiana para lanar luzes sobre

    A ma no escuro. Ao investigar a aventura do protagonista, a pesquisadora preocupa-se

    em apontar que o percurso da individuao de Martim contra uma mesmice estabelecida

    pode ser entendido como um ato contra a pulso de morte que quer criar a vida,

    imitando o poder do demiurgo. Ao romper com a sociedade e perceber a vacuidade do

    signo e de certa linguagem dialgica, ele inicia sua travessia pela e para a linguagem.

    Fonoff se preocupa tambm com a figura paterna, que age e pune em nome da lei e que

    surge no momento em que se instaura a priso de Martim, concretizando assim seu

    retorno efetivo sociedade, s leis, cultura e ao julgamento de seu crime (FONOFF,

    2004, p.80).

    Apoiada na leitura de Olga de S (1979), Erclia Bittencourt Dantas (2006) usa a

    Dialtica do esclarecimento, de Adorno e Horkheimer, e afirma, em sua tese de

    doutorado, que A ma no escuro revigora o mito de Ado e Eva, isto , a trajetria de

    Martim refaz simbolicamente o gnesis do mundo e do homem num percurso dialtico

    que vai da culpa expiao, da queda salvao para alcanar a individuao e o

    esclarecimento. Nesse sentido, o romance ultrapassa as fronteiras do Bildungsroman

    para tornar-se um moderno texto de iluminao.

    O texto de Adorno e Horkheimer tambm foi utilizado em nossa anlise; todavia

    em consonncia com o conceito de Real traumtico relido por iek. Isso se d com o

    objetivo de ilustrarmos a necessidade de se retomar as coordenadas simblicas para que

    a narrativa de A ma no escuro nos mostre o itinerrio de Martim, contado por um

    narrar obsessivo e tecido por uma linguagem histrica.

  • 25

    CAPTULO SEGUNDO

    O MATERIALISMO LACANIANO DE SLAVOJ IEK:

    A RENOVAO DO PENSAMENTO DA ESQUERDA

    2.1. Traos biogrficos de iek

    No contexto dos chaves e da banalidade de uma cultura predominantemente

    ps-moderna, iek representa o equivalente filosfico de uma peste

    virulenta, ou talvez, atualizando a metfora, um vrus de computador cujo

    objetivo romper com as aparncias cmodas do que se poderia chamar de

    matriz do capitalismo liberal global. Dando continuidade a uma certa tradio

    cartesiana, aquilo com que iek nos infecta uma dvida fundamental sobre

    os prprios pressupostos de nossa realidade social (DALY, 2006, p.7)

    O expoente mais aclamado do materialismo lacaniano, essa corrente que prope

    uma reviso do posicionamento da esquerda , sem dvidas, o esloveno Slavoj iek.

    Embora o incio de seu percurso pelos meandros da filosofia poltica e da psicanlise

    date do incio dos anos 1970, apenas, recentemente, sua figura de terico crtico

    despontou. Devido s novas abordagens sobre problemas globais, impasses polticos e

    subjetividade ps-moderna, iek tornou-se um dos filsofos mais populares do nosso

    tempo e, como bem afirmou Glyn Daly (2006, p.7), reinstalou a dvida em nosso modo

    de entender realidade social. Dessa maneira, julgamos necessrio um breve percurso

    biogrfico a ttulo de ilustrao.

    Slavoj iek nasceu aos 21 de maro de 1949 em Ljubljana, na Eslovnia, na

    poca em que a capital fazia parte da Iugoslvia comunista. Filho nico de pais ateus,

    iek bacharelou-se em Letras e Filosofia, na Universidade de Ljubljana e, por no

    aderir ortodoxia comunista, entrou em conflito com as autoridades, o que contribuiu,

    significativamente, para sua formao no idealismo alemo, sobretudo de Hegel e

  • 26

    Schelling. Sua dissertao de mestrado, sobre Jacques Lacan, Jacques Derrida e outros

    filsofos franceses, despertou a ateno da academia, mas suas qualidades

    ideologicamente suspeitas lhe causaram problemas, sendo forado a incluir em seu

    estudo um apndice em que destacava as divergncias de suas ideias da teoria marxista

    aprovada.

    Nos anos 1970, iek concluiu sua primeira tese de doutorado, abordando a

    filosofia de Martim Heidegger, e tornou-se membro de um importante grupo de

    estudiosos que trabalhava sob o prisma das teorias lacanianas. Em 1981, devido ao

    grupo de estudos, iek partiu para Paris, onde estudou com Jacques-Alain Miller,

    genro de Lacan. O encontro com Miller foi crucial para o desenvolvimento de sua

    compreenso sobre os conceitos do psicanalista francs, que influenciaram

    decisivamente seu pensamento terico. A psicanlise lacaniana foi tema de sua segunda

    tese de doutorado, obtida tambm em 1981, na Universidade de Paris VIII.

    Ao retornar Iugoslvia, iek encontrou dificuldades para situar-se no contexto

    filosfico acadmico, refugiando-se, por longo tempo, nos estudos sociolgicos, como

    ele mesmo conta:

    Eu era jovem, tinha um filho, estava desempregado e, preciso reconhecer,

    essas pessoas foram muito francas quanto situao. Disseram-me que, na

    circunstncia poltica vigente, estava fora de cogitao eu me tornar

    professor: seria problemtico demais e, em termos polticos, arriscado

    demais. Assim, elas tentaram me arranjar um trabalho de pesquisa, como

    medida temporria [...] Todo mundo sabe que sou realmente filsofo, que no

    tenho coisa alguma a ver com a sociologia, mas tive de fingir. O que eu fazia

    era o que sempre tinha feito filosofia - , e eles simplesmente toleravam

    (IEK; GLYN, 2006, p.43)

    A partir dos anos 1980, o esloveno participou ativamente da poltica de seu pas,

    pois o governo comunista havia perdido o controle sobre a fora cultural do pas. Em

    1990, concorreu Presidncia da Repblica da Eslovnia, no perodo em que seu pas

    natal estava na eminncia de se tornar independente da Iugoslvia.

