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DADOSDECOPYRIGHT

Sobreaobra:

ApresenteobraédisponibilizadapelaequipeLeLivroseseusdiversosparceiros,comoobjetivodeoferecerconteúdoparausoparcialempesquisaseestudosacadêmicos,bemcomoosimplestestedaqualidadedaobra,comofimexclusivodecomprafutura.

Éexpressamenteproibidaetotalmenterepudiávelavenda,aluguel,ouquaisquerusocomercialdopresenteconteúdo

Sobrenós:

OLeLivroseseusparceirosdisponibilizamconteúdodedominiopublicoepropriedadeintelectualdeformatotalmentegratuita,poracreditarqueoconhecimentoeaeducaçãodevemseracessíveiselivresatodaequalquerpessoa.Vocêpodeencontrarmaisobrasemnossosite:LeLivros.siteouemqualquerumdossitesparceirosapresentadosnestelink.

"Quandoomundoestiverunidonabuscadoconhecimento,enãomaislutandopordinheiroepoder,entãonossasociedadepoderáenfimevoluira

umnovonível."

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LIVROI

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Admite-segeralmentequetodaarteetodainvestigação,assimcomotodaaçãoetoda escolha, têm emmira um bem qualquer; e por isso foi dito, commuitoacerto,queobeméaquiloaquetodasascoisastendem.Masobserva-seentreosfins certa diferença: alguns são atividades, outros são produtos distintos dasatividades que os e produzem.Onde existem fins distintos das ações, são elespornaturezamaisexcelentesdoqueestes.

Ora,comosãomuitasasações,arteseciências,muitossãotambémosseusfins:ofimdaartemédicaéasaúde,odaconstruçãonavaléumnavio,odaestratégiaéavitóriaeodaeconomiaéariqueza.Masquandotaisartessesubordinamaumaúnica faculdade—assimcomoa selaria e asoutras artesque seocupamcomosaprestosdoscavalosseincluemnaartedaequitação,eesta,juntamentecom todas as ações militares, na estratégia, há outras artes que também seincluememterceiras—,emtodaselasosfinsdasartesfundamentaisdevemserpreferidosa todosos finssubordinados,porqueestesúltimossãoprocuradosabemdosprimeiros.Não fazdiferençaqueos finsdas ações sejamasprópriasatividadesoualgodistintodestas,comoocorrecomasciênciasqueacabamosdemencionar.

2

Se,pois,paraascoisasquefazemosexisteumfimquedesejamosporelemesmoe tudoomais édesejadono interessedesse fim;e se éverdadequenem todacoisadesejamoscomvistasemoutra,porque,então,oprocessose repetiriaaoinfinito,einútilevãoseriaonossodesejar,evidentementetalfimseráobem,ouantes,osumobem.

Mas não terá o seu conhecimento, porventura, grande influência sobre a essavida?Semelhantesaarqueirosque têmumalvocertoparaa suapontaria,não

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alcançaremos mais facilmente aquilo que nos cumpre alcançar? Se assim é,esforcemo-nospordeterminar,aindaqueemlinhasgeraisapenas,oquesejaeleedequaldasciênciasoufaculdadesconstituioobjeto.Ninguémduvidarádequeoseuestudopertençaàartemaisprestigiosaequemaisverdadeiramentesepodechamaraartemestra.Ora, apolíticamostra serdessanatureza,pois é elaquedeterminaquaisasciênciasquedevemserestudadasnumEstado,quaissãoasquecadacidadãodeveaprender,eatéqueponto;evemosqueatéasfaculdadestidasemmaiorapreço,comoaestratégia,aeconomiaearetórica,estãosujeitasaela.Ora, comoapolíticautilizaasdemaisciênciase,poroutro lado, legislasobreoquedevemoseoquenãodevemosfazer,afinalidadedessaciênciadeveabrangerasdasoutras,demodoqueessafinalidadeseráobemhumano.Comefeito, ainda que tal fim seja o mesmo tanto para o indivíduo como para oEstado, o deste último parece ser algomaior emais completo, quer a atingir,querapreservar.Emboravalhabemapenaatingiressefimparaumindivíduosó, émais belo emais divino alcançá-lo para uma nação ou para as cidades-estados.Taissão,porconseguinte,osfinsvisadospelanossainvestigação,poisqueissopertenceàciênciapolíticanumadasacepçõesdotermo.

3

Nossadiscussãoseráadequadasetivertantaclarezaquantocomportaoassunto,poisnãosedeveexigiraprecisãoemtodososraciocíniosporigual,assimcomonão se deve buscá-la nos produtos de todas as artesmecânicas.Ora, as açõesbelas e justas, que a ciência política investiga, admitem grande variedade eflutuações de opinião, de formaque se pode considerá-las como existindoporconvenção apenas, e nãopornatureza.E em tornodosbensháuma flutuaçãosemelhante,pelofatodeseremprejudiciaisamuitos:houve,porexemplo,quemperecessedevidoàsuariqueza,eoutrosporcausadasuacoragem.

Aotratar,pois,detaisassuntos,epartindodetaispremissas,devemoscontentar-nos em indicar a verdade aproximadamente e em linhas gerais; e ao falar decoisasquesãoverdadeirasapenasemsuamaiorparteecombaseempremissasdamesmaespécie,sópoderemostirarconclusõesdamesmanatureza.Eédentrodomesmoespíritoquecadaproposiçãodeverá ser recebida,pois éprópriodohomemcultobuscaraprecisão,emcadagênerodecoisas,apenasnamedidaemqueaadmiteanaturezadoassunto.Evidentemente,nãoseriamenos insensatoaceitarumraciocínioprováveldapartedeummatemáticodoqueexigirprovas

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científicasdeumretórico.

Ora,cadaqualjulgabemascoisasqueconhece,edessascoisaséelebomjuiz.Assim, o homemque foi instruído a respeito de um assunto é bom juiz nesseassunto,eohomemquerecebeuinstruçãosobretodasascoisasébomjuizemgeral. Por isso, um jovem não é bom ouvinte de preleções sobre a ciênciapolítica. Com efeito, ele não tem experiência dos fatos da vida, e é em tornodestesquegiramasnossasdiscussões;alémdisso,comotendeaseguirassuaspaixões,talestudolheserávãoeimprofícuo,poisofimquesetememvistanãoéoconhecimento,masaação.Enãofazdiferençaquesejajovememanosounocaráter;odefeitonãodependedaidade,masdomododeviveredeseguirumapós outro cada objetivo que lhe depara a paixão. A tais pessoas, como aosincontinentes,aciêncianãotrazproveitoalgum;masaosquedesejameagemdeacordocomumprincípio racionaloconhecimentodessesassuntos farágrandevantagem.

Sirvam, pois, de prefácio estas observações sobre o estudante, a espécie detratamentoaseresperadoeopropósitodainvestigação.

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Retomemos anossa investigação eprocuremosdeterminar, à luzdeste fatodequetodoconhecimentoe todotrabalhovisaaalgumbem,quaisafirmamosseros objetivos da ciência política e qual é omais alto de todos os bens que sepodemalcançarpelaação.Verbalmente,quasetodosestãodeacordo,poistantoovulgocomooshomensdeculturasuperiordizemseresse fima felicidadeeidentificamobemvivereobemagircomooserfeliz.Diferem,porém,quantoaoquesejaafelicidade,eovulgonãooconcebedomesmomodoqueossábios.Osprimeirospensamquesejaalgumacoisasimpleseóbvia,comooprazer,ariqueza ou as honras, muito embora discordem entre si; e não raro o mesmohomema identifica comdiferentes coisas, com a saúde quando está doente, ecomariquezaquandoépobre.Cônsciosdasuaprópriaignorância,nãoobstante,admiram aqueles que proclamam algum grande ideal inacessível à suacompreensão.Ora,algunstêmpensadoque,àparteessesnumerososbens,existeoutroqueêautosubsistenteetambémécausadabondadedetodososdemais.Seria talvez infrutífero examinar todas as opiniões que têm sido sustentadas aesse respeito; basta considerar asmais difundidas ou aquelas que parecem ser

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defensáveis.

Nãopercamosdevista,porém,queháumadiferençaentreosargumentosqueprocedemdosprimeirosprincípioseosquesevoltamparaeles.OpróprioPlatãohavia levantado esta questão, perguntando, como costumava fazer: "Nossocaminho parte dos primeiros princípios ou se dirige para eles?" Há aí umadiferença, como há, num estádio, entre a reta que vai dos juízes ao ponto deretornoeocaminhodevolta.Comefeito,emboradevamoscomeçarpeloqueéconhecido,osobjetosdeconhecimentoosãoemdoissentidosdiferentes:algunspara nós, outros na acepção absoluta da palavra. É de presumir, pois, quedevamoscomeçarpelascoisasquenossãoconhecidas,anós.Eisaíporque,afim de ouvir inteligentemente as preleções sobre o que é nobre e justo, e emgeral sobre temas de ciência política, é preciso ter sido educado nos bonshábitos.Porquantoofatoéopontodepartida,eseforsuficientementeclaroparaoouvinte,nãohaveránecessidadedeexplicarporqueéassim;eohomemquefoi bem educado já possui esses pontos de partida ou pode adquiri-los comfacilidade.Quanto àquelequenemospossui, nemé capazde adquiri-los, queouçaaspalavrasdeHesíodo:

Ótimoéaquelequedesimesmoconhecetodasascoisas;

Bom,oqueescutaosconselhosdoshomensjudiciosos.

Masoqueporsinãopensa,nemacolheasabedoriaalheia,

Esseé,emverdade,umacriaturainútil.

5

Voltemos,porém,aopontoemquehaviacomeçadoestadigressão.

Ajulgarpelavidaqueoshomenslevamemgeral,amaioriadeles,eoshomensdetipomaisvulgar,parecem(nãosemcertofundamento)identificarobemouafelicidadecomoprazer,eporissoamamavidadosgozos.Pode-sedizer,comefeito,queexistemtrêstiposprincipaisdevida:aqueacabamosdemencionar,avidapolítica e a contemplativa.Agrandemaioriadoshomens semostramemtudo iguais a escravos, preferindo uma vida bestial, mas encontram certajustificação para pensar assim no fato de muitas pessoas altamente colocadas

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partilharemosgostosdeSardanapalo.

A consideração dos tipos principais de vidamostra que as pessoas de granderefinamentoeíndoleativaidentificamafelicidadecomahonra;poisahonraé,em suma, a finalidade da vida política. No entanto, afigura-se demasiadosuperficial para ser aquela que buscamos, visto que dependemais de quem aconferequedequemarecebe,enquantoobemnospareceseralgoprópriodeumhomemequedificilmentelhepoderiaserarrebatado.

Dir-se-ia,alémdisso,queoshomensbuscamahonraparaconvencerem-seasimesmos de que são bons. Como quer que seja, é pelos indivíduos de grandesabedoria prática que procuram ser honrados, e entre os que os conhecem e,aindamais,emrazãodasuavirtude.Estáclaro,pois,queparaeles,aomenos,avirtudeémaisexcelente.Poder-se-iamesmosuporqueavirtude,enãoahonra,é a finalidade da vida política. Mas também ela parece ser de certo modoincompleta,porquepodeacontecerquesejavirtuosoquemestádormindo,quemleva uma vida inteira de inatividade, e, mais ainda, é ela compatível com osmaioressofrimentoseinfortúnios.Ora,salvoquemqueirasustentarateseatodocusto,ninguémjamaisconsideraráfelizumhomemquevivedetalmaneira.

Quantoaisto,basta,poisoassuntotemsidosuficientementetratadomesmonasdiscussõescorrentes.Aterceiravidaéacontemplativa,queexaminaremosmaistarde.

Quanto à vida consagrada ao ganho, é uma vida forçada, e a riqueza não éevidentementeobemqueprocuramos:éalgodeútil,nadamais,eambicionadonointeressedeoutracoisa.Eassim,antesdeveriamserincluídosentreosfinsosquemencionamosacima,porquantosãoamadosporsimesmos.Maséevidenteque nem mesmo esses são fins; e contudo, muitos argumentos têm sidodesperdiçadosemfavordeles.Deixamos,pois,esteassunto.

6

Seria melhor, talvez, considerar o bem universal e discutir a fundo o que seentendeporisso,emboratalinvestigaçãonossejadificultadapelaamizadequenos une àqueles que introduziram as Formas. No entanto, os mais ajuizadosdirãoqueépreferívelequeémesmonossodeverdestruiroquemaisdepertonostocaafimdesalvaguardaraverdade,especialmenteporsermosfilósofosou

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amantesdasabedoria;porque,emboraambosnossejamcaros,apiedadeexigequehonremosaverdadeacimadenossosamigos.

OsdefensoresdessadoutrinanãopostularamFormasdeclassesdentrodasquaisreconhecessemprioridadeeposterioridade (eporessa razãonãosustentaramaexistênciadeumaFormaaabranger todososnúmeros).Ora,o termo"bem"éusadotantonacategoriadesubstânciacomonadequalidadeenaderelação,eoqueexisteporsimesmo,istoé,asubstância,éanteriorpornaturezaaorelativo(este,de fato,écomoumaderivaçãoeumacidentedoser);demodoquenãopodehaverumaideiacomumporcimadetodosessesbens.

Alémdisso,comoapalavra"bem"temtantossentidosquantos"ser"(vistoqueépredicadatantonacategoriadesubstância,comodeDeusedarazão,quantonade qualidade, isto é, das virtudes; na de quantidade, isto é, daquilo que émoderado; na de relação, isto é, do útil; na de tempo, isto é, da oportunidadeapropriada;nadeespaço,istoé,dolugarapropriado,etc.),estáclaroqueobemnão pode ser algo único e universalmente presente, pois se assim fosse nãopoderiaserpredicadoemtodasascategorias,massomentenuma.

Aindamais:comodascoisasquecorrespondemaumaideiaaciênciaéumasó,haveria umaúnica ciência de todos os bens.Mas o fato é que as ciências sãomuitas,mesmodascoisasquese incluemnumasócategoria:daoportunidade,porexemplo,poisqueaoportunidadenaguerraéestudadapelaestratégiaenasaúdepelamedicina, enquantoamoderaçãonosalimentoséestudadaporestaúltima, enos exercíciospela ciênciadaginástica.E alguémpoderia fazer estapergunta:queentendemeles,afinal,poresse"emdecadacoisa, jáqueparao"homememsi"eparaumhomemparticularadefiniçãodohomeméamesma?Porque,namedidaemqueforem"homem",nãodiferirãoemcoisaalguma.E,assimsendo,tampoucodiferirãoo"bememsi"eosbensparticularesnamedidaemqueforem"bem".E,poroutrolado,o"bememsi"nãoserámais"bem"pelofatodesereterno,assimcomoaquiloqueduramuitotemponãoémaisbrancodoqueaquiloqueperecenoespaçodeumdia.

Os pitagóricos parecem fazer uma concepção mais plausível do bem quandocolocamo"um"nacolunadosbens;eestaopinião,senãonosenganamos,foiadotadaporEspeusipo.

Masdeixemosessesassuntospara seremdiscutidosnoutraocasião.Poder-se-áobjetar aoque acabamosdedizer apontandoque (os platônicos) não falamde

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todososbens,equeosbensbuscadoseamadosporsimesmossãochamadosbonsemreferênciaaumaFormaúnica,enquantoosquedecertomodotendemaproduzirouapreservarestes,ouaafastarosseusopostos,sãochamadosbonsemreferênciaaestesenumsentido subsidiário.Éevidente,pois,que falamosdosbensemdoissentidos:unsdevemserbensemsimesmos,eosoutros,emrelaçãoaosprimeiros.

Separemos,pois,ascoisasboasemsimesmasdascoisasúteis,evejamosseasprimeirassãochamadasboasemreferênciaaumaIdeiaúnica.Queespéciedebens chamaríamos bens em si mesmos? Serão aqueles que buscamos mesmoquando isolados dos outros, como a inteligência, a visão e certos prazeres ehonras?Estes,emboratambémpossamosprocurá-lostendoemvistaoutracoisa,seriamcolocadosentreosbensemsimesmos.

OunãohaveránadadebomemsimesmosenãoaIdeiadobem?Nessecaso,aFormaseesvaziarádetodosentido.Mas,seascoisasqueindicamostambémsãoboasemsimesmas,oconceitodobemterádeseridênticoemtodaselas,assimcomo o da brancura é idêntico na neve e no alvaiade.Mas quanto à honra, àsabedoriaeaoprazer,noqueserefereàsuabondade,osconceitossãodiversosedistintos.Obem,porconseguinte,nãoéumaespéciedeelementocomumquecorrespondaaumasóideia.

Masqueentendemos, então,pelobem?Não será,por certo, comoumadessascoisasquesóporcasualidadetêmomesmonome.Serãoosbensumasócoisaporderivaremdeumsóbem,ouparaelecontribuírem,ouantesserãoumsóporanalogia?Inegavelmente,oqueavisãoéparaocorpoarazãoéparaaalma,edamesmaformaemoutroscasos.Mastalvezsejapreferível,porora,deixarmosdeladoessesassuntos,vistoqueaprecisãoperfeitanotocanteaelescompetemaispropriamenteaoutroramodafilosofia.

Omesmo se poderia dizer no que se refere à Ideia: mesmo ainda que existaalgum bem único que seja universalmente predicável dos bens ou capaz deexistência separada e independente, é claro que ele não poderia ser realizadonemalcançadopelohomem;masoquenósbuscamosaquiéalgodeatingível.

Alguém,noentanto,poderápensarquesejavantajosoreconhecê-locomamiranosbensquesãoatingíveiserealizáveis;porquanto,dispondodelecomodeumaespéciedepadrão,conheceremosmelhorosbensquerealmentenosaproveitam;e,conhecendo-os,estaremosemcondiçõesdealcançá-los.Esteargumento tem

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certo ar de plausibilidade, mas parece entrar em choque com o procedimentoadotadonasciências;porquetodaselas,emboravisemaalgumbemeprocuremsuprir a sua falta, deixam de lado o conhecimento do bem. Entretanto, não éprovável que todos os expoentes das artes ignorem e nem sequer desejemconhecer auxílio tão valioso.Não se compreende, por outro lado, a vantagemquepossa trazeraumtecelãoouaumcarpinteiroesseconhecimentodo"bememsi"noquetocaàsuaarte,ouqueohomemquetenhaconsideradoaIdeiaemsivenhaaser,porissomesmo,melhormédicoougeneral.Porqueomédiconemsequerpareceestudarasaúdedessepontodevista,massimasaúdedohomem,ou talvez sejamais exatodizer a saúdedeum indivíduoparticular, pois é aosindivíduosqueelecura.Masquantoaisso,basta.

7

Voltemosnovamenteaobemqueestamosprocurandoeindaguemosoqueéele,poisnãoseafiguraigualnasdistintasaçõeseartes;édiferentenamedicina,naestratégia,eemtodasàsdemaisartesdomesmomodo.Queé,pois,obemdecada uma delas? Evidentemente, aquilo em cujo interesse se fazem todas asoutrascoisas.Namedicinaéasaúde,naestratégiaavitória,naarquiteturaumacasa, em qualquer outra esfera uma coisa diferente, e em todas as ações epropósitoséeleafinalidade;poisétendo-oemvistaqueoshomensrealizamoresto.Porconseguinte,seexisteumafinalidadeparatudoquefazemos,essaseráobemrealizávelmedianteaação;e,sehámaisdeuma,serãoosbensrealizáveisatravésdela.

Vemos agora que o argumento, tornando por um atalho diferente, chegou aomesmoponto.Masprocuremosexpressar istocommaisclarezaainda. Jáque,evidentemente,osfinssãováriosenósescolhemosalgunsdentreeles(comoariqueza,asflautaseosinstrumentosemgeral),segue-sequenemtodososfinssãoabsolutos;masosumobeméclaramentealgodeabsoluto.Portanto, sesóexisteumfimabsoluto,seráoqueestamosprocurando;e,seexistemaisdeum,omaisabsolutodetodosseráoquebuscamos.

Ora,nóschamamosaquiloquemereceserbuscadoporsimesmomaisabsolutodoqueaquiloquemereceserbuscadocomvistasemoutracoisa,eaquiloquenunca é desejável no interesse de outra coisamais absoluto do que as coisasdesejáveis tanto em si mesmas como no interesse de uma terceira; por isso

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chamamos de absoluto e incondicional aquilo que é sempre desejável em simesmoenuncanointeressedeoutracoisa.

Ora, esse é o conceito que preeminentemente fazemos da felicidade. É elaprocuradasempreporsimesmaenuncacomvistasemoutracoisa,aopassoqueàhonra,aoprazer,à razãoea todasasvirtudesnósde fatoescolhemosporsimesmos(pois,aindaquenadaresultassedaí,continuaríamosaescolhercadaumdeles);mas tambémos escolhemosno interesse da felicidade, pensandoque apossedelesnos tornará felizes.Afelicidade, todavia,ninguémaescolhe tendoemvistaalgumdestes,nem,emgeral,qualquercoisaquenãosejaelaprópria.

Considerado sob o ângulo da autossuficiência, o raciocínio parece chegar aomesmo resultado, porque o bem absoluto é considerado como autossuficiente.Ora,porautossuficientenãoentendemosaquiloqueésuficienteparaumhomemsó,paraaquelequelevaumavidasolitária,mastambémparaospais,osfilhos,aesposa, e em geral para os amigos e concidadãos, visto que o homem nasceuparaacidadania.Masénecessáriotraçaraquiumlimite,porque,seestendermosos nossos requisitos aos antepassados, aos descendentes e aos amigos dosamigos,teremosumasérieinfinita.

Examinaremos esta questão, porém, em outro lugar; por ora definimos aautossuficiênciacomosendoaquiloque,emsimesmo,tornaavidadesejávelecarente de nada. E como tal entendemos a felicidade, considerando-a, alémdisso, a mais desejável de todas as coisas, sem contá-la como um bem entreoutros.Seassimfizéssemos,éevidentequeelase tornariamaisdesejávelpelaadiçãodomenorbemquefosse,poisoqueéacrescentadosetornaumexcessodebens,edosbensésempreomaioromaisdesejável.Afelicidadeé,portanto,algoabsolutoeautossuficiente,sendotambémafinalidadedaação.

Masdizerqueafelicidadeéosumobemtalvezpareçaumabanalidade,efaltaainda explicar mais claramente o que ela seja. Tal explicação não ofereceriagrande dificuldade se pudéssemos determinar primeiro a função do homem.Pois,assimcomoparaumflautista,umescultorouumpintor,eemgeralparatodas as coisasque têmuma funçãoou atividade, considera-sequeobemeo"bemfeito"residemnafunção,omesmoocorreriacomohomemseeletivesseumafunção.

Dar-se-áocaso,então,dequeocarpinteiroeocurtidortenhamcertasfunçõeseatividades,eohomemnão tenhanenhuma?Teráelenascidosemfunção?Ou,

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assim como o olho, a mão, o pé e em geral cada parte do corpo têmevidentemente uma função própria, poderemos assentar que o homem, domesmomodo,temumafunçãoàpartedetodasessas?Qualpoderáserela?

Avidaparecesercomumatéàsprópriasplantas,masagoraestamosprocurandoo que é peculiar ao homem. Excluamos, portanto, a vida de nutrição ecrescimento.A seguirháumavidadepercepção,masessa tambémparece sercomum ao cavalo, ao boi e a todos os animais. Resta, pois, a vida ativa doelementoque temumprincípio racional;desta,umaparte tem talprincípionosentido de ser-lhe obediente, e a outra no sentido de possuí-lo e de exercer opensamento. E, como a “vida do elemento racional" também tem doissignificados, devemos esclarecer aqui que nos referimos a vida no sentido deatividade;poisestapareceseraacepçãomaisprópriadotermo.

Ora,seafunçãodohomeméumaatividadedaalmaquesegueouqueimplicaumprincípioracional,esedizemosque"umtal-e-tal"e"umbomtal-e-tal"têmumafunçãoqueéamesmaemespécie(porexemplo,umtocadordeliraeumbom tocador de lira, e assim em todos os casos, semmaiores discriminações,sendoacrescentadaaonomedafunçãoaeminênciacomrespeitoàbondade—poisafunçãodeumtocadordeliraétocarlira,eadeumbomtocadordeliraéfazê-lobem); se realmente assimé [e afirmamos ser a funçãodohomemumacertaespéciedevida,eestavidaumaatividadeouaçõesdaalmaqueimplicamumprincípioracional;eacrescentamosqueafunçãodeumbomhomeméumaboaenobrerealizaçãodasmesmas;esequalqueraçãoébemrealizadaquandoestádeacordocomaexcelênciaquelheéprópria;serealmenteassimé],obemdo homem nos aparece como uma atividade da alma em consonância com avirtude,e,sehámaisdeumavirtude,comamelhoremaiscompleta.

Maséprecisoajuntar"numavidacompleto".Porquantoumaandorinhanãofazverão,nemumdiatampouco;edamesmaformaumdia,ouumbreveespaçodetempo,nãofazumhomemfelizeventuroso.

Que isto sirva como um delineamento geral do bem, pois presumivelmente énecessário esboçá-lo primeiro de maneira tosca, para mais tarde precisar osdetalhes.Mas,abemdizer,qualquerumécapazdepreencherearticularoqueem princípio foi bem delineado; e também o tempo parece ser um bomdescobridor e colaborador nessa espécie de trabalho. A tal fato se devem osprogressosdasartes,poisqualquerumpodeacrescentaroquefalta.

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Devemos igualmente recordaroquesedisseantesenãobuscaraprecisãoemtodasascoisasporigual,mas,emcadaclassedecoisas,apenasaprecisãoqueoassuntocomportarequeforapropriadaàinvestigação.Porqueumcarpinteiroeumgeômetrainvestigamdediferentesmodosoânguloreto.Oprimeiroofaznamedidaemqueoânguloretoéútilaoseutrabalho,enquantoosegundoindagaoqueouqueespéciedecoisaeleé;poisogeômetraécomoqueumespectadordaverdade. Nós outros devemos proceder do mesmo modo em todos os outrosassuntos,paraqueanossatarefaprincipalnãofiquesubordinadaaquestõesdemenormonta.Etampoucodevemosreclamaracausaemtodososassuntosporigual.Emalgunscasosbastaqueo fatoestejabemestabelecido, comosucedecomosprimeirosprincípios:ofatoéacoisaprimáriaouprimeiroprincípio.

Ora, dos primeiros princípios descobrimos alguns pela indução, outros pelapercepção, outros comoqueporhábito, e outros aindadediferentesmaneiras.Mas a cada conjunto de princípios devemos investigar da maneira natural eesforçar-nosparaexpressá-loscomprecisão,poisqueelestêmgrandeinfluênciasobreoquesesegue.Diz-se,comefeito,queocomeçoémaisquemetadedotodo,emuitasdasquestõesqueformulamossãoaclaradasporele.

8

Devemosconsiderá-lo,noentanto,nãosóàluzdanossaconclusãoedasnossaspremissas,mas tambémdoqueaseurespeitosecostumadizer;poiscomumaopiniãoverdadeira todososdadosseharmonizam,mascomumaopiniãofalsaosfatosnãotardamaentraremconflito.

Ora,osbenstêmsidodivididosemtrêsclasses,ealgunsforamdescritoscomoexteriores,outroscomorelativosàalmaouaocorpo.Nósoutrosconsideramoscomomais propriamente e verdadeiramente bens os que se relacionam com aalma,ecomotaisclassificamosasaçõeseatividadespsíquicas.Logo,onossopontodevistadevesercorreto,pelomenosdeacordocomestaantigaopinião,com a qual concordam muitos filósofos. É também correto pelo fato deidentificarmos o fim com certas ações e atividades, pois dessemodo ele vemincluir-seentreosbensdaalma,enãoentreosbensexteriores.

Outracrençaqueseharmonizacomanossaconcepçãoéadequeohomemfelizvivebemeagebem;poisdefinimospraticamenteafelicidadecomoumaespécie

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deboavidaeboaação.Ascaracterísticasquesecostumabuscarnafelicidadetambémparecempertencertodasàdefiniçãoquedemosdela.Comefeito,algunsidentificam a felicidade com a virtude, outros com a sabedoria prática, outroscom uma espécie de sabedoria filosófica, outros com estas, ou uma destas,acompanhadasounãodeprazer;eoutrosaindatambémincluemaprosperidadeexterior. Ora, algumas destas opiniões têm tido muitos e antigos defensores,enquantooutrasforamsustentadasporpoucas,maseminentespessoas.Enãoéprovável que qualquer delas esteja inteiramente equivocada, mas sim quetenham razão pelo menos a algum respeito, ou mesmo a quase todos osrespeitos.

Tambémseajustaànossaconcepçãoadosque identificamafelicidadecomavirtudeemgeraloucomalgumavirtudeparticular,poisqueàvirtudepertenceaatividadevirtuosa.Mashá,talvez,umadiferençanãopequenaemcolocarmososumobemnaposseounouso,noestadodeânimoounoato.Porquepodeexistiro estadodeânimosemproduzirnenhumbom resultado, comonohomemquedorme ou que permanece inativo; mas a atividade virtuosa, não: essa devenecessariamenteagir,eagirbem.E,assimcomonosJogosOlímpicosnãosãoosmaisbeloseosmaisfortesqueconquistamacoroa,masosquecompetem(poisédentreestesquehãodesurgirosvencedores),tambémascoisasnobreseboasdavidasósãoalcançadaspelosqueagemretamente.

Suaprópriavidaéaprazívelporsimesma.Comefeito,oprazeréumestadodaalma,eparacadahomeméagradávelaquiloqueeleama:nãosóumcavaloaoamigo de cavalos e um espetáculo ao amador de espetáculos,mas tambémosatos justos ao amanteda justiça e, emgeral, os atos virtuosos aos amantes davirtude.Ora,namaioriadoshomensosprazeresestãoemconflitounscomosoutrosporquenãosãoaprazíveispornatureza,masosamantesdoqueénobresecomprazememcoisasquetêmaquelaqualidade;taléocasodosatosvirtuosos,que não apenas são aprazíveis a esses homens,mas em simesmos e por suapróprianatureza.Emconsequência,avidadelesnãonecessitadoprazercomoumaespéciedeencantoadventício,maspossuioprazeremsimesma.Poisque,alémdoquejádissemos,ohomemquenãoseregozijacomasaçõesnobresnãoésequerbom;eninguémchamariadejustooquenãosecomprazemagircomjustiça,nemliberaloquenãoexperimentaprazernasaçõesliberais;edomesmomodoemtodososoutroscasos.

Sendoassim,asaçõesvirtuosasdevemseraprazíveisemsimesmas.Massão,alémdisso,boasenobres,epossuemnomaisaltograucadaumdestesatributos,

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porquantoohomembomsabeaquilatá-losbem;suacapacidadede julgaré talcomo a descrevemos. A felicidade é, pois, a melhor, a mais nobre e a maisaprazível coisa domundo, e esses atributos não se acham separados como nainscriçãodeDelos:

Dascoisasamaisnobreéamaisjusta,eamelhoréasaúde;

Masamaisdoceéalcançaroqueamamos.

Com efeito, todos eles pertencem às mais excelentes atividades; e estas, ouentão,umadelas—amelhor—,nósaidentificamoscomafelicidade.

Enoentanto,comodissemos,elanecessitaigualmentedosbensexteriores;poisé impossível, ou pelomenos não é fácil, realizar atos nobres sem os devidosmeios.Emmuitasaçõesutilizamoscomoinstrumentososamigos,ariquezaeopoderpolítico;ehácoisascujaausênciaempanaafelicidade,comoanobrezadenascimento, uma boa descendência, a beleza. Com efeito, o homem demuitofeia aparência, ou malnascidos, ou solitário e sem filhos, não tem muitasprobabilidadesdeserfeliz,etalveztivessemenosaindaseseusfilhosouamigosfossemvisceralmentemaus e se amorte lhe houvesse roubado bons filhos oubonsamigos.

Comodissemos,pois,ohomemfelizparecenecessitartambémdessaespéciedeprosperidade;eporessarazãoalgunsidentificamafelicidadecomaboafortuna,emboraoutrosaidentifiquemcomavirtude.

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Por este motivo, também se pergunta se a felicidade deve ser adquirida pelaaprendizagem,pelohábitoouporalgumaoutraespéciedeadestramento,ouseelanoséconferidaporalgumaprovidênciadivina,ouaindapeloacaso.Ora,sealgumadádivaoshomensrecebemdosdeuses,érazoávelsuporqueafelicidadesejaumadelas,e,dentretodasascoisashumanas,aquemaisseguramenteéumadádiva divina, por ser a melhor. Esta questão talvez caiba melhor em outroestudo;noentanto,mesmoqueafelicidadenãosejadadapelosdeuses,mas,aocontrário, venha como um resultado da virtude e de alguma espécie deaprendizagemouadestramento,elaparececontar-seentreascoisasmaisdivinas;poisaquiloqueconstituioprêmioeafinalidadedavirtudesenosafiguraoque

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demelhorexistenomundo,algodedivinoeabençoado.

Dentrodestaconcepção,tambémdeveelaserpartilhadaporgrandenúmerodepessoas, pois quem quer que não esteja mutilado em sua capacidade para avirtudepodeconquistá-lamediantecertaespéciedeestudoediligência.Mas,seé preferível ser feliz dessamaneira a sê-lo por acaso, é razoável que os fatossejam assim, uma vez que tudo aquilo que depende da ação natural é, pornatureza,tãobomquantopoderiaser,edomesmomodooquedependedaarteoudequalquercausaracional,especialmentesedependedamelhordetodasascausas.Confiaraoacasooquehádemelhoredemaisnobreseriaumarranjomuitoimperfeito.

Arespostaàperguntaqueestamosfazendoétambémevidentepeladefiniçãodafelicidade, por quando dissemos que ela é uma atividade virtuosa da alma, decerta espécie. Do demais bens, alguns devem necessariamente estar presentescomocondiçõespréviasda felicidade,eoutrossãonaturalmentecooperanteseúteiscomoinstrumentos.Eisto,comoédeverconcordacomoquedissemosnoprincípio, isto é, que o objetivo da vida política é o melhor dos fins, e essaciênciadedicaomelhordeseusesforçosafazercomqueoscidadãossejambonsecapazesdenobresações.

Énatural,portanto,quenãochamemosfeliznemaoboi,nemaocavalonemaqualqueroutroanimal,vistoquenenhumdelespodeparticipardetalatividade.Pelomesmomotivo,ummeninotampoucoéfeliz,poisque,devidoàsuaidade,ainda não é capaz de tais atos; e osmeninos a quem chamamos felizes estãosimplesmente sendo congratulados por causa das esperanças que nelesdepositamos. Porque, como dissemos, há importante não só de uma virtudecompletamastambémdeumavidacompleta,jáquemuitasmudançasocorremna vida, e eventualidades de toda sorte: o mais próspero pode ser vítima degrandesinfortúniosnavelhice,comosecontadePríamonoCicloTroiano;eaquemexperimentoutaisvicissitudeseterminoumiseravelmenteninguémchamafeliz.

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Entãoninguémdeveráserconsideradofelizenquantoviver,eseráprecisoverofim,comodizSólon?Mesmoqueesposemosessadoutrina,dar-se-áocasode

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queumhomemsejafelizdepoisdemorto?Ounãoseráperfeitamenteabsurdatal ideia, sobretudo para nós, que dizemos ser a felicidade uma espécie deatividade?Mas,senãoconsideramosfelizesosmortoseseSólonnãoserefereaisso,mas quer apenas dizer que só então se pode com segurança chamar umhomem de venturoso porque finalmente nãomais o podem atingirmales neminfortúnios,issotambémfornecematériaparadiscussão.Efetivamente,acredita-sequeparaummortoexistemmalesebens,tantoquantoparaosvivosquenãotêmconsciênciadeles:porexemplo,ashonrasedesonras,asboasemásfortunasdosfilhosedosdescendentesemgeral.

E isto também levanta um problema. Com efeito, embora um homem tenhavivido feliz até avançada idade e tido uma morte digna de sua vida, muitosrevesespodemsucederaosseusdescendentes.Algunsserãobonseterãoavidaque merecem, ao passo que com outros sucederá o contrário; e também éevidente que os graus de parentesco entre eles e os seus antepassados podemvariar indefinidamente. Seria estranho, pois, se osmortos devessem participardessas vicissitudes e ora ser felizes, ora desgraçados; mas, por outro lado,também seria estranho se a sorte dos descendentes jamais produzisse omenorefeitosobreafelicidadedeseusancestrais.

Voltemos, porém, à nossa primeira dificuldade, cujo examemais atento talveznosdêasoluçãodopresenteproblema.Ora,seéprecisoverofimparasóentãodeclararumhomemfeliz,temosaíumparadoxoflagrante:quandoeleéfeliz,osatributos que lhe pertencem não podem ser verdadeiramente predicados deledevidoàsmudançasaqueestão sujeitos,porqueadmitimosquea felicidadeéalgodepermanenteequenãomudacomfacilidade,aopassoquecadaindivíduopode sofrermuitas voltas da roda da fortuna.É claro que, para acompanhar opassodesuasvicissitudes,deveríamoschamaromesmohomemoradefeliz,oradedesgraçado,oquefariadohomemfelizum"camaleão,sembasesegura".Ouserá um erro esse acompanhar as vicissitudes da fortuna de um homem? Osucesso ou o fracasso na vida não depende delas, mas, como dissemos, aexistência humana delas necessita como meros acréscimos, enquanto o queconstituiafelicidadeouoseucontráriosãoasatividadesvirtuosasouviciosas.

Aquestãoqueacabamosdediscutirconfirmaanossadefinição,poisnenhumafunçãohumanadesfrutadetantapermanênciacomoasatividadesvirtuosas,quesãoconsideradasmaisduráveisdoqueopróprioconhecimentodasciências.Easmaisvaliosasdentreelassãomaisduráveis,porqueoshomensfelizesdebomgradoecommuitaconstâncialhesdedicamosdiasdesuavida;eestapareceser

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arazãopelaqualsemprenoslembramosdeles.Oatributoemapreçopertencerá,pois, aohomem feliz, queo serádurante avida inteira; porque sempre, oudepreferência a qualquer outra coisa, estará empenhado na ação ou nacontemplaçãovirtuosa,esuportaráasvicissitudesdavidacomamaiornobrezaedecoro,seé"verdadeiramentebom"e"honestoacimadetodacensura".

Ora, muitas coisas acontecem por acaso, e coisas diferentes quanto àimportância.Éclaroqueospequenosincidentesfelizesouinfelizesnãopesammuitonabalança,masumamultidãodegrandesacontecimentos, senos foremfavoráveis, tornará nossa vida mais venturosa (pois não apenas são, em simesmos,defeitioaaumentarabelezadavida,masaprópriamaneiracomoumhomemosrecebepodesernobreeboa);e,sesevoltaremcontranós,poderãoesmagaremutilarafelicidade,poisque,alémdeseremacompanhadosdedor,impedemmuitasatividades.Todavia,mesmonessesanobrezadeumhomemsedeixa ver, quando aceita com resignação muitos grandes infortúnios, não porinsensibilidadeàdor,maspornobrezaegrandezadealma.

Seasatividadessão,comodissemos,oquedácaráteràvida,nenhumhomemfeliz pode tornar-se desgraçado, porquanto jamais praticará atos odiosos e vis.Com efeito, o homem verdadeiramente bom e sábio suporta com dignidade,pensamosnós,todasascontingênciasdavida,esempretiraomaiorproveitodascircunstâncias,comoumgeneralquefazomelhorusopossíveldoexércitosoboseucomandoouumbomsapateiro fazosmelhorescalçadoscomocouroquelhedão;edomesmomodocomtodososoutrosartífices.E,seassimé,ohomemfeliznuncapodetornar-sedesgraçado,muitoemboranãoalcanceabeatitudesetiverumafortunasemelhanteàdePríamo.

Etampoucoseráeleversátilemutável,poisnemsedeixarádesviarfacilmentedo seu venturoso estado por quaisquer desventuras comuns,mas somente pormuitas egrandes;nem, se sofreumuitas egrandesdesventuras, recuperará embrevetempoasuafelicidade.Searecuperar,seránumtempolongoecompleto,emquehouveralcançadomuitoseesplêndidossucessos.

Quando diremos, então, que não é feliz aquele que age conforme à virtudeperfeita e está suficientemente provido de bens exteriores, não durante umperíodoqualquer,masatravésdeumavidacompleta?Oudevemosacrescentar:"Equeestádestinadoaviverassimeamorrerdemodoconsentâneocomasuavida"? Em verdade, o futuro nos é impenetrável, enquanto a felicidade,afirmamos nós, é um fim e algo de final a todos os respeitos. Sendo assim,

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chamaremos felizes àqueles dentre os seres humanos vivos em que essascondiçõesserealizemouestejamdestinadasarealizar-se—mashomensfelizes.Sobreestasquestõesdissemososuficiente.

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Queasortedosdescendentesedetodososamigosdeumhomemnãolheafetede nenhum modo a felicidade parece ser uma doutrina cínica e contrária àopiniãocomum.Mas,vistoseremnumerosososacontecimentosqueocorrem,eadmitiremtodaespéciedediferenças,ejáquealgunsnostocammaisdepertoeoutros menos, mostra-se uma tarefa longa— mais do que longa, infinita—discutir cada um em detalhe. Talvez possamos contentar-nos com um esboçogeral.

Se,pois,algunsinfortúniospessoaisdeumhomemtêmcertopesoeinfluênciana vida, enquanto outros são, por assim dizer, mais leves, também existemdiferençasentreosinfortúniosdenossosamigostomadosemconjunto,enãodánomesmo que os diversos sofrimentos sobrevenham aos vivos ou aosmortos(com efeito, a diferença aqui émuitomaior, até, do que entre atos terríveis einíquospressupostosnumatragédiaouefetivamenterepresentadosnacena),essadiferençatambémdeveserlevadaemconta—ouantes,talvez,ofatodehaverdúvidasobreseosmortosparticipamdequalquerbemoumal.Poisparece,deacordocomtudoqueacabamosdeponderar,queaindaquealgodebomoumauchegueatéeles,devemserinfluênciasmuitofracaseinsignificantes,queremsimesmas, quer para eles; ou, então, serão tais em grau e em espécie que nãopossam tornar felizquemnãooé,nemroubarabeatitudeaosventurosos.Porconseguinte,aboaoumáfortunadosamigosparecetercertosefeitossobreosmortos,masefeitosdetalespécieegrauquenãotornamdesgraçadososfelizesnemproduzemqualqueroutraalteraçãosemelhante.

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Tendo dado uma resposta definida a essas questões, vejamos agora se afelicidadepertence aonúmerodas coisasque são louvadas, ou, antes, dasquesão estimadas; pois é evidente que não podemos colocá-la entre aspotencialidades.

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Tudo que é louvado parece merecer louvores por ser de certa espécie erelacionadodeummodoqualquercomalgumaoutracoisa;porquelouvamosojustoouovaloroso, e, emgeral, tantoohomembomcomoaprópria virtude,devidoàsaçõesefunçõesemjogo,elouvamosohomemforte,obomcorredor,etc.,porquesãodeumadeterminadaespécieeserelacionamdecertomodocomalgo de bom ou importante. Isso também é evidente quando consideramos oslouvoresdirigidosaosdeuses,poispareceabsurdoqueosdeusessejamaferidospelos nossos padrões; no entanto assim se faz, porque o louvor envolve umareferência,comodissemos,aalgumaoutracoisa.

Entretanto, se o louvor se aplica a coisas do gênero das que descrevemos,evidentemente o que se aplica às melhores coisas não é louvor, mas algo demelhoredemaior;porquantoaosdeuseseaosmaisdivinosdentreoshomens,oque fazemos é chamá-los felizes e bem-aventurados. E omesmo vale para ascoisas:ninguémlouvaafelicidadecomolouvaajustiça,masantesachamadebem-aventurada,comoalgomaisdivinoemelhor.

Também parece que Eudoxo estava acertado em seu método de sustentar asupremacia do prazer. Pensava ele que o fato de não ser louvado o prazer,embora seja um bem, está a indicar que ele émelhor do que as coisas a queprodigalizamoslouvores—etaissãoDeuseobem;poiséemrelaçãoaelesquetodasasoutrascoisassãojulgadas.

Olouvoréapropriadoàvirtude,poisgraçasaelaoshomenstendemapraticaraçõesnobres,masosencômiossedirigemaosatos,querdocorpo,querdaalma.Noentanto, talvezasutilezanestesassuntossejamaisprópriadosquefizeramumestudodosencômios;paranós,oquesedisseacimadeixabastanteclaroquea felicidade pertence ao número das coisas estimadas e perfeitas. E tambémpareceserassimpelo fatodeserelaumprimeiroprincípio;poisé tendo-aemvistaquefazemostudoquefazemos,eoprimeiroprincípioecausadosbensé,afirmamosnós,algodeestimadoededivino.

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Já que a felicidade é uma atividade da alma conforme à virtude perfeita,devemos considerar a natureza da virtude: pois talvez possamos compreendermelhor,poressemeio,anaturezadafelicidade.

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Ohomemverdadeiramentepolíticotambémgozaareputaçãodehaverestudadoa virtude acimade todas as coisas, pois que ele deseja fazer comque os seusconcidadãos sejam bons e obedientes às leis. Temos um exemplo disso noslegisladoresdoscretensesedosespartanos,eemquaisqueroutrosdessaespéciequepossaterhavidoalhures.E,seestainvestigaçãopertenceàciênciapolítica,éevidentequeelaestarádeacordocomonossoplanoinicial.

Mas a virtude que devemos estudar é, fora de qualquer dúvida, a virtudehumana;porquehumanoeraobemehumanaafelicidadequebuscávamos.Porvirtude humana entendemos não a do corpo, mas a da alma; e também àfelicidadechamamosumaatividadedealma.Mas,assimsendo,éóbvioqueopolíticodevesaberdealgummodooquedizrespeitoàalma,exatamentecomodeveconhecerosolhosouatotalidadedocorpoaquelequesepropõeacurá-los;e commaior razão ainda por ser a políticamais estimada emelhor do que amedicina.Mesmoentreosmédicos,osmaiscompetentesdão-segrandetrabalhoparaadquiriroconhecimentodocorpo.

O político, pois, deve estudar a alma tendo em vista os objetivos quemencionamos e quanto baste para o entendimento das questões que estamosdiscutindo, já que os nossos propósitos não parecem exigir uma investigaçãomaisprecisa,queseria,aliás,muitotrabalhosa.

A seu respeito são feitas algumas afirmações bastante exatas, mesmo nasdiscussões estranhas à nossa escola; e delas devemos utilizar-nos agora. Porexemplo:queaalmatemumaparteracionaleoutraparteprivadaderazão.Queelassejamdistintascomoaspartesdocorpooudequalquercoisadivisível,oudistintas por definição mas inseparáveis por natureza, como o côncavo e oconvexonacircunferênciadeumcírculo,não interessaàquestãocomquenosocupamosdemomento.

Doelementoirracional,umasubdivisãopareceestarlargamentedifundidaeserdenaturezavegetativa.Refiro-meàqueécausadanutriçãoedocrescimento;pois é essa espécie de faculdade da alma que devemos atribuir a todos oslactanteseaosprópriosembriões,equetambémestápresentenosseresadultos:com efeito, é mais razoável pensar assim do que atribuir-lhes uma faculdadediferente. Ora, a excelência desta faculdade parece ser comum a todas asespécies,enãoespecificamentehumana.Alémdisso,tudoestáaindicarqueelafuncionaprincipalmenteduranteosono,aopassoqueénesseestadoquemenossemanifestamabondadeeamaldade.Daívemoaforismodequeosfelizesnão

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diferemdosinfortunadosdurantemetadedesuavida;oqueémuitonatural,emvistade sero sonouma inatividadedaalmaem relaçãoàquiloquenos levaachamá-ladeboaoumá;amenos,talvez,queumapequenapartedomovimentodos sentidos penetre de algummodo na alma, tornando os sonhos do homembom melhores que os da gente comum. Mas basta quanto a esse assunto.Deixemos de lado a faculdade nutritiva, uma vez que, por natureza, ela nãoparticipadaexcelênciahumana.

Parecehavernaalmaaindaoutroelementoirracional,masque,emcertosentido,participa da razão. Com efeito, louvamos o princípio racional do homemcontinente e do incontinente, assim como a parte de sua alma que possui talprincípio,porquantoelaosimpelenadireçãocertaeparaosmelhoresobjetivos;mas,aomesmotempo,encontra-senelesoutroelementonaturalmenteopostoaoprincípioracional,lutandocontraestearesistindo-lhe.Porque,exatamentecomoosmembrosparalisadossevoltamparaaesquerdaquandoprocuramosmovê-lospara a direita, a mesma coisa sucede na alma: os impulsos dos incontinentesmovem-se em direções contrárias. Com uma diferença, porém: enquanto, nocorpo,vemosaquiloque sedesviadadireçãocerta,naalmanãopodemosvê-lo.

Apesar disso, devemos admitir que também na alma existe qualquer coisacontráriaaoprincípioracional,qualquercoisaquelheresisteeseopõeaele.Emquesentidoesseelemento sedistinguedosoutros, éumaquestãoquenãonosinteressa. Nem sequer parece ele participar de um princípio racional, comodissemos. Seja como for, no homem continente ele obedece ao referidoprincípio; e é de presumir que no temperante e no bravo sejamais obedienteainda,poisemtaishomenselefala,arespeitodetodasascoisas,comamesmavozqueoprincípioracional.

Porconseguinte,oelementoirracionaltambémpareceserduplo.Comefeito,oelementovegetativonãotemnenhumaparticipaçãonumprincípioracional,masoapetitivoe,emgeral,oelementodesiderativoparticipadeleemcertosentido,na medida em que o escuta e lhe obedece. É nesse sentido que falamos em"atenderàsrazões"dopaiedosamigos,oqueébemdiversodeponderararazãodeumapropriedadematemática.

Que, de certo modo, o elemento irracional é persuadido pela razão, tambémestãoaindicá-loosconselhosquesecostumadar,assimcomotodasascensurase exortações. E, se convém afirmar que também esse elemento possui um

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princípioracional,oquepossuitalprincípio(comotambémoquecarecedele)será de dupla natureza: uma parte possuindo-o em si mesma e no sentidorigoroso do termo, e a outra com a tendência de obedecer-lhe como um filhoobedeceaopai.

A virtude também se divide em espécies de acordo com esta diferença,porquantodizemosquealgumasvirtudessãointelectuaiseoutrasmorais;entreasprimeirastemosasabedoriafilosófica,acompreensão,asabedoriaprática;eentre as segundas,por exemplo, a liberalidadee a temperança.Comefeito, aofalar do caráter de um homem não dizemos que ele é sábio ou que possuientendimento,masqueécalmooutemperante.Noentanto,louvamostambémosábio, referindo-nos ao hábito; e aos hábitos dignos de louvor chamamosvirtudes.

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LIVROII

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Sendo,pois,deduasespéciesavirtude,intelectualemoral,aprimeira,porviade regra, gera-se e cresce graças ao ensino— por isso requer experiência etempo;enquantoavirtudemoraléadquiridaemresultadodohábito,dondeter-se formadooseunomeporumapequenamodificaçãodapalavra(hábito).Portudoisso,evidencia-setambémquenenhumadasvirtudesmoraissurgeemnóspor natureza; com efeito, nada do que existe naturalmente pode formar umhábitocontrárioàsuanatureza.Porexemplo,àpedraquepornaturezasemoveparabaixonão sepode imprimirohábitode irparacima, aindaque tentemosadestrá-lajogando-adezmilvezesnoar;nemsepodehabituarofogoadirigir-separabaixo,nemqualquercoisaquepornaturezasecomportedecertamaneiraacomportar-sedeoutra.

Nãoé,pois,pornatureza,nemcontrariandoanaturezaqueasvirtudessegeramem nós. Diga-se, antes, que somos adaptados por natureza a recebê-las e nostornamosperfeitospelohábito.

Por outro lado, de todas as coisas que nos vêm por natureza, primeiroadquirimos a potência emais tarde exteriorizamos os atos. Isso é evidente nocasodossentidos,poisnãofoiporverououvirfrequentementequeadquirimosavisãoeaaudição,mas,pelocontrário,nósaspossuíamosantesdeusá-las,enãoentramosnapossedelaspelouso.Comasvirtudesdá-seexatamenteooposto:adquirimo-laspeloexercício,comotambémsucedecomasartes.Comefeito,ascoisas que temos de aprender antes de poder fazê-las, aprendemo-las fazendo;por exemplo, os homens tornam-se arquitetos construindo e tocadores de liratangendoesseinstrumento.Damesmaforma,tornamo-nosjustospraticandoatosjustos,eassimcomatemperança,abravura,etc.

IstoéconfirmadopeloqueacontecenosEstados:oslegisladorestornambonsoscidadãos por meio de hábitos que lhes incutem. Esse é o propósito de todolegislador,equemnãologrataldesideratofalhanodesempenhodasuamissão.Nisso,precisamente,resideadiferençaentreasboaseasmásconstituições.

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Aindamais:édasmesmascausasepelosmesmosmeiosquesegeraesedestróitoda virtude, assim como toda arte: de tocar a lira surgemos bons e osmausmúsicos. Isso também vale para os arquitetos e todos os demais; construindobem,tornam-sebonsarquitetos;construindomal,maus.Senãofosseassimnãohaverianecessidadedemestres,etodososhomensteriamnascidobonsoumausemseuofício.

Isso,pois,éoquetambémocorrecomasvirtudes:pelosatosquepraticamosemnossas relações com os homens nos tornamos justos ou injustos; pelo quefazemos em presença do perigo e pelo hábito do medo ou da ousadia, nostornamosvalentesoucovardes.Omesmosepodedizerdosapetitesedaemoçãoda ira: uns se tornam temperantes e calmos, outros sem limites e irascíveis,portando-sedeummodooudeoutroemigualdadedecircunstâncias.

Numa palavra: as diferenças de caráter nascem de atividades semelhantes. Épreciso,pois,atentarparaaqualidadedosatosquepraticamos,porquantodasuadiferençasepodeaquilataradiferençadecaracteres.Enãoécoisadesomenosque desde a nossa juventude nos habituemos desta ou daquelamaneira. Tem,pelocontrário,imensaimportância,oumelhor:tudodependedisso.

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Umavezqueapresenteinvestigaçãonãovisaaoconhecimentoteóricocomoasoutras—porquenãoinvestigamosparasaberoqueéavirtude,masafimdenostornarmosbons,docontrárioonossoestudoseria inútil—,devemosexaminaragora a natureza dos atos, isto é, como devemos praticá-los; pois que, comodissemos,elesdeterminamanaturezadosestadosdecaráterquedaísurgem.

Ora,quedevemosagirdeacordocomaregrajustaéumprincípiocomumenteaceito, que nós encamparemos. Mais tarde havemos de nos ocupar dele,examinandooquesejaaregrajustaecomoserelacionacomasoutrasvirtudes.Umacoisa,porém,deveserassentadadeantemão,eéquetodoessetratamentodeassuntosdecondutasefaráemlinhasgeraisenãodemaneiraprecisa.Desdeoprincípiofizemosverqueasexplicaçõesquebuscamosdevemestardeacordocom os respectivos assuntos. Tal como se passa no que se refere à saúde, asquestõesdecondutaedoqueébomparanósnãotêmnenhumafixidez.Sendoessa a natureza da explicação geral, a dos casos particulares será ainda mais

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carentedeexatidão,poisnãoháarteoupreceitoqueosabranjaatodos,masaspróprias pessoas atuantes devem considerar, em cada caso, o que é maisapropriado à ocasião, como também sucede na arte da navegação e namedicina.

Mas,emboraonossotratadosejadestanatureza,devemosprestartantoserviçoquanto for possível. Comecemos, pois, por frisar que está na natureza dessascoisasoseremdestruídaspelafaltaepeloexcesso,comoseobservanoreferenteàforçaeàsaúde(pois,a fimdeobteralgumaluzsobrecoisas imperceptíveis,devemosrecorreràevidênciadascoisassensíveis).Tantoadeficiênciacomooexcesso de exercício destroem a força; e, da mesma forma, o alimento ou abebidaqueultrapassemdeterminadoslimites,tantoparamaiscomoparamenos,destroem a saúde ao passo que, sendo tomados nas devidas proporções, aproduzem,aumentamepreservam.

Omesmo acontece com a temperança, a coragem e as outras virtudes, pois ohomemqueatudotemeedetudofoge,nãofazendofrenteanada,torna-seumcovarde,eohomemquenãotemeabsolutamentenada,masvaiaoencontrodetodososperigos, torna-se temerário;e,analogamente,oqueseentregaa todososprazeresenãoseabstémdenenhumtorna-sesemlimite,enquantooqueevitatodososprazeres,comofazemosrústicos,setornadecertomodoinsensível.

A temperança e a coragem, pois, são destruídas pelo excesso e pela falta, epreservadas pela mediania. Mas não só as causas e fontes de sua geração ecrescimentosãoasmesmasqueasdeseuperecimento,comotambéméamesmaesfera de sua atualização. Isto tambémé verdadeiro das coisasmais evidentesaossentidos,comoaforça,porexemplo:elaéproduzidapelaingestãodegrandequantidade de alimento e por um exercício intenso, e quem mais está emcondições de fazer isso é o homem forte. O mesmo ocorre com as virtudes:tornamo-nostemperantesabstendo-nosdeprazeres,eédepoisdenostornarmostais que somos mais capazes dessa abstenção. E igualmente no que toca àcoragem, pois é habituando-nos a desprezar e arrostar coisas terríveis que nostornamos bravos, e depois de nos tornarmos tais, somosmais capazes de lhesfazerfrente.

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Devemos tomar como sinais indicativos do caráter o prazer ou a dor queacompanhamosatos;porqueohomemqueseabstémdeprazerescorporaisesedeleita nessaprópria abstenção é temperante, enquantooque se aborrece comelaé sem limite;equemarrostacoisas terríveise senteprazeremfazê-lo,ou,pelomenos,nãosofrecomisso,ébravo,enquantoohomemquesofreécovarde.Comefeito,aexcelênciamoral,relaciona-secomprazeresedores;éporcausadoprazer que praticamosmás ações, e por causa da dor que nos abstemos deações nobres. Por isso deveríamos ser educados de uma determinadamaneiradesde a nossa juventude, como diz Platão, a fim de nos deleitarmos e desofrermoscomascoisasquenosdevemcausardeleiteousofrimento,poisessaéaeducaçãocerta.

Poroutro lado, se asvirtudesdizem respeito a ações epaixões, e cada açãoecada paixão é acompanhada de prazer ou de dor, também por este motivo avirtudeserelacionarácomprazeresedores.Outracoisaqueestáaindicá-loéofatodeser infligidoocastigoporessesmeios;ora,ocastigoéumaespéciedecura,eédanaturezadascurasoefetuarem-sepeloscontrários.

Ainda mais: como dissemos não faz muito, todo estado da alma tem umanaturezarelativaeconcernenteàespéciedecoisasquetendematorná-lamelhoroupior;maséemrazãodosprazeresedoresqueoshomensse tornammaus,istoé,buscando-osouevitando-os—querprazeresedoresquenãodevem,naocasiãoemquenãodevemoudamaneirapelaqualnãodevembuscarouevitar,quer por errarem numa das outras alternativas semelhantes que se podemdistinguir.Porisso,muitoschegamadefinirasvirtudescomocertosestadosdeinflexibilidade e repouso; não acertadamente, porém, porque se exprimem demodoabsoluto,semdizer"comosedeve","comonãosedeve","quandosedeveounão se deve", e as outras condiçõesque se podemacrescentar.Admitimos,pois,queessaespéciedeexcelênciatendeafazeroqueémelhorcomrespeitoaosprazereseàsdores,equeovíciofazocontrário.

Os fatos seguintes também nos podem mostrar que a virtude e o vício serelacionamcomessasmesmas coisas.Comoexistem trêsobjetosde escolha etrêsderejeição—onobre,ovantajoso,oagradáveleseuscontrários,ovil,oprejudicialeodoloroso—,arespeitodetodoselesohomembomtendeaagircertoeohomemmauaagirerrado,eespecialmentenoquetocaaoprazer.Comefeito, além de ser comum aos animais, este também acompanha todos osobjetos de escolha, pois até o nobre e o vantajoso se apresentam comoagradáveis.

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Acrescequeoagradáveleodolorosocresceramconoscodesdeanossainfância,eporissoédifícilconteressaspaixões,enraizadascomoestãonanossavida.E,alguns mais e outros menos, medimos nossas próprias ações pelo estalão doprazeredador.Poressemotivo,todaanossainquiriçãogiraráemtornodeles,jáque,pelo fatodeserem legítimosou ilegítimos,oprazereadorquesentimostêmefeitonãopequenosobreasnossasações.

Poroutro lado,parausarmosa frasedeHeráclito, émaisdifícil lutar contraoprazerdoquecontraador,mastantoavirtudecomoaarteseorientamparaomaisdifícil,queaté tornamelhoresascoisasboas.Essaé tambémarazãoporquetantoavirtudecomoaciênciapolíticagiramsempreemtornodeprazeresedores,devezqueohomemquelhesderbomusoserábomeoquelhesdermauusoserámau.

Demosporassentado,pois,queavirtudetemquevercomprazeresedores;que,pelosmesmosatosdequeelaseorigina,tantoéacrescidacomo,setaisatossãopraticadosdemododiferente,destruída;equeosatosdeondesurgiuavirtudesãoosmesmosemqueelaseatualiza.

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Alguémpoderiaperguntarqueentendemosnósaodeclararquedevemostornar-nos justos praticando atos justos e temperantes praticando atos temperantes;porque, se um homem pratica tais atos, é que já possui essas virtudes,exatamentecomo,sefazcoisasconcordescomasleisdagramáticaedamúsica,équejáégramáticoemúsico.

Ounãoseráistoverdadeironemsequerdasartes?Pode-sefazerumacoisaqueestejaconcordecomasleisdagramática,querporacaso,querporsugestãodeoutrem. Um homem, portanto, só é gramático quando faz algo pertencente àgramática e o faz gramaticalmente; e isto significa fazê-lo de acordo com osconhecimentosgramaticaisqueeleprópriopossui.

Sucede, por outro lado, que neste ponto não há similaridade de caso entre asarteseasvirtudes,porqueosprodutosdasprimeirastêmasuabondadeprópria,bastando que possuam determinado caráter; mas porque os atos que estão deacordo com as virtudes tenham determinado caráter, não se segue que sejampraticadosdemaneirajustaoutemperante.Tambéméimportantequeoagentese

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encontre em determinada condição ao praticá-los: em primeiro lugar deve terconhecimentodoquefaz;emsegundo,deveescolherosatos,eescolhê-losporeles mesmos; e em terceiro, sua ação deve proceder de um caráter firme eimutável. Estas não são consideradas como condições para a posse das artes,salvoosimplesconhecimento;mascomocondiçãoparaapossedasvirtudesoconhecimentopoucoounenhumpesotem,aopassoqueasoutrascondições—isto é, aquelas mesmas que resultam da prática amiudada de atos justos etemperantes—são,numapalavra,tudo.

