das ruas ao supremo tribunal federal a criminalização da marcha da maconha no brasil
TRANSCRIPT
-
FUNDAO GETLIO VARGAS ESCOLA DE DIREITO DE SO PAULO
LORENA OTERO
DAS RUAS AO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: a criminalizao da Marcha da Maconha no Brasil
SO PAULO 2013
-
LORENA OTERO
DAS RUAS AO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: a criminalizao da Marcha da Maconha no Brasil
Trabalho de Iniciao Cientfica apresentado Escola de Direito de So Paulo da Fundao Getlio Vargas, sob a orientao da Professora Dra. Marta Rodriguez de Assis Machado
SO PAULO 2013
-
Dedico este trabalho a todas as pessoas que mesmo submetidas violncia ou coao da sua liberdade de
expresso no abrem mo de seus ideais.
-
AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar, agradeo a Escola de Direito de So Paulo da Fundao Getlio
Vargas pela oportunidade de desenvolver esta pesquisa na qualidade de aluna visitante, que
possibilitou a incrvel experincia de me aproximar com o universo de conhecimento, de
professores admirveis, de recursos de pesquisa e incentivo que a instituio disponibiliza.
Assim, estendo esse agradecimento na pessoa de todos os seus funcionrios, em especial da
Coordenadoria de Pesquisa, que selecionou meu projeto.
Como no poderia deixar de ser, agradeo, e muito, a Marta Rodriguez de Assis
Machado, professora e pesquisadora que passei a admirar antes do ingresso na DIREITO GV.
Mesmo sem me conhecer, aceitou a tarefa de me orientar e me guiou nos caminhos mais
difceis da pesquisa, enquanto me faltava experincia e delimitao do meu tema. Atravs
dela, pude ter contato com temas, como Movimentos Sociais, que tanto me encantei.
Agradeo a Accio Miranda da Silva Filho, que, gentilmente, me noticiou sobre a
chamada do Programa de Iniciao Cientfica da DIREITO GV e me incentivou a participar.
Ao Instituto Brasileiro de Cincias Criminais (IBCCRIM), abrigo dos ensinamentos e
reflexes das mais distintas correntes das Cincias Criminais, onde passei a maior parte do
tempo desenvolvendo este trabalho. Meu lugar preferido na cidade de So Paulo.
Ao Couchsurfing, que possibilitou o surf nas cidades onde busquei informaes para a
pesquisa, bem como onde realizei grande parte das entrevistas. Obrigada ngelo, Jacque, Edu
e Raoni, amveis hosts.
Agradeo aos meus queridos amigos, sempre presentes, em especial Diogo Rais,
Wanessa Saviolo, Carla Modesto, Frederico de Oliveira Cossi, New Oliveira e Leonardo
Dalvi Alvarenga, pelo apoio e incentivo incondicional.
Agradeo a todas as pessoas que contriburam para a realizao deste trabalho,
principalmente os entrevistados que tive o imenso prazer de conhecer e aprender mais com
cada um. Obrigada pelos depoimentos, esclarecimentos, informaes, materiais grficos e
documentais.
-
William Lantelme Filho, referncia forte de ativismo, muito obrigada pelos
incontveis incentivos.
Por fim, registro um agradecimento especial a Emilio Nabas Figueiredo, que, durante
toda a pesquisa esteve presente (apesar de distante), me ajudando a superar as dificuldades e a
timidez para a realizao das entrevistas, bem como tudo que estivesse ao seu alcance. Na
maioria das vezes, atravs das atitudes mais simples como um gentil e-mail que nos
permitimos conhecer pessoas e descobrir ideias e objetivos em comum, trocar experincias e
incentivos, mas acima disso, quando faltar essa sintonia, que elas ainda possam se manter
unidas por um lao que as permite discordar uma da outra e mesmo assim se manter ao lado, o
lao da amizade.
Foi incrvel, muito obrigada.
-
Quando Ulisses Guimares e Tancredo Neves levaram milhes de brasileiros s praas pblicas para reivindicarem eleies diretas em todos os nveis, no movimento
Diretas J, em 1984, estavam justamente, ensinando o povo brasileiro a exercitar a democracia, num Brasil em que no havia. Poderiam ser acusados de apologia de
crime, enquadrados no art. 23 da Lei de Segurana Nacional, mas no o foram: nem o regime militar ousou tanto, naquele limiar democrtico.
(Luiz Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho)
Liberdade de expresso na rua. Democracia na rua. (Daniel Sarmento)
a reinveno da poltica pela juventude. (Salo de Carvalho)
-
RESUMO
O que no pode ser debatido em uma democracia? Por quatro anos os Tribunais no Brasil
permaneceram divididos para incriminar a Marcha da Maconha como apologia ao crime ou
defend-la como manifestao legtima de manifestao de pensamento. O movimento social
que busca promover debate sobre a legalizao da maconha foi s ruas pedir uma nova
poltica pblica para lidar com a questo das drogas. Em ateno ao pedido, foram
ameaados, presos, e at mesmo feridos durante aes da polcia. O conservadorismo e a m
interpretao das atitudes dos manifestantes da Marcha da Maconha refletiram no Judicirio
que suspendeu o evento em mais de trinta cidades brasileiras. Foi preciso o ingresso de uma
Ao de Arguio de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF n 187) no Supremo
Tribunal Federal para discutir a interpretao que deveria ser adotada para o crime de
apologia, at que este decidiu por unanimidade que a Marcha da Maconha constitui
manifestao legtima de liberdade de expresso.
Palavras-chave: Marcha da Maconha Movimentos Sociais Liberdade de Expresso
Liberdade de Reunio Criminalizao de Movimentos Sociais
-
ABSTRACT
What cannot be debated in a democracy? During four years Brazilian courts were divided
between incriminating the Marijuana March as incitement to crime and recognizing it as
legitimate freedom of speech. The social movement seeking to promote the debate on
marijuana legalization took the streets demanding a new public policy to deal with the issue of
drugs. In response to their demands they were threatened, jailed and even hurt during police
operations. Conservatism and the misinterpretation of the acts of the Marijuana March
demonstrators reflected on the judiciary, which suspended the event in over thirty Brazilian
cities. It was necessary to submit a legal action for claims of non-compliance with a
fundamental precept (ADPF 187) to the Federal Supreme Court to discuss the interpretation
that should be adopted for the crime of incitement, until the unanimous decision was reached
that the Marijuana March constitutes a legitimate expression of thought.
Keywords: Marijuana March Social Movements Freedom of Expression Freedom of
Assembly Criminalization of Social Movements
-
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ABESUP Associao Brasileira de Estudos Sociais do Uso de Psicoativos
DCE Diretrio Central de Estudantes
DIPO Departamento de Inquritos Policiais
GAECO Grupo de Atuao Especial de Combate ao Crime Organizado
GAERPA Grupo Especial de Combate a Entorpecentes
GMM Global Marijuana March
IBCCRIM Instituto Brasileiro de Cincias Criminais
IFSC Instituto de Filosofia e Cincias Sociais
LEAP Law Enforcement Against Prohibition
MMM Million Marijuana March
MNLD Movimento Nacional pela Legalizao das Drogas
MP Ministrio Publico
MPCRIM Associao Nacional do Ministrio Pblico Criminal
MPE Ministrio Pblico Estadual
MPF Ministrio Pblico Federal
PSOL Partido Socialismo e Liberdade
PT Partido dos Trabalhadores
STF Supremo Tribunal Federal
TJMG Tribunal de Justia de Minas Gerais
UFBA Universidade Federal da Bahia
UFMG Universidade Federal de Minas Gerais
UFPE Universidade Federal de Pernambuco
UFPR Universidade Federal do Paran
UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro
UFRS Universidade Federal do Rio Grande do Sul
-
SUMRIO
INTRODUO.......................................................................................................................11
1 RECONSTRUINDO A MARCHA DA MACONHA NO BRASIL................................15
1.1 Metodologia........................................................................................................................15
1.1.1 Quanto bibliografia.......................................................................................................18
1.1.2 Anlise documental: arte, mdia, procedimentos judiciais e no judiciais ......................20
1.1.3 Entrevistando os protagonistas da histria da Marcha da Maconha................................22
2 A MARCHA DA MACONHA NO BRASIL: UMA HISTRIA DE REPRESSO..26
2.1 Breve introduo histria do movimento pr-legalizao no Brasil................................26
2.2 A histria da represso: entre apologia e liberdade de expresso.......................................39
2.2.1 Marcha da Maconha 2008: paz sem voz no Estado de Exceo...................................41
2.2.2 Marcha da Maconha 2009: o que no pode ser debatido em uma democracia?...........57
2.2.3 Marcha da Maconha 2010: STF Julgue a nossa causa..............................................67
2.2.4 Marcha da Maconha 2011: pela Liberdade e pela Pamonha ........................................73
3 DOS FATOS E JULGAMENTOS NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.............86
3.1 A Arguio de descumprimento de preceito fundamental (ADPF n 187).........................86
3.1.1 As ofertas de manifestao na qualidade de amicus curiae.............................................89
3.1.2 O Julgamento...................................................................................................................92
3.1.3 A deciso..........................................................................................................................98
3.2 A Ao Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4274)........................................................105
CONSIDERAES FINAIS...............................................................................................109
APNDICE A Relao de associaes da sociedade civil em torno do debate de drogas
APNDICE B Qualificao dos entrevistados
APNDICE C Roteiro de Entrevista
REFERNCIAS BIBLIOGRAFICAS
-
11
INTRODUO
Nos anos 2000, massifica-se no Brasil um movimento pr-legalizao da maconha,
incentivado pelas manifestaes que j vinham sendo realizadas em mais de trezentas cidades
ao redor do mundo. Um desdobramento da Milion Marijuana March dos Estados Unidos, a
Marcha da Maconha ocupa as ruas a das principais cidades brasileiras e pede a
descriminalizao da maconha promovendo debates e passeatas marcadas por forte represso
policial e judicial. Nos primeiros anos, a realizao do evento era ainda tmida, sendo apenas
pequenas passeatas e alguns eventos internos, geralmente em universidades, e que no obteve
o xito esperado nas primeiras realizaes. A iniciativa brasileira s obteve xito com a
Marcha da Maconha de 2007 no Rio de Janeiro, onde organizadores do Growroom,
articularam e organizaram a passeata mais polmica at ento conhecida.
Em torno do movimento que era estimulado atravs de fruns na internet, surge uma
forte represso motivada pela mdia instigando aes policiais e que resultou em diversas
demandas judiciais objetivando proibir a realizao do evento, com a justificativa de se tratar
de apologia ao crime. De um lado, as alegaes das promotorias de justia que a Marcha da
Maconha faz nitidamente apologia, que nada tem a ver com promover debate srio e sim,
instigar o consumo de drogas. De outro, ativistas, advogados, outra parte de membros do
Ministrio Pblico defendem a livre manifestao do pensamento, da ocupao do espao
pblico para discutir uma poltica pblica considerada injusta.
