das ruas ao supremo tribunal federal a criminalização da marcha da maconha no brasil

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  • FUNDAO GETLIO VARGAS ESCOLA DE DIREITO DE SO PAULO

    LORENA OTERO

    DAS RUAS AO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: a criminalizao da Marcha da Maconha no Brasil

    SO PAULO 2013

  • LORENA OTERO

    DAS RUAS AO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: a criminalizao da Marcha da Maconha no Brasil

    Trabalho de Iniciao Cientfica apresentado Escola de Direito de So Paulo da Fundao Getlio Vargas, sob a orientao da Professora Dra. Marta Rodriguez de Assis Machado

    SO PAULO 2013

  • Dedico este trabalho a todas as pessoas que mesmo submetidas violncia ou coao da sua liberdade de

    expresso no abrem mo de seus ideais.

  • AGRADECIMENTOS

    Em primeiro lugar, agradeo a Escola de Direito de So Paulo da Fundao Getlio

    Vargas pela oportunidade de desenvolver esta pesquisa na qualidade de aluna visitante, que

    possibilitou a incrvel experincia de me aproximar com o universo de conhecimento, de

    professores admirveis, de recursos de pesquisa e incentivo que a instituio disponibiliza.

    Assim, estendo esse agradecimento na pessoa de todos os seus funcionrios, em especial da

    Coordenadoria de Pesquisa, que selecionou meu projeto.

    Como no poderia deixar de ser, agradeo, e muito, a Marta Rodriguez de Assis

    Machado, professora e pesquisadora que passei a admirar antes do ingresso na DIREITO GV.

    Mesmo sem me conhecer, aceitou a tarefa de me orientar e me guiou nos caminhos mais

    difceis da pesquisa, enquanto me faltava experincia e delimitao do meu tema. Atravs

    dela, pude ter contato com temas, como Movimentos Sociais, que tanto me encantei.

    Agradeo a Accio Miranda da Silva Filho, que, gentilmente, me noticiou sobre a

    chamada do Programa de Iniciao Cientfica da DIREITO GV e me incentivou a participar.

    Ao Instituto Brasileiro de Cincias Criminais (IBCCRIM), abrigo dos ensinamentos e

    reflexes das mais distintas correntes das Cincias Criminais, onde passei a maior parte do

    tempo desenvolvendo este trabalho. Meu lugar preferido na cidade de So Paulo.

    Ao Couchsurfing, que possibilitou o surf nas cidades onde busquei informaes para a

    pesquisa, bem como onde realizei grande parte das entrevistas. Obrigada ngelo, Jacque, Edu

    e Raoni, amveis hosts.

    Agradeo aos meus queridos amigos, sempre presentes, em especial Diogo Rais,

    Wanessa Saviolo, Carla Modesto, Frederico de Oliveira Cossi, New Oliveira e Leonardo

    Dalvi Alvarenga, pelo apoio e incentivo incondicional.

    Agradeo a todas as pessoas que contriburam para a realizao deste trabalho,

    principalmente os entrevistados que tive o imenso prazer de conhecer e aprender mais com

    cada um. Obrigada pelos depoimentos, esclarecimentos, informaes, materiais grficos e

    documentais.

  • William Lantelme Filho, referncia forte de ativismo, muito obrigada pelos

    incontveis incentivos.

    Por fim, registro um agradecimento especial a Emilio Nabas Figueiredo, que, durante

    toda a pesquisa esteve presente (apesar de distante), me ajudando a superar as dificuldades e a

    timidez para a realizao das entrevistas, bem como tudo que estivesse ao seu alcance. Na

    maioria das vezes, atravs das atitudes mais simples como um gentil e-mail que nos

    permitimos conhecer pessoas e descobrir ideias e objetivos em comum, trocar experincias e

    incentivos, mas acima disso, quando faltar essa sintonia, que elas ainda possam se manter

    unidas por um lao que as permite discordar uma da outra e mesmo assim se manter ao lado, o

    lao da amizade.

    Foi incrvel, muito obrigada.

  • Quando Ulisses Guimares e Tancredo Neves levaram milhes de brasileiros s praas pblicas para reivindicarem eleies diretas em todos os nveis, no movimento

    Diretas J, em 1984, estavam justamente, ensinando o povo brasileiro a exercitar a democracia, num Brasil em que no havia. Poderiam ser acusados de apologia de

    crime, enquadrados no art. 23 da Lei de Segurana Nacional, mas no o foram: nem o regime militar ousou tanto, naquele limiar democrtico.