Por conseguinte, as ações são chamadas justas e temperantes quando são taiscomoasquepraticariaohomemjustoou temperante;masnãoé temperanteohomem que as pratica, e sim o que as pratica tal como o fazem os justos etemperantes. É acertado, pois, dizer que pela prática de atos justos se gera ohomemjusto,epelapráticadeatostemperantes,ohomemtemperante;semessaprática,ninguémteriasequerapossibilidadedetornar-sebom.

Masamaioriadaspessoasnãoprocedeassim.Refugiam-senateoriaepensamqueestãosendofilósofosesetornarãobonsdessamaneira.Nistoseportam,decertomodo,comoenfermosqueescutassematentamenteosseusmédicos,masnãofizessemnadadoqueesteslhesprescrevessem.Assimcomoasaúdedestesúltimosnãopoderestabelecer-secomtaltratamento,aalmadossegundosnãosetornarámelhorcomsemelhantecursodefilosofia.

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Devemos considerar agora o que é a virtude.Visto quena alma se encontramtrês espécies de coisas— paixões, faculdades e disposições de caráter —, avirtudedevepertenceraumadestas.

Porpaixõesentendoosapetites,acólera,omedo,aaudácia,áinveja,aalegria,aamizade,oódio,odesejo,aemulação,acompaixão,eemgeralossentimentosque são acompanhadosdeprazer oudor; por faculdades, as coisas emvirtudedasquaissedizquesomoscapazesdesentirtudoisso,ouseja,denosirarmos,de magoar-nos ou compadecer-nos; por disposições de caráter, as coisas emvirtude das quais nossa posição com referência às paixões é boa ou má. Porexemplo, com referência à cólera, nossa posição émá se a sentimos demodoviolentooudemasiadofraco,eboaseasentimosmoderadamente;edamesma

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formanoqueserelacionacomasoutraspaixões.

Ora, nem as virtudes nem os vícios são paixões, porque ninguém nos chamabons ou maus devido às nossas paixões, e sim devido às nossas virtudes ouvícios, e porque não somos louvados nem censurados por causa de nossaspaixões(ohomemquesentemedooucóleranãoélouvado,nemécensuradooque simplesmente se encoleriza,mas simo que se encoleriza de certomodo);maspelasnossasvirtudesevíciossomosefetivamentelouvadosecensurados.

Por outro lado, sentimos cólera emedo semnenhuma escolha de nossa parte,masasvirtudessãomodalidadesdeescolha,ouenvolvemescolha.Alémdisso,comrespeitoàspaixõessedizquesomosmovidos,mascomrespeitoàsvirtudese aos vícios não se diz que somos movidos, e sim que temos tal ou taldisposição.

Porestasmesmas razões, tambémnão são faculdades,porquantoninguémnoschama bons ou maus, nem nos louva ou censura pela simples capacidade desentir as paixões.Acrescequepossuímos as faculdadespornatureza,masnãonostornamosbonsoumauspornatureza.Jáfalamosdistoacima.

Por conseguinte, se as virtudes não são paixões nem faculdades, só resta umaalternativa:adequesejamdisposiçõesdecaráter.

Mostramos,assim,oqueéavirtudecomrespeitoaoseugênero.

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Nãobasta, contudo,definir avirtudecomoumadisposiçãodecaráter; cumpredizerqueespéciededisposiçãoéela.

Observemos, pois, que toda virtude ou excelência não só coloca em boacondição a coisa de que é a excelência como também faz com que a funçãodessa coisa seja bemdesempenhada. Por exemplo, a excelência do olho tornabons tanto o olho como a sua função, pois é graças à excelência do olho quevemosbem.Analogamente,aexcelênciadeumcavalotantootornabomemsimesmocomobomnacorrida,emcarregaroseucavaleiroeemaguardardepéfirmeoataquedoinimigo.Portanto,seistovaleparatodososcasos,avirtudedohomem também será a disposição de caráter que o torna bom e que o faz

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desempenharbemasuafunção.

Comoissovemasuceder,jáoexplicamosatrás,masaseguinteconsideraçãodanaturezaespecificadavirtudelançaránovaluzsobreoassunto.Emtudoqueécontínuoedivisívelpode-setomarmais,menosouumaquantidadeigual,eissoqueremtermosdaprópriacoisa,querrelativamenteanós;eoigualéummeio-termoentreoexcessoeafalta.Pormeio-termonoobjetoentendoaquiloqueéequidistante de ambos os extremos, e que é um só e omesmo para todos oshomens;epormeio-termorelativamenteanós,oquenãoénemdemasiadonemdemasiadamente pouco — e este não é um só e o mesmo para todos. Porexemplo,sedezédemaisedoisépouco,seiséomeio-termo,consideradoemfunção do objeto, porque excede e é excedido por uma quantidade igual; essenúmeroéintermediáriodeacordocomumaproporçãoaritmética.Masomeio-termorelativamenteanósnãodeveserconsideradoassim:sedezlibrasédemaisparaumadeterminadapessoacomereduaslibrasédemasiadamentepouco,nãose segue daí que o treinador prescreverá seis libras; porque isso também é,talvez,demasiadoparaapessoaquedevecomê-lo,oudemasiadamentepouco—demasiadamente pouco para Milo e demasiado para o atleta principiante. Omesmoseaplicaàcorridaeàluta.Assim,ummestreemqualquerarteevitaoexcessoeafalta,buscandoomeio-termoeescolhendo-o—omeio-termonãonoobjeto,masrelativamenteanós.

Seéassim,pois,quecadaarte realizabemoseu trabalho—tendodiantedosolhosomeio-termoe julgandosuasobrasporessepadrão;epor issodizemosmuitasvezesqueàsboasobrasdeartenãoépossíveltirarnemacrescentarnada,subentendendo que o excesso e a falta destroem a excelência dessas obras,enquanto omeio-termo a preserva; e para este, como dissemos, se voltam osartistasnoseutrabalho—,ese,ademaisdisso,avirtudeémaisexataemelhorquequalquerarte,comotambémoéanatureza,segue-sequeavirtudedeveteroatributodevisaraomeio-termo.Refiro-meàvirtudemoral,poiséelaquedizrespeito às paixões e ações, nas quais existe excesso, carência e um meio-termo.

Porexemplo,tantoomedocomoaconfiança,oapetite,aira,acompaixão,eemgeraloprazereador,podemsersentidosemexcessoouemgrauinsuficiente;e,numcasocomonooutro, issoéummal.Mas senti-losnaocasiãoapropriada,comreferênciaaosobjetosapropriados,paracomaspessoasapropriadas,pelomotivoedamaneiraconveniente,nissoconsistemomeio-termoeaexcelênciacaracterísticosdavirtude.

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Analogamente, no que tange às ações também existe excesso, carência e ummeio-termo.Ora,avirtudediz respeitoàspaixõeseaçõesemqueoexcessoéuma formadeerro, assimcomoacarência, aopassoqueomeio-termoéumaformade acertodignade louvor; e acertar e ser louvada são característicasdavirtude. Em conclusão, a virtude é uma espécie de mediania, já que, comovimos,elapõeasuamiranomeio-termo.

Poroutrolado,épossívelerrardemuitosmodos(poisomalpertenceàclassedoilimitadoeobemàdolimitado,comosupuseramospitagóricos),massóháummododeacertar.Porisso,oprimeiroéfácileosegundodifícil—fácilerraramira, difícil atingir o alvo. Pelas mesmas razões, o excesso e a falta sãocaracterísticosdovício,eamedianiadavirtude:

Poisoshomenssãobonsdeummodosó,emausdemuitosmodos.

A virtude é, pois, uma disposição de caráter relacionada com a escolha econsistente numa mediania, isto é, a mediania relativa a nós, a qual édeterminadaporumprincípio racionalprópriodohomemdotadode sabedoriaprática.Eéummeio-termoentredoisvícios,umporexcessoeoutroporfalta;pois que, enquanto os vícios ou vão muito longe ou ficam aquém do que éconvenientenotocanteàsaçõesepaixões,avirtudeencontraeescolheomeio-termo.Eassim,noquetocaàsuasubstânciaeàdefiniçãoquelheestabeleceaessência,avirtudeéumamediania;comreferênciaaosumobemeaomaisjusto,é,porém,umextremo.

Masnem todaaçãoepaixãoadmiteummeio-termo,poisalgumas têmnomesquejádesimesmosimplicammaldade,comoodespeito,odespudor,ainveja,e,nocampodasações,oadultério,ofurto,oassassínio.Todasessascoisaseoutrassemelhantesimplicam,nosprópriosnomes,quesãomásemsimesmas,enãooseuexcessooudeficiência.Nelasjamaispodehaverretidão,masunicamenteoerro. E, no que se refere a essas coisas, tampouco a bondade ou maldadedependem de cometer adultério com a mulher apropriada, na ocasião e damaneiraconvenientes,masfazersimplesmentequalquerdelaséummal.

Igualmente absurdo seria buscar ummeio-termo, um excesso e uma falta ematosinjustos,covardesoulibidinosos;porqueassimhaveriaummeio-termodoexcessoedacarência,umexcessodeexcessoeumacarênciadecarência.Mas,do mesmo modo que não existe excesso nem carência de temperança e decoragem, pois o que é intermediário também é, noutro sentido, um extremo,

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também das ações que mencionamos não há meio-termo, nem excesso, nemfalta, porque, de qualquer forma que sejampraticadas, sãomás.Em suma, doexcessooudafaltanãohámeio-termo,comotambémnãoháexcessooufaltademeio-termo.

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Não devemos, porém, contentar-nos com esta exposição geral; é importanteaplicá-la tambémaosfatos individuais.Comefeito,dasproposiçõesrelativasàconduta,asuniversaissãomaisvazias,masasparticularessãomaisverdadeiras,porquantoacondutaversasobrecasos individuaisenossasproposiçõesdevemharmonizar-secomosfatosnessescasos.

Podemostomá-losnonossoquadrogeral.Emrelaçãoaossentimentosdemedoede confiança, a coragem é o meio-termo; dos que excedem, o que o faz nodestemornãotemnome(muitasdisposiçõesnãootêm),enquantooqueexcedena audácia é temerário, e o que excede nomedo emostra falta de audácia écovarde.Comrelaçãoaosprazeresedores—nãotodos,emenosnoquetangeàsdores—omeio-termoéatemperançaeoexcessoéaintemperança.Pessoasdeficientes no tocante aos prazeres não são muito encontradiças, e por estemotivonãoreceberamnome;chamemo-las,porém,"insensíveis".

No que se refere a dar e receber dinheiro o meio-termo é a liberalidade; oexcessoeadeficiência,respectivamente,prodigalidadeeavareza.Nestaespéciedeaçõesaspessoasexcedeme sãodeficientesdemaneirasopostas:opródigoexcedenogastareédeficientenoreceber,enquantooavaroexcedenorecebereé deficiente no gastar. (De momento, tudo que fazemos é dar um esboço ousumário, e com isso nos contentamos; mais adiante essas disposições serãodescritascommaisexatidão).

Ainda no que diz respeito ao dinheiro, existem outras disposições: ummeio-termo,amagnificência(poisohomemmagnificentediferedoliberal;oprimeirolida comgrandes quantias, o segundo comquantias pequenas); um excesso, avulgaridadeeomaugosto;eumadeficiência,amesquinhez;estasdiferemdasdisposiçõescontráriasàliberalidade,emaistardediremosemquê.

Comrespeitoàhonraeàdesonra,omeio-termoéojustoorgulho,oexcessoéconhecido como uma espécie de "vaidade oca" e a deficiência como uma

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humildade indébita; eamesma relaçãoqueapontamosentrea liberalidadeeamagnificência, da qual a primeira difere por lidar com pequenas quantias,também se verifica aqui, pois há uma disposição que tem alguns pontos emcomum com o justo orgulho,mas ocupa-se com pequenas honras, enquanto aestesóinteressamasgrandes.Porqueépossíveldesejarahonracomosedeve,maisdoque sedeveemenosdoque sedeve, eohomemqueexcedeem taisdesejoséchamadoambicioso,oqueficaaquémémodesto,enquantoapessoaintermediárianãotemnome.

As disposições também não receberam nome, salvo a do ambicioso, que sechamaambição.Porisso,aspessoasqueseencontramnosextremosarrogam-sea posição intermediária; e nós mesmos às vezes chamamos as pessoasintermediárias de ambiciosas e outras vezes de modestas, e ora louvamos aprimeiradisposição,oraasegunda.Arazãodissoserádadamaisadiante;agora,porém,falemossobreasdemaisdisposições,deacordocomométodoindicado.

Notocanteàcóleratambémháumexcesso,umafaltaeummeio-termo.Emborapraticamente não tenham nomes, uma vez que chamamos calmo ao homemintermediário,sejaomeio-termotambémacalma;edosqueseencontramnosextremos,chamemos irascívelaoqueexcedee irritabilidadeaoseuvício;eaoqueficaaquémdajustamedidachamemospacato,ecalmaàsuadeficiência.

Há outros três meios-termos que diferem entre si, apesar de revelarem certasemelhança comum. Todos eles dizem respeito ao intercâmbio em atos epalavras,masdiferemnoseguinte:umserelacionacomaverdadenessasesferase os outros dois com o que é aprazível; e destes, um se manifesta emproporcionar divertimento e o outro em todas as circunstâncias da vida. Épreciso, portanto, falar destes dois, a fim demelhor compreendermos que emtodas as coisas o meio-termo é louvável e os extremos nem louváveis nemcorretos,masdignosdecensura.Ora,amaioriadessasdisposiçõestambémnãoreceberamnomes,masdevemosesforçar-nospor inventá-los,paraqueanossaexposiçãosejaclaraefácildeacompanhar.

No que toca à verdade, o intermediário é a pessoa verídica e ao meio-termopodemoschamarveracidade,enquantoasimulaçãoqueexageraéajactânciaeapessoa que se caracteriza por esse hábito é jactanciosa; e a que subestima é afalsamodéstia,aquecorrespondeapessoafalsamentemodesta.

Quantoàaprazibilidadenoproporcionardivertimento,apessoaintermediáriaé

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espirituosa e aomeio-termo chamamos espírito; o excesso é a chocarrice, e apessoa caracterizada por ele, um chocarreiro, enquanto a pessoa que mostradeficiênciaéumaespéciederústicoeasuadisposiçãoéarusticidade.

Vejamos, finalmente, a terceira espécie de aprazibilidade, isto é, a que semanifesta na vida em geral. O homem que sabe agradar a todos da maneiradevida é amável, e omeio-termo é a amabilidade, enquanto o que excede oslimiteséumapessoaobsequiosasenãotemnenhumpropósitodeterminado,umlisonjeirosevisaaoseuinteressepróprio,eohomemquepecapordeficiênciaesemostrasempredesagradáveléumapessoamal-humoradaerixenta.

Também há meios-termos nas paixões e relativamente a elas, pois que avergonha não é uma virtude, e não obstante louvamos os modestos. Mesmonesses assuntos, diz-se que um homem é intermediário e outro excede, como,por exemplo, o acanhado que se envergonha de tudo; enquanto o quemostradeficiênciaenãoseenvergonhadecoisaalgumaéumdespudorado,eapessoaintermediáriaémodesta.

A justa indignação é um meio-termo entre a inveja e o despeito, e estasdisposiçõessereferemàdoreaoprazerquenosinspiramaboaoumáfortunadenossos semelhantes. O homem que se caracteriza pela justa indignaçãoconfrange-secomamáfortunaimerecida;oinvejoso,queoultrapassa,aflige-secomtodaboafortunaalheia;eodespeitado,longedeseafligir,chegaaopontoderejubilar-se.

Teremosoportunidadededescreveralhuresestasdisposições.Quantoàjustiça,como o significado deste termo não é simples, após descrever as outrasdisposições distinguiremos nele duas espécies e mostraremos em que sentidocada uma delas é um meio-termo; e trataremos do mesmo modo as virtudesracionais.

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Existem, pois, três espécies de disposições, sendo duas delas vícios queenvolvemexcessoecarênciarespectivamente,eaterceiraumavirtude,istoé,omeio-termo.Eemcertosentidocadaumadelasseopõeàsoutrasduas,poisquecadadisposiçãoextremaécontráriatantoaomeio-termocomoaooutroextremo,eomeio-termoé contrário a ambosos extremos: assimcomoo igual émaior

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relativamente ao menor e menor relativamente ao maior, também os estadosmedianossãoexcessivosemconfrontocomasdeficiênciasedeficientesquandocomparadoscomosexcessos,tantonaspaixõescomonasações.Comefeito,obravo parece temerário em relação ao covarde, e covarde em relação aotemerário;e,damesmaforma,o temperantepareceumvoluptuosoemrelaçãoaoinsensívele insensívelemrelaçãoaovoluptuoso,eo liberalparecepródigoem confronto com o avaro e avaro em confronto com o pródigo. Por isso aspessoas que se encontram nos extremos empurram uma para a outra aintermediária:ohomembravoéchamadode temeráriopelocovardeecovardepelotemerário,eanalogamentenosoutroscasos.

Opostascomosãoumasàsoutrasessasdisposições,amaiorcontrariedadeéaque se observa entre os extremos, e não destes para com o meio-termo;porquantoosextremosestãomaislongeumdooutroquedomeio-termo,assimcomo o grande está mais longe do pequeno e o pequeno do grande, do queambosestãodoigual.

Poroutro lado,algunsextremosmostramcertasemelhançacomomeio-termo,como a temeridade com a coragem e a prodigalidade com a liberalidade. Osextremos, porém,mostram amaior disparidade entre si; ora, os contrários sãodefinidos como as coisas quemais se afastam uma da outra, demodo que ascoisasmaisafastadasentresisãomaiscontrárias.

Aomeio-termo,omaiscontrárioàsvezeséadeficiência,outrasvezesoexcesso.Por exemplo, não é a temeridade, que representaumexcesso,mas a covardia,umadeficiência,quemaisseopõeàcoragem;masnocasodatemperança,oquemaisselheopõeéaintemperança,umexcesso.

Issosedeveadoismotivos,umdosquaisresidenaprópriacoisa:pelofatodeumdosextremosestarmaispróximodomeio-termoeassemelhar-semaisaele,nãoopomosaomeio-termoesseextremo, e simo seucontrário.Por exemplo,como a temeridade é consideradamais semelhante à coragem emais próximadesta,eacovardiamaisdessemelhante,éesteúltimoextremoquecostumamosoporaomeio-termo;porquantoascoisasquemaisseafastamdomeio-termosãoconsideradascomomaiscontráriasaele.

Esta é, pois, a causa inerente à própria coisa.A outra reside emnósmesmos,poisaquiloparaquemais tendemospornaturezanosparecemaiscontrárioaomeio-termo. Por exemplo, nós próprios tendemos mais naturalmente para os

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prazeres, e por isso somos mais facilmente levados à intemperança do que àcontenção.Daídizermosmaiscontráriosaomeio-termoaquelesextremosaquenosdeixamosarrastarcommaisfrequência;eporissoaintemperança,queéumexcesso,émaiscontráriaàtemperança.

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Está,pois,suficientementeesclarecidoqueavirtudemoraléummeio-termo,eemquesentidodevemosentenderestaexpressão;equeéummeio-termoentredoisvícios,umdosquaisenvolveexcessoeooutrodeficiência,eissoporqueasuanaturezaévisaràmedianianaspaixõesenosatos.

Doqueacabamosdedizer segue-sequenãoé fácil serbom,poisem todasascoisas édifícil encontraromeio-termo.Por exemplo, encontraromeiodeumcírculo não é para qualquer um, mas só para aquele que sabe fazê-lo; e, domesmomodo,qualquerumpodeencolerizar-se,darougastardinheiro—issoéfácil;masfazê-loàpessoaqueconvém,namedida,naocasião,pelomotivoedamaneiraqueconvém,eisoquenãoéparaqualquerume tampouco fácil.Porissoabondadetantoéraracomonobreelouvável.

Porconseguinte,quemvisaaomeio-termodeveprimeiroafastar-sedoquelheémaiscontrário,comoaconselhaCalipso:

Passaaolargodetalressacaedetalsurriada.Comefeito,dosextremos,umémais errôneo e o outro menos; portanto, como acertar no meio-termo éextraordinariamente difícil, devemos contentar-nos com o menor dos males,comosecostumadizer;eamelhormaneiradefazê-loéaquedescrevemos.Masdevemos considerar as coisas para as quais nós próprios somos facilmentearrastados, porque um pende numa direção e outro em outra; e isso se podereconhecerpeloprazerepeladorquesentimos.

Éprecisoforçar-nosairàdireçãodoextremocontrário,porquechegaremosaoestado intermediário afastando-nos o mais que pudermos do erro, comoprocedemaquelesqueprocuramendireitarvarastortas.

Ora, em todas as coisaso agradável eoprazer é aquilodequemaisdevemosdefender-nos,poisnãopodemosjulgá-locomimparcialidade.Aatitudeatomarem face do prazer é, portanto, a dos anciãos do povo para comHelena, e em

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todas as circunstâncias cumpre-nos dizer o mesmo que eles; porque, se nãodermos ouvidos ao prazer, correremos menos perigo de errar. Em resumo, éprocedendo dessa forma que teremos mais probabilidades de acertar com omeio-termo.

Nãohánegar,porém,queissosejadifícil,especialmentenoscasosparticulares:pois quem poderá determinar com precisão de que modo, com quem, emrespostaaqueprovocaçãoedurantequantotempodevemosencolerizar-nos?Eàsvezeslouvamososqueficamaquémdamedida,qualificando-osdecalmos,eoutrasvezeslouvamososqueseencolerizam,chamando-osdevaronis.Nãosecensura,contudo,ohomemquesedesviaumpoucodabondade,quernosentidodomenos,querdomais;sómerecereprocheohomemcujodesvioémaior,poisessenuncapassadespercebido.

Masatéquepontoumhomempodedesviar-sesemmerecercensura?Issonãoéfácildedeterminarpeloraciocínio,comotudoquesejapercebidopelossentidos;tais coisas dependem de circunstâncias particulares, e quem decide é apercepção.

Fica bem claro, pois, que em todas as coisas o meio-termo é digno de serlouvado,masqueàsvezesdevemos inclinar-nosparaoexcessoeoutrasvezesparaadeficiência.Efetivamente,essaéamaneiramaisfácildeatingiromeio-termoeoqueécerto.

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LIVROIII

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Visto que a virtude se relaciona com paixões e ações, e é às paixões e açõesvoluntáriasquesedispensalouvorecensura,enquantoasinvoluntáriasmerecemperdão e às vezes piedade, é talvez necessário a quem estuda a natureza davirtude distinguir o voluntário do involuntário. Tal distinção terá tambémutilidadeparaolegisladornoquetangeàdistribuiçãodehonrasecastigos.

São,pois,consideradasinvoluntáriasaquelascoisasqueocorremsobcompulsãoou por ignorância; e é compulsório ou forçado aquilo cujo princípiomotor seencontra fora de nós e para o qual emnada contribui a pessoa que age e quesenteapaixão—porexemplo, se talpessoa fosse levadaaalgumapartepeloventoouporhomensquedelasehouvessemapoderado.

Mas,quantoàscoisasquesepraticamparaevitarmaioresmalesoucomalgumnobrepropósito(porexemplo,seumtiranoordenasseaalguémumatovileessealguém,tendoospaiseosfilhosempoderdaquele,praticasseoatoparasalvá-losdeseremmortos),édiscutívelse taisatossãovoluntáriosouinvoluntários.Algo de semelhante acontece quando se lançam cargas ao mar durante umatempestade;porque,emteoria,ninguémvoluntariamentejogaforabensvaliosos,mas quando assim o exige a segurança própria e da tripulação de um navio,qualquerhomemsensatoofará.

Tais atos, pois, são mistos, mas assemelham-se mais a atos voluntários pelarazão de serem escolhidos nomomento emque se fazem e pelo fato de ser afinalidade de uma ação relativa às circunstâncias. Ambos esses termos,"voluntário" e "involuntário", devem portanto ser usados com referência aomomentodaação.Ora,ohomemagevoluntariamente,poisneleseencontraoprincípio que move as partes apropriadas do corpo em tais ações; e aquelascoisascujoprincípiomotorestáemnós, emnósestá igualmenteo fazê-lasounão as fazer. Ações de tal espécie são, por conseguinte, voluntárias, mas emabstrato talvez sejam involuntárias, pois que ninguém as escolheria por simesmas.

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Por ações dessa espécie os homens são até louvados algumas vezes, quandosuportamalgumacoisaviloudolorosaemtrocadegrandesenobresobjetivosalcançados; no caso contrário são censurados, porque expor-se às maioresindignidadessemqualquerfinalidadenobreouporumobjetivoinsignificanteéprópriodeumhomeminferior.

Algumasações,emverdade,nãomerecemlouvor,masperdão,quandoalguémfaz o que não deve sem sofrer umapressão superior às forças humanas e quehomemalgumpoderiasuportar.Mashátalvezatosqueninguémnospodeforçarapraticareaquedevemospreferiramorteentreosmaishorríveissofrimentos;eosmotivosque"forçaram"oAlcmêondeEurípidesamataraprópriamãenosparecemabsurdos.Éporvezesdifícildeterminaroquesedeveriaescolhereaquecusto,eoquedeveriasersuportadoemtrocadequevantagem;eaindamaisdifícilépermanecerfirmenasresoluçõestomadas,poisporviaderegraoqueseesperaédolorosoeoquesomosforçadosafazerévil;dondeseremobjetodelouvorecensuraaquelesqueforamouquenãoforamcompelidosaagir.

Queespéciedeaçõessedevem,pois,chamarforçadas?Respondemosque,semressalvasdequalquerespécie,asaçõessãoforçadasquandoacausaseencontranascircunstânciasexterioreseoagenteemnadacontribui.Quantoàscoisasqueemsimesmassãoinvoluntárias,mas,nomomentoatualedevidoàsvantagensquetrazemconsigo,merecempreferência,ecujoprincípiomotorseencontranoagente, essas são, como dissemos, involuntárias em si mesmas, porém, nomomentoatualeemtrocadessasvantagens,voluntárias.Etêmmaissemelhançacomasvoluntárias,poisqueasaçõessucedemnoscasosparticularese,nestes,sãopraticadasvoluntariamente.Queespéciesdecoisasdevemserpreferidas,eemtrocadequê?Nãoéfácildeterminá-lo,poisexistemmuitasdiferençasentreumcasoparticulareoutro.

Se alguém afirmasse que as coisas nobres e agradáveis têm um podercompulsório porque nos constrangem de fora, para ele todos os atos seriamcompulsóriose forçados,pois tudoquefazemos temessamotivação.Eosqueagemforçadosecontraasuavontade,agemcomdor,masosquepraticamatospor sua satisfação própria ou pelo que aqueles têm de nobre fazem-no comprazer.Éabsurdoresponsabilizarascircunstânciasexterioresenãoasimesmo,julgando-se facilmente arrastado por tais atrativos, e declarar-se responsávelpelos atos nobres enquanto se lança a culpa dos atos vis sobre os objetosagradáveis.

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Ocompulsórioparece,pois,seraquilocujoprincípiomotorseencontradoladodefora,paranadacontribuindoqueméforçado.

Tudo o que se faz por ignorância é não voluntário, e só o que produz dor earrependimento é involuntário. Com efeito, o homem que fez alguma coisadevido à ignorância e não se aflige em absoluto com o seu ato não agiuvoluntariamente, visto que não sabia o que fazia; mas tampouco agiuinvoluntariamente, jáque issonão lhecausadoralguma.Eassim,daspessoasque agem por ignorância, as que se arrependem são consideradas agentesinvoluntários, e as que não se arrependem podem ser chamadas agentes nãovoluntários, visto diferirem das primeiras; em razão dessa própria diferença,devemterumadenominaçãodistinta.

Agirporignorânciaparecediferirtambémdeagirnaignorância,poisdohomemembriagadoouenfurecidodiz-sequeagenãoemresultadoda ignorância,masdeumadascausasmencionadas,econtudosemconhecimentodoquefaz,masnaignorância.

Ora,todohomemperversoignoraoquedevefazeredequedeveabster-se,eéemrazãodeumerrodestaespéciequeoshomenssetornaminjustose,emgeral,maus. Mas o termo "involuntário" não é geralmente usado quando o homemignoraoquelhetrazvantagem—poisnãoéopropósitoequivocadoquecausaaação involuntária (esse conduziria antes à maldade), nem a ignorância douniversal(pelaqualoshomenssãopassíveisdecensura),masaignorânciadosparticulares, isto é, das circunstâncias do ato e dos objetos com que ele serelaciona. São justamente esses que merecem piedade e perdão, porquanto apessoaqueignoraqualquerdessascoisasageinvoluntariamente.

Talvezconvenhadeterminaraquianaturezaeonúmerodetaisatos.Umhomempodeignorarquemelepróprioé,oqueestáfazendo,sobrequecoisasoupessoasestáagindo,eàsvezestambémqualéoinstrumentoqueusa,comquefim(podepensar, por exemplo, que está protegendo a segurança de alguém) e de quemaneiraage(secombranduraoucomviolência,porexemplo).

Ora,nenhumadestascoisasumhomempodeignorar,anãoserqueestejalouco,e também é claro que não pode ignorar o agente, pois como é possíveldesconhecer a si mesmo? Mas é possível ignorar o que se está fazendo:costumamosdizer, comefeito, "eledeixouescaparestaspalavras semquerer",ou "não sabia que se tratava de um segredo", como se expressou Esquilo a

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respeito dos mistérios, ou como aquele homem que disparou a catapulta edesculpou-se alegando que só queria mostrar o seu funcionamento e eladispararaporsi.

Tambémépossívelconfundirnossofilhocomuminimigo,comoocorreucomMérope,oupensarqueumalançapontiagudatemapontaembotada,ouqueumapedraépedra-pomes;epode-sedaraumhomemumapoçãoparacurá-lo,eaoinvés dissomatá-lo; e também ferir um adversário quando se pretende apenastocá-lo,comoacontecenopugilato.

Aignorânciapoderelacionar-se,portanto,comqualquerdessascoisas—istoé,qualquerdascircunstânciasdoato;edohomemqueignoravaumadelasdiz-sequeagiu involuntariamente,sobretudose ignoravaospontosmais importantes,que,naopiniãogeral,sãoascircunstânciaseafinalidadedoato.Alémdisso,apráticadeumatoconsideradoinvoluntárioemvirtudedeumaignorânciadestaespéciedevecausardoretrazerarrependimento.

Como tudo o que se faz constrangido ou por ignorância é involuntário, ovoluntáriopareceseraquilocujoprincípiomotorseencontranopróprioagenteque tenha conhecimento das circunstâncias particulares do ato. É de presumirque os atos praticados sob o impulso da cólera ou do apetite nãomereçam aqualificaçãodeinvoluntários.Porque,emprimeirolugar,sefossemtais,nenhumdos outros animais agiria voluntariamente, e as crianças tampouco; e, emsegundolugar,seriaocasodeperguntarseoqueseentendeporissoéquenãopraticamosvoluntariamentenenhumdosatosdevidosaoapetiteouàcólera,ousepraticamosvoluntariamenteosatosnobreseinvoluntariamenteosvis.Nãoéabsurdoisso,quandoacausaéumasóeamesma?Inegavelmente,seriaestranhoqualificardeinvoluntáriasascoisasquedevemosdesejar;eécertoquedevemosencolerizar-nosdiantedecertascoisaseapeteceroutras:porexemplo,asaúdeeainstrução.

Poroutrolado,oinvoluntárioéconsideradodoloroso,masoqueestádeacordocom o apetite é agradável. Ainda mais: qual a diferença, no que tange àinvoluntariedade,entreoserroscometidosafrioeaquelesemquecaímossobaaçãodacólera?Ambosdevemserevitados,masaspaixõesirracionaisnãosãoconsideradasmenoshumanasdoquearazão;porconseguinte,tambémasaçõesqueprocedemdacóleraoudoapetitesãoaçõesdohomem.Seriaestranho,pois,tratá-lascomoinvoluntárias.

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Tendo sido delimitados desta forma o voluntário e o involuntário, devemospassaragoraaoexamedaescolha,que,paraosespíritosdiscriminadores,pareceestarmaisestreitamenteligadaàvirtudedoqueasações.

Aescolha,pois,pareceservoluntária,masnãoseidentificacomovoluntário.Osegundoconceitotemmuitomaisextensão.Comefeito,tantoascriançascomoos animais inferiores participam da ação voluntária, porém não da escolha; e,embora chamemos voluntários os atos praticados sob o impulso domomento,nãodizemosqueforamescolhidos.

Osqueadefinemcomosendoumapetite,acólera,umdesejoouumaespéciedeopinião,nãoparecemterrazão.Efetivamente,aescolhanãoé tambémcomumàs criaturas irracionais, mas a cólera e o apetite, sim. Por outro lado, oincontinente age com apetite, porém não com escolha; o continente, pelocontrário, age com escolha, porém não com apetite. Ainda mais: hácontrariedadeentreapetiteeescolha,masentreapetiteeapetite,não.Eainda:oapetiterelaciona-secomoagradáveleodoloroso;aescolha,nemcomum,nemcomooutro.

Se assim acontece com o apetite, tantomais com a cólera; porquanto os atosinspiradosporestasãoconsideradosaindamenosobjetosdeescolhadoqueosoutros.

Nem tampouco o é o desejo, embora pareça estar mais próximo dela. Comefeito,aescolhanãopodevisaracoisasimpossíveis,equemdeclarasseescolhê-las passaria por tolo e ridículo; mas pode-se desejar o impossível — aimortalidade, por exemplo. E o desejo pode relacionar-se com coisas em quenenhum efeito teriam os nossos esforços pessoais, como, por exemplo, quedeterminado ator ou atleta vença uma competição; mas ninguém escolhe taiscoisas,esimaquelasquejulgapoderemrealizar-segraçasaosseusesforços.

Além disso, o desejo relaciona-se com o fim e a escolha com os meios. Porexemplo: desejamos gozar saúde, mas escolhemos os atos que nos tornarãosadios;edesejamosserfelizes,econfessamostaldesejo,masnãopodemosdizercom acerto que "escolhemos" ser felizes, pois, de um modo geral, a escolhaparecerelacionar-secomascoisasqueestãoemnossopoder.

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Tambémporestemotivo,nãosepodeidentificá-lacomaopinião,umavezqueesta se relaciona com toda a sorte de coisas, não menos as eternas e asimpossíveis do que as que estão em nosso poder; e, por outro lado, ela sedistinguepelaverdadeoufalsidade,enãopelabondadeoumaldade,enquantoaescolhasecaracterizaacimadetudoporestasúltimas.

Ora, com a opinião em geral não há ninguém que a identifique. Nós, porém,acrescentamosqueelanãoéidênticaanenhumaespéciedeopinião.Comefeito,porescolheroqueébomoumausomoshomensdeumdeterminadocaráter,masnãoosomosporsustentarestaouaquelaopinião.Eescolhemosobterouevitaralgobomoumau,mastemosopiniõessobreoquesejaumacoisa,paraquemelaé boa e de quemaneira é boa para ele; e não seriamuito acertado dizer que"opinamos"obterouevitarumacoisaqualquer.

Acresce que a escolha é louvada pelo fato de relacionar-se com o objetoconveniente,enãode relacionar-seconvenientementecomele,aopassoqueaopinião é louvada quando tem uma relação verdadeira com o seu objeto. Etambémescolhemosoquesabemossermelhor,tantoquantonosédadosabê-lo,mas opinamos sobre o que não sabemos exatamente; e não são as mesmaspessoas que passam por fazer as melhores escolhas e sustentar as melhoresopiniões, mas de algumas se diz que têm excelentes opiniões, e no entantopadecemdeumvícioqualquerqueasimpededeescolherbem.

Nãofazdiferençaqueaopiniãoprecedaaescolhaouaacompanhe,poisnãoéissoqueestamosexaminando,massimseaescolhaéidênticaaalgumaespéciedeopinião.

Que é ela, pois, e que espécie de coisa é, se não se identifica com nenhumadaquelasqueexaminamos?Pareceservoluntária,masnemtudoqueévoluntárioparece ser objeto de escolha. Será, pois, aquilo que decidimos numa análiseanterior? De qualquer forma, a escolha envolve um princípio racional e opensamento.Seupróprio nomeparece sugerir que ela é aquilo que colocamosdiantedeoutrascoisas.

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Mas delibera-se acerca de toda coisa, e toda coisa é um possível assunto dedeliberação,ouestaéimpossívelarespeitodealgumas?

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É de presumir que devamos chamar objeto de deliberação não àquilo que umnéscioouumloucodeliberaria,masàquilosobrequepodedeliberarumhomemsensato. Ora, sobre coisas eternas ninguém delibera: por exemplo, sobre ouniversomaterial ou sobre a incomensurabilidade da diagonal com o lado doquadrado.E tampouco deliberamos sobre as coisas que envolvemmovimento,mas sempre acontecem do mesmo modo, quer necessariamente, quer pornatureza ou por alguma outra causa, como os solstícios e o nascimento dasestrelas;nemarespeitodecoisasqueacontecemoradeummodo,oradeoutro,como as secas e as chuvas; nem sobre acontecimentos fortuitos, como adescoberta de um tesouro. E nem sequer deliberamos sobre todos os assuntoshumanos:porexemplo,nenhumespartanodeliberasobreamelhorconstituiçãoparaoscitas.Comefeito,nenhumadessascoisaspoderealizar-sepelosnossosesforços.

Deliberamossobreascoisasqueestãoaonossoalcanceepodemserrealizadas;e essas são, efetivamente, as que restam. Porque como causas admitimos anatureza, a necessidade, o acaso, e também a razão e tudo que depende dohomem. Ora, cada classe de homem delibera sobre as coisas que podem serrealizadaspelosseusesforços.Enocasodasciênciasexataseautossuficientesnãohádeliberação, como,por exemplo, a respeitodas letrasdoalfabeto (poisnãotemosdúvidasquantoàmaneiradeescrevê-las);aocontrárioascoisasquesão realizadaspelosnossos esforços,masnem sempredomesmomodo, essassãoobjetosdedeliberação:osproblemasde tratamentomédicoedecomércio,porexemplo.Edeliberamosmaisnocasodanavegaçãodoquenodaginástica,porqueaquelaestámaislongedeserexata.Enasoutrascoisasigualmente;mais,porém, quanto às artes do que quanto às ciências, pois que as primeirascomportammaioresdúvidas.

Delibera-searespeitodascoisasquecomumenteacontecemdecertomodo,mascujoresultadoéobscuro,edaquelasemqueesteéindeterminado.Enascoisasde grande monta tomamos conselheiros, por não termos confiança em nossacapacidadededecidir.

Não deliberamos acerca de fins, mas a respeito de meios. Um médico, porexemplo,nãodeliberasehádecurarounão,nemumoradorsehádepersuadir,nem um estadista se há de implantar a ordem pública, nem qualquer outrodelibera a respeito de sua finalidade. Dão a finalidade por estabelecida econsideramamaneiraeosmeiosdealcançá-la;e,separecepoderseralcançadapor vários meios, procuram o mais fácil e o mais eficaz; e se por um só,

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examinam como será alcançada por ele, e por que outro meio alcançar esseprimeiro,atéchegaraoprimeiroprincípio,quenaordemdedescobrimentoéoúltimo.

Comefeito, a pessoa que delibera parece investigar e analisar damaneira quedescrevemos, como se analisasse uma construção geométrica (nem todainvestigação é deliberação: vejam-se, por exemplo, as investigaçõesmatemáticas;mastodadeliberaçãoéinvestigação);eoquevememúltimolugarnaordemdaanálisepareceserprimeironaordemdageração.Esechegamosauma impossibilidade, renunciamos à busca: por exemplo, se precisamos dedinheiro e não hámaneira de consegui-lo;mas se uma coisa parece possível,tratamos de fazê-la. Por coisas "possíveis" entendo aquelas que se podemrealizarpelosnossosesforços;e,emcertosentido,istoincluiasquepodemserpostasempráticapelosesforçosdenossosamigos,poisqueoprincípiomotorestáemnósmesmos.

Oobjetodainvestigaçãosãoporvezesosinstrumentoseporvezesousoadar-lhes;eanalogamentenosoutroscasos:porvezesomeio,outrasvezesamaneiradeusá-looudeproduzi-lo.

Parece,pois,comojáficoudito,queohomeméumprincípiomotordeações;ora,adeliberaçãogiraemtornodecoisasaseremfeitaspelopróprioagente,easaçõestêmemvistaoutracoisaquenãoelasmesmas.Comefeito,ofimnãopodeserobjetodedeliberação,masapenasomeio.Etampoucopodemsê-loosfatosparticulares: por exemplo, se isto é pão e se foi assado como devia, pois taiscoisassãoobjetosdepercepção.Sequiséssemosdeliberarsempre, teríamosdecontinuaratéoinfinito.

Éamesmacoisaaquelasobrequedeliberamoseaqueescolhemos,salvoestaroobjeto de escolha já determinado, já que aquilo por que nos decidimos emresultadodadeliberaçãoéoobjetoda escolha.Efetivamente, todos cessamdeindagar como devem agir depois que fizeram voltar o princípio motor a simesmoseàpartedirigentedesimesmos,poiséessaqueescolhe.Istosepodevertambémnasantigasconstituiçõestaiscomono-lasmostraHomero,ondeosreisanunciavamaopovooquehaviamescolhido.

Sendo,pois, oobjetode escolhaumacoisaque está aonosso alcance eque édesejadaapósdeliberação,aescolhaéumdesejodeliberadodecoisasqueestãoao nosso alcance; porque, após decidir em resultado de uma deliberação,

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desejamosdeacordocomoquedeliberamos.

Consideremos, pois, como descrita em linhas gerais a escolha, estabelecida anaturezadosseusobjetoseofatodequeeladizrespeitoaosmeios.

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Jámostramosqueodesejotemporobjetoofim;algunspensamqueessefiméobem,eoutrosqueéobemaparente.Ora,osprimeiros terãodeadmitir, comoconsequênciadesuapremissa,queacoisadesejadapelohomemquenãoescolhebemnãoé realmenteumobjetodedesejo (porque, seo fosse,deveria serboatambém;masnocasoqueconsideramosémá).Poroutrolado,osqueafirmamserobjetodedesejoobemaparentedevemadmitirquenãoexisteobjetonaturaldedesejo,masapenasoqueparecebomacadahomemédesejadoporele.Ora,coisasdiferenteseatécontráriasparecemboasadiferentespessoas.

Se estas consequências desagradam, deveremos dizer que em absoluto e emverdadeobeméoobjetodedesejo,masparacadapessoaemparticularoéobemaparente;queaquiloqueemverdadeéobjetodedesejoéobjetodedesejoparaohomembom,equequalquercoisapodesê-loparaohomemmau,assimcomo,nocasodoscorpos,ascoisasqueemverdadesãosaudáveisosãoparaoscorposemboascondições,enquantoparaoscorposenfermosoutrascoisaséquesão saudáveis, ou amargas, doces, quentes, pesadas, e assim por diante?Comefeito,ohomembomaquilatatodaclassedecoisascomacerto,eemcadaumadelas a verdade lhe aparece com clareza;mas cada disposição de caráter temsuas ideias próprias sobre o nobre e o agradável, e amaior diferença entre ohomembomeosoutrosconsiste,talvez,emperceberaverdadeemcadaclassede coisas, como quem é delas a norma e a medida. Na maioria dos casos oengano deve-se ao prazer, que parece bom sem realmente sê-lo; e por issoescolhemosoagradávelcomoumbemeevitamosadorcomoummal.

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Sendo, pois, o fim aquilo que desejamos, e o meio aquilo acerca do qualdeliberamosequeescolhemos,asaçõesrelativasaomeiodevemconcordarcomaescolhae servoluntárias.Ora,oexercíciodavirtudediz respeitoaosmeios.

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Porconseguinte,avirtudetambémestáemnossopoder,domesmomodoqueovício,poisquandodependedenósoagir, tambémdependeonãoagir,evice-versa;demodoquequandotemosopoderdeagirquandoissoénobre,tambémtemosodenãoagirquandoévil;eseestaemnossopoderonãoagirquandoissoénobre,tambémestáoagirquandoissoévil.Logo,dependedenóspraticaratosnobresouvis,eseéissoqueseentendeporserbomoumau,entãodependedenóssermosvirtuososouviciosos.

O aforismo "ninguém é voluntariamente mau, nem involuntariamente feliz"parece ser em parte falso e em parte verdadeiro, porque ninguém éinvoluntariamente feliz,mas amaldade é voluntária.Do contrário, teremos decontestar o que se acabou de dizer, e negar que o homem seja um princípiomotor e pai de suas ações como o é de seus filhos. Mas, se esses fatos sãoevidentes e não podemos referir nossas ações a outros princípiosmotores quenãoestejamemnósmesmos,osatoscujosprincípiosmotoresseencontramemnósdevemtambémestaremnossopodereservoluntários.

Isto parece ser confirmado tanto por indivíduos na sua vida particular comopelospróprios legisladores,osquaispunemecastigamosquecometeramatosperversos,anãoserquetenhamsidoforçadosa issoouagidoemresultadodeuma ignorância pela qual eles próprios não fossem responsáveis; e, por outrolado,honramosquepraticaramatosnobres,comosetencionassemestimularossegundose refrearosprimeiros.Masninguéméestimuladoa fazercoisasquenão estejam em seu poder nem sejam voluntárias; admite-se que não hávantagemnenhumaemsermospersuadidosanãosentircalor,fome,doreoutrassensaçõesdomesmogênero,jáquenãoassentiríamosmenosporisso.Esucedeaté que um homem seja punido pela sua própria ignorância quando o julgamresponsável por ela, como no caso das penas dobradas para os ébrios; pois oprincípiomotorestánopróprioindivíduo,vistoqueeletinhaopoderdenãoseembriagar, e o fato de se haver embriagado foi causa da sua ignorância. Epunimosigualmenteaquelesqueignoramquaisquerprescriçõesdasleis,quandoatodoscumpreconhecê-laseissonãoédifícil;edamesmaformaemtodososcasosemqueaignorânciasejaatribuídaànegligência:presumimosquedependados culpados o não ignorar, visto que têm o poder de informar-sediligentemente.

Mastalvezumhomemsejafeitodetalmodoquenãopossaserdiligente.Semembargo, taishomenssão responsáveisemrazãodavida indolenteque levam,por se haverem tornado pessoas dessa espécie. Os homens tornam-se

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responsáveis por serem injustos ou sem limites, no primeiro caso burlando opróximoenosegundopassandooseu tempoemorgiasecoisasque tais;poissão as atividades exercidas sobre objetos particulares que fazem o carátercorrespondente.Bemomostramaspessoasquesetreinamparaumacompetiçãoouparaumaaçãoqualquer,praticando-aconstantemente.

Ora,ignorarqueépeloexercíciodeatividadessobreobjetosparticularesqueseformamasdisposiçõesdecaráterédehomemverdadeiramente insensato.Nãomenos irracional é supor que umhomemque age injustamente não deseja serinjusto,ouaquelequecorreatrásdetodososprazeresnãodesejasersemlimite.Masquando,semserignorante,umhomemfazcoisasqueotornarãoinjusto,eleseráinjustovoluntariamente.Daínãosesegue,porém,que,seassimodesejar,deixarádeserinjustoesetornarájusto.Porquetampoucooqueestáenfermosecuranessascondições.

Podemos supor o caso de um homem que seja enfermo voluntariamente, porvivernaincontinênciaedesobedeceraosseusmédicos.Nessecaso,aprincípiodependiadeleonãoserdoente,masagoranãosucedeassim,porquantovirouascostasàsuaoportunidade—talcomoparaquemarremessouumapedrajánãoépossívelrecuperá-la;econtudoestavaemseupodernãoarremessar,vistoqueoprincípio motor se encontrava nele. O mesmo sucede com o injusto e o semlimite: a princípio dependia deles não se tornarem homens dessa espécie, demodoqueéporsuaprópriavontadequesãoinjustosesemlimites;eagoraquesetornaramtais,nãolhesépossívelserdiferentes.

Masnãosóosvíciosdaalmasãovoluntários,senãoquetambémosdocorpoosão para alguns homens, aos quais censuramos por issomesmo: ao passo queninguém censura os que são feios por natureza, censuramos os que o são porfalta de exercício e de cuidado.Omesmo vale para a fraqueza e a invalidez:ninguémcondenariaumcegodenascença,pordoençaoupor efeitodealgumgolpe,mas todoscensurariamumhomemquetivessecegadoemconsequênciadaembriaguezoudealgumaoutraformadeintemperança.

Dosvíciosdocorpo,pois,osquedependemdenóssãocensuradoseosquenãodependemnãoosão.E,assimsendo,tambémnosoutroscasososvíciosquesãoobjetosdecensuradevemdependerdenós.

Alguémpoderiaobjetarquetodososhomensdesejamobemaparente,masnãotêmnenhumcontrolesobreaaparência,equeofimseapresentaacadaumsob

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uma forma correspondente ao seu caráter. A isso respondemos que, se cadahomemédecertomodoresponsávelpelasuadisposiçãodeânimo,serátambémde certo modo responsável pela aparência; do contrário, ninguém seriaresponsávelpelosseusmausatos,mas todosospraticariampela ignorânciadofim,julgandoquecomeleslograriamomelhor.Ora,visaraofimnãodependeda nossa escolha,mas é preciso ter nascido com um sexto sentido, por assimdizer, que nos permita julgar com acerto e escolher o que é verdadeiramentebom;erealmentebemdotadopelanaturezaéquemopossui.Comefeito,issoéoquehádemaisnobre, enãopodemosadquiri-lonemaprendê-lodeoutrem,mas o possuímos sempre tal como nos foi dado ao nascer; e ser bem enobrementedotadodessaqualidadeéaperfeiçãoeacúpuladeourodosdotesnaturais.

Seistoéverdade,comoseráavirtudemaisvoluntáriadoqueovício?Tantoparaohomembomcomoparaomau,ofimseapresentataleéfixadopelanaturezaoupeloquequerqueseja,etodososhomensagemreferindocadacoisaaele.

Portanto,quernão sejapornaturezaqueo fim se apresente a cadahomem talcomoseapresenta,algotodaviatambémdependedele;querofimsejanatural,umavezqueohomembomadotavoluntariamenteomeio,avirtudeévoluntária— o vício não será menos voluntário, pois no homem mau está igualmentepresente aquilo que depende dele próprio em seus atos, embora não na suaescolhadeumfim.Se,pois, comoseafirma,asvirtudes sãovoluntárias (poisnósprópriossomosemparteresponsáveispornossasdisposiçõesdecaráter,eéporsermospessoasdecertaespéciequeconcebemoso fimcomosendo taloutal),osvíciostambémserãovoluntários,porqueomesmoseaplicaaeles.

Quanto às virtudes em geral, esboçamos uma definição do seu gênero,mostrando que são meios e também que são disposições de caráter; e, alémdisso, que tendem por sua própria natureza para a prática dos atos que asproduzem; que dependem de nós, são voluntárias e agem de acordo com asprescrições da regra justa. Mas as ações e as disposições de caráter não sãovoluntárias do mesmo modo, porque de princípio a fim somos senhores denossos atos se conhecemos as circunstâncias; mas, embora controlemos odespontar de nossas disposições de caráter, o desenvolvimento gradual não éóbvio, como não o é também na doença; no entanto, como estava em nossopoderagirounãoagirdetalmaneira,asdisposiçõessãovoluntárias.

Tomemos,porém,asváriasvirtudesedigamosquaissão,comqueespéciesde

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coisasserelacionam,ecomoserelacionamcomelas;eaomesmotemposeveráquantassão.Emprimeirolugarfalemosdacoragem.

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Que a coragem é um meio-termo em relação aos sentimentos de medo econfiança já foi suficientemente esclarecido; e, evidentemente, as coisas quetememossãocoisasterríveis,quequalificamossemreservasdemales;eporestemotivoalgunschegamadefiniromedocomoumaexpectaçãodomal.

Ora,nóstememostodososmales,comoodesprezo,apobreza,adoença,afaltadeamigos,amorte;masnãosepensaqueabravuraserelacionecomtodoseles,poisque temercertascoisaséaté justoenobre,evilonãose receardelas.Odesprezo,porexemplo:quemotemeépessoaboaerecatada,edesavergonhadaquem não o teme. No entanto, alguns chamam bravo a tal homem, por umatransferênciadosentidodapalavra,vistoterelealgoemcomumcomohomembravo,quetambémédestemido.

Quantoàpobrezaeàdoença,talveznãodevêssemostemê-las,nem,emgeral,àscoisas que não procedem do vício e não dependem de nós próprios. Mastampouco o homem que não as receia é bravo. No entanto, aplicamos-lhe otermo, também em virtude de uma semelhança, pois alguns que são covardesdiantedosperigosdaguerramostram-seliberaisecorajososemfacedaperdadedinheiro.

Tampoucoécovardeohomemquetemeosinsultosàsuaesposaeaseusfilhos,ainvejaouqualquercoisadessaespécie;nemébravosemostracoragemquandoestáparaseraçoitado.Comqueespéciedecoisasterríveis,então,serelacionaabravura?

Seguramente,comasmaiores,poisninguémcomoohomembravoécapazdefazer frente ao que aterroriza o comum das pessoas. Ora, a morte é a maisterríveldetodasascoisas,poiselaéofim,eacredita-sequeparaosmortosjánãohánadadebomoumau.Masabravuranãoparecerelacionar-sesequercoma morte em todas as circunstâncias — como no mar ou nas doenças, porexemplo.Emquecircunstâncias,então?

Semamenordúvida,nasmaisnobres.Ora,essasmortessãoasqueocorremem

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batalha,poiséemfacedosmaioresemaisnobresperigosqueseverificam.Epor issomesmo são honradas nas cidades-estados e nas cortes dosmonarcas.Propriamentefalando,pois,échamadobravoquemsemostradestemidoemfacede uma morte honrosa e de todas as emergências que envolvem o perigo demorte;easemergênciasdaguerrasão,emsumograu,destaespécie.

Mastambémnomarenadoençaohomembravoédestemido,sebemquenãodomesmomodoqueomarinheiro;porqueelerenunciouàesperançadesalvar-se e detesta a ideia dessa espécie de morte, enquanto aqueles se mantêmesperançosos devido à sua experiência. Por outro lado, somos corajosos emsituaçõesquenospermitemmostraronossovalorouemqueamortesejanobre;masnasformasdemortequeacabamosdeapontarnenhumadessascondiçõesserealiza.

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Ascoisasterríveisnãosãoasmesmasparatodososhomens.Dizemos,contudo,quealgumasosãoalémdasforçashumanas.Essas,pois,sãoterríveisparatodos—aomenosparatodohomemnoseujuízonormal;masasquenãoultrapassamas forças humanas diferem em magnitude e grau, assim como as coisas queinspiramconfiança.

Ora,osbravossãotãoindômitosquantopodesê-loumhomem.Porisso,emboratemamtambémascoisasquenãoestãoacimadas forçashumanas,enfrentam-nas como devem e como prescreve a regra, a bem da honra; pois essa é afinalidadedavirtude.Masépossíveltemê-lasmaisoumenos,etambémtemercoisasquenãosãoterríveiscomoseofossem.Doserrosquesepodemcometer,um consiste em temer o que não se deve, outro em temer como não se deve,outro quando não se deve, e assim por diante; e da mesma forma quanto àscoisas que inspiram confiança. Por conseguinte, o homem que enfrenta e quetemeascoisasquedeveepelodevidomotivo,damaneiraenaocasiãodevidas,e que mostra confiança nas condições correspondentes, é bravo; porque ohomembravosenteeageconformeosméritosdocasoedomodoquearegraprescreve.

Ora,ofimdetodaatividadeéaconformidadecomacorrespondentedisposiçãodecaráter.Ora,acorageménobre;portanto,seufimtambéménobre,poiscadacoisaédefinidapeloseufim.Dondeseconcluiqueécomumafinalidadenobrequeohomembravoageesuportaconformelheapontaacoragem.

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Dosquevãoaosexcessos,oqueexcedenodestemornãotemnome(jádissemosanteriormente que muitas disposições de caráter não o têm), mas seria umaespéciede loucooudehomem insensível senada temesse,nemos terremotosnemasondas,comodizemquesãoosceltas;enquantoohomemqueexcedenaconfiança com respeito ao que é realmente terrível é temerário. Considera-se,por isso, o homem temerário como um jactancioso e um mero simulador decoragem. Seja como for, o que o bravo é com relação às coisas terríveis, otemeráriodesejaparecer;portanto, imita-onassituaçõesemque lheépossívelfazê-lo. Daí também o serem, a maioria deles, uma mistura de temeridade ecovardia; porque, embora mostrem arrojo em tais situações, não se mantêmfirmescontraoqueérealmenteterrível.

O homem que excede nomedo é um covarde, porque teme tanto o que devecomo o que não deve, e todas as características do mesmo gênero lhe sãoaplicáveis.Falta-lheigualmenteconfiança,masfaz-senotarprincipalmentepeloexcessodemedoemsituaçõesdifíceis.Ocovardeé,porisso,umhomemdadoao desespero, pois teme todas as coisas. O bravo, por outro lado, tem adisposição contrária, pois a confiança é a marca característica de um naturalesperançoso.

Emsuma,acovardia,a temeridadeeabravura relacionam-secomosmesmosobjetos, mas revelam disposições diferentes para com eles, pois as duasprimeiras vão ao excesso ou ficam aquém damedida, ao passo que a terceiramantém-se na posição mediana, que é a posição correta. Os temerários sãoprecipitadosedesejamosperigoscomantecipação,masrecuamquandoostêmpelafrente,enquantoosbravossãoardentesnomomentodeagir,masforadissosãotranquilos.

Como dissemos, pois, a coragem é um meio-termo no tocante às coisas queinspiram confiança oumedo, nas circunstâncias que descrevemos; e o homemcorajosoescolheesuportacoisasporqueénobrefazê-lo,ouporqueévildeixardefazê-lo.Contudo,morrerparaescaparàpobreza,aoamorouaoquequerquesejadedolorosonãoéprópriodeumhomembravo,masantesdeumcovarde.Porquanto é moleza fugir do que nos atormenta, e um homem dessa espéciesuportaamortenãoporelasernobre,masparaeximir-seaomal.

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Acoragemé,pois,algocomooquedescrevemos,masonometambémseaplicaacincooutrasespécies.

Em primeiro lugar vem a coragem do cidadão-soldado, que é a que mais seassemelha à verdadeira coragem. Os cidadãos-soldados parecem enfrentar osperigos em virtude das penas cominadas pelas leis e das censuras em queincorreriamseassimnãoprocedessem,etambémporcausadashonrasquelhesvaleráasuaação.Porissoafiguram-semaisbravosaquelespovosentreosquaisoscovardessãoexpostosàdesonra,eosbravossãohonrados.EssaéaespéciedecoragemretratadaporHomero,porexemplo,emDiômedeseemHeitor:

PrimeiroPolidamasamontoarácensurassobremim;e

Poisumdia,entreostroianos,Heitordirácomsoberba:

MedrosofoiTídides,efugiudaminhafrente.

Estaespéciedecorageméaquemaisseassemelhaàacimadescrita,porquesedeveàvirtude;emsuaorigemestáavergonha,odesejodeumnobreobjeto(ahonra) e o medo à desonra, que é ignóbil. Poder-se-iam incluir nesta classemesmo aqueles que são forçados pelos seus governantes; mas esses sãoinferiores,poisoque fazemnãoépor sentimentosdehonra,maspormedo,enãoparaevitaroqueévergonhoso,esimoqueédoloroso.Comefeito,osseuschefesoscompelemcomoHeitor:

Mas,seeudepararcomalgumpoltrãoatremerlongedarefrega,

Emvãoesperaráeleescaparaoscães.

E omesmo fazem os que os colocam nos seus postos e os espancam quandorecuam,ouosqueosdispõememfileirascomfossosoucoisas semelhantesàretaguarda: todos esses usam a compulsão. Mas deve-se ser bravo não sobcoação,esimporqueissoénobre.

A experiência com relação a fatos particulares é também considerada comocoragem; aí temos, em verdade, a razão pela qual Sócrates identificava acoragemcomoconhecimento.Outraspessoasrevelamessaqualidadediantedeoutrosperigos,eossoldadosprofissionaisnosperigodaguerra;poisnaguerraparece haver muitos alarmas infundados, dos quais esses homens têm a maisamplaexperiência;eporissoparecembravos,umavezqueosoutrosignorama

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natureza dos fatos. Por outro lado, sua experiência os torna capacíssimos noataque e na defesa, porquanto sabem fazer bomuso das armas e dispõemdasmelhores tanto para atacar como para defender-se.Batem-se, por conseguinte,como homens armados contra homens desarmados, ou como atletas bemtreinados contra amadores, pois também nesses encontros não é omais bravoquemelhorluta,masomaisforteeoquetemocorpoemmelhorescondições.

Ossoldadosprofissionaismostram-secovardes,noentanto,quandoatensãodoperigoémuitograndeequandosãoinferioresemnúmeroeemequipamento.Esãoosprimeirosafugir,aopassoqueasmilíciasdecidadãosperecemnosseuspostos, como realmente sucedeuno templodeHermes.Comefeito, para estesúltimosafugaédesonrosa,emorrerépreferívelasalvar-seemtaiscondições;enquantoosprimeirosdesdeoprincípioenfrentaramoperigonaconvicçãodequeeramosmaisfortes,eaoteremconhecimentodarealidadefogemtemendomaisamortedoqueadesonra.Obravo,porém,nãoprocedeassim.

A paixão também é confundida às vezes com a coragem.Os que agem sob oimpulsodapaixão,comoferasquesearremessamsobreosqueasferiram,sãoconsideradosbravos,porqueoshomensbravos tambémsãoapaixonados.Comefeito,apaixão,maisdoquequalqueroutracoisa,anseiaporatirar-seaoperigo;daíasfrasesdeHomero:"instilouforçanasuapaixão","despertou-lhesoânimoe a paixão", "respirava forte, ofegando", e "seu sangue fervia". Todas estasexpressõesparecemindicaroímpetoeotumultodapaixão.

Ora, os bravos agem com a mira na honra, mas são auxiliados pela paixão,enquantoasferasagemsobainfluênciadador:atacamporqueforamferidasouporque têm medo, pois que nunca se aproximam de quem se extravia numafloresta. E assim não são bravas porque, impelidas pela dor e pela paixão,atiram-se aos perigos semprevê-los.Do contrário, até os asnos seriambravosquandotêmfome,poisnãoháforçadegolpesqueosfaçaafastardoseupasto;etambémaluxúrialevaosadúlterosacometermuitosatosaudaciosos.(Nãosãobravas, pois, aquelas criaturas que a dor ou a paixão impele para diante doperigo.) A "coragem" devida à paixão parece ser a mais natural, tornando-severdadeiracoragemquandoselheajuntamaescolhaeomotivo.

Oshomens,pois,assimcomoosanimais,experimentamdorquandoestãoiradose prazer quando se vingam.Os que lutam por essesmotivos, no entanto, sãopugnazes,masnãosãobravos,porquantonãoagemtendoemvistaahonranemcomoprescrevearegra,maslevadospelaforçadaemoção.Semembargo,existe

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nelesalgoquetemafinidadecomacoragem.