As represses aconteciam de diversas formas: ameaa, censura de perfis de redes
sociais, apreenso de materiais de divulgao, prises de integrantes do movimento, violncia
policial, demandas judiciais e a forte manipulao miditica em torno da marcha. Embora
exploramos todos os tipos de represso em torno do movimento, nos atemos a detalhar as
represses do judicirio.
Trataremos do tema em trs captulos, sendo o primeiro dedicado a tratar da
metodologia utilizada para a realizao deste estudo. Neste captulo, explicamos tambm, as
dificuldades na elaborao da pesquisa e a metodologia aplicada, devido falta de material
bibliogrfico e da rigidez do alcance do material documental, justificando a necessidade de
-
12
partir para o campo de estudo, entrevistando os personagens que fizeram esta histria de
represso.
O segundo captulo dedicado a retratar as represses da Marcha da Maconha que
ilustraram a criminalizao do movimento. Analisaremos as demandas judiciais em torno da
Marcha da Maconha que a criminalizava como apologia ao crime, com base no art. 287 do
Cdigo Penal e o art. 33, 2 da Lei 11.343/06, bem como as aes que foram ajuizadas para
garantir sua realizao dos eventos por ser legtima e assegurada por clusula ptrea da
Constituio Federal, tentativas de defesa por parte dos manifestantes.
Neste captulo, separamos por cidades, as cidades marchantes onde registraram
episdios de represso. Todo ano, boa parte das cidades brasileiras que organizavam o evento
eram proibidas pela Justia de marchar. Relataremos os argumentos usados pelos Promotores
de Justia e tambm pelos advogados, ponderados pelo julgador que igualmente analisaremos
as decises judiciais.
Mas para alm os autos processuais, muitas vezes as represses aconteciam na rua, na
universidade, nos debates acadmicos, entre outros lugares. Alguns ativistas nos contam at
mesmo de interceptaes telefnicas feitas pela polcia e jornalistas disfarados de
manifestantes para coletar informaes sobre o movimento e distorce-las diante da sociedade.
Sero expostos relatos pessoais de ativistas, manifestantes, advogados, membros do
Ministrio Pblico Estadual e Federal, magistrados e polticos, tanto os que acusavam de
apologia quanto os que defendiam a liberdade de expresso para expor esse cenrio de
represso.
As proibies foram tantas que provocaram a Procuradoria Geral da Repblica que em
2009 recebe uma representao dos manifestantes a fim de ingressar com uma ao no
Supremo Tribunal Federal para por fim a essas discusses. Por intermdio do Procurador
Regional da Repblica do Rio de Janeiro, Daniel Sarmento, a ento Procuradora Geral da
Repblica poca, Deborah Duprat, distribui perante o Supremo uma ADPF e uma ADI.
Enquanto as aes se encontravam pendentes de julgamento, as proibies persistiam
pelo Brasil at que, em 2011 na cidade de So Paulo, manifestantes impedidos judicialmente
de marchar insistem na realizao do evento e so fortemente violentados pela tropa de
choque da Polcia Militar das ruas da capital paulistana. Alguns dias depois do ocorrido, o
-
13
Supremo inclui na pauta de julgamento as aes inerentes Marcha da Maconha para decidir
sobre sua legalidade.
No terceiro captulo, trataremos dos fatos e julgamentos no Supremo Tribunal
Federal, que temos as duas aes de ndole constitucional asseguradoras de direitos
fundamentais: a Ao de Arguio de Preceito Fundamental (ADPF n 187) que pediu
interpretao constitucional para o art. 287 do Cdigo Penal, vez que afrontava diretamente os
direitos fundamentais garantidores da liberdade de expresso (art. 5, IV e IX) e de reunio
(art. 5, XVI), direitos estes considerados clausulas ptreas (art. 60, 4, inc. IV), pedido este,
que foi reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal por unanimidade de votos e tambm da
Ao de Direta de Inconstitucionalidade (ADI n 4274) com pedido de interpretao conforme
a Constituio Federal, para o 2 do art. 33 da Lei 11.343/06, que criminaliza as condutas de
induzir, instigar ou auxiliar algum ao uso indevido de droga, tambm providos por
unanimidade.
A ADPF 187 admitiu na qualidade de amicus curie duas entidades: a Associao
Brasileira de Estudos Sociais do Uso de Psicoativos e o Instituto Brasileiro de Cincias
Criminais.
A ABESUP, representada por um militante do movimento, tentou inovar no processo
trazendo a questo pautada pelo prprio movimento, ou seja, a descriminalizao da maconha.
Pediu pela regulamentao do cultivo para fins medicinais, religiosos e recreativos. O
advogado da entidade, conversou com os ministros, um a um, antes do julgamento entregando
a eles, cpia em DVD do documentrio Cortina de Fumaa. Embora sabia que era
impossvel juridicamente faltando a apreciao de seu pedido isso, pois, o amicus curie,
no tem capacidade petitria no processo fez questo de expor a questo, pois estaria
aproveitando a oportunidade para colocar os ministros em contato com a matria.
J o IBCCRIM, representando por um de seus membros da comisso de amicus curie
do Instituto, rente ao pedido da ao formulada pela Procuradoria Geral da Repblica, trouxe
inspiraes do Pacto de So Jos da Costa Rica de direitos humanos e ainda o exemplo da
Espanha, que na mesma semana em que a marcha paulista de 2011 era duramente atacada, os
espanhis eram acolhidos nas ruas sob grave crise econmica.
-
14
A ADPF 187 foi julgada procedente por unanimidade reconhecendo o direito a livre
manifestao da Marcha da Maconha afastando qualquer hiptese a ensejar a incriminao
por apologia, em deciso brilhante e didtica do ministro relator da ao, Celso de Melo.
Entendimento este que, foi confirmado posteriormente na ADI 4274.
Para alguns, o Supremo tomou uma atitude infeliz em declarar legtimo um
movimento que vai s ruas, segundo os argumentos, instigar o uso da maconha, inclusive na
frente de crianas que no tem discernimento para saber se bom ou ruim, sendo que
notrio o uso da substncia durante as passeatas. Por outro ponto de vista, um absurdo um
tema no bsico como liberdade de expresso ser discutido na Corte Suprema por ser
confundido com apologia ao crime, pois at para quem no a favor da legalizao da droga
perfeitamente possvel que seja a favor da liberdade de outras pessoas poderem manifestar sua
posio favorvel.
Assim, registramos aqui, mais uma histria entre tantas de exerccio de direitos
fundamentais duramente reprimidos no exerccio da democracia.
-
15
CAPTULO 1
RECONSTRUINDO A MARCHA DA MACONHA NO BRASIL
1.1 Metodologia
Diante do debate acerca da atual poltica criminal de drogas no Brasil, bem como da
atuao da sociedade civil e das demandas sociais pela descriminalizao e posterior
regulamentao do uso de entorpecentes, mostrou-se relevante elaborar um estudo
privilegiando a relao entre os dois temas com enfoque na criminalizao de movimentos
sociais no Estado Democrtico de Direito, delineando uma trajetria de represses.
Em pesquisa na internet encontramos 219 (duzentos e dezenove) organizaes da
sociedade civil (ONGs, fundaes, associaes, coletivos, grupos de estudos, centros de
pesquisas, centros de tratamentos, etc. Apndice A) em mbito mundial, que atuam em
torno do debate de drogas, das quais 60 (sessenta) so organizaes brasileiras. Diante desse
ncleo de 60 (sessenta) organizaes brasileiras, aps a busca e anlise de aspectos variados,
tais como: sua composio, histria e atuao dentre elas, o destaque recaiu sobre a Marcha
da Maconha, em especial por ser uma organizao que todas as outras organizaes se
envolvem e ainda, relembramos as disputas no Judicirio que incriminavam suas
manifestaes pblicas como apologia ao crime para suspender a realizao de eventos em
todo o pas, at que o Supremo Tribunal Federal pontuou a questo.
Uma vez escolhido o objeto de estudo, em visita ao stio eletrnico do coletivo
(www.marchadamaconha.org), observamos os seguinsstes elementos: carta de princpios;
manual do organizador, modelos de ofcios e requerimentos destinados s autoridades
competentes; vdeos; blog de notcias; agenda das passeatas; e, por fim, um frum de
conversao dividido em temas, onde indivduos no identificados, tratando-se por nomes
fictcios, discutiam ativismo, poltica e reduo de danos, entre outros assuntos relacionados
maconha.
Muito embora parea, a princpio, que as informaes do site so apresentadas de
maneira clara e objetiva, depois de muitas horas de leitura dos documentos e posts de
-
16
conversas do frum, percebemos ao decorrer do estudo a falta de informaes elementares,
bem como o nexo entre as existentes para dar respostas s perguntas que nos propomos a
responder. Ou seja, para analisar o que nos propomos (a criminalizao) sobre o objeto (da
Marcha da Maconha), seria necessrio, primeiramente, compreender o objeto.
Importante registrar tambm que a autora no tinha, at o momento da elaborao da
pesquisa, relao alguma com o ativismo em torno da questo das drogas, e tampouco contato
com pessoas do coletivo, o que inicialmente era um ponto desfavorvel, por conta das
constantes interrogaes sobre as questes mais bsicas e prticas de atuao dos movimentos
antiproibicionistas.
Uma busca bibliogrfica preliminar sobre o tema revelou-se escassa e insuficiente,
sobretudo por no localizarmos estudos descritivos sobre a Marcha da Maconha.
Se por um lado a bibliografia era escassa, a documentao era abundante. Vrias
matrias jornalsticas ao googlar (www.google.com) por marcha da maconha em diferentes
nomes dos meios de comunicao, muitos processos judiciais para serem analisado e muito
material de divulgao feito pelos prprios integrantes do movimento. Mas boa parte com
acesso restrito e risco de ser incinerada/deletada com brevidade.
Sendo assim, havia um caminho a ser percorrido que comeava nas ruas, com as
Marchas da Maconha, ou mais precisamente com as Marchas da Maconha proibidas pela
Justia at que o Supremo Tribunal Federal, em 2011, que julgou procedente o pedido da
Procuradoria Geral da Repblica para autorizar a realizao das passeatas no pas.
Para analisar a Marcha da Maconha foi determinado o perodo que seria estudado, bem
como o espao territorial a ser abrangido.
O perodo de tempo escolhido para falar sobre a criminalizao da Marcha da
Maconha foi das manifestaes pblicas at o julgamento no STF, isto, evidenciado pelo
ttulo deste trabalho: Das ruas ao Supremo Tribunal Federal. J o espao, seria o Brasil,
indicado no subttulo: a criminalizao da Marcha da Maconha no Brasil.