  • 27

    Atualmente, iek ocupa importantes cargos acadmicos na Ljublijana

    University; no Birkbeck College; na University of London e no European Graduate

    Centre, na Sua. No possui vnculo formal com nenhuma instituio, pelo fato de

    preferir a liberdade de continuar suas pesquisas e obras e, tambm, porque essa

    liberdade intelectual remete ao trauma provocado pelo sistema comunista, em que os

    intelectuais eram apoiados, financeiramente, pelo Estado, se os considerasse teis.

    Dessa forma, prefere ser professor visitante e distorce a ideia excntrica da

    obrigatoriedade do trabalho pelo salrio.

    Como pessoa pblica, o esloveno foi considerado o filsofo mais perigoso do

    Ocidente, (KUL-WANT, 2012, p.3) pela revista New Republic e o messias superstar

    da nova esquerda, (KUL-WANT, 2012, p.3) pelo jornal Observer. Polmico,

    provocativo e sem reservas, iek tema de vrios documentrios, inclusive brasileiros,

    possui uma agenda repleta de entrevistas e palestras e milhares de acessos no site You

    Tube.

    2.2. O que materialismo lacaniano

    Essa aplicao de Lacan resgata o subjetivo, o psicanaltico e as presses do

    Inconsciente para o campo da coletividade, do social. Ao faz-lo, eles se

    propem a retornar as propostas da esquerda tradicional, ou seja, de buscar

    um humanismo possvel, de defender os grupos sociais e a humanidade da

    lgica do Capitalismo, que v no lucro a finalidade e o bem maior,

    sacrificando a maioria dos seres humanos, os animais, o meio ambiente, entre

    outros fatores, para cumprir suas propostas. Por isso, a nova corrente recebeu

    o nome de materialismo lacaniano (SILVA, 2009, p.212)

    Em oposio ao materialismo dialtico, que sistematiza a matria numa relao

    dialtica com o psicolgico e o social, o materialismo lacaniano prope instaurar uma

    forma diferente de funcionamento do poder, que ultrapasse os limites da democracia

    representativa, uma vez que permanecer fiel ideia de comunismo no o bastante.

    Destarte, iek, ao lado do francs de origem marroquina, Alain Badiou, iniciam a base

  • 28

    estrutural dessa teoria, localizando, na realidade histrica, os antagonismos que fazem

    dessa ideia uma urgncia prtica.

    A primeira transformao proposta gira em torno dos aparatos conceituais de

    Karl Marx; No entanto, como afirma Marisa Corra Silva (2009, p.211), esses

    pensadores no renegam o marxismo, mas, aceitando as contribuies do filsofo

    alemo para a histria do pensamento, fazem a ressalva de que a economia e a luta de

    classes apenas no so suficientes para dar conta de tudo o que acontece. Assim, iek

    despontou como pensador capaz de renovar Marx, uma vez que a ortodoxia marxista

    deixava brechas em determinadas anlises de dimenso social.

    Como citamos, o esloveno travou contato com a psicanlise oriunda de Jacques

    Lacan e com o idealismo alemo, ainda na poca em que sedimentava sua formao

    filosfica. E fundamentalmente dessas reas que iek retira o substrato terico para a

    anlise de nossa condio contempornea, ao mesmo tempo em que problematiza e

    revigora as discusses a respeito dessa condio. Como Daly (2009) afirma,

    o paradigma iekiano se que podemos falar nesses termos extrai sua vitalidade de duas grandes fontes filosficas: o idealismo alemo e a

    psicanlise. Em ambos os casos, o interesse central de iek recai sobre certa falta/excesso na ordem do ser. No idealismo alemo, esse aspecto explicita-se

    mais e mais atravs da referncia ao que se poderia chamar de uma loucura inexplicvel, que inerente e constitutiva do cgito e da subjetividade como

    tal [...] Na psicanlise, esse aspecto temtico da subjetividade deslocada

    mais desenvolvido com respeito ao conceito freudiano de pulso de morte. A

    pulso de morte surge, precisamente como resultado dessa lacuna ou furo na

    ordem do ser uma lacuna que aponta, ao mesmo tempo, para a autonomia radical do sujeito e algo que ameaa constantemente sabotar ou derrubar a estrutura simblica da subjetividade (DALY, 2009, p.9-10)

    Faz-se importante apontar que iek fundamenta suas discusses especialmente

    sob a doutrina psicanaltica de Lacan, embora no seja proposta do materialismo

    lacaniano psicanalisar seu objeto de estudo, mas sim analisar os efeitos coletivos da

    aplicao desses conceitos. O esloveno afirma que s hoje o tempo da psicanlise est

    chegando (IEK, 2010, p.9) e que, atravs do retorno a Freud que Lacan prope,

    arquitetando seu edifcio psicanaltico com base em conceitos que fogem da psicanlise

  • 29

    (a citar: a lingustica de Saussure, a antropologia de Lvi-Strauss, as filosofias de

    Plato, Heidegger, Hegel, Kierkegaard, incluindo a teoria matemtica dos conjuntos

    etc.), entendemos que esta no uma teoria clnica que busca compreender e tratar

    distrbios psquicos, mas uma teoria e prtica que pe os indivduos diante da

    dimenso mais radical da existncia humana. Ela no mostra a um indivduo como ele

    pode se acomodar s exigncias da realidade social; em vez disso, explica de que modo,

    antes de qualquer coisa, algo como realidade se constitui (IEK, 2010, p. 10).

    Sandro Bazzanella (2009), ao analisar os diversos estilos filosficos de se

    apresentar uma teoria, afirma que tais estilos no so gratuitos e que possuem

    articulao direta com a viso de mundo de uma determinada poca. Assim, Plato

    escreveu em forma de dilogos, Montaigne atravs de ensaios e Nietzsche basicamente

    por aforismos. iek possui um estilo que articula, intimamente, a forma como a

    dinmica social, poltica e econmica se coloca numa contemporaneidade ctica, em

    relao aos projetos societrios de igualdade e marcada pela fragmentao nas vises de

    mundo, por aes terroristas imprevisveis e por inimigos invisveis. Dessa forma, usa

    um estilo que se comporta como uma guerrilha, na medida em que nos d a

    impresso que procura no enfrentar o problema em campo de batalha aberto, mas lana

    mo de intrincados caminhos e atalhos, o que exige de seu intrprete esforos

    significativos para seguir seus rastros (BAZZANELLA, 2009, p.16).

