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Page 1: DAIN, Sulamis (2007) Os vários mundos do financiamento da Saúde no Brasil

Os vários mundos do financiamento da Saúde no Brasil:uma tentativa de integração

Healthcare financing options in Brazil: an attempt at integration

Sulamis Dain 1

1 Instituto de MedicinaSocial, UniversidadeEstadual do Rio de Janeiro.Rua São Francisco Xavier524, Pavilhão João LyraFilho, 7º andar, blocos D eE, Maracanã. 20550-900Rio de Janeiro [email protected]

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Abstract This paper addresses the dilemma un-derlying Healthcare financing, caught between thelong-term view proposed by the Social Securitysegment in 1988 and the short-term view imposedby a series of fiscal adjustments, hampering theexpansion of healthcare resources in Brazil. With-in the context of Constitutional Amendment Nº29, the extension of the Provisional FinancialTransactions Levy (CPMF), the Federal FundsEarmarking Removal Provision (DRU), and forth-coming tax reforms, aspects of the taxation sys-tem, social security dues, subsidies, incentives andtax revenue waivers are examined, also exploringpolitical and institutional aspects of intergovern-mental relationships and the links between thepublic and private sectors, in terms of Healthcarefinancing. This paper spotlights the headroomavailable for stepping up the financing levels ofBrazil’s National Health System (SUS), in orderto bridge public health gaps and even out ine-qualities in nationwide service supplies. A reviewof intergovernmental relationships and the linksbetween the public and private sectors is also sug-gested. Finally, positive aspects of Governmentspending are presented, together with financingtools for this sector that would spur the economicand technological development of Brazil.Key words Brazil, Financing for Brazil’s Na-tional Health System (SUS), Constitutionalamendment 29, Healthcare economics

Resumo O artigo aborda o dilema subjacente aofinanciamento da Saúde, entre a visão de longoprazo proposta pela Seguridade Social em 1988, ea visão de curto prazo, centrada nos sucessivosajustes fiscais, que vem frustrando a expansão derecursos da Saúde no Brasil. No contexto da re-gulamentação da Emenda Constitucional 29, darenovação da CMPF e da DRU, e de uma próxi-ma reforma tributária, são tratados aspectos dosistema tributário, das contribuições sociais, dossubsídios, incentivos e renúncia de arrecadação.Considera também aspectos político-institucio-nais das relações intergovernamentais e das re-lações entre o setor público e o setor privado,presentes ao financiamento da Saúde. O traba-lho torna evidente a existência de espaço paraampliar o patamar de financiamento do SUS, demodo a superar os vazios sanitários, bem comoas desigualdades de oferta de serviços no territó-rio. Sugere também a revisão das relações finan-ceiras intergovernamentais e entre o setor públi-co e o setor privado. Finalmente, apresenta as-pectos virtuosos do gasto público e dos instru-mentos de financiamento do setor para o desen-volvimento econômico e tecnológico do Brasil.Palavras-chave Brasil, Financiamento do SUS,EC 29, Economia da saúde

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Introdução

Este trabalho acompanha a evolução do SUS doponto de vista de seu padrão de financiamento,integrando as várias dimensões nas quais se des-dobra esta análise. Com esta intenção, são desta-cadas as relações entre a política fiscal e da Segu-ridade Social, o conjunto das relações intergo-vernamentais e finalmente as relações entre o se-tor público e o setor privado.

Do ponto de vista da necessidade incontor-nável da população por mais e melhores ações eserviços públicos de saúde, é essencial que o SUSpossa alcançar novo patamar de gastos, compa-tível com a superação dos vazios sanitários e comas desigualdades regionais e setoriais que aindacaracterizam o acesso e a utilização de serviçosproduzidos pelo sistema. No marco dos avançosdo SUS, é importante ressaltar as tendências deconformação de novos padrões de financiamen-to da Saúde, caracterizados pela combinação definanciamento público, universalização do aces-so e aperfeiçoamento da gestão com uma provi-são autônoma, indiferentemente estatal e/ou pri-vada dos serviços.

O trabalho destaca também a esfera das rela-ções público-privadas no campo da Saúde, ondefloresce o espaço da renúncia de arrecadação, oudo financiamento indireto pelo Estado, de pla-nos e seguros de saúde. Estes são incentivadospor tratamentos tributários favorecidos a pes-soas físicas e jurídicas, assim como aos própriossistemas de saúde supletiva, sem que se possadar visibilidade orçamentária a tais gastos indi-retos do Estado. Além do mais, a ausência ouinsuficiência de regulação deste segmento com-promete a política nacional de saúde.

O financiamento público da Saúde é tambémresponsável pelo entrelaçamento virtuoso dapolítica social e da política de desenvolvimento.Pelo poder de compra da Saúde, o Estado podeexercer sua capacidade regulatória e de fomentosobre o setor produtivo, no campo dos medica-mentos, insumos estratégicos e equipamentos,participando assim da fronteira científica e tec-nológica nacional, ampliando por outro lado oacesso da população aos medicamentos neces-sários através de uma política de assistência far-macêutica pública. Há espaço para uma novainvestida a favor do fortalecimento do SUS, in-vertendo a cadeia de determinação perversa en-tre o econômico e o social que tanto tem prejudi-cado a universalização da Saúde.

A luta pela estabilidadee suficiência de recursos para o SUS: daseguridade social à emenda constitucional 29

Há quase vinte anos, o Sistema Único de Saúdebrasileiro apresenta dificuldades em garantir re-cursos estáveis e suficientes para o seu financia-mento. No período, alternaram-se fontes de re-ceitas, impostos e contribuições sociais, sem am-pliar a participação do gasto do SUS no ProdutoInterno Bruto ou na receita tributária como umtodo. Isso ocorre em flagrante descompasso comas responsabilidades impostas pela universaliza-ção do sistema e seu reflexo sobre o gasto públicoem Saúde.