Compreendendo que, embora a Marcha da Maconha j ocorresse desde o ano de 2002
no Rio de Janeiro e em outras localidades, somente no ano de 2007, quando houve maior
-
17
impacto na sociedade, o movimento atinge o xito esperado. Devido ao sucesso da Marcha de
2007 no Rio e do impulso que ela deu para outras cidades se organizarem, o Judicirio j se
aprontava para o ano seguinte, 2008, momento em que comeam as primeiras demandas
judiciais visando proibir a realizao das manifestaes1, at 2011, quando o Supremo decidiu
pela legalidade das manifestaes, sendo este o perodo que exploramos: 2008 a 2011.
Como o espao de explorao seria o Brasil, levantamos todas as cidades brasileiras
marchantes e pesquisamos quais delas haviam sido proibidas de marchar, e ainda, entramos
em contato com a organizao para saber se havia possibilidade de entrevista, visando
identificar em seus depoimentos episdios de represses que haviam sofrido.
Dentro desta proposta, percebemos que no possuamos todo o material que
precisvamos para desenvolver o trabalho, e que deveria ser buscado no campo ou atravs de
outras pessoas, e outros materiais at mesmo, j no mais existiam, devendo assim serem
reconstrudos.
Toda pesquisa demanda uma srie de tcnicas e atividades sequenciais para alcanar
um objetivo, para dar resposta a uma pergunta. Assim, para investigar o tema, seriam
utilizadas, a princpio, duas tcnicas comuns de pesquisa: a bibliogrfica e a documental. Mas
o que fazer quando a bibliografia for escassa e a obteno da documentao for rgida ou at
mesmo inexistente em tempo e espao?
Devido dificuldade em compreender o objeto da pesquisa, bem como da
disponibilizao de dados do estudo para realizar o que nos propomos, ou seja, falar sobre a
criminalizao deste movimento, no restou alternativa seno entrevistar as pessoas que
idealizaram e participaram do movimento. Imprescindvel foi a utilizao de tcnicas
empricas para a concluso da pesquisa de forma que a proposta do estudo no fosse
prejudicada. Foi atravs de mtodos empricos que buscamos no campo, atravs das pessoas
que protagonizaram a histria, dados para a construo do trabalho.
1 Em 2007, houve uma ao judicial no Rio Grande do Sul, no entanto no partiu do Ministrio Pblico ou outro rgo visando proibir o evento, e sim de um pedido dos manifestantes por meio de habeas corpus preventivo (Coletivo) demonstrando que poderia haver priso dos manifestantes durante o evento. A ordem foi deferida. S no ano de 2008 que comeam as proibies.
-
18
Uma vez compreendidas estas condies, o deslocamento para realizao das
entrevistas foi programado, sendo visitadas estrategicamente as cidades de Salvador, Rio de
Janeiro, Florianpolis e Braslia. Claro que o deslocamento s foi feito em ltimo caso, pois
hoje em dia podemos alternativamente nos socorrer da tecnologia para nos aproximar das
pessoas e documentos. As visitas foram feitas em cidades e dias especficos, geralmente em
seminrios e congressos relacionados com o tema de drogas, onde estava presente boa parte
das pessoas que poderiam prestar depoimentos em entrevistas. O I seminrio da Law
Enforcement Against Prohibition, a LEAP Brasil, realizado no Rio de Janeiro, e o I Congresso
Internacional sobre Drogas, Lei, Sade e Sociedade, em Braslia, foram os mais importantes.
Portanto, podemos entender que este estudo , acima de tudo, um estudo sensvel que
demandou uma pesquisa intensa de campo e coleta de dados (depoimentos, documentos,
demais informaes) a partir de fontes diretas (pessoas) que fizeram parte da histria da
Marcha da Maconha ou possuem algum outro envolvimento com ela, descrevendo fatos que
trazem diferenciao em sua abordagem e entendimento, conduzindo assim explicao do
contexto atravs de sua experincia como personagem.
1.1.1 Quanto bibliografia
No que tange s referncias bibliogrficas sobre o tema, constatamos a falta de fontes
e trabalhos acadmicos que falassem sobre a Marcha da Maconha. No havamos localizado
autores que tivessem discorrido sobre a Marcha da Maconha no Brasil, com exceo de
alguns artigos que faziam meno ao objeto do estudo, mas ainda assim, eram insuficientes
para nossa proposta.
Procuramos nos principais bancos de testes e peridicos nacionais e internacionais,
autores que tenham discorrido sobre o tema, podendo esclarecer melhor o assunto. O
resultado da consulta foi intrigante. Para exemplificar, acessando a base de dados
bibliogrficos da Coordenadoria de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior, a CAPES
(http://www.periodicos.capes.gov.br/), que, segundo a referncia do professor Salo de
Carvalho, a plataforma inseriu nos ltimos anos a academia brasileira no universo de
pesquisa mundial, possibilitando a todos os pesquisadores brasileiros, da graduao e ps-
-
19
graduao, acesso aos principais peridicos cientficos2, porm no encontramos nenhum
resultado sobre o assunto (marcha da maconha), em sua expresso exata. Outro exemplo em
que o fato se repetiu, foi com a base de dados da Scientific Electronic Library Online, a Scielo
(http://www.scielo.org/), tambm um referencial em plataforma de dados de pesquisa
cientfica no Brasil.
Ainda, importante registrar que, uma vez descoberta a origem da Marcha da Maconha,
qual seja, a Milion Marijuana March americana, pesquisamos em plataformas de artigos
cientficos e teses (www.jstor.org e google acadmico) utilizando as palavras marijuana
march, milion marijuana march, global marijuana march e nenhum dado foi encontrado.
Intrigados, entramos em contato com um pesquisador de Universit of Tulane, que gentilmente
nos ajudou com a busca, localizando apenas um nico documento sobre a Global Marijuana
March, um tpico de um artigo de apenas sete linhas sobre o tema, ou seja, tambm no
localizou qualquer documento3, sendo encontrado apenas uma reportagem de uma revista
canbica.
A falta de bibliografia sobre o tema foi o maior incentivo para partir para as
entrevistas. No decorrer da conversa com os entrevistados, a autora questionava se haviam
produzido algum material sobre o tema e algumas respostas foram positivas,
consequentemente, indicando os trabalhos. Srgio Vidal, por exemplo, escreveu um artigo
esclarecedor quanto ao surgimento do debate antiproibicionista e as primeiras atuaes da
sociedade civil em torno do assunto. No era um trabalho exatamente sobre a Marcha da
Maconha, mas trazia elementos importantes para desbravar a questo.
Passado meses do inicio deste estudo, descobrimos que alguns trabalhos estavam
sendo elaborados, mais precisamente duas dissertaes de mestrado, a de Mauro Leno
Silvestrin e Jlio Delmanto, estas que, s tivemos conhecimento depois de mais da metade da
pesquisa, onde os autores, gentilmente, nos enviaram para estudo, mesmo antes de sua
concluso.
2 CARVALHO, Salo de. Como (no) se faz um trabalho de concluso: provocaes teis para orientadores e estudantes de direito, 2 ed. So Paulo: Saraiva, 2013, p. 42. 3 Research Global Marijuana March. [e-mail] De: [email protected] para: [email protected].. Enviado em 30 de junho de 3013.
-
20
1.1.2 Anlise documental: arte, mdia, procedimentos judiciais e no judiciais
Os documentos utilizados para extrao de dados na pesquisa foram: 1) arte (flyers da
Marcha da Maconha, cartazes, camisetas, calendrios personalizados, outros materiais
confeccionados para divulgao); 2) notcias de meios de comunicao (jornais, revistas,
vdeos); e 3) documentos jurdicos (ofcios e comunicados dirigidos Secretaria de Segurana
Pblica e outros rgos, boletins de ocorrncia, termos de interrogatrios, autos processuais).
A arte parte expressiva fundamental da Marcha da Maconha enquanto movimento
social e cultural. A expresso artstica proveniente do perfil de seus idealizadores e
manifestantes utilizada, alm de atrativo 4 , como forma de divulgao de ideias e
informaes sobre o movimento. Por meio de adesivos, flyers, calendrios, camisetas e
chaveiros, entre outros objetos personalizados, a Marcha da Maconha difundia a lista de
cidades marchantes, informando dia e local das passeatas. Alguns dos trabalhos exibiam
inclusive instrues sobre como se comportar durante a passeata e, s vezes, narravam
proibies judiciais pelo pas.
Em relao busca de documentos produzidos pela mdia, ou seja, jornais, revistas,
sites de notcias e reportagens, constatamos grande quantidade de material de fcil acesso que
foi selecionado por ano, contendo informaes sobre as passeatas, ou a proibio destas.
Alguns desses materiais foram doados pelos entrevistados tambm.
Quanto busca por informaes sobre as disputas no Judicirio envolvendo a Marcha
da Maconha, imprescindvel seria fazer uma anlise dos prprios instrumentos processuais.
Ocorre que, em decorrncia do tempo que se passou desde a distribuio e processamento, os
processos encontravam-se arquivados e a Justia de cada estado brasileiro dispe de
procedimento especfico para obteno de cpia dos mesmos. Seria preciso consultar 26
Estados da Federao, mais o Distrito Federal. Felizmente, nos dias de hoje, podemos contar 4 Os organizadores deixam claro que, como forma de atrair cada vez mais manifestantes para as passeatas, atriburam, na definio de Maira Guarabyra, uma cara pop para a Marcha da Maconha. A Marcha no se identifica como um evento poltico tradicional munido de bandeiras de partido e gritos de ordem, pelo contrrio, procurava fugir de tudo isso e fizeram uso da arte para inovar a maneira de fazer poltica. Uma analogia Marcha da Maconha como manifestao poltica com forte expresso artstica a Parada Gay, que rene a populao LGBT com seu esteretipo alegre, colorido, excessivo e cheio de brilho na Avenida Paulista uma vez por ano. Hoje, a passeata vista como uma grande festa e at quem no homossexual participa do evento. GUARABIRA. Maira. Depoimento [jul. 2013]. Entrevistadora: Lorena Otero. So Paulo: Lapa, 2013. MP3. Entrevista concedida a este trabalho; LANTELME FILHO, William. Depoimento [mai. 2013]. Entrevistadora: Lorena Otero. So Paulo: Lapa, 2013. MP3. Entrevista concedida a este trabalho.
-
21
com a internet para a chamada consulta eletrnica processual, obtida diretamente no site de
cada Tribunal de Justia.