    Assim, iek transita entremeio psicanlise e poltica radical, fazendo uso

    desse estilo, que, por vezes, denuncia as dificuldades e os desafios tericos da

    contemporaneidade, ao mesmo tempo em que remete ao hermetismo advindo de Lacan,

    que recusa as formas de pensamentos fechadas, calcadas na lgica de origem grega

    (SILVA, 2009, p.212).

  • 30

    O esloveno realiza uma nova leitura que compreende desde a filosofia,

    sociologia, alta literatura e poltica, passando pelo cinema hollywoodiano, espao

    ciberntico, biogentica, fico popular, atentado terrorista contra as torres gmeas do

    World Trace Center, subjetividade na ps-modernidade, at assuntos aparentemente

    banais, como por exemplo, Big Brother, Kinder Ovo e os diferentes tipos de vasos

    sanitrios; temas que recebem uma leitura, no mnimo, inquietante e que nos guia para

    seu significado quase sempre implcito.

    Bazzanella (2009) articula o pensamento de iek em trs linhas gerais:

    inicialmente, o esloveno critica a hegemonia da democracia liberal do capitalismo, que

    possui um discurso ideolgico truncado e contraditrio, pois, ao mesmo tempo em que

    apregoa a liberdade como imperativo a ser alcanado, apresenta um feedback punitivo

    para aqueles que se aventuram na busca dessa liberdade. Daly (2009) afirma que esse

    tipo de crtica funciona

    apenas como ponto de partida de um compromisso tico-poltico muito mais

    amplo com um universalismo emancipatrio radical, capaz de se opor

    natureza cada vez mais proibitiva do capitalismo contemporneo e suas

    formas correspondentes de correo poltica e multiculturalismo (DALY, 2009, p.7-8)

    Em um segundo momento, encontram-se crticas em relao ao posicionamento

    das esquerdas, que ficam presas a certas ortodoxias marxistas e tentam sobreviver de

    propostas equivocadas, que s endossam o discurso fundamentalista do capitalismo

    global e sua democracia liberal. Em Bem-vindo ao deserto do Real!, iek (2003)

    analisa os atentados ao World Trade Center e ao Pentgono no dia 11 de setembro de

    2001. Com isso, tenta despertar a esquerda para uma atitude contundente, a fim de

    recuperar o terreno perdido e colocar-se como alternativa ordem hegemnica

    representada pelos Estados Unidos e consolidada aps a queda do Muro de Berlim e

    s profecias sobre o fim da histria.

  • 31

    Com essa esquerda, quem precisa de direita? natural ento que diante de loucuras esquerdistas semelhantes, a facilidade com que a ideologia hegemnica se apropriou da tragdia de 11 de setembro e imps sua

    mensagem bsica foi ainda maior do que se poderia esperar dado o controle

    da direita e do centro liberal sobre os meios de comunicao de massa:

    acabaram-se os jogos fceis, preciso escolher lados contra (o terrorismo) ou a favor. E como ningum se declara abertamente a favor, a simples

    dvida, uma atitude questionadora, denunciada como apoio disfarado ao

    terrorismo... precisamente essa tentao a que se deve resistir: exatamente

    nesses momentos de aparente clareza de escolha que a mistificao total. A

    escolha que nos proposta no a verdadeira escolha (IEK, 2003, p.71)

    E finalmente, como terceira instncia da filosofia poltica de iek, Bazzanella

    (2009, p.20) cita o desafio em se pensar o impensvel, arriscar o impossvel. Esse

    tipo de posicionamento advm da estrutura terica de Lacan que, como j citamos,

    resgatou conceitos de outras reas para sua teoria psicanaltica. Ou seja, o retorno a

    Freud de Lacan partiu da lingustica e da antropologia e a releitura iekiana de

    propostas polticas efetivas desvencilha-se da carga histrica, da veracidade e da

    teleologia, para se ater urgncia contempornea, com conceitos revistos, todavia bem

    cuidados.

    Daly (2006, p.22) afirma que, para iek, o foco da discusso no est centrada no

    fato da Sociedade ser (im)possvel ou no, mas no modo como a sociedade

    impossvel e como se entende politicamente a impossibilidade. O perigo potencial est

    em nos acostumarmos com uma poltica que se mantm num nvel de impossibilidade,

    sem a tentativa de reverter ou possibilitar o impossvel.

    2.3. Materialismo lacaniano e Literatura

    Terry Eagleton (2001) afirma que podemos dividir a crtica literria psicanaltica

    em quatro tipos, dependendo de seu objetivo: ela pode se voltar para o autor da obra,

    para o contedo, para a construo formal ou para o leitor. Eagleton diz ainda que as

  • 32

    duas primeiras modalidades so as mais abordadas, por serem as mais limitadas e

    problemticas. Assim, chegamos ao seguinte questionamento: seria o materialismo

    lacaniano uma modalidade da crtica psicanaltica? Ora, de acordo com o terico

    britnico a resposta afirmativa. No entanto, no nos interessa neste estudo classificar a

    perspectiva de iek.

    J havamos esclarecido que sua abordagem no pretende elucidar um problema

    clnico ou lanar luzes sobre as motivaes inconscientes das personagens, eliminando,

    dessa maneira, a psicanlise do autor e do contedo, propostas por Eagleton. Mesmo

    que a leitura faa referncias diretas ao indivduo, o esloveno prope que atribuamos

    novos olhares a questes que versam a respeito da estrutura literria e tambm dos

    elementos tericos que compem a narrativa, da maneira como a linguagem e o estilo

    so utilizados ou at do modo em que as personagens funcionam como representao ou

    reflexo de uma coletividade. Pelo vis iekiano, propomos, nesta dissertao, uma

    viso global da obra de Lispector, atingindo uma dimenso que ultrapassa as fronteiras

    de uma nica obra, constituindo um novo olhar sob a fico clariceana.

    Apesar de vasto, o materialismo lacaniano como crtica literria relativamente

    recente. iek j havia relido, dentre outros textos, o conto Bobk de Dostoivski,

    endossando a opinio de Lacan de que a verdadeira frmula do atesmo no de que

    Deus est morto, mas que Deus inconsciente. O esloveno tambm nos informa que

    Ricardo II a pea fundamental de Shakespeare a respeito da histericizao, enquanto

    Hamlet sobre a obsesso. H ainda leituras iekianas de obras da fico popular, a

    citar: Stephen King, Arthur Conan Doyle e Agatha Christie etc.