O processo de unificação das ações e serviçospúblicos de saúde em programa de acesso uni-versal e de direito da cidadania foi consagrado naConstituição Federal de 1988, quando a Saúde,juntamente com a Previdência e a Assistência So-cial, passou a compor o campo da proteção soci-al no Brasil. Ao combinar direitos individuais ecoletivos, ou contribuintes e cidadãos num mes-mo programa, a nova visão de proteção socialintegrou padrões distintos de financiamento, ba-seados em impostos e contribuições sociais e re-cursos de dois orçamentos, o OGU e o Orçamen-to da Seguridade Social1.

O Orçamento da Seguridade Social (OSS) re-presentava a precedência da cobertura dos direi-tos sociais sobre a disponibilidade de recursos1,tornando impositiva a busca de novas fontes e aampliação das receitas vinculadas aos programasque o integravam.

Os programas universais justificaram, no ca-pítulo da Ordem Social, a autorização para a di-versificação das fontes da Seguridade. As necessi-dades de financiamento das políticas universaisdestinadas a prover gastos não individualizados,como os serviços de Saúde, acrescentaram à tra-dicional folha de salários, base central do financi-amento previdenciário, o aporte de contribuiçõessociais gerais (COFINS, PIS-PASEP e CSLL - astrês áreas da Seguridade sempre trataram seuscampos administrativos e financeiros de formaindependente, apoiados em forte legislação infra-constitucional. O SUS foi regulamentado pela LeiOrgânica da Saúde- Lei 8.080 de setembro de 1990e pela lei 8.142 de dezembro do mesmo ano).

A composição inicial do OSS – sem vincularfontes para cada área específica – contemplou anatureza distinta dos benefícios e serviços, pre-vendo, além das fontes supracitadas, o aporte derecursos fiscais do Tesouro a fundo perdido2.

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Do ponto de vista das relações financeiras in-tergovernamentais, a criação do SUS materiali-zou o esquema tripartite de financiamento fede-rativo da Saúde, pretendendo integrar os recur-sos federais do OSS e do OGU aos recursos fis-cais de estados e municípios9 (o art. 198, § 1º daCF de 1988 definiu o financiamento da Saúdepelo Orçamento da Seguridade Social – OSS, nostrês níveis de governo. Até a edição da primeiraLDO (1990), o Art. 55 do Ato das DisposiçõesConstitucionais Transitórias – ADCT destinava30% do OSS para a Saúde). No processo de com-petição por recursos, os programas universais,com menor capacidade de defesa, foram sendoprogressivamente isolados na luta pelo acesso àsfontes de receita vinculadas pela Constituição aoseu financiamento.

A partir de 1990, verificou-se, de forma cadavez mais acentuada, a não observância do artigo55 do ADCT, já mencionado, que regia os repas-ses do MPAS ao MS. Em 1993, sob a alegação derestrições fiscais e de aumento das despesas daPrevidência Social, os recursos originários da fo-lha de salários deixaram de ser repassados aoMinistério da Saúde, passando a financiar exclu-sivamente a Previdência Social.

A interrupção do aporte desses recursos paraa Saúde gerou grande instabilidade nos anos sub-seqüentes, aumentando a dependência da saúdeem relação a outros recursos do Tesouro Nacio-nal. Ainda em 1993, com o intuito de dar estabi-lidade e suficiência ao financiamento da Saúde, aPEC 169 encaminha Proposta de VinculaçãoConstitucional “Definitiva” de 30% do OSS, a eleacrescentando 10% da receita de impostos daUnião, Distrito Federal, estados e municípios.

O crescimento de receita por conta das no-vas contribuições sociais e da ampliação das pré-existentes foi parcialmente neutralizado pela des-vinculação das receitas da União, através do Fun-do Social de Emergência (FSE), que vigorou em1994 e 1995, posteriormente renomeado comoFundo de Estabilização Fiscal (FEF), entre 1996a 1999.

A estratégia de desvinculação de recursos vemsendo mantida desde então, através da Desvin-culação de Receitas da União (DRU), que, comoos dispositivos anteriores, captura 20% da arre-cadação de impostos e contribuições da União,(com exceção dos Fundos de Participação e dacontribuição sobre a folha de salários).

Na segunda metade da década de 90, dada airregularidade dos aportes de receita ao OSS, oMS encampa e lidera a luta pela criação de umafonte específica de financiamento para a Saúde, a

Contribuição Provisória sobre a MovimentaçãoFinanceira (CPMF).

Aprovada no final de 1996 e implantada em1997, a CPMF não gerou o aumento de recursosesperado, por ter sido acompanhada pela subs-tituição de fontes, decrescendo a importância daCSLL e da COFINS no orçamento do MS. Em1999, a CPMF deixa de ser fonte exclusiva da Saú-de, passando a financiar a Previdência e, a partirde 2001, o Fundo de Combate à Pobreza3.

Após várias reformulações ao longo de seteanos, a EC 29 foi aprovada em 13 de setembro de2000. Com isso, o sistema de financiamento daSaúde ganhou maior estabilidade uma vez queforam estabelecidos patamares mínimos de apli-cação de recursos da União, dos estados e dosmunicípios no apoio ao SUS.

No caso da União, passou a vigorar o mon-tante aplicado no ano anterior, corrigido pela va-riação nominal do PIB. Para estados e municípi-os, a base de cálculo passou a ser a receita tribu-tária própria e de transferências. Foi estabelecidoo aumento gradual da vinculação da receita tri-butária de estados e municípios a partir do míni-mo de 7% em 2000, até os 12% e 15%, respectiva-mente, em 2004, de acordo com as resoluçõesnos 316 e 322 do CNS.

O movimento em torno à defesa da EC 29articulou atores políticos e entidades e estimuloua discussão em torno aos pontos polêmicos daproposta, como as alternativas de base de cálcu-lo para a vinculação e o próprio conceito de des-pesas em saúde. Consideram-se despesas comações e serviços públicos de saúde aquelas compessoal ativo e outras despesas de custeio e decapital, financiadas pelas três esferas de governo,conforme o disposto nos artigos 196 e 198, § 2º,da Constituição Federal e na Lei nº 8080/90, rela-cionadas a programas finalísticos e de apoio, in-clusive administrativos, que sejam destinadas àsações e serviços de acesso universal, igualitário egratuito; estejam em conformidade com objeti-vos e metas explicitados nos Planos de Saúde decada ente federativo e sejam de responsabilidadeespecífica do setor de saúde.