Em consulta ao Tribunal de Justia de So Paulo (www.tjsp.jus.br) observamos o
campo para fazer a consulta de processos (criminais e cveis, tanto do interior, quanto da
capital e ainda da segunda instncia) que podem ser obtidos atravs do fornecimento das
seguintes informaes: nmero do processo (desconhecido), nome da parte (desconhecidos os
representantes do movimento capazes de serem parte de um processo judicial); documento da
parte (desconhecido); nome do advogado (desconhecido), OAB do advogado (desconhecido),
ou seja, no havia informaes para busca processual. Insistindo na consulta por marcha da
maconha, no campo nome da parte, a pesquisa resta frustrada.
Para quem possui certa experincia em navegar pelos sites dos Tribunais de Justia do
pas em busca de informaes de processos, induzida tambm a consulta jurisprudencial,
pois, considerando que houve, com toda certeza, um processo em relao Marcha da
Maconha, esse processo foi julgado e seu acrdo foi registrado e disponibilizado para
consulta do documento. Assim, introduzindo as palavras marcha da maconha no campo
pesquisa livre de jurisprudncia, localizamos 14 aes judiciais, pois esse verbete era
mencionado a todo momento no texto das decises judiciais. Diante do xito na obteno das
informaes que inicialmente precisvamos para discorrer sobre as incriminaes de apologia
ao crime versus direito livre manifestao do pensamento, como nmero do processo, tipo
de ao judicial, advogados, promotores, julgadores, bem como responsveis que assinavam
como organizadores do evento, procedemos com a mesma consulta em todos os Tribunais de
Justia brasileiros. Conseguimos, neste momento, uma obteno parcial de material
documental onde tnhamos a concluso da demanda, ou seja, apenas o juzo do julgador. Seria
necessrio ir em busca dos argumentos tanto das acusaes quanto da defesa, no se limitando
ao relatrio do acrdo. Tarefa que, pelo tempo que nos foi dado, restaria tambm frustrada,
no senso possvel desarquivar os autos para anlise a tempo.
Os entrevistados foram questionados se possuam cpias dos processos que envolviam
a Marcha da Maconha, sendo que muitos haviam guardado boa parte destes documentos, que
foram enviados por correio para o endereo da autora.
-
22
Se por um lado houve certa dificuldade na obteno de informaes processuais na
Justia Estadual, no site do Supremo Tribunal Federal (http://www.stf.jus.br/) localizamos
com facilidade em consulta ao campo andamento processual, buscando pela Arguio de
Descumprimento de Preceito Fundamental, a ADPF n 187 - que se encontrava totalmente
digitalizada. Ou seja, atravs do site do STF, pela consulta processual, poderamos ler o
processo completo, a representao, a petio inicial, as manifestaes da Advocacia Geral da
Unio e dos Amicus Curie, bem como o acrdo que julgou a ao.
1.1.3 Entrevistando os protagonistas da histria da Marcha da Maconha
A entrevista, utilizada como tcnica de pesquisa emprica, para este trabalho foi uma
iniciativa decisiva. Este estudo s foi possvel em decorrncia de muito dilogo entre a autora
e os entrevistados, essencialmente aqueles que se fizeram mais prximos a fim de esclarecer
quaisquer dvidas, que surgiam com certa frequncia5.
Para realizao das entrevistas, privilegiamos o contato pessoal entre entrevistador e
entrevistado, mediante gravao de udio, e, quando no era possvel a pessoalidade, foram
utilizados os recursos do Skype6. Isto, salvo raras excees onde, por motivo de fora maior,
no era possvel o contato pessoal ou via Skype, restando alguns depoimentos coletados
atravs de e-mail.
Ao todo, foram realizadas 53 entrevistas7, que foram transcritas e selecionadas as falas
que utilizaramos para o trabalho, em um plano contemplando trs modalidades de
5 Emlio Nabas Figueiredo, o primeiro contato que fizemos, foi quem nos direcionou s pessoas envolvidas com a Marcha da Maconha, em diferentes localidades. Ainda na fase de levantamento de dados, na elaborao da lista com os nomes das instituies e coletivos antiproibicionistas, disparamos e-mails para os coletivos para que pudessem analisar a lista e informar se conheciam alguma outra organizao que no estivesse listada. Emlio respondeu o e-mail destinado ao Growroom, pois consultor jurdico do coletivo. Na poca, era aluno de ps-graduao em Terceiro Setor e Responsabilidade Social no Instituto de Economia da UFRJ, e sua pesquisa de trabalho de concluso tambm abrangeria as organizaes da sociedade civil e a demanda por direitos ou mudana em Polticas Pblicas relacionadas poltica de drogas. Foi um colaborador elementar para este trabalho. FIGUEIREDO, Emlio Nabas. Assunto: Re: Instituies e Movimentos Sociais por uma nova poltica de drogas. De: [email protected]; para: [email protected], 18 de janeiro de 2013. 6 O Skype (http://www.skype.com/) um programa de comunicao da Microsoft que serve para ajudar as pessoas a fazerem coisas juntas quando esto separadas. Possui chat, chamadas de voz com vdeo e facilita a troca de experincia, onde quer que as pessoas estejam. 7Porm, nem todas foram utilizadas neste trabalho. A autora descartou entrevistas em que o depoimento dos entrevistados no estivesse alinhado, neste momento, com sua proposta de estudo, bem como os que no
-
23
entrevistados, que assim dividimos: 1) ativistas; 2) advogados; 3) outras personalidades
(polticos, magistrados, promotores e agentes da lei (Apndice B Qualificao dos
Entrevistados)8. As questes a serem abordadas foram pensadas exclusivamente para cada
um dos entrevistados e diferentes estratgias foram aplicadas para cada grupo, a fim de
explorar as experincias de cada um em relao ao tema (Apndice C Roteiro de
Entrevistas).
Iniciamos as entrevistas com os ativistas, procurando respeitar a ordem cronolgica de
atuao deles na organizao das marchas, conforme fomos descobrindo-os e identificando-os
atravs dos fruns de discusses do Growroom (http://www.growroom.net/board/forum/) e da
Marcha da Maconha, onde se utilizavam de apelidos. Enquanto entrevistvamos um ativista,
perguntvamos se este possua conta em uma daquelas pginas, qual era seu apelido e, ainda,
se poderiam indicar outros colegas de militncia, o que acabava quase sempre nos
direcionando a outras pessoas.
Aos poucos, estes conviventes do ciberespao, deixam o medo do estigma, do
preconceito e da criminalizao e vo se identificando neste trabalho, fazendo as peas do
quebra-cabea, mais uma vez, se encaixarem. Interessante foi notar que at mesmo os
ativistas, quando questionados durante as entrevistas, se espantaram por j no mais
lembrarem de seus posts antigos, por no se darem conta de que registraram uma histria na
internet, e por no estarem acreditando que pesquisadores os estavam estudando.
Para os ativistas, preparamos questes buscando explorar suas experincias nas
participaes/organizao dos eventos, sobre as pessoas envolvidas que poderiam ser
entrevistadas, se havia assessoria jurdica e quem eram os colaboradores, se personalidades
polticas incentivam a iniciativa e, sobretudo, se sofreram algum tipo de represso no decorrer
da militncia, e que relatassem detalhadamente estes episdios.
Aps, procuramos os advogados que prestaram assessoria jurdica ao movimento.
Perguntamos o que os motivou a colaborar com o movimento e quais eram suas estratgias de
defesa. Relataram os trmites processuais, pesquisas jurdicas sobre as teses utilizadas, troca
apresentassem nenhuma informao relevante. Houve casos em que os entrevistados apenas contavam sobre a organizao, desentendimentos internos no movimento, entre outras informaes que no julgamos relevante. 8 A lista era modificada com frequncia, na medida em que identificvamos mais personagens na histria do movimento. Geralmente, eram informados pelos entrevistados, durante as entrevistas.
-
24
de experincias entre colegas, diligncias forenses, cultura dos Tribunais em que atuaram.
Questionamos tambm sobre eventual represso sofrida em decorrncia de seu trabalho, e
alguns responderam positivamente, descrevendo minunciosamente cada uma delas e
apontando as pessoas que as fizeram. Alguns advogados j atuam h anos pela modificao na
poltica de drogas no Brasil. Nilo Batista, Alberto Zacarias Toron e Salo de Carvalho, por
exemplo, possuem vrios artigos e at livros publicados sobre a questo, sustentando posio
favorvel descriminalizao das drogas.
Seguindo o cronograma de acontecimentos da Marcha da Maconha, uma vez
compreendidos os fatos das disputas judiciais no mbito dos Tribunais Estatuais,
entrevistamos tambm os advogados que atuaram no Supremo Tribunal Federal representando
as entidades admitidas como amicus curiae na ADPF n 187.
Se por vez ouvimos os defensores da Marcha da Maconha, igualmente ouvimos
aqueles que a acusavam de fazer apologia ao crime, os promotores de justia. Questionados
sobre sua motivao em ingressar no judicirio para proibir a realizao das manifestaes,
explicaram seus motivos, apontando os fundamentos jurdicos e as circunstncias que estavam
envolvidos poca. Contaram ainda de contatos com outros colegas de profisso para
compartilharem seus pontos de vistas e atitudes a serem tomadas em relao s manifestaes,
bem como a criao de associaes a fim de reprimir essas condutas. Embora a posio do
Ministrio Pblico em relao Marcha da Maconha fosse repressiva, registramos que no foi
unnime, sendo coletados tambm depoimentos de promotores que se posicionaram a favor da
realizao das Marchas da Maconha, mesmo mantendo uma posio conservadora em relao
descriminalizao da droga.
Foram entrevistados tambm membros do Ministrio Pblico Federal, que explicam
por que decidiram ingressar com a ADPF perante o STF. Para este perfil de entrevistados,
tambm exploramos questes em relao represso eventualmente sofrida por algum deles.
No constatamos nenhum relato pessoal dos membros do Ministrio Pblico, tanto Estadual
quanto Federal, de que tenham sofrido qualquer tipo de represso. Afirmavam que a reao
das pessoas que a eles se dirigiam era, em sua totalidade, de apoio.
Ainda explorando os perfis do terceiro grupo de entrevistados que relacionamos,
buscamos o depoimento de magistrados que tiveram contato com os processos da Marcha da
-
25
Maconha. Estes julgadores relataram a sensao que tiveram do Judicirio quanto s decises
proferidas, tanto de suspenso quanto de permisso da realizao dos eventos. Descrevem
casos de aproximao com a matria onde buscaram compreender melhor o assunto e at
mesmo trocar experincias com outros colegas de magistratura. Ambos os julgadores,
favorveis e contrrios, foram reprimidos, e, registramos estas represses.
Alm das figuras jurdicas do terceiro grupo de entrevistados, registramos os
depoimentos tambm de personalidades polticas que apoiaram o movimento e que inclusive
participavam das passeatas e que tambm sofreram represses por sustentarem sua posio,
ainda mais pelo peso de tal atitude, em decorrncia da visibilidade que o cargo pblico
implica. Registramos tambm relatos de agentes da lei que descreveram fatos de represses
policiais e at mesmo nos indicaram para outros profissionais a fim de coletar depoimentos.