    A primeira experincia estritamente literria a do britnico Phillip Rothwell.

    Em A Canon of Empty Fathers, o pesquisador aponta que a histria da Literatura

    Portuguesa recebe uma nova interpretao quando o conceito de imprio ultramarino

  • 33

    visto pela tica lacaniana, especificamente sobre a funo da figura paterna autoritria e

    ameaadora na psiqu coletiva, apontando reflexos na representao literria.

    No Brasil, a pioneira em aplicar uma perspectiva iekiana no campo literrio

    Marisa Corra Silva, professora doutora de Literaturas de Lngua Portuguesa da

    Universidade Estadual de Maring, Paran. Suas principais experincias com o

    materialismo lacaniano, resultaram, at o presente momento, em um captulo no Manual

    de Teoria Literria da Universidade Estadual de Maring, intitulado Materialismo

    lacaniano, no qual a pesquisadora faz uma breve introduo corrente, aos conceitos

    bsicos de Lacan e s possibilidades de aplicao na literatura; e tambm no livro O

    percurso do outro ao mesmo: Sagrado e profano em Saramago e em Helder Macedo,

    onde explora a teoria do psicanalista francs, de iek e Badiou, para confrontar os dois

    escritores portugueses citados no ttulo, utilizando especialmente os conceitos de

    sagrado e profano.

    H ainda trs dissertaes de Mestrado j defendidas, realizadas pelo Programa

    de Ps-Graduao em Letras da Universidade Estadual de Maring, sob a orientao da

    professora. A primeira, de autoria de Giuliano Hartmann, focaliza a construo

    identitria do sujeito lacaniano no romance A Cu Aberto, do gacho Joo Gilberto

    Noll; a segunda de Lus Cludio Ferreira Silva, que, em uma leitura comparada,

    aproxima os romances A Jangada de Pedra, do portugus Jos Saramago, e Volkswagen

    Blues, do quebequense Jacques Poulin, por meio do conceito de identidade nacional; e a

    terceira, cujo enfoque tambm recai sobre a prosa de Lispector, de Thays Pretti de

    Sousa, que analisa o romance A paixo segundo G.H. utilizando a trade Real-

    Simblico-Imaginrio.

    Citamos, ainda, os bem intencionados trabalhos realizados pelos acadmicos de

    graduao e ps-graduao, participantes do Grupo de Estudos de Materialismo

  • 34

    Lacaniano na Literatura, tambm sob a orientao da Prof. Silva, apresentados e

    publicados em anais dos mais diversos eventos.

    2.4. Conceitos bsicos de Jacques Lacan relidos por iek e as

    possveis aplicaes na fico de Clarice Lispector

    So muitos os conceitos lacanianos que receberam uma investidura iekiana.

    Embora o contato com o psicanalista francs seja reconhecidamente difcil, o leitor

    precisa ter em mente que, ao se apropriar e geralmente redigi-los, iek por vezes os

    aproxima de Lacan e, em outros casos, atribui um significado que pouco se assemelha

    ao sentido lacaniano. Porm, como afirma Silva (2009), apesar de sua complexidade, se

    for aplicado com bastante rigor, capaz de lanar luzes sobre os mais diversificados

    temas e, especialmente neste caso, sobre a composio literria.

    Talvez o conceito lacaniano que possua maior aplicabilidade na releitura do

    esloveno, seja o Real e suas inmeras possibilidades de visualizao. Por se tratar de um

    termo bastante enigmtico, faz-se necessrio entendermos a trade que o sustenta e a

    maneira pela qual o esloveno, normalmente, o aplica. Na psicanlise lacaniana, a trade

    Real-Simblico-Imaginrio, conhecida tambm como borromeana3, constitui a realidade

    do ser e, numa viso iekiana, uma realidade social e/ou coletiva.

    Para o psicanalista francs, o que chamamos de realidade a articulao entre a

    significao (Simblico) e as imagens (Imaginrio). Daly (2009, p.14) os diferencia,

    3 (objeto matemtico advindo da topologia e utilizado por Lacan para mostrar a articulao dos trs

    registros, Real, Simblico e Imaginrio. O n borromeano se caracteriza pelo enlaamento de trs anis

    tal que a ruptura de um acarreta o desligamento dos trs. Tratava-se tambm da figura inscrita no braso

    das famlias dos borromeanos que assim selava sua indissolvel amizade com outras grandes famlias

    italianas)

  • 35

    afirmando que o Simblico aberto e o Imaginrio procura domesticar essa abertura

    pela imposio de uma paisagem fantasstica peculiar a cada indivduo. Fazendo uso

    de uma explicao mais clara, Silva (2009, p.213) afirma que o Simblico o estgio

    no qual o indivduo estruturou uma srie de cdigos, leis e proibies que permitiro

    sua socializao. Trata-se da internalizao do Nome-do-Pai4, o qual estabelece uma

    castrao, um corte fundamental uma vez que estrutura e serve como base para o

    processo de individuao do sujeito com o tempo idlico em comunho absoluta com

    a me (SILVA, 2009, p.213). Importa notar que, para Lacan, pai e me no precisam

    ser obrigatoriamente pais biolgicos, podendo ser identificados, inclusive, com

    instituies sociais.

    Uma vez que o Simblico a ordem do significante, o Imaginrio corresponde

    ao significado, ao campo visual. Como se evidencia, o psicanalista francs baseou-se na

    lingustica estruturalista de Ferdinand de Saussure para moldar esses conceitos: a

    linguagem, portanto, tem relao tanto com o Simblico quanto com o Imaginrio

    (SILVA, 2009, p.213).

    O Real no pode ser incorporado nessa ordem. Embora inerente ao processo de

    estruturao do indivduo, esse conceito persiste como uma dimenso eterna da falta,

    isto , funciona de modo a impor limites de negao a qualquer ordem significante

    (discursiva), mas pela prpria imposio desses limites serve, simultaneamente, para

    constituir tal ordem (DALY, 2009, p.15). Trata-se de uma instncia traumtica,

    indizvel, algo entre um vazio e um excesso, por sua caracterstica de estar para alm da

    significao, ainda que possa ser aludido em certas situaes de excesso e horror.