A EC 29 deveria promover a blindagem dosistema, em termos da sustentabilidade e sufi-ciência de recursos, avançando também na soli-dariedade federativa através da definição de pa-râmetros para o estabelecimento de relações fis-cais intergovernamentais no SUS.

Apesar do apoio em torno à emenda, aos seusdesdobramentos legais e à sua normatização, nãose materializaram as expectativas de um aumentomais substantivo do gasto federal em saúde.

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De outro lado, no plano federal, a EC 29 re-forçou a tendência à definição de soluções espe-cíficas de financiamento dentro do OSS3, além dedissociar a Saúde dos expressivos aumentos dareceita das contribuições sociais. A União passoua beneficiar-se do dinamismo destas contribui-ções, sem a ele associar a expansão de gastosuniversais da seguridade.

Se bem seja verdade que a EC 29 teve o inegá-vel mérito de comprometer efetivamente as trêsesferas de governo com a universalização da saú-de, é bom lembrar que, no plano federal, proce-deu-se à desvinculação da Saúde do Orçamentoda Seguridade Social. A EC 29 não define as fon-tes que devem financiar a Saúde e sim a variaçãode seu gasto pelo crescimento do PIB nominal(no campo específico da Saúde, os repasses parao MS, originários das receitas administradas pelaSecretaria do Tesouro Nacional - receitas fiscais,COFINS e CSLL - apresentaram comportamen-to cíclico e alternância na composição das fontes,mesmo após a instituição da CPMF e da implan-tação da EC 29).

Durante todo este tempo, foi mantida a bai-xa participação dos investimentos na execuçãoorçamentária do MS e não houve espaço finan-ceiro para a existência de uma política mais am-pla de correção das desigualdades de acesso, de-rivadas da má distribuição da oferta de serviços.A cobertura das ações e serviços do SUS mante-ve-se limitada e os vazios assistenciais ainda es-tão por superar. Nesta perspectiva, o SUS conti-nua subfinanciado, representando menos de 17%do OSS e cerca de 5% da despesa efetiva do go-verno federal4.

A recente criação da Super Secretaria da Re-ceita Federal, hoje responsável também pela ad-ministração da folha de salários, base de financi-amento da Previdência Social, virtualmente uni-ficou os dois orçamentos (OSS e OGU), redu-zindo ainda mais o espaço próprio, institucionale político, da proteção social no Brasil.

Na prática, a dimensão universalizante doprojeto da Seguridade Social brasileira foi mini-mizada, o que não decorre, como se afirma, deuma resposta “responsável” ao “caráter perdulá-rio” do capítulo da Ordem Social da Constituiçãode 1988. A alegada crise de financiamento dos gas-tos da Seguridade Social não existiria se a aloca-ção dos recursos vinculados a estes programastivesse respeitado sua destinação constitucional.

Evolução do orçamentoda Seguridade Social: onde está o déficit?

Durante os anos 2000, o gasto social como umtodo explica apenas a metade do crescimento dacarga tributária do governo federal, tendo sido aoutra metade alocada ao superávit primário parafins de ajuste fiscal. Ou seja, apesar da significati-va elevação da carga tributária, de 4,37 pontospercentuais do PIB, os gastos de Saúde, no mes-mo período, respondem por menos de um cen-tésimo desta elevação da carga no período, de-sautorizando as freqüentes alegações de crescen-te participação da Saúde no total de gastos dogoverno federal.

Na Tabela 1, contrastando com o aumentode quase dois pontos percentuais da carga tribu-tária alocado aos gastos com benefícios previ-denciários durante o período, os gastos em Edu-cação e Saúde permanecem quase constantes, comapropriação de apenas 0, 02% e 0,03 %%, res-pectivamente, da elevação da carga.

O resultado do OSS de 2006 expressa dimi-nuição de 17% relativamente ao ano anterior eem valores relativos ao PIB (-23,3%), interrom-pendo uma série ascendente de saldos superavi-tários. Mesmo com a diminuição do superávit daSeguridade Social, o resultado de 2006 foi pratica-mente equivalente a todo o resultado primáriodo governo federal, da ordem de R$ 49,8 bilhões5.

O Gráfico 15 ilustra a força do superávit ge-rado no OSS para fins de ajuste fiscal, no períodode 2000 a 2006. Se, nos últimos sete anos, esseexcedente tivesse sido investido no setor de saú-de, seus recursos teriam sido ampliados em maisde 100% a.a. Para garantir este superávit, a ges-tão orçamentária da União vem conflitando comos interesses da Seguridade Social e impondosucessivos contingenciamentos de recursos.

Carga tributária, impostos e contribuiçõessociais no financiamento da saúde

Ao centrar a análise nas possíveis fontes de fi-nanciamento da saúde, retiramos os tributos quejá têm destinação exclusiva, como é o caso dareceita previdenciária e do FGTS. Neste caso, acarga tributária “disponível” da União seria de16,52% em 2006, contra 14,35% em 2000.

No ano de 2006, as contribuições sociais cria-das ou ampliadas para a viabilização do orça-mento da Seguridade Social são responsáveis pormais de 50% da arrecadação da União, ainda queexcluídos os recursos da previdência e do FGTS.

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Além disso, entre 2000 e 2006, estas contribui-ções aumentaram em 2,46% sua participação nototal (48,45% em 2000 e 50,91% em 2006), en-quanto os impostos perderam participação pra-ticamente na mesma proporção – 2,47% (45,70%em 2000 e 43,23% em 2006).

Em termos do financiamento da Saúde, aanálise da última década oferece interessante cam-po de estudos, não só do ponto de vista econô-mico como também do ponto de vista das rela-ções políticas no campo federativo.

As novas contribuições sociais (a COFINS, oPIS-PASEP, a CSLL e a CPMF) são tributos dis-farçados na competência da União e promove-ram, além do alargamento da capacidade de fi-nanciamento dos programas universais, amplarecentralização de recursos em mãos do governofederal. Em sua grande maioria, significou umavolta à tributação cumulativa praticada antes de1967, quando a criação do ICMS e do IPI substi-tuiu grande número de tributos indiretos em cas-cata anteriormente vigentes.