Desta forma, procuramos reconstruir a Marcha da Maconha com os depoimentos dos
protagonistas da histria do movimento. Os relatos foram transcritos e esquematizados
cronologicamente e as informaes que nos foram passadas buscamos, sempre que possvel,
relacionar com a documentao a que tivemos acesso. Assim, exemplificando de maneira
prtica os relatos de prises de ativistas que ouvimos nos depoimentos, procurvamos
documentao para confrontar as falas e at complementao das informaes, como os
termos circunstanciados de ocorrncias lavrados nas delegacias e notcias sobre as prises ou,
para cada relato de deciso judicial e argumento judicial, buscvamos analisar os prprios
documentos processuais.
-
26
CAPTULO 2
A MARCHA DA MACONHA NO BRASIL:
UMA HISTRIA DE REPRESSO
2.1 Breve introduo histria do movimento pr-legalizao no Brasil
No adianta olhar pro cu Com muita f e pouca luta
Levanta a que voc tem muito protesto pra fazer
At quando? (Gabriel O Pensador)
Anos aps as primeiras iniciativas antiproibicionistas ps-republicanas e com o uso
macio da internet, que vem ao longo dos anos disponibilizando recursos cada vez mais
aprimorados, no demoraram a surgir movimentos sociais em prol da legalizao das drogas,
tema j h muito tempo discutido. E foi em meio a este cenrio que se massificou o maior
evento j visto no Brasil pela causa: a Marcha da Maconha.
A Marcha da Maconha, denominao abrasileirada da Million Marijuana March,
um evento mundial realizado em diversas cidades, que rene indivduos e coletivos, no
primeiro sbado do ms de maio, considerado o Dia Mundial pela Descriminalizao da
Maconha, para ir s ruas pedir mudanas na lei de drogas.
Nas palavras de Salo de Carvalho, a Marcha da Maconha objetiva realizao de
manifestaes pacficas, performances culturais e atos de livre expresso para informao e
discusso de polticas pblicas que envolvem a (des)criminalizao da Cannabis e
idealizada e coordenada por organizaes civis e pblicas no governamentais9.
As primeiras articulaes em torno da realizao do evento ocorreram nos Estados
Unidos no ano de 1998, organizadas pela ONG americana Cure-Not-War, tendo como seu
principal representante o ativista Dana Beal. Tais articulaes resultaram no evento
9 CARVALHO, Salo de. A poltica criminal de drogas no Brasil: estudo criminolgico e dogmtico da Lei 11.343/06. 6 ed. So Paulo: Saraiva, 2013, p. 393/394.
-
27
denominado Million Marijuana March (MMM), que tomou dimenso global e passou em
1999 a ser conhecido mundialmente como Global Marijuana March (GMM)10.
Atualmente, Dana Beal est preso em Nebraska (EUA) e o tradicional stio eletrnico
da marcha americana foi censurado11. Em uma entrevista que Beal concedeu a uma revista de
cultura canbica12, ele faz alguns relatos sobre a GMM:
The first Million Marijuana March was held in New York City on the first Saturday of May, May, 1 1998, to announce the launch of the Worldwide March the following year. It was attended by Ed Rosenthal, Jack Herer, Gatewood Galbraith and Dennis Peron, in response to New York Mayor Rudolf Giulianis (rhymes with Adolf Mussolini) attempt to completely ban our traditional pot parade, held every year since 1972.
()
In 1999 we had the biggest march in years, pictured at the end of the movie GRASS. Best of all, in that first year we were already established in 36 cities. Through the Millennium Marijuana March (2000), the 2001 Space Odyssey, and 2002s Liberation Day, we advanced to 238 cities. Then in mid-decade fell back to a low point of about 165 cities, only to advance in 2010 to 330 cities. This year, with Marc Emery and myself locked up, we probably will come nowhere near our goal of 420 cities. But we know that when we reach our goal of 1000 to 10,000 people in 900 cities, a phase shift will occur and the marijuana movement will be accepted as a legitimate civil rights movement everywhere13.
Com um calendrio oficial previamente divulgado em diferentes formas de veiculao
(sites, fruns, flyers, psteres), o evento vem ocorrendo mundialmente, em cerca de 300
10 RAJ. Bruno. Resistncia Verde: 10 anos de Marcha da Maconha. Revista semSemente: So Paulo, volume 1, pg. 14, junho/julho 2012. 11 Beal foi preso diversas vezes desde os anos 60. Mais recentemente, em 2009, foi detido com cerca de 70 kg de maconha, em 2008 com uma pequena quantia e US$ 150 mil e em janeiro de 2011, com 84 kg da mesma droga. Ele alegou que a maconha era destinada para fins medicinais, algo que permitido em alguns Estados americanos. Os stios eletrnicos www.millionmarijuanamarch.org e www.globalmarijuanamarch.org foram desativados. 12 As perguntas foram transmitidas via e-mail para o advogado de Dana e respondidas por ele a lpis, na cadeia, enviadas por correio e enviadas para a revista. A entrevista completa foi publicada em Cannabis Culture Magazine. Disponvel em: http://www.cannabisculture.com/node/27053. Acesso em 11 de maio de 2013. 13A primeira Marcha da Maconha foi realizada em Nova Iorque, no primeiro sbado de Maio de 1998 (01/05/1998) para anunciar o lanamento da Marcha Mundial no ano seguinte. Foi organizada por Ed Rosenthal, Jack Herer, Gatewood Galbraith e Denis Peron, em resposta ao prefeito de Nova Iorque Rudolf Giuliani (que rima com Adolf Mussolini) que tentava banir completamente a nossa tradicional Pot Parade (Parada da Maconha), realizada anualmente desde 1972. () Em 1999, tivemos a maior marcha de todos os tempos, a que exibida no final do filme Grass. O melhor de tudo, que nesse primeiro ano ns j estvamos estabelecidos em 36 cidades. Atravs (da mobilizao) para as Millenium Marijuana March (em 2000), The 2001 Space Odyssey e a Liberation Day (de 2002), avanamos para 238 cidades. No meio dessa primeira dcada camos para o ponto mais baixo de eventos registrados: 165 cidades, para da avanar, em 2010, para 330 cidades. Esse ano, com Marc Emery e eu trancados, provavelmente no chegaremos nem perto de nossa meta das 420 cidades. Mas ns sabemos que quando chegarmos ao nosso objetivo de ter entre 1.000 e 10.000 pessoas em cada uma de 900 cidades, uma mudana de fase vai ocorrer e o movimento pr-maconha ser aceito como um movimento de direitos civis legtimo em todo lugar. (traduo nossa)
-
28
cidades ao redor do mundo14, somando cada vez mais participantes. As denominaes dadas
ao evento variam segundo a localidade, assim tambm so sinnimos: World Cannabis Day,
Cannabis Liberation Day, Global Space Odyssey, Ganja Day, J Day, Million Blunts March.
No Brasil, a primeira marcha nos moldes da GMM foi incentivada pela portuguesa
Susana Sousa15, que estava de passagem no pas. O evento foi intitulado de Marcha Mundial
da Maconha, traduo literal da verso americana. Foi organizada de modo espontneo, sem
ligao com partidos polticos ou movimentos estudantis. A estrangeira identificou um ponto
na cidade do Rio de Janeiro que era frequentado por usurios de maconha e distribuiu flyers
em forma de folhas de seda carimbadas com a descrio do evento16, que reuniu cerca de 800
pessoas na Praa Nossa Senhora da Paz e que terminou no posto 9, na praia de Ipanema17.
No houve qualquer represso policial durante a realizao do evento.
Figura 01 - Flyer da Marcha Mundial da Maconha em folha de seda: distribuda pela portuguesa Susana Souza, no Rio de Janeiro, convidando para a Marcha Mundial da Maconha, o primeiro registro documental do evento brasileiro nos moldes da GMM. (Foto: digitalizao do documento original, fornecido por William Lantelme Filho)
14GLOBAL Cannabis March, Aproximao diante da listagem das cidades inscritas na GMM no ano de 2013. Disponvel em http://www.globalcannabismarch.com/. Acesso em 11 de maio de 2013. 15 A Susana era uma pessoa especial, nos conta Luiz Paulo Guanabara lembrando da amiga que faleceu em 2011. Susana organizou marchas no Brasil e na Argentina. 16 RAJ. Bruno. Resistncia Verde: 10 anos de Marcha da Maconha. Revista semSemente, So Paulo, volume 1, pg. 14, junho/julho 2012. O autor confirmou as informaes na entrevista para esse trabalho. 17 Relatos de alvaro lobo e Hernesto, no frum do stio eletrnico da Marcha da Maconha. Hernesto Bruno Raj. Muitas das informaes sobre esse trabalho so provenientes de fruns da internet, meio pelo qual os manifestantes se comunicavam, ainda com pseudnimos, apelidos, para protegerem sua identidade real. Disponvel em: http://forum.marchadamaconha.org/lofiversion/index.php?t450.html. Acesso em 11 de maio de 2013.
-
29
Aps a iniciativa no Brasil, a organizao do evento retomada na mesma cidade, pela
Psicotropicus, uma organizao no governamental brasileira especializada em reduo de
danos, em parceria com personalidades polticas apoiadoras da causa. Luiz Paulo
Guanabara18, representante da Psicotropicus, nos conta em entrevista que em 2003 s no
ocorreu o evento porque o parceiro de organizao Fernando Gabeira desistiu s vsperas do
evento e em 2004 recuou novamente, mas depois de todo o trabalho da organizao, decidiu
promov-la mesmo com a desistncia do poltico. E assim o evento se repetia, desta vez com
o nome de Marcha Mundial pela Legalizao da Maconha, que se realizou pacificamente na
orla carioca, sem qualquer constrangimento ou represso.
Ainda em 2004, destacou-se no Rio de Janeiro a consolidao do Movimento Nacional
pela Legalizao das Drogas (MNLD), movimento composto por ex-membros do Partido dos
Trabalhadores (PT), que posteriormente fundaram o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL),
sendo a personalidade mais conhecida Renato Cinco, e tinham como principal objetivo
promover debate sobre a atual poltica de drogas a partir de uma reflexo que fizeram sob a
tica da democracia19.