Tampoucoaspessoasotimistassãobravas,poisessasmostramconfiançadiantedoperigosóporquevencerammuitasvezesecontramuitosinimigos.Econtudoassemelham-sedepertoaosbravos,porqueambossãoconfiantes;masosbravossão confiantes pelas razões que expusemos atrás, enquanto estes o são porquesupõem serem os mais fortes e incapazes de sofrer o que quer que seja. (Osbêbedos também se portam dessa maneira: tornam-se otimistas.) Quando,todavia, as suas aventuras terminammal, rodam sobre os calcanhares; mas amarca distintiva do homem bravo era enfrentar as coisas que são e parecemterríveis, porque é nobre fazê-lo e vergonhoso não o fazer. Também por isso,considera-se como marca distintiva de um homem mais bravo o mostrar-sedestemidoeimperturbávelnosalarmasrepentinosdoquenosperigosprevistos;pois isso deve proceder mais de uma disposição de caráter e menos dapreparação:osatosprevistospodemserescolhidosporcálculoeregra,masosatosimprevistosdevemestardeacordocomadisposiçãodecaráterdoagente.

Aspessoasque ignoramoperigo tambémparecembravas,enãodistammuitodas de temperamento sanguíneo e otimista, mas são inferiores por não teremconfiançaemsimesmas,comoas segundas.Tambémpor isso,osotimistas semantêm firmes durante algum tempo, mas os que foram enganados sobre arealidadedosfatosfogemtãologosabemoususpeitamqueestessãodiferentesdoquesupunham,comosucedeucomosargivosquandotravaramcombatecomosespartanos,tomando-osporsiciônios.

Ecomistoficacompletadaadescriçãodocarátertantodoshomensbravoscomodosquesãoconsideradosbravos.

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Sebemqueacoragemse relacionecomsentimentosdemedoedeconfiança,nãoserelacionaigualmentecomambos,masemgraumaiorcomascoisasqueinspiram medo. Com efeito, aquele que permanece imperturbável e se portacomodeveemfacedessascoisasémaisgenuinamentebravodoqueohomemquefazomesmodiantedascoisasqueinspiramconfiança.

Comodissemos,pois,épor fazer frenteaoqueédolorosoqueoshomenssãochamados bravos. Portanto, também a coragem envolve dor e é justamente

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louvadaporisso,poismaisdifíciléenfrentaroqueédolorosodoqueabster-sedoqueéagradável.

Semembargo,a finalidadequeacoragemsepropõedir-se-iaqueéagradável,mas é encoberta pelas circunstâncias do caso, como também sucede nascompetiçõesatléticas;porquantoéagradávelofimvisadopelospugilistas, istoé,acoroaeashonras;masosgolpesquerecebemsãodolorososeexcruciantespara o corpo, como também o são os seus esforços; e, como os golpes e osesforçossãomuitos,ofim,queéumsóepequeno,parecenadaterdeagradável.E assim, se o mesmo se dá com a coragem, a morte e os ferimentos serãodolorososparaohomembravoecontráriosàsuavontade,maseleosenfrentaráporqueénobrefazê-loevildeixardefazê-lo.Equantomaisvirtuosoefelizfor,mais lhedoeráopensamentodamorte;pois épara talhomemquemaisvalortemavida,eeleconscientementerenunciaaomaiordosbens,oqueédoloroso.Masnemporissodeixadeserbravo,etalvezosejaaindamaisporescolher,aessecusto,apráticadeatosnobresnaguerra.

Nemdetodasasvirtudes,portanto,oexercícioéagradável,salvonamedidaemque alcançam o seu fim. Mas é bem possível que os melhores soldados nãosejamhomensdessaespécieesimosquesãomenosbravosmasnãopossuemoutrosbens;poisessesestãoprontosparaenfrentaroperigoevendemsuasvidasporumaninharia.

Quanto à coragem dissemos o suficiente. Não é difícil compreender-lhe anaturezaemlinhasgerais,pelomenosemfacedoqueficouexposto.

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Depoisdacoragem,falemosda temperança;poisestasparecemserasvirtudesdaspartesirracionais.Dissemosqueatemperançaéummeio-termoemrelaçãoaosprazeres (porquedizmenosrespeitoàsdores,enãodomesmomodo);eaintemperançatambémsemanifestanamesmaesfera.Determinemos,pois,comqueespéciedeprazeresserelacionamambas.

Podemos admitir a distinção entre prazeres corporais e prazeres da alma :aiscomo o amor à honra e o amor ao estudo; pois quem ama uma dessas coisasdeleita-senaquiloqueama,nãosendoocorpodenenhummodoafetado,esimamente; mas com relação a tais prazeres os homens não são chamados

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temperantesnem sem limites.E tampouco em relação aosoutrosprazeresquenãosejamdocorpo:osquegostamdeouviredecontarhistóriasepassamodiaocupados com tudo que acontece são chamados mexeriqueiros e não semlimites; e da mesma forma os que sofrem com a perda de dinheiro ou deamigos.

A temperança deve relacionar-se com os prazeres corporais; não, porém, comtodos, pois os que se deleitam com objetos da visão tais como as cores, asformaseapinturanãosãochamados temperantesnemsemlimites;econtudo,parecequeépossíveldeleitar-secomessascoisastantocomosedevequantoemexcessoouemgrauinsuficiente.

Omesmosepodedizerdosobjetosdaaudição:ninguémchamadesemlimitesosquesedeleitamemdemasiacomamúsicaouasrepresentaçõesteatrais,nemdetemperantesosqueofazemnamedidajusta.

Tambémnãoaplicamosessesnomesaosquesedeleitamcomodores,anãoserincidentalmente:nãochamamosdesemlimitesosquesedeliciamcomocheirodemaçãs, de rosas ou de incenso, mas sim os que sentem prazer em cheirarmolhos e acepipes: com efeito, os sem limites deleitam-se com essas coisasporque lhes lembramosobjetosdeseuapetite.Eatéaoutraspessoas,quandotêmfome,causaprazerocheirodecomida;mascomprazer-senessaespéciedecoisasécaracterísticodohomemsemlimite,poiselassãoobjetosdeapetiteparaele.

Fora do homem, não há nos outros animais nenhum prazer relacionado comessessentidos,anãoserincidentalmente.Porquantooscãesnãosedeleitamcomocheirodaslebres,massimemcomê-las;acontece,apenas,queofaroosavisoudapresençadeumalebre.Nemoleãosedeleitaemouviromugidodoboi,mastãosomenteemcomê-lo;percebeu,pelomugido,queoanimalestavapróximo,eporessarazãoparecedeleitar-secomomugido;domesmomodo,nãosedeleitaemver"umveadoouumacabramontês",masporquevaidevorá-los.

Apesar disso, a temperança e a intemperança relacionam-se com a espécie deprazeres que é compartilhada pelos outros animais, e que por esse motivoparecem inferioresebrutais; sãoelesosprazeresdo tatoedopaladar.Mesmodestes últimos, no entanto, parecem fazer pouco ou nenhum uso; porquanto afunçãodopaladaréadiscriminaçãodossabores,comofazemosprovadoresdevinhoeaspessoasquetemperamiguarias.Noentanto,malsepodedizerquese

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comprazem em fazer tais discriminações; pelo menos, tal não é o caso daspessoassemlimites.Aessassóinteressaogozodoobjetoemsi,quesempreéumaquestãode tato, tantonoque tocaaocomercomoaobebereàuniãodossexos.Porissocertoglutãorogouaosdeusesquesuagargantasetornassemaislongaqueadeumgrou,dondeseinferequetodooseuprazervinhadocontato.

E assim, o sentido com que se deleita a intemperança é o mais largamentedifundidode todos; e ela parece ser justamentemotivode censuraporquenosdomina não como homens, mas como animais. Deleitar-se com tais coisas,portanto,eamá-las sobre todasasoutras,éprópriodosbrutos.Porquemesmodosprazeresdotatoosmaisliberaisforameliminados,comoosqueafricçãoeoresultante calor produzem no ginásio; com efeito, o contato preferido pelohomemsemlimitenãoafetaocorpointeiro,masapenascertaspartes.

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Dos apetites, alguns parecem comuns e outros, peculiares aos indivíduos eadquiridos.Porexemplo:oapetitedoalimentoénatural,jáquetodososqueosentemanseiamcomerebeber,eàsvezesambasascoisas;etambémpeloamor,quando são jovens e vigorosos; mas nem todos anseiam por esta ou aquelaespéciedealimentooudeamor,nempelasmesmascoisas.

Por isso, talanseiopareceserumaquestão inteiramentepessoal.Noentanto,émuito natural que assim seja, pois diferentes coisas agradam a diferentesindivíduos, e algumas são mais agradáveis a todos do que qualquer objetotomado ao acaso. Ora, nos apetites naturais poucos se enganam, e numa sódireção, a do excesso; e comer ou beber tudo que se tenha à mão, até asaciedade, é exceder a medida natural, pois que o apetite natural se limita apreencher o que nos falta. Por isso tais pessoas são chamadas "deuses doestômago", dando a entender que enchem o estômago além da medida. E sópessoasdecaráterinteiramenteabjetosetornamassim.

Masnoqueserefereaosprazerespeculiaresaindivíduos,muitaspessoaserram,edemuitasmaneiras.Pois,enquantoaspessoasque"gostamdistooudaquilo"sãoassimchamadasouporquesedeleitamnascoisasquenãodevem,oumaisdoqueocomumdoshomens,oudemaneiraindébitaossemlimitesexcedemdetodosostrêsmodos;tantosecomprazememcoisascomasquaisnãodeveriam

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comprazer-se (porquanto são odiosas), como, se é lícito comprazer-se emalgumascoisasdesuapredileção,elesofazemmaisdoquesedeveedoqueofazamaioriadoshomens.

Está claro, pois, que o excesso em relação aos prazeres é intemperança, e éculpável.Comrespeitoàsdoresninguémé,comonocasodacoragem,chamadotemperanteporarrostá-lasnemsemlimitepordeixardefazê-lo,masohomemsemlimiteéassimchamadoporquesofremaisdoquedevequandonãoobtémascoisasquelheapetecem(sendo,pois,asuaprópriadorumefeitodoprazer),eohomem temperante levaessenomeporquenão sofre comaausênciadoqueéagradávelnemcomofatodeabster-se.

Osemlimite,pois,almejatodasascoisasagradáveisouasquemaisosão,eélevadopeloseuapetiteaescolhê-lasaqualquercusto;porissosofrenãoapenasquando não as consegue, mas também quando simplesmente anseia por elas(pois o apetite é doloroso). No entanto, parece absurdo sofrer por causa doprazer.

Aspessoasqueficamaquémdamedidaemrelaçãoaosprazeresesedeleitamcom eles menos do que deviam são raras e quase inexistentes, pois talinsensibilidade não é humana. Até os outros animais distinguem diferentesespéciesdealimentoseapreciamunsmaisdoqueoutros.E,seháalguémquenão se agrade de nada e não ache nenhuma coisamais atraente do que outraqualquer,essealguémdeveseralgomuitodiferentedeumhomem;talespéciedepessoanãorecebeunomeporquedificilmenteéencontrada.

O temperante ocupa uma posição mediana em relação a esses objetos. Comefeito, nem aprecia as coisas que são preferidas pelo sem limite— as quaischegamatéadesagradar-lhe—nem,emgeral,ascoisasquenãodeve,nemnadadisso emexcesso; por outro lado, não sofrenemanseiapor elas quando estãoausentesousóofazemgraumoderadoenãomaisdoquedeve,enuncaquandonãodeve,eassimpordiante.Masascoisasque,sendoagradáveis,contribuemparaasaúdeouaboacondiçãodocorpo,eleasdesejamoderadamenteecomodeve, assim como também as outras coisas agradáveis que não constituamempecilhoaessesfins,nemsejamcontráriasaoqueénobre,nemestejamacimadosseusmeios.Poisaquelequenãoatendeaessascondiçõesamataisprazeresmaisdoqueelesmerecem,masohomem temperantenãoéumapessoadessaespécie,esimdaespécieprescritapelaregrajusta.

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A intemperança assemelha-se mais a uma disposição voluntária do que acovardia,poisaprimeiraéatuadapeloprazerea segundapelador;ora,aumnósprocuramoseàoutraevitamos;acresceaindaqueadortranstornaedestróianaturezadapessoaqueasente,aopassoqueoprazernãotemtaisefeitos.Logo,aintemperançaémaisvoluntária.

Eporissomesmoéelamaispassíveldecensura,poisémaisfácilacostumar-seaosseusobjetos,jáqueavidatemmuitascoisasdessaespécieparaoferecer,eaelas nos acostumamos sem perigo para nós, ao passo que com os objetosterríveisdá-seexatamenteocontrário.Masacovardiapareceservoluntáriaemgrau diferente de suas manifestações particulares. Com efeito, ela própria éindolor, mas nestas últimas somos avassalados pela dor, que nos leva aabandonarnossasarmaseadesonrar-nosdeoutrasmaneiras;eporisso,algunschegamapensarqueosnossosatosemtaisocasiõessãoforçados.Paraosemlimite,aocontrário,osatosparticularessãovoluntários(jáqueeleospraticasoboimpulsodoapetiteedodesejo),masadisposiçãoemsuatotalidadeoémenos,umavezqueninguémdesejasersemlimite.

O termo "sem limite" também se aplica a faltas infantis, pormostrarem certasemelhança com o que estivemos considerando.Ao nosso propósito atual nãointeressaindagarqualdasduasacepçõesderivadaoutra,maséevidentequeestasegunda é derivada.A transferência de sentido parece bastante plausível, poisquemdesejaaquiloqueévilequesedesenvolverapidamentedeveserrefreadoa tempo; ora, essas características pertencem acima de tudo ao apetite e àcriança,jáquenarealidadeascriançasvivemàmercêdosapetites,enelastemmaisforçaodesejodascoisasagradáveis.Senãoforemobedientesesubmissasaoprincípioracional,irãoagrandesextremos,poisnumserirracionalodesejodo prazer é insaciável, embora experimente todas as fontes de satisfação.Acresce que o exercício do apetite aumenta-lhe a força inata, e quando osapetites são fortes e violentos, chegam ao ponto de excluir a faculdade deraciocinar.

Portanto,osapetitesdevemserpoucosemoderados,enãoseoporemdemodoalgumaoprincípioracional—eissoéoquechamamosobediênciaedisciplina.E,assimcomoacriançadevesubmeter-seàdireçãodoseupreceptor,tambémo

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elementoapetitivodevesubordinar-seaoprincípioracional.

Emconclusão:nohomemtemperanteoelementoapetitivodeveharmonizar-secomoprincípioracional,poisoqueambostêmemmiraéonobre,eohomemtemperanteapeteceascoisasquedeve,damaneiraenaocasiãodevidas;eissoéoqueprescreveoprincípioracional.

Aquiterminaanossaanálisedatemperança.

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LIVROIV

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Falemos agora da liberalidade, que parece ser o meio-termo em relação àriqueza.Ohomemliberal,comefeito,élouvadonãopelosseusfeitosmilitares,nem pelas coisas que se costuma louvar no temperante, nem por decidir comjustiça num tribunal, mas no tocante ao dar e receber riquezas — eespecialmenteaodar.

Ora,por"riquezas"entendemostodasascoisascujovalorsemedepelodinheiro.Aprodigalidadeeaavareza,porsuavez,sãoumexcessoeumadeficiêncianotocanteàriqueza.Sempreimputamosaavarezaaosqueamamariquezamaisdoque devem, mas também usamos o termo "prodigalidade" num sentidocomplexo, chamando pródigos aos homens incontinentes que malbaratamdinheirocomosseusprazeres.Daíoseremelesconsideradososcaracteresmaisfracos,poiscombinamemsimaisdeumvício.Contudo,aaplicaçãodotermoataispessoasnãoéapropriada,porquantoum"pródigo"éumhomemquepossuiuma sómá qualidade, a demalbaratar os seus bens. Pródigo é aquele que searruínaporsuaprópriaculpa,eomalbaratarseusbenséconsideradoumaformadearruinarasimesmo,poiséopiniãodemuitosqueavidadependedapossederiquezas.

Esseé,porconseguinte,o sentidoemque tomamosapalavra"prodigalidade".Ora,ascoisasúteispodemserbemoumalusadas,eariquezaéútil;ecadacoisaéusadadamelhormaneirapelohomemquepossui avirtude relacionada comela. Quemmelhor usará a riqueza, por conseguinte, é o homem que possuí avirtuderelacionadacomariqueza;eesseéohomemliberal.

Ora,daregastarpareceserousodariqueza,aopassoqueadquirireconservaréantesasuaposse.Porissoémaisprópriodohomemliberaldaràspessoasqueconvémdoqueadquirirdasfontesqueconvémenãodasindébitas.Comefeito,é mais característico da virtude fazer o bem do que recebê-lo de outrem, epraticaraçõesnobresdoqueabster-sedeaçõesvis;efacilmentesecompreendequedarimplicafazerobemepraticarumaaçãonobre,enquantoreceberimplica

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serobeneficiáriodeumaboaaçãoounãoagirdemaneiravil.Esomosgratosaquemdá,porémnãoaoquenãorecebe,eoprimeiroémais louvadodoqueosegundo.Tambémémaisfácilnãoreceberdoquedar,poisoshomenspreferemdesfazer-sedopoucoquetêmatomaroalheio.

Osquedãotambémsãochamadosliberais,masosqueseabstêmdetomarnãosão louvados pela liberalidade e sim pela justiça, enquanto os que tomamdificilmentesãolouvados.Eosliberaissãoquasequeosmaislouvadosdetodososcaracteresvirtuosos,porquantosãoúteis;eissoporcausadesuasdádivas.

Ora,asaçõesvirtuosassãopraticadastendoemvistaoqueénobre.Porissoohomem liberal, como as outras pessoas virtuosas, dá tendo em vista o que énobre,ecomodeve;poisdá,àspessoasqueconvém,asquantiasqueconvémenaocasiãoqueconvém,comtodasasdemaiscondiçõesqueacompanhamaretaaçãodedar.Eissocomprazeresemdor,poisoatovirtuosoéagradáveleisentodedor.Oquemenospodeserédoloroso.

Oquedáàspessoasaquemnãodevedar,porém,outendoemvistanãooqueénobre e sim alguma outra coisa, não é chamado de liberal,mas recebe algumoutronome.Tampoucoéliberalquemdácomdor,poisesseprefeririaariquezaàaçãonobre,oquenãoéprópriodeumhomemliberal.

Mastampoucoohomemliberalreceberádefontesquenãodeve,poisissonãoépróprio de quem não dá valor à riqueza. Nem será ele muito afeito a pedir,porquantoohomemqueconferebenefíciosnãoosaceitafacilmente.Mastomarádasfontesqueconvém—dassuasprópriasposses,porexemplo—,nãocomoumatonobre,mascomoumanecessidade,afimdeteralgoquedar.

Poroutro lado,nãodescurará eleos seusbens, comosquaisdeseja auxiliar aoutrem.Eseabsterádedara todoseaqualquerum,afimdeteroquedaràspessoasqueconvém,nasocasiõesqueconvémeemqueénobrefazê-lo.

É também muito característico de um homem liberal exceder-se nas suasdádivas,demaneiraaficarcommuitopoucoparasi;poisestánasuanaturezaonãoolharasimesmo.

Otermo"liberalidade"seusarelativamenteàspossesdeumhomem,poisessavirtudenãoconsistenamultidãodasdádivas,esimnadisposiçãodecaráterdequemdá,eestaérelativaàssuasposses.Nadaimpede,pois,queohomemquedámenossejamaisliberal,setemmenosparadar.

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Sãoconsideradosmaisliberaisosquenãofizeramasuafortuna,masherdaram-na.Porque,emprimeirolugar,essesnãotêmexperiênciadanecessidade;e,emsegundo, todos os homens têm mais amor ao que eles próprios produziram,comoospaiseospoetas.Nãoé fácilaumhomemliberalser rico,poisnãoéinclinadonematomarnemaconservar,masadar,enãoestimaariquezaporsimesma,esimcomoinstrumentodesualiberalidade.Daíaacusaçãoquesefazàfortuna:queosquemaisamerecemsãoosquemenosaalcançam.Masénaturalque seja assim, pois com a riqueza sucede omesmo que com todas as outrascoisas:ninguémpodealcançá-lasenãoseesforçaporisso.

Todavia,ohomemliberalnãodaráàspessoasnemnaocasiãoquenãoconvém,porque nesse caso já não estaria agindo de acordo com a liberalidade, e segastassecomessesobjetosjánãoteriaoquegastarcomosqueconvêm.Porque,comodissemos,éliberalaquelequegastadeacordocomassuasposses,ecomos objetos que convém; e quem excede a medida é pródigo. Por isso nãochamamos os déspotas de pródigos: no caso deles não nos parece fácil dar egastaralémdesuasposses.

Sendo,pois,aliberalidadeummeio-termonotocanteaodareaotomarriquezas,o homem liberal dará c gastará as quantias que convém com os objetos queconvém, tanto nas coisas pequenas como nas grandes, e isso com prazer; etambémtomaráasquantiasqueconvémdasfontesqueconvém.Porque,sendoavirtude unsmeios-termos em relação a ambos, ele fará ambas as coisas comodeve;porquantoessaespéciedereceberacompanhaaretaaçãodedar,eoquenãoédessaespécieopõe-seaela;daíodareoreceberqueacompanhamumaooutro estarem simultaneamente presentes no mesmo homem, o queevidentementenãoacontececomasespéciescontrárias.Masse,poracaso,elegastar de maneira contrária ao que é reto e nobre, sofrerá com isso, masmoderadamente e conformedeve; pois é própriodavirtude sentir tantoprazercomodoremfacedosobjetosapropriadosedamaneiraapropriada.

Alémdisso,éfáciltratarcomohomemliberalemassuntosdedinheiro;nãodátrabalho persuadi-lo, pois não tem grande estima ao dinheiro, e fica maisaborrecidosedeixoudegastaralgumacoisaquedeviadoquesegastoualgoquenãodevia,discordandonissodoaforismodeSimônides.

Opródigoerratambémaessesrespeitos,poisnãosenteprazeredordiantedascoisas que convém e damaneira que convém; isto se tornarámais evidente àproporçãoqueavançarmosemnossainvestigação.Dissemosqueaprodigalidade

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eaavarezasãoexcessosedeficiências,eemduascoisas:nodarenoreceber;poisincluímosogastarnogênerodar.Ora,aprodigalidadeexcedenodarenonão receber,mostrando-sedeficienteno receber, enquanto a avareza semostradeficientenodareexcedenoreceber,salvoempequenascoisas.

Ascaracterísticasdaprodigalidadenãoseencontramsemprecombinadas,poisnãoéfácildara todossenãoserecebedeninguém.Aspessoaspródigas,quedãoemexcesso,nãotardamaexaurirassuasposses.Eéjustamenteaessesqueseaplicaonomedepródigos,sebemquetalhomempareçaserbastantesuperioraumavaro,porquantoécuradodeseuvíciotantopelosanoscomopelapobreza,e destarte poderá aproximar-se da disposição intermediária. Com efeito, opródigopossuiascaracterísticasdohomemliberal,vistoquedáeseabstémdetomar, conquanto não faça nenhuma dessas coisas bem ou da maneiraapropriada.E,sefosselevadoaprocederassimpelohábitoouporalgumoutromeio,serialiberal;porqueentãodariaàspessoasqueconvémenãoreceberiadefontes indébitas. Por isso não é julgadoummau caráter: não é próprio de umhomemmalvadoouignóbilexceder-senodarenonãoreceber,masapenasdeumtolo.Ohomemqueépródigonestesentidoéconsideradomuitomelhordoqueoavaro,tantopelasrazõesacimaapontadascomoporquebeneficiaamuitos,enquantoooutronãobeneficiasequerasimesmo.

Mas a maioria dos pródigos, como já se disse, também tomam de fontesindébitas, e a esse respeito são avaros. Adquirem o hábito de tomar porquedesejamgastar, e issonão lhesé fácil emrazãodenão tardaremaminguarassuasposses.São,porisso,forçadosabuscarmeiosemoutrasfontes.Aomesmotempo, como não dão nenhum valor à honra, tomam indiferentemente dequalquer fonte: pois têmo apetite de dar e não lhes importa amaneira nemafontedeondeprocedeoquedão.Porissonãodãocomliberalidade:nãoofazemcomnobreza, nem tendo esta emvista, nemdamaneira quedevem.Asvezesenriquecem os que deveriam ser pobres, não dão nada às pessoas dignas deestima, e muito aos aduladores ou aos que lhes proporcionam algum outroprazer.Porissoamaioriadelessãotambémsemlimites;comefeito,gastamsemrefletir e desperdiçam dinheiro com os seus prazeres, inclinados que são paraestesporquesuaexistêncianãotememmiraoqueénobre.

Ohomempródigo,portanto,converte-senoqueacabamosdedescreverquandonãolheéimpostanenhumadisciplina,massefortratadocomcuidadochegaráàdisposiçãointermediáriaejusta.Aavareza,porém,éaomesmotempoincurável,poisavelhiceetodaincapacidadepassamportornaroshomensavaros,emais

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inataaoshomensdoqueaprodigalidade.Comefeito,amaioriagostamaisdeganhar dinheiro que de dá-lo. Este vício é também muito difundido emultiforme,poisparecehavermuitasespéciesdeavareza.

Consisteelaemduascoisas,adeficiêncianodareoexcessonotomar,enãoseencontracompletaemtodososhomens,masàsvezesaparecedividida:algunsvãoaoexcessonotomar,enquantooutrosficamaquémnodar.Todosaquelesaquem se aplicam nomes como "forreta", "sovina", "pão-duro" dão comrelutância,masnãocobiçamaspossesalheiasnemdesejamtomá-lasparasi.Emalguns, isso se deve a uma espécie de honestidade e aversão ao que évergonhoso,poisalgunsparecem,oupelomenosdizem,amontoardinheiroporestarazão:paraqueumdianãosejamforçadosacometeralgumatovergonhoso;aestaclassepertencemo sovinae todososoutrosdamesmaespécie,que sãoassim chamados pela relutância com que abrem mão das mínimas coisas;enquantooutrosseabstêmdetocarnoalheiopormedo,julgandoquenãoéfácil,quandonosapropriamosdosbensdosoutros,evitarqueelesseapropriemdosnossos.Contentam-se,porisso,emnãodarnemtomar.

Outros,porsuavez,excedem-seno tocanteaoreceber, tomandotudoque lhesaparece e de qualquer fonte que venha, como os que se dedicam a profissõessórdidas, alcoviteiros edemaisgentedessa laia, eosqueemprestampequenasquantiasajuroselevados.Comefeito,todosessestomammaisdoquedevem,ede fontes indébitas.Evidentemente,oquehádecomumentreeleséo sórdidoamor ao lucro; todos se conformam com umamá fama em troca do ganho, eminguadoganhoaindaporcima.Comefeito,aosqueauferemganhosvultososeinjustosdefontesindébitas,comoosdéspotasquesaqueiamcidadesedespojamtemplos,nãochamamosavarosesimmalvados,ímpioseinjustos.

Mas quanto ao jogador e ao salteador, esses pertencem à classe do avaro porterem um amor sórdido ao ganho. É, efetivamente, pelo ganho que ambos sededicam às suas práticas e suportam a vergonha de que ela se cerca; e umenfrentaosmaioresperigosporamoràpresa,enquantoooutrosubtraidinheiroaos seus amigos, aquemdevia antesdá-lo.Ambos,pois, comodebomgradoauferem ganhos de fontes indébitas, são sórdidos amantes do ganho. Porconseguinte,todasessasformasdetomarincluem-senovíciodaavareza.

Eénaturalqueaavarezasejadefinidacomoocontráriodaliberalidadepoisnãosó é ela um maior mal do que a prodigalidade, mas os homens erram maisamiúdenessesentidodoquenodaprodigalidadetalcomoadescrevemos.

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Basta,pois,oquedissemossobrealiberalidadeeosvícioscontrários.

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Talvez convenha discutir agora a magnificência, que também parece ser umavirtuderelacionadacomariqueza.Nãoseestende,porém,comoaliberalidade,atodas as ações que têm que ver com a riqueza,mas apenas às que envolvemgasto; e nestas, ultrapassa a liberalidade em escala. Porque, como o próprionomesugere,éumgastoapropriadoqueenvolvegrandesquantias.Masaescalaérelativa,poisadespesadequemguarneceumatrirremenãosecomparaàdequem chefia uma embaixada sagrada. A magnificência, portanto, deve seradequadatantoaoagentecomoaoobjetoeàscircunstâncias.Ohomemqueemcoisas pequenas e medianas gasta de acordo com os méritos do caso não échamadodemagnificente,masunicamenteaquelequeofazemgrandescoisas.Porquantoomagnificenteéliberal,masoliberalnemsempreémagnificente.

A deficiência desta disposição de caráter é chamada mesquinhez e o excessovulgaridade,maugosto,etc.,oqualnãoseexcedenasquantiasdespendidascomosobjetosqueconvém,maspelosgastosostentososemcircunstânciasindébitasedemaneiraindébita.Maisadiantefalaremosdessesvícios.

O homem magnificente assemelha-se a um artista, pois percebe o que éapropriado e sabe gastar grandes quantias com bom gosto. No princípiodissemosqueumadisposiçãode caráter é determinadapelas suas atividades epelos seus objetos. Ora, os gastos do homem magnificente são vultosos eapropriados. Por conseguinte, tais serão também os seus resultados; e assim,haverá um grande dispêndio em perfeita consonância com o seu resultado.Dondeseseguequeoresultadodevecorresponderaodispêndioeestedeveserdignodoresultado,oumesmoexcedê-lo.

O homemmagnificente, além disso, gastará dinheiro tendo emmira a honra,pois essa finalidade é comum a todas as virtudes.Mais ainda: ele o fará comprazerecomlargueza,vistoqueoscálculosprecisossãoprópriosdosavarentos.E considerará os meios de tornar o resultado o mais belo possível e o maisapropriadoaoseuobjeto,aoinvésdepensarnoscustosenosmeiosmaisbaratosdeobtê-lo.Énecessário,pois,queohomemmagnificenteseja tambémliberal.Comefeito,estetambémgastaoquedeveecomodeve,eéemtaisassuntosque

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se manifesta a grandeza implicada pelo nome "magnificente", já que aliberalidadedizrespeitoaessascoisas;e,comdespesaigual,eleproduziráumaobradeartemaismagnificente.Porquantoumaposseeumaobradeartenãotêmamesma excelência. A possemais valiosa é aquela que valemais, como porexemplooouro,masamaisvaliosaobradearteéaqueégrandeebela,poisacontemplação de uma tal obra inspira admiração, e o mesmo faz amagnificência; e uma obra possui uma espécie de excelência— isto é, umamagnificência—queenvolvegrandeza.

Amagnificênciaéumatributodosgastosquechamamoshonrosos,comoosqueserelacionamcomosdeuses—ofertasvotivas,construções,sacrifícios—,edomesmomodonoquetangeatodasasformasdecultoreligiosoetodasaquelascoisas que são objetos apropriados de ambição cívica, como a dos que seconsideramnodeverdeorganizarumcoro,guarnecerumatrirremeouoferecerespetáculospúblicoscomgrandebrilhantismo.Emtodososcasos,porém,comojáfoidito,nãodeixamosdelevaremcontaoagenteedeindagarqueméeleeque recursos possui; pois os gastos devem ser dignos dos seus recursos eadequar-senãosóaosresultados,mas tambémaquemosproduz.Por issoumhomem pobre não pode ser magnificente, visto não ter os meios de gastarapropriadamente grandes quantias; e quem tenta fazê-lo é um tolo, porquantogasta alémdo que se pode esperar dele e do que é apropriado; ora, a despesajustaéqueévirtuosa.Masemgeralosgrandesgastosficambemaosque,paracomeçar,possuemosrecursosadequados,adquiridosporseusprópriosesforçosouprovenientesdeseusantepassadosoudeseusamigos;e tambémàspessoasdenascimentonobreoudegrandereputação,eassimpordiante;poistodasessascoisastrazemconsigoagrandezaeoprestígio.

Basicamente, pois, o homem magnificente é uma pessoa dessa espécie, e amagnificência se revela nos gastos que descrevemos acima; pois esses são osmaioreseosmaishonrosos.Dasocasiõesprivadasdemostrarmagnificênciaasmaisadequadassãoasqueacontecemumaveznavida,comoasbodaseoutrascoisas do mesmo gênero, ou tudo aquilo que interessa à cidade inteira ou àspessoas de posição que nela vivem, e também à recepção e à despedida dehóspedes estrangeiros, assim como à troca de presentes; pois o homemmagnificente não gasta consigo mesmo e sim com objetos públicos, e ospresentestêmcertasemelhançacomasofertasvotivas.

Ohomemmagnificentetambémaprestasuacasademaneiracondignacomasuariqueza, pois até uma casa é uma espécie de ornamento público, e gastará de

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preferênciaemobrasduradouras,poissãoessasasmaisbelas,eemtodaclassedecoisasgastaráoquefordecoroso;poisasmesmascoisasnãosãoadequadasaosdeusese aoshomens,nemaum temploe aum túmulo.E,vistoque todogasto pode ser grande em sua espécie e o que, em absoluto, há de maismagnificenteéumgenerosogastocomumobjetograndioso,masomagnificenteemcada caso éoque égrandenas circunstânciasdeste, e a grandezanaobradiferedagrandezanodispêndio,porquantoamaisbeladetodasasbolasoudetodos os brinquedos é ummagnífico presente para uma criança, embora custepouco dinheiro—, segue-se que a característica do homemmagnificente, sejaqualfororesultadodoquefaz,éfazê-locommagnificênciaetorná-lodignododispêndio.

Tal é, pois, o homemmagnificente. O vulgar e extravagante excede, como jádissemos, gastando além do que é justo.Com efeito, em pequenos objetos dedispêndio ele gasta muito e revela uma ostentação de mau gosto. Dá, porexemplo,umjantardeamigosnaescaladeumbanquetedenúpcias,equandoforneceocoroparaumacomédiacoloca-oemcenavestidodepúrpuracomosecostumafazeremMégara.Etodasessascoisas,elenãoasfaztendoemvistaahonra,masparaostentarasuariquezaeporquepensaseradmiradoporisso;egastapoucoquandodeveriagastarmuito,evice-versa.

Ohomemmesquinho,poroutrolado,ficaaquémdamedidaemtudo,edepoisdegastarasmaioresquantiasestragaabelezadoresultadoporumabagatela;eemtudoquefazhesita,estudaamaneiradegastarmenos,lamentaatéopoucoquedespendeejulgaestarfazendotudoemmaiorescaladoquedevia.

Estas disposições de caráter são, por conseguinte, vícios; entretanto, nãodesonram ninguém, porque não são nocivas aos demais, nem muitoindecorosas.

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Peloseunome,amagnanimidadeparecerelacionar-secomgrandescoisas.Queespéciedegrandescoisas?Eisaprimeiraperguntaquecumpreresponder.

Nãofazdiferençaqueconsideremosadisposiçãodecaráterouohomemqueaexibe.Ora,diz-sequeémagnânimoohomemquecomrazãoseconsideradignodegrandescoisas;poisaquelequesearrogaumadignidadeaquenãofazjusé

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umtolo,enenhumhomemvirtuosoétoloouridículo.Omagnânimo,pois,éohomemqueacabamosdedefinir.Comefeito,aquelequedepoucoémerecedoreassim se considera é temperante e nãomagnânimo; amagnanimidade implicagrandezadomesmomodoqueabelezaimplicaumaboaestatura,easpessoaspequenaspodemserbonitasebemproporcionadas,porémnãobelas.Poroutrolado, o que se julga digno de grandes coisas sem possuir tais qualidades évaidoso,sebemquenemtodososqueseconsiderammaismerecedoresdoquerealmentesãopossamserchamadosdevaidosos.

O homem que se considera menos merecedor do que realmente é, éindevidamentehumilde,querosseusméritossejamgrandesoumoderados,quersejampequenos,massuaspretensõesaindamenores.Eohomemcujosméritossão grandes parece ser o mais indebitamente humilde; pois que faria ele semerecessemenos?

O magnânimo, portanto, é um extremo com respeito à grandeza de suaspretensões,masummeio-termonoque tangeà justezadasmesmas;porquesearroga o que corresponde aos seus méritos, enquanto os outros excedem ouficamaquémdamedida.

Se,pois,elemereceepretendegrandescoisas,eessasacimadetodasasoutras,há de ambicionar uma coisa em particular. O mérito é relativo aos bensexteriores;eomaiordestes,acreditamosnós,éaquelequeprestamosaosdeusese que as pessoas de posiçãomais ambicionam, e que é o prêmio conferido àsmaisnobresações.Refiro-meàhonra,queé,porcerto,omaiordetodososbensexteriores.

Honras e desonras, por conseguinte, são os objetos com respeito aos quais ohomemmagnânimo é tal comodeve ser. E,mesmodeixando de lado o nossoargumento,éahonraqueosmagnânimosparecemteremmente;poiséelaquese arrogam acima de tudo, mas de acordo com os seus méritos. O homemindevidamente humilde revela-se deficiente não só em confronto com os seusméritos próprios, mas também com as pretensões do magnânimo. O vaidosoexcedeemrelaçãoaosseusméritospróprios,masnãoexcedeaspretensõesdomagnânimo.

Ora,omagnânimo,vistomerecermaisdoqueosoutros,deveserbomnomaisaltograu;poisohomemmelhorsempremerecemais,eomelhorde todoséoquemaismerece.Logo,ohomemverdadeiramentemagnânimodeve serbom.

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Alémdisso,agrandezaemtodasasvirtudesdevesercaracterísticadohomemmagnânimo.Enadahaveriamaisindecorosoparaohomemaltivodoquefugirao perigo, abanando as mãos, ou fazer injustiça a outro; pois com que fimpraticaria atos vergonhosos aquele para quem nada é grande? Se oconsiderarmos ponto por ponto, veremos o perfeito absurdo de um homemmagnânimoquenãosejabom.E tampoucomereceriaele serhonradose fossemau;poisahonraéoprêmiodavirtude,esóérendidaaosbons.

Amagnanimidadeparece,pois,serumaespéciedecoroadasvirtudes,porquantoas torna maiores e não é encontrada sem elas. Por isso é difícil serverdadeiramentemagnânimo,poissempossuirumcaráterbomenobrenãosepodesê-lo.

Demodoqueésobretudoporhonrasedesonrasqueomagnânimoseinteressa;eashonrasqueforemgrandeseconferidasporhomensbons,eleasreceberácommoderadoprazer,pensandoreceberoquemereceouatémenosdoque-merece,poisnãopodehaverhonraqueestejaàalturadavirtudeperfeita;noentanto,eleaaceitará,jáqueosoutrosnadatêmdemaiorparalheoferecer.Masashonrasque procedem de pessoas quaisquer e por motivos insignificantes, ele asdesprezará, visto não ser isso o quemerece; e domesmomodo no tocante àdesonra,que,aplicadaaele,nãopodeserjusta.

Emprimeirolugar,pois,comodissemos,ohomemmagnânimoseinteressapelashonras.Apesardisso,conduzir-se-ácommoderaçãonoquerespeitaaopoder,àriqueza e a toda boa ou má fortuna que lhe advenha e não exultaráexcessivamentecomaboafortunanemseabaterácomamá.Comefeito,nemparacomaprópriahonraeleseconduzcomosefosseumacoisaextraordinária.Opodereariquezasãodesejáveisabemdahonra;e,paraosquetêmaprópriahonra empouca conta, eles tambémdevem ser coisa de somenos. Por isso oshomensmagnânimossãoconsideradosdesdenhosos.

É opinião comum que os bens de fortuna também contribuem para amagnanimidade. Com efeito, os homens bem-nascidos são consideradosmerecedoresdehonra,edamesmaformaosquedesfrutamdepodereriqueza;poiselesseencontramnumaposiçãosuperior,etudoquesemostrasuperioremalgodebométidoemgrandehonra.Daíqueatéessascoisastornemoshomensmais magnânimos, pois alguns os honram pelo fato de possuí-las. Mas, emverdade, só merece ser honrado o homem bom; aquele, porém, que goza deambasasvantagenséconsideradomaismerecedordehonra.

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Noentanto, os homensque, sem seremvirtuosos, possuem tais bensnem têmpor que alimentar grandes pretensões, nem fazem jus ao nome de"magnânimos"; porquanto essas coisas implicam virtude perfeita. Isso nãoimpede,porém,quesetornemdesdenhososeinsolentes,poissemvirtudenãoéfácil carregar com elegância os bens da fortuna. Incapazes que são disso, ejulgando-se superiores aos demais, desprezam-nos e fazem o que bem lhesapraz. Imitam o homemmagnânimo sem serem semelhantes a ele, e o fazemnaquiloquepodem;procedercomohomensvirtuososestáforadoseualcance,masdesprezarosoutros,não.Comefeito,ohomemmagnânimodesprezacomjustiça (visto que pensa acertadamente), mas o vulgo o faz sem causa nemmotivosério.

Omagnânimonãoseexpõeaperigosinsignificantes,nemtemamoraoperigo,poisestimapoucascoisas;masenfrentaráosgrandesperigos,enessescasosnãopouparáasuavida,sabendoquehácondiçõesemquenãovaleapenaviver.Étambémmuito capaz de conferir benefícios,mas envergonha-se de recebê-los,pois aquilo é característico do homem superior e isto do inferior. E costumaretribuir comgrandes benefícios, pois assim o primeiro benfeitor, alémde serpago, incorrerá em dívida para com ele e sairá lucrando na transação. Parecetambémlembrar-sedetodososserviçosqueprestou,masnãodosquerecebeu(pois quem recebe um serviço é inferior a quem o presta, mas omagnânimodesejasersuperior).Eouvemencionarosprimeiroscomprazer,eossegundoscomdesagrado;foitalvezporissoqueTétisnãofalouaZeusdosserviçosquelhe havia prestado, nem os espartanos enumeraram os seus serviços aosatenienses,masapenasosquehaviamrecebido.

É tambémcaracterísticodohomemmagnânimonãopedirnadaouquasenada,masprestarauxíliodebomgradoeadotarumaatitudedignaemfacedaspessoasque desfrutam de alta posição e são favorecidas pela fortuna, enquanto semostramdespretensiosospara comosdeclassemediana;pois é coisadifícil egrandemarcadealtivezmostrar-sesuperioraosprimeiros,emborasejafácilcomossegundos,eumacondutaaltivanoprimeirocasonãoésinaldemáeducação,masentrepessoashumildesétãovulgarquantoumaexibiçãodeforçacontraosfracos.

Igualmenteprópriodohomemmagnânimoénãoambicionarascoisasquesãovulgarmenteacatadas,nemaquelasemqueosoutrossedistinguem;mostrar-sedesinteressadoeabster-sedeagir,salvoquandosetratedeumagrandehonraoudeumagrandeobra,eserhomemdepoucasações,masgrandesenotáveis.

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Deve também ser franco nos seus ódios e amores (porquanto ocultar os seussentimentos,istoé,olharmenosàverdadedoqueàopiniãodosoutros,éprópriode um covarde); e deve falar e agir abertamente. Com efeito, o magnânimoexpressa-secomfranquezapordesdémeéafeitoadizeraverdade,salvoquandofalacomironiaàspessoasvulgares.

Deveserincapazdefazercomquesuavidagireemtornodeoutro,anãoserdeum amigo; pois isso é próprio de um escravo, e daí o serem servis todos osaduladores, e aduladores todos aqueles que não respeitam a si mesmos.Tampoucoédadoàadmiração,pois,paraele,nadaégrande.Nemguardarancorporofensasquelhefaçam,jáquenãoéprópriodeumhomemmagnânimoteramemória longa, particularmente no que toca a ofensas, mas antes relevá-las.Tampouco é dado a conversas fúteis, pois não fala nem sobre simesmo nemsobreosoutros,porquantonãolheinteressamoselogiosquelhefaçamnemascensuras dirigidas aos outros. Por outro lado, não é amigo de elogiar nemmaledicente, mesmo no que se refere aos seus inimigos, salvo por altivez.Quantoàscoisasqueocorremnecessariamenteouquesãodepoucamonta,édetodososhomensomenosdadoa lamentar-seouasolicitar favores;poissóosquelevamtaiscoisasasérioseportamdessamaneiracomrespeitoaelas.Éeleohomemquepreferepossuircoisasbelase improfícuasàsúteiseproveitosas,poisissoémaisprópriodeumcaráterquebastaasimesmo.

Alémdisso,umandarlentoéconsideradoprópriodohomemmagnânimo,umavozprofundaeumaentonaçãouniforme;poisaqueleque levapoucascoisasasérionãocostumaapressar-se,nemohomemparaquemnadaégrandeseexcitafacilmente,aopassoqueavozestridenteeoandarcéleresãofrutosdapressaedaexcitação.

Tal é, pois, o homem magnânimo; o que lhe fica aquém é indevidamentehumildeeoqueoultrapassaévaidoso.Ora,nemmesmoessessãoconsideradosmaus(poisnãosãomaldosos),masapenasequivocados.Comefeito,ohomemindevidamentehumilde,queédignodeboascoisas, roubaasimesmodaquiloquemerece,epareceteralgodecensurávelporquenãosejulgadignodeboascoisas e também parece não se conhecer; do contrário desejaria as coisas quemerece, visto que elas sãoboas.E contudo, tais pessoasnão são consideradastolas,mas antes excessivamentemodestas. Dir-se-ia, contudo, que semelhantereputação até as torna piores, porque cada classe de pessoa ambiciona o quecorrespondeaosseusméritos,enquantoessesseabstêmmesmodenobresaçõese empreendimentos, considerando-se indignos, e dos bens exteriores por igual

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forma.

Osvaidosos,poroutrolado,sãotolosqueignoramasimesmos,eissodemodomanifesto.Porquanto,semseremdignosdetaiscoisas,aventuram-seahonrososempreendimentos que não tardam a denunciá-los pelo que são. E adornam-secom belas roupas, ares afetados e coisas que tais, e desejam que suas boasfortunas se tornem públicas, tornando-as para assunto de conversa, como sedesejassemserhonradosporcausadelas.Masahumildadeindébitaseopõemaisàmagnanimidade do que a vaidade, tanto por sermais comum como por seraindapiordoqueesta.

O magnânimo relaciona-se, pois, com a honra em grande escala, como já sedisse.

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Tambémparecehavernaesferadahonra,comodissemosemnossasprimeirasobservações sobre o assunto, uma virtude que guarda para com amagnanimidadeamesmarelaçãoquea liberalidadeparacomamagnificência.Com efeito, nenhuma das duas tem nada que ver com as coisas em grandeescala,masambasnosdispõemcorretamenteemrelaçãoaobjetosdepoucaoumediana importância.Assim como no receber e dar riquezas existe ummeio-termo,umexcessoeumadeficiência,tambémahonrapodeserdesejadamaisoumenos do que convém, ou damaneira e das fontes que convém.Censuramostantoohomemambiciosopordesejarahonramaisdequeconvémedefontesindébitas, como o modesto por não querer ser honrado mesmo por motivosnobres.Masàsvezes louvamoso ambiciosopor servaronil e amigodoqueénobre, e o modesto por ser moderado e autossuficiente, como dissemos naprimeiravezquetocamosnesteassunto.

Evidentemente,como"gostardetaloutalobjeto"temmaisdeumsignificado,nãoaplicamossempreàmesmacoisaotermo"ambição"ou"amoràhonra",masaolouvaraqualidadepensamosnohomemquetemmaisamoràhonradoqueamaioria das pessoas, e ao censurá-la temos em mente aquele que a ama emdemasia. Como não existe palavra para designar o meio-termo, os extremosparecemdisputaroseulugarcomoseestivessevagoporabandono.Masondeháexcessoefalta,hátambémummeio-termo.Ora,oshomensdesejamahonranão

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sómaiscomotambémmenosdoquedevem;logo,épossíveldesejá-latambémcomosedeve.Emtodocaso,éessaadisposiçãodecaráterqueselouvaequeéummeio-termo sem nome no tocante à honra. Em confronto com a ambiçãoparece ser desambição, e vice-versa; e, em confronto com as duasconjuntamente, parece, emcerto sentido, ser ambas. Isto se afiguraverdadeirotambémdasoutrasvirtudes,masnocasoqueacabamosdeexaminarosextremosseapresentamcomocontraditóriosporqueomeio-termonãorecebeunome.

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Acalmaéummeio-termocomrespeitoàcólera.Nãohavendonomesnemparaaposiçãointermediárianemparaosextremos,colocamosacalmanessaposição,sebemqueelaseinclineparaadeficiência,quetampoucotemnome.Oexcessopoderia ser chamado uma espécie de "irritabilidade", pois que a paixão é acólera,aopassoquesuascausassãomuitasediversas.

Louva-seohomemqueseencolerizajustificadamentecomcoisasoupessoase,alémdisso,comodeve,nadevidaocasiãoeduranteotempodevido.Esseserá,pois, o homem calmo, já que a calma é louvada. Tal homem tende a não sedeixarperturbarnemguiarpelapaixão,masairar-sedamaneira,comascoisaseduranteotempoquearegraprescreve.Pensa-se, todavia,queeleerradecertomodo no sentido da deficiência, pois o homem calmo não é vingativo, masinclina-seantesarelevarfaltas.

A deficiência, seja ela uma espécie de "calma" ou do que quer que for, écensurada.Comefeito,osquenãoseencolerizamcomascoisasquedeveriamexcitarsuairasãoconsideradostolos,edamesmaformaosquenãoofazemdamaneira apropriada, na ocasião apropriada e com as pessoas que deveriamencolerizá-los.Porquantotaishomenspassamporserinsensíveis,e,comonãoseencolerizam, julgam-nos incapazes de se defender; e suportar insultos tantopessoaiscomodirigidosaosnossosamigoséprópriodeescravos.

Oexcessopodemanifestar-seemtodosospontosqueindicamos(poisépossívelirar-se compessoas ou coisas indébitas,mais do que convém, comdemasiadapresteza ou por um tempo excessivamente longo). Sem embargo, todos essesexcessos não são encontrados namesma pessoa.Nem tal coisa seria possível,visto que o mal destrói até a si próprio, e quando completo torna-se

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insuportável.

Ora, os irascíveis encolerizam-se depressa, com pessoas e coisas indébitas emais do que convém,mas sua cólera não tarda a passar, e isso é o que há demelhoremtaispessoas.Sãoassimporquenãorefreiamasuaira,masanaturezaardenteaslevaarevidarlogo,feitooquê,dissipa-seacólera.

Em razão de um excesso, as pessoas coléricas são irritáveis e prontas aencolerizar-secomtudoeporqualquermotivo;daíoseunome.

Aspessoasbirrentassãodifíceisdeapaziguareconservampormaistempoasuacólera, porque a refreiam. Cessa, porém, quando revidam, pois a vingança asalivia da cólera, substituindo-lhes a dor pelo prazer. Se isso não acontecer,guardarãoasuacarga,pois,comoestanãoévisível,ninguémpensasequeremapaziguá-las, e digerir sozinho a sua cólera é coisa demorada. Tais pessoascausamgrandesincômodosasimesmaseaosseusamigosmaischegados.

Chamamosmal-humoradososqueseencolerizamcomoquenãodevem,maisdoquedevemepormaistempo,enãopodemserapaziguadosenquantonãosevingamoucastigam.

Àcalmaopomosanteso excessodoqueadeficiência,poisnão sóele émaiscomum(jáquevingar-seémaishumano),masaspessoasdemaugêniosãoaspiorescomasquaissepodeconviver.

Oquedissemosatrássobreesteassuntotorna-seclaropelapresenteexposição,isto é, que não é fácil definir como, com quem, com que coisa e por quantotempodevemosirar-nos,eemquepontoterminaaaçãojustaecomeçaainjusta.Porquantoohomemquesedesviaumpoucodocaminhocerto,querparamais,quer para menos, não é censurado; e às vezes louvamos os que revelamdeficiência,chamando-osbem-humorados,aopassoqueoutrasvezeslouvamosaspessoascoléricascomosendovaronisecapazesdedirigirasoutras.Atéqueponto, pois, e de que modo um homem pode desviar-se do caminho sem setornar merecedor de censura é coisa difícil de determinar, porque a decisãodependedascircunstânciasparticularesdocasoedapercepção.Masumacoisapelo menos é certa: o meio-termo (isto é, aquilo em virtude de que nosencolerizamoscomaspessoasecoisasdevidas,damaneiradevida,eassimpordiante)mereceser louvado,enquantoosexcessosedeficiências sãodignosdecensura—censuraleveseestãopresenteemmodestograu,efrancaeenérgica

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censuraseemgrauelevado.Torna-seassimevidentequedevemosater-nosaomeio-termo.

Istobastaquantoàsdisposiçõesrelativasàcólera.

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Nas reuniões de homens, na vida social e no intercâmbio de palavras e atos,algunssãoconsideradosobsequiosos,istoé,aquelesqueparaseremagradáveislouvamtodasascoisasejamaisseopõemaquemquerquesejajulgandoqueéseu dever "não magoar as pessoas que encontram"; enquanto os que, pelocontrário, se opõem a tudo e não têm o menor escrúpulo de magoar sãochamadosgrosseirosepolemistas.

Queasdisposiçõesqueacabamosdenomearsãocensuráveis,éevidente,assimcomoédignadelouvoradisposiçãointermediária—istoé,aquelaemvirtudedaqualumhomemseconformaeserebelaanteascoisasquedeveedamaneiradevida.Nenhumnome,porém,lhefoidado,emboraseassemelheacimadetudoà amizade. Com efeito, o homem que corresponde a essa disposiçãointermediária aproxima-se muito daquele que, com o acréscimo da afeição,chamamosumbomamigo.Masadisposiçãoemapreçodiferedaamizadepelofato de não implicar paixão nem afeição para com as pessoas com quemtratamos,vistoquenãoéporamornemporódioqueumhomemacolhetodasascoisas como deve, e sim por ser um indivíduo de determinada espécie. Comefeito,eleseconduzirádomesmomodocomconhecidosedesconhecidos,comíntimosecomosquenãoosão,muitoemboraseconduzaemcadaumdessescasos como convém; pois não é certo interessar-se igualmente por pessoasíntimas e por estranhos, nem tampouco são asmesmas condições que tornamjustomagoá-los.

Ora,nósdissemosdeummodogeralqueessehomemserelacionacomasoutraspessoas do modo que convém; mas é com referência ao que é honroso econvenientequeprocuranãocausardorouproporcionarprazer.

Com efeito, ele parece interessar-se pelos prazeres e dores da vida social; esempre que não for honroso ou que for nocivo proporcionar tal prazer, ele serecusará a fazê-lo, preferindo antes causar dor. Do mesmo modo, se suaaquiescência ao ato de outro trouxesse grande desonra ou dano a esse outro,

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enquanto sua oposição lhe causa um pouco de dor, ele se oporá ao invés deaquiescer.

Tal homem se relacionará diferentemente com pessoas de alta posição e compessoascomuns,comconhecidos íntimoseoutrosmaisdistantes,edomesmomodo no que diz respeito a todas as demais diferenças, tratando cada classecomoforapropriado;eembora,deummodogeral,prefiraproporcionarprazereevitecausardor,guiar-se-ápelasconsequênciasseestasforemmaisimportantes— em outras palavras, pela honra e pela conveniência. E também infligirápequenasdorestendoemvistaumgrandeprazerfuturo.

Ohomemquealcançaomeio-termoé,pois,talcomodescrevemos,emboranãotenha recebido um nome. Dos que proporcionam prazer, o que procura seragradávelsemnenhumobjetivoulterioréobsequioso,masaquelequeofazcomofimdeobteralgumavantagememdinheiroounascoisasqueodinheiropodecomprar é um adulador; enquanto o que se opõe a tudo é, como dissemos,grosseiro e polemista. E os extremos parecem ser contraditórios um ao outroporqueomeio-termonãotemnome.

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O meio-termo oposto à jactância é encontrado quase na mesma esfera; etampouco ele tem nome. Não será fora de propósito descrever também estasdisposições, porque examinando-as em detalhe teremos uma ideia mais exatados caracteres e, por outro lado, nos convenceremos de que as virtudes sãomeios-termosseverificarmosqueissoocorreemtodososcasos.

No campo da vida social, já descrevemos aqueles que se propõem comofinalidadeproporcionarprazer emsuas relaçõescomosoutros.Falemosagoradosquebuscamaverdadeouafalsidadetantoematoscomoempalavras,edassuas pretensões. O homem jactancioso, pois, é considerado como afeito aarrogar-secoisasquetrazemglória,quandonãoaspossui,ouarrogar-semaisdoque possui; e o homem falsamente modesto, pelo contrário, a negar ou aamesquinhar o que possui, enquanto o que observa omeio-termonão exageranemsubestimae éveraz tanto emseumododeviver comoemsuaspalavras,declarandooquepossui,porémnãomaisnemmenos.

Ora, cada uma dessas linhas de conduta pode ser adotada com ou sem um

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objetivo,mascadahomemfala,ageevivedeacordocomoseucaráter,senãoestáagindocomumfimulterior.Eafalsidadeéemsimesmavileculpável;eaverdade,nobreedignadelouvor.Portanto,ohomemverazémaisumexemplodaqueles que, conservando-se no meio-termo, merecem louvor; e ambas asformas de homem inverídico são censuráveis, mas particularmente ojactancioso.

Examinemosaambos,masantesdetudoaohomemveraz.Nãoestamosfalandodaquelequecumpreasuapalavranascoisasquedizemrespeitoà justiçaouàinjustiça (pois issopertenceaoutravirtude),masdohomemque, emassuntosondenadadissoestáemjogo,éveraztantoempalavrascomonavidaqueleva,porque tal é o seu caráter. Sem embargo, uma pessoa dessa espécie seránaturalmente equitativa, porquanto o homem que é veraz e ama a verdadequando não há nada em jogo deve sê-lo ainda mais quando vai nisso umaquestãodejustiça.Evitaráafalsidadeemtaiscasoscomoalgodeignóbil,vistoqueaevitavaporsimesma;etalhomemédignodelouvor.Einclina-semaisaatenuaraverdadeissolheparecedemaisbomgosto,porquantoosexagerossãotediosos.

Aqueleque se arrogamaisdoquepossui semqualquer objetivoulterior é umindivíduodesprezível (poisdocontrárionãosecomprazerianafalsidade),maspareceserantesfútildoquemau.Se,porém,ofazcomumfiaqualquer,aquelequeofazvisandoboareputaçãoouàhonranãoé(paraumjactancioso)dignodegrande censura: mas o que o faz por dinheiro, ou pelas coisas que levam àaquisição de dinheiro, é um caráter mais detestável. Com efeito, não é acapacidade que faz o jactancioso, mas o propósito, pois é em virtude dessadisposição de caráter e por ser um homem de determinada espécie que ele éjactancioso;assimcomoumhomemémentirosoporquesedeleitacomamentiraem si mesma e não porque deseje a reputação ou o lucro. Ora, os que sevangloriampara serbemconceituadosarrogam-sequalidadesque lhespossamvalerlouvoresoucongratulações,enquantoosquevisamaoproveitoseatribuemqualidadesvaliosasparaosoutros,mascuja inexistêncianãoé fácildescobrir,comoas de umvidente, de um sábio oude ummédico.Eis aí por que é essaespécie de coisas que a maioria dos arrogantes se arrogam ou de que sevangloriam;poisnelasseencontramasqualidadesquemencionamosacima.

Aspessoasfalsamentemodestas,quesubestimamosseusméritos,parecemmaissimpáticas porque se pensa que não falam com amira no proveito,mas parafugiràostentação;etambémaquiasqualidadesquenegampossuir,comofazia

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Sócrates,sãoaquelasquetrazemboareputação.Osquesedizemdestituídosdequalidadesevidentesedepoucamontasãoconsideradosimpostoresesãomaisdesprezíveis; e às vezes isso parece ser jactância, como omodo de trajar dosespartanos,poistantooexcessocomoumagrandedeficiênciaéarrogante.Masos que são modestos com moderação e subestimam qualidades não muitomanifestas parecem simpáticos. E é o jactancioso que se afigura contrário aohomemveraz,porquedasduasdisposiçõesextremasasuaéapior.

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Comoavidaéfeitanãosódeatividade,mastambémderepouso,eesteincluioslazeresearecreação,parecehaveraquitambémumaespéciedeintercâmbioqueserelacionacomobomgosto.Pode-sedizer—etambémescutar—oquesedeve eoquenão sedeve.Aespéciedepessoa a quem falamosou escutamosinfluiigualmentenocaso.

Evidentemente,tambémnestecampoexisteumademasiaeumadeficiênciaemconfronto com o meio-termo. Os que levam a jocosidade ao excesso sãoconsideradosfarsantesvulgaresqueprocuramserespirituososaqualquercustoe,nasuaânsiadefazerrir,nãosepreocupamcomapropriedadedoquedizemnem em poupar as suscetibilidades daqueles que tomam para objeto de seuschistes;enquantoosquenãosabemgracejar,nemsuportamosqueofazem,sãorústicos e impolidos. Mas os que gracejam com bom gosto chamam-seespirituosos,oqueimplicaumespíritovivoemsevoltarparaumladoeoutro;com efeito, tais agudezas são consideradas movimentos do caráter, e aoscaracteres, assim como aos corpos, costumamos distinguir pelos seusmovimentos.

Nãoé,porém,difícildescobriroladoridículodascoisas,eamaioriadaspessoasdeleitam-semaisdoquedevemcomgracejosecaçoadas;daíseremospróprioschocarreiros chamados espirituosos, pelo agrado que causam; mas o quedissemos acima torna evidente que eles diferem em não pequeno grau dosespirituosos.

A disposição intermediária também pertence o tato. E característico de umhomemdetatodizereescutaraquiloqueficabemaumapessoadignaebem-educada; pois há coisas que fica bem a tal homem dizer e escutar a título de

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gracejo; e os chistes de um homem bem-educado diferem dos de um homemvulgar,assimcomoosdeumapessoainstruídadiferemdosdeumignorante.Istosepodeveraténascomédiasantigasemodernas:paraosautoresdasprimeirasalinguagemindecenteeradivertida,enquantoosdassegundasprefereminsinuar;eambosdiferembastantenoquetangeàpropriedadedoquedizem.

Mas devemos definir o homem que sabe gracejar bem pelo fato de ele dizerapenasaquiloquenãoficamalaumhomembem-educado,oupornãomagoaroouvinteeatépordeleitá-lo?Ounãoseráestasegundadefinição,pelomenos,elaprópria indefinida, uma vez que diferentes coisas são aprazíveis ou odiosas adiferentes pessoas? A espécie de gracejos que ele se disporá a escutar será amesma,poisaquelesquepodetolerarsãotambémosquegostadefazer.Há,porconseguinte,gracejosqueessehomemnuncafará,poisogracejoéumaespéciede insulto, e há coisas que os legisladores nos proíbem insultar, e talvezdevessemtambémproibir-nosdegracejaremtornodelas.