Tabela 1. Apropriação do aumento da carga tributária por programa.

2000

2,390,541,856,655,970,5

0,189,05

22,25

2001

2,470,591,877,066,280,550,229,53

23,52

2002

2,420,581,847,396,540,590,269,80

25,04

2003

2,270,521,757,726,880,550,299,98

24,23

2004

2,420,571,858,107,120,560,42

10,5225,10

2005

2,440,561,888,637,540,610,48

11,0726,62

2000-2005

0,050,020,031,971,560,120,302,024,37

Vinculações universais (A)EducaçãoSaúde

Benefícios sociais (B)Benefícios previdenciáriosSeguro-desempregoAssistência social

= Soma (A + B)Carga tributária federal

Elaboração própria. Fonte: STN, TCU, Ministério da Saúde.

Gráfico 1. Evolução do superávit da Seguridade Social, 2000 a 2006.

Evolução do superávit da Seguridade Social - 2000 a 2006 (em bilhões R$).

60

45

30

15

0

2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006

47,9

57,7

42,5

31,73331,526,7

Superávit da Seguridade Social

Elaboração ANFIP. Fonte: MPS e SIAFI.

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A elevação da carga global (de 29% do PIB em1998 para 35,9% do PIB em 2006) foi fortementeinfluenciada pela evolução das contribuições so-ciais indiretas, que tiveram como efeito adicionala recuperação da participação federal na receitatributária disponível aos níveis dos anos 60. Aparticipação dos municípios praticamente dupli-cou, em detrimento da representatividade dos es-tados, no total da carga tributária disponível.

Pode-se dizer que o modelo de descentraliza-ção de viés municipalista da Saúde se reproduz noplano das relações fiscais intergovernamentais,transmitindo ao pacto federativo do SUS a fragi-lidade fiscal dos estados brasileiros e a corrosãode sua base vinculável, nos termos da EC 29.

Como evidenciam os dados da Tabela 2, en-tre 2000 e 2005, apenas a receita disponível daUnião cresce 1,09, à custa da redução de 0,81% e0,28% nas participações de estados e municípios,respectivamente. Ao mesmo tempo, explicam aelevação da carga tributária global, onerando deforma regressiva os contribuintes, em particularos mais pobres, por serem cobrados de formaindireta e cumulativa, sobre o conjunto de bens eserviços produzidos e consumidos no país.

Vários estudos que estimam a carga tributá-ria por faixa de renda a partir da Pesquisa deOrçamentos Familiares (POF) do IBGE apon-tam esta regressividade6,7 e revelam que os indi-víduos que ganham até dois salários mínimospagam 26% de sua renda em impostos indiretos,ao passo que os que ganham mais de trinta salá-rios mínimos, apenas 8%. Este desnível não écompensado pela tributação sobre a renda, cujabase é muito estreita. Assim, quando se somamimpostos diretos e indiretos, para os que ganhammais de trinta salários mínimos, a carga tributá-ria total alcança 18%, sendo de 27% para os queganham até dois salários mínimos. O impactoperverso da tributação indireta sobre as famílias

se complementa com as conseqüências negativasdestas modalidades de tributação sobre a com-petitividade da produção brasileira, relativamenteaos produtos dos demais países, onde as contri-buições sociais são restritas á tributação sobre afolha de salários.

Se bem que a EC 29 tornou o gasto federal desaúde exclusivamente dependente da evolução doPIB nominal, isso não exime o SUS de preocupa-ções quanto às fontes de receita que viabilizamsua expansão, notadamente a CPMF, majorita-riamente destinada à Saúde. Deste ponto de vis-ta, é importante assinalar que a CPMF não é maisinjusta que as demais contribuições, uma vez quenão atinge os grupos de renda mais baixos, alémde ser adequada à tributação das transações fi-nanceiras, hoje subtributadas.

Sob o fogo cruzado de uma reforma tributá-ria que pretende simplificar os impostos indire-tos, consolidando todas as contribuições de na-tureza tributária, o Imposto sobre Produtos In-dustrializados e o ICMS em imposto sobre o va-lor agregado (IVA) e na iminência de uma difícilvotação sobre a continuidade da CPMF, a lutapela suficiência de recursos para o financiamen-to da Saúde parece longe de terminar.

A evolução da despesa do SUS com açõese serviços públicos de saúde (1995/2006)

Passado pouco mais de uma década, a participa-ção da despesa com ASPS no PIB em fins de 2006era de 1,75%, praticamente reproduzindo os per-centuais observados em 1995, em que pese a ex-pressiva mudança de patamar da carga tributá-ria, centrada nas contribuições sociais. A evolu-ção do gasto com Ações e Serviços Públicos deSaúde da União, que representava 9,64% da re-ceita corrente em 1995, declinou nos anos seguin-

Tabela 2. Divisão federativa da receita tributária disponível.

Carga(% do PIB)

19,7122,4338,94

União55,760,157,6

Estados35,126,625,2

Municípios9,2

13,317,2

Soma100,0100,0100,0

196519882005

Fonte: Afonso & Meirelles, 2006.Arrecadação própria mais/menos repartição constitucional de impostos.

Divisão federativa - % total

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tes até atingir 6,98%, (Tabela 3), refletindo o cres-cimento mais acelerado das receitas correntes vis-à-vis o indexador adotado para variação dosgastos federais com Saúde8.

Na vigência da EC 29, o crescimento do gastodeveu-se principalmente à participação de esta-dos e municípios. Para o crescimento nominalda ordem de 120% dos recursos totais para asaúde, estados e municípios apresentaram umcrescimento superior a 170%.

Com isso, a participação da União no gastototal, que chegou a ser de 70%, declina e se apro-xima de 50%. Ou seja, em que pese à dificuldadede financiamento no plano da base tributáriaprópria dos estados e municípios, a força de EC29 para solidificar o sistema único foi decisiva.

Perspectivas de regulamentação da EC 29

A regulamentação da emenda está centrada emtrês aspectos principais: a base de cálculo e/ou in-dexador para os gastos com ASPS, a definição cons-titucional dos gastos com ASPS, assim como dasvedações correspondentes, e os critérios de repas-se de recursos do SUS entre níveis de governo.