O que nos levou a debater a poltica de drogas foi a questo da antiga ditadura e o atual regime de democracia. Naquele ano (2004), se eu no me engano, ou em 2003, a polcia no Rio estava matando onze pessoas por dia, na tortura, nas cadeias, e a gente comeou a discutir isso porque a gente a sexta economia do mundo e a oitava desigualdade social e no tem nenhum pas no mundo como o Brasil, to rico, to poderoso e com uma desigualdade social to grande e obvio que isso no foi uma deciso democrtica, obvio que o povo no optou por viver isso, ento a nossa democracia ela de faixada, sequestrada. Ento a gente tentou comear a entender como aquele processo se desenvolveu, acho que todos nos j ramos a favor da legalizao das drogas, e quando a gente foi discutir esse problema com a democracia a gente chegou nessa concluso, ento nos decidimos fazer a marcha20. (sic)
A primeira atividade pblica do MNLD foi a oficina Basta de guerra s drogas: a
nova cara da velha ditadura, realizada no dia 29 de janeiro de 2005, no V Frum Social
Mundial de Porto Alegre.
18 GUANABARA, Luiz Paulo. Depoimento [ago. 2013]. Entrevistadora: Lorena Otero. Rio de Janeiro: Centro, 2013. MP3. Entrevista concedida a este trabalho. 19 O MNLD surgiu a partir de treze ex-integrantes do PT que estavam saindo do partido e em meio a debates sobre democracia e politica de drogas, decidiram iniciar, em 2004, militncia no assunto. 20 CINCO, Renato Athayde Silva. Depoimento [mai. 2013]. Entrevistadora: Lorena Otero. Braslia: Museu da Repblica, 2013. MP3. Entrevista concedida a este trabalho.
-
30
Neste mesmo ano, retornando ao Rio, o MNLD passou a organizar a Marcha, que
ainda ocorria pacificamente em quantidade razovel de manifestantes, em parceria com a
Psicotropicus. No ano seguinte organizaram a Marcha Rio pela Legalizao das Drogas:
Basta de Violncia. A programao iniciou-se no Instituto de Filosofia e Cincias Sociais
(IFCS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) com a exibio dos filmes Grass,
sobre a histria da proibio da maconha nos EUA, e Narcotrfico: entre a mentira e o
espanto, sobre a problemtica da produo de drogas na Colmbia. Aps os filmes, partiram
em marcha do Largo de So Francisco at a Cinelndia, contando com a participao de cerca
de 100 pessoas21.
Na capital gacha, as primeiras articulaes em torno da realizao de um movimento
pr-legalizao ocorreram no ano de 2005. Os estudantes Denis Petuco, Rafael Gil e Tiago
Ribeiro, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS), fundaram o Coletivo
Antiproibicionista de Porto Alegre22, que tinha inicialmente o objetivo de organizar a Marcha
na cidade.
Denis nos descreve que, em sua atuao como redutor de danos, teve oportunidade de
assistir a uma fala de Luiz Paulo Guanabara durante um encontro de especialistas em reduo
de danos em Campo Grande (MS), pde conversar mais com ele, e voltou para Porto Alegre
com a ideia de organizar o evento.
Quando comecei a atuar na reduo de danos, trazia uma bagagem da educao popular e quando eu ouvi o Luiz Paulo falando da Marcha da Maconha, da necessidade de incluir dentro do debate da reduo de danos, essa fala que no era uma coisa consensual dentro da reduo de danos, e ainda no , no bvio que os redutores de danos defendem a legalizao. Para mim, era bvio e fui procurar ele e ele me deu uma provocada no tem ningum fazendo esse debate no Rio Grande do Sul, por que voc no faz? Ento eu levei esse debate dentro da reduo de danos de Porto Alegre, mas a galera no foi muito simptica. (...) ento levei a questo para dentro da universidade e l encontrei um pessoal parceiro, um deles e o Thiago Ribeiro, (...) e o Rafael Gil e ns trs formamos oque veio a ser o Princpio Ativo, o nome do grupo foi batizado pelo Marcos Rolim, que foi um cara que nos ajudou muito quando a gente quis organizar pela primeira vez uma marcha da maconha nas ruas. E nesse primeiro ano ns decidimos fazer uma atividade de rua naquele primeiro momento23.
21 MOVIMENTO Nacional pela Legalizao das Drogas. Blog. Disponvel em: http://mnldrogasarquivos.blogspot.com.br/2006/11/marcha-rio-pela-legalizao-das-drogas.html. Acesso em 26 de maio de 2013. 22 Que mais tarde passaria a se chamar Princpio Ativo. 23 PETUCO, Denis Roberto da Silva. Depoimento [jun. 2013]. Entrevistadora: Lorena Otero. Rio de Janeiro/So Paulo: Lapa, 2013. MP3. Entrevista concedida a este trabalho.
-
31
Com o tempo os objetivos deste coletivo foram se ampliando e o debate tomou
dimenses mais amplas. Com o apoio da UFRS, no Diretrio Central dos Estudantes (DCE)
foi realizado o primeiro evento do Coletivo para debater a poltica de drogas. Esse evento foi
descrito como pertencente ao Dia Mundial pela Legalizao da Maconha e registrado no
calendrio oficial da GMM americana.
Figura 02 Evento pertencente ao Dia mundial pela legalizao da maconha realizado no DCE da UFRS no dia 7 de maio de 2005 pelo Coletivo Antiproibicionista de Porto Alegre, o Principio Ativo. (Foto: Rafael Gil)
Pela experincia da roda de dilogo que foi realizada em 2005, os integrantes do
Coletivo concluram que seria possvel organizar a Marcha em forma de passeata no ano
seguinte. No entanto, em 2006, o evento no ocorreu em Porto Alegre e, diante dos motivos
que levaram ao seu cancelamento, registramos a primeira ao de represso significativa em
torno do movimento.
Aps elaborar o material de chamada para o evento e realizar todo o trabalho de
divulgao, em decorrncia de uma forte presso policial instigada pela mdia gacha - o
Grupo RBS 24 publicou uma notcia que repercutiu fortemente dizendo que at o nome
24Retransmissora da Rede Globo no Rio Grande do Sul. eles detm o monoplio dos veculos de informao do Rio Grande do Sul, afirma Petuco.
-
32
Marcha da Maconha era uma apologia - poucos dias antes da realizao do evento os
organizadores foram surpreendidos25.
Denis Petuco explica os fatos melhor do que poderamos:
Cinco ou seis dias antes da marcha ns recebemos um e-mail de um jornalista do maior jornal da cidade, o Jornal Zero Hora, pedindo um telefone, pedindo para fazer uma entrevistas, como eu te falei ontem, nos tnhamos muito receio do pessoal l da retransmissora da Globo, o pessoal l tem uma grande empresa de comunicao que eles tem os canais de rdio, televiso, mais assistidos, jornal, enfim, dominam toda a mdia do Rio Grande do Sul, um grupo familiar, extremamente conservador, no s do ponto de vista poltico mas tambm do ponto de vista moral se que a gente pode separar as duas coisas. Quando apareceu aqui aquilo ns tivemos uma reuniozinha do Princpio Ativo, que era eu, o Rafael Gil e o Tiago, e decidimos que entrevista pessoal por telefone pode ser perigoso, ento vamos propor o seguinte: fazer uma entrevista por e-mail. Ento eles mandam as perguntas e a gente manda as resposta e a a gente fez e tudo mais e eu sei que dentro de um ou dois dias e comeou a acontecer no jornal, no rdio eles comeam a divulgar informaes completamente aterrorizantes da marcha de modo que coisas do tipo: eu recebo uma ligao do tipo: meu nome fulano eu t ligando porque eu e meus amigos a gente vai participar da marcha, e eu olha, que legal. Voc vai com seus amigos, vocs vo em uma turma, como ?. Ele disse isso, isso, a gente vai em uma turma eu disse ento deixe eu dar uma orientao para voc que a gente est dando para todo mundo, eu disse no leve nada, deixe o beque em casa e o cara ok, tudo bem. Era um jornalista. (...) e a ele divulgou essa conversa, totalmente editada, e essa frase deixe o beque em casa ele ficava repetindo mais ou menos [como] quando um jornalista faz uma entrevista com algum criminoso e o cara confessa o crime e fica aquela frase da confisso, e eu me perguntava qual o problema de voc dizer isso, sem contar na matria de jornal que vi dizendo organizador da marcha diz que ela no apologia mas admite ter sido presidente do... ou seja, fulano nega as acusaes mas admite, n?... Esse tipo de construo. Ento assim, eu no admito ter sido presidente do conselho, eu fui presidente do conselho, no h nada que precise ser admitido ali, mas quando voc faz uma matria assim, voc sabe o que est sendo produzido, esta sendo produzida a criminalizao e a passou a receber ligaes da delegacia de narcticos, os nossos telefones passaram a ser grampeados, eu ligava pro Rafael e a gente ouvia barulho de botozinho sendo apertado, at que a gente recebeu um convite do delegado da delegacia de narcticos, numa sexta-feira recebemos o convite, a marcha estava marcada para o domingo 26 . (sic) (grifos nossos)
(...)
Tiago Ribeiro nos conta que na poca conversou com o pai de um amigo da faculdade
que Defensor Pblico e que ele disse que essa interceptao telefnica era ilegal, inclusive,
25 PETUCO, Denis Roberto da Silva. Depoimento [jun. 2013]. Entrevistadora: Lorena Otero. Rio de Janeiro/So Paulo: Lapa, 2013. MP3. Entrevista concedida a este trabalho. 26 PETUCO, Denis Roberto da Silva. Depoimento [jun. 2013]. Entrevistadora: Lorena Otero. Rio de Janeiro/So Paulo: Lapa, 2013. MP3. Entrevista concedida a este trabalho.
-
33
ns conversamos por telefone, ele falando que era ilegal e falando sobre as consequncias
disso, para a polcia ouvir 27.