Ohomemfinoebem-educadoserá,pois,talcomoodescrevemos,eelemesmoditará,porassimdizer,asualei.

Esseéohomemqueobservaomeio-termo,querochamemoshomemde tato,querespirituoso.Ochocarreiro,poroutrolado,éoescravodasuacriticidade,eparaprovocarorisonãopoupanemasinemaosoutros,dizendocoisasqueumhomemfinojamaisdiria,ealgumasdasquaisnemeleprópriodesejariaescutar.Orústico,porseulado,éinútilparaessaespéciedeintercâmbiosocial,poisemnadacontribuieemtudoachaoquecensurar.Masoslazeresearecreaçãosãoconsideradosumelementonecessárioàvida.

Os meios-termos que descrevemos: acima com respeito à vida são, pois, emnúmero de três, e relacionam-se todos com alguma espécie de intercâmbio depalavraseatos.Diferem,porém,pelofatodeumserelacionarcomaverdadeeosoutrosdoiscomoprazer.Dosquedizemrespeitoaoprazer,umsemanifestanosgracejoseooutronotratosocialcomum.

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Avergonhanãodeveria ser incluída entre asvirtudes,porquanto se assemelhamaisaumsentimentodoqueaumadisposiçãodecaráter.Édefinida,emtodocaso,comoumaespéciedemedodadesonra,eproduzumefeitosemelhanteao

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domedocausadopeloperigo.Comefeito,aspessoasenvergonhadascorameasquetememamorteempalidecem;ambos,portanto,parecemseremcertosentidoestadoscorporais,oqueseriamaiscaracterísticodeumsentimentoquedeumadisposiçãodecaráter.

O sentimento de vergonha não fica bem a todas as idades, mas apenas àjuventude.Pensamosqueosmoçossãosujeitosaenvergonhar-seporquevivempelos sentimentos e por isso cometemmuitos erros, servindo a vergonha pararefreá-los; e louvamos os jovens que mostram essa propensão.; mas a umapessoamaisvelhaninguém louvariapelomesmomotivo,vistopensarmosqueela não deve fazer nada de que tenha de envergonhar-se. Com efeito, osentimentodevergonhanãoésequercaracterísticodeumhomembom,umavezqueacompanhaasmásações.Ora,taisaçõesnãodevemserpraticadas;enãofazdiferençaquealgumassejamvergonhosasemsimesmaseoutrasosejamapenasde acorda com a opinião comum, pois nem as primeiras, nem as segundasdevemos praticar, a fim de não sentirmos vergonha. E é característico de umhomemmauosercapazdecometerqualqueraçãovergonhosa.

É absurdo julgar-se alguém um homem bom porque sente vergonha quandocometetalação,vistoquenosenvergonhamosdenossasaçõesvoluntárias,eohomembomjamaiscometerámásaçõesvoluntariamente.Masavergonhapodeserconsideradaumaboacoisadentrodecertascondições: seumhomembomcometer uma ação dessas, sentirá vergonha. As virtudes, porém, não estãosujeitasa taiscondições.Eseodespudor—onãoseenvergonhardepraticaraçõesvis—émau,nãoseseguequesejabomenvergonhar-sedepraticá-las.

Acontinênciatambémnãoéumavirtude,masumaespéciededisposiçãomista.Éoquemostraremosmaisadiante.Agora,porém,tratemosdajustiça.

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LIVROV

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Noquetocaàjustiçaeàinjustiçadevemosconsiderar:comqueespéciedeaçõesserelacionamelas;queespéciedemeio-termoéajustiça;eentrequeextremosoato justoé intermediário.Nossa investigação seprocessarádentrodasmesmaslinhasqueasanteriores.

Vemosque todososhomensentendempor justiçaaqueladisposiçãodecaráterquetornaaspessoaspropensasafazeroqueéjusto,queasfazagirjustamenteedesejaroqueé justo;edomesmomodo,por injustiçaseentendeadisposiçãoque as leva a agir injustamente e a desejar o que é injusto. Também nós,portanto,assentaremosissocomobasegeral.Porqueasmesmascoisasnãosãoverdadeiras tanto das ciências e faculdades como das disposições de caráter.Considera-se que uma faculdade ou ciência, que é uma I e amesma coisa, serelaciona comobjetos contrários,masumadisposiçãode caráter, que éumdedoiscontrários,nãoproduzresultadosopostos.Porexemplo:emrazãodasaúdenãofazemosoqueécontrárioàsaúde,massóoqueésaudável,poisdizemosqueumhomemcaminhademodo saudável quando caminha comoo faria umhomemquegozassesaúde.

Ora, muitas vezes um estado é reconhecido pelo seu contrário, e não menosfrequentemente os estados são reconhecidos pelos sujeitos que osmanifestam;porque,quandoconhecemosaboacondição,amácondiçãotambémsenostornaconhecida; e a boa condição é conhecida pelas coisas que se acham em boacondição,eassegundaspelaprimeira.Seaboacondiçãoforarijezadecarnes,énecessárionãosóqueamácondiçãosejaacarneflácida,comoqueosaudávelsejaaquiloquetornarijasascarnes.Esegue-se,demodogeral,que,seumdoscontrários forambíguo,ooutro tambémoserá;porexemplo, seo "justo"oé,tambémoseráo"injusto".

Ora, "justiça" e "injustiça" parecem ser termos ambíguos, mas, como os seusdiferentes significados se aproximam uns dos outros, a ambiguidade escapa àatenção e não é evidente como, por comparação, nos casos em que os

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significadosseafastammuitoumdooutro—porexemplo(poisaquiégrandeadiferença de forma exterior), como a ambiguidade no emprego de ??e?? paradesignaraclavículadeumanimaleo ferrolhocomque trancamosumaporta.Tomemos, pois, como ponto de partida os vários significados de "um homeminjusto". Mas o homem sem lei, assim como o ganancioso e ímprobo, sãoconsiderados injustos,de formaque tantoo respeitadorda lei comoohonestoserãoevidentementejustos.Ojustoé,portanto,orespeitadordaleieoprobo,eoinjustoéohomemsemleieímprobo.

Vistoqueohomeminjustoéganancioso,deveteralgoquevercombens—nãotodososbens,masaquelesaquedizemrespeitoaprosperidadeeaadversidade,equetomadosemabsolutosãosemprebons,masnemsempreosãoparaumapessoa determinada. Ora, os homens almejam tais coisas e as buscamdiligentemente;eissoéocontráriodoquedeveriaser.Deviamantespediraosdeuses que as coisas que são boas em absoluto o fossem tambémpara eles, eescolheressas.

Ohomeminjustonemsempreescolheomaior,mastambémomenor—nocasodas coisas que são más em absoluto. Mas, como o mal menor é, em certosentido,consideradobom,eaganânciasedirigeparaobom,pensa-sequeessehomem é ganancioso. E é igualmente iníquo, pois essa característica contémambasasoutraseécomumaelas.

Como vimos que o homem sem lei é injusto e o respeitador da lei é justo,evidentementetodososatoslegítimossão,emcertosentido,atosjustos;porqueosatosprescritospelaartedolegisladorsãolegítimos,ecadaumdeles,dizemosnós,éjusto.Ora,nasdisposiçõesquetomamsobretodososassuntos,asleistêmemmiraavantagemcomum,querdetodos,querdosmelhoresoudaquelesquedetêmopoderoualgonessegênero;demodoque,emcertosentido,chamamosjustos aqueles atos que tendem a produzir e a preservar, para a sociedadepolítica,afelicidadeeoselementosqueacompõem.Ealeinosordenapraticartanto os atos de umhomembravo (por exemplo, nãodesertar de nossoposto,nem fugir, nemabandonarnossas armas)quantoosdeumhomem temperante(por exemplo, não cometer adultério nem entregar-se à luxúria) e os de umhomemcalmo(porexemplonãobateremninguém,nemcaluniar);edomesmomodocomrespeitoàsoutrasvirtudeseformasdemaldade,prescrevendocertosatos e condenando outros; e a lei bem elaborada faz essas coisas retamente,enquantoasleisconcebidasàspressasasfazemmenosbem.

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Essaformadejustiçaé,portanto,umavirtudecompleta,porémnãoemabsolutoesimemrelaçãoaonossopróximo.Porissoajustiçaémuitasvezesconsideradaamaiordasvirtudes,e"nemVésper,nemaestrela-d’alva"sãotãoadmiráveis;eproverbialmente, "na justiça estão compreendidas todas as virtudes".E ela é avirtudecompletanoplenosentidodotermo,porseroexercícioatualdavirtudecompleta.Écompletaporqueaquelequeapossuipodeexercersuavirtudenãosósobresimesmo,mastambémsobreoseupróximo,jáquemuitoshomenssãocapazes de exercer virtude em seus assuntos privados, porém não em suasrelaçõescomosoutros.PorissoéconsideradoverdadeirooditodeBias,"queomando revela o homem", pois necessariamente quemgoverna está em relaçãocomoutroshomenseéummembrodasociedade.

Poressamesmarazãosedizquesomenteajustiça,entretodasasvirtudes,éo"bemdeoutro",vistoque se relacionacomonossopróximo, fazendooqueévantajosoaumoutro, sejaumgovernante, sejaumassociado.Ora,opiordoshomenséaquelequeexerceasuamaldadetantoparaconsigomesmocomoparacomosseusamigos,eomelhornãoéoqueexerceasuavirtudeparaconsigomesmo,masparacomoutro;poisquedifíciltarefaéessa.

Portanto,ajustiçanestesentidonãoéumapartedavirtude,masavirtudeinteira;neméseucontrário,ainjustiça,umapartedovício,masovíciointeiro.Oquedissemospõeadescobertoadiferençaentreavirtudeea justiçanestesentido:sãoelasamesmacoisa,masnãooéasuaessência.Aquiloque,emrelaçãoaonossopróximo,é justiça,comoumadeterminadadisposiçãodecarátereemsimesmo,évirtude.

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Seja, porém, como for, o objeto de nossa investigação é aquela justiça queconstituiumapartedavirtude;porquantosustentamosquetalespéciedejustiçaexiste. E analogamente, é com a injustiça no sentido particular que nosocupamos.

Quetalcoisaexiste,éindicadopelofatodequeohomemquemostraemseusatos as outras formas de maldade age realmente mal, porém nãogananciosamente (por exemplo, o homem que atira ao chão o seu escudo porcovardia,quefaladuramentepormauhumoroudeixadeassistircomdinheiro

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ao seu amigo, por avareza); e, por outro lado, o gananciosomuitas vezes nãoexibe nenhum desses vícios, nem todos juntos, mas indubitavelmente revelacertaespéciedemaldadeede injustiça.Existe,pois,outraespéciede injustiçaqueépartedainjustiçanosentidolato,eumdosempregosdapalavra"injusto"quecorrespondeaumapartedoqueéinjustonosentidoamplode"contrárioàlei".

Poroutrolado,seumhomemcometeadultériotendoemvistaolucroeganhadinheiro com isso, enquanto outro o faz levado pelo apetite, embora percadinheiro e sofra com o seu ato, o segundo será considerado sem limite e nãoganancioso,enquantooprimeiroéinjusto,masnãosemlimite.Estáclaro,pois,queeleéinjustopelarazãodelucrarcomoseuato.Aindamais:todososoutrosatos injustos são invariavelmente atribuídos a alguma espécie particular demaldade; por exemplo, o adultério à intemperança, o abandono de umcompanheiroemcombateàcovardia,aviolênciafísicaàcólera;mas,quandoumhomemtiraproveitodesuaação,estanãoéatribuídaanenhumaoutraformademaldadequenãoainjustiça.Éevidente,pois,quealémdainjustiçanosentidolato existe uma injustiça "particular" que participa do nome e da natureza daprimeira, porque sua definição se inclui no mesmo gênero. Com efeito, osignificadodeambasconsistenumarelaçãoparacomopróximo,masumadelasdiz respeitoàhonra, aodinheiroouà segurança—ouàquiloque inclui todasessascoisas,sehouvesseumnomeparadesigná-lo—eseumotivoéoprazerproporcionadopelolucro;enquantoaoutradizrespeitoatodososobjetoscomqueserelacionaohomembom.

Estábemclaro,pois,queexistemaisdeumaespéciedejustiça,eumadelassedistinguedavirtudenoplenosentidodapalavra.Cumpre-nosdeterminaroseugêneroeasuadiferençaespecífica.

Oinjustofoidivididoemilegítimoeímproboeojustoemlegítimoeprobo.Aoilegítimocorrespondeosentidodeinjustiçaqueexaminamosacima.Mas,comoilegítimo e ímprobo não são amesma coisa, mas diferem entre si como umaparte do seu todo (pois tudo que é ímprobo é ilegítimo,mas nem tudo que éilegítimoé ímprobo), o injusto e a injustiçano sentidode improbidadenão seidentificam com a primeira espécie citada,mas diferem dela como a parte dotodo.Comefeito, a injustiçaneste sentido éumaparte da injustiçano sentidoamplo, e, do mesmo modo, a justiça num sentido o é da justiça do outro.Portanto, devemos também falar da justiça e da injustiça particulares, e damesmaformaarespeitodojustoedoinjusto.

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Quanto à justiça, pois, que corresponde à virtude total, e à correspondenteinjustiça,sendoumadelasoexercíciodavirtudeemsuainteirezaeaoutra,odovício completo, ambos em relação ao nosso próximo, podemos deixá-las departe. E é evidente o modo como devem ser distinguidos os significados de"justo"ede"injusto"que lhescorrespondem,pois,abemdizer,amaioriadosatos ordenados pela lei são aqueles que são prescritos do ponto de vista davirtudeconsideradacomoumtodo.Efetivamente,aleinosmandapraticartodasas virtudes e nos proíbe de praticar qualquer vício. E as coisas que tendem aproduziravirtudeconsideradacomoumtodosãoaquelesatosprescritospelaleitendoemvistaaeducaçãoparaobemcomum.Masnoquetangeàeducaçãodoindivíduocomotal,educaçãoessaquetornaumhomembomemsi,ficaparaserdeterminadoposteriormente,se issocompeteàartepolíticaouaalgumaoutra;poistalveznãohajaidentidadeentreserumhomembomeserumbomcidadãodequalquerEstadoescolhidoaocaso.

Dajustiçaparticularedoqueéjustonosentidocorrespondente,umaespécieéaque semanifesta nas distribuiçõesdehonras, dedinheirooudas outras coisasquesãodivididasentreaquelesquetêmpartenaconstituição(poisaíépossívelreceberumquinhãoigualoudesigualaodeoutro);eoutraespécieéaquelaquedesempenhaumpapelcorretivonastransaçõesentreindivíduos.Destaúltimaháduas divisões: dentre as transações, algumas são voluntárias, e outras sãoinvoluntárias—voluntárias,porexemplo,ascomprasevendas,osempréstimosparaconsumo,asarras,oempréstimoparauso,osdepósitos,aslocações(todosestessãochamadosvoluntáriosporqueaorigemdastransaçõesévoluntária);aopassoquedasinvoluntárias,algumassãoclandestinas,comoofurto,oadultério,oenvenenamento,olenocínio,oengodoafimdeescravizar,ofalsotestemunho,eoutrassãoviolentas,comoaagressão,osequestro,ohomicídio,orouboamãoarmada,amutilação,asinvectivaseosinsultos.

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Mostramos que tanto o homem como o ato injustos são ímprobos ou iníquos.Agora se torna claroque existe tambémumponto intermediário entre as duasiniquidades compreendidas em cada caso.E esse ponto é a equidade, pois emtodaespéciedeaçãoemqueháomaiseomenostambémháoigual.Se,pois,oinjusto é iníquo, o justo é equitativo, como, aliás, pensam todos mesmo semdiscussão. E, como o igual é um ponto intermediário, o justo será ummeio-

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termo.

Ora, igualdade implicapelomenosduascoisas.O justo,porconseguinte,deveseraomesmotempointermediário,igualerelativo(istoé,paracertaspessoas).E, como intermediário, deve encontrar-se entre certas coisas (as quais são,respectivamente,maioresemenores);comoigual,envolveduascoisas;e,comojusto,oéparacertaspessoas.Ojusto,pois,envolvepelomenosquatrotermos,porquantoduassãoaspessoasparaquemeleédefarojusto,eduassãoascoisasemquesemanifesta—osobjetosdistribuídos.

Eamesmaigualdadeseobservaráentreaspessoaseentreascoisasenvolvidas;pois a mesma relação que existe entre as segundas (as coisas envolvidas)tambémexisteentreasprimeiras.Senãosãoiguais,nãoreceberãocoisasiguais;masissoéorigemdedisputasequeixas:ouquandoiguaistemerecebempartesdesiguais,ouquandodesiguaisrecebempartesiguais.Isso,aliás,éevidentepelofato de que as distribuições devem ser feitas "de acordo com omérito"; poistodosadmitemqueadistribuiçãojustadeverecordarcomoméritonumsentidoqualquer,sebemquenemtodosespecifiquemamesmaespéciedemérito,masosdemocrataso identificamcomacondiçãodehomemlivre,ospartidáriosdaoligarquiacomariqueza(oucomanobrezadenascimento),eospartidáriosdaaristocraciacomaexcelência.

O justo é, pois, uma espécie de termo proporcional (sendo a proporção umapropriedade não só da espécie de número que consiste em unidades abstratas,masdonúmeroemgeral).Comefeito,aproporçãoéumaigualdadederazões,eenvolvequatrotermospelomenos(queaproporçãodescontínuaenvolvequatrotermoséevidente,masomesmosucedecomacontínua,poiselausaumtermoemduasposiçõeseomencionaduasvezes;porexemplo"alinhaAestáparaalinha B assim como a linha B está para a linha C": a linha B, pois, foimencionada duas vezes e, sendo ela usada em duas posições, os termosproporcionaissãoquatro).Ojustotambémenvolvepelomenosquatrotermos,earazãoentredoisdeleséamesmaqueentreosoutrosdois,porquantoháumadistinçãosemelhanteentreaspessoaseentreascoisas.AssimcomootermoAestáparaB,otermoCestáparaD;ou,alternando,assimcomoAestáparaC,BestáparaD.Logo,tambémotodoguardaamesmarelaçãoparacomotodo;eesseacoplamentoéefetuadopeladistribuiçãoe,sendocombinadosostermosdaformaqueindicamos,efetuadojustamente.DondeseseguequeaconjunçãodotermoAcomCedeBcomDéoqueéjustonadistribuição;eestaespéciedojusto é intermediária, e o injusto é o que viola a proporção; porque o

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proporcionaléintermediário,eojustoéproporcional.(Osmatemáticoschamam"geométrica" a esta espécie de proporção, pois só na proporção geométrica otodoestáparaotodoassimcomocadaparteestáparaapartecorrespondente.)Esta proporção não é contínua, pois não podemos obter um termo único querepresenteumapessoaeumacoisa.

Eisaí,pois,oqueéojusto:oproporcional;eoinjustoéoqueviolaaproporção.Desse modo, um dos termos torna-se grande demais e o outro demasiadopequeno, como realmente acontece na prática; porque o homem que ageinjustamente temexcessoeoqueé injustamente tratado temdemasiadopoucodo que é bom. No caso do mal verifica-se o inverso, pois o menor mal éconsideradoumbememcomparaçãocomomalmaior,vistoqueoprimeiroéescolhidodepreferênciaaosegundo,eoqueédignodeescolhabom,ededuascoisasamaisdignadeescolhaéumbemmaior.

Essaé,porconseguinte,umadasespéciesdojusto.

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A outra é a corretiva que surge em relação com transações tanto voluntáriascomoinvoluntárias.Estaformadojustotemumcaráterespecíficodiferentedaprimeira. Com efeito, a justiça que distribui posses comuns está sempre deacordo com a proporção mencionada acima (e mesmo quando se trata dedistribuir os fundos comuns de uma sociedade, ela se fará segundo a mesmarazãoqueguardamentre si os fundosempregadosnonegóciopelosdiferentessócios); e a injustiça contrária a esta espécie de injustiça é a que viola aproporção.Masajustiçanastransaçõesentreumhomemeoutroéefetivamenteuma espécie de igualdade, e a injustiça uma espécie de desigualdade; não deacordo com essa espécie de proporção, todavia, mas de acordo com umaproporção aritmética. Porquanto não faz diferença que um homem bom tenhadefraudadoumhomemmauouvice-versa,nemsefoiumhomembomoumauquecometeuadultério;aleiconsideraapenasocaráterdistintivododelitoetrataaspartescomoiguais,seumacometeeaoutrasofreinjustiça,seumaéautoraeaoutraévítimadodelito.

Portanto, sendo esta espécie de injustiça uma desigualdade, o juiz procuraigualá-la; porque também no caso em que um recebeu e o outro infligiu um

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ferimento, ou um matou e o outro foi morto, o sofrimento e a ação foramdesigualmente distribuídos; mas o juiz procura igualá-los por meio da pena,tomando uma parte do ganho do acusado. Porque o termo "ganho" aplica-segeralmente a tais casos, embora não seja apropriado a alguns deles, comoporexemplo, àpessoaque infligeum ferimento—"e"perda"àvítima.Seja comofor,umavezestimadoodano,uméchamadoperdaeooutro,ganho.

Logo.oigualéintermediárioentreomaioreomenor,masoganhoeperdasãorespectivamentemenoresemaioresemsentidoscontrários;maiorquantidadedobem emenor quantidade domal representam ganho, e o contrário é perda; eintermediárioentreosdoisé,comovimos,o igual,quedizemosser justo.Porconseguinte,ajustiçacorretivaseráointermediárioentreaperdaeoganho.

Eis aí por que as pessoas em disputa recorrem ao juiz; e recorrer ao juiz érecorreràjustiça,poisanaturezadojuizéserumaespéciedejustiçaanimada;eprocuram o juiz como um intermediário, e em alguns Estados os juízes sãochamados mediadores, na convicção de que, se os litigantes conseguirem omeio-termo,conseguirãooqueéjusto.Ojusto,pois,éummeio-termojáqueojuizoé.

Ora,ojuizrestabeleceaigualdade.Ecomosehouvesseumalinhadivididaempartes desiguais e ele retira a diferença pela qual o segmento ma excede ametadepara acrescentá-lamenor.Equandoo todo foi igualmentedividido,oslitigantesdizemquereceberam"oquelhespertence"—istoé,receberamoqueéigual.

O igual é intermediário entre a linha maior e a menor de acordo com umaproporção aritmética. Por esta mesma razão é ele chamado justo (d??a???),devidoaserumadivisãoemduaspartesiguais,comoquemdissessed??iov;eojuiz (d??ast??) é aquele que divide em dois (d??ast??). Com efeito, quandoalguma coisa é subtraída de um de dois iguais e acrescentada ao outro, estesuperaoprimeiropelodobrodela,vistoque,seoquefoitomadoaumnãofosseacrescentado aooutro, a diferença seria deum só.Portanto, omaior excedeointermediáriodeum,eointermediárioexcededeumaqueledequefoisubtraídaalgumacoisa.Por aí se vêquedevemos tanto subtrair doque temmais comoacrescentaraoquetemmenos;eaesteacrescentaremosaquantidadepelaqualoexcede o intermediário, e domaior subtrairemos o seu excesso em relação aointermediário.

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SejamaslinhasAA',BB'eCC'iguaisumasàsoutras.Subtraia-sedalinhaAA'osegmentoAE,eacrescente-seàlinhaCCosegmentoCD,demodoquetodaalinha DCC' exceda a linha EA' pelo segmento CD e pelo segmento CF; porconseguinte,elaexcedealinhaBB'pelosegmentoCD.

A______E_____________________________A'

B_____________________________________B'

D______C______F_____________________________C’

Estesnomes,perdaeganho,procedemdas trocasvoluntárias,pois termaisdoqueaquiloqueénossochama-seganhar,etermenosdoqueanossaparteinicialchama-seperder,como,porexemplo,nascomprasevendaseemtodasasoutrastransações em que a lei dá liberdade aos indivíduos para estabelecerem suaspróprias condições; quando, todavia, não recebem mais nem menos, masexatamenteoquelhespertence,dizemquetêmoqueéseuequenemganharamnemperderam.

Logo, o justo é intermediário entre uma espécie de ganho e uma espécie deperda,asaber,osquesão involuntários.Consisteem terumaquantidade igualantesedepoisdatransação.

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Algunspensamqueareciprocidadeéjustasemqualquerreserva,comodiziamos pitagóricos; pois assim definiam eles a justiça.Ora, "reciprocidade" não seenquadranemnajustiçadistributiva,nemnacorretiva,enoentantoqueremqueajustiçadopróprioRadamantosignifiqueisso:

Seumhomemsofreroquefez,adevidajustiça,seráfeita.

Ora, emmuitos casos a reciprocidade não se coaduna coma justiça corretiva:porexemplo, seumaautoridade infligiuumferimento,nãodeveser feridaemrepresália, e se alguém feriu uma autoridade, não apenas deve ser tambémferido,mascastigadoalémdisso.Acrescequehágrandediferençaentreumatovoluntário e um ato involuntário.Mas nas transações de troca essa espécie dejustiçanãoproduzauniãodoshomens:areciprocidadedevefazer-sedeacordo

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com uma proporção e não na base de uma retribuição exatamente igual.Porquanto é pela retribuição proporcional que a cidade se mantém unida. Oshomens procurampagar omal comomal e, se não podem fazê-lo, julgam-sereduzidos à condição de simples escravos— e o bem com o bem, e se nãopodemfazê-lonãohátroca,eépelatrocaqueelessemantêmunidos.PoressemesmomotivodãoumaposiçãoproeminenteaotemplodasGraças:promoveraretribuiçãodosserviçosécaracterísticodagraça,edeveríamosserviremtrocaaquelequenosdispensouumagraça,tomandonoutraocasiãoainiciativadelhefazeromesmo.

Ora,a retribuiçãoproporcionalégarantidapelaconjunçãocruzada.SejaAumarquiteto,Bumsapateiro,CumacasaeDumpardesapatos.Oarquiteto,pois,devereceberdosapateirooprodutodotrabalhodesteúltimo,edar-lheoseuemtroca.Se,pois,háumaigualdadeproporcionaldebenseocorreaaçãorecíproca,oresultadoquemencionamosseráefetuado.Senão,apermutanãoéigual,nemválida,poisnadaimpedequeotrabalhodeumsejasuperioraodooutro.Devem,portanto,serigualados.

Eistoéverdadeirotambémdasoutrasartes,porquantoelasnãosubsistiriamseoque o paciente sofre não fosse exatamente o mesmo que o agente faz, e damesmaquantidadeeespécie.Comefeito,nãosãodoismédicosqueseassociamparatroca,masummédicoeumagricultor,e,demodogeral,pessoasdiferentese desiguais; mas essas pessoas devem ser igualadas. Eis aí por que todas ascoisasquesãoobjetosdetrocadevemsercomparáveisdeummodooudeoutro.Foiparaessefimqueseintroduziuodinheiro,oqualsetorna,emcertosentido,ummeio-termo, visto quemede todas as coisas e, por conseguinte, tambémoexcessoe a falta—quantosparesde sapatos são iguais aumacasaouaumadeterminadaquantidadedealimento.

O número de sapatos trocados por uma casa (ou por uma determinadaquantidadedealimento)deve,portanto,corresponderàrazãoentreoarquitetoeosapateiro.Porque,seassimnãofor,nãohaverátrocanemintercâmbio.Eessaproporção não se verificará, a menos que os bens sejam iguais de ummodo.Todososbensdevem,portanto,sermedidosporumasóeamesmacoisa,comodissemosacima.Ora,essaunidadeénarealidadeaprocura,quemantémunidastodasascoisas(porque,seoshomensnãonecessitassememabsolutodosbensunsdosoutros,ounãonecessitassemdelesigualmente,ounãohaveriatroca,ounãoamesmatroca);masodinheiro tornou-se,porconvenção,umaespéciederepresentantedaprocura;eporissosechamadinheiro(?óµ?sµa),jáqueexiste

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nãopornatureza,masporlei(vóµoç),eestáemnossopodermudá-loetorná-losemvalor.

Haverá, pois, reciprocidade quando os termos forem igualados de modo que,assim como o agricultor está para o sapateiro, a quantidade de produtos dosapateiro esteja para a de produtos de agricultor pela qual é trocada.Mas nãodevemos, colocá-los em proporção depois de haverem realizado a troca (docontrárioambososexcessossejuntarãonumdosextremos),esimquandocadaumpossuiaindaos seusbens.Dessemodosão iguaiseassociados justamenteporqueessaigualdadesepodeefetivarnoseucaso.

Seja A um agricultor, C uma determinada quantidade de alimento, B umsapateiroeDoseuproduto,queequiparamosaC.Senãofossepossívelefetuardessa formaa reciprocidade,nãohaveriaassociaçãodaspartes.Queaprocuraenglobaas coisasnumaunidade sóéevidenciadopelo fatodeque,quandooshomens não necessitam um do outro — isto é, quando não há necessidaderecíprocaouquandoumdelesnãonecessitadosegundo—,nãorealizamatroca,como acontece quando alguém deseja o que temos: por exemplo, quando sepermiteaexportaçãodetrigoemtrocadevinho.Epreciso,pois,estabeleceressaequação.

Equantoàs trocas futuras—a fimdeque, senãonecessitamosdeumacoisaagora,possamostê-laquandoelavenhaafazer-senecessária—,odinheiroé,decertomodo, a nossa garantia, pois devemos ter a possibilidadede obter o quequeremosemtrocadodinheiro.Ora,comodinheirosucedeamesmacoisaquecomosbens:nemsempretemeleomesmovalor;apesardisso,tendeasermaisestável.Daíanecessidadedequetodososbenstenhamumpreçomarcado;poisassim haverá sempre troca e, por conseguinte, associação de homem comhomem.

Deste modo, agindo o dinheiro como uma medida, torna ele os benscomensuráveis e os equipara entre si; pois nem haveria associação se nãohouvesse troca, nem troca se não houvesse igualdade, nem igualdade se nãohouvesse comensurabilidade. Ora, ha realidade é impossível que coisas tãodiferentes entre si se tornem comensuráveis, mas com referência à procurapodem tornar-se tais em grau suficiente. Deve haver, pois, uma unidade, Iunidadeestabelecidaporcomumacordo(porissosechamaeladinheiro);poiséela que torna todas as coisas comensuráveis, já que todas são medidas pelodinheiro.

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SejaAumacasa,Bdezminas,Cumacama.AéametadedeB,seacasavalecincominas ou é igual a elas; a cama, C, é um décimo de B; torna-se assimevidentequantascamasigualamumacasa,asaber:cinco.Nãohádúvidaqueatrocaserealizavadessemodoantesdeexistirdinheiro,poisnenhumadiferençafaz que cinco camas sejam trocadas por uma casa ou pelo valormonetário decincocamas.

Temos,pois,definidoojustoeoinjusto.Apósdistingui-losassimumdooutro,éevidentequeaaçãojustaéintermediáriaentreoagirinjustamenteeoservítimade injustiça; pois um deles é ter demais e o outro é ter demasiado pouco. Ajustiçaéumaespéciedemeio-termo,porémnãonomesmosentidoqueasoutrasvirtudes, e sim porque se relaciona com uma quantia ou quantidadeintermediária, enquanto a injustiça se relaciona com os extremos. E justiça éaquiloemvirtudedoqualsedizqueohomemjustopratica,porescolhaprópria,oqueéjusto,equedistribui,sejaentresimesmoeoutro,sejaentredoisoutros,nãodemaneiraadarmaisdoqueconvémasimesmoemenosaoseupróximo(einversamentenorelativoaoquenãoconvém),masdemaneiraadaroqueéigualdeacordocomaproporção;edamesmaformaquandosetratadedistribuirentre duas outras pessoas. A injustiça, por outro lado, guarda uma relaçãosemelhante para com o injusto, que é excesso e deficiência, contrários àproporção, do útil ou do nocivo. Por esta razão a injustiça é excesso edeficiência,istoé,porqueproduztaiscoisas—nonossocasopessoal,excessodo que é útil por natureza e deficiência do que é nocivo, enquanto o caso deoutraspessoaséequiparáveldemodogeralaonosso,comadiferençadequeaproporçãopodeservioladanumenoutrosentido.Naaçãoinjusta,terdemasiadopoucoéservítimadeinjustiça,eterdemaiséagirinjustamente.

Sejaestaanossaexposiçãodanaturezadajustiçaedainjustiçae,igualmente,dojustoedoinjustoemgeral.

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Visto que agir injustamente não implica necessariamente ser injusto, devemosindagar que espécies de atos injustos implicam que o autor é injusto comrespeito a cada tipo de injustiça: por exemplo, um ladrão, um adúltero ou umbandido.Evidentemente, a respostanãogiraem tornodadiferençaentreessestipos,poisumhomempoderiaatédeitar-secomumamulher,sabendoquemela

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é,semquenoentantoomotivodeseuatofosseumaescolhadeliberada,masapaixão.Essehomemageinjustamente,porconseguinte,masnãoéinjusto;eumhomempodenão ser ladrãoapesarde ter roubado,nemadúltero apesarde tercometidoadultério;eanalogamenteemtodososoutroscasos.

Ora,jámostramosanteriormentecomoorecíprocoserelacionacomojusto;masnãodevemosesquecerqueoqueestamosprocurandonãoéapenasaquiloqueéjustoincondicionalmente,mastambémajustiçapolítica.Estaéencontradaentrehomens que vivem em comum tendo emvista a autossuficiência, homens quesãolivreseiguais,querproporcionalmente,queraritmeticamente,demodoqueentreosquenãopreenchemestacondiçãonãoexistejustiçapolítica,masjustiçanumsentidoespecialeporanalogia.

Com efeito, a justiça existe apenas entre homens cujas relações mútuas sãogovernadaspelalei;ealeiexisteparaoshomensentreosquaisháinjustiça,poisajustiçalegaléadiscriminaçãodojustoedoinjusto.E,havendoinjustiçaentrehomens, também há ações injustas (se bem que do fato de ocorrerem açõesinjustas entre eles nem sempre se pode inferir que haja injustiça), e estasconsistemematribuirdemasiadoasiprópriodascoisasboasemsi,edemasiadopoucodascoisasmásemsi.

Aí está por que não permitimos que um homem governe, mas o princípioracional,poisqueumhomemofaznoseuprópriointeresseeconverte-senumtirano.Omagistrado,poroutrolado,éumprotetordajustiçae,porconseguinte,tambémda igualdade.E,visto supor-sequeelenãopossuamaisdoquea suaparte,seéjusto(porquenãoatribuiasimesmomaisdaquiloqueebomemsi,amenos que tal quinhão: seja proporcional aos seusméritos—demodo que épara outros que trabalha, e por essa razão os homens, como mencionamosanteriormente, dizem ser a justiça "o bem de outro"), ele deve, portanto, serrecompensado,esuarecompensaéahonraeoprivilégio;masaquelesquenãosecontentamcomessascoisastornam-setiranos.

Ajustiçadeumamoeadeumpainãosãoamesmaqueajustiçadoscidadãos,embora se assemelhem a ela pois não pode haver justiça no sentidoincondicionalemrelaçãoacoisasquenospertencem,masoservodeumhomeme o seu filho, até atingir certa idade e tornar-se independente, são, por assimdizer,umapartedele.Oraninguémferevoluntariamenteasimesmo,razãopelaqual também não pode haver injustiça contra si próprio. Portanto, não é emrelações dessa espécie que semanifesta a justiça injustiça dos cidadãos; pois,

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comovimoselaserelacionacomaleieseverificaentrepessoasnaturalmentesujeitasàlei;eestas,comotambémvimos,sãopessoasquetêmpartesiguaisemgovernar e ser governadas. Por isso émais fácilmanifestar verdadeira justiçaparacomnossaesposadoqueparacomnossosfilhoseservos.Trata-se,nessecaso, de justiça doméstica, a qual, sem embargo, também difere da justiçapolítica.

7

Da justiçapolítica,umaparteénatural eoutraparte legal:natural, aquelaquetemamesma força ondequer que seja e não existe em razãode pensaremoshomensdesteoudaquelemodo;legal,aquedeinícioéindiferente,masdeixadesê-lodepoisquefoiestabelecida:porexemplo,queoresgatedeumprisioneirosejadeumamina,ouquedeve ser sacrificadoumbodeenãoduasovelhas, etambémtodasasleispromulgadasparacasosparticulares,comoaquemandavaoferecersacrifíciosemhonradeBrásidas,easprescriçõesdosdecretos.

Ora, algunspensamque toda justiçaédesta espécie,porqueas coisasque sãopornatureza, são imutáveiseem todaparte têmamesmaforça (comoo fogo,queardetantoaquicomonaPérsia),aopassoqueelesobservamalteraçõesnascoisas reconhecidas como justas. Isso, porém, não é verdadeiro de modoabsolutomasverdadeiroemcertosentido;oumelhor,paraosdeusestalveznãoseja verdadeiro de modo algum, enquanto para nós existe algo que é justomesmopornatureza,emborasejamutável.Issonãoobstante,algumascoisasosãopornaturezaeoutras,não.

Comtodaaevidênciapercebe-sequeespéciedecoisas,entreasquesãocapazesde ser de outro modo, é por natureza e que espécie não o é, mas por lei econvenção,admitindo-sequeambassejamigualmentemutáveis.Eemtodasasoutras coisas a mesma distinção será aplicável: por natureza, a mão direita émais forte; e no entanto é possível que todos os homens venham a tornar-seambidestros.

As coisas que são justas em virtude da convenção e da conveniênciaassemelham-seamedidas,poisqueasmedidasparaovinhoeparaotrigonãosão iguais em todaparte,porémmaioresnosmercadospor atacadoemenoresnosretalhistas.Damesmaforma,ascoisasquesãojustasnãopornatureza,mas

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por decisão humana, não são as mesmas em toda parte. E as própriasconstituiçõesnãosãoasmesmas,conquantosóhajaumaqueé,pornatureza,amelhoremtodaparte.

Dascoisasjustaselegítimas,cadaumaserelacionacomoouniversalparacomoseuscasosparticulares;poisascoisaspraticadassãomuitas,masdessascadaumaéumasó,vistoqueéuniversal.

Háumadiferençaentreoatodeinjustiçaeoqueéinjusto,assimcomoentreoatodejustiçaeoqueéjusto.Comoefeito,umacoisaéinjustapornaturezaouporlei;eessamesmacoisa,depoisquealguémafaz;éumatodeinjustiça;antesdisso,porém,éapenas injusta.Edomesmomodoquantoaoatode justiça (sebemque a expressão geralmente usada seja "ação justa", e "ato de justiça" seapliqueàcorreçãodoatodeinjustiça).

Cada uma destas coisas deve ser examinada separadamente mais tarde, notocanteànaturezaeaonúmerodesuasespécies,bemcomoànaturezadascoisascomqueserelaciona.

8

Sendo os atos justos e injustos tais como os descrevemos, um homem age demaneirajustaouinjustasemprequepraticataisatosvoluntariamente.Quandoospratica involuntariamente, seus atos não são justos nem injustos, salvo poracidente,istoé,porqueelefezcoisasqueredundamemjustiçasouinjustiças.Eo caráter voluntário ou involuntário do ato que determina se ele é justo ouinjusto,pois,quandoévoluntário,écensurado,epelamesmarazãosetornaumato de injustiça; de forma que existem coisas que são injustas, sem que noentanto sejam atos de injustiça, se não estiver presente também avoluntariedade.

Porvoluntárioentendo,comojádisseantes,tudoaquiloqueumhomemtemopoderdefazerequefazcomconhecimentodecausa,istoé,semignorarnemapessoaatingidapeloato,nemoinstrumentousado,nemofimquehádealcançar(por exemplo, em quem bate, com que e com que fim); além disso, cada umdessesatosnãodeveseracidentalnemforçado(se,porexemplo,AtomaamãodeBecomelabateemC,Bnãoagiuvoluntariamente,poisoatonãodependiadele).

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Apessoaatingidapodeseropaidoagressor,eestepodesaberquebateunumhomemounumadaspessoaspresentes, ignorando,noentanto,que se tratadeseupai.Umadistinçãodomesmogênerosedevefazerquantoaofimdaaçãoeàação em sua totalidade. Por conseguinte, aquilo que se faz na ignorância, ouemborafeitocomconhecimentodecausa,nãodependedoagente,ouqueéfeitosob coação, é involuntário (pois há, até, muitos processos naturais que nóscientemente realizamoseexperimentamos,enenhumdosquais,noentanto, sepodequalificardevoluntárioouinvoluntário,como,porexemplo,envelheceroumorrer).

Mastantonocasodosatosjustoscomodosinjustos,ainjustiçaoujustiçapodeser apenas acidental; pois pode acontecer que um homem restituainvoluntariamenteoupormedoumvalordepositadoemsuasmãos,enessecasonãosedevedizerqueelepraticouumatode justiçaouqueagiu justamente,anãoserdemodoacidental.Damesmaforma,aquelequesobcoaçãoecontraasuavontadedeixade restituirovalordepositado,agiu injustamenteecometeuumatodeinjustiça,masapenasporacidente.

Dosatosvoluntários,praticamosalgunsporescolhaeoutrosnão;porescolha,osque praticamos após deliberar, e por não escolha os que praticamos semdeliberaçãoprévia.

Há, por conseguinte, três espécies de dano nas transações entre um homem eoutro. Os que são infligidos por ignorância são enganos quando a pessoaatingida pelo ato, o próprio ato, o instrumento ou o fim a ser alcançado sãodiferentes do que o agente supõe: ou o agente pensou que não ia atingirninguém, ou que não ia atingir com determinado objeto, ou a determinadapessoa,oucomoresultadoquelhepareciaprovável(porexemplo,seatiroualgonãocomopropósitodeferir,masdeincitar,ouseapessoaatingidaouoobjetoatiradonãoeramosqueelesupunha).Ora,quandoodanoocorrecontrariandooque era razoavelmente de esperar, é um infortúnio. Quando não é contrário auma expectativa razoável, mas tampouco implica vício, é um engano (pois oagente comete um engano quando a falta procede dele, mas é vítima de umacidentequandoacausalheéexterior).Quandoagecomoconhecimentodoquefaz,massemdeliberaçãoprévia,éumatodeinjustiça:porexemplo,osqueseoriginamdacóleraoudeoutraspaixõesnecessáriasounaturaisaohomem.Comefeito,quandooshomenspraticamatosnocivoseerrôneosdestaespécie,ageminjustamente, e seusatos sãoatosde injustiça,mas issonãoquerdizerqueosagentessejaminjustosoumalvados,poisqueodanonãosedeveaovício.Mas

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quandoumhomemageporescolha,éeleumhomeminjustoevicioso.

Por isso, é com razão que se consideram os atos originados da cólera comoimpremeditados,poisacausadomalnãofoiohomemqueagiusoboimpulsodacólera,masaquelequeoprovocou.Alémdisso,oobjetodadisputanãoéseacoisa aconteceuoudeixoude acontecer,mas se é justa ounão; pois foi a suaaparente injustiça que provocou a ira. Com efeito, eles não disputam sobre aocorrênciadoato(comonastransaçõescomerciaisemqueumadasduaspartesforçosamente agiu de má fé), a menos que o façam por esquecimento; mas,estando concordes a respeito do fato, disputam sobre qual deles está com ajustiça (ao passo que um homem que deliberadamente prejudicou a outro nãopodeignorartalcoisa);deformaqueumpensaestarsendoinjustamentetratadoeooutrodiscordadessaopinião.

Mas,seumhomemprejudicaaoutroporescolha,ageinjustamente;esãoestesos atos de injustiça que caracterizam os seus perpetradores como homensinjustos,contantoqueoatovioleaproporçãoouaigualdade.Domesmomodo,umhomemé justoquandoage justamentepor escolha;masage justamente sesuaaçãoéapenasvoluntária.

Dosatosvoluntários,algunssãodesculpáveiseoutrosnão.Comefeito,oserrosqueoshomenscometemnãoapenasnaignorânciamastambémporignorânciasão desculpáveis, enquanto os que não se devem à ignorância (embora sejamcometidosna ignorância),mas aumapaixãoqueneménatural, nem se contaentreaquelasaqueogênerohumanoestásujeito—essessãoindesculpáveis.

9

Dando como suficientemente definidos o que sejam cometer injustiça e servitima dela, pode-se perguntar se a verdade está expressa nas palavrasparadoxaisdeEurípedes:

Mateiminhamãe;eisomeucaso,emsuma.

Fizeste-loporvossoquerer,oucompesardeambos?

Serámesmo possível sermos tratados injustamente por nosso querer, ou, pelocontrário, será involuntária toda injustiça sofrida, como toda ação injusta é

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voluntária?Eserátodainjustiçasofridadasegundaespécieoudaprimeira,ouàsvezesvoluntáriaeoutrasvezesinvoluntária?Edomesmomodonoqueserefereaosertratadocomjustiça:comotodaaçãojustaévoluntária,seriarazoávelquehouvesseumaoposiçãosemelhanteemcadaumdosdoiscasos:quetantoosertratado com justiça como com injustiça fossem igualmente voluntários ouinvoluntários. Mas pareceria paradoxal, mesmo no caso de ser tratado comjustiça,queissofossesemprevoluntário,poisécontraasuavontadequealgunssãojustamentetratados.

Poder-se-ialevantarestaoutraquestão:todososquesofreminjustiçaestãosendoinjustamentetratados,ouocorrerácomapassividadea.mesmacoisaquecomaação?Tantonumacomonaoutraépossívelparticiparacidentalmentedajustiça,e,domesmomodo(comoéevidente),dainjustiça.Comefeito,praticarumatoinjustonão éomesmoque agir injustamente, nem sofrer injustiça é omesmoqueserinjustamentetratado;eomesmoocorrequantoaoagirinjustamenteeaoserjustamentetratado,poiséimpossívelserinjustamentetratadoseooutronãoage injustamente, ou ser justamente tratado a não ser que ele aja com justiça.Ora,seagirinjustamentenãoémaisqueprejudicarvoluntariamenteaalguém,e"voluntariamente"significa"comconhecimentodapessoaatingidapelaação,doinstrumentoedamaneirapelaqual seage",eohomemincontinenteprejudicavoluntariamenteasimesmo,nãosóeleseráinjustamentetratadoporseuquerercomotambémserápossíveltratarasimesmoinjustamente.(Estapossibilidadedetratarinjustamenteasimesmoéumadasquestõesaseremdebatidas).

Poroutrolado,umhomempodevoluntariamente,devidoàincontinência,sofreralgum mal da parte de outro que age voluntariamente, de modo que seriapossível ser injustamente tratado por seu próprio querer. Ou porventura éincorretaanossadefinição,ea"fazermalaoutro,comconhecimentodapessoaatingidapelaação,do instrumentoedamaneira" faz-se importanteacrescentar"contraavontadedapessoaatingidapelarazão"?Assim,umhomempoderiaservoluntariamente prejudicado e voluntariamente sofrer injustiça, mas ninguémseriainjustamentetratadoporseuquerer;poisninguémdesejaserinjustamentetratado,nemmesmoohomemincontinente.

Essehomemagecontrariamenteaoseudesejo,poisninguémdesejaoquejulganãoserbom,masohomemincontinentedefatofazcoisasquepensanãodeverfazer. E, por outro lado, quem dá o que lhe pertence, como Homero diz queGlaucodeuaDiômedesarmaduradeouroporarmaduradebronzeeopreçodecemboispornove,nãoéinjustamentetratado;porque,seodardependedele,o

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ser injustamente tratado não depende: para isso é preciso haver alguémque otrate injustamente. Torna-se claro, pois, que o ser injustamente tratado não évoluntário.

Das questões que tencionávamos discutir restam ainda duas: se quem ageinjustamente é o homemque confere a outro um quinhão superior ao que lhecabeouoqueficoucomoquinhãoexcessivo,eseépossíveltratarinjustamentea simesmo. Estas questões sãomutuamente conexas porquanto se a primeiraalternativaépossívelequemage injustamenteéopartilhadorenãoohomemque ficou coma parte excessiva, então, se umhomemvoluntariamente e comconhecimentodecausaatribuiaoutromaisdoqueasimesmo,essehomemtrataasimesmoinjustamente;eéoqueparecemfazeraspessoasmodestas,jáqueohomem virtuoso tende a tomarmenos que a sua parte justa. Ou será tambémprecisopôrrestriçõesaoqueacabamosdedizer?Comefeito,eletalvezobtenhaum quinhãomaior de algum outro bem, como, por exemplo, de honra ou denobrezaintrínseca.Aquestãoéresolvidaaplicando-seadistinçãoqueFizemosnotocanteàaçãoinjusta,poisqueelenãosofrenadacontrárioaoseudesejo,eassimnãoéarigorinjustamentetratado,mas,nomáximo,sofreumdano.

É evidente, por outro lado, que o partilhador age injustamente,mas isso nemsempre é verdadeiro do homem que recebeu a parte excessiva; porque não éaqueleaquemcabeo injustoqueage injustamente,masaqueleaquemcoubepraticarvoluntariamenteoatoinjusto,istoé,apessoanaqualresideaorigemdaação;eestaresidenopartilhador,enãonoaquinhoado.Poroutrolado,comoapalavra "fazer" é ambígua, e de coisas inanimadas, de uma mão ou de umescravo que executa uma ordem se pode dizer em certo sentido quemataram,aquelequerecebeuumquinhãoexcessivonãoageinjustamente,embora"faça"oqueéinjusto.

Aindamais: se o partilhador decidiu na ignorância, não age injustamente comrespeitoà justiça legalesuadecisãonãoé injustanestesentido,masemoutrosentido é realmente injusta (pois a justiça legal e a justiça primordial diferementresi);masse,comconhecimentodecausa, julgouinjustamente,eleprópriotem em vista um quinhão excessivo, quer de gratidão, quer de vingança. Ohomemque julgou injustamenteporestas razões recebeu,porconseguinte,umquinhãoexcessivo,talqualcomosehouvesseparticipadonapilhagem;ofatodereceber algo diferente daquilo que distribui não vem ao caso, pois tambémquandoconcedeterrascomvistasemparticipardapilhagem,oquerecebenãoéterra,masdinheiro.

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Os homens pensam que, como o agir injustamente depende deles, é fácil serjusto.Enganam-se, contudo: irparaa camacomamulherdovizinho, ferirousubornaralguéméfáciledependedenós,masfazeressascoisasemresultadodeuma disposição de caráter nem é fácil nem está em nosso poder. Do mesmomodo, conhecer o que é justo e o que é injusto não exige grande sabedoria,segundopensamoshomens,porquenãoédifícilcompreenderosassuntossobrequeversaalei(emboranãosejamessasascoisasjustas,salvoacidentalmente).Massabercomosedeveagirecomoefetuardistribuiçõesa fimdeser justoémais difícil do que saber o que faz bem à saúde; se bem que mesmo nesteterreno,emboranãodêgrandetrabalhoaprenderqueomel,ovinho,oheléboro,ocautérioeousodafacatêmtalefeito,osabercomo,aquemeemqueocasiãoessascoisasdevemseraplicadascomvistasemproduzirasaúdenãoémenosdifícildoquesermédico.

Aindamais:porestamesmarazãojulgamoshomensqueagirinjustamenteétãoprópriodohomemjustocomodoinjusto,poisaquelenãoseriamenos,senãoatémaiscapazdecometercadaumdessesatosinjustos;comefeito,ohomemjustopoderia deitar-se com umamulher ou ferir o seu vizinho, e o valente poderiajogar forao seuescudoepôr-se em fuga.Mas fazerpapeldecovardeouagirinjustamentenãoconsisteempraticaressascoisas,salvoporacidente,esimempraticá-lascomoresultadodecertadisposiçãodecaráter,domesmomodoqueexerceramedicinaecurarnãoconsisteemaplicaroudeixardeaplicarafaca,nememusaroudeixardeusarmedicamentos,masemfazeressascoisasdecertamaneira.

Os atos justos ocorrem entre pessoas que participam de coisas boas em si epodem ter uma parte excessiva ou excessivamente pequena delas; porque aalgunsseres (comoaosdeuses,presumivelmente)nãoépossível terumaparteexcessivadetaiscoisas,eaoutros,istoé,osincuravelmentemaus,nemamaismínima parte seria benéfica, mas todos os bens dessa espécie são nocivos,enquantopara outros sãobenéficos dentro de certos limites.Donde se concluiqueajustiçaéalgoessencialmentehumano.

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O assuntoque se segue é a equidade e o equitativo (t??p?e????) e respectivasrelações com a justiça e o justo. Porquanto essas coisas não parecem ser

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absolutamenteidênticasnemdiferirgenericamenteentresi;e,emboralouvemosporvezesoequitativoeohomemequitativo(eatéaplicamosessetermocomoexpressão laudatória a exemplo de outras virtudes, significando por ?p?e???stepovqueumacoisaémelhor),emoutrasocasiões,pensandobem,nospareceestranhoqueoequitativo,emboranãoseidentifiquecomojusto,sejadignodelouvor;porque,seojustoeoequitativosãodiferentes,umdelesnãoébom;e,sesãoambosbons,têmdeseramesmacoisa.

Sãoestas,pois,aproximadamente,asconsideraçõesquedãoorigemaoproblemaemtornodoequitativo.Emcertosentido,todaselassãocorretasenãoseopõemumasàsoutras;porqueoequitativo,emborasuperioraumaespéciedejustiça,éjusto, e não é como coisa de classe diferente que émelhor do que o justo.Amesma coisa, pois, é justa e equitativa, e, embora ambos sejam bons, oequitativoésuperior.

Oquefazsurgiroproblemaéqueoequitativoéjusto,porémnãoolegalmentejusto, e sim uma correção da justiça legal. A razão disto é que toda lei éuniversal,mas a respeito de certas coisas não é possível fazer uma afirmaçãouniversalquesejacorreta.Noscasos,pois,emqueénecessáriofalardemodouniversal,masnãoépossívelfazê-locorretamente,a leiconsideraocasomaisusual,sebemquenãoignoreapossibilidadedeerro.Enemporissotalmododeprocederdeixadesercorreto,poisoerronãoestánalei,nemnolegislador,masnanaturezadaprópriacoisa, jáqueosassuntospráticossãodessaespéciepornatureza.

Portanto, quando a lei se expressa universalmente e surge um caso que não éabrangidopeladeclaraçãouniversal,éjusto,umavezqueolegisladorfalhoueerrou por excesso de simplicidade, corrigir a omissão— era outras palavras,dizer o que o próprio legislador teria dito se estivesse presente, e que teriaincluídonaleisetivesseconhecimentodocaso.

Por isso o equitativo é justo, superior a uma espécie de justiça—não justiçaabsoluta,masaoerroprovenientedocaráterabsolutodadisposiçãolegal.Eessaéanaturezadoequitativo:umacorreçãodaleiquandoelaédeficienteemrazãodasuauniversalidade.E,mesmo,éesseomotivoporquenemtodasascoisassãodeterminadaspela lei:emtornodealgumasé impossível legislar,demodoque se faz necessário um decreto. Com efeito, quando a coisa é indefinida, aregra também é indefinida, como a régua de chumbo usada para ajustar asmolduraslésbicas:aréguaadapta-seàformadapedraenãoérígida,exatamente

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comoodecretoseadaptaaosfatos.

Torna-seassimbemclarooquesejaoequitativo,queeleéjustoeémelhordoqueumaespéciedejustiça.Evidencia-setambém,peloquedissemos,quemsejaohomemequitativo:ohomemqueescolheepraticataisatos,quenãoseaferraaosseusdireitosemmausentido,mastendeatomarmenosdoqueseuquinhãoemboratenhaaleiporsi,éequitativo;eessadisposiçãodecaráteréaequidade,queéumaespéciedejustiçaenãoumadiferentedisposiçãodecaráter.

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Seumhomempodeounãotratarinjustamenteasimesmo,ficasuficientementeclaropeloqueficouditoatrás.Comefeito,umaclassedeatosjustossãoosatosqueestãoemconsonânciacomalgumavirtudeequesãoprescritospelalei:porexemplo,aleinãopermiteexpressamenteosuicídio,eoquealeinãopermiteexpressamente,elaoproíbe.Poroutrolado,quandoumhomem,violandoalei,causa dano a outro voluntariamente (excetuados os casos de retaliação), essehomemageinjustamente;eumagentevoluntárioéaquelequeconhecetantoapessoaaquematingecomoseuatocomooinstrumentoqueusa:equem,levadopela cólera, voluntariamente se apunhala, pratica esse ato contrariando a retarazãodavida,tissoaleinãopermite;portanto,eleageinjustamente.Masparacomquem?CertamentequeparacomoEstado,enãoparaconsigomesmo.Porque ele sofre voluntariamente, e ninguém é voluntariamente tratado cominjustiça. Por essamesma razão, o Estado pune o suicida, infligindo-lhe certaperdadedireitoscivis,poisqueeletrataoEstadoinjustamente.

Alémdisso,naquelesentidode"agirinjustamente"emqueohomemqueassimprocede é apenas injusto e não completamente mau, não é possível tratarinjustamenteasimesmo.Comefeito,estesentidodiferedoanterior;ohomeminjusto,numadasacepçõesdotermo,émaudeumamaneiraparticularizada,talqualcomoocovarde,enãonosentidodesercompletamentemau,deformaqueo seu "ato injusto" nãomanifestamaldade em geral. Porque isso implicaria apossibilidade de ter sido amesma coisa simultaneamente subtraída de outra eacrescentada a ela;mas isso é impossível, poisqueo justo eo injusto sempreenvolvem mais de uma pessoa. Por outro lado, a ação injusta é voluntária epraticadaporescolha,alémdeaelapertencerainiciativa(porquenãosedizqueagiu injustamenteohomemque, tendosofridoummal, retribuicomomesmo

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mal);masaquelequefazdanoasimesmosofreepraticaasmesmascoisasaomesmo tempo. Além disso, se um homem pudesse tratar injustamente a simesmo,poderiasertratadoinjustamenteporseuquerer.E,porfim,ninguémageinjustamente sem cometer atos específicos de injustiça; mas ninguém podecometer adultério com sua própria esposa, nem assaltar a sua própria casa oufurtarosseusprópriosbens.

De um modo geral, a questão: "pode um homem tratar injustamente a simesmo?"é tambémrespondidapeladistinçãoqueaplicamosaoutrapergunta:"podeumhomemserinjustamentetratadoporseuquerer”?

Étambémevidentequesãomásambasascoisas:serinjustamentetratadoeagirinjustamente; porque uma significa ter menos e a outra ter mais do que aquantidademediana, que desempenha aqui omesmo papel que o saudável naartemédicaeaboacondiçãonaartedo treinamento físico.Nãoobstante,agirinjustamente é pior, pois envolve vício emerece censura. E tal vício ou é daespécie completa e irrestrita, ou poucomenos (devemos admitir esta segundaalternativa, porque nem toda ação injusta voluntária implica a injustiça comodisposição de caráter), enquanto ser injustamente tratado não envolve vício einjustiça na própria pessoa. Em si mesmo, por conseguinte, ser injustamentetratado é menos mau, porém nada impede que seja acidentalmente um malmaior. Isso, contudo, não interessa à teoria, que considera a pleuris um malmaior do que um tropeção, muito embora este último possa tornar-seacidentalmente mais grave, se a consequente queda é causa de ser o homemcapturadooumortopeloinimigo.

Metaforicamente e em virtude de certa analogia, há uma justiça não entre umhomemeelemesmo,masentrecertaspartessuas.Nãosetrata,noentanto,deumajustiçadequalquerespécie,masdaquelaqueprevaleceentreamoeescravoouentremaridoemulher.Poistaissãoasrelaçõesqueaparteracionaldaalmaguardaparacomaparteirracional;eélevandoemcontaessaspartesquemuitospensamqueumhomempodeserinjustoparaconsigomesmo,asaber:porqueaspartesemapreçopodemsofreralgumacoisacontráriaaosseusdesejos.Pensa-se,por isso,queexisteumajustiçaimútuaentreelas,comoentregovernanteegovernado.

Eaquiterminaanossaexposiçãodajustiçaedasoutrasvirtudes—istoé,dasoutrasvirtudesmorais.

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LIVROVI

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Comodissemosanteriormentequesedevepreferiromeio-termoenãooexcessoouafalta,equeomeio-termoedeterminadopelosditamesdaretarazão,vamosdiscutiragoraanaturezadessesditames.

Emtodasasdisposiçõesdecaráterquemencionamos,assimcomoemiodososdemais assuntos, há umameta a que visa o homem orientado pela razão, oraintensificando,orarelaxandoasuaatividade;eháumpadrãoquedeterminaosestadosmedianosquedizemosseremosmeios-termosentreoexcessoeafalta,eque estão em consonância com a reta razão.Mas, assim dita a coisa, emboraverdadeira,nãoédemodoalgumevidente;poisnãosóaquicomoemtodasasoutras ocupações que são objetos de conhecimento é correto afirmar que nãodevemos esforçar-nos nem relaxar nossos esforços em demasia nemdemasiadamente pouco, mas em grau mediano e conforme dita a reta razão.Entretanto,seumhomempossuísseapenasesseconhecimento,nãosaberiamaisnada:porexemplo,nãosaberíamosqueespéciesdemedicamentoaplicaraoseucorposealguémdissesse:"todosaquelesqueaartemédicaprescreveequeestãodeacordocomapráticadequempossuiaarte".Énecessário,pois,comrespeitoàs disposições da alma, não só que se faça essa declaração verdadeira, mastambémquesedefinaoquesejamajustaregraeopadrãoqueadetermina.

Dividimosasvirtudesdaalma,dizendoquealgumas sãovirtudesdocaráter eoutras do intelecto. Agora que acabamos de discutir em detalhe as virtudesmorais, exponhamos nosso ponto de vista relativo às outras da maneira quesegue,começandoporfazeralgumasobservaçõesarespeitodaalma.

Dissemosanteriormentequeesta temduaspartes:aqueconcebeumaregraouprincípio racional, e a privada de razão. Façamos uma distinção simples nointerior da primeira, admitindo que sejam duas as partes que conceberam umprincípio racional: uma pela qual contemplamos as coisas cujas causasdeterminantes são invariáveis, e outra pela qual contemplamos as coisasvariáveis;porque,quandodoisobjetosdiferememespécie,aspartesdaalmaque

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correspondemacadaumdeles tambémdiferememespécie,vistoserporcertasemelhançaeafinidadecomosseusobjetosqueelasosconhecem.Chamemoscientíficaaumadessaspartesecalculativaàoutra,poisomesmosãodeliberarecalcular,masninguémdeliberasobreoinvariável.Porconseguinte,acalculativaéumapartedafaculdadequeconcebeumprincípioracional.Devemos,assim,investigarqualsejaomelhorestadodecadaumadessasduaspartes,poisneleresideavirtudedecadauma.

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Avirtudedeumacoisaérelativaaoseufuncionamentoapropriado.Ora,naalmaexistemtrêscoisasquecontrolamaaçãoeaverdade:sensação,razãoedesejo.

Destastrês,asensaçãonãoéprincípiodenenhumaação:bemomostraofatodeosanimaisinferiorespossuíremsensação,masnãoparticiparemdaação.