Quanto ao primeiro aspecto, sua importân-cia para a suficiência de recursos do SUS é de-monstrada pela comparação entre as despesasefetivamente realizadas pelo Ministério da Saúdee simulações que encerram as principais alterna-tivas de revisão:

A comparação entre a evolução das receitascorrentes brutas da União e as despesas com

Tabela 3. Evolução do PIB, das Receitas Correntes Brutas (RCB) da União e das despesas com Ações eServiços Públicos de Saúde (ASPS) do Ministério da Saúde, 1995 a 2007 (em milhões R$ nominais).

PIB

705.641843.966939.147979.270

1.065.0001.179.4821.302.1361.477.8221.699.9481.941.4982.147.9442.322.8182.523.100

RCB

127.094156.830175.270200.455218.021252.519289.411343.075384.447450.590527.325584.067658.799

RCB/PIB

18,0%18,6%18,7%20,5%20,5%21,4%22,2%23,2%22,6%23,2%24,6%25,1%26,1%

ASPS

12.25712.40715.46415.24518.35320.35122.47424.73727.18132.70337.41640.75145.806

ASPS/RCB

9,6%7,9%8,8%7,6%8,4%8,1%7,8%7,2%7,1%7,3%7,1%7,0%7,0%

ASPS/PIB

1,74%1,47%1,65%1,56%1,72%1,73%1,73%1,67%1,60%1,68%1,74%1,75%1,82%

Fonte: IBGE para PIB; STN para RCB e SPO/MS para ASPS.Obs: Para 2007 o valor das RCB é o da estimativa de maio da STN e o de ASPS corresponde ao da LOA.

Ano

1995199619971998199920002001200220032004200520062007

Fonte: SIOPS/SCTIE/MS

Tabela 4. Recursos aplicados em ASPS por esfera de governo, 2000 a 2005 (em milhões R$ nominais).

200020012002200320042005

União

20.351,522.474,124.736,827.181,232.703,537.145,8

Estados

6.313,48.269,8

10.078,512.224,316.220,717.230,9

Municípios

7.445,49.493,9

12.069,213.715,316.427,920.805,8

Total

34.110,340.237,846.884,553.120,865.352,175.182,5

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ASPS do MS em relação ao PIB nominal é sufici-ente para sugerir a adoção da receita correntecomo base de cálculo. Esta é a tônica das pro-postas em tramitação no Congresso Nacional.Cabe destacar a diferença potencial acumuladaentre o gasto efetivo e o gasto com ASPS, caso abase de cálculo fosse 10% da Receita CorrenteBruta da União (proposta da PLP 01/2003). Nes-te cenário alternativo, o MS poderia ter gastoquase R$ 80 bilhões a mais do que efetivamentegastou no período 2000/2006 (Gráfico 2).

Quanto à definição constitucional de Ações eServiços Públicos de Saúde, parece essencial re-forçar as vedações, em particular quanto aos en-cargos previdenciários e aos gastos com sanea-mento, campos onde os governos estaduais nãocumprem as determinações da emenda. No pla-no federal, em 2006, com base nas determinaçõesda EC 29, o MS pôde expurgar as despesas doPrograma Fome Zero, que em parte eram indevi-damente inseridas na programação da Saúde.

Com a destinação correta, houve aplicaçãode recursos em despesas realmente vinculadas àsações de Saúde, que apresentaram aumento deR$ 6,2 bilhões, equivalente a 18% da programa-ção assistencial da Bolsa Família, que integra oFome Zero5.

Quanto ao repasse de recursos para os go-vernos subnacionais, a ameaça de mudança doscritérios do artigo 35 da lei 8.080, referentes àalocação de recursos no interior do SUS, é preo-

cupante, desde logo por ameaçar a sistemáticade financiamento e de repasses do SUS, comoum sistema único de natureza federativa, dotadode critérios alocativos próprios à Saúde

Tais critérios, constantemente aperfeiçoados,levam em conta o território e a regionalizaçãodas ações da saúde, a hierarquização dos servi-ços e a construção de redes, as necessidades e ademanda da população por serviços, as caracte-rísticas epidemiológicas, as diferenças de capaci-dade de gestão de estados e municípios, os desní-veis na oferta de serviço e as necessidades de in-vestimentos, as características territoriais especi-ais (fronteiras, região amazônica, entre outras).

A eventual substituição de critérios baseadosnos determinantes assinalados por critérios po-pulacionais transformaria o MS em mero repas-sador de recursos aos governos subnacionais,ignorando as características de diferenciação in-trínsecas à natureza das Ações e Serviços Públi-cos de Saúde.

Os incentivos financeirose o poder de indução do SUSnas relações intergovernamentais

As transferências intergovernamentais no âm-bito do SUS são formas de financiamento rele-vantes para um número maior de municípios eestados, alocados por várias parcelas, entre asquais predominam os programas de atenção

Gráfico 2. Gasto efetivo versus PLP, em janeiro de 2003.

R$ bilhões Comparação: gasto efetivo x PLP 01/2003

0,00

-10,00

-20,00

-30,00

-40,00

-50,00

-60,00

-70,00

-80,00

2000 2001 2002

2003

2004

2005

2006

Diferença anual Diferença acumulada

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básica financiados pelo PAB variável e nas açõesestratégicas financiadas pelo FAEC, que em con-junto representam as transferências mais dinâ-micas da última década, no campo das relaçõesintergovernamentais em saúde.

O repasse de recursos favorece os municípiosque desenvolvem os diferentes programas. Nes-se sentido, o instrumento fundo a fundo torna-se apenas um mecanismo contábil, reduzindo ogoverno local a mero receptor de recursos. Em-bora extremamente variados, os incentivos finan-ceiros não obedecem a critérios voltados paracorrigir a heterogeneidade na oferta de organiza-ção e investimento de redes de serviços9.

Para superar estes problemas, estão previs-tas alterações nas regras do financiamento doSUS, nas portarias que regem o Pacto pela Saúde.O Pacto aloca os recursos do MS destinados àsações e serviços descentralizados do SUS em cin-co blocos de financiamento: Atenção Básica; Aten-ção de Média e Alta Complexidade Ambulatoriale Hospitalar; Vigilância em Saúde; AssistênciaFarmacêutica; Gestão do SUS.