    4 (conceito originalmente francs, Nom-du-pre, com nom causando um duplo sentido entre nome e

    no, de maneira que significa, concomitantemente, as normas e proibies impostas socialmente, bem

    como a lei que impede o incesto edpico)

  • 36

    Nesses momentos de contato, a vida perde o sentido, por assim dizer, os laos

    simblicos se desatam, deixando que mergulhemos no caos (SILVA, 2009, p.213).

    Os exemplos citados por iek so inmeros, sendo alguns no mnimo bastante

    inusitados. Citaremos quatro: em O amor impiedoso ou: sobre a crena (2012), o

    terico afirma que os debates em torno do Sudrio de Turim acomodam tranquilamente

    essa trade, de maneira que o Imaginrio questiona se a imagem discernvel ali a

    verdadeira reproduo da face de Jesus Cristo, o Real encaixa-se nas inquietaes a

    respeito de quando o material foi feito e se o teste que mostrou que o linho fora tecido

    no sculo XIV conclusivo e, por fim, o Simblico narra o complicado percurso do

    Sudrio atravs dos sculos. Em A viso em paralaxe (2008), o esloveno afirma que o

    fundamentalismo encena um curto-circuito entre o Simblico e o Real, isto , algum

    fragmento simblico (por exemplo, o texto sagrado, a Bblia no caso dos

    fundamentalistas cristos) postulado em si mesmo como Real (para ser lido

    literalmente, para no se brincar com ele, em resumo: dispensado de qualquer

    dialtica de leitura). J na obra Em defesa das causas perdidas (2011), iek afirma que

    determinados comportamentos na internet podem funcionar como a encenao Real de

    fantasias sdicas, enquanto na vida pblica o Simblico-Imaginrio do indivduo bem

    educado e cumpridor de regras.

    Para conclurmos, em Como ler Lacan (2010), essa complexa trade vista de

    uma maneira bastante simples, refletida em um jogo de xadrez:

    As regras que temos de seguir para jogar so sua dimenso simblica: do

    ponto de vista simblico puramente formal, cavalo definido apenas pelos

    movimentos que essa figura pode fazer. Esse nvel claramente diferente do

    imaginrio, a saber, o modo como as diferentes peas so moldadas e

    caracterizadas por seus nomes (rei, rainha, cavalo), e fcil imaginar um

    jogo com as mesmas regras, mas com um imaginrio diferente, em que esta

    figura seria chamada de mensageiro ou corredor, ou de qualquer outro

    nome. Por fim, o real toda a srie complexa de circunstncias contingentes

    que afetam o curso do jogo: a inteligncia dos jogadores, os acontecimentos

  • 37

    imprevisveis que podem confundir um jogador ou encerrar imediatamente o

    jogo (IEK, 2010, p.17)

    Especificamente a respeito do dinmico conceito do Real, iek aponta, em Um

    mapa da ideologia (1996), por meio do termo espectro, que o cerne pr-ideolgico

    da ideologia consiste na apario espectral que preenche o buraco do Real. Dito de

    outro modo, no existe realidade sem o espectro, pelo fato de que ao tentar delimitar

    uma verdadeira realidade de uma iluso, deve ser levado em questo que para que

    emerja (o que vivenciamos como) a realidade, algo tem que ser foracludo dela [...] e a

    realidade, tal como a verdade, nunca , por definio toda (IEK, 1996, p.26). Dessa

    forma, o Real, que a parte no simbolizada da realidade, aparece em forma de

    espectrais, justamente nessa rachadura que separa a realidade do Real. O conceito

    marxista de luta de classes ilustra de maneira inquietante uma apario do Real, pois se

    configura como um empecilho simblico que nos esforamos para integrar, mas que, ao

    mesmo tempo, condena esses esforos ao fracasso. Assim, impossvel objetiv-la, j

    que ela mesma nos impede de conceber a sociedade como uma totalidade fechada.

    Lacrimae rerum (2009) reflete uma das maiores paixes de iek, tema sobre o

    qual ele escreveu extensivamente: o cinema. Em cinco ensaios, o esloveno deixa

    transbordar sua preferncia por Alfred Hitchcock, mas passa por David Lynch,

    Kieslwski e Tarkowsky, at chegar a alguns filmes atuais, de grande bilheteria, como

    o caso de Matrix, que nos interessa aqui. O filme dos irmos Wachowski funciona

    como a tela que nos separa da realidade, que torna tolervel o deserto do real (IEK,

    2009, p.159). Nesse filme, o Real lacaniano no funciona apenas como algo que deve

    ser reformado pela fantasia; tambm a prpria tela como o obstculo que j distorce

    nossa viso de realidade l fora. Em outras palavras, a Matrix em si o Real que

    desconexa nossa percepo de realidade. iek (2009) afirma ainda que o problema em

    Matrix no est na ingenuidade cientfica de seus truques, pois a ideia de passar de um

  • 38

    mundo real para um virtual atravs de um telefone faz sentido, h apenas a necessidade

    de um buraco, por onde se possa escapar. O problema se encontra numa inconsistncia

    fantasmtica, que fica mais clara, quando Morpheus tenta explicar a Neo o que

    Matrix, relacionando-a a uma falha na estrutura do universo. Com essa situao, o filme

    prope que essa experincia do vazio confirma que a realidade que vivemos

    simplesmente uma farsa.

    Finalmente, mas sem esgotar as aplicaes, em Bem-vindo ao deserto do Real!

    (2003), iek nos apresenta sua aplicao mais conhecida e, a nosso ver, a mais

    impactante: trata-se do atentado terrorista contra as torres gmeas do World Trade

    Center em 2001. Os norte-americanos viram no fatdico 11/09 um de seus maiores

    smbolos cairem por terra. Desnorteada e impossibilitada de expor aquele trauma em

    linguagem (Simblica), os Estados Unidos sofreu um contato chocante com o Real.

    Como afirma iek,

    antes do colapso do WTC, vivamos nossa realidade vendo os horrores do

    Terceiro Mundo como algo que na verdade no fazia parte de nossa realidade

    social, como algo que (para ns) s existia como um fantasma espectral na

    tela do televisor - , o que aconteceu foi que, no dia 11 de setembro, esse

    fantasma da TV entrou na nossa realidade. No foi a realidade que invadiu a

    nossa imagem: foi a imagem que invadiu e destruiu nossa realidade (ou seja,

    as coordenadas simblicas que determinam o que sentimos como realidade).