Aafirmaçãoeanegaçãonoraciocíniocorrespondem,nodesejo,aobuscareaofugir;demodoque,sendoavirtudemoralumadisposiçãodecaráterrelacionadacom a escolha, e sendo a escolha um desejo deliberado, tanto deve serverdadeirooraciocíniocomoretoodesejoparaqueaescolhasejaacertada,eosegundodevebuscarexatamenteoqueafirmaoprimeiro.

Ora, esta espécie de intelecto e de verdade é prática. Quanto ao intelectocontemplativo, e não prático nem produtivo, o bom e o mau estado são,respectivamente, a verdade e a falsidade (pois essa é a obra de toda a parteracional);masdaparteprática e intelectualobomestadoé a concordânciadaverdadecomoretodesejo.

Aorigemdaação—suacausaeficiente,nãofinal—éaescolha,eadaescolhaéodesejoeoraciocíniocomumfimemvista.Eisaíporqueaescolhanãopodeexistir nem sem razão e intelecto, nem semumadisposiçãomoral; pois a boaaçãoeoseucontrárionãopodemexistirsemumacombinaçãodeintelectoedecaráter.Ointelectoemsimesmo,porém,nãomovecoisaalguma;sópodefazê-lo o intelecto prático que visa a um fim qualquer. E isto vale também para ointelectoprodutivo, jáquetodoaquelequeproduzalgumacoisaofazcomumfimemvista;eacoisaproduzidanãoéumfimnosentidoabsoluto,masapenasumfimdentrodeumarelaçãoparticular,eofimdeumaoperaçãoparticular.Sóo que se pratica é um fim irrestrito; pois a boa ação é um fim ao qual visa o

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desejo.

Portanto, a escolha ou é raciocínio desiderativo ou desejo raciocinativo, e aorigemdeumaaçãodessaespécieéumhomem.Deve-seobservarquenenhumacoisapassadaéobjetodeescolha;porexemplo,ninguémescolhe tersaqueadoTróia,porqueninguémdeliberaarespeitodopassado,massóarespeitodoqueestá para acontecer e pode ser de outra forma, enquanto o que é passado nãopodedeixardehaverocorrido;porissoAgatãotinharazãoemdizer:

PoissomenteistoéaopróprioDeusvedado:

Ofazernãosucedidooqueumavezaconteceu.

Comoacabamosdever,aobradeambasaspartesintelectuaiséaverdade.Logo,asvirtudesdeambasserãoaquelasdisposiçõessegundoasquaiscadaumadelasalcançaráaverdadeemsumograu.

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Comecemos, pois, pelo princípio, discutindomais uma vez essas disposições.Dê-seporestabelecidoqueasdisposiçõesemvirtudedasquaisaalmapossuiaverdade, quer afirmando, quer negando, são em número de cinco: a arte, oconhecimento científico, a sabedoria prática, a sabedoria filosófica e a razãointuitiva(nãoincluímosojuízoeaopiniãoporqueestespodemenganar-se).

Ora, o que seja o conhecimento científico, se quisermos exprimir-nos comexatidão e não nos guiar por meras analogias, evidencia-se pelo que segue.Todosnóssupomosqueaquiloquesabemosnãoécapazdeserdeoutraforma.Quantoàscoisasquepodemserdeoutraforma,nãosabemos,quandoestãoforadonossocampodeobservação,seexistemounãoexistem.Porconseguinte,oobjetodeconhecimentocientíficoexistenecessariamente;dondeseseguequeéeterno,poistodasascoisasqueexistempornecessidadenosentidoabsolutodotermosãoeternas,eascoisaseternassãoingênitaseimperecíveis.

Por outro lado, julga-se que toda ciência pode ser ensinada e seu objeto,aprendido.Etodoensinopartedoquejáseconhece,comosustentamostambémnosAnalíticos.Comefeito,oensinoprocedeàsvezesporinduçãoeoutrasvezesporsilogismo.Ora,ainduçãoéopontodepartidaqueopróprioconhecimento

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douniversalpressupõe,enquantoosilogismoprocededosuniversais.Existem,assim,pontosdepartidadeondeprocedeosilogismoequenãosãoalcançadosporeste.Logo,éporinduçãoquesãoadquiridos.

Em suma, o conhecimento científico é um estado que nos torna capazes dedemonstrar,epossuiasoutrascaracterísticas limitativasqueespecificamosnosAnalíticos,poiséquandoumhomemtemcertaespéciedeconvicção,alémdeconhecerospontosdepartida, quepossui conhecimento científico.E, se estesnão lhe forem mais bem conhecidos do que a conclusão, sua ciência serápuramenteacidental.

Comistodamosporterminadanossaexposiçãodoconhecimentocientífico.

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Naclassedovariávelincluem-setantocoisasproduzidascomocoisaspraticadas.Há uma diferença entre produzir e agir (quanto à natureza de ambos,consideramoscomoassenteoque temosditomesmoforadenossaescola);desortequeacapacidaderaciocinadadeagirdiferedacapacidaderaciocinadadeproduzir. Daí, também, o não se incluírem uma na outra, porque nem agir éproduzir,nemproduziréagir.

Ora, como a arquitetura é uma arte, sendo essencialmente uma capacidaderaciocinadadeproduzir,enemexisteartealgumaquenãosejaumacapacidadedestaespécie,nemcapacidadedestaespéciequenãosejaumaarte,segue-sequeaarteéidênticaaumacapacidadedeproduzirqueenvolveoretoraciocínio.

Todaartevisaàgeraçãoeseocupaeminventareemconsiderarasmaneirasdeproduziralgumacoisaque tantopodesercomonãoser,ecujaorigemestánoqueproduz,enãonoqueéproduzido.Comefeito,aartenãoseocupanemcomascoisasquesãoouquesegerampornecessidade,nemcomasqueofazemdeacordocomanatureza(poisessastêmsuaorigememsimesmas).

Diferindo,pois,oproduzireoagir,aartedeveserumaquestãodeproduzirenãodeagir;eemcertosentido,oacasoeaarteversamsobreasmesmascoisas.ComodizAgatão:"Aarteamaoacaso,eoacasoamaaarte".Logo,como jádissemos,aarteéumadisposiçãoqueseocupadeproduzir,envolvendooretoraciocínio;eacarênciadearte,pelocontrário,étaldisposiçãoacompanhadade

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falso raciocínio. E ambas dizem respeito às coisas que podem serdiferentemente.

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No que tange à sabedoria prática, podemos dar-nos conta do que sejaconsiderandoaspessoasaquemaatribuímos.

Ora, julga-se que é cunho característico de um homem dotado de sabedoriapráticaopoderdeliberarbemsobreoqueébomeconvenienteparaele,nãosobum aspecto particular, como por exemplo sobre as espécies de coisas quecontribuemparaasaúdeeovigor,massobreaquelasquecontribuemparaavidaboa em geral. Bem o mostra o fato de atribuirmos sabedoria prática a umhomem, sob um aspecto particular, quando ele calculou bem com vistas emalgumafinalidadeboaquenãoseincluientreaquelasquesãoobjetodealgumaarte.

Segue-sedaíque,numsentidogeral,tambémohomemqueécapazdedeliberarpossuisabedoriaprática.Ora,ninguémdeliberasobrecoisasquenãopodemserdeoutromodo,nemsobreasquelheéimpossívelfazer.Porconseguinte,comooconhecimentocientíficoenvolvedemonstração,masnãohádemonstraçãodecoisas cujos primeiros princípios são variáveis (pois todas elas poderiam serdiferentemente), e como é impossível deliberar sobre coisas que são pornecessidade, a sabedoria prática não pode ser ciência, nem arte: nem ciência,porqueaquiloquesepodefazerécapazdeserdiferentemente,nemarte,porqueo agir e o produzir são duas espécies diferentes de coisa. Resta, pois, aalternativa de ser ela uma capacidade verdadeira e raciocinada de agir comrespeitoàscoisasquesãoboasoumásparaohomem.

Comefeito,aopassoqueoproduzirtemumafinalidadediferentedesimesmo,isso não acontece como agir pois que a boa ação é o seu próprio fim.Daí oatribuirmossabedoriapráticaaPériclesehomenscomoele,porquepercebemoqueébomparasimesmoseparaoshomensemgeral:pensamosqueoshomensdotadosdetalcapacidadesãobonsadministradoresdecasasedeEstados.Eporissomesmodamos à temperançaonomede s?f??s???, subentendendoque elapreservaanossasabedoria?????satt?f????s??.

Ora, o que a temperança preserva um juízo da espécie que descrevemos

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Porquanto nem todo e qualquer juízo é destruído e pervertido pelos objetosagradáveisoudolorosos:nãooé,porexemplo,ojuízoarespeitodeterosnãoterotriânguloseusângulosiguaisadoisângulosretos,masapenasosjuízosemtornodoquesehádefazerComefeito,ascausasdeondeseoriginaoquesefazconsistemnosfinsvisados;masohomemquefoipervertidopeloprazeroupeladorperdeimediatamentedevistaessascausas:nãopercebemaisqueéabemdetal coisa ou devido a tal coisa que deve escolher e fazer aquilo que escolhe,porqueovícioanulaacausaoriginadoradaação.

Asabedoriapráticadeve,pois,serumacapacidadeverdadeiraeraciocinadadeagircomrespeitoaosbenshumanos.Mas,poroutrolado,emboranaartepossahaverumaexcelência,nasabedoriapráticaelanãoexiste;eemarteépreferívelquem erra voluntariamente, enquanto na sabedoria prática, assim como nasoutrasvirtudes,éexatamenteocontrárioqueacontece.

Torna-seevidente,pois,queasabedoriapráticaéumavirtudeenãoumaarte.E,como sãoduas as partes da almaque seguiampelo raciocínio, ela deve ser avirtudedeumadessasduas, istoé,daquelapartequeformaopiniões;porqueaopinião versa sobre o variável, e da mesma forma a sabedoria prática. Semembargo,elaémaisdoqueumasimplesdisposiçãoracional:mostra-oofatodequetaisdisposiçõespodemseresquecidas,masasabedoriaprática,não.

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O conhecimento científico é um juízo sobre coisas universais e necessárias, etantoasconclusõesdademonstraçãocomooconhecimentocientíficodecorremde primeiros princípios (pois ciência subentende apreensão de uma baseracional). Assim sendo, o primeiro princípio de que decorre o que écientificamenteconhecidonãopodeserobjetodeciência,nemdearte,nemdesabedoriaprática;poisoquepode ser cientificamente conhecidoépassíveldedemonstração, enquanto a arte e a sabedoria prática versam sobre coisasvariáveis. Nem são esses primeiros princípios objetos de sabedoria filosófica,poisécaracterísticodofilósofobuscarademonstraçãodecertascoisas.Se,porconseguinte,asdisposiçõesdamentepelasquaispossuímosaverdadeejamaisnos enganamos a respeito de coisas invariáveis oumesmovariáveis—se taisdisposições,digo,sãooconhecimentocientífico,asabedoriaprática,asabedoriafilosóficaearazãointuitiva,enãopodetratar-sedenenhumadastrês(istoé,da

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sabedoria prática, do conhecimento científico ou da sabedoria filosófica), sóresta uma alternativa: que seja a razão intuitiva que apreende os primeirosprincípios.

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A sabedoria, nas artes, é atribuída aos seus mais perfeitos expoentes, porexemplo, aFídias comoescultor e aPolicleto como retratista empedra; e porsabedoria,aqui,nãoentendemosoutracoisa senãoaexcelêncianaarte.Masacertas pessoas consideramos sábias de modo geral e não em algum campoparticular ou sob qualquer outro aspecto limitado, como diz Homero noMargites:

Nemlavrador,nemmesmocavadorfizeramosdeusesestehomem,

Nemsábioemoutracoisaqualquer.

Époisevidentequeasabedoriadeveserdetodasasformasdeconhecimentoamaisperfeita.Dondeseseguequeohomemsábionãoapenasconheceráoquedecorre dos primeiros princípios, senão que também possuirá a verdade arespeito desses princípios. Logo, a sabedoria deve ser a razão intuitivacombinada com o conhecimento científico— uma ciência dosmais elevadosobjetosquerecebeu,porassimdizer,aperfeiçãoquelheéprópria.

Dosmaiselevadosobjetos,dizemosnós,porqueseriaestranhoseaartepolíticaouasabedoriapráticafosseomelhordosconhecimentos,umavezqueohomemnãoéamelhorcoisadomundo.Ora,seoqueésaudáveloubomdifereparaoshomenseospeixes,masoqueébrancoouretoésempreomesmo,qualquerumdiriaqueoqueésábioéomesmo,masoqueépraticamentesábiovaria;poiséàquelequeobservabemasdiversascoisaquelhedizemrespeitoqueatribuímossabedoriaprática,eéaelequeconfiaremostaisassuntos.Porissodizemosqueaté alguns animais inferiores possuem sabedoria prática, isto é, aqueles quemostrampossuircertopoderdeprevisãonoquetocaàsuaprópriavida.

Éevidente,poroutro lado,queasabedoriapráticaeaartepolíticanãopodemseramesmacoisa;porque,sedevemoschamarsabedoriafilosóficaàdisposiçãomental que seocupa comos interessespessoaisdeumhomem,haverámuitassabedorias filosóficas. Não existirá uma relativa ao bem de todos os animais

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(assimcomonão existe uma artemédicapara todas as coisas existentes),masumasabedoriafilosóficadiferentesobreobemdecadaespécie.

Eseargumentaremdizendoqueohomeméomelhordosanimais,issonãofazdiferença,porqueháoutrascoisasmuitomaisdivinasporsuanaturezadoqueohomem: o exemplomais conspícuo são os corpos de que foram povoados oscéus. De quanto se disse resulta claramente que a sabedoria filosófica é umconhecimento científico combinado com a razão intuitiva daquelas coisas quesãoasmaiselevadaspornatureza.PorissodizemosqueAnaxágoras,Taleseoshomens semelhantes a eles possuem sabedoria filosófica, mas não prática,quando os vemos ignorar o que lhes é vantajoso; e tambémdizemos que elesconhecemcoisasnotáveis,admiráveis,difíceisedivinas,masimprofícuas.Isso,porquenãosãoosbenshumanosqueelesprocuram.

A sabedoria prática, pelo contrário, versa sobre coisas humanas, e coisas quepodemserobjetodedeliberação;poisdizemosqueessaéacimadetudoaobradohomemdotadodesabedoriaprática:deliberarbem.Masninguémdeliberaarespeitodecoisasinvariáveis,nemsobrecoisasquenãotenhamumafinalidade,e essa finalidade; um bem que se possa alcançar pela ação. De modo quedeliberabemnosentidoirrestritodapalavraaqueleque,baseando-senocálculo,écapazdevisaràmelhor,paraohomem,dascoisasalcançáveispelaação.

Tampouco a sabedoria prática se ocupa apenas com universais.Deve tambémreconhecerosparticulares,poiselaéprática,eaaçãoversasobreosparticulares.É por isso que alguns que não sabem, e especialmente os que possuemexperiência,sãomaispráticosdoqueoutrosquesabem;porque,seumhomemsoubesse que as carnes leves são digestíveis e saudáveis, mas ignorasse queespéciesdecarnessãoleves,essehomemnãoseriacapazdeproduzirasaúde;poderia,pelocontrário,produzi-laoquesabesersaudávelacarnedegalinha.

Ora,asabedoriapráticadizrespeitoàação.Portanto,deveríamospossuirambasasespéciesdesabedoria,ouasegundadepreferênciaàprimeira.Mastantodasabedoriapráticacomodafilosóficadevehaverumaespéciecontroladora.

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Asabedoriapolíticaeapráticasãoamesmadisposiçãomental,massuaessêncianãoéamesma.Dasabedoriaquedizrespeitoàcidade,asabedoriapráticaque

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desempenhaumpapel controladoréa sabedoria legislativa, enquantoaque serelacionacomosassuntosdacidadecomoparticularesdentrodoseuuniversaléconhecidapeladenominaçãogeralde"sabedoriapolítica"eseocupacomaaçãoeadeliberação,poisumdecretoéalgoaserexecutadosobaformadeumatoindividual.Eisaíporquesódosexpoentesdessaartesedizque"tomampartenapolítica";porquesóeles"produzemcoisas",comoasproduzemostrabalhadoresmanuais.

A sabedoria prática também é identificada especialmente com aquela de suasformasquedizrespeitoaoprópriohomem,aoindivíduo;eessaéconhecidapeladenominaçãogeralde"sabedoriaprática".Dasoutrasespécies,umaéchamadaadministraçãodoméstica,outra, legislação,ea terceira,política, edestaúltimaumapartesechamadeliberativaeaoutra,judicial.

Ora,saberoqueébomparasiéumaespéciedeconhecimento,masdiferemuitodasoutrasespécies;eaohomemqueconheceosseus interessesecomelesseocupa atribui-se sabedoria prática, ao passo que os políticos são consideradosmetediços.DaíaspalavrasdeEurípides:

Masparaquedar-meaotrabalhodesersábio,

Secomopartedonumerosoexércitoobteriasemesforço

Umquinhãoigual?...

Poisosquevisamaltodemaisefazemmuitascoisas...

Osqueassimpensambuscamoseuprópriobemeachamque todosdeveriamfazer o mesmo. Daí vem a opinião de que tais homens possuem sabedoriaprática; e no entanto, o bem pessoal de cada um talvez não possa existir semadministraçãodomésticaesemalgumaformadegoverno.Alémdisso,amaneiradepôremordemosseusnegóciosnãoéclaraeprecisaserestudada.

Oquesedisseacimaéconfirmadopelofatodeque,emboraosmoçospossamtornar-segeômetras,matemáticosesábiosemmatériasquetais,nãoseacreditaqueexistaumjovemdotadodesabedoriaprática.Omotivoéqueessaespéciedesabedoriadizrespeitonãosóaosuniversaismastambémaosparticulares,quese tornam conhecidos pela experiência.Ora, um jovem carece de experiência,quesóotempopodedar.

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Caberia aqui também esta outra pergunta: por que ummenino pode tornar-sematemático,porémnãofilósofo,nemfísico?Éporqueosobjetosdamatemáticaexistem por abstração, enquanto os primeiros princípios das outras matériasmencionadas provêm da experiência; e também porque os jovens não têmconvicção sobre estes últimos, mas contentam-se em usar a linguagemapropriada, aopassoquea essênciadosobjetosdamatemática lhes ébastanteclara.

Além disso, o erro na deliberação pode versar tanto sobre o universal comosobre o particular, isto é: tanto é possível ignorar que toda água pesada émácomoqueestaáguaaquipresenteépesada.

Que a sabedoria prática não se identifica com o conhecimento científico, éevidente;porqueelaseocupa,comojásedisse,comofatoparticularimediato,vistoqueacoisaafazerédessanatureza.

Ela opõe-se, por outro lado, à razão intuitiva, que versa sobre as premissaslimitadorasdasquaisnãosepodedara razão,enquantoa sabedoriaprática seocupa comoparticular imediato, que é objeto nãode conhecimento científicomas de percepção — e não da percepção de qualidades peculiares a umdeterminado sentido, mas de uma percepção semelhante àquela pela qualsabemos que a figura particular que temos diante dos olhos é um triângulo;porque tanto nessa direção como na da premissamaior existe um limite.Masissoéantespercepçãodoquesabedoriaprática,emborasejaumapercepçãodeoutraespéciequenãoadasqualidadespeculiaresacadasentido.

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Há uma diferença entre investigação e deliberação, pois esta última é ainvestigaçãodeumaespécieparticulardecoisa.Devemosapreenderigualmentea natureza da excelência na deliberação: se ela é uma formade conhecimentocientífico,umaopinião,ahabilidadedefazerconjeturasoualgumaoutraespéciedecoisa.

Não se trata de conhecimento científico, porque os homens não investigam ascoisas que conhecem, ao passo que a boa deliberação é uma espécie deinvestigação,equemdeliberainvestigaecalcula.

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Tampoucoéhabilidadeemfazerconjeturas,pois,alémdeimplicarausênciaderaciocínio,estaéumaqualidadequeoperacomrapidez,aopassoqueoshomensdeliberam longamente, e diz-se que a conclusão do que se deliberou deve serposta logo em prática, mas a deliberação deve ser lenta. Domesmomodo, avivacidade intelectual também difere da excelência na deliberação; é ela umaespéciedehabilidadeemconjeturar.

Não se pode, por outro lado, identificar a excelência na deliberação comumaopinião de qualquer espécie que seja.Mas, como o homem que delibera malcometeumerro,enquantooquedeliberabemofazcorretamente,claroestáquea excelência no deliberar é uma espécie de correção — não, porém, deconhecimentooudeopinião.Comefeito,conhecimentocorretoécoisaquenãoexiste, assim como não existe conhecimento errado; e a opinião correta é averdade. Ao mesmo tempo, tudo que é objeto de opinião já se achadeterminado.

Mas,poroutrolado,aexcelênciadadeliberaçãoenvolveraciocínio.Resta,pois,aalternativadequeelasejaacorreçãodoraciocínio.Comefeito,estaaindanãoéasserção,masaopiniãooé,tendojáultrapassadoafasedainvestigação;eohomemquedelibera,querofaçabem,quermal,buscaalgumacoisaecalcula.

Mas a excelência da deliberação é certamente a deliberação correta. Por issodevemosindagarprimeirooquesejaadeliberaçãoequaloseuobjeto.E,umavezqueexistemaisdeumaespéciedecorreção,evidentementeaexcelêncianodeliberarnãoéumaespéciequalquer;porqueohomemincontinenteeohomemmau, se forem hábeis, alcançarão como resultado do seu cálculo o quepropuseramasimesmos,deformaqueterãodeliberadocorretamente,masoqueterão alcançado é um grande mal para eles. Ora, ter deliberado bem éconsiderado uma boa coisa, pois é essa espécie de deliberação correta queconstituiaexcelênciadadeliberação—istoé,aquelaquetendeaalcançarumbem.

Entretanto,éatépossívelalcançarobemechegaraoquesedevefazermedianteumsilogismo falso—não, todavia, pelomeio correto, sendo falsa apremissamenor; de forma que tampouco isso é a excelência no deliberar — essadisposiçãoemvirtudedaqualatingimosoquedevemos, sebemquenãopelomeiocorreto.

Poroutrolado,épossívelalcançá-loporumalongadeliberaçãoenquantooutro

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homem chega a ele rapidamente. Por conseguinte, no primeiro caso nãopossuímosaindaaexcelêncianodeliberar,queéacorreçãonoquedizrespeitoao conveniente — a correção tanto no que toca ao fim como ao meio e aotempo.

Alémdisso,épossível terdeliberadobem,quernosentidoabsoluto,quercomreferênciaaumfimparticular.Aexcelênciadadeliberaçãonosentidoabsolutoé,pois,aquiloquelograêxitocomreferênciaaoqueéofimnosentidoabsoluto,e a excelência da deliberação num sentido particular é o que logra um fimparticular.

Se, pois, é característico dos homens dotados de sabedoria prática o terdeliberadobem,aexcelênciadadeliberaçãoseráacorreçãonoquedizrespeitoàquiloqueconduzaofimdequeasabedoriapráticaéaapreensãoverdadeira.

10

Ainteligência,damesmaforma,eaperspicácia,emvirtudedasquaissedizqueos homens são inteligentes ou perspicazes, nem se identificam de todo com aopinião ou o conhecimento científico (pois nesse caso todos seriam homensinteligentes),nemsãoelasumadasciênciasparticulares,comoamedicina,queéaciênciadasaúde,ouageometria,queéaciênciadasgrandezasespaciais.Comefeito,a inteligêncianemversa sobreascoisaseternase imutáveis,nemsobretoda e qualquer coisa que vem a ser, mas apenas sobre aquelas que podemtornar-se assunto de dúvidas e deliberação. Portanto, os seus objetos são osmesmosqueosdasabedoriaprática;masinteligênciaesabedoriapráticanãosãoamesmacoisa.Estaúltimaemiteordens,vistoqueoseufiméoquesedeveounãosedevefazer;ainteligência,pelocontrário,limita-seajulgar.(Inteligênciaéo mesmo que perspicácia, e homens inteligentes, o mesmo que homensperspicazes).

Ora, elanão énemaposse, nema aquisiçãoda sabedoriaprática;mas, assimcomo o aprender é chamado entendimento quando significa o exercício dafaculdadedeconhecer,tambémotermo"entendimento"éaplicávelaoexercícioda faculdade de opinar com o fim de aquilatar o que outra pessoa diz sobreassuntos que constituem o objeto da sabedoria prática — e de aquilatarcorretamente,pois"bem"e"corretamente"sãoamesmacoisa.

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Edaí provémousodonome "inteligência", emvirtudedoqual sediz queoshomens são "perspicazes", a saber: da aplicação do termo à apreensão daverdadecientífica,poismuitasvezeschamamosaissoentendimento.

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Oquesechamadiscernimento,eemvirtudedoqualsedizqueoshomenssão"juízes humanos" e que "possuem discernimento", é a reta discriminação doequitativo.Mostra-oofatodedizermosqueohomemequitativoéacimadetudoum homem de discernimento humano, e de identificarmos a equidade com odiscernimentohumanoarespeitodecertosfatos.Eessediscernimentoéaquelequediscriminacorretamenteoqueéequitativo, sendoodiscernimentocorretoaquelequejulgacomverdade.

Ora, todas as disposições que temos considerado convergem, como era deesperar, para o mesmo ponto, pois, quando falamos de discernimento, deinteligência, de sabedoria prática e de razão intuitiva, atribuímos às mesmaspessoasapossedodiscernimento,oteremalcançadoaidadedarazão,eoseremdotadas de inteligência e de sabedoria prática. Com efeito, todas essasfaculdadesgiramemtornodecoisasimediatas,istoé,departiculares;eserumhomeminteligenteoudebomouhumanodiscernimentoconsisteemsercapazdejulgarascoisascomqueseocupaasabedoriaprática,porquantoasequidadessãocomunsatodososhomensbonsemrelaçãoaosoutroshomens.

Ora, todas as coisas que cumpre fazer incluem-se entre os particulares ouimediatos; pois não só deve o homem dotado de sabedoria prática terconhecimento dos fatos particulares, mas também a inteligência e odiscernimentoversamsobrecoisasaseremfeitas,eestassãocoisasimediatas.Arazão intuitiva, por sua vez, ocupa-se com coisas imediatas em ambos ossentidos,pois tantoosprimeiros termoscomoosúltimos sãoobjetosda razãointuitivaenãodoraciocínio,earazãointuitivapressupostapelasdemonstraçõesapreendeos termosprimeirose imutáveis,enquantoarazão intuitivarequeridapelo raciocínio prático apreende o fato último e variável, isto é, a premissamenor.Eessesfatosvariáveisservemcomopontosdepartidaparaaapreensãodofim,vistoquechegamosaosuniversaispelosparticulares;éimportante,porconseguinte,que tenhamospercepçãodestesúltimos,e talpercepçãoéa razãointuitiva.

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Eisaíporquetaisdisposiçõessãoconsideradascomodotesnaturais,eenquantode ninguém se diz que é filósofo por natureza, a muitos se atribui umdiscernimento, inteligência e uma razão intuitiva inatos. Mostra-o acorrespondência que estabelecemos entre os nossos poderes e a nossa idade,dizendo que uma determinada idade traz consigo a razão intuitiva e odiscernimento; isto implicaqueacausaénatural.Dondese seguequea razãointuitivaétantoumcomeçocomoumfim,poisasdemonstraçõespartemdestesesobreestesversam.Porissodevemosacatar,nãomenosqueasdemonstrações,osaforismoseopiniõesnãodemonstradasdepessoasexperientesemaisvelhas,assimcomodaspessoasdotadasdesabedoriaprática.Comefeito,essaspessoasenxergambemporqueaexperiêncialhesdeuumterceiroolho.

Acabamosdemostrar,portanto,quecoisassãoasabedoriapráticaeasabedoriafilosófica, em que consistem uma e outra, e acrescentamos que cada uma é avirtudedeumapartediferentedaalma.

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Masalguémpoderiaperguntardequeservemessasfaculdadesdamente,jáqueasabedoriafilosóficanãoconsideranenhumadascoisasquetornamumhomemfeliz(poisnãodizrespeitoàscoisasquesegeram);equantoàsabedoriaprática,emboratratedessascoisas,paraquenecessitamosdela?Asabedoriapráticaéadisposição damente que se ocupa com as coisas justas, nobres e boas para ohomem,masessassãoascoisascujapráticaécaracterísticadeumhomembom,enãonostornamosmaiscapazesdeagirpelofatodeconhecê-lasseasvirtudessãodisposiçõesdecaráter,domesmomodoquenãosomosmaiscapazesdeagirpelofatodeconhecerascoisassãsesaudáveisnãonosentidodeproduziremasaúde,mas no de serem consequência dela. Efetivamente, a simples posse daartemédicaoudaginásticanãonostornamaiscapazesdeagir.

Mas se dissermos que um homem deve possuir sabedoria prática, não paraconhecer as verdades morais, mas para tornar-se bom, a sabedoria práticanenhumautilidadeteráparaosquejásãobons;e,poroutrolado,denadaserveela para os que não possuem virtude.Com efeito, nenhuma diferença faz queelespróprios tenhamsabedoriapráticaouqueobedeçamaoutrosquea têm,eseria suficiente fazer o que costumamos fazer com respeito à saúde: emboradesejemos gozar saúde, não nos dispomos por isso a aprender a arte da

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medicina.

Por outro lado, pareceria estranho que a sabedoria prática, sendo inferior àfilosófica,tivesseautoridadesobreela,comopareceimplicarofatodequeaartequeproduzumacoisaqualquerexerceomandoeogovernorelativamenteaessacoisa.

Sãoestas,pois,asquestõesquecumprediscutir,poisatéagoranoslimitamosaexporasdificuldades.

Antes de tudo, diremos que essas disposições de caráter devem ser dignas deescolha porque são as virtudes das duas partes da alma respectivamente, e oseriamaindaquenenhumadelasproduzisseoquequerquefosse.

Emsegundolugar,elasdefatoproduzemalgumacoisa—não,porém,comoaarte médica produz saúde, mas como a saúde produz saúde. É assim que asabedoria filosófica produz felicidade; porque, sendo ela uma parte da virtudeinteira,tornaumhomemfelizpelofatodeestarnasuaposseedeatualizar-se.

Poroutrolado,aobradeumhomemsóéperfeitaquandoestádeacordocomasabedoria prática e com a virtude moral; esta faz com que seja reto o nossopropósito; aquela, comque escolhamosos devidosmeios. (Daquarta parte daalma, a nutritiva, não existe nenhumavirtudedessa espécie, pois nãodependedelafazeroudeixardefazeroquequerqueseja).

Quanto a não sermosmais capazes de operar coisas nobres e justas devido àsabedoriaprática,devemosvoltarumpoucoatrásepartirdoseguinteprincípio:

Assim como dizemos que algumas pessoas que praticam atos justos não sãonecessariamente justas por isso — referimo-nos às que praticam os atosprescritos pela lei, quer involuntariamente, quer devido à ignorância ou poralgumaoutra razão,masnãono interessedospróprios atos, embora seja certoquetaispessoasfazemoquedevemetodasascoisasqueohomembemdevefazer—,pareceque,domesmomodo,paraalguémserboméprecisoencontrar-se em determinada disposição quando pratica cada um desses atos: numapalavra, é preciso praticá-los em resultado de uma escolha e no interesse dosprópriosatos.

Ora,avirtudetornaretaaescolha,masquecoisassejamaptaspornaturezaapôrem prática a nossa escolha não as aprendemos da virtude e sim de outra

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faculdade. Devemos deter-nos um pouco nestes assuntos e falar deles maisclaramente.

Existeumafaculdadequesechamahabilidade,etaléasuanaturezaquetemopoderdefazerascoisasqueconduzemaofimpropostoeaalcançá-lo.Ora,seofiménobre,ahabilidadeédignadelouvor,masseofimformau,ahabilidadeserásimplesastúcia;porissochamamosdehábeisouastutosospróprioshomensdotadosdesabedoriaprática.Estanãoéafaculdade,porémnãoexistesemela,eesseolhodaalmanãoatingeoseuperfeitodesenvolvimentosemoauxíliodavirtude, como já dissemos e como, aliás, é evidente.E a razão disto é que ossilogismosemtornodoquesedevefazercomeçamassim:"vistoqueofim,istoé, o que é melhor, é de tal e tal natureza..." Admitamos, no interesse doargumento, que ela seja qual for, mas só o homem bom a conheceverdadeiramente,porquantoamaldadenosperverteenoslevaaenganar-nosarespeito dos princípios da ação. Donde está claro que não é possível possuirsabedoriapráticaquemnãosejabom.

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Devemos, por isso, voltar mais uma vez a considerar a virtude, pois nela seobservaumarelaçãodomesmogênero:assimcomoasabedoriapráticaestáparaahabilidade(nãosendoamesmacoisa,massemelhante),avirtudenaturalestáparaavirtudenaacepçãoestritadotermo.Comefeito,todososhomenspensamque, em certo sentido, cada tipo de caráter pertence por natureza aos que omanifestam,equedesdeomomentodenascersomosjustos,oucapazesdenosdominar,oubravos,oupossuímosqualqueroutraqualidademoral.Nãoobstante,andamos em busca de outro bem que propriamente seja tal— queremos queessasqualidadesexistamemnósdeoutromodo.Poisquetantoascriançascomoos brutos têm as disposições naturais para essas qualidades, mas, quandodesacompanhadasdarazão,elassãoevidentementenocivas.Sónósparecemosperceber que elas podem conduzir-nos para o mau caminho, como um corporobustomasprivadodevisãopodecairdesastrosamentedevidoàsuacegueira;mas,depoisdehaveradquiridoarazão,haveráumadiferençanoseumododeagiresuadisposição:emboracontinuandosemelhanteaoqueera,passaráaservirtudenosentidoestritodapalavra.

Porconseguinte,assimcomonaquelapartedenósqueformaopiniõesexistem

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dois tipos, a habilidade e a sabedoria prática, também na partemoral existemdois tipos, a virtudenatural e avirtudeno sentido estrito.Edestas, a segundaenvolve sabedoria prática. Daí o afirmarem alguns que todas as virtudes sãoformasdesabedoriaprática.ESócratestinharazãoacertorespeito,masaoutrorespeitoandavaerrado:erradoempensarquetodasasvirtudesfossemformasdesabedoria prática, mas certo em dizer que elas implicam tal modalidade desabedoria. Temos uma confirmação disto no fato de que ainda hoje todos oshomens,quandodefinemavirtude,apósindicaradisposiçãodecarátereosseusobjetos,acrescentam:"aquilo(istoé,aqueladisposição)queestádeacordocomaretarazão".Ora,aretarazãoéoqueestádeacordocomasabedoriaprática.

De certomodo, pois, todos os homens parecemadivinhar que essa espécie dedisposição,asaber,aqueestádeacordocomasabedoriaprática,évirtude.Nós,porém, devemos ir um poucomais longe, pois não é apenas a disposição queconcorda coma reta razão,mas aque implica apresençada reta razão,que évirtude:easabedoriapráticaéaretarazãonotocanteataisassuntos.

Sócrates,porconseguinte,pensavaqueasvirtudesfossemregrasouprincípiosracionais (pois a todas elas considerava como formas de conhecimentocientífico),enquantonóspensamosqueelasenvolvemumprincípioracional.

Doquesedisseficabemclaroquenãoépossívelserbomnaacepçãoestritadotermo sem sabedoria prática, nem possuir tal sabedoria sem virtude moral. Edesta formapodemos tambémrefutaroargumentodialéticodequeasvirtudesexistem separadas umas das outras, e o mesmo homem não é perfeitamentedotadopelanaturezapara todasasvirtudes,demodoquepoderáadquirirumadelas sem ter ainda adquirido outra. Isso é possível no tocante às virtudesnaturais, porém não àquelas que nos levam a qualificar um homemincondicionalmente de bom; pois, com a presença de uma só qualidade, asabedoriaprática,lheserãodadastodasasvirtudes.E,evidentemente,aindaqueelanãotivessevalorprático,nosserianecessáriaporseravirtudedaquelaparteda almadeque falamos; enão émenos evidenteque a escolhanão será certasemsabedoriaprática,comonãooseriasemvirtude.Comefeito,umadeterminaofimeaoutranoslevaafazerascoisasqueconduzemaofim.

Masnempor issodominaelaasabedoria filosófica, istoé,apartesuperiordenossa alma, assimcomoa artemédicanãodomina a saúde, pois não se servedela, mas fornece os meios de produzi-la; e faz prescrições no seu interesse,porémnãoaela.Alémdisso,sustentarasuasupremaciaequivaleriaadizerque

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osdeusessãogovernadospelaartepolíticaporqueestafazprescriçõesarespeitodetodososassuntosdoEstado.

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LIVROVII

1

Recomeçaremos agora a nossa investigação tomando outro ponto de partida esalientandoqueasdisposiçõesmoraisaserevitadassãodetrêsespécies:ovício,a incontinência e a bruteza. Os contrários de duas delas são evidentes: a umchamamos virtude e ao outro continência. À bruteza, omais apropriado seriaoporumavirtudesobre-humana,umaespécieheroicaedivinadevirtudecomoaquePríamoatribuiaHeitoremHomero,dizendo:

Poiselenãopareciaofilhodeumhomemmortal,

Masalguémqueviessedasementedosdeuses.

Portanto,se,comosecostumadizer,oshomenssetornaramdeusespeloexcessode virtude, dessa espécie deve ser evidentemente a disposição contrária àbruteza.Comefeito,assimcomoumbrutonãotemvícionemvirtude,tampoucoos tem um deus; seu estado é superior à virtude, e o de um bruto difere emespéciedovício.

Ora, como é raro encontrar um homem divino— para usarmos o epíteto dosespartanos, que chamam um homem de "divino" quando lhe têm grandeadmiração—, também o tipo brutal é raramente encontrado entre os homens.Existe principalmente entre os bárbaros, mas algumas qualidades brutais sãotambém produzidas pela doença ou pela deformidade; e também damos essemaunomeàquelescujovíciovaialémdamedidacomum.

Destaespéciededisposiçãotrataremosrapidamentemaistarde.Quantoaovício,já o discutimos antes.Agora devemos falar da incontinência e damoleza (ouefeminação),edeseuscontrários,acontinênciaeafortaleza;poiscumpretratarde ambas como não idênticas à virtude ou à maldade, nem como um gênerodiferente.Aexemplodoquefizemosemtodososoutroscasos,passaremosemrevistaosfatosobservadose,apósdiscutirasdificuldades,trataremosdeprovar,sepossível,averdadede todasasopiniõescomunsa respeitodessesafetosda

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mente — ou, se não de todas, pelo menos do maior número e das maisautorizadas;porque, se refutarmos asobjeções edeixarmos intatas asopiniõescomuns,teremosprovadosuficientementeatese.

Ora, tanto a continência como a fortaleza são incluídas entre as coisas boas edignasde louvor,e tantoa incontinênciacomoamolezaentreascoisasmásecensuráveis; e omesmo homem é julgado continente e disposto a sustentar oresultadodeseuscálculos,ouincontinenteeprontoaabandoná-los.Eohomemincontinente,sabendoqueoquefazémau,ofazlevadopelapaixão,enquantoohomemcontinente,conhecendocomomausosseusapetites, recusa-seasegui-losemvirtudedoprincípioracional.

Ao temperante todoschamamcontinenteedispostoà fortaleza,masnoqueserefere ao continente alguns sustentam que ele é sempre temperante, enquantooutros o negam; e alguns chamam incontinente ao sem limite e sem limite aoincontinentesemqualquerdiscriminação,enquantooutrosdistinguementreeles.Às vezes se diz que o homem dotado de sabedoria prática não pode serincontinente e, outras vezes, que alguns homens desse tipo, e hábeis ademais,são incontinentes. E por fim, diz-se que os homens são incontinentes mesmocomrespeitoàcólera,àhonraeaolucro.

Estassão,pois,ascoisasquesecostumadizer.

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Podemosperguntaragoracomoépossívelqueumhomemquejulgacomretidãose mostre incontinente na sua conduta. Alguns afirmam que tal conduta éincompatível com o conhecimento; pois seria estranho — assim pensavaSócrates,—que,existindooconhecimentonumhomem,algumacoisapudesseavassalá-lo e arrastá-lo após si como a um escravo. Com efeito, Sócrates erainteiramentecontrárioàopiniãoemapreço,esegundoelenãoexistiaissoquesechama incontinência. Ninguém, depois de julgar — afirmava —, agecontrariandooque julgoumelhor;oshomenssóassimprocedemporefeitodaignorância.

Ora,estaopiniãocontradiznitidamenteosfatosobservados,eéprecisoindagaroqueaconteceatalhomem:seeleageemrazãodaignorância,dequeespéciede ignorância se trata? Porque é evidente que o homem que age com

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incontinêncianãopensa,antesdechegaraesseestado,quedevaagirassim.

Mas alguns concedem certos pontos defendidos por Sócrates, e outros não.Admitem que nada seja mais forte do que o conhecimento, porém não quealguém aja contrariando o que lhe pareceu ser omelhor alvitre; e dizem, porisso,queoincontinentenãopossuiconhecimentoquandoédominadopelosseusprazeres,massóopinião.Se,todavia,setratadeopiniãoenãodeconhecimento,senãoéumaconvicçãoforte,masfraca,queresiste,comonoshesitantes,nóssimpatizamos com a sua incapacidade de manter-se firme em tais convicçõescontraapetitespoderosos;nãosimpatizamos,porém,comamaldadenemcomqualqueroutradisposiçãoquemereçacensura.

Será,então,a resistênciadasabedoriapráticaquecede?Estaéamaisfortedetodas as disposições. Mas a suposição é absurda: o mesmo homem seria aomesmotempodotadodesabedoriapráticaeincontinente,masninguémdiriaquesejaprópriodetalhomempraticarvoluntariamenteosatosmaisvis.Alémdisso,jásemostrouanteriormentequeosquepossuemestaespéciedesabedoriasãohomensdeação (pois seocupamcomfatosparticulares)epossuemasdemaisvirtudes.

Por outro lado, se a continência implica ter fortes e maus apetites, o homemtemperante não será continente, nem este será temperante; pois um homemtemperantenãotemapetitesexcessivosnemmaus.Ohomemcontinente,porém,nãopodedeixardetê-los;porque,seosapetitessãobons,adisposiçãodecaráterquenosinibedesegui-losémá,deformaquenemtodacontinênciaseráboa;e,seelessãofracossemseremmaus,nãohánadadeadmirávelemrefreá-los;e,sesãofracosemaus,tampoucoégrandeproezaresistir-lhes.

Alémdisso,seacontinênciatornaumhomempropensoasustentartenazmentequalqueropinião,acontinênciaémá—istoé,seo levaasustentarmesmoasopiniões falsas; e se a incontinência faz com que um homem abandonefacilmente qualquer opinião, haverá umaboa espécie de incontinência, de quetemos exemplo em Neoptólemo tal como nos é apresentado no Filoctetes deSófocles. Com efeito, ele é digno de louvor por não haver cumprido o queUlissesopersuadiraafazer,eissoporquelherepugnavamentir.

Por outro lado, o argumento sofistico apresenta uma dificuldade.O silogismoinspiradonodesejodeexporosresultadosparadoxaisdecorrentesdaopiniãodeum adversário, a fimde conquistar a admiração dos ouvintes para o refutador

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quando este logra o seu desiderato, nos coloca em grande embaraço (pois oraciocínioficaamarradoquandonãoquerimobilizar-se,porqueaconclusãonãoosatisfaz;enãopodeavançarporqueéincapazderefutaroargumento).Háumsilogismo do qual se conclui que a loucura conjugada com a incontinência évirtude,poisumhomemfazocontráriodoquejulgadevidoàincontinência,maspor outro lado, o que é bom lhe parece mau e algo a ser evitado; e, porconseguinte,faráobemenãoomal.

Eainda:aqueleque,porconvicção,faz,buscaeescolheoqueéagradávelseriaconsideradomelhor do que quem o faz não em resultado do cálculo, mas daincontinência;porqueoprimeiroémais fácildecurar,dadaapossibilidadedepersuadi-loamudardeideia.Masaoincontinentepode-seaplicaroprovérbio:"Quando a água sufoca, com que a faremos descer?" Se ele tivesse sidopersuadidodaretidãodoquefaz,desistiriaquandoopersuadissemamudardeideia;masacontecequetalhomemage,emboraestejapersuadidodealgomuitodiferente.

E finalmente: se a continência e a incontinência dizem respeito a qualquerespéciedeobjeto,quevemasero incontinentenosentidoabsoluto?Ninguémpossui todasas formasde incontinência,masdealgumaspessoasdizemosquesãoincontinentesemabsoluto.

3

Deumadasespéciesenumeradassãoasdificuldadesquesurgem.Algunsdestespontospodemserrefutados,enquantooutrosficarãosenhoresdocampo;porqueadificuldadeencontrasuasoluçãoquandosedescobreaverdade.

Devemos, pois, considerar primeiro se as pessoas incontinentes agemcientementeounãoecientementeemquesentido;ecomqueespéciedeobjetosse pode dizer que têm relação o homem incontinente e o continente, e se ohomemcontinenteeohomemdotadodefortalezasãoomesmooudiferentes;ede modo análogo no tocante aos outros assuntos abrangidos pela nossainvestigação.

Constituemonossopontodepartida aquestãode seohomemcontinente eoincontinentesãodiferenciadospelosseusobjetosoupelasuaatitude,istoé,seoincontinenteétalapenasporqueserelacionacomtaisetaisobjetos,ou,então,

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pela sua atitude, ou ainda por ambas as coisas; a segunda questão é se acontinênciaeaincontinênciaserelacionamcomtodoequalquerobjeto,ounão.

Ohomemqueé incontinentenosentidoabsolutonemserelacionacomtodoequalquerobjeto,massimprecisamentecomaquelesquesãoosobjetosdosemlimite, nem se caracteriza por essa simples relação (pois, a ser assim, a suadisposiçãoseidentificariacomaintemperança),masporserelacionarcomelesdecertomodo.Comefeito,umélevadopelasuaprópriaescolha,pensandoquedeve buscar sempre o prazer imediato, enquanto o outro busca tais prazeresemboranãopenseassim.

Sugere-sequeécontraaretaopiniãoenãocontraoconhecimentoqueagimosde modo incontinente, mas isso não vem ao caso; porque certas pessoas nãohesitamquandonutremumaopinião,maspensam ter conhecimentoexato.Se,pois,oque sepretende sustentar éque,devidoaumaconvicção fraca,osquetêmopinião sãomais sujeitos a agir contrariandoo seupróprio julgamentodoqueaquelesquesabem,responderemosqueaesterespeitonãohádiferençaentreconhecimento eopinião,pois algunshomensnãoestãomenos convencidosdoquepensamquedoquesabem,comobemomostraocasodeHeráclito.Mas,vistoqueusamosapalavra"saber"emdoissentidos,poistantodohomemquepossuioconhecimentomasnãoousacomodaquelequeopossuieusadizemosquesabem,farágrandediferençaseohomemquepraticaoquenãodevepossuio conhecimentomas nãoo exerce, ou se o exerce; porque a segundahipótesepareceestranha,masnãoaprimeira.

Alémdisso,comoháduasespéciesdepremissas,nadaimpedequeumhomemajacontrariandooseupróprioconhecimentoemborapossuaambasaspremissas,desdequeuseapenasauniversal,porémnãoaparticular;porqueosatosaserrealizadossãoparticulares.Ehátambémduasespéciesdetermouniversal;umépredicáveldoagenteeooutrodoobjeto:porexemplo,"acomidasecafazbematodososhomens"e"eusouumhomem",ou"talcomidaéseca";masohomemincontinentenãopossuiounãousaoconhecimentodeque"estacomidaétaletal".Haverá,pois,emprimeiro lugarumaenormediferençaentreessesmodosdesaber,deformaquenãoparecerianadaestranhosaberdeumdosmodosaomesmotempoqueseagecomincontinência,enquantofazê-lo,sabendodooutromodo,seriaextraordinário.

Alémdisso,aconteceaoshomenspossuíremconhecimentoemoutrosentidoquenãoosacimamencionados;poisnaquelesquepossuemconhecimentosemusá-

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lopercebemosumadiferençadeestadoquecomportaapossibilidadedepossuirconhecimentoemcertosentidoeaomesmotemponãoopossuir,comosucedecomosquedormem,comosloucoseosembriagados.Ora,éjustamenteessaacondição dos que agem sob a influência das paixões; pois é evidente que asexplosões de cólera, de apetite sexual e outras paixões que tais alterammaterialmente a condição do corpo, e em alguns homens chegam a produziracessosdeloucura.Claroestá,pois,quedosincontinentessepodedizerqueseencontram num estado semelhante ao dos homens adormecidos, loucos ouembriagados. O fato de usarem uma linguagem própria do conhecimento nãoprovanada,poisoshomensqueseachamsobainfluênciadessaspaixõespodematé articular provas científicas e declamar versos de Empédocles, e os queapenascomeçaramaaprenderumaciênciapodemalinhavarassuasproposiçõessem, todavia, conhecê-la.Para ser realmenteconhecida, éprecisoque se torneumapartedeles,eissorequertempo.Logo,édesuporqueousodalinguagempor parte de homens em estado de incontinência não signifique mais que asdeclamaçõesdeatoresemcena.

Também podemos encarar o caso da maneira que segue, com referência àspeculiaridades da natureza humana.Umadas opiniões é universal, a outra dizrespeito a fatos particulares, e aqui nos deparamos com algo que pertence àesferadapercepção.Quandodasduasopiniõesresultaumasó,numaespéciedecaso a alma afirmará a conclusão, enquanto no caso de opiniões relativas àproduçãoelaagiráimediatamente(porexemplo,se"tudooqueédocedeveserprovado"e“istoédoce",nosentidodeserumadascoisasdocesparticulares,ohomemquepodeagirenãoéimpedidoprocederáimediatamentedeacordocoma conclusão).Quando, pois, está presente em nós a opinião universal que nosproíbe provar, mas também existe a opinião de que "tudo que é doce éagradável"edeque"istoédoce"(eéestaaopiniãoativa),equandosucedeestarpresenteemnósoapetite,umadasopiniõesnosmandaevitaroobjeto,masoapetitenosconduzparaele(poistemopoderdemovercadaumadaspartesdenossocorpo);esucede,assim,queumhomemagedemaneiraincontinentesobainfluência(emcertosentido)deumarazãoedeumaopiniãoquenãoécontráriaemsimesma,porémapenasacidentalmente,àretarazão(poisqueoapetitelheécontrário,masnãooéaopinião).Dondeseseguequeéessetambémomotivodenãoseremincontinentesosanimaisinferiores:comefeito,elesnãopossuemjuízouniversal,masapenasimaginaçãoememóriadeparticulares.

Aexplicaçãodecomosedissolveaignorânciaeohomemincontinenterecuperaoconhecimentoéamesmaquenocasodosembriagadoseadormecidosenão

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temnadadepeculiaraestacondição.Devemospedi-laaosestudiososdeciêncianatural. Ora, sendo a segunda premissa, ao mesmo tempo, uma opinião arespeitodeumobjetoperceptíveleaquiloquedeterminaasnossasações,ouumhomemnão a possui quando se encontra no estado de paixão, ou a possui nosentidoemqueterconhecimentonãosignificaconhecer,masapenasfalar,comoumbêbedoquedeclamaversosdeEmpédocles.E,comooúltimotermonãoéuniversal,nemtampoucoumobjetodeconhecimentocientíficoamesmotítuloque o termo universal, parece mesmo resultar daí a posição que Sócratesprocurou estabelecer; pois não é em presença daquilo que consideramosconhecimento propriamente dito que surge a afecção da incontinência (nem éverdade que ele seja "arrastado" pela paixão), mas o que se acha presente éapenasoconhecimentoperceptual.

Que isto baste como resposta à questão ao ato acompanhado ou não deconhecimento e de como é possível agir de maneira incontinente comconhecimentodecausa.

4

Examinaremosagoraseexistealguémquesejaincontinentenosentidoabsolutoou se todos os homens incontinentes o são num sentido particular; e, se talhomemexiste,comqueespéciedeobjetoeleserelaciona.

Quetantoaspessoascontinentesedotadasdefortalezacomoasincontinenteseefeminadasserelacionamcomprazeresedores,éevidente.Ora,dascoisasquecausamprazeralgumassãonecessárias,enquantooutrasmerecemserescolhidaspor si mesmas e contudo admitem excesso, havendo importante das causascorporaisdeprazer(pelasquaisentendonãosóasquesereferemàalimentaçãocomo também à conjunção sexual, isto é, os estados corporais com os quaisdissemosqueserelacionamatemperançaeaintemperança),enquantoasoutrasnãosãonecessárias,masmerecemserescolhidasporsimesmas(comoavitória,ahonra,ariquezaeoutrascoisasboaseagradáveisdestaespécie).

Assimsendo,aosquevãoaoexcessocomreferênciaassegundas,contrariandoaretarazãoquelevamemsi,nãochamamossimplesmentedeincontinentes,masdeincontinentescomaespecificação"notocanteaodinheiro,àhonra,aolucroou à cólera"— não simplesmente incontinentes, porque diferem das pessoas

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incontinentesesãoassimchamadosdevidoaumasemelhança.(Confronte-seahistória de Anthropos—Homem—, que venceu uma competição nos JogosOlímpicos;noseucaso,adefiniçãogeraldehomempoucodiferiadadefiniçãoque lhe era própria, mas no entanto diferia.) Prova-o o fato de tanto aincontinência no sentido absoluto como a relativa a algum prazer físicoparticular ser censurada não apenas como uma falta mas também como umaespéciedevício,aopassoquenenhumadaspessoasincontinentesaestesoutrosrespeitosécensuradaataltítulo.

Masdaspessoasquesãoincontinentescomrespeitoaosgozosfísicoscomquedizemosrelacionar-seohomemtemperanteeosemlimite,aquelequebuscaoexcessodecoisasagradáveis—eevitaodascoisasdolorosas:fome,sede,calor,frioetodososobjetosdotatoedopaladar—nãoporescolha,mascontrariandoa sua escolha e o seu julgamento, é chamado incontinente, não com aespecificação"comrespeitoaistoouàquilo",como,porexemplo,àcólera,masnumsentidoabsoluto.Confirma-oofatodeseremoshomenschamados"moles"ou "efeminados" com respeito a esses prazeres, porém não a qualquer dosoutros.

E por essa razão juntamos num só grupo o incontinente e o sem limite, ocontinenteeotemperante—excluindo,porém,qualquerdestesoutrostipos—,porque se relacionamde algummodo comosmesmos prazeres e dores.Mas,embora digam respeito aosmesmos objetos, sua relação para com eles não ésemelhante,poisalgunsfazemumaescolhadeliberadaeoutrosnão.

Por esta razão,merecemais o qualificativo de sem limite o homem que semapetite ou com escasso apetite, busca os excessos de prazer e evita doresmoderadas, doqueohomemque fazomesmo levadopor apetites poderosos:poisquefariaoprimeiroseosseusapetitesfossemdessasorteeseafaltadosobjetos"necessários"ofizessesofrerviolentamente?

Ora,dosapetiteseprazeres,algunspertencemàclassedascoisasgenericamentenobres e boas— pois algumas coisas agradáveis são por natureza dignas deescolha,enquantooutraslhessãocontráriaseoutrasaindaocupamumaposiçãointermédia,paraadotaradistinçãoqueestabelecemosanteriormente.Exemplosdaprimeiraclassesãoariqueza,olucro,avitória,ahonra.Ecomreferênciaatodososobjetosdestaespécieoudaintermediárianãosãocensuradososhomenspordesejá-loseamá-los,masporfazerem-nodecertomodo—istoé, indoaoexcesso.

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(Emfacedisto,nãosãomaustodososque,contrariandoaretarazão,sedeixamavassalar por um dos objetos naturalmente nobres e bons e o buscam emdetrimento de tudomais, como, por exemplo, os que se ocupammais do quedevem com a honra, ou comos filhos e os pais.Com efeito, essas coisas sãobenseosquedelasseocupamsãolouvados.Mesmoaí,contudo,podehaverumexcesso:se,comoNíobe,porexemplo,alguémlutassecontraosprópriosdeuses,ou se fosse tãodevotadoaopaiquantoSátiro, cognominado"o filial",que foiconsideradoumgrandetoloporessemotivo).

Comrespeitoaessesobjetosnãohá,pois,maldadepelarazãoindicada, istoé:cadaumdelesépornaturezaalgodignodeescolhaemsimesmo.Semembargo,o excesso em relação a eles émau e deve ser evitado.Analogamente, não háincontinêncianoquetocaaessesobjetos,poisa incontinêncianãosódeveserevitada como merece censura; mas, em razão de uma semelhança quanto aosentimento, aplica-se-lhesonomede incontinênciaprecisandoemcadacasoorespectivo objeto, assim como chamamos de mau médico ou mau ator a umhomemquenãoqualificaríamosdemauemsi.

Visto,pois,quenestecasonãoaplicamoso termoemsentidoabsolutoporquecadaumadessascondiçõesnãoémaldade,masapenasseassemelhaàmaldade,é claro que também no outro caso só se deve considerar como continência eincontinênciaoqueserelacionacomosmesmosobjetosquea temperançaeaintemperança. Aplicamos, porém, o termo à cólera em virtude de umasemelhança, precisando desta forma: "incontinente no que se refere à cólera",comotambémdizemos:"incontinentenoqueserefereàhonraouaolucro".

5

Certas coisas são agradáveis por natureza, e destas algumas o são em sentidoabsolutoeoutrasemrelaçãoadeterminadasclassesdeanimaisoudehomens;edaquelasquenãosãoagradáveispornatureza,algumassetornamtaisporefeitodedistúrbiosnoorganismo,outrasdevidoahábitosadquiridoseoutrasaindaemrazãodeumanaturezacongenitamentemá.

Assimsendo,épossíveldescobriremcadaumadasespéciesdosegundogrupodisposiçõesdecarátersemelhantesàsquereconhecemosemrelaçãoaoprimeiro.Refiro-meaosestadosbrutais,comonocasodafêmeaque,segundosediz,rasga

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oventredasmulheresgrávidasedevoraosfetos,edascoisascomquepassampor deleitar-se algumas tribos que habitam as margens do mar Negro e quecaíramno estadode selvageria—carne crua, carne humana, ou levarem seusfilhosunsaosoutrosparaquesebanqueteiemcomeles—eaindaahistóriaquesecontadeFálaris.

Estas disposições são brutais. Há, porém, outras que resultam da doença (emcertoscasos tambémda loucura, comoohomemque sacrificouedevorousuaprópriamãe, ou o escravo que comeu o fígado de um companheiro), e outrasainda são estados mórbidos, como o hábito de arrancar os pelos, de roer asunhas, e mesmo de comer carvão ou terra; a estes deve acrescentar-se apederastia,e todoselessurgememalgunspornaturezaeemoutros,comonosquedesdeainfânciaforamvítimasdalibidinagemalheia,porhábito.

Ora,àquelesemquemanaturezaéacausadetaldisposiçãoninguémchamariaincontinentes,comoninguémaplicariaoepítetoàsmulheresporcausadopapelpassivoquedesempenhamnacópula.Etampoucoseriaeleaplicadoaosqueseencontramnumadisposiçãomórbidapor efeitodohábito.Possuir essesváriostipos de hábito está para além das fronteiras do vício, como também o está abrutalidade.Paraohomemqueospossui,dominá-losouserdominadoporelesnão é simples continência ou incontinência, mas algo que é tal por analogia,assimcomoohomemquetemtaldisposiçãocomrespeitoaosacessosdecóleradeveserchamadoincontinenteemrelaçãoaessesentimento,enãoincontinentenosentidoabsoluto.

Comefeito,todoestadoexcessivo,sejadeloucura,decovardia,deintemperançaoudeirritabilidade,ouébrutaloumórbido.Ohomemquepornaturezareceiatodasascoisas,inclusiveoguinchodeumcamundongo,padeceumacovardiadebruto, enquanto aqueleque temiauma fuinha estava simplesmente enfermo.Edostolos,osquepornaturezasãoestouvadosevivemapenaspelossentidossãocomobrutos,aexemplodecertasraçasdebárbarosdistantes,enquantoosquesãotaisporefeitodeumadoença(daepilepsia,porexemplo)oudaloucurasãomórbidos.

Destas características, é possível possuir algumas apenas em certas ocasiões enãoserdominadoporelas.Porexemplo,Fálarispode ter refreadoodesejodecomercarnedecriançaouumapetitesexualcontraanatureza;mas tambémépossível ser dominado e não apenas ter tais sentimentos. Logo, assim como amaldade que se mantém no nível humano é chamada simplesmente maldade,

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enquantoaoutranãoésimplesmaldade,porémmaldadecomaqualificaçãode"brutal" ou "mórbida", também é evidente que há uma incontinência brutal eoutra mórbida, mas só a que corresponde à intemperança humana é simplesincontinência.

Torna-seclaro,pois,quea incontinênciaeacontinênciase relacionamcomosmesmosobjetosquea intemperançaea temperança, eoque se relacionacomoutros objetos é um tipo distinto da incontinência, que recebe este nome pormetáforaenãoéchamadosimplesincontinência.

6

Veremosagoraqueaincontinênciarelativaàcóleraémenosvergonhosadoqueaquelaquedizrespeitoaosapetites.

A cólera parece ouvir o raciocínio até certo ponto,mas ouvi-lomal, como osservos apressados que partem correndo antes de havermos acabado de dizer oque queremos e cumprem a ordem às avessas, ou os cães que ladram apenasouvembateràporta,semprocurarverprimeirosesetratadeumapessoaamiga;edamesmaformaacólera,devidoàsuanaturezaardenteeimpetuosa,emboraouvindo,nãoescutaasordenseprecipita-separaavingança.Porqueoraciocínioouaimaginaçãonosinformadequefomosdesprezadosoudesconsiderados,eacólera,comoquechegandoàconclusãodequeéprecisoreagircontraqualquercoisadessaespécie,ferveimediatamente;enquantooapetite,maloraciocínioouapercepçãolhedizemquedeterminadoobjetoéagradável,correadesfrutá-lo.Porconseguinte,acóleraobedeceemcertosentidoaoraciocínio,masoapetitenão.Porissoéelemaiscensurável,poisohomemincontinentecomrespeitoàcóleraévencidoemcertosentidopeloraciocínio,aopassoqueooutrooépeloapetiteenãopeloraciocínio.

Alémdisso,perdoamosmaisfacilmenteàspessoasqueseguemdesejosnaturais,ouseja,osapetitescomunsatodososhomens,namedidaemquesãocomuns.Ora,acóleraeairritabilidadesãomaisnaturaisdoqueoapetitepelosexcessos,istoé,porobjetosdesnecessários.Sirvadeexemploohomemquesedefendeudaacusaçãodehaverbatidonoprópriopaidizendo"sim,maselebatianoseu,eseupai, por suavez, batiano seu; e estemenino (apontandoparao seu filho)bateráemmimquandoforhomem;issoédefamília";ouohomemqueestava

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sendolevadoderastospelofilhoelhepediuqueparasseàporta,poiseleprópriosóhaviaarrastadoseupaiatéali.