    (Luiz Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho)

    Liberdade de expresso na rua. Democracia na rua. (Daniel Sarmento)

    a reinveno da poltica pela juventude. (Salo de Carvalho)

  • RESUMO

    O que no pode ser debatido em uma democracia? Por quatro anos os Tribunais no Brasil

    permaneceram divididos para incriminar a Marcha da Maconha como apologia ao crime ou

    defend-la como manifestao legtima de manifestao de pensamento. O movimento social

    que busca promover debate sobre a legalizao da maconha foi s ruas pedir uma nova

    poltica pblica para lidar com a questo das drogas. Em ateno ao pedido, foram

    ameaados, presos, e at mesmo feridos durante aes da polcia. O conservadorismo e a m

    interpretao das atitudes dos manifestantes da Marcha da Maconha refletiram no Judicirio

    que suspendeu o evento em mais de trinta cidades brasileiras. Foi preciso o ingresso de uma

    Ao de Arguio de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF n 187) no Supremo

    Tribunal Federal para discutir a interpretao que deveria ser adotada para o crime de

    apologia, at que este decidiu por unanimidade que a Marcha da Maconha constitui

    manifestao legtima de liberdade de expresso.

    Palavras-chave: Marcha da Maconha Movimentos Sociais Liberdade de Expresso

    Liberdade de Reunio Criminalizao de Movimentos Sociais

  • ABSTRACT

    What cannot be debated in a democracy? During four years Brazilian courts were divided

    between incriminating the Marijuana March as incitement to crime and recognizing it as

    legitimate freedom of speech. The social movement seeking to promote the debate on

    marijuana legalization took the streets demanding a new public policy to deal with the issue of

    drugs. In response to their demands they were threatened, jailed and even hurt during police

    operations. Conservatism and the misinterpretation of the acts of the Marijuana March

    demonstrators reflected on the judiciary, which suspended the event in over thirty Brazilian

    cities. It was necessary to submit a legal action for claims of non-compliance with a

    fundamental precept (ADPF 187) to the Federal Supreme Court to discuss the interpretation

    that should be adopted for the crime of incitement, until the unanimous decision was reached

    that the Marijuana March constitutes a legitimate expression of thought.

    Keywords: Marijuana March Social Movements Freedom of Expression Freedom of

    Assembly Criminalization of Social Movements

  • LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    ABESUP Associao Brasileira de Estudos Sociais do Uso de Psicoativos

    DCE Diretrio Central de Estudantes

    DIPO Departamento de Inquritos Policiais

    GAECO Grupo de Atuao Especial de Combate ao Crime Organizado

    GAERPA Grupo Especial de Combate a Entorpecentes

    GMM Global Marijuana March

    IBCCRIM Instituto Brasileiro de Cincias Criminais

    IFSC Instituto de Filosofia e Cincias Sociais

    LEAP Law Enforcement Against Prohibition

    MMM Million Marijuana March

    MNLD Movimento Nacional pela Legalizao das Drogas

    MP Ministrio Publico

    MPCRIM Associao Nacional do Ministrio Pblico Criminal

    MPE Ministrio Pblico Estadual

    MPF Ministrio Pblico Federal

    PSOL Partido Socialismo e Liberdade

    PT Partido dos Trabalhadores

    STF Supremo Tribunal Federal

    TJMG Tribunal de Justia de Minas Gerais

    UFBA Universidade Federal da Bahia

    UFMG Universidade Federal de Minas Gerais

    UFPE Universidade Federal de Pernambuco

    UFPR Universidade Federal do Paran

    UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro

    UFRS Universidade Federal do Rio Grande do Sul

  • SUMRIO

    INTRODUO.......................................................................................................................11

    1 RECONSTRUINDO A MARCHA DA MACONHA NO BRASIL................................15

    1.1 Metodologia........................................................................................................................15

    1.1.1 Quanto bibliografia.......................................................................................................18