    (IEK, 2003, p.31)

    Christopher Kul-Want (2012) aponta que iek interpretou esse ataque da Al-

    Qaeda como um momento histrico em que os EUA, em vez de se enxergarem apenas

    como vtimas, refletiram a respeito de suas ambies imperialistas e suas consequncias

    desastrosas que culminaram no 11 de setembro. Os Estados Unidos deveriam aceitar sua

    prpria vulnerabilidade e fazer da punio aos responsveis uma triste tarefa e no uma

    retaliao divertida (KUL-WANT, 2012, p.56).

  • 39

    Grande parte dos contos enfeixados em Laos de famlia, de Clarice Lispector,

    serve como exemplos literrios para abordarmos o conceito do Real. Silva (2009) j

    havia usado o conto Amor para ilustrar a possibilidade da aplicao, dessa maneira,

    utilizamos A imitao da rosa, pelo fato de que a leitura possvel devido ao processo

    epifnico desencadeado nessas personagens. Nesse conto, Laura se veste e reflete,

    metodicamente, a respeito de seus afazeres domsticos, enquanto aguarda o marido para

    jantarem com um casal de amigos, aps longo tempo de sua internao. No meio de

    suas reflexes, a protagonista visualiza um jarro com rosas. Como lugar comum na

    fico clariceana, um acontecimento banal toma enormes propores internas e Laura se

    sente terrivelmente perturbada com a perfeio dessas flores:

    Nunca vi rosas to bonitas, pensou com curiosidade. E como se no tivesse

    acabado de pensar exatamente isso, vagamente consciente de que acabara de

    pensar exatamente isso e rpida por cima do embarao em se reconhecer um

    pouco cacete, pensou numa etapa mais nova de surpresa: sinceramente,

    nunca vi rosas to bonitas. Olhou-as com ateno. Mas a ateno no podia

    se manter muito tempo como simples ateno, transformava-se logo em

    suave prazer, e ela no conseguia mais analisar as rosas, era obrigada a

    interromper-se com a mesma exclamao de curiosidade submissa: como so

    lindas (LISPECTOR, 1998, p.43)

    A viso das rosas pode ser lida, numa perspectiva iekiana, como um encontro

    com o Real. A epifania descortina uma realidade que as criaturas de Lispector

    recusam, de modo que se sentem aliviadas com o afastamento de tal situao, ao

    retornarem normalidade. O trecho acima aponta para uma linguagem que destoa

    daquela que antecipa a viso incmoda. Trata-se de uma tentativa textual de

    ressimbolizar a experincia, arrastando-a, por meio da palavra, para o domnio

    conhecido e seguro do Simblico (SILVA, 2009, p.215). O Real precisa ser

    ressimbolizado; os Estados Unidos, por exemplo, encontraram a ncora que os apoia

    novamente nas normativas simblicas revidando com mais violncia, assumindo o papel

    de vtima e tambm criando filmes e documentrios que endossam essa viso. Situao

  • 40

    semelhante acontece na literatura, pois aps Laura se livrar das rosas e da viso

    vertiginosa que elas causaram, voltando a se entreter com suas preocupaes cotidianas,

    a estrutura textual retoma a mesma linearidade (segura) do incio.

    Na esteira das frutferas discusses que o Real prope, iek se apossa de um

    conceito de Alain Badiou cunhado de paixo pelo Real (passion du rel). Em poucas

    palavras, trata-se do Real em sua violncia extrema como o preo a ser pago pela

    retirada das camadas enganadoras da realidade (IEK, 2003, p.19), ou seja, a

    necessidade de se (re)dominar a realidade. Dentre os vrios exemplos citados desde

    a exposio de sites pornogrficos, que introduzem uma microcmera na vagina

    transformando o objeto desejado num repugnante e Real encontro com a carne exposta,

    ao terror fundamentalista atual que lana bombas nos supermercados, com o intuito de

    acordar os cidados do Ocidente do entorpecimento ideolgico , que comprovam que

    essa a principal caracterstica do sculo XX, iek (2003) tambm lana mo de um

    exemplo claro: as pessoas que mutilam seus corpos com lminas, na tentativa de se

    sentirem vivas. Ao verem o sangue correndo, essas pessoas se sentem enraizadas na

    realidade, embora seja caracterstica de uma patologia que resulta em uma busca

    desenfreada de retomar algum tipo de normalidade.

    Sendo a epifania o estopim para o encontro traumtico com o Real, e observando

    a recorrncia dessa tcnica na fico clariceana, podemos supor que o conceito de

    paixo pelo Real pode ser facilmente aplicado na estrutura de seus contos e romances.

    A literatura de Lispector, de um modo geral, necessita desse choque para se constituir.

    A trajetria de grande parte de suas personagens est ligada necessidade de

    experimentao de uma revelao/crise/nusea que as expulsam da tranquilidade

    cotidiana. Esse conhecimento sbito da verdade, que cria um rito de passagem

    perigoso e sublime, arrebata no apenas suas criaturas, mas tambm o leitor e a prpria

  • 41

    narradora. A viso do cego mascando chicletes ou das belas rosas no vaso, ou ainda de

    um bfalo no jardim zoolgico, no assumiriam a carga introspectiva e existencial, e

    numa perspectiva iekiana, no seriam lidos como o encontro com o Real, se a autora

    no fizesse uso do processo epifnico em consonncia com o monlogo interior e fluxo

    de conscincia tcnicas que servem para expor a linguagem denunciada pelo Real.

    Para no ficarmos apenas na contstica, o romance A paixo segundo G.H.

    colabora nessa leitura proposta, pois atravs do necessrio contato com a barata (e

    tambm com o ncleo duro do Real), que G.H. realiza um percurso mstico incrustado

    de tormento e muitos questionamentos existenciais. A diegese focalizar o longo

    processo de ressimbolizao, isto , a narradora-protagonista estrutura, sob forma de

    linguagem, a tentativa de recontar o acontecido e suturar as lacunas da realidade que

    foram rompidas no momento em que o Real (encontro com o inseto) ofuscou seus

    olhos, para retornar organizao anterior, como ela bem afirma. Vejamos:

    - - - - - - estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender.