Por outro lado, osmais afeitos a conspirar contra outros sãomais criminosos.Ora,umhomemcolériconãoseinclinaaconspirar,nemofazaprópriacólera,queéabertaefranca;masanaturezadoapetiteéelucidadapeloqueospoetaschamamAfrodite,"insidiosafilhadeChipre",epelosversosdeHomerosobreoseu"cintobordado":

Ealiestãoossussurrosdeamor,

Tãosutisqueroubamarazãoaossábios,porprudentesquesejam.

Logo, se esta formade incontinência émais criminosa e vergonhosaque adacólera,elaéaomesmotempoincontinêncianosentidoabsolutoetambémvício.

Aindamais:ninguémcometedesregramentoscomumsentimentodedor,masacólera é sempre acompanhada de dor, enquanto o que comete desregramentosagecomprazer.Se,pois,osatosquemaisjustamenteincitamàcólerasãomaiscriminososdoqueosoutros,mais criminosa é a incontinênciaque sedeve aoapetite;porquantonacóleranãohádesregramento.

Ficabemclaro,pois,queaincontinênciacausadapeloapetiteémaisvergonhosado que aquela que se relaciona com a cólera; e tanto continência comoincontinência dizem respeito aos apetites e prazeres do corpo. Mas é precisodistinguir entre estes últimos, porque, como dissemos no começo, alguns sãohumanos e naturais tanto emespécie como emgrandeza, outros são brutais, eoutrosainda sedevema lesõesedoençasorgânicas.Sócomosprimeiros têmqueveratemperançaeaintemperança,eesseéomotivoporquenãochamamostemperantes nem sem limites aos animais inferiores, a não ser em linguagemfigurada e só quando alguma raça de animais supera uma outra nalibidinosidade,nosinstintosdedestruiçãoenaavidezonívora.Essesnãotêmafaculdade de escolher nem de calcular, mas são realmente desvios da normanatural,comoosloucosentrenós.

Ora,abrutezaéummalmenordoqueovício,sebemquemaisassustador,poisque a parte pervertida não foi a melhor, como no homem: os brutossimplesmentenãotêmumapartemelhor.É,pois,comosecomparássemosumacoisainanimadacomumservivoquantoàmaldade;porqueamaldadedaquiloquenãopossuiumafonteoriginadorademovimentoésempremenosdaninha,e

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a razão é uma fonte originadora dessa espécie. E é também o mesmo quecomparara injustiçaemabstratocomumhomem injusto.Cadaumdosdoiséemcertosentidopior,poisumhomemmaucausarádezvezesmaisdanodoqueumbruto.

7

Comrespeitoaosprazeres,dores,apetiteseaversõesquenosvêmdotatoedopaladar, e aos quais havíamos reduzido anteriormente a temperança e aintemperança, é possível ter tal disposição que se seja vencido mesmo poraquelesqueamaioriadaspessoasdominam,oudominarmesmoaquelesaqueamaioria é incapaz de resistir. Entre essas possibilidades, as que se relacionamcomosprazeressãoaincontinênciaeacontinência,easqueserelacionamcomas dores são a moleza e a fortaleza. A disposição da maioria das pessoas éintermediária,emboraseinclinemaisparaasdisposiçõespiores.

Ora,comoalgunsprazeressãonecessárioseoutrosnão,eosprimeirososãoatécertoponto,masnãoosãoosseusexcessosedeficiências—ecomoistoétãoverdadeirodasdorescomodosapetites—,ohomemquebuscaoexcessodascoisas agradáveis ou busca em demasia as coisas necessárias, fazendo-odeliberadamente, por elas próprias e nunca tendo emvista algumoutro fim, ésem limite. Tal homem será necessariamente inacessível ao arrependimento e,por conseguinte, incurável, pois quem não pode arrepender-se não pode sercurado.

Ohomemquesemostradeficientenabuscadessascoisaséocontráriodosemlimite;eoqueocupaaposiçãomedianaétemperante.

Existe, igualmente, o homemque evita as dores corporais, nãoporque estas olevemdevencida,masporescolhadeliberada.(Dosquenãoescolhemtaisatos,umaespécieéconduzidaaelespelapromessadeprazereaoutraporfugiràdornascidadoapetite,demodoqueessestiposdiferementresi.Ora,todosfariampioropiniãodeumhomemque,semapetiteoucomumapetitefraco,cometessealgumatovergonhoso,doqueseofizessesobainfluênciadeumforteapetite,epior do homem que ferisse outro sem cólera do que se o fizesse levado pelacólera;poisquefariaeleentãoseasuairafossegrande?Eisaíporqueohomemsemlimiteépiordoqueoincontinente).

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Das disposições indicadas, pois, a segunda é antes uma espécie de moleza,enquanto a primeira é intemperança.Ao passo que ao homem incontinente seopõe o continente, ao mole opõe-se o homem dotado de fortaleza; pois afortaleza consiste em resistir, enquanto a continência consiste em vencer, eresistirevencerdiferemumdooutroassimcomonãoperderdiferedeganhar;epor isso mesmo a continência é também mais digna de escolha do que afortaleza.

Ora,ohomemdeficientenotocanteàscoisasaqueamaioriaresiste,eofazcomêxito,émoleeefeminado;poisaefeminaçãotambéméumaespéciedemoleza.Talhomemdeixaarrastaroseumantoparaevitaroesforçodeerguê-loesimuladoença sem se considerar infeliz, ao passo que o homem a quem ele imita érealmenteinfeliz.

Ocasoéanálogonoquetangeàcontinênciaeàincontinência.Comefeito,nãoécoisadecausaradmiraçãoqueumhomemsejaderrotadoporprazeresoudoresviolentoseexcessivos,eaténosdispomosaperdoarseeleresistiucomofazoFiloctetesdeTeodectesquandopicadopelaserpente,ouoCercíondeCárcinonaÁlope, e como as pessoas que procuram conter o riso e irrompem numagargalhada,comoocorreuaXenofanto.Mascausasurpresaqueumhomemnãopossa resistir e seja derrotado por prazeres e dores que amaioria arrosta semgrandedificuldade,quandoissonãosedeveàhereditariedadeouàdoença,comoamolezaqueéhereditáriaentreosreisdoscitasouaquelaquedistingueosexofemininodomasculino.

O amigo de diversões é também considerado sem limite, mas na realidade émole.Porqueadiversãoéumrelaxamentodaalma,umdescansodotrabalho;eoamigodediversõeséumapessoaquevaiaoexcessoemtaiscoisas.

Daincontinência,umaespécieéimpetuosidadeeoutraéfraqueza.Comefeito,algunshomens,apósteremdeliberado,nãosabemmanter,devidoàemoção,asconclusões a que chegaram, enquanto outros, por não terem deliberado, sãolevadospela sua emoção.Eoutros (assim comoos que tomama iniciativa defazercócegaselespróprios),quandopercebemcomantecedênciaeveemoquevaiacontecer,despertamatempoefazemfuncionarasuafaculdadecalculadora,nãosendovencidospelaemoção,querestasejaagradável,querdolorosa.Sãoaspessoasdehumorvivaz ede temperamento excitável asmais sujeitas à formaimpetuosa de incontinência; porque as primeiras, devido à vivacidade, e assegundas, pormotivo da violência das paixões, não esperampelo raciocínio e

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tendemaseguirasuaimaginação.

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O homem sem limite, como dissemos, não costuma arrepender-se porque seatém ao que escolheu;mas qualquer homem incontinente pode arrepender-se.Porisso,aposiçãonãoétalcomoaexpressamosaoformularoproblema,masosem limite é incurável e o incontinente, curável. Porquanto a maldade seassemelhaaumadoençacomoahidropisiaouatísica,enquantoaincontinênciaécomoaepilepsia:aprimeiraépermanenteeasegunda,intermitente.E,deummodo geral, a incontinência e o vício diferem em espécie: o vício não temconsciênciadesimesmo,aincontinênciatem(doshomensincontinentes,osquetemporariamente perdem o domínio próprio são melhores do que os quepossuemoprincípioracionalmasnãoseatemaele,vistoqueossegundossãoderrotadosporumapaixãomaisfracaenãoagemsempréviadeliberação,comoosoutros);porqueohomemincontinenteécomoosqueseembriagamdepressaecompoucovinho—istoé,commenosdoqueamaioriadaspessoas.

Vê-seclaramente,pois,queaincontinêncianãoévício(sebemquetalvezosejanumsentidoparticularizado).Comefeito,aincontinênciaécontráriaàescolha,enquanto o vício segue o que escolheu. Isso, porém, não impede que seassemelhem nas ações a que conduzem.Como disseDemódoco dosmilésios,"quenãoeramprivadosde razão,mas faziamasmesmascoisasque fazemosinsensatos", também os incontinentes não são criminosos, mas praticam atoscriminosos.

Ora, como o homem incontinente tende a buscar, não por convicção, prazerescorporaisquesãoexcessivosecontráriosàretarazão,enquantoosemlimiteestáconvencidopor seraespéciedehomemfeitaparabuscá-los, éoprimeiroquefacilmentesedeixadissuadir,aopassoquecomosegundonãoaconteceassim.Com efeito, a virtude e o vício preservam e destroem, respectivamente, oprimeiro princípio, e na ação a causa final é o primeiro princípio, como ashipótesesosãonamatemática.Nemnaquelecaso,nemnesteéoraciocínioqueensinaosprimeirosprincípios—oqueensinaaretaopiniãoaseurespeitoéavirtude, quer natural, quer produzida pelo hábito. Um homem assim é, pois,temperante,eoseucontrárioéosemlimite.

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Masháumaespéciedehomemqueéarrastadopelapaixãocontrariandoaregrajusta—umhomemaquemapaixãodominaportalformaqueéincapazdeagirde acordo com a reta razão, mas não ao ponto de fazê-lo acreditar que devabuscar taisprazeressemreservas.Esseéo incontinentequeésuperioraosemlimite e não é mau no sentido absoluto, pois nele se conserva o que tem demelhor,oprimeiroprincípio.Econtráriaaeleéoutraespéciedehomem,quesemantém firme nas suas convicções e não se deixa arrastar, ao menos pelapaixão.

Torna-seclaro,peloqueacabamosdedizer,queasegundaéumaboadisposiçãoeaprimeiraémá.

9

Écontinenteohomemque seatema todaequalquer regra, a todaequalquerescolha,ouaquelequeseatemàretaescolha?Eéincontinenteoqueabandonatodaequalquerescolha,assimcomotodaequalquerregra,ouoqueabandonaaregraeaescolhajustas?Foiassimquecolocamosanteriormenteoproblema.Ouseráacidentalmentea todaequalquerescolha,mas, emsi, à regraeà escolhajustasqueumseatemeooutronão?Quandoalguémescolheoubuscaistonointeresse daquilo, em si busca e escolhe o segundo, mas acidentalmente oprimeiro.Masquandofalamosemabsoluto,entendemosoqueébuscadoemsi.Logo,emcertosentidoumsustentaeooutroabandonatodaequalqueropinião;mas,emsentidoabsoluto,sóaretaopinião.

Háalgunsquetendemasustentarasuaopiniãoequesãochamadosteimosos,asaber:osquedeummodogeralsãodifíceisdepersuadire,emparticular,quenão se deixam persuadir facilmente a mudar de ideia. Esses têm algo desemelhanteaohomemcontinente,assimcomoopródigoseassemelhadecertomodoaoliberaleotemerárioaoconfiante;masdiferemamuitosrespeitos.Comefeito, é à paixão e ao apetite que um não quer ceder, já que outras vezes ohomem continente se mostra fácil de persuadir; mas é ao raciocínio que osoutros resistem, porque cultivam seus apetites e muitos deles são conduzidospelosprazeres.

Ora, as pessoas teimosas são as opiniáticas, as ignorantes e as rústicas— asopiniáticas, porque são influenciadas pelo prazer e pela dor, pois deleitam-se

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comasuavitóriaquandonãosedeixampersuadiramudaresofremquandoassuasdecisõessetornamnulas,comosucedeàsvezescomosdecretos:demodoqueseassemelhammaisaohomemincontinentedoqueaoseucontrário.

Mas há alguns que abandonam as suas resoluções não por efeito daincontinência, como o Neoptólemo de Sófocles. Sem embargo, foi sob ainfluênciadoprazerqueeletergiversou—masdeumprazernobre;pois,paraele, dizer a verdade era nobre, e contudoUlisses o persuadira amentir. Comefeito,nem todososque fazemalgumacoisa tendoemvistaoprazer sãosemlimites, maus ou incontinentes, mas só os que a fazem por um prazervergonhoso.

Comotambémexisteumaespéciedehomemquesedeleitamenosdoquedevecom as coisas do corpo e não olha à reta razão, o intermediário entre ele e oincontinente é o homemcontinente.Com efeito, o incontinente não se atem àretarazãoporquesedeleitaemexcessocomtaiscoisas,eestehomemporquesedeleitademasiadamentepoucocomelas; aopassoqueohomemcontinente seatem à razão e nãomuda por nada destemundo.Ora, se a continência é boa,ambas as disposições contrárias devem sermás, como realmente parecem ser;mas,comoooutroextremoéobservadoemmuitopoucoseraramente,pensa-sequeacontinênciasótemumcontrário,aincontinência,domesmomodoqueatemperançasótemumcontrário,queéaintemperança.

Como muitos nomes são aplicados por analogia, é também por analogia queviemosa falarda"continência"dohomemtemperante;pois tantoocontinentecomootemperantesãodetalíndolequejamaiscontrariamaregrajustalevadospelosprazerescorporais;masoprimeiropossuieosegundonãopossuiapetitesmaus.Alémdisso,osegundoé talquenãosenteprazercontrárioà reta razão,enquantooprimeiroétalquesenteprazermasnãosedeixaconduzirporele.Eoincontinenteeosemlimitetambémseassemelhamnumponto:ambosbuscamosprazerescorporais;diferem,contudo,pelofatodeosegundopensarquedeveprocederassim,enquantooprimeiropensademodocontrário.

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Tampouco é possível que o mesmo homem possua sabedoria prática e sejaincontinente. Com efeito, já mostramos que o homem dotado de sabedoria

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prática é tambémumhomemde bom caráter.Alémdisso, a sabedoria práticanãonosvemapenasdoconhecimento,mastambémdacapacidadedeagir.Ora,oincontinenteéincapazdeagir.

Nada impede,porém,queumhomemhábil seja incontinente.Porestemotivo,alguns chegam a pensar que certas pessoas dotadas de sabedoria prática sãoincontinentes;comefeito,ahabilidadeeasabedoriapráticadiferemdamaneiraquedescrevemosemnossasprimeirasdiscussões,eestãopróximasumadaoutranotocanteaomododeraciocinar,masdistinguem-sequantoaoseupropósito.

Etampoucooincontinenteseparececomohomemquesabeecontemplaumaverdade,mascomoadormecidoouoembriagado.Eagevoluntariamente(poisage, em certo sentido, com conhecimento não só do que faz como do fimvisado); não é, porém,mau, visto que o seu propósito é bom; demodoque oincontinenteéapenasmeiomau.Poroutrolado,nãoécriminoso,poisnãoagepremeditadamente.

Dos dois tipos de homem incontinente, umnão se atem às conclusões do quedeliberou,enquantoooutronãodeliberaemabsoluto.Eassimoincontinenteseassemelha a uma cidade que aprova todos os decretos apropriados e temboasleis,masnãoaspõeemprática,comonaobservaçãograciosadeAnaxândrides:

Assimoquisacidadequenãofazcasoalgumdasleis.

Ohomemmau,pelocontrário,écomoumacidadequefazusodesuasleis,masemqueestassãomás.

Ora, a incontinência e a continência relacionam-se com o que excede adisposiçãocaracterísticadamaioriadoshomens;porqueohomemcontinenteseatemmais às suas resoluções e o incontinente menos do que a maioria podefazer.

Dasformasdeincontinência,aprópriadaspessoasexcitáveisémaiscurávelquea das que deliberam mas não se atem às suas conclusões, e os que sãoincontinentes por hábito são mais curáveis do que aqueles em que aincontinênciaéinata;poisémaisfácilmudarumhábitodoquealteraranossanatureza;eoprópriohábitomudadificilmenteporqueseassemelhaànatureza,comodizEveno:

Ohábito,meucaro,nãoésenãoumalongaprática

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Queacabaporfazer-senatureza.

Terminamosdemostraroquesãoacontinênciaeaincontinência,afortalezaeamoleza,ecomoessasdisposiçõesserelacionamumascomasoutras.

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Oestudodoprazeredadorpertenceaocampodofilósofopolítico,poiseleéoarquitetodofimcomvistasnoqualdizemosqueumacoisaémáeoutraéboaemabsoluto.Alémdisso,considerá-loséumadenossastarefasnecessárias,poisnãoapenasassentamosqueavirtudeeovíciomoraisdizemrespeitoadoreseprazeres,masamaioriapensaqueafelicidadeenvolveprazer;eporissosedeuaohomemfelizumnomederivadodeumapalavraquesignificaprazer.

Ora,paraalgumaspessoasnenhumprazeréumbem,queremsimesmo,queracidentalmente, visto que o bem e o prazer não são a mesma coisa; outrospensamquealgunsprazeressãobons,masamaioriadelessãomaus.Háaindaumaterceiraopinião,segundoaqual,mesmoquetodososprazeressejambons,amelhorcoisadomundonãopodeseroprazer.

Estessãoosargumentosemfavordaopiniãodosquenegamabsolutamentequeoprazersejaumbem:Todoprazeréumprocessoperceptívelaumadisposiçãonatural,enenhumprocessoédamesmaespéciequeoseufim,porexemplo:oprocesso da construção não é da mesma espécie que a casa. O homemtemperanteevitaosprazeres,Ohomemdotadodesabedoriapráticabuscaoqueé isento de dor e não o que é agradável. Os prazeres são um obstáculo aopensamento, e quanto mais o são, mais nos deleitamos neles, como, porexemplo,oprazersexual,poisninguémêcapazdepensarnoquequerquesejaquandoestáabsorvidonele.Nãoexisteartedoprazer,aopassoquetodobeméprodutodealgumaarte.Ascriançaseosbrutosbuscamosprazeres.

Aopiniãodequenemtodososprazeressãobonsbaseia-seemdoisargumentos:existemprazeresquesãorealmenteviseobjetosdecensura,eexistemprazeresnocivos,poisalgumascoisasagradáveissãomalsãs.

Oargumentoemfavordaopiniãosegundoaqualamelhorcoisadomundonãoéoprazeréqueestenãoéumfim,masumprocesso.

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Estassãomaisoumenosascoisasquesecostumadizer.Detaispremissasnãose segue que o prazer não seja um bem, oumesmo omaior dos bens, comomostramasseguintesconsiderações:

Primeiro,vistoqueaquiloqueébompodesê-lonumdedoissentidos(umacoisaé simplesmente boa, enquanto outra é boa para determinada pessoa), asconstituiçõesedisposiçõesnaturaisdoser,comoscorrespondentesmovimentoseprocessos,serãodivisíveisdamesmaforma.

Dos que são consideradosmaus, alguns o serão em absoluto, porém não parauma pessoa determinada, mas merecedores da sua escolha; e alguns nãomerecerãosequeraescolhadeumapessoadeterminada,anãosernumaocasiãoparticulareporbreveperíodo,eassimmesmocomrestrições;outros,enfim,nãochegama serprazeres,masapenasparecem tais.Refiro-meaosqueenvolvemdorecujofimécurativo,comoosprocessosqueocorremnaspessoasdoentes.

Além disso, sendo uma espécie de bem atividade e outra espécie, estado, osprocessos que nos restituem ao nosso estado natural só são agradáveisacidentalmente.Aliás,aatividadecanalizadaparaosapetitesquetêmessesbenspor objeto é a atividade daquela parte de nosso estado e natureza quepermaneceuincólume;poisemverdadeháprazeresquenãoenvolvemdornemapetite (como os da contemplação, por exemplo), estando a natureza intatanessescasos.Queosoutrossãoacidentais, indica-oofatodealgumaspessoasnão se deleitarem, quando sua natureza se encontra no estadonormal, comosmesmos objetos agradáveis que lhes causam prazer quando ela está sendorefeita; mas no primeiro caso deleitam-se com coisas que são agradáveis nosentidoabsoluto,enosegundo,tambémcomoscontráriosdestas,inclusivecomcoisasacreseamargas,nenhumadasquaiséagradávelquerpornatureza,querem sentido absoluto.Os estados que elas produzem, por conseguinte, não sãoprazeres naturalmente nem no sentido absoluto; pois, assim como as coisasagradáveisdiferementresi,tambémdiferemosprazeresqueelasproporcionam.

Por outro lado, não é necessário que exista algo melhor do que o prazersimplesmentepordizeremalgunsqueo fimémelhordoqueoprocesso.Comefeito,osprazeresnãosãoprocessos,nem todoselesenvolvemprocessos: são

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atividadesefins.Etampoucoosexperimentamosquandonosestamostornandoalgumacoisa,masquandoexercemosalgumafaculdade;enemtodososprazerestêmumfimdiferentedelesmesmos,massóosprazeresdaspessoasqueestãosendoconduzidasaoaperfeiçoamentodesuanatureza.Eisporquenãoécertodizerqueoprazersejaumprocessoperceptível,masantesdeveríamoschamá-loatividadedoestadonaturale,emvezde"perceptível","desimpedida".Algunsoconsideramumprocessosimplesmenteporquepensamqueeleébomnosentidoestrito do termo; pois julgam, equivocadamente, que a atividade seja umprocesso.

A opinião de que os prazeres sãomaus porque algumas coisas agradáveis sãomalsãsequivaleadizerqueascoisassaudáveissãomásporquealgumascoisassaudáveis nos impedem de ganhar dinheiro. Ambas são más nos casosparticularesmencionados,masnãosãomásemsimesmasporessarazão;eatépodesuceder,àsvezes,quepensarfaçamalàsaúde.

Nemasabedoriaprática,nemqualquerestadodoseréimpedidopeloprazerqueeleproporciona.Sãoosprazeresestranhosquetêmumefeitoimpeditivo,vistoqueosprazeresadvindosdopensaredoaprendernosfazempensareaprenderaindamais.

Nadamais natural doqueo fatodenenhumprazer ser oprodutodeumaartequalquer.Nãoexisteartedenenhumaoutraatividadetampouco,masapenasdafaculdade correspondente, embora seja certo que as artes do perfumista e docozinheirosãoconsideradasartesdeprazer.

Os argumentos baseados nas premissas de que o homem temperante evita osprazeres,edequeohomemdotadodesabedoriapráticabuscaavidasemdoredequeascriançaseosbrutosbuscamoprazersãotodosrefutadospelamesmaconsideração. Já mostramos em que sentido alguns prazeres são bons emabsoluto e em que sentido outros não são bons.Ora, tanto os brutos como ascriançasbuscamprazeresdasegundaespécie (eohomemdesabedoriapráticabuscauma tranquila isençãodosprazeresdessaespécie): referimo-nosaosqueimplicamapetiteedor;istoé,osprazerescorporais(poisesteséquesãodetalnatureza), e aos excessos dos mesmos, em virtude dos quais se diz que umhomemésemlimite.Eisaíporqueohomemtemperanteevitaessesprazeres;porquantoeletambémtemosseusprazerespróprios.

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Mas, além disso, todos concordam em que a dor é má e deve ser evitada;porquantoalgumasdoressãomásemsentidoabsoluto,eoutrassãomásporquedealgummodonosservemde impedimento.Ora,ocontráriodoquedeveserevitado, enquanto coisa vitanda e má, é bom. O prazer, por conseguinte, énecessariamente um bem. E a resposta de Espeusipo, dizendo que o prazer écontrário tanto à dor como ao bem, assim como omaior é contrário tanto aomenor como ao igual, não consegue convencer, pois que o próprio Espeusiponãodiriaqueoprazeré,essencialmente,umasimplesespéciedemal.

E, se certos prazeres sãomaus, isso não impede que o sumo bem seja algumprazer,assimcomoosumobempodeseralgumaespéciedeconhecimento,nãoobstantecertasespéciesdeconhecimentoseremmás.Talvezsejaaténecessário,se a cada disposição pode corresponder uma atividade desimpedida, que, nãosendoafelicidadeoutracoisasenãoaatividadedesimpedidadetodasasnossasdisposiçõesoudealgumasdelas,sejaessaacoisamaisdignadenossaescolha;eessa atividade é prazer. E assim, o sumo bem seria alguma espécie de prazer,emboraamaioriadosprazeresfossemtalvezmausemsentidoabsoluto.

Poressamesma razão todososhomenspensamqueavida felizéagradáveleentremeiam o prazer no seu ideal da felicidade — o que, aliás, é bastantesensato, jáquenenhumaatividadeéperfeitaquandoimpedida,eafelicidadeéumacoisaperfeita.Eisaíporqueohomemfeliznecessitadosbenscorporaiseexteriores, istoé,osda fortuna,a fimdenãoser impedidonessescampos.Osque dizem que o homem torturado no cavalete ou aquele que sofre grandesinfortúnioséfelizseforbomestãodisparatando,querfalemasério,quernão.

E pelo fato de necessitarmos da fortuna como de outras coisas, algunsidentificam a boa fortuna com a felicidade; mas sucede que a própria boafortuna,quandoemexcesso,éumobstáculo,etalvezjánãomereçaonomedeboafortuna,poisqueoseulimiteéfixadocomreferênciaàfelicidade.

E em verdade o fato de todos os seres, tanto os brutos como os homens,buscaremoprazeréumindíciodequeeleseja,decertomodo,osumobem:

Nuncaseperdedetodoavozquemuitospovos...

Mas, assim como nenhuma natureza e nenhum estado são considerados osmelhoresparatodos,tambémnemtodosbuscamomesmoprazer;nãoobstante,

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todosbuscamoprazer.Etalveznarealidadebusquem,nãooprazerquejulgamouquedizembuscar,masomesmoprazer;pois todasascoisascontêmemsi,pornatureza,algodedivino.Masosprazerescorporaisapropriaram-sedonometantoporqueosbuscamoscommaisfrequênciadoqueaosoutros,comoporquetodos os homens participam deles; e assim, por não conhecerem outros, oshomenspensamqueelesnãoexistem.

É evidente, por outro lado, que se o prazer, isto é, a atividade de nossasfaculdades,nãoéumbem,ninguémpoderádizerqueohomemfeliztenhaumavidaagradável;poiscomquefimnecessitariaeledoprazerseestenãoéumbemeohomemfelizpodeatélevarumavidadesofrimentos?Eadornãoénemummal,nemumbem,seoprazernãooé:porque,então,evitá-la?Porconseguinte,tambémavidadohomembomnãoserámaisagradávelqueadequalqueroutro,seassuasatividadesnãoforemmaisagradáveis.

Com respeito aos prazeres corporais, os que dizem que alguns prazeres sãomuito dignos de escolha, a saber, os nobre, porém não os corporais, isto é,aqueles a que se dedica o homem sem limite, devemexaminar por que, nessecaso,asdorescontrárias sãomás.Porquantoocontráriodomauébom.Serãobonsosprazeresnecessáriosnosentidoemquemesmoaquiloquenãoémauébom?Ouserãobonsatécertoponto?Dar-se-áocasoque,sedealgunsestadoseprocessos não pode haver demasia, tampouco a pode haver do prazercorrespondente, e quando aqueles comportam excesso, também o comportamestes?

Ora,écertoquepodehaverexcessodebenscorporais,eohomemmauémaupor buscar o excesso e não por buscar os prazeres necessários (pois todos oshomens deleitam-se de um modo ou de outro com acepipes saborosos, comvinhosecomauniãosexual,masnemtodosofazemcomodevem).Comadordá-seocontrário,poiselenãoevitaoseuexcesso:evita-adetodo;eissolheépeculiar,jáqueoexcessodeprazernãotemcomoalternativaador,salvoparaohomemquebuscaesseexcesso.

Comodevemosexpornãosomenteaverdade,mastambémacausadoerro—pois issocontribuiparaconvencer,umavezquequandosedáumaexplicaçãorazoáveldeporqueofalsopareceverdadeiro,issotendeafortaleceracrençanaopinião verdadeira —, cumpre-nos mostrar agora a razão de os prazerescorporaispareceremmaisdignosdeescolha.

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Emprimeirolugar,pois,éporqueelesexpulsamador:devidoaosexcessosdedorqueexperimentam,oshomensbuscamprazeresexcessivose,emgeral,denaturezacorporalcomoremédioparaador.Ora,osmeioscurativosprovocamintensosentimento(eéesteomotivodeserembuscados),pelocontrasteentreeleseadorcontrária.(E,emverdade,considera-sequeoprazernãoébomporestas duas razões, como já dissemos, a saber: que alguns deles são atividadespertinentes a uma natureza má— quer congênita no caso de um bruto, querdevidaaohábito,istoé,adoshomensmaus:aopassoqueoutrossedestinamacurar uma natureza deficiente; ora, é melhor gozar saúde do que estar-securando, mas esses prazeres surgem durante o processo de cura e, porconseguinte,sãobonsapenasacidentalmente).

Além disso, eles são buscados devido à sua violência pelos que não podemdesfrutaroutrosprazeres. (Em todocaso,dão-se ao trabalhode fabricar sedes,por assim dizer, para si mesmos; quando estas são inofensivas, a prática éinocente,equandosãoprejudiciais,émá.)Taispessoasnãotêmnadamaisquegozar e, além disso, para a natureza de muitas pessoas um estado neutro édoloroso. Com efeito, a natureza animal está em constante labuta, e isto étambém confirmado pelos estudiosos de ciência natural quando dizem seremdolorosasavisãoeaaudição,sucedendoapenasquenosacostumamosaelas.

Do mesmo modo, as pessoas jovens, devido ao processo de crescimento,encontram-senumacondiçãosemelhanteàdosembriagados,eamocidadeéumestadoagradável.Aspessoasdenaturezaexcitável,poroutro lado,necessitamconstantementedealívio;oseuprópriocorpoviveatormentadoporefeitodeseutemperamento,eelasestãosempresobainfluênciadeumdesejoviolento;masadoréexpulsadanãosópeloprazercontráriocomoporqualquerprazer,contantoquesejaforte;eporestarazãoelassetornamsemlimitesemás.

Osprazeresquenãoenvolvemdor,pelocontrário,nãoadmitemexcesso;eessessecontamentreascoisasagradáveispornaturezaenãoporacidente.Porcoisasacidentalmente agradáveis entendo as que agem como meios curativos (pelomotivodeseremaspessoascuradasporelas,mediantealgumaaçãodapartequepermanecesadia,oprocessoéconsideradoagradável);eporcoisasnaturalmenteagradáveisentendoasqueestimulamaaçãodanaturezasã.

Nãoexistecoisaalgumaquesejasempreagradável,jáquenossanaturezanãoésimples,masexisteemnóstambémoutroelementoporsermoscriaturasmortais;demodo que, se um elemento produz determinado efeito, este é antagônico à

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outra natureza; e quando os dois elementos estão equilibrados o efeito nãoparece agradável nem desagradável; porquanto, se a natureza de um ser fossesimples,amesmacoisalheseriasempreagradávelnomaisaltograu.ÉporissoqueDeussempregozaumprazerúnicoesimples:comefeito,nãoexisteapenasuma atividade do movimento, mas também uma atividade do repouso, eexperimenta-semaisprazernorepousodoquenomovimento.Mas"amudançaéaprazívelemtodasascoisas",comodizopoeta,emrazãodealgumvício;pois,assimcomoohomemvicioso se caracterizapelamutabilidade, anaturezaquenecessitademudaréviciosa,pornãosersimplesnemboa.

Aquiterminaanossadiscussãodacontinênciaedaincontinência,doprazeredador.Mostramos tantooquecadauméemsicomoemquesentidoalgunssãobonseoutrosmaus.Restaagorafalardaamizade.

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LIVROVIII

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Depoisdoquedissemossegue-senaturalmenteumadiscussãodaamizade,vistoque ela é uma virtude ou implica virtude, sendo, além disso, sumamentenecessária à vida. Porque sem amigos ninguém escolheria viver, ainda quepossuíssetodososoutrosbens.Eacredita-se,mesmo,queosricoseaquelesqueexercemautoridade epoder sãoosquemais precisamde amigos; pois dequeserve tanta prosperidade sem um ensejo de fazer bem, se este se fazprincipalmente e sob a forma mais louvável aos amigos? Ou como se podemanter e salvaguardar a prosperidade sem amigos? Quanto maior é ela, maisperigoscorre.

Poroutrolado,napobrezaenosdemais infortúniososhomenspensamqueosamigossãooseuúnicorefúgio.Aamizadetambémajudaosjovensaafastar-sedo erro, e aos mais velhos, atendendo-lhes às necessidades e suprindo asatividadesquedeclinamporefeitodosanos.Aosqueestãonovigordaidadeelaestimulaàpráticadenobresações,poisnacompanhiadeamigos—"doisqueandamjuntos"—oshomenssãomaiscapazestantodeagircomodepensar.

E tambémospais parecem senti-la naturalmentepelos filhos e os filhospelospais, não só entre os homens, mas entre as aves e a maioria dos animais.Membrosdamesmaraçaasentemunspelosoutros,eespecialmenteoshomens;por isso louvamos os amigos de seu semelhante. Até em nossas viagenspodemosverquantocadahomeméchegadoecaroatodososoutros.Aamizadetambém parecemanter unidos os Estados, e dir-se-ia que os legisladores têmmaisamoràamizadedoqueàjustiça,poisaquiloaquevisamacimadetudoéàunanimidade, que tem pontos de semelhança com a amizade; e repelem osectarismocomosefosseoseumaiorinimigo.Equandooshomenssãoamigosnão necessitam de justiça, ao passo que os justos necessitam também daamizade;econsidera-sequeamaisgenuínaformade justiçaéumaespéciedeamizade.

Nãoéela,contudo,apenasnecessária,mastambémnobre,porquantolouvamos

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osqueamamosseusamigoseconsidera-seumabelacoisatermuitosdeles.Epensamos,poroutrolado,queasmesmaspessoassãohomensbonseamigos.

Ora,certospontosatinentesàamizadesãomatériadedebate.Algunsadefinemcomoumaespéciedeafinidadeedizemqueaspessoassemelhantessãoamigas,donde os aforismos "igual com igual", "cada ovelha com sua parelha", etc.;outros,pelocontrário,dizemque"doisdomesmoofícionuncaestãodeacordo".E investigam esta questão buscando causas mais profundas e mais físicas,dizendoEurípedesque"aterraressecaamaachuva,eomajestosocéu,quandoprenhe de chuva, adora cair sobre a terra", eHeráclito: "o que se opõe é queajuda", e "de notas diferentes nasce a melodia mais bela", e ainda: "todas ascoisassãogeradaspelaluta";aopassoqueEmpédocles,juntamentecomoutros,exprimeaopiniãocontráriadequeosemelhantebuscaosemelhante.

Quantoaosproblemasfísicos,podemosdeixá-losdeparte,poisnãopertencemàpresente investigação.Examinemos os que são humanos e envolvem caráter esentimento, por exemplo: se a amizade pode nascer entre duas pessoasquaisquer,sepodemseramigososmaus,eseexisteumasóespéciedeamizade,ou mais. Os que pensam que só existe uma porque a amizade admite grausbaseiam-senumindícioinadequado,vistoquemesmoascoisasquediferememespécieadmitemgraus.Esteassuntojáfoidiscutidopornósanteriormente.

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Talvez possamos deslindar as espécies de amizade se começarmos por tomarconhecimentodoobjetodoamor.Ora,nemtudopareceseramado,masapenasoestimável, e este é bom, agradável ou útil.Mas o útil, em suma, é aquilo queproduz algo de bom ou agradável, de modo que são o bom e o útil que sãoestimáveiscomofins.

Oshomensamam,então,oqueébomemsiouoqueébomparaeles?Osdoisentramporvezesemconflito.Eomesmopode-sedizernotocanteaoagradável.Ora,pensa-sequecadaumamaoqueébomparaele,eoqueéboméestimávelem simesmo, enquanto o que é bompara cada um é estimável para ele;mascada homem ama não o que é bom para ele, e sim o que parece bom. Isso,contudo, não vem ao caso; limitar-nos-emos a dizer que ele é "o que pareceestimável".

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Ora,aspessoasamamportrêsrazões.Paraoamordosobjetosinanimadosnãousamosapalavra "amizade",poisnãose tratadeamormútuo,nemumdesejabemaooutro(seria,comefeito,ridículosedesejássemosbemaovinho;sealgolhe desejamos é que se conserve, para que continuemos dispondo dele); notocanteaosamigos,porém,diz-sequedevemosdesejar-lhesobemnointeressedeles próprios. Mas aos que desejam bem dessa forma só atribuímosbenevolência, se o desejo não é recíproco; a benevolência, quando recíproca,torna-seamizade.Ouseráprecisoacrescentar"quandoconhecida"?Poismuitagentedesejabemapessoasquenuncaviu,easjulgaboaseúteis;eumadelaspoderiaretribuir-lheessesentimento.Taispessoasparecemdesejarbemumasàsoutras;mascomochamá-lasdeamigosseignoramosseusmútuossentimentos?Afimdeseremamigas,pois,devemconhecerumaàoutracomodesejando-sebemreciprocamenteporumadasrazõesmencionadasacima.

3

Ora, essas razõesdiferemumasdas outras emespécie; portanto, é emespécieque diferem também as correspondentes formas de amor e de amizade. Há,assim,trêsespéciesdeamizade,iguaisemnúmeroàscoisasquesãoestimáveis;poiscomrespeitoacadaumadelasexisteumamormútuoeconhecido,eosqueseamamdesejam-sebemarespeitodaquiloporqueseamam.

Ora,osque se amampor causade suautilidadenão se amampor simesmos,masemvirtudedealgumbemquerecebemumdooutro.Idênticacoisasepodedizer dos que se amam por causa do prazer; não é devido ao caráter que oshomensamamaspessoasespirituosas,masporqueasachamagradáveis.Logo,osqueamamporcausadautilidade,amampeloqueébomparaelesmesmos,eosqueamamporcausadoprazer,amamemvirtudedoqueéagradávelaeles,enãonamedidaemqueooutroéapessoaamada,masnamedidaemqueéútilouagradável.

Deformaqueessasamizadessãoapenasacidentais,poisapessoaamadanãoéamadaporserohomemqueé,masporqueproporcionaalgumbemouprazer.Eisporquetaisamizadessedissolvemfacilmente,seaspartesnãopermanecemiguaisasimesmas:comefeito,seumadaspartescessadeseragradávelouútil,aoutradeixadeamá-la.

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Ora, o útil não é permanente, mas muda constantemente. E assim, quandodesapareceomotivodaamizade,estasedissolve,poisqueexistiaapenasparaosfinsdequefalamos.Essaespéciedeamizadepareceexistirprincipalmenteentrevelhos (poisnavelhice aspessoasbuscamnãoo agradável,masoútil) e, dosjovens e dos que estão no vigor dos anos, entre os que buscam a utilidade.Etampoucotaispessoasconvivemmuitoumascomasoutras,poisàsvezesnemsequer se veem com agrado, e por isso não sentem necessidade de talcompanhia,amenosquesejammutuamenteúteis:oconvíviosólheséagradávelnamedidaemquedespertamumanaoutraaesperançadealgumbemfuturo.

Entre essas amizades alguns classificam também a que se observa entrehospedeiro e hóspede. A amizade dos jovens, por outro lado, parece visar aoprazer,poiselessãoguiadospelaemoçãoebuscamacimadetudooquelheséagradável e o que têm imediatamente diante dos olhos;mas como correr dosanos os seus prazeres tornam-se diferentes. E por isso que fazem e desfazemamizades rapidamente: sua amizade muda com o objeto que lhes pareceagradável,etalprazersealterabemdepressa.

Osjovenssãotambémamorosos,pois,emsuamaiorparte,aamizadequeexisteno amor depende da emoção e visa ao prazer; é por isso que tão depressa seapaixonamcomoesquecemasuapaixão,muitasvezesmudandonoespaçodeumdia.Masécertoquetaispessoasdesejampassarjuntasosseusdiaseasuavidainteira,poissóassimalcançamopropósitodasuaamizade.

Aamizadeperfeitaéadoshomensquesãobonseafinsnavirtude,poisessesdesejamigualmentebemumaooutroenquantobons,esãobonsemsimesmos.Ora, os que desejam bem aos seus amigos por eles mesmos são os maisverdadeiramenteamigos,porqueofazememrazãodasuapróprianaturezaenãoacidentalmente.Porissosuaamizadeduraenquantosãobons—eabondadeéumacoisamuitodurável.Ecadaumébomemsimesmoeparaoseuamigo,poisosbonssãobonsemabsolutoeúteisumaooutro.Edamesmaformasãoagradáveis,porquantoosbonsosãotantoemsimesmoscomoumparaooutro,vistoqueacadaumagradamassuasprópriasatividadeseoutrasquelhessejamsemelhantes,easaçõesdosbonssãoasmesmasousemelhantes.

Talamizadeé,comoseriadeesperar,permanente,jáqueelesencontramumnooutro todas as qualidades que os amigos devem possuir. Com efeito, toda aamizade tememvistaobemouoprazer—bemouprazer,quer emabstrato,quer tais que possam ser desfrutados por aquele que sente a amizade —, e

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baseia-se numa certa semelhança. E à amizade entre homens bons pertencemtodasasqualidadesquemencionamos,devidoànaturezadosprópriosamigos,poisnumaamizadedestaespécieasoutrasqualidadestambémsãosemelhantesem ambos; e o que é irrestritamente bom também é agradável no sentidoabsoluto do termo, e essas são as qualidadesmais estimáveis que existem. Oamor e a amizade são, portanto, encontrados principalmente e em suamelhorformaentrehomensdestaespécie.

Mas é natural que tais amizades não sejam muito frequentes, pois que taishomens são raros. Acresce que uma amizade dessa espécie exige tempo efamiliaridade. Como diz o provérbio, os homens não podem conhecer-semutuamente enquanto nãohouverem "provado sal juntos"; e tampoucopodemaceitarumaooutro comoamigos enquanto cadaumnãoparecer estimável aooutro e este não depositar confiança nele. Os que não tardam a mostrarmutuamentesinaisdeamizadedesejamseramigos,masnãoosãoamenosqueambos sejam estimáveis e o saibam; porque o desejo da amizade pode surgirdepressa,masaamizadenão.

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Essaespéciedeamizade,pois,éperfeitatantonoqueserefereàduraçãocomoaoutrosrespeitos,enelacadaumrecebedecadaumatodososrespeitosomesmoquedá,oualgodesemelhante;eéexatamenteissooquedeveacontecerentreamigos.

Aamizadequevisaaoprazertemcertaparecençacomestaespécie,porquantoaspessoasboassãodefatoagradáveisumasàsoutras.Omesmosepodedizerdaamizadequebuscaautilidade,poisosbonstambémsãoúteisunsaosoutros.Entre os homens destas espécies inferiores as amizades sãomais permanentesquandoosamigosrecebemamesmacoisaumdooutro(oprazer,porexemplo)— e não só amesma coisa,mas tambémdamesma fonte, como ocorre entrepessoasespirituosas,enãocomosucedeentreamanteeamado.Porquantoestesnão recebem prazer das mesmas fontes, mas o amante compraz-se em ver oamadoeesteemreceberatençõesdoseuamante;equandocomeçaapassaroviçodamocidadeaamizadetambémsedesvanece(porqueumnãoexperimentaprazer em ver o outro, e o segundo não mais recebe atenções do primeiro).Muitosamantes,porém,sãoconstantes,quandoafamiliaridadeoslevaaamaro

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caráterumdooutropelaafinidadequeexisteentreeles.Masaquelescujoamorconsistenumatrocadeutilidadesenãodeprazeressão,aomesmotempo,menosverdadeiramente amigos emenos constantes.Os que são amigos por causa dautilidade separam-se quando cessa a vantagem, porque não amavam um aooutro,masapenasoproveito.

Porconseguinte,quandooqueselevaemmiraéoprazerouautilidade,atéosmauspodemseramigosunsdosoutros,ouosbonspodemseramigosdosmaus,ou aquele que não é bom nem mau pode ser amigo de qualquer espécie depessoa;masporsimesmos,sóoshomensbonspodemseramigos.Comefeito,os maus não se deleitam com o convívio uns dos outros, a não ser que essarelaçãolhestragaalgumavantagem.

A amizade entre os bons, e só ela, tambémé invulnerável à calúnia, pois nãodamosouvidosfacilmenteàspalavrasdequalquerumarespeitodeumhomemque durante muito tempo submetemos à prova; e é entre os bons que sãoencontradas a confiança, o sentimento expresso pelas palavras "ele nuncamefaria uma deslealdade", e todas as outras coisas que se requerem numaverdadeira amizade.Nasoutras espécies de amizade, porém,nada impedequetaismalesvenhamamanifestar-se.

Comefeito,oshomensaplicamonomedeamigosmesmoàquelescujomotivoéa utilidade, e nesse sentido se diz que as disposições são amigáveis (pois asaliançasdedisposiçõesparecemvisaràvantagem),etambémaosqueseamamcomvistasnoprazer—eénestesentidoquesedizseremamigasascrianças.Portanto, nós tambémdeveríamos talvez chamar amigas a tais pessoas e dizerqueexistemdiversas espéciesdeamizade—primeiro, eno sentidopróprio, ados homensbons enquantobons, e por analogia as outras espécies; pois é emvirtude de algo bom e algo semelhante ao que é encontrado na verdadeiraamizadequeelessãoamigos,jáqueatéoagradávelébomparaosqueamamoprazer.Masessasduasespéciesdeamizadenãosejuntamcomfrequência,nemas mesmas pessoas se tornam amigas tendo em vista a utilidade e o prazer;porquanto as coisas que só acidentalmente se relacionam umas com as outrasnãoandammuitasvezesjuntas.

Dividindo-se,pois,aamizadenestasespécies,osmausserãoamigoscomvistasnautilidadeounoprazer,eaesserespeitoseassemelharãoumaooutro;masosbons serão amigos por elesmesmos, isto é, em razão da sua bondade. Esses,pois,sãoamigosnosentidoabsolutodotermo,eosoutrososãoacidentalmente

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eporumasemelhançacomosprimeiros.

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Assim como, no tocante às virtudes, alguns homens são chamados bons comreferênciaaumadisposiçãodecarátereoutroscomreferênciaaumaatividade,tambémomesmosucedenoquediz respeito à amizade.Efetivamente,osquevivemjuntosdeleitam-seumcomooutroeconferem-semútuosbenefícios,masosquedormemouqueseachamseparadosnoespaçonãorealizam,masestãodispostos a realizar os atos da amizade.A distância não rompe a amizade emabsoluto,masapenasasuaatividade.Todavia,seaausênciaduramuitotempo,parece realmente fazer com que os homens esqueçam a sua amizade; daí oprovérbio"longedosolhos,longedocoração".

Nem os velhos, nem as pessoas acrimoniosas parecem fazer amigos comfacilidade.Comefeito, taispessoaspouco têmdeagradável,eninguémdesejapassar seus dias com alguém cuja companhia é dolorosa ou não é agradável,vistoqueanaturezapareceacimadetudoevitarodolorosoebuscaroagradável.Aqueles, porém, que aprovamumao outromas não convivem, parecem antesolhar-se com simpatia do que ser verdadeiros amigos. Porquanto nada émaiscaracterístico dos amigos do que o convívio; e, embora sejam os que sofremnecessidade que desejam benefícios, mesmo os que são sumamente felizesdesejam passar os dias juntos; e é justamente a esses que menos agrada asolidão. Mas as pessoas não podem conviver se não são agradáveis umas àsoutrasenãosedeleitamcomasmesmascoisas,comoparecemfazerosamigosquesãotambémcompanheiros.

A verdadeira amizade é, pois, a dos bons, como tantas vezes dissemos.Efetivamente, o que é bomou agradável no sentido absoluto do termo pareceestimáveledesejável,eacadaumseafiguraseroqueébomeagradávelparaele; e por ambas essas razões o homem bom é estimável e desejável para ohomem bom. Ora, dir-se-ia que o amor é um sentimento e a amizade é umadisposição de caráter, porque se pode sentir amor mesmo pelas coisasinanimadas,mas o amormútuo envolve escolha, e a escolha procede de umadisposiçãodecaráter.Eoshomensdesejambemàquelesaquemamamporelesmesmos,nãoporefeitodeumsentimento,masdeumadisposiçãodecaráter.Efinalmente, os que amam um amigo amam o que é bom para eles mesmos;

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porqueohomembom,aotornar-seamigo,passaaserumbemparaoseuamigo.Cadaqual, portanto, aomesmo tempoque amaoque ébompara ele, retribuicombenevolência e aprazibilidadeem igualdadede termos;porque sedizqueamizadeéigualdade,eambassãoencontradasmaiscomumentenaamizadedosbons.

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Entrepessoasidosaseacrimoniosasémenosfácilformar-seamizade,porquantotais pessoas sãomenosbem-humoradas e se comprazemmenosna companhiaumasdasoutras;eestassãoconsideradasasmaioresmarcasdeamizadeeasquemaiscontribuemparaproduzi-la.Éporissoque,enquantoosjovenssãorápidosemfazeramizades,omesmonãosedácomosvelhos:oshomensnãosetornamamigos daqueles em cuja companhia não se comprazem. E, damesma forma,também as pessoas acrimoniosas não se tornam amigas facilmente. Mas taishomens podem sentir benevolência uns pelos outros, desejando-se bem eajudando-se quando um precisa do outro.Mal se pode dizer, no entanto, quesejamamigos,porquenãopassamosdiasjuntosnemsedeleitamnacompanhiaumdooutro;eestassãoconsideradasasmaioresmarcasdaamizade.

Não se pode ser amigo de muitas pessoas no sentido de ter com elas umaamizadeperfeita,assimcomonãosepodeamarmuitaspessoasaomesmotempo(poisoamoré,decertomodoumexcessodesentimentoeestánasuanaturezadirigir-se a uma pessoa só); e não sucede facilmente que muitas pessoas, aomesmo tempo, agradem muito a um indivíduo só, ou mesmo, talvez, quepareçam boas aos seus olhos. É preciso, por outro lado, adquirir algumaexperiência da outra pessoa e familiarizar-se com ela, e isso custa muitotrabalho, Mas com vistas na utilidade ou no prazer, é possível que muitaspessoasagrademaumasó,poismuitaspessoas sãoúteisouagradáveis, e taisserviçosnãoexigemmuitotempo.

Dessas duas espécies, a que tem em mira o prazer parece-se mais com aamizade, quando ambas as partes recebem as mesmas coisas uma da outra edeleitam-se uma com a outra ou com as mesmas coisas, como acontece nasamizades dos jovens; pois é em tais amizades que se observa com maisfrequência agenerosidade.Aamizadeque sebaseianautilidadeéprópriadaspessoasdeespíritomercantil.

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Tambémaspessoassumamentefelizesnãonecessitamdeamigosúteis,massimde amigos agradáveis; porque desejam viver com alguém e, embora possamsuportarduranteumcurtoespaçodetempooqueédoloroso,ninguémotolerariaconstantemente, mesmo que se tratasse do próprio Bem, se este lhe fossedoloroso.Éporissoquebuscamamigosagradáveis;mastalvezdevessembuscaraqueles que, sendo agradáveis, fossem tambémbons, inclusive para eles; poisassimpossuiriamtodasascaracterísticasquedevempossuirosamigos.

Oshomensqueocupamposiçãodeautoridadeparecemteramigosdediferentesclasses.Algunslhessãoúteiseoutrossãoagradáveis,masraramenteosmesmosindivíduosreúnememsiasduasqualidade;poisquetaispessoasnãoprocuramnem aqueles que, além de agradáveis, sejam virtuosos, nem aqueles cujautilidade vise a objetos nobres,mas, levados pelo desejo de prazer, buscam acompanhiadepessoasespirituosase,quantoaosseusoutrosamigos,escolhem-nosentreosquesãohábeisemfazeroquelhesmandam;ora,taiscaracterísticasraramenteseencontramcombinadasnumasópessoa.Jádissemosqueohomemboméaomesmotempoútileagradável;mastalhomemnãosetornaamigodequem lhe é superior em posição, amenos que lhe seja superior também pelavirtude;e,mesmoassim,nãopoderiaestabelecer-seuma igualdadepor sereleultrapassadoemambosos respeitos.Entretanto,pessoasqueoultrapassememambososrespeitosnãosãofáceisdeencontrar.

Seja como for, as amizades supramencionadas envolvem igualdade, pois osamigos recebem as mesmas coisas um do outro e desejam-se mutuamente asmesmas coisas, ou trocam coisas entre si, como por exemplo, o prazer pelautilidade. Dissemos, contudo, que essas amizades não apenas são menosverdadeiras como menos permanentes. Mas é por sua semelhança e suadessemelhançaemrelaçãoàmesmacoisaqueasconsideramosounãoamizades.Éporsuasemelhançacomaamizadedavirtudequeparecemseramizades(poisumadelas envolve prazer e a outra utilidade, e estas características pertencemtambém à amizade dos virtuosos); e é por ser permanente e invulnerável àcalúnia a amizadedosvirtuosos, enquanto estasmudam rapidamente (alémdediferirem emmuitos respeitos da primeira), que parecemnão ser amizades—istoé,emrazãodesuadessemelhançacomaamizadedosvirtuosos.

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Masexisteoutraespéciedeamizade,asaber,aqueenvolveumadesigualdadeentreaspartes, comoadepaipara filhoe,emgeral,demaisvelhoparamaisjovem,ademaridoparamulhere,emgeral,degovernanteparasúdito.Eessasamizadesdiferemtambémumasdasoutras,poisaqueexisteentrepaisefilhosnãoéamesmaqueentregovernantesesúditos,nemaamizadedepaiparafilhoéamesmaqueadefilhoparapai,comoademaridoparamulhernãoéamesmaque a demulher paramarido. Com efeito, a virtude e a função de cada umadessas pessoas são diferentes, e por isso também diferem as suas razões paraamar; e outra consequência do mesmo fato é que amor e amizade diferemigualmenteumdooutro.

Cadaparte,pois,nemrecebeamesmacoisadaoutranemdeveriabuscá-la;masquandoosfilhosprestamaospaisaquiloquedevemprestaraosqueospuseramnomundo, eospais aquiloquedevemprestar aos filhos, a amizadeentre taispessoaséduradouraeexcelente.

Em todas as amizades que envolvem desigualdade, o amor também deve serproporcional, isto é,omelhordeve recebermais amordoquedá, assimcomodevesermaisútil,eanalogamenteemcadaumdosoutroscasos;poisquandooamor é proporcional ao mérito das partes estabelece-se, em certo sentido, aigualdade,queéindubitavelmenteconsideradaumacaracterísticadaamizade.

Mas a igualdade não parece assumir amesma forma nos atos de justiça e naamizade.Comefeito,nosprimeirosoqueé igualno sentidoprimárioéoqueestá em proporção com o mérito, ao passe que a igualdade quantitativa ésecundária;masnaamizadeaigualdadequantitativaéprimária,eaproporçãoaomérito,secundária.Issosetornaclaroquandoháumagrandedistânciaentreaspartesnoqueserefereàvirtude,aovício,àriquezaououtracoisaqualquer;poisnesse caso já não são amigos e nem sequer esperam sê-lo. E a situação émanifesta acima de tudo quando se trata dos deuses, que nos ultrapassamimensamenteemtudooqueébom.Masétambémclaranotocanteaosreis,poisos homens que lhes são muito inferiores tampouco esperam tornar-se seusamigos, nem indivíduos de pouca valia esperam ser amigos dos melhores oumaissábiosdentreoshomens.

Em tais casos não é possível definir com exatidão até que ponto os amigospodem permanecer amigos. Com efeito, a amizade pode sobreviver aodesaparecimentodemuitoselementosqueacompunham,masquandoumadasparteséafastadaparamuitolonge,comosucedecomDeus,cessaapossibilidade

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de amizade. Essa é, aliás, a origem da questão sobre se os amigos realmentedesejamaosseusamigososmaioresbens,comoodeseremdeuses,vistoqueemtalcasoseusamigosdeixarãodesê-loe,porconseguinte, jánãorepresentarãobensparaeles(porqueosamigossãorealmenteumgrandebem).Arespostaéque,setínhamosrazãoemafirmarqueoamigodesejabemaoseuamigoporelemesmo,estedevecontinuarsendoaespéciedeserqueé;portanto,éaele,namedidaemquecontinuasendoumhomem,queooutrodesejaosmaioresbens.Mas talveznão lhedeseje todososmaioresbens, pois é a simesmo, antesdequalqueroutro,quecadahomemdesejaobem.

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Amaioriadaspessoasparecem,devidoàambição,preferirseramadaaamar.Eéporissoqueoshomens,emgeral,amamalisonja.Comefeito,olisonjeiroéumamigoemposiçãoinferior,oufingesertalaomesmotempoquesimulaamarmais do que é amado; e ser amado parece ter bastante semelhança com serhonrado,eissoéoqueamaioriadaspessoasambicionam.

Entretanto, dir-se-ia que elas não preferem a honra em si, mas apenasacidentalmente; porquanto a maioria gosta de ser honrada pelos que ocupamposição de autoridade, em razão de suas esperanças (pois pensam que, senecessitarem de alguma coisa, consegui-las-ão com eles, e por isso secomprazemnahonra comoprenunciode favores futuros).Osquedesejam serhonrados por homens bons e sábios, por seu lado, querem confirmar a boaopinião que fazem de si mesmos; e, por conseguinte, deleitam-se em serhonradosporqueacreditamnasuaprópriabondadeestribadosnojulgamentodosquefalamaseurespeito.

O ser amado, por outra parte, é deleitável em simesmo, e por isso afigura-sepreferível ao ser honrado; e a amizade parece digna de ser desejada por simesma.Masdir-se-iaqueelaresideantesemamardoqueemseramado,comomostraodeleitequeasmãessentememamar;poisalgumasmãesentregamosfilhos a outros para serem educados, e, enquanto conhecem o destino deles,amam-nossemprocurarseramadasemtroca(senãolhessãopossíveisambasascoisas),masparecemcontentar-se emvê-losprosperar; e amamos seus filhosmesmoquandoestes,por ignorância,não lhesdãonadadoquesedeveaumamãe.

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Eassim,comoaamizadedependemaisdoamarquedoseramado,esãoosqueamam os seus amigos que são louvados, o amar parece ser a virtudecaracterísticados amigos, demodoque só aquelesque amamnamedida justasãoamigosduradouros,esóaamizadedessesresisteaotempo.

É deste modo, mais que de qualquer outro, que até os desiguais podem seramigos,poisépossívelestabelecer-seumaigualdadeentreeles.Ora,igualdadeesemelhançasãoamizade,eespecialmenteasemelhançadosquesãoafinspelavirtude.Comefeito,sendoconstantespornatureza,elesmantêm-sefiéisumaooutro enão solicitamnemprestam serviçosbaixos,maspode-sedizerque atéprevinemtaisocorrências,poisécaracterísticodoshomensbonsnãofazeromalelespróprios,nempermitirqueseusamigosofaçam.Osmaus,porém,nãotêmconstância,vistoquenemsequerasimesmossemantêmsemelhantes,massãoamigos durante breve tempo, por se deleitarem na maldade um do outro. Asamizadesúteisouagradáveisdurammais,istoé,subsistemenquantoosamigosproporcionamprazeresouvantagensumaooutro.

A amizade comvistas na utilidade parece ser a quemais facilmente se formaentre contrários, como, por exemplo, entre pobre e rico, entre ignorante eletrado;porqueumhomemambicionaaquiloque lhe faltaedáalgoem troca.Masnestaclassetambémsepoderiaincluiramanteeamado,beloefeio.Éporissoqueosamantesparecemàsvezesridículos,quandopretendemseramadosem troca; quando ambos são igualmentedignosde amor a pretensão talvez sejustifique, mas é ridícula quando não têm nenhuma qualidade própria paradespertaroamor.

Averdade,talvez,équeocontrárionemsequerbuscaocontrárioporsuapróprianatureza, mas apenas acidentalmente, sendo o intermediário o objeto real dodesejo;poisesteéqueérealmentebom,porexemplo:paraoseco,obomnãoéficarúmido,maspassaraoestado intermediário, edamesma formanoque serefere ao quente e em todos os outros casos. Podemos deixar de parte estesassuntos,queemverdadesãoumpoucoestranhosànossainvestigação.

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Comodissemosnocomeçodenossadiscussão, aamizadeea justiçaparecemdizer respeito aos mesmos objetos e manifestar-se entre as mesmas pessoas.

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Comefeito,emtodacomunidadepensa-sequeexistealgumaformadejustiça,eigualmente de amizade; pelo menos, os homens dirigem-se como amigos aosseus companheiros deviagemou camaradasde armas, e damesma forma aosqueselhesassociamemqualqueroutraespéciedecomunidade.Eatéondevaiasuaassociaçãovaiasuaamizade,comotambémajustiçaqueentreelesexiste.Eoprovérbiosegundooqual"osamigostêmtudoemcomum"éaexpressãodaverdade,poisaamizadedependedacomunhãodebens.

Ora,os irmãoseoscamaradaspossuemtodasascoisasemcomum,masessesoutrosaquemnosreferimospossuememcomumcertascoisas—algunsmaiseoutrosmenos:porquedasamizades,tambémalgumassãoverdadeirasamizadesemmaioreoutrasemmenorgrau.Easimposiçõesdajustiçatambémdiferem:nãosãoosmesmososdeveresdospaisparacomosfilhoseosdosirmãosentresi,nemosdoscamaradasoudosconcidadãos;eomesmonoquetocaàsoutrasespéciesdeamizade.

Hátambémumadiferença,porconseguinte,entreosatosquesãoinjustosparacomcadaumadessasclassesdeassociados,eainjustiçacrescedepontoquandosemanifestaparacomosquesãoamigosnumsentidomaispleno;porexemplo,émais detestável defraudar umcamaradadoqueumconcidadão,mais odiosodeixar de ajudar um irmão do que um estranho, e mais abominável ferir oprópriopaidoqueaqualqueroutro.Easimposiçõesdajustiçatambémparecemaumentarcomaintensidadedaamizade,oqueimplicaqueaamizadeeajustiçaexistementreasmesmaspessoasesãocoextensivas.

Ora, todas as formasde comunidade são comopartes da comunidadepolítica.Por exemplo: é tendo em vista alguma vantagem particular que os homensviajamjuntos,eafimdeproveremalgumacoisanecessáriaàvida;eéporcausadavantagemqueacomunidadepolíticaparece ter-se formadoeperdurar,poisesseéoobjetivoqueoslegisladoressepropõem,echamamjustooqueconcorrepara a vantagem comum. Mas as outras comunidades têm em mira aspectosparticularesdessavantagemcomum:osmarinheiros,porexemplo,visamaoqueé vantajoso numa travessia para o propósito de ganhar dinheiro ou algumafinalidade dessa espécie; e os soldados, ao que é vantajoso na guerra, querbusquem riqueza, quer a vitória ou a posse de uma cidade; e osmembros detribosoudemosprocedemdomesmomodo.