    1.1.2 Anlise documental: arte, mdia, procedimentos judiciais e no judiciais ......................20

    1.1.3 Entrevistando os protagonistas da histria da Marcha da Maconha................................22

    2 A MARCHA DA MACONHA NO BRASIL: UMA HISTRIA DE REPRESSO..26

    2.1 Breve introduo histria do movimento pr-legalizao no Brasil................................26

    2.2 A histria da represso: entre apologia e liberdade de expresso.......................................39

    2.2.1 Marcha da Maconha 2008: paz sem voz no Estado de Exceo...................................41

    2.2.2 Marcha da Maconha 2009: o que no pode ser debatido em uma democracia?...........57

    2.2.3 Marcha da Maconha 2010: STF Julgue a nossa causa..............................................67

    2.2.4 Marcha da Maconha 2011: pela Liberdade e pela Pamonha ........................................73

    3 DOS FATOS E JULGAMENTOS NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.............86

    3.1 A Arguio de descumprimento de preceito fundamental (ADPF n 187).........................86

    3.1.1 As ofertas de manifestao na qualidade de amicus curiae.............................................89

    3.1.2 O Julgamento...................................................................................................................92

    3.1.3 A deciso..........................................................................................................................98

    3.2 A Ao Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4274)........................................................105

    CONSIDERAES FINAIS...............................................................................................109

    APNDICE A Relao de associaes da sociedade civil em torno do debate de drogas

    APNDICE B Qualificao dos entrevistados

    APNDICE C Roteiro de Entrevista

    REFERNCIAS BIBLIOGRAFICAS

  • 11

    INTRODUO

    Nos anos 2000, massifica-se no Brasil um movimento pr-legalizao da maconha,

    incentivado pelas manifestaes que j vinham sendo realizadas em mais de trezentas cidades

    ao redor do mundo. Um desdobramento da Milion Marijuana March dos Estados Unidos, a

    Marcha da Maconha ocupa as ruas a das principais cidades brasileiras e pede a

    descriminalizao da maconha promovendo debates e passeatas marcadas por forte represso

    policial e judicial. Nos primeiros anos, a realizao do evento era ainda tmida, sendo apenas

    pequenas passeatas e alguns eventos internos, geralmente em universidades, e que no obteve

    o xito esperado nas primeiras realizaes. A iniciativa brasileira s obteve xito com a

    Marcha da Maconha de 2007 no Rio de Janeiro, onde organizadores do Growroom,

    articularam e organizaram a passeata mais polmica at ento conhecida.

    Em torno do movimento que era estimulado atravs de fruns na internet, surge uma

    forte represso motivada pela mdia instigando aes policiais e que resultou em diversas

    demandas judiciais objetivando proibir a realizao do evento, com a justificativa de se tratar

    de apologia ao crime. De um lado, as alegaes das promotorias de justia que a Marcha da

    Maconha faz nitidamente apologia, que nada tem a ver com promover debate srio e sim,

    instigar o consumo de drogas. De outro, ativistas, advogados, outra parte de membros do

    Ministrio Pblico defendem a livre manifestao do pensamento, da ocupao do espao

    pblico para discutir uma poltica pblica considerada injusta.

    As represses aconteciam de diversas formas: ameaa, censura de perfis de redes

    sociais, apreenso de materiais de divulgao, prises de integrantes do movimento, violncia

    policial, demandas judiciais e a forte manipulao miditica em torno da marcha. Embora

    exploramos todos os tipos de represso em torno do movimento, nos atemos a detalhar as

    represses do judicirio.

    Trataremos do tema em trs captulos, sendo o primeiro dedicado a tratar da

    metodologia utilizada para a realizao deste estudo. Neste captulo, explicamos tambm, as

    dificuldades na elaborao da pesquisa e a metodologia aplicada, devido falta de material

    bibliogrfico e da rigidez do alcance do material documental, justificando a necessidade de

  • 12

    partir para o campo de estudo, entrevistando os personagens que fizeram esta histria de

    represso.

    O segundo captulo dedicado a retratar as represses da Marcha da Maconha que

    ilustraram a criminalizao do movimento. Analisaremos as demandas judiciais em torno da

    Marcha da Maconha que a criminalizava como apologia ao crime, com base no art. 287 do

    Cdigo Penal e o art. 33, 2 da Lei 11.343/06, bem como as aes que foram ajuizadas para

    garantir sua realizao dos eventos por ser legtima e assegurada por clusula ptrea da

    Constituio Federal, tentativas de defesa por parte dos manifestantes.

    Neste captulo, separamos por cidades, as cidades marchantes onde registraram

    episdios de represso. Todo ano, boa parte das cidades brasileiras que organizavam o evento

    eram proibidas pela Justia de marchar. Relataremos os argumentos usados pelos Promotores

    de Justia e tambm pelos advogados, ponderados pelo julgador que igualmente analisaremos

    as decises judiciais.