Essa medida pode reduzir a fragmentação dastransferências federais e aumentar a autonomiados governos locais, apesar de que a distribuiçãodos recursos em cada bloco permanece inaltera-da, representando a agregação de incentivos fi-nanceiros anteriores, com critérios de transfe-rência e uso definidos em portarias específicas.

Cabe discutir ainda se a diversidade de critériosconsolidados em cada bloco garante à União ascondições necessárias para a equalização fiscal dasesferas subnacionais no campo do SUS e para aampliação de sua capacidade de gasto em saúde.

Apesar das virtudes das transferências do SUSmantidas no Pacto pela Saúde (tais como o PABfixo e o PAB variável e as transferências de médiae alta complexidade), vários reparos podem serfeitos, sobretudo no campo da equidade.

Estudos baseados nas informações do Siste-ma de Informações de Orçamentos Públicos emSaúde (SIOPS) em 2002 indicam que, apesar detendência mais eqüitativa das transferências fe-derais do SUS, a alocação destes recursos nãosuperou as desigualdades inter e intra-regionaisdas receitas públicas municipais, nem a situaçãodesfavorável dos municípios médios9.

Subsistem ainda no SUS padrões inadequa-dos de oferta, cobertura e gasto público em Açõese Serviços de Saúde, de natureza, complexidade ecustos diversos, e realidades regionais distintas,que os atuais incentivos financeiros não foramcapazes de superar, entre outras razões, pelo ex-cesso de fragmentação dos recursos.

O financiamento do SUSno contexto das relações público privadas

A separação entre o financiamentoe a provisão de serviços

Por suas características históricas, a prestaçãode serviços hospitalares com financiamento públi-co no Brasil vem operando predominantementeatravés de terceiros, sejam estes empresas priva-das lucrativas, entidades beneficentes e filantrópi-cas, ou, ainda, hospitais universitários e de ensino.

Dessa forma, no nível federal do SUS, res-ponsável historicamente pelo aporte de mais de75% dos recursos financeiros setoriais, (hoje re-duzidos a 50% por conta das vinculações pelaEC 29 de recursos de estados e municípios), jáexiste a quase completa separação das funçõesde financiamento e provisão de serviços. Subsis-te, entretanto uma relação de concorrência entreos segmentos público e privado, com superposi-ção entre clientelas, tudo isso reforçando a ne-cessidade de articulação entre os dois campos.

A distribuição da rede de serviços hospitala-res pelo setor privado não é homogênea em todoo território nacional, apresentado diferenças re-gionais, estaduais e por município, e por nature-za das intervenções. Se bem seja verdade que aorganização macro e microrregional das redesde serviços inclui o setor privado, há uma claraconcentração da rede pública nas regiões Norte eNordeste. A distribuição tampouco é homogê-nea por porte de hospitais, funções, além do quea cobertura privada varia por nível de renda, fai-xa etária, gênero, porte de cidade, etc.

A principal explicação para esta heterogenei-dade regional decorre da desigual configuraçãoda saúde suplementar no território nacional. Noplano dos governos subnacionais, fica claro queo descumprimento dos percentuais de vincula-ção previstos na EC 29 explica o subfinancia-mento das Ações e Serviços Públicos de Saúdeem vários estados da federação.

A isto se adiciona a limitação do Ministério daSaúde em aportar recursos de financiamento, aofinanciamento às ações de média e alta complexi-dade. Nas relações com a rede assistencial nãoestatal, verificam-se descompassos nas remune-rações por procedimento, sendo as diferenças entreo valor real e o valor SUS apontadas na Tabela 5.

Desde meados dos anos 90, a tabela do SUSsofreu apenas correção de 37%, frente a um cres-cimento do IGP-M de 318, 10 %, e aumento deinsumos estratégicos, como combustível e ener-gia, entre 500% e 600%.

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No que respeita a dimensão regional da crise,os estados do Nordeste apresentam déficits fi-nanceiros superiores às demais regiões nos servi-ços de média e alta complexidade, acumulandovolume significativo de demandas não atendidaspelo SUS, amplificando assim as diferenças regio-nais de acesso.

À sombra do Estado: o financiamentopúblico dos planos de saúde

As relações público-privadas no âmbito doSUS levam à constatação de que o sistema desaúde privado de natureza lucrativa está subme-tido a duas ordens de regulação por parte dosetor público, não necessariamente inspiradas namesma lógica.....

Em primeiro lugar, seu desempenho é afeta-do diretamente pelas tabelas de remuneração deprocedimentos e demais custos definidos ou in-fluenciados pelo SUS, como medicamentos, ma-térias hospitalares, salários de profissionais desaúde, etc., sem esquecer os investimentos dire-tos da órbita pública na rede própria e paraesta-tal, com impacto na oferta de serviços.

De outra parte, a regulação imposta pela Agên-cia Nacional de Saúde Suplementar (ANS) aosprestadores e operadores de saúde vem anteci-pando a necessidade de desenvolver ações de con-tratualização entre operadoras, hospitais, clínicasambulatoriais e serviços auxiliares de diagnósticoe terapia, discutidas com a Agência a partir de 2004.

Ao consolidar todas as fontes de financia-mento da atenção à saúde no Brasil, as fontesprivadas superam as públicas, sendo tambémelevada a participação do gasto direto das famí-lias com assistência à saúde, mesmo se excluídasas despesas com o pagamento de mensalidadesde planos de saúde pelas famílias10.

Os planos privados de assistência à saúde a-tuam no sistema de saúde brasileiro, compro-metendo sua universalidade e configurando-secomo mais um fator de geração de desigualda-des sociais no acesso e na utilização de serviçosde saúde, dado que cobrem apenas uma parcelaespecífica da população brasileira, de maior ren-da familiar inserida no mercado de trabalho for-mal, nas capitais/regiões metropolitanas, em ci-dades de mais de 80.000 habitantes.

A marca da universalização do Sistema deSaúde no Brasil é que ela não configurou umarelação de complementaridade entre o setor pú-blico e o setor privado, havendo, ao contrário,concorrência entre os dois segmentos, apesar dopeso direto e indireto dos recursos públicos aofinanciamento da saúde suplementar.