[Algumascomunidadesparecemoriginar-sedanecessidadedeprazer,comoascorporaçõesreligiosaseosgrêmiossociais;poisessesexistemafimdeoferecer

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sacrifícios e proporcionar o convívio. Mas todos parecem incluir-se nacomunidadepolítica,quenãovisaàvantagemimediata,masaoqueévantajosopara a vida no seu todo], oferecendo sacrifícios e programando reuniões paraesse fim,honrandoosdeuseseprovendoaprazíveis recreaçõesparasimesma.Comefeito, tudo indicaqueosantigos sacrifíciose reuniõesocorriamapósascolheitascomoumaespéciedefestadasprimícias,poiseranessaépocaqueoshomenstinhammaislazeres.

Todas as comunidades, por conseguinte, parecem fazer parte da comunidadepolítica;easespéciesparticularesdeamizadedevemcorresponderàsespéciesparticularesdecomunidade.

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Existem trêsespéciesdeconstituiçãoe igualnúmerodedesvios—perversõesdaquelas,porassimdizer.Asconstituiçõessãoamonarquia,aaristocracia,eemterceiro lugar a que se baseia na posse de bens e que seria talvez apropriadochamar timocracia, embora a maioria lhe chame governo do povo. A melhordelaséamonarquia,eapioréatimocracia.

Odesviodamonarquiaéatirania,poisqueambassãoformadasdegovernodeumsóhomem,masháentreelasamaiordiferençapossível.Otiranovisaàsuaprópriavantagem,oreiàvantagemdeseussúditos.Comefeito,umhomemnãoéreiamenosquebasteasimesmoesupereosseussúditosemtodasasboascoisas.Ora,umhomememtaiscondiçõesdemaisnadaprecisa,eporissonãoolharáaosseusinteresses,masaosdeseussúditos;poisoreiqueassimnãoforterádarealezaapenasotítulo.Ora,atiraniaéocontrárioexatodetudoisso:otiranovisaaoseuprópriobem.Eéevidenteserestaapiorformadedesvio,poisocontráriodomelhoréqueéopior.

Amonarquiadegeneraemtirania,queéaformapervertidadogovernodeumsóhomem,eomaureiconverte-seemtirano.Aaristocracia,porseulado,degeneraem oligarquia pela ruindade dos governantes, que distribuem sem equidade oque pertence ao Estado — todas ou a maior parte das coisas boas para simesmos,eoscargospúblicossempreparaasmesmaspessoas,olhandoacimadetudoariqueza;edestarteosgovernantessãopoucosemaus,emlugardeseremosmaisdignos.

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Atimocracia,porseulado,degeneraemdemocracia.Ambassãocoextensivas,jáqueaprópriatimocraciatemcomoidealogovernodamaioria,eosquenãotêmpossessãocontadoscomoiguaisaosoutros.Ademocraciaéamenosmádastrêsespéciesdeperversão, poisno seu caso a formade constituiçãonão apresentamaisqueumligeirodesvio.

Sãoestaspoisasmudançasaqueestãomaissujeitasasconstituições,eestasastransiçõesmenoresemaisfáceis.

Podemserencontradasanalogiasdasconstituiçõese,porassimdizer,modelosdelasnasprópriasfamílias.Comefeito,aassociaçãodeumpaicomseusfilhostem a forma damonarquia, visto que o pai zela pelos filhos.Aí está por queHomerochamaaZeusde"pai";eoidealdamonarquiaéserumaformapaternaldegoverno.Entreospersas,noentanto,ogovernodospaisétirânico,poisaliospaisusamosfilhoscomoescravos.Tirânico,igualmente,éogovernodosamossobreosescravos,emqueaúnicacoisaquesetememvistaéavantagemdosprimeiros.Ora,estapareceserumaformacorretadegoverno,masotipopersaépervertido,umavezquediferentessãoasmodalidadesdegovernoapropriadasarelaçõesdiferentes.

A associação entremarido emulher parece ser aristocrática, já que o homemgovernacomoconvémaoseuvalor,masdeixaacargodaesposaosassuntosquepertencemaumamulher.Seohomemgovernaemtudo,arelaçãodegeneraemoligarquia,poisaoprocederassimelenãoagedeacordocomovalorrespectivode cada sexo, nem governa em virtude da sua superioridade. Às vezes, noentanto, são as mulheres que governam, por serem herdeiras; e assim o seugovernonãosebaseianaexcelência,masnariquezaenopoder,comoacontecenasoligarquias.

A associação de irmãos assemelha-se à timocracia, porquanto eles são iguais,salvo namedida emque haja diferença de idades; e por isso, quando diferemmuitoemidade,aamizadejánãoédotipofraternal.Ademocraciaéencontradasobretudonasfamíliasacéfalas(onde,porconseguinte,todosseencontramnumnívelde igualdade), enaquelasemqueochefeé fracoe todos têm licençadeagircomoentenderem.

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Mostraaobservaçãoquecadaumadasconstituiçõescomportaamizadenaexatamedida em que comporta a justiça. A amizade entre um rei e seus súditosdependedeumexcessodebenefíciosconferidos,porquantooreiosconfereaosseus súditos quando, sendo ele um homem bom, zela pelo bem-estar destes,comofazopastorcomas suasovelhas.E talé tambémaamizadedeumpai,embora este exceda o outro na grandeza dos benefícios dispensados, pois é acausadaexistênciadosfilhos,aqualtodosconsideramomaiordosbens,assimcomoproveàsuaalimentaçãoeeducação.Tudoissosecostumaatribuirtambémaosavós.Eacresceque,pornatureza,umpai tendeagovernar seus filhos,osavós aos descendentes e os reis aos seus súditos. Estas amizades implicamsuperioridadedeumapartesobreaoutra,sendoessaarazãodashonrasqueseprestamaosantepassados.

Portanto,ajustiçaqueexisteentrepessoasassimrelacionadasnãoéamesmadeparteaparte,mas sempreproporcional aomérito;porquanto issoéverdadeirotambémdaprópriaamizade.

Aamizadeentremaridoemulher,poroutrolado,éamesmaqueseobservanaaristocracia,jáqueestádeacordocomavirtude:omelhorrecebemaiorquinhãodebensecadaumrecebeoquelhecompete;eomesmosepodedizerdajustiçanessasrelações.

Aamizadedeirmãosécomoadecamaradas,porquantosãoiguaisepróximosuns dos outros pela idade; e tais pessoas, em geral, assemelham-se nossentimentosenocaráter.Etambémésemelhanteaestaaamizadeapropriadaaogoverno timocrático; pois numa tal constituição o ideal é serem os cidadãosiguaiseequitativos,epor issoogovernoéassumidopor turnosnumabasedeigualdade. E a amizade apropriada a esta constituição corresponde à quedescrevemos.

Nasformasdedesvio,porém,comomalexistejustiça,tambéméraraaamizade.E onde menos existe é na pior das formas: na tirania há pouca ou nenhumaamizade. Com efeito, onde nada aproxima o governante dos governados nãopodehaveramizade,umavezquenãohá justiça.Porexemplo,entreartíficeeferramenta, alma e corpo, amo e escravo, os segundos termos de cada umadessasdualidadessãobeneficiadosporaquelesqueosutilizam,masnãoexisteamizadenemjustiçaparacomcoisasinanimadas.

Mas tampouco existe amizade para com um cavalo, um boi ou um escravo

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enquantoescravo,poisnãohánadadecomumentreasduaspartes:oescravoéumaferramentavivaeaferramentaéumescravoinanimado.Enquantoescravo,pois, não se pode ser seu amigo, mas enquanto homem isso é possível, poisparece haver certa justiça entre um homemqualquer e outro homemqualquerquetenhamcondiçõesparaparticipardeumsistemajurídicoouserpartesnumajuste:logo,podehaveramizadecomelenamedidaemqueéumhomem.

Por conseguinte, embora nas tiranias mal existam a amizade e a justiça, nasdemocraciaselastêmumaexistênciamaisplena,poisondeháigualdadeentreoscidadãosestespossuemmuitoemcomum.

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Comodissemos,pois,todaaformadeamizadeenvolveassociação.Poder-se-ia,noentanto,distinguirdasoutrasaamizadedosfamiliareseadoscamaradas.Asdos concidadãos, companheiros de viagem, etc., se assemelham mais àsamizades de associação, pois parecem repousar sobre uma espécie de pacto.Nestaclassepoderíamosincluiraamizadeentrehóspedeehospedeiro.

A própria amizade dos familiares, embora seja de várias espécies, parecedependeremtodososcasosdaamizadepaterno-filial;porquantoospaisamamosfilhoscomopartesdesimesmos,eosfilhosamamospaisporseremalgoquese originou deles. Ora, os pais conhecem os filhos melhor do que estes seconhecemcomo seus filhos, eoprocriador senteos filhos comoseusmaisdoque os filhos sentem os pais como seus, pois o produto pertence a quem oproduziu (como, por exemplo, um dente, um fio de cabelo ou qualquer outracoisa pertence ao seu dono),mas o produtor não pertence ao seu produto, oupertence em menor grau. E finalmente, o tempo decorrido contribui para omesmoresultado:ospaisamamosfilhosdesdequeestesnascem,masosfilhoscomeçam a amar os pais só depois de algum tempo, quando adquiramentendimento ou o poder de discriminação pelos sentidos. Por isso tudo seevidenciatambémarazãodeseroamordasmãesmaiorqueodospais.

Pai e mãe amam, portanto, os seus filhos como a si mesmos (pois estes, emvirtude de sua existência separada, são como que outros "eus"), enquanto osfilhosamamospaisporteremnascidodeles,eosirmãosamamunsaosoutrosporseoriginaremdosmesmospais, jáqueasuaidentidadecomestesostorna

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idênticos entre si (e por isso se fala em ser "domesmo sangue", "domesmotronco"eassimpordiante).Emcertosentido,pois,sãoamesmacoisa,emboraexistamcomoindivíduosseparados.

Duascoisasquemuitocontribuemparaaamizadesãoaeducaçãoemcomumeasemelhançade idade;pois "pessoasdamesma idade sedãobem", eosque secriaramjuntostendemaviveremcamaradagem;eéporissoqueaamizadedosirmãosseassemelhaàdoscamaradas.Eentreprimoseoutrosparentesexisteumlaçoderivadodofraterno,istoé,deproviremdosmesmospais.Aproximam-seedistanciam-seunsdosoutrosproporcionalmenteàproximidadeoudistânciadoprogenitorcomum.

Aamizadedosfilhospelospaisedoshomenspelosdeuseséaquesetemparacomalgodebomesuperior,poiseles lhesdispensaramosmaioresbenefícios,dando-lhesoser,aalimentaçãoeaeducaçãodesdequenasceram.Eessaespéciedeamizade tambéméaprazíveleútil,maisdoqueaamizadeentreestranhos,umavezquetaispessoasconvivemmaisentresi.

A amizade de irmãos tem as características observadas na amizade entrecamaradas (especialmente quando estes são bons) e, de modo geral, entrepessoas semelhantes umas às outras, porquanto eles vivem em comum e seamamdesdequenasceram,e jáqueosfilhosdosmesmospais, tendocrescidojuntoserecebidoamesmaeducação,têmmaiorsemelhançadecaráter;e,noseucaso,aprovadotempofoiaplicadademaneiramaiscompletaeconcludente.

Entre outros graus de parentesco as relações amigáveis são encontradas nasproporçõescorrespondentes.Entremaridoemulheraamizadepareceexistirpornatureza,poisaespéciehumanaseinclinanaturalmenteaformarcasais—maisdoqueaformarcidades,jáqueafamíliaéanterioràcidadeemaisnecessáriadoque esta, e a reprodução é comum ao homem e aos animais. Entre os outrosanimaisauniãovaiapenasatéesseponto,masossereshumanosvivemjuntosnão só para reproduzir-se, senão tambémpara os vários propósitos da vida.Edesdeocomeçosãodivididasasfunções,diferindoentresiasdohomemeasdamulher, e ajudam eles um ao outro fazendo capital comum de seus dotesindividuais. Por tais motivos, tanto a utilidade como o prazer parecem serencontradosnessaespéciedeamizade.Podeela,noentanto,basear-se tambémnavirtude,seaspartessãoboas;poiscadaumapossuiasuavirtudeprópria,eambassedeleitamnisso.Eosfilhosconstituemumlaçodeunião(motivopeloqualoscasaissemfilhosseparam-semais facilmente);porquantoos filhossão

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um bem comum a ambos, e o que ambos possuem em comum os conservaunidos.

Comodevemportar-seumparacomooutromaridoemulher,e,deummodogeral,amigocomamigo,pareceseramesmaquestãoqueadedeterminarqualsejaasuaconduta justa,porqueumhomemnãopareceterosmesmosdeveresparacomumamigo,umestranho,umcamaradaeumcondiscípulo.

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Existem três espécies de amizade, como dissemos no começo de nossainvestigação,ecomrespeitoacadaumadelasalgunssãoamigosemtermosdeigualdade e outros em virtude de uma superioridade (pois não só homensigualmente bons podem tornar-se amigos,mas um homemmelhor pode fazeramizadecomoutropior,etambémnasamizadesquesebaseiamnoprazerounautilidade os amigos podem ser iguais ou desiguais quanto aos benefícios queconferem).Assim sendo, os iguais devem ser amigos numabase de igualdadequantoaoamoreatodososoutrosrespeitos,aopassoqueosdesiguaisdevembeneficiar-seproporcionalmenteàsuasuperioridadeouinferioridade.

Asqueixasecensurassurgemunicamenteouprincipalmentenasamizadesquesebaseiamnautilidade,eissoestáconformeaoqueseriadeesperar.Comefeito,osquesãoamigoscombasenavirtudeanseiamporfazerbemumaooutro(poisque isso é umamarca de virtude e de amizade), e entre homens que emulamentresinessascoisasnãopodehaverqueixasnemdisputas.Ninguéméofendidopor um homem que o ama e lhe faz bem— e, se é uma pessoa de nobressentimentos,vinga-sefazendobemaooutro.Eohomemquesuperaooutronosserviços prestados não se queixará do seu amigo, visto que obtém aquilo quetinhaemvista:comefeito,cadaumdelesdesejaoqueébom.Etampouconasamizades baseadas no prazer surgem muitas queixas, porque ambos recebemsimultaneamenteoquedesejam,sesecomprazemempassarotempojuntos;emesmoohomemquesequeixassedeoutropornãolheproporcionarprazerseriaridículo, umavezquedependedele nãopassar seusdias emcompanhiadesseoutro.

Masaamizadequesebaseianautilidadeérepletadequeixas;porquanto,comocadaumseutilizadooutroemseuprópriobenefício,semprequeremlucrarna

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transação, e pensam que saíram prejudicados e censuram seus amigos porquenãorecebemtudooque"necessitamemerecem";eosquefazembemaoutrosnãopodemajudá-lostantoquantoelesquerem.

Ora,édesuporque,sendoajustiçadeduasespécies,umanãoescritaeaoutralegal, haja também uma espécie moral e outra legal de amizade baseada nautilidade. E assim, as queixas surgem principalmente quando os homens nãodissolvem a relação dentro do espírito do mesmo tipo de amizade em que acontraíram.

O tipo legal é aquele que assenta sobre termos definidos. Sua variedadepuramente comercial baseia-se no pagamento imediato, enquanto a variedademaisliberaldácertamargemdetempo,masestipulaumatrocadefinida.Nestavariedade a dívida é clara e não ambígua, mas a sua protelação contém umelementodeamizade;eporissoalgunsEstadosnãoadmitemaçõesjudiciaisemtornodetaisacordos,maspensamqueoshomensquetransacionaramnumabasedecréditodevemaceitarasconsequências.

Otipomoralnãoassentaemtermosfixos.Fazumadádiva,ouoquequerqueseja,comosefosseaumamigo;masesperareceberoutrotantooumais,comosenãotivessedadoesimemprestado;e,seasituaçãodeumdelesépiorapósdissolver-se a relação do que antes de havê-la contraído, esse homem sequeixará. Issoaconteceporque todososhomensouamaioriadelesdesejamoqueénobremasescolhemoqueévantajoso;ora,énobrefazerbemaumoutrosemvisaraqualquercompensação,masreceberbenefícioséqueévantajoso.

Portanto, cabe-nos retribuir, se possível, com o equivalente do que recebemos(porquenãodevemosfazerdeumhomemnossoamigocontraasuavontade;épreciso reconhecer que nos enganamos de começo, aceitando umbenefício deumapessoadequemnãodevíamosaceitá-lo, jáquenãoeranossoamigo,nemde alguém que o fez simplesmente por fazer; e cumpre-nos saldar as contasexatamente como se tivéssemos sidobeneficiados combase em termos fixos).Emverdade, teríamosconcordadoem retribuir sepudéssemos (do contrário, oprópriobenfeitornãocontariacomisso);e,porconseguinte,devemosretribuir,se isso nos é possível.Mas de início devemos considerar o homempor quemestamos sendo beneficiados e em que termos ele procede, a fim de aceitar obenefícionessestermos,ouentãorecusá-lo.

Édiscutívelsedevemosmedirumserviçopelasuautilidadeparaobeneficiadoe

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retribuí-lo nessa base, ou pela benevolência do benfeitor. Com efeito, os querecebemdizemterrecebidodeseusbenfeitoresoquecustoupoucoaestesequeelespoderiam terobtidodeoutros—subestimandodessa formao serviço; aopassoqueosbenfeitores,pelocontrário,afirmamterfeitoomáximoquepodiameoquenãopoderia ter sidoobtidodeoutros,equeoserviço foiprestadoemocasiãodeperigooudenecessidade.

Ora,seaamizadeédotipoquevisaàutilidade,certamenteavantagemparaobeneficiadoéamedida,porquantoéelequemsolicitaoserviçoeooutrooajudana suposição de que receberá o equivalente. Destarte, a ajuda foi exatamenteigualàvantagemdobeneficiado,oqual,porconseguinte,deveretribuircomoequivalentedoquerecebeu,oumais(poisissoseriamaisnobre).

Nas amizades que se baseiamna virtude, por outro lado, não surgemqueixas,masopropósitodobenfeitoréumaespéciedemedida;poisnopropósitoresideoelementoessencialdavirtudeedocaráter.

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Tambémnasamizadesquesebaseiamnasuperioridadesurgemdissensões,poiscada qual espera obter mais proveito delas, mas, quando isso acontece, aamizadesedissolve.Nãosóohomemmelhorpensaquelhecaberecebermais,devezqueumhomembom faz jus amais, comoomaisútil espera amesmacoisa.Edizemqueumhomeminútilnãodevereceber tantoquantoeles,vistoquenessecasoa amizadedeixade ser amizadeparaconverter-senumserviçopúblico quando os seus proveitos não correspondem ao valor dos benefíciosconferidos. Porque tais pessoas pensam que assim como numa sociedadecomercialosqueentramcommaisdevemganharmais,omesmodevesucederna amizade. Mas o homem que se encontra em estado de necessidade einferioridade faz a reivindicação contrária: pensa que é próprio de um bomamigoajudarosnecessitados.Dequeserviria,dizele,seramigodeumhomembomoupoderososenãosetirassenenhumproveitodisso?

Sejacomofor,parecequecadaparteéjustificadanasuaasserçãoequecadaumdeveriatirarmaisvantagemdaamizadedoqueooutro—nãomaiorquantidadeda mesma coisa, porém, mas o superior em honra e o inferior em ganho;porquantoahonraéoprêmiodavirtudeedabeneficência,enquantooganhoéa

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ajudadequenecessitaainferioridade.

O mesmo parece suceder nas disposições constitucionais: o homem que nãocontribuicomnadaparaobemcomumnãoéhonrado,poisoquepertenceaopúblicoédadoaquemobeneficia,eahonrapertenceaopúblico.Nãoépossívelreceber aomesmo tempo riqueza e honra do patrimônio comum. Com efeito,ninguémseconformaemreceberapartemenoremtodasascoisas;destarte,aohomemqueperdeariquezaconfere-sehonra,eriquezaaoqueconsenteemserpago,jáqueaproporçãoaoméritoigualaaspartesepreservaaamizade,comodissemos.

É também essa, portanto, a maneira pela qual nos deveríamos associar comdesiguais:ohomemqueébeneficiadocomrespeitoàriquezaouàvirtudedeveretribuir com honra, compensando o outro na medida de suas capacidades.Porquanto a amizade pede a um homem que faça o que pode e não o que éproporcionalaosméritosdocaso,jáqueissonemsempreépossível,como,porexemplo, nas honras prestadas aos deuses ou aos pais. Com efeito, ninguémjamais lhes poderia pagar o equivalente do que recebe,mas o homem que osservenamedidadesuascapacidadeséconsideradoumhomembom.

Eis aí por que não parece lícito a um homem repudiar seu pai (embora o paipossarepudiarofilho).Comodevedorqueé,devepagar,masnadadoqueumfilhopossa fazerequivaleráaoque recebeu,demodoqueelecontinuasempreemdívida.Mas,assimcomooscredorespodemperdoarumadívida,tambémumpaipode fazê-lo.E,poroutro lado,pensa-sequeninguém repudiariaum filhoquenão fosseprofundamenteperverso; porque, alémda amizadenatural entrepaiefilho,éprópriodanaturezahumananãoenjeitaraajudadeumfilho.Maseste,sedefatoéperverso,evitaráajudaropaiounãofarámuitaquestãodisso;porquanto amaioria deseja receber benefíciosmas evita fazê-los, como coisaquenãocompensa.

Sobreestasquestõesdissemososuficiente.

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LIVROIX

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Emtodasasamizadesentredessemelhantesé,comodissemos,aproporçãoqueiguala as partes e preserva a amizade. Por exemplo, na forma política deamizade,osapateirorecebeumacompensaçãopelosseusprodutosnaproporçãodoqueelesvalem,eomesmosucedecomotecelãoeoutrosartífices.Ora,aquifoi estabelecida uma medida comum sob a forma de dinheiro, à qual tudo éreferidoepelaqual tudosemede.Masnaamizadeentreamantes,porvezesoamantesequeixadequeoseuexcessodeamornãoérecompensadocomamor(embora não tenha nada, talvez, que o faça digno de ser amado), enquanto oamado se queixa com frequência de que o amante, que outrora lhe prometiatudo,agoranãocumprenada.Taisincidentesacontecemquandooamanteamaoamado com vistas no prazer, enquanto o amado ama o amante com vistas nautilidade,enenhumdosdoispossuiasqualidadesquedelesseesperam.Setaissãoosobjetivosdaamizade,estasedissolvequandoosdoisnãoobtêmascoisasqueconstituíamosmotivosdeseuamor;porquantonenhumdelesamavaooutroporsimesmo,masapenasassuasqualidades,eestasnãoeramduradouras.Eisaíporqueessasamizadestambémsãopassageiras.Masoamordoscaracteres,comodissemos,perduraporquesódependedesimesmo.

Surgem desentendimentos quando o que as pessoas obtêm é algo diferentedaquilo que desejam, pois é, então, como se nada tivessem obtido. Veja-se ahistóriadohomemquefeztratocomumcitarista,prometendodar-lhetantomaisquanto melhor cantasse; mas pela manhã, quando o outro reclamou ocumprimento da promessa, ele respondeu que havia retribuído prazer comprazer.Ora,sefosseprazeroqueambosqueriam,tudoestariabem;masseumqueriaprazerenquantoooutroqueriaganho,eumrecebeuoquequeria,masooutronão,ostermosdatransaçãonãoforamdevidamentecumpridos;poisoquecadaumnecessitaéaquiloaqueseaplica,eéemtrocadissoquedáoquetem.

Mas quem fixará o valor do serviço: o que se sacrifica ou o que alcança avantagem?Sejacomofor,ooutroparecedeixaradecisãocomele.Eraassim,segundo se conta, que Protágoras costumava proceder: toda vez que ensinava

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uma coisa qualquer, mandava o aluno estimar o valor do conhecimento eaceitavaaquantiaqueeletivessefixado.Masemtaisassuntosalgunsaprovamoaforismo:"Quecadaumtenhaasuarecompensafixa".

Os que, tendo recebido o dinheiro com antecipação, não fazem nada do quehaviam prometido por causa da extravagância de suas promessas sãonaturalmenteobjetosdequeixaporquenãocumpremoquepactuaramfazer.Ossofistassãotalvezforçadosaagirassimporqueninguémlhesdariadinheiroemtroca das coisas que eles realmente sabem.Essas pessoas, por conseguinte, senãofazemaquiloparaqueforampagas,sãonaturalmenteobjetosdequeixa.

Masquandonãohácontratodeserviço,aquelesquerenunciamaalgumacoisanointeressedaoutrapartenãopodem,comodissemos,seracusados,porquantoessa é anaturezada amizadebaseadanavirtude; e a retribuição lhesdeve serfeitadeacordocomoseupropósito(poisopropósitoéoquecaracterizatantoumamigo comoavirtude).Edamesma forma, segundoparece, deveriam serretribuídosaquelescomquemestudamosfilosofia,poisoseuvalornãopodesermedido pelo dinheiro, nem há honra que esteja à altura de seus serviços;entretanto, é talvez suficiente, comonocasodosdeusesedenossospais,dar-lhesaquiloquepodemos.

Se a dádiva não era dessa espéciemas foi feita com amira na retribuição, écertamente preferível que se retribua demaneira que pareça justa a ambas aspartes;mas, se isso não for possível, não apenas será necessáriomas tambémjusto que o primeiro beneficiado fixe a recompensa. Com I efeito, se o outroreceber em troca o equivalente da vantagem auferida por ele, ou o preço queteria pago pelo prazer, terá recebido o que é justo da parte do primeirobeneficiado.

Vemosaconteceromesmocomascoisasquesãopostasàvenda,eemalgunslugaresaleiproscreveasdemandasoriginadasdecontratosvoluntários,partindodoprincípiodequecadaumdeveajustarsuascontascomaquelesaquemdeucrédito,dentrodomesmoespíritoemquetransacionoucomeles.Aleiconsideramais justo que as condições sejam fixadas pelo homem a quem se concedeucréditodoquepelooutro,poisqueamaioriadascoisasnão sãoestimadasnomesmovalorpelosqueaspossuemepelosquenecessitamdelas.Cadaclassedágrandevaloraoqueéseuequeelaoferece;nãoobstante,a retribuiçãoé feitanos termos fixados pelo que recebe.Mas, sem dúvida, este deve avaliar umacoisa não pelo que lhe parece valer quando a possui e simpelo valor que lhe

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atribuíaantesdepossuí-la.

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Outroproblemaélevantadoporperguntasdogênerodasseguintes:Devemosdarpreferência em todas as coisas a nosso pai e obedecer-lhe, ou depositar nossaconfiança num médico quando estamos doentes e escolher um homem detirocínio militar quando nos compete eleger um general? E, analogamente,devemos prestar serviço de preferência a um amigo ou a um homem bom, emostrar-nosgratosaumbenfeitorouobsequiarumamigo, senão forpossívelfazerambasascoisas?

Nãoéverdadeque todasessasquestõessãodifíceisderesolvercomprecisão?Porquantoelasadmitemvariaçõesdetodasorte,tantocomrespeitoàmagnitudedoserviçocomoàsuanobrezaeàsuanecessidade.Masquenãodevemosdarpreferênciaemtodasascoisasàmesmapessoaébastanteclaro;e,emgeral,émais certo retribuir benefícios do que obsequiar amigos, e antes de fazer umempréstimoaumamigodevemospagaronossocredor.

Mastalveznemistosejasempreverdadeiro:porexemplo,deveumhomemquefoiresgatadodasmãosdebandidosresgataremtrocaoqueolibertou,sejaelequemfor(oupagar-lhe,seelenãofoicapturado,masexigepagamento),ou,emvezdisso,deveresgataroseupai?Dir-se-iaqueocertoéresgataropaimesmodepreferênciaasipróprio.

Como dissemos, pois, em geral a dívida deve ser paga, mas se a dádiva éextremamente nobre ou necessária cumpre atender também a estasconsiderações.Porqueàsvezesnemsequeré justo retribuircomoequivalentedoquerecebemos,quandoumadaspartesprestouserviçoaumhomemquesabeserbom,enquantoaoutra retribuiaalguémqueacreditasermau.E,àsvezes,não devemos emprestar a quem nos fez um empréstimo, pois o primeiroemprestouaumhomembom,esperando reavero seuempréstimo, enquantoooutro não tem esperança de ser pago por alguém que passa por ser mau.Portanto,seistoéaverdade,aexigêncianãoéjusta;esenãoé,masacredita-seque seja, ninguém consideraria estranha a recusa. Como acentuamos muitasvezes, as discussões a respeito de sentimentos e ações são tão definidas ouindefinidasquantoosseusobjetos.

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Que não devemos fazer amesma retribuição a cada um, nem dar a um pai apreferênciaemtodasascoisas,assimcomonãooferecemostodosossacrifíciosa Zeus, é suficientemente claro.Mas, como devemos prestar coisas diferentesaos pais, aos irmãos, aos camaradas e aos benfeitores, a cada classe devemosprestar o que for apropriado e decoroso. E isso é o que as pessoas parecemrealmentefazer.Paraasbodasconvidamosparentes,poisestesfazempartedafamíliae,porconseguinte,participamtambémdosacontecimentosqueaafetam;e por ocasião dos enterros também consideram apropriado que se reúnam osparentesantesdemaisninguém,pelamesmarazão.

Noque toca aos alimentos, pensa-sequedevemos ajudarnossospais antesdequalquer outro, pois que deles recebemos outrora o nosso sustento e é maishonrosoajudaraesserespeitoosautoresdenossoser,mesmodepreferênciaanóspróprios.Etambémdevemoshonrarnossospaiscomohonramososdeuses,porémnãolhesprestartodaequalquerhonra;acrescequeasmesmashonrasnãoconvémaopaieàmãe,nemselhesdevedarasquesecostumaconferiraumfilósofoouumgeneral,esimasquesãodevidasaumpaiouaumamãe.

Atodasaspessoasmaisvelhas,igualmente,devemserprestadasashonrasqueconvémàsuaidade,erguendo-nospararecebê-las,procurandolugaresparaelas,etc.;aopassoqueaoscamaradaseamigosdevemosdaraliberdadedeexpressar-seeousodetodasascoisasemcomum.

Etambémaosparentes,aosconcidadãoseacadaumadasoutrasclassesdeve-sesempre procurar prestar o que for apropriado e comparar os direitos de cadaclasse com respeito à proximidade de relação, e à virtude ou necessidade. Acomparaçãoémais fácilquandoaspessoaspertencemàmesmaclasse,emaistrabalhosaquandosãodiferentes.Nemporissodevemosfurtar-nosàtarefa,mascumpre-nosdecidiraquestãocomomelhorpudermos.

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Outra questão que se apresenta é sobre se convém ou não romper a amizadequandoaoutrapartenãopermaneceamesma.Talvezsepossadizerquenãohánada de estranho em romper uma amizade baseada na utilidade ou no prazerquandonossosamigos jánãopossuem taisatributos.Pois foiporcausadestesquenostornamosamigos;equandoelesdeixamdeexistir,érazoávelquenãose

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sintamaisamor.Maspoderíamosqueixar-nosdeoutrose,tendo-noseleamadopela nossa utilidade ou aprazibilidade, simulou amar-nos pelo nosso caráter.Porque, como dissemos no começo, as mais das vezes surgem osdesentendimentos entre amigos quando não são amigos dentro do espírito emquepensamsê-lo.Eassim,quandoumhomemiludiuasimesmojulgandoqueeraamadopeloseucarátereissonãocorrespondiaemabsolutoàverdade,nãopode ele censurar a ninguém senão a si próprio;masquando foi iludidopelassimulaçõesdaoutrapessoa,é justoquesequeixedequemoenganou—maisjusto,até,doquequandonosqueixamosdefalsificadoresdemoedas,porquantoomaldizrespeitoaumacoisamaisvaliosa.

Masquandoaceitamosumhomemcomobomeele se revelaepatenteiamau,devemos continuar a amá-lo? Isso é certamente impossível, visto que não sepodemamartodasascoisas,masapenasoqueébom.Oqueémaunempodenemdeveseramado,poisninguémtemodeverdeamaromau,nemdetornar-sesemelhanteaele;ejátemosditoqueosemelhanteécaroaosemelhante.

Deve,então,seraamizadeimediatamenterompida?Ounãoseráassimemtodososcasos,masapenasquandonossosamigossãoincuráveisemsuamaldade?Sesãopassíveisdereforma,deveríamosantesprocurarajudá-losnoquetocaaoseucaráter ou aos seus bens materiais, tanto mais que isso é melhor e maiscaracterísticodaamizade.Masninguémachariaestranhoquealguémrompessesemelhanteamizade,poisnãoeraamigodeumhomemdessaespécie;umavezqueseuamigomudoueelenãopodesalvá-lo,éjustoqueoabandone.

Masseumdosamigospermanecesseomesmoeooutrosetornassemelhoreoultrapassassegrandementeemvirtude,deveriaosegundotrataroprimeirocomoamigo? Seguramente, isso não é possível. A verdade do que dizemos seevidenciasobretudoquandoointervaloégrande,comonocasodasamizadesdeinfância: se um dos amigos permaneceu uma criança quanto ao intelecto, aopasso que o outro se tornou um homem na inteira acepção da palavra, comopodemcontinuaramigossenãoaprovamasmesmascoisas,nemsedeleitamoucontristamcomasmesmascoisas?Porquantonemmesmocomrespeitoumaooutro haverá concordância entre os seus gostos, e sem isso, não pode haveramizade,pois impossíveléviveremosdois juntos.Jádiscutimos,porém,estesassuntos.

Devemos,então,conduzir-nosparacomelecomosenuncativéssemossidoseuamigo?Certamentenosrecordaremosdenossaantigaintimidade,ecomosomos

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de opinião que convém obsequiar nossos amigos de preferência a estranhos,tambémnocasodosqueforamnossosamigosdevemoslevaremconsideraçãoaamizadedeoutrora,seorompimentonãosedeveuaumexcessodemaldade.

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Asrelaçõesamigáveiscomseusemelhanteeasmarcaspelasquaissãodefinidasasamizadesparecemprocederdasrelaçõesdeumhomemparaconsigomesmo.Com efeito, definimos um amigo como aquele que deseja e faz, ou parecedesejarefazerobemnointeressedeseuamigo,oucomoaquelequedesejaqueseuamigoexistaeviva,porelemesmo;eissoéoqueasmãesfazemaosseusfilhos eoque fazemos amigosqueentraramemconflito.Eoutrosodefinemcomoaquelequevivenacompanhiadeoutroetemosmesmosgostosqueele,ou o que compartilha os pesares e alegrias de seu amigo; e isso também éencontradoprincipalmentenasmães.Époralgumadestascaracterísticasqueaamizadeédefinida.

Ora,cadaumadelaséverdadeiradohomembomemrelaçãoasimesmo(edetodos os outros homens namedida em que se consideram bons; a virtude e ohomem bom parecem, como dissemos, ser a medida de todas as classes decoisas).Comefeito,assuasopiniõessãoharmônicaseeledesejadetodaasuaalma asmesmas coisas; por conseguinte, deseja para si o que é bom e o queparecesê-lo,eofaz(poisécaracterísticodohomembompôrempráticaobem),e assim procede no seu próprio interesse (isto é, no interesse do elementointelectualquepossuiemsiequeéconsideradocomosendooprópriohomem);easimesmodesejaavidaeapreservação,emespecialdoelementoemvirtudedoqualelepensa.Porquantoaexistênciaéboaparaohomemvirtuoso,ecadaumdesejaparasioqueébom,aopassoqueninguémdesejariapossuiromundointeiroseparatantolhefosseprecisotornar-seoutrapessoa(quantoaisso,Deusé quem tem a posse atual do bem). Tal homem só deseja essas coisas com acondiçãodecontinuarsendooqueé;eoelementopensantepareceseropróprioindivíduo,ousê-lomaisdoquequalqueroutrodoselementosqueoformam.Eele deseja viver consigo mesmo, e o faz com prazer, já que se compraz narecordação de seus atos passados e suas esperanças para o futuro são boas, eportantoagradáveis.Tem,domesmomodo,amentebemprovidadeobjetosdecontemplação. E sofre e se alegra, mais do qualquer outro, consigo mesmo;porquantoamesmacoisaésempredolorosa,eamesmacoisa,sempreagradável,

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enãoumacoisaagoraeoutradepois.Elenãotem,porassimdizer,nadadequepossaarrepender-se.

Logo,comocadaumadestascaracterísticaspertenceaohomembomemrelaçãoasimesmo,eeleserelacionaparacomoseuamigocomoparaconsigomesmo(pois o amigo é outro "eu"), pensa-se que a amizade é também um destesatributos,equeaquelesquepossuemestesatributossãoamigos.Seháounãoamizadeentreumhomemeelemesmo,éumaquestãoquepodemosdeixardelado por ora. Parece haver amizade namedida em que ele é dois oumais, ajulgarpelosatributosdaamizadequemencionamosacimaepelofatodequeoextremodaamizadeécomparadoaoamorquesentimospornósmesmos.

Entretanto,osatributosmencionadosparecempertenceràmaioriadoshomens,pordeploráveiscriaturasqueeles sejam.Devemosentãodizerque,namedidaemque estão satisfeitos consigo e se considerambons, eles participamdessesatributos?Ocertoéquenenhumhomemradicalmentemaueímpioospossuiousequerparecepossuí-los.Nãosepodedizer,tampouco,queaspessoasinferioresospossuam,poistaispessoasnãoseharmonizamconsigomesmas,eapetecemcertascoisas,masracionalmentedesejamoutras.

Istoéverdadeiro,porexemplo,dos incontinentes,queescolhem,em lugardascoisasqueelesmesmosjulgamboas,outrasquesãoagradáveismasperniciosas;enquantooutraspessoasainda,porcovardiaeindolência,seesquivamdefazeroque consideram melhor para elas próprias. E os que cometeram muitos atosabomináveis e são odiados pela sua maldade esquivam-se à própria vida edestroema simesmos.Eosmausbuscamoutraspessoascomquempassarosseus dias e fugir de simesmos; pois lembram-se demuitos crimes e preveemoutros semelhantes quando estão sozinhos, mas esquecem-nos quando têmcompanhia.E,nãopossuindoemsinadadelouvável,nãosentemnenhumamorpor simesmos.Por isso, taishomens tampouco se alegramou sofremconsigopróprios; porquanto a sua alma é dilacerada por forças contrárias, e um doselementosqueaconstituem,emrazãodasuamaldade,sofrequandoseabstémde certos atos, enquanto a outra parte se rejubila, e uma delas o arrasta numadireçãoeaoutranadireçãocontrária,comoseoquisessemesquartejar.Seumhomemnãopodesentirdoreprazeraomesmotempo,pelomenosaocabodealguns instantes sofre porque sentiu prazer e desejaria que tais coisas não lhefossemagradáveis;porqueosmaustêmaalmapejadadearrependimento.

Poressesmotivosohomemmaunãopareceamigavelmentedispostosequerpara

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consigomesmo,umavezquenelenãoexistenadadignodeamor.Demodoque,setersemelhanteíndoleéseramaisdesgraçadadascriaturas,devemosenvidartodos os esforços para evitar amaldade e procurar ser bons, porque só assimpoderemosseramigosdenósmesmosedosoutros.

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Abenevolênciaéumaespéciederelaçãoamigável,masnãoseidentificacomaamizade, pois que tanto podemos senti-la para com pessoas a quem nãoconhecemoscomosemqueelasprópriasosaibam,aopassoquecomaamizadenãosucedeassim.Isto,aliás,jáficouditoatrás.Masabenevolêncianãoésequerumsentimentoamistoso,jáquenãoenvolveintensidadeoudesejo,enquantoosentimentodeamizadeéacompanhadodesseselementos.Alémdisso,amizadeimplicaintimidade,enquantoabenevolênciapodesurgirrepentinamente,comoaconteceparacomosadversáriosnumacompetição:sentimosbenevolênciaparacom eles e compartilhamos os seus desejos,mas não cooperaríamos em nadacomeles;porque,comodizíamos,essesentimentonosvemdesúbitoenóssóosamamossuperficialmente.

A benevolência parece, pois, ser um começo de amizade, como o prazer dosolhoséocomeçodoamor.Porqueninguémamasenãosedeleitoudeiníciocomaformadoseramado;masnemporissooquesedeleitacomaformadeoutrooama: é tambémprecisoque sinta a sua faltaquandoestá ausente eque anseiepela sua presença. Do mesmo modo, não é possível que duas pessoas sejamamigas se antes não sentiram benevolência uma para com a outra, mas pelosimples fato de sentirem benevolência não se pode dizer que sejam amigas,porquantoapenasdesejambemaooutro,masnãocooperariamemnadacomelenemsedariamaotrabalhodeajudá-lo.

E assim, por uma extensão do termo amizade, poder-se-ia dizer que abenevolênciaéumaamizadeinativa,sebemquepasseaseramizadeverdadeiraquandoseprolongaechegaaopontodaintimidade.Nãosetrataaqui,porém,daamizadebaseadanautilidadenemdaquetemporobjetooprazer,poistampoucoabenevolênciasurgeemtaiscondições.

Ohomemquerecebeuumbenefícioretribuicombenevolência,enissonãofazsenão o que é justo, enquanto o que deseja a prosperidade de alguém porque

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espera enriquecer através dele não parece sentir benevolência para com talpessoa,masantesparaconsigomesmo,assimcomoumhomemnãoéamigodeoutroseoestimaapenasporcausadealgumproveitoquepossatirardele.Emgeral,abenevolênciasurgeemvirtudedealgumaexcelênciaoumérito,quandoumhomempareceaoutrobelo,bravooualgodesemelhante,comofizemosvernocasodosadversáriosnumacompetição.

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Aunanimidadetambémpareceserumarelaçãoamigável.Porestemotivonãoéelaidentidadedeopinião,aqualpoderiaocorrermesmoentrepessoasquenãoseconhecem.Etampoucodizemosqueosquetêmamesmaopiniãosobretodoequalquer assunto sejam unânimes, como por exemplo os que concordam notocante aos corpos celestes (pois a unanimidade a esse respeito não é umarelaçãoamigável);masdizemosqueumacidadeéunânimequandooshomenstêmamesmaopiniãosobreoqueédeseuinteresse,escolhemasmesmasaçõesefazememcomumoqueresolveram.

É,portanto,arespeitodascoisasafazerquesedizqueaspessoassãounânimes;e,entreelas,dosassuntosimportantesemqueépossívelaambasouatodasaspartes obteremo que pretendem; por exemplo, uma cidade é unânimequandotodos os cidadãos pensamque os seus cargos públicos devem ser eletivos, ouqueconvémfazeraliançacomEsparta,ouquePítacodevegoverná-la—numaocasiãoemqueopróprioPítacotambémdesejegovernar.Masquandocadaumadeduaspessoasdesejaparasiapossedacoisaemquestão,comooscapitãesnasFenícia, elas entram em choque; porquanto não há unanimidade quando cadauma das partes pensa na mesma coisa, seja ela qual for, mas apenas quandopensamnamesmacoisanasmesmasmãos,porexemplo,quando tantoopovocomoosdaclassesuperiordesejamqueosmelhoreshomensgovernem;porqueassim,esóassim,todosalcançarãooquepretendem.

Aunanimidadeparece,pois,seraamizadepolítica,como,defato,égeralmenteconsiderada; pois ela versa sobre coisas que são de nosso interesse e que têminfluênciaemnossavida.

Ora, tal unanimidade é encontrada entre os homens bons, pois estes sãounânimestantoconsigomesmoscomounscomosoutrosetêm,porassimdizer,

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umsópensamento(jáqueosdesejosdetaishomenssãoconstantesenãoestãoàmercêdecorrentescontráriascomoumestreitodemar);edesejamoqueéjustoe vantajoso, e esses são os objetos de seus esforços comuns.Mas os homensmausnãopodemserunânimesanãoserdentrodelimitesmuitoreduzidos,comotampoucopodemseramigos,vistoqueambicionammaisdoqueoseuquinhãojusto de vantagens, enquanto, no trabalho e no serviço público, ficam muitoaquémdapartequelhescompete.Ecadahomem,desejandovantagensparasimesmo, critica o seu vizinho e lhe faz obstáculo; porque, se as pessoas nãoforem vigilantes, o patrimônio comum não tardará a ser completamentedemolido.Daíresultaencontrarem-seemestadodeluta,procurandocoagirunsaosoutrossemqueninguémsedisponhaafazeroqueéjusto.

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Osbenfeitores,segundosepensa,amamaquelesaquemfizerambemmaisdoqueestesosamam,ediscute-seestepontocomosefosseparadoxal.Amaioriajulga que isso acontece porque os segundos se encontram na posição dedevedores e os primeiros, de credores; e por conseguinte, assim como os quetomaramdinheiroemprestadodesejamqueosseuscredoresnãoexistissem,aopasso que estes chegam a zelar pela segurança de seus devedores, também sepensaqueosbenfeitoresdesejamlongavidaaosobjetosdesuasboasações,poisdessemodopoderãocontarcomagratidãodeles,enquantoosbeneficiáriosnãoseinteressamemlhesretribuirdessaforma.

Epicarnoachariatalvezqueelesfalamassimporque"olhamascoisaspeloladomau", mas isso é muito próprio da natureza humana; porque a maioria daspessoastêmamemóriacurtaeantesdesejamserbemtratadasdoquetratarbemaopróximo.Masacausapareceterraízesmaisprofundasnanaturezadascoisas,eocasodosqueemprestaramdinheironemsequerapresentaanalogiacomeste.Comefeito,oscredoresnãotêmnenhumsentimentoamistosoparacomosseusdevedores, mas apenas desejam vê-los em segurança por causa do que têm areceberdeles;enquantoosqueprestaramumserviçoaoutremsentemamizadeeamorporaquelesaquemserviram,mesmoqueestesnãolhessejamdenenhumautilidade nem jamais possam vir a sê-lo. É o que acontece também com osartífices,porexemplo:cadaumamaotrabalhosaídodesuasmãosmuitomaisdoqueoamariaestesepudesseadquirirvida.Emaisqueninguém, talvez,ospoetas,quedevotamexcessivoamoraos seuspoemas, idolatrando-oscomose

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fossemseusfilhos.

Aposiçãodosbenfeitoresésemelhante:apessoaaquemfizerambemécomosefosse sua obra, que eles amam mais do que a obra ama o seu artífice. Isso,porqueaexistênciaéparatodososhomensumacoisadignadeserescolhidaeamada;ora,nósexistimosemvirtudedaatividade(istoé,vivendoeagindo),eaobraé,emcertosentido,umaprodutoradeatividade;portanto,oartíficeamaasuaobraporqueamaaexistência.E isso temraízesprofundasnanaturezadascoisas,poisoqueeleéempotência,suaobraomanifestaemato.

Aomesmotempo,paraobenfeitorénobreaquiloquedependedasuaação.Eassimsedeleitacomoobjetodasuaação,enquantoopacientenãovênadadenobrenoagente,masnomáximoalgodevantajoso;eissoémenosagradáveleestimável.Oqueéagradáveléaatividadedopresente,aesperançadofuturoeamemóriadopassado;maisagradávelquetudo,porém,etambémmaisestimável,éoquedependedaatividade.Ora,paraohomemque fez algumacoisa a suaobrapermanece(poisonobreéduradouro),masparaaquelequefoiobjetodaaçãoautilidadenãotardaapassar.Ealembrançadascoisasnobreséagradável,enquanto a das coisas úteis não costuma sê-lo, ou o é menos. No caso daexpectação,contudo,ocontráriodissoéquepareceserverdadeiro.

Acrescequeoamorécomoaatividade,eseramadoassemelha-seàpassividade;e o amor e os seus concomitantes são os atributos dos mais ativos dentre oshomens.

Efinalmente,todososhomenstêmmaioramoraoqueganharamcomofrutodoseutrabalho.Porexemplo,osquefizeramasuafortunaamam-namaisdoqueaqueles a quem ela veio por herança; e ser bem tratado não parece envolvertrabalho,enquantofazerbemaoutremé tarefa laboriosa.Sãoestas tambémasrazõesporqueasmães têmmaisamoraseus filhosdoqueospais;pô-losnomundolhescustoumaisdoreseelassentemmaisprofundamentequeosfilhoslhespertencem.Esteúltimopontopareceaplicar-seigualmenteaosbenfeitores.

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Tambémsediscuteaquestãodeseumhomemdeveriaamaracimadetudoasimesmoouaalgumaoutrapessoa.Sãocriticadosaquelesqueamamasimesmosmais do que a qualquer outra coisa e dá-se-lhes o nome de ególatras, que é

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consideradoumepítetopejorativo;eumhomemmauparecefazer tudonoseuprópriointeresse,eissotantomaisquantopiorelefor.Éacusado,porexemplo,denãofazernadaespontaneamente,enquantoohomembomagetendoemvistaahonra,sacrificandoosseusinteressespessoais,eissotantomaisquantomelhorelefor.

Mas os fatos estão em conflito com estes argumentos, o que aliás não é desurpreender.Comefeito,dizemoshomensquedeveríamosamaracimadetudoonossomelhoramigo,eomelhoramigodeumhomeméaqueleque lhedesejabemporelemesmo,aindaqueninguémvenhaaterconhecimentodisso;eessesatributossãoencontradosprincipalmentenaatitudedeumhomemparaconsigomesmo,comotodososoutrosatributospelosquaisédefinidoumamigo;porque,comodissemos,foiapartirdestarelaçãoquetodasascaracterísticasdaamizadese estenderam aos nossos semelhantes. E isto é confirmado pelos provérbios,como "uma só alma", "os amigos possuem todas as coisas em comum","amizade é igualdade" e "a caridade começa por casa", pois todas essascaracterísticas são encontradas principalmente na relação de um homem paraconsigomesmo.Elepróprioéoseumelhoramigo,eporissodeveriaamarasimesmo acima de tudo. É, pois, razoável indagar qual das duas opiniõesseguiremos,porqueambassãoplausíveis.

Talvezconvenhadistinguiressesargumentosunsdosoutrosedeterminaremquemedida e a que respeito cada uma das opiniões é verdadeira. Ora, a verdadepoderá tornar-seevidenteseapreendermososentidoemquecadaescolausaaexpressão"amigodesimesmo".Osqueausamcomotermodecensuraatribuemaautofiliaaosqueabocanhamumquinhãomaiorderiquezas,honraseprazerescorporais,poisessassãoascoisasqueamaioriadesejaepelasquaisseesforçacomo se fossem as melhores de todas; e também por esse motivo se tornamobjetosdecompetição.Eosquesãocúpidoscomrespeitoaelassatisfazemosseusapetites e,demodogeral,os seus sentimentoseoelemento irracionaldesuaalma.

Ora,amaioriadoshomenssãodessanatureza,eesseéomotivodeserusadooepíteto em tal acepção: ele recebe o seu significado do tipo predominante deautofilia, que émau. É justo, por conseguinte, que os homens que amam a simesmosdessemodosejamobjetosdecensura.

Eéevidentequeamaioriadaspessoascostumamchamaramigosdesimesmosaquelesquesedãopreferênciacomrespeitoaobjetosdessaespécie;porque,se

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umhomemfizessesemprequestãodequeelemesmo,acimadetodasascoisas,agissecomjustiçaetemperançaoudeacordocomqualqueroutravirtude,eemgeral procurasse sempre assumir para si a conduta mais nobre, ninguémchamariaamigodesimesmoaumtalhomemeninguémocensuraria.

Noentanto,eleparecesermaisamigodesimesmodoqueooutro.Pelomenos,atribuiasiascoisasmaisnobresemelhores,satisfazoelementomaisvaliosodesua natureza e obedece-lhe em todas as coisas.E, assim comouma cidade ouqualquer outro todo sistemático é, com toda a justiça, identificada com o seuelemento mais valioso, o mesmo sucede com o indivíduo humano; e, porconseguinte,ohomemqueamaesse elementoeo satisfaz émais amigode simesmoquequalqueroutro.

Aindamais:diz-sequeumhomemtemounãotemdomíniopróprioconformearazão domine ou deixe de dominar nele, o que implica que ela é o própriohomem;eascoisasqueoshomensfazemdeacordocomumprincípioracionalsãoconsideradasmaislegitimamenteatosseus,eatosvoluntários.

Éevidente,pois,queesseéoprópriohomem,ouqueoémaisdoquequalqueroutra coisa, e também que o homem bom ama acima de tudo essa sua parte.Dondeseseguequeeleénomais legítimosentidodapalavraumamigodesimesmo, e de um tipo diferente daquele que é alvo de censura, tanto quanto oviverdeacordocomumprincípioracionaldiferedoviversegundoosditamesdapaixão,edesejaroqueénobrededesejaroqueparecevantajoso.

Por isso, todos os homens aprovam e louvam os que se ocupam em grauexcepcional com ações nobres; e se todos ambicionassem o que é nobre ededicassemomelhordeseusesforçosàpráticadasmaisnobresações,todasascoisas concorreriampara o bem comume cada umobteria para si osmaioresbens,jáqueavirtudeéobemmaiorqueexiste.

Portanto,ohomembomdeveseramigodesimesmo(poiselepróprio lucrarácom a prática de atos nobres, ao mesmo tempo que beneficiará os seussemelhantes);masohomemmaunãooé,porque,comoabandonoàssuasmáspaixões,ofendetantoasimesmocomoaosoutros.Paraohomemmau,oqueelefazestá emconflito comoquedeve fazer, enquantoohomembom fazoquedeve;porquearazão,emcadaumdosqueapossuem,escolheoqueémelhorparasimesma,eohomembomobedeceàrazão.

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Dohomembomtambéméverdadeirodizerquepraticamuitosatosnointeressedeseusamigosedesuapátria,e,senecessário,dáavidaporeles.Comefeito,talhomemdebomgradorenunciaàriqueza,àshonraseemgeralaosbensquesão objetos de competição, ganhando para si a nobreza, visto que prefere umbreve período de intenso prazer a uma longa temporada de plácidocontentamento,dozemesesdevidanobrealongosanosdeexistênciaprosaica,euma só ação grande e nobre amuitas ações triviais. Ora, os quemorrem poroutremcertamentealcançamesseresultado;éele,pois,umgrandeprêmioqueescolhemparasimesmos.

Oshomensbonstambémsedesfazemdesuasriquezasparaqueosseusamigospossamganharmais,pois,enquantooamigodeumhomemadquireriqueza,elepróprioalcançanobreza:éaele,portanto,quecabeomaiorbem.Omesmosepodedizerdashonrasecargospúblicos:tudoissoelesacrificaráaoseuamigo,porquetaisatossãonobreselouváveisnele.

Com razão, pois, é um homem assim considerado bom, visto que escolhe anobrezaacimade tudo.Epodeele, inclusive,deixara açãoao seuamigo: emcertas ocasiões é mais nobre sermos a causa da ação de um amigo do queagirmosnósmesmos.

Vê-se, pois, que em todosos atosque atraem louvores aoshomens, ohomembomreservaparasiomaiorquinhãodoqueénobre.Enestesentido,comojádissemos, umhomemdeve ser amigode simesmo, porémnãono sentido emqueamaioriaoé.

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Tambémsediscutesobreseohomemfeliznecessitaounãodeamigos.Diz-seque os que são sumamente felizes e autossuficientes não precisam deles, poistaispessoaspossuemtudoqueébome,autossuficientescomosão,dispensamoresto;enquantoumamigo,queéoutro"eu",proveoqueumhomemnãopodeconseguirpelosseusprópriosesforços.Daíaspalavras:"quandoa fortunanossorri,paraqueprecisamosdeamigos”?

Mas parece estranho, quando se atribui tudo o que é bom ao homem feliz,recusar-lhe amigos, que são considerados os maiores bens exteriores. E, se émais próprio de um amigo fazer bem a outrem do que ser beneficiado, e se

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dispensarbenefíciosécaracterísticodohomembomedavirtude,eémaisnobrefazerbemaamigosdoqueaestranhos,ohomembomnecessitarádepessoasaquem possa fazer bem. E por esta razão se pergunta se necessitamosmais deamigos na prosperidade ou na adversidade, subentendendo que não só umhomemnaadversidadeprecisadequemlheconfirabenefícios,mastambémosprósperosnecessitamteraquemfazerbem.

Nãomenos estranho seria fazer dohomem sumamente feliz um solitário, poisninguémescolheriaapossedomundointeirosobacondiçãodeviversó,jáqueo homemé um ser político e está em sua natureza o viver em sociedade. Porisso,mesmoohomembomviveráemcompanhiadeoutros,vistopossuireleascoisasquesãoboaspornatureza.E,evidentemente,émelhorpassarosseusdiascom amigos e homens bons do que com estranhos ou a primeira pessoa queapareça.Logo,ohomemfeliznecessitadeamigos.

Que significa, então, a asserção da primeira escola, e em que sentidocorresponde ela à verdade? Dar-se-á o caso de que a maioria dos homensidentifiquem os amigos com as pessoas úteis? De tais amigos, é certo que ohomem sumamente feliz não temnecessidade, visto já possuir todas as coisasboas;etampouconecessitarádaquelescomquemfazemosamizadeporcausadoprazerquenosproporcionam,ousóprecisarádelesemgraumuitorestrito(pois,sendo aprazível a sua vida, ele dispensa prazeres adventícios); e, como nãonecessitadetaisamigos,julga-sequenãonecessitadeamigosemabsoluto.

Masisto,seguramente,nãoéverdadeiro,porquantonocomeçodissemosqueafelicidadeéumaatividade;eaatividade,evidentemente,éalgoquesefazequenãoestápresentedesdeoprincípio,comoumacoisaquenospertencesse.Seafelicidade consiste em viver e em ser ativo, e a atividade do homem bom évirtuosaeaprazívelemsimesma,comodissemosnocomeço,eofatodeumacoisa nos pertencer é um dos atributos que a tornam aprazível, e podemoscontemplaronossopróximomelhordoqueanósmesmosesuasaçõesmelhordoqueasnossas,eseasaçõesdoshomensvirtuososquesãoseusamigossãoaprazíveis aos bons (visto possuírem ambos os atributos que são naturalmenteaprazíveis)—seassimé,ohomemsumamentefeliznecessitarádeamigosdessaespécie, já que o seu propósito é contemplar ações dignas e ações que sejamsuas, e as de um homem bom que seja seu amigo possuem ambas essasqualidades.

Alémdisso,pensa-sequeohomemfelizdeveterumavidaaprazível.Ora,seele

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vivesse comoumsolitário a existência lhe seriadura, poisnão é fácil a quemestásozinhodesenvolverumaatividadecontínua;mascomoutrosevisandoaosoutros,issoémaisfácil.Emcompanhiadeoutraspessoas,porconseguinte,suaatividade serámais contínua e aprazível em simesma, como deve ser para ohomemsumamentefeliz;poisumhomembom,enquantobom,deleita-secomasações virtuosas e se entristece com as más, assim como o amante da músicasenteprazer emouvirbelasmelodias e se aborrececomasmás.Acompanhiadosbonstambémnosoferececertoadestramentonavirtude,comodisseTeógnisantesdenós.

Se aprofundarmos um pouco mais a natureza das coisas, um amigo virtuosoparece ser naturalmente desejável a umhomemvirtuoso.Com efeito, o que ébompornatureza,comodissemos,é,paraohomemvirtuoso,bomeagradávelem si mesmo. Ora, a vida é definida, quanto aos animais, pelo poder depercepção, equantoaohomem,pelopoderdepercepçãooudepensamento; eumpoder é definido com referência à correspondente atividade, que é a coisaessencial;logo,avidapareceseressencialmenteoatodeperceberoudepensar.Ora,avidafazpartedascoisasquesãoboaseaprazíveisemsimesmas,vistoqueelaédeterminada,eodeterminadoédanaturezadobom;eoqueébompornaturezatambémébomparaohomemvirtuoso(porissoavidapareceaprazívelatodososhomens).Nãodevemos,contudo,aplicaresteprincípioaumavidamáe corrupta, nem a uma vida passada entre sofrimentos, pois tal vida éindeterminada,talqualosseusatributos.

Anaturezadadorsetornarámaisclaranaspáginasqueseguem.Mas,seavidaemsimesmaéboaeaprazível(oquepareceserverdadeiropeloprópriofatodeadesejarem todososhomens,eparticularmenteosquesãobonse sumamentefelizes:para taishomens,avidaédesejávelmaisqueparaquaisqueroutros,esuaexistênciaéfeliznomaisaltograu);esequemvêpercebequevê,equemouve percebe que ouve, e quemcaminha percebe que caminha, e em todas asoutrasatividadeshátambémalgumacoisaquepercebequeestamosagindo,demodo que, se percebemos, percebemos que percebemos, e, se pensamos,percebemos que pensamos; e se perceber que percebemos ou pensamos éperceber que existimos (pois que a existência foi definida comopercepção oupensamento); e se perceber que vivemos é, em si mesmo, uma das coisasaprazíveis(poisavidaéboapornatureza,eéaprazívelperceberemsimesmoapresençadoqueébom);eseavidaédesejável,eparticularmentedesejávelparaos homens bons, porque para eles a existência é boa e aprazível (visto que secomprazememsentirpresentenelesoqueébomemsimesmo);e,seohomem

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virtuosoéparaoseuamigotalcomoéparasipróprio(porquantooamigoéumoutro "eu") — se tudo isso é verdadeiro, assim como o seu próprio ser édesejável para cada homem, igualmente (ou quase igualmente) o é o de seuamigo.Ora,jávimosqueoseuserédesejávelporqueelepercebeasuaprópriabondade, e tal percepção é agradável em si mesma. Ele necessita, porconseguinte, ter consciência também da existência de seu amigo, e isso severificará se viverem em comum e compartilharem suas discussões epensamentos;poisissoéoqueoconvívioparecesignificarnocasodohomem,enão,comoparaogado,opastarjuntosnomesmolugar.

Se, portanto, o ser é desejável em si mesmo para o homem sumamente feliz(visto que é bom e agradável por natureza), e o ser de seu amigo é mais oumenosidênticoaoseu,umamigoseráumadascoisasdesejáveis.Ora,oqueédesejávelparaele,énecessárioqueopossuasobpenadeserdeficienteaesserespeito.Paraserfelizohomemnecessita,portanto,deamigosvirtuosos.

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Devemos,então,fazeromaiornúmeropossíveldeamizades,ou,assimcomonotocanteàhospitalidadeéconsideradodebomalvitre"nãoserhomemdemuitosconvidados,nemhomemdenenhum",aregraseaplicatambémàamizadeeumhomemnãodeveviversemamigosnemterumnúmeroexcessivodeles?

Amáximapareceperfeitamenteaplicávelàsamizadesque fazemoscomvistasnautilidade,porqueretribuirosserviçosdemuitagenteécoisatrabalhosaeumavidahumananãobastapara tanto.Logo,oexcessodeamigossobreonúmerosuficiente para a nossa existência é supérfluo e constitui um obstáculo à vidanobre;deformaquenãonecessitamosdeles.Dasamizadesfeitascomvistasnoprazer também bastam umas poucas, assim como um pouco de tempero nacomidaésuficiente.