    Mas para alm os autos processuais, muitas vezes as represses aconteciam na rua, na

    universidade, nos debates acadmicos, entre outros lugares. Alguns ativistas nos contam at

    mesmo de interceptaes telefnicas feitas pela polcia e jornalistas disfarados de

    manifestantes para coletar informaes sobre o movimento e distorce-las diante da sociedade.

    Sero expostos relatos pessoais de ativistas, manifestantes, advogados, membros do

    Ministrio Pblico Estadual e Federal, magistrados e polticos, tanto os que acusavam de

    apologia quanto os que defendiam a liberdade de expresso para expor esse cenrio de

    represso.

    As proibies foram tantas que provocaram a Procuradoria Geral da Repblica que em

    2009 recebe uma representao dos manifestantes a fim de ingressar com uma ao no

    Supremo Tribunal Federal para por fim a essas discusses. Por intermdio do Procurador

    Regional da Repblica do Rio de Janeiro, Daniel Sarmento, a ento Procuradora Geral da

    Repblica poca, Deborah Duprat, distribui perante o Supremo uma ADPF e uma ADI.

    Enquanto as aes se encontravam pendentes de julgamento, as proibies persistiam

    pelo Brasil at que, em 2011 na cidade de So Paulo, manifestantes impedidos judicialmente

    de marchar insistem na realizao do evento e so fortemente violentados pela tropa de

    choque da Polcia Militar das ruas da capital paulistana. Alguns dias depois do ocorrido, o

  • 13

    Supremo inclui na pauta de julgamento as aes inerentes Marcha da Maconha para decidir

    sobre sua legalidade.

    No terceiro captulo, trataremos dos fatos e julgamentos no Supremo Tribunal

    Federal, que temos as duas aes de ndole constitucional asseguradoras de direitos

    fundamentais: a Ao de Arguio de Preceito Fundamental (ADPF n 187) que pediu

    interpretao constitucional para o art. 287 do Cdigo Penal, vez que afrontava diretamente os

    direitos fundamentais garantidores da liberdade de expresso (art. 5, IV e IX) e de reunio

    (art. 5, XVI), direitos estes considerados clausulas ptreas (art. 60, 4, inc. IV), pedido este,

    que foi reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal por unanimidade de votos e tambm da

    Ao de Direta de Inconstitucionalidade (ADI n 4274) com pedido de interpretao conforme

    a Constituio Federal, para o 2 do art. 33 da Lei 11.343/06, que criminaliza as condutas de

    induzir, instigar ou auxiliar algum ao uso indevido de droga, tambm providos por

    unanimidade.

    A ADPF 187 admitiu na qualidade de amicus curie duas entidades: a Associao

    Brasileira de Estudos Sociais do Uso de Psicoativos e o Instituto Brasileiro de Cincias

    Criminais.

    A ABESUP, representada por um militante do movimento, tentou inovar no processo

    trazendo a questo pautada pelo prprio movimento, ou seja, a descriminalizao da maconha.

    Pediu pela regulamentao do cultivo para fins medicinais, religiosos e recreativos. O

    advogado da entidade, conversou com os ministros, um a um, antes do julgamento entregando

    a eles, cpia em DVD do documentrio Cortina de Fumaa. Embora sabia que era

    impossvel juridicamente faltando a apreciao de seu pedido isso, pois, o amicus curie,

    no tem capacidade petitria no processo fez questo de expor a questo, pois estaria

    aproveitando a oportunidade para colocar os ministros em contato com a matria.

    J o IBCCRIM, representando por um de seus membros da comisso de amicus curie

    do Instituto, rente ao pedido da ao formulada pela Procuradoria Geral da Repblica, trouxe

    inspiraes do Pacto de So Jos da Costa Rica de direitos humanos e ainda o exemplo da

    Espanha, que na mesma semana em que a marcha paulista de 2011 era duramente atacada, os

    espanhis eram acolhidos nas ruas sob grave crise econmica.

  • 14

    A ADPF 187 foi julgada procedente por unanimidade reconhecendo o direito a livre

    manifestao da Marcha da Maconha afastando qualquer hiptese a ensejar a incriminao

    por apologia, em deciso brilhante e didtica do ministro relator da ao, Celso de Melo.

    Entendimento este que, foi confirmado posteriormente na ADI 4274.