Nesse dia (domingo) eu (Denis) e o Tiago fomos delegacia de narcticos e a aconteceu uma coisa muito interessante. Ns recebemos uma ligao da Bandeirantes. A Bandeirantes queria fazer uma entrevista conosco e a a gente acabou marcando na frente da delegacia, a o pessoal foi l, nos entrevistou e enquanto ns ramos entrevistados, os policiais vieram todos para frente da delegacia assistir a entrevista, ficaram l olhando, a a gente entrou na delegacia e comeou uma srie de intimaes o tempo inteiro, na chegada o pessoal pediu documento e a o Tiago s tinha a carteira de estudante. E a polcia ah, isso no documento, que num sei o qu, e a o Tiago, se sentindo intimidado, falou olha, cara, eu no sou obrigado a estar aqui, eu fui convidado, se vocs no querem que eu entre eu vou embora, no tem problema nenhum. Eu no quero entrar aqui e sim vocs que querem que eu entre. A o pessoal se ajeitou por l pera um pouquinho e claro que morreu a, porque a gente no precisa ter documento pra entrar numa delegacia, a gente sabe disso. At porque voc chega numa delegacia, por exemplo, depois de ter sido roubado, est sem documento. A eles nos encaminharam para uma salinha e essa salinha ela era uma salinha pequena, com um banco de ferro, esse banco em formato de U acompanhando a parede e na altura e imaginando assim na altura da cabea, uma barra de ferro. E a gente olhando aquilo eu falei caramba, olhei para o Tiago e disse Tiago, voc se deu conta de onde estamos? eu disse cara essa barra de ferro onde eles colocam as algemas, ou seja, depois vieram nos buscar. Todo aquele procedimento de gente que est sendo presa! A nica diferena e que no tnhamos algemas... Mas eles fizeram questo de deixar muito claro que nos estvamos sendo tratados desse modo. E fomos chamados para a reunio depois de 15 minutos de espera e nos conduziram dois policiais frente, dois policiais atrs. Chegando sala do delegado, ele estava com o novo comandante da Brigada Militar Gacha, e eles pediram que nos explicssemos e ns explicamos para ele que era um evento internacional que a gente estava promovendo em Porto Alegre e explicamos para ele o que era esse movimento, que no havia nenhuma caracterstica de desobedincia civil, muito pelo contrrio, nossos materiais sempre diziam para [que] no levem drogas e que uma atividade poltica, e que ns mesmos estvamos preparados para caso a pessoa aparecesse com alguma coisa, ns estamos preparados para chegar at aquela pessoa e pedir para parar. Depois de nos ouvir, o delegado toma a palavra e diz o seguinte - eu nunca vou me esquecer disso - ele disse assim: olha, mesmo que nenhuma ilegalidade acontea, ilegalidades vo acontecer e ns iremos agir. Tiago e eu deciframos aquela frase assim: se ningum estiver infringindo a legalidade ns daremos um jeito para que alguma ilegalidade seja cometida para que isso justifique nossa ao. O nome do delegado eu no me lembro, mas o sobrenome era Grello, eu ainda encontrei esse camarada em programas de rdio, em funo disso ns passamos a ser chamados para entrevistas, tanto eu quanto ele, e chegou at a me pedir desculpas em outro momento, tudo em off, claro. Ele passava por mim depois da entrevista e dizia oi, voc quer uma carona? eu dizia no delegado, muito obrigado. Estou com meu carro aqui. (risos) E eles vinham o tempo inteiro deixando bem claro que iria haver represso, que a represso poderia ser violenta e que eu me lembro de que pouco tempo antes havia acontecido uma verdadeira batalha em So Paulo, em Florianpolis, em manifestaes, e eu pensava caramba, se isso acontecer aqui eu no vou ser responsvel por isso eu no vou dar essa capa para o grupo RBS. Conversei com o pessoal e disse que a gente no tinha clima, a a gente conversou com o delegado na quinta-feira, o evento era no domingo, e disse olha, a gente precisa fazer o seguinte acordo. Ns decidimos cancelar o evento, mas
27 RIBEIRO, Tiago Magalhes. Depoimento [jul. 2013]. Entrevistadora: Lorena Otero. Porto Alegre/So Paulo: Lapa, 2013. MP3. Entrevista concedida a este trabalho.
-
34
essa informao ela ainda no ser repassada ns temos amanha a entrevista marcada na rdio, a gente precisa desse momento e a gente acha que essa entrevista [talvez] possa ser desmarcada ou tenha todo seu rumo modificado e a gente precisa manter esse acordo com vocs, ento iremos anunciar o cancelamento dessa entrevista coletiva ao meio-dia, depois dessa entrevista de rdio. E a gente ainda queria fazer outro acordo, ns temos pouco tempo antes da atividade e ns precisamos que vocs permitam que a gente v e possa ficar l no local do evento e ficar informando as pessoas sobre o cancelamento e a gente precisa ir l explicando o porqu do cancelamento e vocs precisam deixar. Acordo fechado. Demos a entrevista e depois anunciamos o cancelamento do evento porque a cidade de Porto Alegre no estava preparada para esse movimento. E foi tudo tranquilo, ficamos no local da atividade explicando o porqu que no haveria o evento. E no fim da tarde fomos procurados por jornalistas, perguntaram se poderamos gravar uma entrevistas, ns aceitamos e a quando ele liga a cmera a pergunta que ele faz a seguinte: o que vocs acham das prises que foram feitas aqui hoje? A nesse momento, o Rafael colocou a mo na frente da cmera e disse assim desliga essa cmera que a gente tem que conversar e a a gente sem saber o que aconteceu foi informado de que foram feitas 50 prises aqui no parque, e a gente se perguntando como assim?. Dei para a pergunta a seguinte resposta: Olha essas prises s justificam que esse tipo de atividade necessria. A ento o que aconteceu, aconteceu que no parque da Redeno, que como um Central Park de Porto Alegre, um parque prximo ao centro da cidade, enfim, um lugar onde as pessoas se encontram para festejar, curtir um domingo de sol, e obviamente um lugar frequentado por maconheiros, lugar ideal apara voc sentar num lugar mais reservado e fumar. Grande parte das pessoas nem sabia o que estava acontecendo [e] estava sendo presa. (sic) (grifos nossos)
(...)
Chegamos concluso que toda essa represso da polcia foi produzida pela mdia, enfim, aquilo que o Foucault chama de produzir produes de emergncia, numa sociedade onde voc s pode infringir a democracia quando voc cria condies para isso, um movimento de autorizao social, e quando voc cria essa autorizao social e assim voc produz esse clima de medo, e automaticamente quando voc cria esse medo, as pessoas dizem por que voc no prendeu ele? Por que voc no bateu nele? 28 (sic) (grifos nossos)
Denis deixa evidente todo o processo de criminalizao do movimento em Porto
Alegre, fatos que veremos mais adiante que se repetiram em outras cidades que organizam
suas marchas. Demonstra que a represso que sofreram foi produzida pela mdia que detinha o
monoplio de todos os meios de comunicao da localidade, promovendo a ao da Brigada
Militar, que prometia uma resposta agressiva s iniciativas de manifestao,
independentemente do que acontecesse ou no durante os eventos.
Os ativistas gachos perceberam que a cidade no estava preparada para uma marcha,
ento em 2007 a capital decidiu promover um debate fechado no auditrio da Assembleia
Legislativa. No entanto, o debate foi prejudicado em virtude da Cmara de Vereadores da
cidade pedir o espao onde seria realizado o evento em cima da hora e no ltimo momento
28 PETUCO, Denis Roberto da Silva. Depoimento [jun. 2013]. Entrevistadora: Lorena Otero. Rio de Janeiro/So Paulo: Lapa, 2013. MP3. Entrevista concedida a este trabalho.
-
35
no terem conseguido avisar as pessoas29. Por fim, o debate se realizou em outro local e
restringiu-se s pessoas que participaram da organizao e aos profissionais convidados a
falar sobre o assunto. Entre eles, o deputado poca Marcos Rolim e o professor e advogado
Salo de Carvalho, apoiadores do movimento.
Embora com manifestaes tmidas, o nmero de cidades e de manifestantes crescia a
cada ano que passava, bem como as argumentaes e propsitos levados ao debate da poltica
de drogas no Brasil. Profissionais de diversas reas como Antropologia, Direito, Medicina,
Comunicao, Histria e Sociologia de todo o Brasil se uniram para promover eventos e abrir
espao para debater a questo de forma que pudessem expor seus argumentos e explicaes
sobre por que legalizar as drogas seria a melhor opo para o atual cenrio de danos causados
pela poltica proibicionista.
No Rio de Janeiro, a Marcha em 2007 organizada pelo MNLD foi um fracasso.
Apenas quinze pessoas compareceram ao evento. No entanto, outra tentativa de marchar na
cidade foi concretizada. Uma marcha atrevida e tambm muito polmica aparece pelas ruas da
capital carioca. Fruto de um trabalho criativo, a marcha brasileira ganhou uma identidade
visual que passaria nos anos seguintes a ser conhecida uniformemente por todas as cidades
brasileiras marchantes, a identidade que conhecemos hoje: Marcha da Maconha.
Fizemos questo de colocar a palavra maconha de forma direta, porque queramos acabar com o estigma em torno dessa palavra. Mas a marcha era muito mais do que isso (maconha). Sempre foi. As pessoas veem a marcha como uma reunio de playboys e associam a droga a vagabundos, que vo fazer graa na rua pra dizer que maconha bom, que fumar faz bem. Mentira isso. (...) Eu morei na Europa por quatro anos e l as coisas so diferentes, percebi muita coisa vivendo em outro sistema. Mas percebi tambm que no assim no Brasil, no porque no somos uma nao evoluda, mas sim porque brasileiro acomodado30.
A marcha que surgiu a primeira vez com o nome Marcha da Maconha e a identidade
visual que conhecemos hoje no Brasil foi organizada por integrantes do Growroom31 que
29 Denis ainda relata que no dia do seminrio no houve qualquer evento no espao que anteriormente foi marcado. 30LANTELME FILHO, William. Depoimento [mai. 2013]. Entrevistadora: Lorena Otero. So Paulo: Lapa, 2013. MP3. Entrevista concedida a este trabalho. 31 O Growroom (www.growroom.net/) foi o primeiro frum brasileiro sobre o cultivo de maconha. Iniciativa de William Lantelme Filho que, sempre em contato com a cultura alem, e a vivencia por algum tempo no exterior, tomou conhecimento de produtos e revistas sobre cannabis culture e sendo tambm um apreciador do cultivo, enviou convites a outros growers brasileiros, que conhecia de outras plataformas e passaram a compartilhar
-
36
vinham observando desde 2002 as manifestaes pblicas em torno do debate de drogas e
moldando, a partir dos erros e acertos, uma tentativa de marcha que pudesse se concretizar
sem complicaes32. As reunies de organizao eram realizadas na casa de William Lantelme
Filho e na loja La Cucaracha, de seu amigo Matias Maximiliano, tudo de modo muito
espontneo, informal, sem a presena de representantes de partidos polticos ou influenciados
por ideologias partidrias, tudo partindo de estratgias bem simples.
Pensando principalmente em formas de divulgar o evento, os amigos convidaram
outras pessoas para ajudar na organizao, sendo as principais colaboraes vindas de Luiz
Paulo Guanabara, da Psicotropicus, organizador das marchas dos anos passados, Maira
Guarabyra, primeira voluntria brasileira do Greenpeace, e Raoni Mouchoque, da Rdio
Legalize.
A Marcha da Maconha de 2007 que ocorreu na orla carioca foi pacfica, a polcia
acompanhou o evento de longe, sem qualquer atrito. Pessoas de todas as idades marcharam
com cartazes escritos No h vitima, no h crime: legalize a Cannabis, O trfico contra
a legalizao da maconha, e voc?, Voc sabia que a Cannabis cura muitas doenas?.
Algumas delas com seus rostos cobertos por mscaras33, com medo de expor sua identidade.
Ao final da passeata ainda foi realizada uma festa no Arpoador.