    Tentando dar a algum o que vivi e no sei a quem, mas no quero ficar com

    o que vivi. No sei o que fazer do que vivi, tenho medo dessa desorganizao

    profunda. No confio no que me aconteceu. Aconteceu-me alguma coisa que

    eu, pelo fato de no a saber como viver, vivi uma outra? A isso quereria

    chamar desorganizao, e teria a segurana de me aventurar, porque saberia

    depois para onde voltar: para a organizao anterior. A isso prefiro chamar

    desorganizao pois no quero me confirmar no que vivi na confirmao de

    mim eu perderia o mundo como eu o tinha, e sei que no tenho capacidade

    para outro (LISPECTOR, 1998, p.11)

    Inserido na ordem Simblica est o Grande Outro (Big Other, em ingls),

    conceito contemplado em inmeras anlises de iek. Pelo fato de todos os indivduos

    serem construdos e dominados pela linguagem, eles operam em nveis simblicos

    governados por um superego (freudiano) autoritrio, que Lacan chama de Big Other.

    Segundo Silva (2009, p.214), trata-se de uma instncia onipresente, criada pelo

    indivduo no processo de separar a si prprio do resto do mundo, ou seja, no processo

    de individuao. Ele invisvel, mas est sempre em torno de ns.

  • 42

    O espao simblico funciona como um padro de comparao contra o qual

    posso me medir. por isso que o grande Outro pode ser personificado ou

    reificado como um agente nico: o Deus que vela por mim do alm, e

    sobre todos os indivduos reais, ou a Causa que me envolve (Liberdade,

    Comunismo, Nao) e pela qual estou pronto a dar minha vida. Enquanto

    falo, nunca sou meramente um pequeno outro (indivduo) interagindo com

    outros pequenos outros: o grande Outro deve estar sempre l (IEK,

    2010, p.17)

    iek (2010, p.18) lana mo de um exemplo cmico para nos apresentar este

    conceito: trata-se da piada de um campons nufrago, que se depara ilhado com a atriz

    Cindy Crawford. Depois do sexo, ele pede mais um favor, questionando se ela poderia

    se vestir como seu melhor amigo, usar calas e pintar um bigode no rosto. O campons

    afirma no ser um pervertido enrustido e, aps ela aceitar o pedido, ele se aproxima do

    amigo e lhe informa o ocorrido. Esse terceiro que se eleva acima das interaes dos

    indivduos e funciona como testemunha o Grande Outro e, como bem aponta a piada,

    ele subjetivamente virtual, ou seja, s existe na medida em que sujeitos agem como

    se ele existisse (IEK, 2010, p.18).

    Os contos Feliz aniversrio e Os laos de famlia exemplificam duas maneiras

    diferentes de visualizarmos o Grande Outro na obra de Clarice Lispector. No primeiro, a

    matriarca da famlia, D. Anita, completa 89 anos. A famlia vai se juntando aos poucos

    para comemorar a data. Inerte, e desde as duas horas, a aniversariante estava sentada

    cabeceira da longa mesa vazia (LISPECTOR, 1998, p.54), sem demonstrar reao,

    recebia cumprimentos e a festa ia acontecendo.

    A festa descrita como uma tarefa mecnica, totalmente sem afeto, puro

    pretexto para reunir a famlia num ato burocrtico e vazio: Vim para no deixar de vir

    (p.54), afirma uma das noras. A decorao com guardanapos de papel colorido e copos

    de papelo alusivos data (p.55) e ainda bales sungados polo teto em alguns dos

    quais estava escrito Happy Birthday!, e em outros Feliz Aniversrio! (p.55),

    infantilizam e ridicularizam o ambiente. As personagens parecem encenar papis, num

  • 43

    misto de disfarces e dissimulaes: Oitenta e nove anos!, ecoou Manoel que era

    scio de Jos. um brotinho!, disse espirituoso e nervoso (p.56), Nada de

    negcios, gritou Jos, hoje o dia da me! (p.57).

    Em determinado momento, o narrador com sua postura divina, descarna o

    pensamento da idosa e o leitor fica a par da insatisfao da matriarca, por ter dado luz

    aqueles seres opacos, com braos moles e rostos ansiosos (p.60), pareciam ratos se

    acotovelando, a sua famlia (p.61). Colrica e insatisfeita, a velha cospe no cho. Numa

    leitura materialista lacaniana, o ato de cuspir pode ser lido como a maneira de informar

    ao Grande Outro a falsa harmonia e as podrides escamoteadas pela famlia. Nesse

    caso, essa instncia funciona como o decoro das relaes sociais, afetivas, que

    normalmente so sufocadas pela fingida calma dos ambientes familiares, e aponta para

    o fato de que os elos fraternais foram substitudos por relaes instrumentais. Apesar de

    surpresa, a famlia constrangida prefere dissimular o acontecido, pois a velha no

    passava agora de uma criana (p.61) e a festa continua com planos para o prximo ano.

    J em Os Laos de Famlia, desde o princpio, o leitor conhece a relao

    periclitante entre Catarina e sua me, Severina. Depois de uma visita filha, quando

    enche o neto de mimos como uma av tradicional e tambm dissimula um bom

    relacionamento com o genro, Severina embarca de volta para casa. No entanto, quando

    est com a filha no txi, este d uma freada brusca e as lana uma contra a outra numa

    intimidade de corpo h muito esquecida, do tempo em que se tem pai e me (p.96).

    Cria-se uma situao visivelmente constrangedora pelo contato fsico evitado

    desde a infncia. A descoberta desse distanciamento revelado ao leitor pelas frases

    recorrentes que causam certo estranhamento: No esqueci de nada? Perguntava pela

    terceira vez a me. No, no, no esqueceu de nada, respondia a filha (p.94).

  • 44

    O verbo esquecer no faz relao direta com o elemento bagagem, mas sim com

    o elemento humano, com a ausncia de relaes afetivas entre me e filha: ... no

    esqueci de nada? perguntou a me. Tambm a Catarina parecia que haviam esquecido

    alguma coisa [...], se realmente haviam esquecido, agora era tarde demais (p.97).