A grande maioria dos planos de saúde noBrasil corresponde hoje a salários indiretos dostrabalhadores, com recursos alocados pelas em-presas na categoria de custos operacionais. Issoexplica o fato de que 70% dos contratos de pla-nos de saúde sejam coletivos.

Assim, a matriz de financiamento dos gastostotais de saúde deve distinguir os recursos públi-cos, federais, estaduais e municipais e os recur-sos privados, de responsabilidade das famílias edas empresas.

A Tabela 6 revela que, em 2003, do total de8,6% do PIB hoje gastos em Saúde no Brasil, 3,5%do PIB correspondem a gastos diretos do Esta-do, respondendo o setor privado por 5% do PIB,distribuídos entre planos de saúde (1,9% do PIB)e gastos diretos das famílias (3,5%).

Estes dados escondem o aporte indireto dosetor público, tanto através da renúncia fiscal quebeneficia indivíduos ou empresas, seja através oaporte direto de recursos do Tesouro aos planosde saúde de servidores. Os autores citados desta-

Tabela 5. Diferenças entre valor real e valor SUS.

Procedimento

Consulta em especialidade adultaRaio-x simplesEndoscopiaDiária de UTI – IIInsuficiência respiratóriaPneumopatias agudasApendicectomiaToracotomia

Valor SUS

7,554,91

14,41213,71793,01

1.036,05525,40

1.062,66

Valor real

20,9427,5879,67

720,003.083,442.047,631.227,243.322,04

Diferença

177,4%461,7%452,9%238,0%288,8%

97,6%143,0%221,7%

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cam que a isso deveria ser agregado o financia-mento dos planos de saúde de servidores de es-tatais, as significativas deduções referentes às ins-tituições filantrópicas (Santas Casas, principal-mente), que muitas vezes comercializam planosde saúde e se integram a rede de prestação deserviços de empresas de assistência suplementar(os valores apresentados não incluem os gastosdos governos estaduais e federais, nem os gastosdas demais empresas estatais ).

Finalmente, deve-se destacar também o pesodos aportes do Tesouro, responsáveis por cercade 50% do financiamento da Agência Nacionalde Saúde Suplementar (ANS)10.

A Tabela 7 desagrega o total de gastos e de-duções tributárias com planos de saúde no Bra-sil em 2005. Em que pese às dificuldades de com-patibilização dos dados, fornece excelente apro-ximação a quantificação do “Estado invisível”,apontando para o elevado grau de desmercanti-lização do setor privado.

O planejamento e financiamento do SUS re-querem a articulação destas situações, até pararedimensionamento dos leitos, ganhos de eficiên-cia, formulação de incentivos e desincentivos

(para penalizar o excesso de leitos, como na ex-periência internacional).

A adesão à contratualização, ao planejamen-to integrado e aos incentivos dispersos pelos vá-rios programas do SUS em nível federal e estadu-al poderia contribuir para a maior estabilidadedas relações entre oferta e demanda, e para taxasde ocupação regulares e que minimizam situa-ções de ineficiente uso da capacidade instalada.

Os incentivos tributários, ou renúncia de ar-recadação, pelos quais o setor público financiaindiretamente o setor privado, não tornam ime-diatamente evidentes os setores e ações beneficia-das por tais despesas tributárias, evitando en-frentamentos frontais e uma real explicitação dasprioridades de gasto público. Em sociedadesmuito desiguais como o Brasil, esta estratégiapode abrigar uma escolha trágica e silenciosa entreos que terão acesso a serviços e os que serão maisuma vez excluídos.

O poder de compra do SUS

Até aqui, a análise dos aspectos do financia-mento do SUS foi conduzida em termos de sua

Tabela 6. Estimativa dos gastos com saúde segundo fontes públicas e privadas por tipo de gasto (Brasil,2002-2003, em milhões de reais).

Elaboração: Cremesp/Idec.

Fontes: 1 Ministério da Saúde, 2004; 2 IBGE - Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) 2002-2003 e ANS, 2004. A estimativados gastos das empresas foi calculada por meio da subtração dos gastos das famílias com planos privados do total do faturamentodas empresas de planos e seguros de saúde declarado à ANS; 3 IBGE - Pesquisa de Orçamento Familiar 2002-2003. A estimativado desembolso direto foi calculada a partir das despesas das famílias com assistência à saúde (medicamentos, assistência médica eodontológica particular, etc...) excetuando as referentes ao pagamento de planos privados de saúde; 4 PIB em 2002 = R$ 1.321.400milhões.

Tipo de gasto

Sistema Único de Saúde (SUS)

Planos de saúde privados

Gastos diretos das famílias excetocom planos privados de saúde

TOTAL

Fontes

Impostos gerais econtribuições sociais1

UniãoEstadosMunicípios

Planos privados de saúde2

Gastos das famíliasGastos das empresas3

Desembolso direto4

Em milhõesde reais

46.574,0024.737,0010.078,0011.759,00

26.497,0013.026,0013.471,00

33.149,00

106.220,00

%

43,8523,29

9,4911,07

24,9512,2612,68

31,21

100,00

% do PIB4

3,5

1,9

3,1

8,6

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ação no contexto do sistema de proteção socialbrasileiro. Esta política pública de natureza uni-versal e redistributiva tem, entretanto, grandeimpacto positivo sobre a economia brasileira.

Pela expressão de seu orçamento e pela coe-rência de suas intervenções no complexo indus-trial da Saúde, o SUS contribui para a geração deinvestimentos, inovações, renda, emprego e re-cursos fiscais para o Estado brasileiro.

De acordo com o MS, em termos econômi-cos, a cadeia produtiva da saúde representa entre7% e 8% do PIB, mobilizando um valor em tor-no de R$ 160 bilhões. Emprega diretamente, comtrabalhos qualificados formais, cerca de 10% dapopulação brasileira e é a área de maior expres-são no país de investimentos públicos com pes-quisa e desenvolvimento. Em termos de empre-gos diretos e indiretos, em toda cadeia produti-va, o conjunto destas atividades representa cercade 7,5 milhões de trabalhadores inseridos, pre-dominantemente, em atividades intensivas emconhecimento8.