Masnoquetocaaosbonsamigos,devemostê-lostantoquantopossível,ouháumlimiteparaoseunúmerocomoháparao tamanhodeumacidade?Nãosepodefazerumacidadecomdezhomens,eseestesforemcemmil,nemporissoelaseráumacidade.

Entretanto,onúmeroapropriadonãoéprovavelmenteumaquantidadefixamasqualquer que se situe entre dois pontos fixos. De modo que para os amigos

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também existe um número fixo— talvez o maior número com que se podeconviver (pois essa, segundo verificamos, é considerada como a própriacaracterística da amizade); e é evidente quenão se pode conviver commuitaspessoas e dividir-se entre elas. Acresce que essas pessoas também devem seramigas umas das outras, se têm de passar a vida juntas; e dificilmente talcondiçãoserápreenchidacomumnúmeroelevadodeindivíduos.Etampoucoéfácil compartilhar as alegrias e os pesares íntimos de muita gente, pois issoimportaria em sentir-se feliz com um amigo e em contristar-se com outro,simultaneamente.

Parece,pois,queconvémnãoprocurarteromaiornúmeropossíveldeamigos,masapenas tantosquantos foremsuficientesparaos finsdoconvívio,pois serumgrandeamigodemuitaspessoasécoisaqueseafiguraimpossível.Poressamesma razão, nãopodemos amarvárias pessoas aomesmo tempo.O ideal doamorésercomoqueumexcessodeamizade,eissosósepodesentirporumapessoa,dondeseseguequetambémsópodemossentirumagrandeamizadeporpoucaspessoas.

Istopareceencontrarconfirmaçãonaprática,pois sãomuito rarososcasosdeumgrandenúmerodepessoasquesejamamigasumasdasoutrasnosentidodaamizade-camaradagem, e as amizades famosas dessa espécie são sempre entreduaspessoas.Osquetêmmuitosamigosemantêmintimidadecomelespassampor não ser amigos de ninguém, salvo dentro dos limites apropriados aconcidadãos; e tais pessoas são também chamadas obsequiosas. Dentro doslimitesapropriadosaconcidadãos,emverdade,épossívelseramigodemuitossemcontudoserobsequioso,masumhomemgenuinamentebom.Poroutrolado,nãosepodemantercommuitaspessoasaespéciedeamizadequesebaseianavirtude e no caráter de nossos amigos, e devemos dar-nos por felizes seencontrarmosunspoucosdessaespécie.

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Necessitamosmaisdeamigosnaprosperidadeounaadversidade?Tantonumacomo na outra situação eles são procurados, porque, se na adversidade oshomens precisam de ajuda, na prosperidade necessitam pessoas com quemconvivereàsquaisfazerobjetosdesuabeneficência,jáquedesejamfazerbemaoutrem.

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A amizade é, pois, mais necessária na adversidade, e por essemotivo são osamigosúteis quebuscamos em tal caso; naprosperidade, pelo contrário, ela émaisnobre,eentãobuscamostambémhomensbonsparaseremnossosamigos,vistoqueémaisdesejávelfazerbemaelesecomelesconviver.Comefeito,aprópriapresençadosamigoséaprazíveltantonaboacomonamáfortuna,jáquenossa dor émenor quando eles a compartilham conosco. E assim, poder-se-iaperguntarseelestomamsobreosseusombrosumapartedonossofardo,ouseéa presença dos amigos, pelo que tem de aprazível, e o pensamento de eles secondoerem conosco que aligeiram a nossa dor. Quer os motivos sejam esses,queralgumoutro,éumaquestãoquepodemospôrdelado;sejacomofor,oquedescrevemosparecerealmenteocorrer.

Mas a presença dos amigos parece encerrar umamistura de vários fatores. Osimples fato de vê-los é agradável, especialmente se nos encontramos numaquadraadversa,etorna-seumasalvaguardacontraopesar(poisumamigotendea confortar-nos tanto pela sua presença como pelas suas palavras, se é umapessoade tato,vistoconheceronossocaráter e ascoisasquenosagradamounoscontristam).Masvê-lossofrercomnossosinfortúniosédoloroso,poistodosevitamcausardoraseusamigos.Poressemotivooshomensdenaturezavaronilabstêm-se de fazer seus amigos sofrer com eles e, a não ser que tenha umaextraordinária insensibilidade à dor, tal homem não pode suportar a dor quecausaaseusamigos,eemgeralnãoadmitecompanheirosdeafliçãoporqueelepróprionãoédadoaafligir-se.Masasmulhereseoshomensmulherisgostamdeterpessoascondoídasaoseuredoreamam-nascomoamigosecompanheirosdepesar.Contudo,éevidentequeemtodasascoisasdeveríamosprocurarimitaromelhortipodepessoa.

Por outro lado, a presença de amigos na prosperidade tanto implica ummodoaprazível de passar o tempo comoo prazer de vê-los felizes com a nossa boafortuna. Segundo parece, pois, deveríamos convocar sem demora os nossosamigosacompartilharanossaventura(poisaspessoasdecaráterbenfazejosãonobres),mas hesitar em chamá-los nos dias de infortúnio, pois que de nossosmalesdevemosdar-lhesumapartetãopequenaquantopossível—dondeafrase:"já basta o meu infortúnio". Acima de tudo, devemos chamar nossos amigosquandoelespodem,semgrandetrabalho,prestar-nosumgrandeserviço.

Inversamente,édecorosoacorrersemserconvidadoemauxíliodosqueforamcolhidospelaadversidade(poisécaracterísticodeumamigoprestarserviços,eespecialmenteaosquedelesnecessitamequenãoossolicitaram;talaçãoémais

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nobreemaisaprazívelaambos);masquandonossosamigossãoprósperosnãodevemoshesitaremcompartilhardesuasatividades(porquantoelesprecisamdeamigos também para isso), nem nos apressarmos quando se trata de serbeneficiados por eles: porque não é nobre mostrar-se ávido de receberbenefícios. Ainda assim, convém evitar a reputação de desmancha-prazeres aquenosexporemosseosrepelirmos,poisissoalgumasvezesacontece.

Em conclusão, a presença de amigos parece ser desejável em todas ascircunstâncias.

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Nãoseseguedaíque,assimcomoparaosamantesavistadoseramadoéacoisaquemaiordeleite lhescausa,epreferemessesentidoaosoutrosporqueédelequemaisdepende tanto a existência comoaorigemdoamor, tambémparaosamigos amais desejável de todas as coisas é o convívio?Porque a amizade éumaparceria,etaléumhomemparasimesmo,taléparaoseuamigo;ora,paraele a consciência do seu ser é desejável, e também o é, por conseguinte, aconsciênciadoserdeseuamigo;eessaconsciência torna-seativaquandoelesconvivem.Porisso,énaturalquebusquemoconvívio.

E daquilo que a existência significa para cada classe de homens, daquilo que,para eles, dá valor à vida, dissomesmo desejam ocupar-se em companhia deseus amigos. Por isso alguns bebem juntos, outros jogamdados juntos, outrosassociam-se nos exercícios atléticos, na caça ou no estudo da filosofia, cadaclassedehomenspassandoosdiasentregue,emmútuacompanhia,àsocupaçõesque mais ama na vida; porque, visto como desejam viver com seus amigos,fazem e compartilham aquelas coisas que lhes dão o sentimento de viveremjuntos.Eassimaamizadedosmausmostraserumapéssimacoisa(porque,emrazãodasua instabilidade,coligam-seemocupaçõesmás,alémdepiorarcadaum pelo fato de se tornar semelhante aos outros), enquanto a amizade doshomensbonséboaporquecrescecomocompanheirismo.Epensa-sequeelessetornam tambémmelhoresgraças às suas atividades e àboa influênciaqueunstêm sobre os outros; pois cada um recebe dos demais o modelo dascaracterísticasqueaprova—edaíafrase:"(aprender)açõesnobresdehomensnobres”.

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Basta,pois,quantoàamizade.Nossapróximatarefaserádiscutiroprazer.

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LIVROX

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Depoisdestesassuntosdevemostalvezpassaràdiscussãodoprazer.Comefeito,julga-sequeeleestá intimamenterelacionadocomanossanaturezahumana,eporessarazão,aoeducarosjovens,nósosgovernamoscomoslemesdoprazere da dor. E também se pensa que comprazer-se com as coisas apropriadas edetestarasquesedevetemamaiorinfluênciapossívelsobreocarátervirtuoso.Porqueessascoisasnosacompanhamduranteavidainteira,comumpesoeumpoderprópriostantonoquetocaàvirtudecomoàvidafeliz,jáqueoshomensescolhem o que é agradável e evitam o que é doloroso; e são elas, segundoparece,asquemenosconviriaomitiremnossainvestigação,especialmenteporseremobjetodemuitascontrovérsias.

Alguns,comefeito,dizemqueoprazeréobem,enquantooutrosafirmam,pelocontrário,queeleéabsolutamentemau—uns,semdúvida,naconvicçãodequeessa é a verdade, e outros julgando que terá melhor efeito em nossa vidadenunciaroprazercomocoisamá,aindaqueelenãooseja.Porquantoamaioriadaspessoas(pensameles)se inclinamparaoprazeresãosuasescravas,eporissodeveriamserconduzidasnadireçãocontrária,afimdealcançaremoestadointermediário.

Mas isso, seguramente,nãoé correto.Comefeito,os argumentosem tornodesentimentoseaçõesmerecemmenosconfiançadoqueosfatoseassimquandoentramemconflitocomosfatosdapercepção,elessãodesprezados,aomesmotempoquedesacreditamaprópriaverdade:seumhomemquedifamaoprazerésurpreendido uma vez a buscá-lo, isso parece provar que ele merece serpreferido a todas as coisas, porque a maioria das pessoas não sabe fazerdistinções.

Osargumentosverdadeirosafiguram-se,pois,extremamenteúteis,nãosóparaaciênciamasparaaprópriavida;porque,comoseharmonizamcomosfatos,nóslhes damos crédito, e destarte estimulam os que os compreendem a viver deacordocomeles.

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Quantoaessasquestões,basta.Passemosagoraemrevistaasopiniõesquetêmsidoexpressasarespeitodoprazer.

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Eudoxopensavaqueoprazeréobemporqueviatodososseres,tantoracionaiscomoirracionais,tenderparaele,eporqueemtodasascoisasaquiloparaquesedirigeaescolhaéexcelente,eomaisvisadopelaescolhaéomaiordosbens.Eassim,ofatodetodasascoisassemoveremparaomesmoobjetoindicavaqueparatodaseraesseomaiordosbens(porquecadacoisa,argumentavaEudoxo,encontra o seu bem próprio, da mesma forma que encontra o seu alimentoadequado);eaquiloqueébomparatodasascoisaseaquetodaselasvisaméobemporexcelência.

Seusargumentos foramaceitosnão tantopor simesmoscomopelaexcelênciadoseucaráter.Passavaporserumhomemdenotávelautodomínio,eporissosejulgavaqueelenãoafirmassetaiscoisascomoamigodoprazer,masporqueessaera a verdade. Acreditava Eudoxo quê um estudo do contrário do prazer nãoconduziacommenosevidênciaàmesmaconclusão:assimcomoadoréemsimesmaumobjetodeaversãoparatodasascoisas,oseucontráriodeveserumobjeto de preferência.Ora, omais genuíno objeto de preferência é aquilo queescolhemosporsimesmoenãoporcausadeoutracoisaoucomvistasnela;eoprazer é reconhecidamente dessa natureza, pois que ninguém indaga com quefimosente, implicandodestartequeeleéemsimesmoumobjetodeescolha.Alémdisso,Eudoxoargumentavaqueoprazer,quandoacrescentadoaumbemqualquer,como,porexemplo,àaçãojustaoutemperante,otornamaisdignodeescolha,equeobemsópodeseracrescidoporsimesmo.

Esteargumentoparecemostrarqueeleéumdosbens,masquenãooémaisdoque outro qualquer; pois qualquer bem é mais digno de escolha quandoacompanhadodeoutrodoquequandosozinho.EémesmoporumargumentodestaespéciequePlatãodemonstranãoserobemoprazer.Dizelequeavidaaprazívelémaisdesejávelquandoacompanhadadesabedoriadoquesemela,eque,seamisturaémelhor,oprazernãoéobem;porqueobemnãopodetornar-semaisdesejávelpela adiçãodoquequerque seja.Ora, é claroquenão sóoprazer,masnenhumaoutracoisapodeserobemseaadiçãodeumadascoisasque sãoboas em simesmas a tornamaisdesejável.Que é, então, que satisfaz

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estecritério, eemque, aomesmo tempo,podemosparticipar?Éalgumacoisadessaespéciequeestamosprocurando.

Há quem objete a isso dizendo que o fim visado por todas as coisas não énecessariamentebom,maspodemosestarcertosdequetaispessoasnãofazemmaisdoquedisparatar.Porquantonósdizemosqueaquiloquetodospensaméaverdade;eohomemqueatacaressacrençanão teráoutracoisamaisdignadecrédito para sustentar em lugar dela. Se fossem criaturas irracionais quedesejassem as coisas de que falamos, talvez houvesse alguma verdade no queelesdizem:mas,seseresinteligentestambémasdesejam,quesentidopodetertal opinião?Semembargo, talvezmesmonas criaturas inferiores exista algumbem natural mais forte do que elas e que a; oriente para o bem que lhes épróprio.

TampoucoparececorretooargumentosobreocontráriodoprazerDizemque,seadoréummal,nãoseseguedaíqueoprazersejaumbem:porqueummalseopõeaoutrocambosaomesmotemposeopõemaoestadoneutro.Ora, istoébastantecerto,masnãoseaplicaàscoisasdequeestamostratando.Porque,setantaoprazer comoadorpertencessem i classedosmales, ambosdeviamserobjetos de aversão, ao passo que se pertencessem à classe das coisas neutras,nenhumseriaobjetodeaversãoouambososeriamemigualgrau.Masaverdadeevidenteéqueoshomemevitamumacomoummaleescolhemooutrocomoumbem.Essadeveser,portanto,anaturezadaoposiçãoentreosdois.

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E,poroutrolado,seoprazernãoéumaqualidade,tambémnãoseconcluidaíqueelenãosejaumbem;porquetampoucosãoqualidadesaatividadevirtuosa,nem a felicidade. Dizem, no entanto, que o bem é determinado, enquanto oprazer é indeterminado, visto admitir graus. Ora, se é pela observação dosentimentodeprazerquepensamassim,omesmoseráverdadeiroda justiçaedasoutrasvirtudes,no tocanteàsquaisdizemossemhesitarqueaspessoasdecerto carátero sãomaisoumenoseprocedemmaisoumenosde acordocomessas virtudes; porquanto uma pessoa pode ser mais ou menos corajosa, etambémépossívelagirdemaneiramaisoumenosjustaoutemperante.Mas,seojuízodessespensadoressebaseianosdiversosprazeres,seguramenteelesnãoestão apontando a causa verdadeira, se de fato alguns prazeres são estremes e

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outros, mesclados. E, por outro lado, se a saúde admite graus sem serindeterminada, por que não sucederia o mesmo com o prazer? A mesmaproporçãonãoéencontradaemtodasascoisas,nemumadeterminadaproporçãosempre namesma coisa: pode ela afrouxar e, sem embargo, persistir até certoponto; e pode também diferir em grau. Por conseguinte, o caso do prazertambémpodeserdessaespécie.

Poroutrolado,elesalegamqueobeméperfeito,aopassoqueomovimentoeasgerações são imperfeitos, eprocurammostrarqueoprazeréummovimentoeuma geração.Mas nemmesmo isso parece ser verdade. Com efeito, pensa-sequearapidezealentidãosãocaracterísticasdetodoequalquermovimento,eseummovimento comoodos céus não tem rapidez nem lentidão em simesmo,tem-nas em relação a outra coisa; mas do prazer nada disso é verdadeiro.Porquanto, se é certo que podemos comprazer-nos depressa assim comopodemosencolerizar-nosdepressa,nãoépossívelsentirprazerdepressa,emborasepossaandar,crescer,etc., rapidamente.Emoutraspalavras:podemospassardepressaoulentamenteaumestadodeprazer,porémnãomostrarrapidamenteaatividadedoprazer,istoé,sentirprazer.

Aindamais:emquesentidopodeeleserumageração?Nãosecrêqueumacoisaqualquerpossaprovir deoutra coisaqualquer,masqueumacoisa se encontracomo que dissolvida naquela de que provém; e a dor seria a destruição dessacoisacujageraçãoseriaoprazer.

Dizem,também,queadoréaausênciadaquiloqueéconformeànatureza,equeo prazer é o preenchimento dessa falta.Mas tais sensações são corporais. Se,pois,oprazeréopreenchimentodaquiloqueestádeacordocomanatureza,oquesenteprazerseráaquiloemqueocorreopreenchimentodafalta,asaber,ocorpo. Mas não se acredita que seja assim; portanto, o preenchimento não éprazer, embora possamos sentir prazer quando ele ocorre, assim comosentiríamosdoraoseroperados.

Estadoutrinaparecebasear-senasdoreseprazeresassociadosànutrição,enofatodequeaspessoasquepreviamentesofrerammínguadealimentoseestalhesfoidolorosasentemprazeraoserpreenchidaafalta.Masissonãoacontececomtodososprazeres:osprazeresdoaprendere,entreosquenosproporcionamossentidos, os do olfato, e também muitos sons e sensações visuais, além dasrecordaçõesedasesperanças,nãopressupõemdor.Deonde,pois, segerariamestes?Nãohavia,noseucaso,nenhumafaltaapreencher.

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Emrespostaaosqueargumentamcomosprazeresvergonhosos,podemosdizerqueessesnãosãoagradáveis.Pelofatodecertascoisasagradaremapessoasdeconstituição viciosa, não devemos supor que elas também sejam agradáveis aoutros,assimcomonãoraciocinamosdessaformaarespeitodascoisasquesãosaudáveis,docesouamargasparaosdoentes,nematribuímosabrancuraàsqueparecembrancasaosquesofremdosolhos.Ou,então,poder-se-iaresponderqueosprazeressãodesejáveis,porémnãoosprovindosdessasfontes,assimcomoariquezaédesejável,porémnãocomorecompensadatraição,ecomoasaúdenãoo é à custa de comer toda e qualquer coisa.Ou talvez os prazeres difiramemespécie, pois os que provêm de fontes nobres são diferentes daqueles cujasfontessãovis,enãosepodesentiroprazerdohomemjustosemserjusto,nemosprazeresdomúsicosemsermúsico,eassimpordiante.

Etambémofatodeumamigoserdiferentedeumaduladorparecemostrarcomtoda a evidência que o prazer não é um bem ou que os prazeres diferem emespécie;porqueseacreditaqueumbuscaonossoconvíviocomamiranobemeooutrovisandoaonossoprazer,eumécensuradopelasuaconduta,enquantoooutro é louvado, partindo-se do princípio de que os dois buscam o nossoconvíviocomfinalidadesdiferentes.Alémdisso,ninguémprefeririaviveravidainteiracomointelectodeumacriança,pormaisprazerquelheproporcionassemas coisas que agradamàs crianças, nemcomprazer-se na prática de algumatoprofundamente vergonhoso, ainda que jamais tivesse de sofrer emconsequência.

Poroutrolado,hámuitascoisasquedevemosdesejarcomtodasasveras,aindaquenãonostragamnenhumprazer,comoavista,amemória,aciência,apossedas virtudes. Não faz diferença que essas coisas sejam necessariamenteacompanhadas de prazer: deveríamos escolhê-las mesmo que nenhum prazerresultassedaí.

Parececlaro,portanto,quenemoprazeréobem,nemtodoprazerédesejável,equealgunsprazeressãorealmentedesejáveisporsimesmos,diferindoelesdosoutros em espécie ou quanto às suas fontes. Quanto às opiniões correntes arespeitodoprazeredador,ésuficienteoquedissemos.

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Ver-se-ácommaisclarezaoquesejaoprazer,ouqueespéciedecoisaseja,setornarmosaexaminaraquestãopartindodocomeço.

Asensaçãovisualparecesercompletaemtodososmomentos,poisnãolhefaltanada que, surgindo posteriormente, venha completar-lhe a forma; e o prazertambémpareceserdessanatureza.Porqueeleéumtodo,e jamaisseencontraum prazer cuja forma seja completada pelo seu prolongamento. Pela mesmarazão, não é ele um movimento, pois todo movimento (o de construir, porexemplo) requer tempo, faz-se com vistas num fim, e fica completo quandorealizouacoisavisada.Sóficacompleto,porconseguinte,quandoseencaraotemponasuatotalidadeounomomentofinal.Emsuasparteseduranteotempoqueestasocupam,todososmovimentossãoincompletosediferememespéciedomovimento inteiro e uns dos outros.Com efeito, o ajustamento das pedrasumas às outras difere das estrias da coluna, e ambas as coisas diferem daconstrução do templo. E a construção é completa (pois nada lhe falta comrelação ao fim que se tinha em vista), mas o preparo da base e do tríglifo éincompleto,porseraproduçãodeumaparteapenas.Diferemeles,portanto,emespécie, e em nenhum momento dado é possível encontrar um movimentocompletoquantoàforma,massónotempoencaradoemsuatotalidade.

Omesmo se pode dizer no tocante ao andar e a todos os outrosmovimentos.Porque,sealocomoçãoéummovimentodeumlugarparaoutro,tambémnelaexistem diferenças de espécie— voar, caminhar, saltar, etc. E não é só isso,senãoquenoprópriocaminharexistemdiferençasdeespécie;porqueo"donde"eo"paraonde"nãosãoosmesmosnapistadecorridasconsideradacomoumtodo e em cada uma de suas partes, nem nas diversas partes; e tampouco é amesmacoisapercorrerestalinhaeaquela,poisoquesepercorrenãoéapenasumalinha,masumalinhaqueseencontraemdeterminadolugar,eolugardestaédiferentedolugardaquela.

Emoutraobradiscutimosomovimentocomprecisão,masparecequeelenãoécompleto em todo e qualquer momento, e os numerosos movimentos sãoincompletosediferentesemespécie,jáqueo"donde"eo"paraonde"dãoacadaumasuaformaprópria.Masquantoaoprazer,suaformaécompletaemtodoequalquermomento.Éevidente,pois,queoprazereomovimentodiferemumdooutro, e o prazer deve ser uma das coisas que são inteiras e completas. Issotambém é indicado pelo fato de não ser possível mover-se senão dentro dotempo,massentirprazer,sim;porquantoaquiloqueocorrenummomentoéumtodo.

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Estas consideraçõesdeixambemclaro,pois, quenão têm razãoospensadoressegundo os quais há um movimento ou uma geração de prazer, pois quemovimentoegeraçãonãopodemseratribuídosatodasascoisas,masapenasàsquesãodivisíveisenãoconstituem"todos".Nãohágeraçãodasensaçãovisual,nem de um ponto, nem de uma unidade, nem qualquer destas coisas é ummovimento ou uma geração. Logo, tampouco há movimento ou geração noprazer,vistoqueeleéumtodo.

Jáquecadasentidoéativoemrelaçãoaoseuobjeto,eumsentidoemcondiçõesde higidez age de maneira perfeita em relação aos mais belos dentre os seusobjetos(poisoidealdaatividadeperfeitapareceserdestanatureza,etantofazdizer que ela própria é ativa como o órgão em que reside), segue-se que, notocanteacadasentido,amelhoratividadeéadoórgãoemmelhorescondiçõescomrelaçãoaosmaisbelosdeseusobjetos.

E essa atividade será a mais completa e a mais aprazível, porque, existindoembora prazer para cada sentido, e não menos para o pensamento e acontemplação, omais completo é omais aprazível, e o de umórgão emboascondiçõescomrelaçãoaosmaisnobresdeseusobjetoséomaiscompleto;eoprazercompletaaatividade.

Entretanto,elenãoacompletadamesmamaneiraqueacombinaçãodeobjetoesentido,ambosbons,assimcomoasaúdeeomédiconãosãonamesmaacepçãoascausasdeumhomemser sadio. (Éevidentequeoprazerpodeacompanharqualquersentido,poisfalamosdeespetáculosedesonscomosendoagradáveis.Nãomenosevidenteéqueeleéexperimentadoacimadetudoquandoosentidoseencontranasmelhorescondiçõeseematividadecomreferênciaaumobjetoapropriado;quandotantoopercipientecomooobjetosãoosmelhorespossíveis,haverásempreprazer,porestarempresentesoagenteeopacienterequeridos.)Oprazer completa a atividade, não como o faz o estado permanente que lhecorresponde,pela imanência,mascomoumfimquesobrevémcomooviçodajuventudeparaosqueseencontramnaflordaidade.Namedida,pois,emquetanto o objeto inteligível ou sensível como a faculdade discriminadora oucontemplativa forem tais como convém, a atividade será acompanhada deprazer;poisquandoofatorativoeopassivosemantêminalteradoseguardamamesmarelaçãoumparacomooutro,omesmoresultadosegue-senaturalmente.

Comoexplicar,então,queninguémestejasemprecontente?Dar-se-áocasodequenosenfastiemos?Averdadeéquetodosossereshumanossãoincapazesde

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umaatividadecontínua,eessaéarazãodenãosercontínuotambémoprazer,pois ele acompanhaa atividade.Certas coisasnosdeleitamquando sãonovas,porémmenosquandodeixamdesê-lo,eporessemesmomotivo:aprincípioamente é estimulada e desenvolve intensa atividade em relação a elas, comofazemoscomosentidodavistaquandoolhamosalgumacoisacomatenção.Masdepoisanossaatividadeserelaxa,eporissotambémoprazeréembotado.

Dir-se-iaquetodososhomensdesejamoprazerporquetodosaspiramàvida.Avidaéumaatividade,ecadauméativoemrelaçãoàscoisasecomasfaculdadesquemais ama: por exemplo, omúsico é ativo como ouvido em referência àsmelodias, o estudioso com o intelecto em referência a questões teóricas, e damesmaformanosoutroscasos.Ora,oprazercompletaasatividades,eportantoa vida que eles desejam. Émuito justo, pois, que aspirem também ao prazer,vistoqueparacadaumestecompletaavidaquelheédesejável.Masquantoasaberseescolhemosavidacomvistasnoprazerouoprazercomvistasnavida,éumaquestãoquepodemosdeixardeparteporora.Comefeito,osdoisparecemestarintimamenteligadosentresienãoadmitirseparação,jáquesematividadenãosurgeoprazer,ecadaatividadeécompletadapeloprazerqueaacompanha.

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Por esta razão, também os prazeres parecem diferir em espécie. Porquanto ascoisas que diferem em espécie são, pensamos nós, completadas por coisasdiferentes (vemos que isto é verdadeiro tanto dos objetos naturais como dascoisascriadaspelaarte:animais, árvores,umapintura,umaestátua,umacasa,um utensílio); e pensamos, da mesma forma, que atividades diferentes emespéciesãocompletadasporcoisasdiferentesemespécie.Ora,asatividadesdopensamentodiferememespéciedasdossentidos,edentrodecadaumadessasclasses existem, por sua vez, diferenças específicas; logo, os prazeres que ascompletamtambémdiferemdomesmomodoentresi.

Istoéconfirmadopelofatodeestarcadaprazerestreitamenteligadoàatividadequeelecompleta.Comefeito,cadaatividadeéintensificadapeloprazerquelheépróprio,vistoquecadaclassedecoisasémaisbemjulgadaelevadaàprecisãopor aqueles que se entregam com prazer à correspondente atividade: porexemplo, são os que se comprazem no raciocínio geométrico que se tornamgeômetrasecompreendemmelhorosdiversosteoremas,eanalogamenteosque

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gostamdemúsica,dearquitetura,etc.,fazemprogressosnosrespectivoscamposporquesecomprazemneles.Eassimosprazeresintensificamasatividades,eoqueintensificaumacoisalheécongênere,mascoisasdiferentesemespécietêmpropriedadesdiferentesemespécie.

Mais evidente se torna isto quando consideramos que as atividades sãoimpedidaspelosprazeresprovenientesdeoutrasfontes.Comefeito,aspessoasquegostamdetocarflautasãoincapazesdeacompanharumargumentoquandoouvemumflautista,porquantoosomdesseinstrumentolhesdámaisprazerdoque a outra atividade; e assim, o prazer que acompanha a música anula aatividaderaciocinativa.Issoacontecedamesmaformaemtodososoutroscasos,quando estamos ativos em relação a duas coisas simultaneamente; a atividademaisaprazíveldesalojaaoutra,e isso tantomaisquantomaisaprazívelfor,detal modo que chegamos a abandonar a outra. É por isso que quando nosdeleitamos extraordinariamente com alguma coisa não nos dedicamos a nadamais,efazemosumacoisasóquandoaoutranãonoscausagrandeprazer:porexemplo, no teatro as pessoas que gostam de doces os comem em maiorquantidadequandoosatoressãomedíocres.Ora,comoasatividadessetornammais precisas, mais duradouras e melhores por efeito do prazer que lhes épróprio e sãoprejudicadaspelosprazeres estranhos, é evidenteque essasduasespécies de prazer são bem distintas uma da outra. Porquanto os prazeresestranhos têmmaisoumenosomesmoefeitoqueasdorespróprias,vistoqueestas também destroem as atividades correspondentes: por exemplo, se umhomemachadesagradáveloupenosoescreveroufazercontas,elenãoescrevenemfazcontas,porqueaatividadelheépenosa.

Destarte, uma atividade sofre efeitos contrários por parte de seus prazeres edores próprios, isto é, daqueles que sobrevêm em virtude de sua próprianatureza. E dissemos que os prazeres estranhos têmmais oumenos omesmoefeitoqueador:elestambémdestroemaatividade,sóquenãonomesmograu.

Ora, assimcomoas atividadesdiferemcom respeito àbondadeoumaldade, eumas são dignas de escolha, outras devem ser evitadas e outras ainda sãoneutras,omesmosucedecomosprazeres,poiscadaatividadetemoseuprazerpróprio. O prazer próprio a uma atividade digna é bom, e o próprio a umaatividade indigna é mau, assim como os apetites que têm objetos nobres sãolouváveis e os que têm objetos vis são culpáveis. Mas os prazeres queacompanhamasatividadessãomaisprópriosdestasdoqueosdesejos,poisossegundosestãoseparadosdelastantopelotempocomopelanatureza,enquanto

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osprimeirosestãointimamenteunidosàsatividadeseétãodifícildistinguirosprimeirosdassegundasquesepoderiaatédiscutirahipótesedeseraatividadeamesmacoisaqueoprazer.(Noentanto,oprazernãopareceseropensamentooua percepção. Isso seria estranho; mas, como nunca andam um sem o outro,algunsjulgamquesejamamesmacoisa).

Assim,pois, comodiferementre si as atividades, tambémdiferemosprazerescorrespondentes.Ora,avistaésuperioraotatoempureza,eoouvidoeoolfatoaogosto;portanto,osprazerescorrespondentestambémsãosuperiores,eosdopensamentoestãoacimadetodosestes.Edentrodecadaumadasduasespéciesalgunssãosuperioresaoutros.

Pensa-sequecadaanimal temumprazerpróprio,assimcomotemumafunçãoprópria,asaber,oquecorrespondeàsuaatividade.Istosetornaevidentequandoobservamos as espécies uma por uma. Cão, cavalo e homem têm prazeresdiferentese,comodizHeráclito, "osasnosprefeririamasvarredurasaoouro";porqueoalimentoémaisagradáveldoqueoouroparaeles.

Destarte, os prazeres dos animais diferentes em espécie também diferemespecificamente, e éde suporqueosdeumadeterminada espécienãodifiramentresi.Masvariamemnãopequenograu,pelomenosnocasodoshomens;asmesmascoisasdeleitamalgumaspessoasecausamdoraoutras,esãopenosaseodiosasaestes,masagradáveiseestimáveisàqueles.Issotambémsucedecomascoisasdoces:asmesmascoisasnãoparecemdocesaumfebricitanteeaumhomemcomsaúde—nemquentesaumhomemfracoeaumhomemrobusto.Omesmo se dá em outros casos. Mas em todas as coisas, o que parece a umhomemboméconsideradocomosendorealmentetal.Seistoécorretocomoseafigura ser, e a virtude e o homem bom como tais são amedida de todas ascoisas,serãoverdadeirosprazeresosquelhepareceremtais,everdadeiramenteagradáveisascoisasemqueelesedeleitar.Seascoisasqueeleachaenfadonhasparecem agradáveis a outros, não há nada de surpreendente nisso, pois oshomenspodemserpervertidoseestragadosdemuitosmodos;etaiscoisasnãosãorealmenteagradáveis,massóosãoparaessaspessoaseoutrasnasmesmascondições. Das que reconhecidamente são vergonhosas, evidentemente não sedeveriadizerquesãoprazeres,salvoparaumgostopervertido;masdasquesãoconsideradas boas, que espécie de prazer ou que prazer particular deveríamosdizerquesãoprópriosdohomem?Arespostanãoéclarapelaconsideraçãodascorrespondentes atividades? O prazeres seguem a estas. Quer, pois, o homemperfeito e supramente feliz tenha uma, quer mais atividades, diremos que os

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prazeresquecompletamessasatividadessão,strictosensu,osprazeresprópriosdohomem;eo restosóoserádemaneirasecundáriaeparcial,comoosãoasatividades.

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Agora que terminamos de falar das virtudes, das formas de amizade e dasvariedades de prazer, resta discutir em linhas gerais a natureza da felicidade,vistoafirmarmosqueelaéofimdanaturezahumana.Nossadiscussãoserámaisconcisasecomeçarmosporsumariaroquedissemosanteriormente.

Dissemos, pois, que ela não é uma disposição; porque, se o fosse, poderiapertenceraquempassasseavidainteiradormindoevivessecomoumvegetal,ou,também,aquemsofresseosmaioresinfortúnios.Seestasconsequênciassãoinaceitáveisedevemosantesclassificarafelicidadecomoumaatividade,comodissemosatrás,esealgumasatividadessãonecessáriasedesejáveiscomvistasemoutracoisa,enquantooutrasosãoemsimesmas,éevidentequeafelicidadedeveserincluídaentreasdesejáveisemsimesmas,enãoentreasqueosãocomvistasemalgomais.Porqueà felicidadenada falta: elaéautossuficiente.Ora,são desejáveis em simesmas aquelas atividades emque nadamais se procuraalémdaprópriaatividade.Epensa-sequeasaçõesvirtuosassãodestanatureza,porquantopraticaratosnobresebonséalgodesejávelemsimesmo.

Tambémseacreditaqueasrecreaçõesagradáveissejamdessanatureza.Nãoasescolhemos tendoemvistaoutracoisa,umavezqueantessomosprejudicadosdo que beneficiados por elas: tais atividades nos levam a negligenciar nossoscorpos e nossos bensmateriais.Mas amaioria das pessoas que consideramosfelizes buscam refúgio nesses passatempos, e por isso as pessoas hábeis emproporcioná-los são altamente estimadas nas cortes dos tiranos. Tornam-seagradáveiscompanheirosnasocupaçõesfavoritasdotirano,eessaéaespéciedehomemqueeleprecisateraoseulado.

Ora,acredita-sequeessascoisasparticipemdanaturezadafelicidadeporqueosdéspotas entretêm com elas os seus lazeres,mas talvez essa espécie, de gentenão prove nada; porque a virtude e a razão, das quais decorrem as boasatividades, não dependem da posição despótica; nem os prazeres do corpodeveriam ser considerados mais desejáveis porque neles se refugiam tais

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pessoas, que nunca experimentaramumprazer puro e generoso; e osmeninostambém julgamque as coisasque elesprópriosprezam são asmelhores.Édecrer,pois,queassimcomodiferentescoisasparecemvaliosasaosmeninoseaoshomens feitos, também se dê omesmo comos homensmaus e os bons.Ora,como muitas vezes sustentamos, realmente valiosas e aprazíveis são aquelascoisas que são tais para o homem bom; e para cada homem a atividade queconcordacomasuadisposiçãodecaráteréamaisdesejável,demodoqueparaohomembomsãoessasasqueconcordamcomavirtude.

Afelicidadenãoreside,porconseguinte,narecreação;eseriamesmoestranhoque a recreação fosseo fim, e umhomemdevessepassar trabalhos e suportaragruras durante a vida inteira simplesmente para divertir-se. Porque, numapalavra,tudoqueescolhemos,escolhemo-locomamiraemoutracoisa—salvoa felicidade, que é um fim em si. Ora, esforçar-se e trabalhar com vistas narecreaçãoparececoisa tolae absolutamente infantil.Masdivertir-nosa fimdepoder esforçar-nos, como se expressa Anacársis, parece certo; porque odivertimento é uma espécie de relaxação, e necessitamos de relaxação porquenãopodemostrabalharconstantemente.Arelaxação,porconseguinte,nãoéumfim,poisnósacultivamoscomvistasnaatividade.

Pensa-sequeavidafelizévirtuosa.Ora,umavidavirtuosaexigeesforçoenãoconsisteemdivertimento.Edizemosqueascoisassériassãomelhoresdoqueasrisíveiseasrelacionadascomodivertimento,equeaatividadedamelhorentreduascoisas—quersetratededoiselementosdonossoser,querdeduaspessoas—é amais séria.Mas a atividadenamelhor é ipso facto superior e participamais da natureza da felicidade.Alémdoque, umapessoaqualquer—até umescravo—podefruirosprazeresdocorponãomenosqueomelhordoshomens,mas ninguém considera o escravo partícipe da felicidade — a não ser quetambém o considere partícipe da vida humana. Com efeito, a felicidade nãoresideemtaisocupações,mas,comojádissemos,nasatividadesvirtuosas.

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Se a felicidade é atividade conforme à virtude, será razoável que ela estejatambémemconcordânciacomamaisaltavirtude;eessaseráadoqueexistedemelhoremnós.Quer seja a razão,quer algumaoutracoisaesseelementoquejulgamos ser o nosso dirigente e guia natural, tornando a seu cargo as coisas

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nobres e divinas, e quer seja elemesmo divino, quer apenas o elementomaisdivinoqueexisteemnós,suaatividadeconformeàvirtudequelheéprópriaseráa perfeita felicidade. Que essa atividade é contemplativa, já o dissemosanteriormente.

Ora, isto parece estar de acordo não só como quemuitas vezes asseveramos,mastambémcomaprópriaverdade.Porque,emprimeirolugar,essaatividadeéa melhor (pois não só é a razão a melhor coisa que existe em nós, como osobjetosdarazãosãoosmelhoresdentreosobjetoscognoscíveis);e,emsegundolugar, é a mais contínua, já que a contemplação da verdade pode ser maiscontínuadoquequalqueroutraatividade.Epensamosqueafelicidadetemumamisturadeprazer,masaatividadedasabedoriafilosóficaéreconhecidamenteamaisaprazíveldasatividadesvirtuosas;pelomenos, julga-sequeoseucultivoofereceprazeresmaravilhosospelapurezaepeladurabilidade,eédesuporqueos que sabem passem o seu tempo demaneira mais aprazível do que os queindagam.

Alémdisso,aautossuficiênciadequefalamosdevepertencerprincipalmenteàatividade contemplativa. Porque, embora um filósofo, assim comoumhomemjustoouoquepossuiqualqueroutravirtude,necessitedascoisasindispensáveisà vida, quando está suficientemente providode coisas dessa espécie o homemjustoprecisatercomquemeparacomquemagirjustamente,eotemperante,ocorajoso e cada um dos outros se encontram nomesmo caso;mas o filósofo,mesmo quando sozinho, pode contemplar a verdade, e tanto melhor o faráquantomaissábiofor.Talvezpossafazê-lomelhorse tivercolaboradores,masaindaassiméeleomaisautossuficientedetodos.

Eessaatividadepareceseraúnicaqueéamadaporsimesma,poisdelanadadecorre além da própria contemplação, ao passo que das atividades práticassempretiramosmaioroumenorproveito,àpartedaação.

Além disso, pensa-se que a felicidade depende dos lazeres; porquantotrabalhamosparapodertermomentosdeócio,efazemosguerraparapoderviverempaz.Ora,aatividadedasvirtudespráticasexerce-senosassuntospolíticosoumilitares,masasaçõesrelativasaessesassuntosnãoparecemencerrarlazeres.Principalmente as ações guerreiras, pois ninguém escolhe fazer guerra, nemtampoucoaprovoca,pelogostodeestaremguerra;eumhomemteriaatemperadomaior dos assassinos se convertesse os seus amigos em inimigos a fim deprovocar batalhas e matanças. Mas a ação do estadista também não encerra

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lazeres, e—alémdaaçãopolíticaemsimesma—visaaopodereàshonrasdespóticas, ou pelo menos à felicidade para ele próprio e para os seusconcidadãos — uma felicidade diferente da ação política, e evidentementebuscadacomosendodiferente.

Portanto, se entre as ações virtuosas as de índole militar ou política sedistinguempelanobrezaepelagrandeza,eestasnãoencerramlazeres,visamaumfimdiferenteenão sãodesejáveispor simesmas, enquantoa atividadedarazão, que é contemplativa, tanto parece ser superior e mais valiosa pela suaseriedadecomonãovisaranenhumfimalémdesimesmaepossuiroseuprazerpróprio (o qual, por sua vez, intensifica a atividade), e a autossuficiência, oslazeres, a isenção de fadiga (namedida em que isso é possível ao homem), etodasasdemaisqualidadesquesãoatribuídasaohomemsumamentefelizsão,evidentemente,asqueserelacionamcomessaatividade,segue-sequeessaseráafelicidadecompletadohomem,seeletiverumaexistênciacompletaquantoàduração(poisnenhumdosatributosdafelicidadeéincompleto).

Mastalvidaéinacessívelaohomem,poisnãoseránamedidaemqueéhomemqueeleviveráassim,masnamedidaemquepossuiemsialgodedivino;etantoquantoesseelementoé superiorànossanaturezacomposta,oé tambémasuaatividadeaoexercíciodaoutraespéciedevirtude.

Se,portanto,arazãoédivinaemcomparaçãocomohomem,avidaconformeàrazãoédivinaemcomparaçãocomavidahumana.Masnãodevemosseguirosquenosaconselhamaocupar-noscomcoisashumanas,vistoquesomoshomens,ecomcoisasmortais,vistoquesomosmortais;mas,namedidaemqueissoforpossível,procuremostornar-nosimortaiseenvidartodososesforçosparaviverde acordo com o que há de melhor em nós; porque, ainda que seja pequenoquantoaolugarqueocupa,superaatudoomaispelopoderepelovalor.

Edir-se-ia,também,queesseelementoéoprópriohomem,jáqueéasuapartedominanteeamelhordentreasqueocompõem.Seriaestranho,pois,quenãoescolhesseavidadoseupróprioser,masadeoutracoisa.Eoquedissemosatrástemaplicaçãoaqui:oqueéprópriodecadacoisaé,pornatureza,oquehádemelhoredeaprazívelparaela;eassim,paraohomemavidaconformeàrazãoéamelhoreamaisaprazível, jáquearazão,maisquequalqueroutracoisa,êohomem.Dondeseconcluiqueessavidaétambémamaisfeliz.

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Mas, em grau secundário, a vida de acordo com a outra espécie de virtude éfeliz, porque as atividades que concordam com esta condizem com a nossacondiçãohumana.Osatoscorajosose justos,bemcomooutrosatosvirtuosos,nós os praticamos em relação uns aos outros, observando nossos respectivosdeveresnotocanteacontratos,serviçosetodasortedeações,bemassimcomoàspaixões;etodasessascoisasparecemsertipicamentehumanas.Dir-se-iaatéquealgumasdelasprovêmdoprópriocorpoequeocarátervirtuososeprendepormuitoslaçosàspaixões.

A sabedoria prática também está ligada ao caráter virtuoso e este à sabedoriaprática,jáqueosprincípiosdetalsabedoriaconcordamcomasvirtudesmoraisearetidãomoralconcordacomela.

Ligadasquesãotambémàspaixões,asvirtudesmoraisdevempertencerànossanatureza composta.Ora, tais virtudes são humanas; por conseguinte, humanassãotambémavidaeafelicidadequelhescorrespondem.Aexcelênciadarazãoéuma coisa à parte. Dela devemos contentar-nos em dizer isto, porquantodescrevê-la comprecisão é tarefamaior do que exige o nosso propósito. Semembargo,elatambémparecenecessitardebensexteriores,porémpouco,ou,emtodocaso,menosdoquenecessitamasvirtudesmorais.

Admitamos que ambas necessitem de tais coisas em grau igual, embora otrabalho do estadista se ocupe mais com o corpo e coisas que tais, porque adiferença quanto a isso será pequena; mas naquilo de que precisam para oexercíciodesuasatividadeshaverágrandediferença.Ohomemliberalnecessitadedinheiroparaapráticadeseusatosde liberalidadeeohomemjustoparaaretribuiçãodeserviços(poisédifícilenxergarclaronosdesejos,emesmoosquenão são justos aparentam o desejo de agir com justiça); e o homem corajosonecessita de poder para realizar qualquer dos atos que correspondem à suavirtude, e o temperante necessita de oportunidade: pois de que outro modopoderíamosreconhecertantoaelecomoaqualquerdosoutros?

Tambémsediscutesobreseéavontadeouoatoqueémaisessencialàvirtude,pois supõe-se que esta envolve tanto uma como outro. E é evidente que suaperfeição envolve a ambos, mas os atos exigem muitas coisas, e tanto maisquanto maiores e mais nobres forem. O homem que contempla a verdade,porém,nãonecessitadetaiscoisas,aomenosparaoexercíciodesuaatividade;e

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pode-sedizeratéqueelaslheservemdeobstáculo,quandomaisnãosejaparaaprópria contemplação. Mas, enquanto homem que vive no meio de outroshomens, ele escolhe a prática de atos virtuosos: por conseguinte, necessitatambémdascoisasquefacilitamavidahumana.

Mas que a felicidade perfeita é uma atividade contemplativa, confirma-otambém a seguinte consideração. Admitimos que os deuses sejam, acima detodososoutrosseres,bem-aventuradosefelizes:masqueespéciedeaçõeslhesatribuiremos?Atosde justiça?Nãopareceriaabsurdoqueosdeusesfirmassemcontratos, restituíssem depósitos e outras coisas do mesmo jaez? Atos decoragem, então, arrostando perigos e expondo-se a riscos, porque é nobreproceder assim?Ou atos de liberalidade?A quem fariam eles dádivas?Muitoestranhoseriaseosdeusesrealmentetivessemdinheirooualgodessaespécie.Eemqueconsistiriamosseusatosdetemperança?Nãoseráridículolouvá-losporisso,umavezquenãotêmmausapetites?

Seasanalisássemosumaporuma,ascircunstânciasdaaçãosenosmostrariamtriviais e indignas dos deuses. Não obstante, todos supõem que eles vivem e,portanto,sãoativos;nãopodemosconcebê-losadormircomoEndimião.Ora,seaumserviventeretirarmosaação,eaindamaisaaçãoprodutiva,quelherestaráanãoseracontemplação?Porconseguinte,aatividadedeDeus,queultrapassatodasasoutraspelabem-aventurança,devesercontemplativa;edasatividadeshumanas, a quemais afinidade tem com esta é a quemais deve participar dafelicidade.

Mostra-o também o fato de não participarem os animais da felicidade,completamente privados que são de uma atividade dessa sorte. Com efeito,enquanto a vida inteira dos deuses é bem-aventurada e a dos homens o é namedidaemquepossuialgodessaatividade,nenhumdosoutrosanimaiséfeliz,uma vez que de nenhummodo participam eles da contemplação.A felicidadetem,porconseguinte,asmesmasfronteirasqueacontemplação,eosqueestãonamaisplenapossedestaúltima sãoosmaisgenuinamente felizes,nãocomosimplesconcomitantemasemvirtudedaprópriacontemplação,poisqueestaépreciosa em si mesma. E assim, a felicidade deve ser alguma forma decontemplação.

Mas o homem feliz, como homem que é, também necessita de prosperidadeexterior, porquanto a nossa natureza não basta a si mesma para os fins dacontemplação:nossocorpotambémprecisadegozarsaúde,deseralimentadoe

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cuidado.Nãosepense,todavia,queohomemparaserfeliznecessitedemuitasou de grandes coisas, só porque não pode ser supremamente feliz sem bensexteriores.Aautossuficiênciaeaaçãonãoimplicamexcesso,epodemospraticaratosnobressemsermosdonosdaterraedomar.Mesmodesfrutandovantagensbastante moderadas pode-se proceder virtuosamente (isso, aliás, é manifesto,porquanto sepensaqueumparticularpodepraticar atosdignosnãomenosdoque um déspota—mais, até). E é suficiente que tenhamos o necessário paraisso,poisavidadohomemqueagedeacordocomavirtudeseráfeliz.

Sólonnosdeu,talvez,umesboçofieldohomemfelizquandoodescreveucomomoderadamente provido de bens exteriores, mas como tendo praticado (naopinião de Sólon) as mais nobres ações, e vivido conforme os ditames datemperança.Anaxágorastambémparecesuporqueohomemfeliznãosejariconemumdéspotaquandodizquenãoseadmirariaseeleparecesseàmaioriaumapessoa estranha; pois a maioria julga pelas exterioridades, uma vez que nãopercebeoutracoisa.

E assim, as opiniões dos sábios parecem harmonizar-se com os nossosargumentos. Mas, embora essas coisas também tenham certo poder deconvencer, a verdade em assuntos práticos percebe-semelhor pela observaçãodosfatosdavida,poisestessãoofatordecisivo.Devemos,portanto,examinaroquejádissemosàluzdessesfatos,eseestiveremharmoniacomelesaceitá-lo-emos, mas se entrarem em conflito admitiremos que não passa de simplesteoria.

Ora, quem exerce e cultiva a sua razão parece desfrutar ao mesmo tempo amelhordisposiçãodeespíritoeserextremamentecaroaosdeuses.Porque,seosdeuses se interessam pelos assuntos humanos como nós pensamos, tanto serianaturalquesedeleitassemnaquiloqueémelhoremaisafinidadetemcomeles(istoé,arazão),comoquerecompensassemosqueaamamehonramacimadetodasascoisas,zelandoporaquiloquelhesécaroeconduzindo-secomjustiçaenobreza. Ora, é evidente que todos esses atributos pertencem mais que aninguémaofilósofo.Éele,porconseguinte,detodososhomensomaiscaroaosdeuses. E será, presumivelmente, também omais feliz. De sorte que tambémnestesentidoofilósofoseráomaisfelizdoshomens.

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Seestesassuntos,assimcomoavirtudeetambémaamizadeeoprazer,foramsuficientementediscutidosemlinhasgerais,devemosdarporterminadoonossoprograma?Semdúvida,comosecostumadizer,ondehácoisasquerealizarnãoalcançamos o fim depois de examinar e reconhecer cada uma delas, mas épreciso fazê-las. No tocante à virtude, pois, não basta saber, devemos tentarpossuí-laeusá-laouexperimentarqualqueroutromeioquesenosanteparedenostornarmosbons.

Ora,seosargumentosbastassememsimesmosparatornaroshomensbons,elesteriamfeitojusagrandesrecompensas,comodizTeógnis,easrecompensasnãofaltariam. Mas a verdade é que, embora pareçam ter o poder de encorajar eestimular os jovens de espírito generoso, e preparar umcaráter bem-nascido egenuinamente amigo de tudo o que é nobre para receber a virtude, eles nãoconseguemincutirnobrezaebondadenamultidão.Porquantoohomemcomumnãoobedecepornaturezaaosentimentodepudor,masunicamenteaomedo,enão se abstém de praticar más ações porque elas são vis, mas pelo temor aocastigo.Vivendopelapaixão,andamnoencalçodeseusprazeresedosmeiosdealcançá-los,evitandoasdoresquelhessãocontrárias,enemsequerfazemideiado que é nobre e verdadeiramente agradável, visto que nunca lhe sentiram ogosto.Que argumento poderia remodelar essa sorte de gente? É difícil, senãoimpossível,erradicarpeloraciocínioostraçosdecaráterqueseinveteraramnasua natureza; e talvez nos devamos contentar se, estando presentes todas asinfluênciascapazesdenosmelhorar,adquirimosalgunslaivosdevirtude.

Ora, algunspensamquenos tornamosbonspor natureza, outros pelohábito eoutrosaindapeloensino.Acontribuiçãodanaturezaevidentementenãodependedenós,mas,emresultadodecertascausasdivinas,estápresentenaquelesquesão verdadeiramente afortunados. Quanto à argumentação e ao ensino,suspeitamosdequenão tenhamumainfluênciapoderosaemtodososhomens,mas é preciso cultivar primeiro a alma do estudioso por meio de hábitos,tornando-acapazdenobresalegriasenobresaversões,comosepreparaaterraquedevenutrir a semente.Comefeito, o que se deixadirigir pela paixãonãoouviráoargumentoqueodissuade;e,seoouvir,nãoocompreenderá.Ecomopersuadiramudardevidaumapessoacomtaldisposição?Emgeral,apaixãonãoparececederaoargumento,masà força.É,portanto,umacondiçãopréviaindispensávelaexistênciadeumcaráterquetenhacertaafinidadecomavirtude,amandooqueénobreedetestandooqueévil.

Masédifícilreceberdesdeajuventudeumadestramentocorretoparaavirtude

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quando não nos criamos debaixo das leis apropriadas; pois levar uma vidatemperanteeesforçadanãoseduzamaioriadaspessoas,especialmentequandosãojovens.Poressarazão,tantoamaneiradecriá-loscomoassuasocupaçõesdeveriamserfixadaspelalei;poisessascoisasdeixamdeserpenosasquandosetornaram habituais. Mas não basta, certamente, que recebam a criação e oscuidados adequados quando são jovens; já que mesmo em adultos devempraticá-laseestarhabituadosaelas,precisamosdeleisquecubramtambémessaidade e, demodo geral, a vida inteira; porque amaioria das pessoas obedecemais à necessidade do que aos argumentos, e aos castigos mais do que aosentimentonobre.

Por isso pensam alguns que os legisladores deveriam estimular os homens àvirtude e instigá-los com o motivo do nobre, partindo do princípio de queaquelesquejáfizeramconsideráveisprogressos,mercêdaformaçãodehábitos,serãosensíveisataisinfluências;equeconviriaimporcastigosepenasaosquefossemdenaturezainferior,enquantoosincuravelmentemausseriambanidosdetodo.Ohomembom(pensameles),vivendocomovivecomopensamentofixonoqueénobre,submeter-se-áàargumentação,aopassoqueohomemmau,quesódesejaoprazer,serácorrigidopelador,comoumabestadecarga.Eporissodizemtambémqueasdores infligidasdevemserasque foremmaiscontráriasaosprazeresqueesseshomensamam.

Dequalquer forma (comodissemos)ohomemquequeremos tornarbomdeveser bem adestrado e acostumado, passando depois o seu tempo em ocupaçõesdignasenãopraticandoaçõesmásnemvoluntária,neminvoluntariamente,eseissosepodeconseguirquandooshomensvivemdeacordocomumaespéciedereta razão e ordem, contanto que esta tenha força — se assim é, o governopaternoemverdadenãotemaforçaouopodercoercitivonecessários(nem,emgeral,ostemogovernodeumhomemsó,amenosquesetratedeumreioualgosemelhante);masa lei temessepodercoercitivo, aomesmo tempoqueéumaregrabaseadanumaespéciede sabedoria e razãoprática.E, emborao comumdas pessoas detestem os homens que contrariam os seus impulsos, ainda quecomrazão,aleinãolhesépesadaaoordenaroqueébom.

UnicamenteouquaseunicamentenoEstadoespartanoolegisladorpareceter-seocupadocomquestõesdeeducaçãoedetrabalho.NamaioriadosEstadosessesassuntosforamomitidosecadaqualvivecomolheapraz,àmodadosciclopes,"ditandoa leiàesposaeaos filhos".Ora,omaiscertoseriaque taiscoisassetornassemencargopúblicoequeacomunidadeprovesseadequadamenteaelas;

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mas,umavezqueasnegligencia,convémquecadahomemauxilieseusfilhoseamigosaseguiremoscaminhosdavirtude,equetenhamopoderoupelomenosavontadedefazê-lo.

Do que ficou dito parece concluir-se que ele poderia fazê-lo melhor se setornasse capaz de legislar. Porquanto o controle público é evidentementeexercidopelas leis,eobomcontroleporboas leis.Quesejamescritasounão,parecenãoviraocaso,nem tampoucoquesejam leisprovendoàeducaçãodeindivíduos ou de grupos— assim como isso tambémnão importa no caso damúsica,daginásticaeoutrasocupaçõessemelhantes.Poisque,assimcomonascidadestêmforçaasleiseostipospredominantesdecaráter,nasfamíliasatêmaindamais os preceitos e os hábitos dopai, devido aos laços de sangue e aosbenefícios que ele confere; porquanto os filhos têm desde o princípio umaafeiçãonaturaleumadisposiçãoparaobedecer.Alémdisso,aeducaçãoprivadalevavantagemàpública,comoétambémocasodotratamentomédicoprivado;pois,emboradeummodogeralorepousoeaabstençãodealimentofaçambemàspessoas febris, podenão ser assimno casode umdoente particular; e é desupor que um pugilista não prescreva omesmo estilo de luta a todos os seusalunos.Parece,pois,queosdetalhessãoobservadoscommaisprecisãoquandoocontroleéprivado,poiscadapessoatemmaisprobabilidadesdereceberoqueconvémaoseucaso.

Mas quem melhor pode atender aos detalhes é um médico, um instrutor deginásticaouqualqueroutroquetenhaoconhecimentogeraldoqueéapropriadoacadaumouadeterminadaespéciedepessoas (poiscomrazãosedizqueasciênciasversamsobreouniversal).Issonãoimpedequealgumdetalheparticularpossa ser bem atendido por uma pessoa sem ciência que haja estudadocuidadosamente,à luzdaexperiência,oquesucedeemcadacaso,assimcomocertas pessoas parecem ser os melhores médicos de si mesmas, embora nãosaibamtratarasoutras.Nãoobstante,hãodeconcordarqueohomemquedesejatornar-se mestre numa arte ou ciência deve buscar o universal e procurarconhecê-lotãobemquantopossível;poisque,comodissemos,écomelequeseocupamasciências.

E,seépelasleisquenospodemostornarbons,seguramenteoqueseempenhaemmelhorarhomens,sejamestesmuitosoupoucos,devesercapazdelegislar.Porquantoreformarocaráterdequalquerum—doprimeiroquelhecolocamnafrente—nãoétarefaparaqualquerum;sealguémpodefazerisso,éohomemque sabe, exatamente como na medicina e em todos os outros assuntos que

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exigemcuidadoeprudência.

Nãoconvém,pois, indagaragoradequemecomosepodeaprenderalegislar?Porventuraserá,comoemtodososoutroscasos,dosestadistas?Averdadeéqueesseassuntofoiconsideradocomofazendopartedaestadística.Ouhaveráumadiferençamanifestaentreaestadísticaeasoutrasciênciaseartes?Nasoutras,vemosqueasmesmaspessoasaspraticameseoferecemparaensiná-las,como,por exemplo, os médicos e os pintores. Mas, enquanto os sofistas pretendemensinar política, não são eles que a praticam, e sim os políticos, que parecemfazê-lograçasaumaespéciedehabilidadeouexperiência,enãopeloraciocínio.Com efeito, ninguém os vê escrever ou falar sobre amatéria (conquanto essafosse, talvez, uma ocupação mais nobre do que preparar discursos para ostribunais e a Assembleia); e também não consta que eles costumem fazerestadistasdeseusfilhosoudeseusamigos.Masseriadeesperarqueofizessem,se isso lhes fosse possível, pois não poderiam legar às suas cidades nada demelhordoqueumahabilidadedessasorte,outransmiti-laaosquelhessãocarossepreferissemguardá-lanoseumeio.Noentanto,acontribuiçãodaexperiênciaparecenãoserpequena;deoutraformaelesnãopoderiamtornar-sepolíticosporparticiparemdavidapolítica.Dondeseconcluiqueosqueambicionamconheceraartedapolíticanecessitamtambémdaexperiência.

Masaquelessofistasqueprofessamaarteparecemestarmuitolongedeensiná-la.Comefeito, para exprimir-nos em termosgerais, esseshomensnem sequersabemqueespéciedecoisaelaé,nemsobreoqueversa.Deoutromodo,nãoateriam classificado como idêntica à retórica ou mesmo inferior a esta, nemjulgariamfácil legislarmedianteumacompilaçãodas leismais-bemreputadas.Dizemqueépossívelselecionarasmelhoresleis,comoseesseprópriotrabalhodeseleçãonãorequeresseinteligênciaecomoseobomdiscernimentonãofosseamaisimportantedetodasascoisas,talqualsucedenamúsica.

Com efeito, embora as pessoas experimentadas em qualquer campo julguemcomacertodasobrasqueseproduzemneleecompreendamporquemeiosedequemodo essas obras são realizadas, e que coisas se harmonizam comoutrascoisas,osinexperientesdevemdar-sepormuitofelizesquandopodemjulgarseaobrafoibemoumalfeita,comonocasodapintura.Ora,asleissão,porassimdizer,as"obras"daartepolítica:comoépossível,então,aprendercomelasaserlegisladoroujulgarquaissejamasmelhores?Osprópriosmédicosnãoparecemformar-sepeloestudodoslivros.Nãoobstante,aspessoasprocuramindicarnãoapenasostratamentos,mascomopodemsercuradosedevemsertratadoscertos

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tiposdegente,distinguindoosvárioshábitosdocorpo;mas,emboraissopareçaserútilaosexperimentados,paraosinexperientesnãotemnenhumvalor.

Écerto,pois,queemboraascompilaçõesdeleiseconstituiçõespossamprestarserviços àspessoas capazesde estudá-las, dedistinguir oque ébomdoque émaue aque circunstânciasmelhor se adapta cada lei, osque examinamessascompilaçõessemosocorrodaexperiêncianãopossuirãooretodiscernimento(amenos que seja por um dom espontâneo da natureza), embora talvez possamtornar-semaisinteligentesemtaisassuntos.

Ora,osnossosantecessoresnoslegaramsemexameesteassuntodalegislação.Por isso, talvez convenha estudá-lo nós mesmos, assim como a questão daconstituição emgeral, a fimde completardamelhormaneirapossível anossafilosofiadanaturezahumana.Emprimeirolugar,pois,sealgumacoisafoibemexposta em detalhe pelos pensadores que nos antecederam, passemo-la emrevista; depois, à luz das constituições que nós mesmos coligimos,examinaremosqueespéciesdeinfluênciaspreservamedestroemosEstados,queoutrastêmosmesmosefeitossobreostiposparticularesdeconstituição,eaquecausassedeveofatodeseremumasbemeoutrasmalaplicadas.Apósestudaressas coisas teremos uma perspectiva mais ampla, dentro da qual talvezpossamosdistinguirqualéamelhorconstituição,comodeveserordenadacadaumaequeleisecostumeslheconvémutilizarafimdeseramelhorpossível.