    Aps o incidente, o narrador conduz as reflexes da filha, em que problemas

    familiares, repleto de queixas e mgoas, recebem uma tnica. No entanto, o decoro

    social fala mais alto e a filha no explode num ato repulsivo de violncia, como foi o

    caso da anci do conto anterior. Prova disso que ela mortifica seus pensamentos e, ao

    chegar estao, despede-se da me e espera o trem partir. Em outras palavras, esse

    conto torna-se mais perturbador do que Feliz aniversrio, pelo fato de que naquele o

    Grande Outro informado das ms relaes e, neste, apenas o leitor o , o qual funciona

    como espectador e assiste incomodado relao mal resolvida entre ambas.

  • 45

    CAPTULO TERCEIRO

    AS LACUNAS DA REALIDADE

    3.1. O Simblico e a fuga do Real traumtico em A ma no

    escuro

    O preo da dominao no meramente a alienao dos homens com relao

    aos objetos dominados; com a coisificao do esprito, as prprias relaes

    dos homens foram enfeitiadas, inclusive as relaes de cada indivduo

    consigo mesmo. Ele se reduz a um ponto nodal das reaes e funes

    convencionais que se esperam dele como algo objetivo. O animismo havia

    dotado a coisa de uma alma, o industrialismo coisifica as almas. O aparelho

    econmico, antes mesmo do planejamento total, j prev espontaneamente as

    mercadorias de valores que decidem sobre o comportamento dos homens. A

    partir do momento em que as mercadorias, com o fim do livre intercmbio,

    perderam todas as suas qualidades econmicas salvo seu carter de fetiche,

    este se espalhou como uma paralisia sobre a vida da sociedade em todos seus

    aspectos. As inmeras agncias da produo em massa e da cultura por ela

    criada servem para inculcar no indivduo os comportamentos normalizados

    como os nicos naturais, decentes, racionais (ADORNO; HORKHEIMER,

    1986, p.40)

    Ainda que o foco da discusso seja o conceito de indstria cultural e o interesse

    nos seres humanos enquanto consumidores ou empregados, reduzindo a humanidade,

    em seu conjunto, assim como cada um de seus elementos, s condies que representam

    seus interesses, o fragmento da Dialtica do esclarecimento, publicado originalmente

    em 1947, utilizado aqui para ilustrar a falncia dos valores humanistas e a

    metamorfose dos indivduos em seres genricos.

    Semelhantes pelo isolamento na coletividade, eles funcionam como parte da

    engrenagem de um sistema mercadolgico que refora a uniformidade em uma

    sociedade de massa. Aliada ideologia capitalista, a indstria cultural contribui,

    eficazmente, para falsificar a relao entre os indivduos, bem como sua relao com a

    natureza, resultando numa espcie de anti-iluminismo.

  • 46

    Theodor Adorno e Max Horkheimer (1986) consideram que o Iluminismo tem

    como finalidade libertar os seres humanos do medo, tornando-os senhores e liberando o

    mundo da magia e do mito, instaurando o poder do humano sobre a cincia e sobre a

    tcnica. Porm, o indivduo tornou-se vtima de novo engodo: o progresso da

    dominao tcnica. Essa realidade alienada que mecaniza a relao entre os indivduos

    e, por conseguinte, dele consigo prprio, impedindo-os de desfrutar de uma conscincia

    autnoma, capaz de julgar e decidir conscientemente a abordada por Clarice Lispector

    nas primeiras pginas de A ma no escuro. E justamente com essa realidade amorfa

    que Martim rompe, desconhecendo o resultado final da tentativa de assassinar sua

    esposa.

    O homem se mexeu contente: imitei? Mas sim! Pois se, imitando o que seria

    ganhar o primeiro lugar no concurso de estatstica, ele ganhara o primeiro

    lugar no concurso de estatstica! Na verdade, concluiu ento muito

    interessado, apenas imitara a inteligncia, com aquela falta essencial de

    respeito que faz com que uma pessoa imite. E com ele, milhes de homens

    que copiavam com enorme esforo a ideia que se fazia de um homem, ao

    lado de milhares de mulheres que copiavam atentas a ideia que se fazia de

    mulher e milhares de pessoas de boa vontade copiavam com esforo sobre-

    humano a prpria cara e a ideia de existir; sem falar na concentrao

    angustiada com que se imitavam atos de bondade ou de maldade com uma cautela diria em no escorregar para um ato verdadeiro, e portanto

    incomparvel, e portanto inimitvel e portanto desconcertante (LISPECTOR,

    1972, p.28)

    O pensamento de Georg Lukcs (2000), influncia decisiva para Adorno,

    contribui, substancialmente, para esta reflexo, ao apresentar o conceito de heri

    problemtico e sua errncia em um mundo de valores degradados e inautnticos. Para o

    filsofo hngaro, a civilizao integrada, existente na epopeia, a qual formava uma

    circunferncia perfeita entre o homem e a coletividade, diluda no romance, pelo fato

    de que a busca do heri nunca alcanar seu objetivo, uma vez que, nas condies

    sociais burguesas, no h possibilidade de reconciliao entre o eu e a sociedade, devido

    desproporo que existe entre as aspiraes da alma e a objetividade da organizao

    social. O heri do romance nasce desse alheamento em face ao mundo exterior, nesse

  • 47

    mundo cindido entre existncia e essncia, marcado pelo silncio dos deuses, quando a

    interioridade e a aventura esto para sempre divorciadas uma da outra.

    Ao se desligar da sociedade que enquadraria seu crime na linguagem do senso

    comum e temendo as consequncias de seu ato, o protagonista foge fisicamente e o

    crime se transforma num ato positivo de ruptura com a sociedade e a fuga, num

    movimento de evaso interior (NUNES, 1995, p.40). Nessa fuga, Martim funciona

    como prottipo do heri problemtico, pelo fato de se lanar numa jornada de

    isolamento e autoconhecimento em um mundo incerto e por quebrar o automatismo de

    sua rotina, ao se opor ao pensamento coletivo, uma vez que uma conscincia global

    impediria seu desenvolvimento como ser humano.

    Semelhante viagem ansiada por Joana, de Perto do corao selvagem, Martim

    inicia um percurso avesso ao convvio social, pois a solido seria o elemento

    indispensvel para a busca de sua autenticidade. Assim, ele se v seduzido pelo fascnio

    de abrir as portas para o domnio da aventura, a um s tempo desejada e temida, da

    descoberta do eu. Neg