A integração entre as políticas voltadas parao desenvolvimento do sistema de saúde e aquelasvoltadas para a promoção do desenvolvimentoindustrial e da inovação é também uma formade garantir para o país os benefícios econômicosgerados pelos gastos em saúde, assegurando acontinuidade da política social.

A própria garantia de demanda e de estabele-cimento de legítimas relações de clientela com osetor privado supridor de insumos farmacêuti-cos, produtos médicos, produtos e equipamen-

tos para exames, no âmbito da União, dos esta-dos, do Distrito Federal e dos municípios é em simesma uma ação redutora de custos e preços, ede fixação e desenvolvimento do setor empesa-rial, público ou privado, que abastece o SUS .

Mas esta é apenas uma visão estática do pro-blema, uma vez que o SUS, por sua integração àPolítica Industrial, Tecnológica e de ComércioExterior do governo federal, pode usar seu po-der de compra no estimulo à inovação e o desen-volvimento tecnológico.

Do ponto de vista do financiamento, o siste-ma nacional de Ciência e Tecnologia, ao qual oSUS se integra, já utiliza mecanismos de indução,como incentivos fiscais; investimentos em pes-quisa e desenvolvimento (P&D); créditos subsi-diados, além da intervenção direta do Estado noprocesso produtivo e na formação de parceriaspúblico-privadas.

A dinâmica industrial do complexo é em par-te determinada pelo Estado, em função de seupoder de compra de bens e serviços e de seu po-der de indução.

Há campo para o desenvolvimento de umapolítica específica, que ajude as empresas a ante-cipar e se adaptar aos fatores críticos de sucessoem seu mercado, articulando a dimensão sanitá-ria e a dimensão econômica, a forma de opera-ção e organização do sistema de saúde à dinâmi-ca dos setores de atividade das inovações.

O contraste entre as conseqüências da renún-cia de arrecadação dirigida à Saúde Suplementar eo poder dos incentivos fiscais, do crédito e do gas-

Tabela 7. Gastos e deduções tributárias com planos de saúde (Brasil, 2005).

Fontes: Ministério do Planejamento - Informações Complementares das Leis de Diretrizes Orçamentárias de 2005 e 2006;Ministério da Fazenda - Secretaria da Receita Federal (Coordenação-Geral de Política Tributária), 2006. Demonstrativo dosgastos governamentais indiretos de natureza tributária.

Gastos com planos e seguros de saúde

Gastos com planos de saúde de servidores federaisGastos com planos de saúde das estatais selecionadasDemais fontes (empresas empregadoras e famíliasTotal de gastos com planos e seguros privados de saúde )inclui os gastos com estatais selecionadas

Deduções/Gastos tributáriosDedução/Gasto tributário IRPF (desp, med + planos de saúde)Dedução/Gasto tributário IRPJ (desp, med + planos de saúde)

Valor (em 1000 R$)

979.111,622.726.000,00

35.240.888,3838.946.000,00

1.943.016,78725.171,08

%

2,517,00

90,49100,00

4,991,86

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to público em Saúde sobre a cadeia virtuosa depolítica social, política industrial e tecnológica falapor só e permite terminar com uma nota otimistaeste percurso nada simples pelos mundos com-plexos no financiamento da Saúde brasileira.

Conclusões

O OSS (orçamento da Seguridade Social) nãorepresentou moldura institucional capaz de ga-rantir um padrão de financiamento estável à Saú-de, nem de apropriar o dinamismo das contri-buições sociais em termos de arrecadação. Dadaa alternância das fontes, parece uma excelenteestratégia a fidelização da receita da União (PLP01/2003), sobretudo no contexto de uma novareforma tributária.

A adoção da receita corrente bruta como basede cálculo proposta é certamente a alternativamais promissora para a Saúde, por associarsustentabilidade e estabilidade, em caso de flu-tuações cíclicas, não garantidas por cada receitaisoladamente.

A mudança de patamar de gastos que se as-socia à receita corrente bruta permite o reforçodas relações intergovernamentais que expressama solidariedade federativa do SUS. Entretanto, apartilha de receitas e de encargos de governo emsaúde deveria ser estabelecida a partir de critériosinternos à lógica do SUS.

O SUS não poderá conviver com a supressãode receitas nem com a adulteração do conceitode Ações e Serviços Públicos de Saúde. Em sínte-se, a regulamentação da EC 29 não pode estar

dissociada dos princípios constitucionais sobreos quais se fundamenta o SUS.

A reivindicação do SUS pelo seu direito aofinanciamento suficiente e sustentável nada maisé do que a necessidade de honrar seu compro-misso junto à população brasileira, materializan-do a saúde como direito social e garantindo oacesso a e a utilização de serviços. Para tanto,requer que sejam viabilizados, depois de duasdécadas, recursos para seu custeio e para investi-mentos que corrigirão as desigualdades na ofer-ta de infra-estrutura de Saúde em todo o territó-rio nacional.

Gasto em saúde não é sinônimo de desperdí-cio de recursos. Assim, os gestores da Saúde, emtodos os níveis de governo, devem zela pela qua-lidade de seu gasto e pela racionalização e redu-ção de seus custos. Mais ainda, devem atuar narevisão dos mecanismos de renúncia fiscal e ou-tras formas de financiamento público ao setorsupletivo de saúde, de modo a criar contraparti-das e reforçar o papel da regulação estatal sobreo sistema de saúde como um todo.

Em função de seu impacto macroeconômicosobre a renda, o emprego, o produto nacional eo gasto público, o SUS e o Estado podem usar osmecanismos de financiamento direto e indiretoao setor privado para estimular ações no campodo desenvolvimento industrial e da inovação tec-nológica, com impacto positivo sobre a compe-titividade da indústria nacional e a garantia deoferta de insumos, medicamentos e equipamen-tos de Saúde, democratizando o acesso da popu-lação aos bens e serviços necessários a sua sobre-vivência saudável e digna.

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Referências

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Artigo apresentado em 03/09/2007Aprovado em 01/10/2007Versão final apresentada em 19/10/2007

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