Esta marcha ainda recebeu o apoio do MNLD, em especial de Renato Cinco que,
como tinha experincia em manifestaes, dava umas dicas para o pessoal, e em virtude do
sucesso desta passeata, o MNLD deixou de existir, pois no faz sentido ter dois movimentos
na mesma cidade 34, passando a se unirem nas organizaes das Marchas dos anos seguintes. 35
experincias que no se restringiam ao cultivo, posto que propunham ao debate tambm de experincias sociais, sensoriais e polticas referentes ao hbito de consumir maconha. 32 Neste sentido, visualizar o frum do Growroom, disponvel em http://www.growroom.net/board/. Neste frum, possvel visualizar fotos dos eventos, relatos dos participantes, nem como as primeiras articulaes de listar erros e acertos das manifestaes que vinham ocorrendo, com a inteno de evitar a repeties dos erros e causar algum problema. Percebemos assim, uma estratgia dos organizadores. 33As mscaras foram desenhadas por Marcela Gil e deram origem a um bloco de carnaval: planta na mente GIL, Marcela. Depoimento [mai. 2013]. Entrevistadora: Lorena Otero. So Paulo: Perdizes, 2013. MP3. Entrevista concedida a este trabalho. 34CINCO, Renato Athayde Silva. Depoimento [mai. 2013]. Entrevistadora: Lorena Otero. Braslia: Museu da Repblica, 2013. MP3. Entrevista concedida a este trabalho. 35 Uma semana antes da Marcha do Growroom, ns fizemos uma marcha que foi um fracasso (Marcha Rio pela Legalizao das Drogas Basta de violncia!), teve quinze pessoas. Quando vimos a quantidade de pessoas que
-
37
O papel do Growroom foi fundamental para estabelecer a comunicao entre os
indivduos que pretendiam marchar, bem como na divulgao do evento. Na poca, o site
contava com uma rede de aproximadamente 20.000 growers36, e hoje conta com mais de
50.000. O Growroom referncia fortssima no ativismo brasileiro em relao ao tema.
Paralelamente, como o Growroom dispunha e ainda dispe de uma conexo virtual
forte entre ativistas e cultivadores de todo o Brasil, um amigo nordestino, de Salvador (BA),
figura bem conhecida entre os estudiosos do assunto, Srgio Maurcio de Souza Vidal37,
realizava na Universidade Federal da Bahia (UFBA) uma oficina chamada Maconha na
Roda, com vrios professores e ainda uma exposio de artes. Seria a primeira tentativa na
Bahia para a chamada que no ano seguinte seria um evento maior.
A realizao da Marcha em 2007 no Rio, despertou a ateno da mdia que registrou o
evento e circulou em diversos meios de comunicao. As crticas rapidamente surgiram de
diferentes formas e de diferentes personalidades e instituies. Moradores das redondezas do
local de realizao da marcha sentiram-se inseguros diante da manifestao.
O Ministrio Pblico recebeu uma denncia feita pelo prior do apostolado da Opus
Christi, Joo Carlos Costa, que disse que apologia no deve ser tolerada em lugares
frequentados por crianas. Ainda, o representando religioso repudiou o uso da imagem do
Cristo no flyer do evento alegando que um desrespeito f de milhares de pessoas38.
o William e os amigos deles tinham juntado, no vimos motivo para ter dois eventos separados, afinal nossos objetivos eram comuns. Ento passei a contribuir com a organizao. O Cinco hoje vereador no Rio de Janeiro e acompanha as marchas de todas as cidades, sempre ajudando e defendendo o movimento. CINCO, Renato Athayde Silva. Depoimento [mai. 2013]. Entrevistadora: Lorena Otero. Braslia: Museu da Repblica, 2013. MP3. Entrevista concedida a este trabalho. 36 Denominao dada ao usurio da rede, a pessoa que utiliza o site, que geralmente, em 99% dos casos se identificam por apelidos. 37 VIDAL, Srgio Maurcio de Souza. Depoimento [mai. 2013]. Entrevistadora: Lorena Otero. Braslia: Museu da Repblica, 2013. MP3. Entrevista concedida a este trabalho. 38 GLOBO.com. Notcias disponvel em: http://g1.globo.com/Noticias/Rio/0,,MUL32243-5606,00.html. Acesso em 26 de maio de 2013.
-
38
Figura 03 Flyer da realizao da Marcha da Maconha de 2007 no Rio de Janeiro. A arte de William Lantelme Filho e o logo foi feito por um amigo portugus, Nuno Pereira. Destaque para a descrio e recomendao do flyer: crime fazer apologia da maconha, e no a nossa inteno. Mas a realidade que cresce cada vez mais o consumo dessa planta e, portanto, no adianta ser hipcrita e no falar abertamente desse assunto deixar de fazer o nico trabalho de preveno possvel: educar sem contar mentiras. De acordo com as leis brasileiras ilegal fumar ou fazer apologia maconha. NO D MOLE! (Foto: site Marcha da Maconha)
Atravs da internet, era possvel ver que o movimento estava crescendo. Logo, passou
a ser objeto de estudos e debates na academia: Marcha da Maconha: apologia ou liberdade de
expresso? A Marcha, a partir de 2007, causou as primeiras reaes significativas na
sociedade e nas instituies do Estado, e assim ainda em 2007 eram iniciados os trabalhos
para realizao da Marcha em 2008, muito mais organizada e forte. Um trabalho que demanda
muita dedicao e tempo por parte dos organizadores.
Assim, como em qualquer outro assunto polmico, no demorou a surgir uma
oposio, desprovida de respostas sobre quem eram as pessoas responsveis, quais eram as
intenes do movimento, de quem era o patrocnio para o material de divulgao e realizao
do evento, entre outras questes. So essas justamente as caractersticas que refletem o que a
doutrina chama de Novos Movimentos Sociais, at ento mal entendidos pelo judicirio.
Estes movimentos fazem parte de organizaes da sociedade civil, pessoas comuns da
sociedade que se organizam. No possuem registro ou estatuto. No possuem liderana ou
-
39
qualquer ambio de poder pleno, sua estruturao horizontal, no se fala em funes,
como diretores, secretrios, ou qualquer outro cargo 39 . Todos so manifestantes e quem
quiser/puder ajuda com a organizao que feita pela internet, atravs de fruns. Todo o
desdobramento da Marcha pode ser visto atravs dos fruns da internet.
Ao analisarmos os processos judiciais nos tpicos frente, perceberemos as
indagaes das promotorias de justia para com essas questes e a preocupao dos
defensores da sociedade em relao conduta dessa manifestao perante as pessoas nas ruas.
Surgiriam assim as primeiras demandas judiciais de represso da histria da Marcha. Ou
devemos dizer, da histria de represso da Marcha da Maconha.
2.2 A histria da represso: entre apologia e liberdade de expresso
Iniciadas as primeiras tentativas de promover o debate que a Marcha da Maconha se
props a pautar, a verso carioca de 2007 que logrou xito, superando as demais
manifestaes, passou a ser alvo de crticas, mas tambm de inspirao para as demais
cidades marcharem. Com o crescimento do movimento que se preparava para marchar em
2008, as organizaes contrrias ideologia do movimento, bem como o judicirio,
entendendo que tratava-se de apologia ao uso de maconha, comearam a se articular visando
proibir a realizao do evento.
Todas as demandas judiciais ajuizadas em torno da Marcha da Maconha tinham um
objetivo a se concretizar em relao ao evento: suspender ou garantir sua realizao. Nas aes
que pretendiam suspender os eventos pelo pas, justificavam seus autores com incriminao de
fazer apologia ao crime, enquanto era debatida pelos defensores do movimento com argumentos
baseados em garantias fundamentais asseguradas pela Constituio Federal.
As incriminaes eram feitas com base em dois dispositivos legais: o artigo 287 do
Cdigo Penal e o pargrafo 2 do artigo 33 da Lei 11.343/06, que passamos a transcrever:
Art. 287 - Fazer, publicamente, apologia de fato criminoso ou de autor de crime:Pena - deteno, de trs a seis meses, ou multa40.
39 CASTELLS, M. A sociedade em rede. So Paulo: Paz e Terra, 1997. 40 Cdigo Penal Brasileiro, disponvel em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848.htm. Acesso em 20 de outro de 2013.
-
40
Art. 33. (...) 2o Induzir, instigar ou auxiliar algum ao uso indevido de droga: Pena - deteno, de 1 (um) a 3 (trs) anos, e multa de 100 (cem) a 300 (trezentos) dias-multa41.
Como observa Salo de Carvalho, o bem jurdico tutelado pelo artigo 287 do Cdigo
Penal Brasileiro a paz pblica assim, a conduta, para constituir materialmente delito, deve,
necessariamente, gerar, no seio social, perturbao42. Quanto ao pargrafo 2 do artigo 33 da
Lei de Drogas, referem-se ao convencimento e a persuaso (induo e instigao) ou ao
efetivo apoio material (auxlio) e para que o crime seja configurado fundamental que o
resultado final efetivamente ocorra, no caso, que terceiro consuma a droga43.
O rgo que todos os anos ingressava com aes visando a suspenso da Marcha da
Maconha era o Ministrio Pblico, que tambm era provocado pela polcia ou por alguma
personalidade poltica a agir. Os promotores de justia identificaram no material de
divulgao do evento fatores que, ao ver deles, induziam ao uso de entorpecentes e enalteciam
a droga.
Tratando-se de uma questo jurdica, para provocar o Judicirio so necessrios meios
corretos para obteno do direito que se pretende. A ao utilizada pelos membros do
Ministrio Pblico foi a Ao Cautelar44, do tipo inominada. Igualmente, tambm foram
ajuizados Mandados de Segurana (MS)45. So aes que visam prevenir de ameaa a
direitos.
A principal estratgia do Ministrio Pblico era distribuir essas aes durante o
Planto Judicirio, que era quando o frum estava fechado, permanecendo apenas um juiz de
41 Lei 11.343 de 23 de agosto de 2006. Disponvel em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm. Acesso em 20 de outubro de 2013. 42 CARVALHO, Salo de. A poltica criminal de drogas no Brasil: estudo criminolgico e dogmtico da Lei 11.343/06. 6 ed. So Paulo: Saraiva, 2013, p. 397.43 Idem., p. 393. 44 uma ao para proteger um direito. No julga, no tendo parte ganhadora ou perdedora, pois qualquer das partes poder ganhar o processo subsequente, chamado de "principal". Pode ser uma ao cautelar nominada (arresto, sequestro, busca e apreenso) ou inominada, ou seja, a que o Cdigo de Processo Civil no atribui nome, mas, sim, o proponente da medida (cautelar inominada de sustao de protesto, por exemplo). chamada preparatria quando antecede a propositura da ao principal, ou incidental, quando proposta