    Para alguns, o Supremo tomou uma atitude infeliz em declarar legtimo um

    movimento que vai s ruas, segundo os argumentos, instigar o uso da maconha, inclusive na

    frente de crianas que no tem discernimento para saber se bom ou ruim, sendo que

    notrio o uso da substncia durante as passeatas. Por outro ponto de vista, um absurdo um

    tema no bsico como liberdade de expresso ser discutido na Corte Suprema por ser

    confundido com apologia ao crime, pois at para quem no a favor da legalizao da droga

    perfeitamente possvel que seja a favor da liberdade de outras pessoas poderem manifestar sua

    posio favorvel.

    Assim, registramos aqui, mais uma histria entre tantas de exerccio de direitos

    fundamentais duramente reprimidos no exerccio da democracia.

  • 15

    CAPTULO 1

    RECONSTRUINDO A MARCHA DA MACONHA NO BRASIL

    1.1 Metodologia

    Diante do debate acerca da atual poltica criminal de drogas no Brasil, bem como da

    atuao da sociedade civil e das demandas sociais pela descriminalizao e posterior

    regulamentao do uso de entorpecentes, mostrou-se relevante elaborar um estudo

    privilegiando a relao entre os dois temas com enfoque na criminalizao de movimentos

    sociais no Estado Democrtico de Direito, delineando uma trajetria de represses.

    Em pesquisa na internet encontramos 219 (duzentos e dezenove) organizaes da

    sociedade civil (ONGs, fundaes, associaes, coletivos, grupos de estudos, centros de

    pesquisas, centros de tratamentos, etc. Apndice A) em mbito mundial, que atuam em

    torno do debate de drogas, das quais 60 (sessenta) so organizaes brasileiras. Diante desse

    ncleo de 60 (sessenta) organizaes brasileiras, aps a busca e anlise de aspectos variados,

    tais como: sua composio, histria e atuao dentre elas, o destaque recaiu sobre a Marcha

    da Maconha, em especial por ser uma organizao que todas as outras organizaes se

    envolvem e ainda, relembramos as disputas no Judicirio que incriminavam suas

    manifestaes pblicas como apologia ao crime para suspender a realizao de eventos em

    todo o pas, at que o Supremo Tribunal Federal pontuou a questo.

    Uma vez escolhido o objeto de estudo, em visita ao stio eletrnico do coletivo

    (www.marchadamaconha.org), observamos os seguinsstes elementos: carta de princpios;

    manual do organizador, modelos de ofcios e requerimentos destinados s autoridades

    competentes; vdeos; blog de notcias; agenda das passeatas; e, por fim, um frum de

    conversao dividido em temas, onde indivduos no identificados, tratando-se por nomes

    fictcios, discutiam ativismo, poltica e reduo de danos, entre outros assuntos relacionados

    maconha.

    Muito embora parea, a princpio, que as informaes do site so apresentadas de

    maneira clara e objetiva, depois de muitas horas de leitura dos documentos e posts de

  • 16

    conversas do frum, percebemos ao decorrer do estudo a falta de informaes elementares,

    bem como o nexo entre as existentes para dar respostas s perguntas que nos propomos a

    responder. Ou seja, para analisar o que nos propomos (a criminalizao) sobre o objeto (da

    Marcha da Maconha), seria necessrio, primeiramente, compreender o objeto.

    Importante registrar tambm que a autora no tinha, at o momento da elaborao da

    pesquisa, relao alguma com o ativismo em torno da questo das drogas, e tampouco contato

    com pessoas do coletivo, o que inicialmente era um ponto desfavorvel, por conta das

    constantes interrogaes sobre as questes mais bsicas e prticas de atuao dos movimentos

    antiproibicionistas.

    Uma busca bibliogrfica preliminar sobre o tema revelou-se escassa e insuficiente,

    sobretudo por no localizarmos estudos descritivos sobre a Marcha da Maconha.

    Se por um lado a bibliografia era escassa, a documentao era abundante. Vrias

    matrias jornalsticas ao googlar (www.google.com) por marcha da maconha em diferentes

    nomes dos meios de comunicao, muitos processos judiciais para serem analisado e muito

    material de divulgao feito pelos prprios integrantes do movimento. Mas boa parte com

    acesso restrito e risco de ser incinerada/deletada com brevidade.

    Sendo assim, havia um caminho a ser percorrido que comeava nas ruas, com as

    Marchas da Maconha, ou mais precisamente com as Marchas da Maconha proibidas pela

    Justia at que o Supremo Tribunal Federal, em 2011, que julgou procedente o pedido da

    Procuradoria Geral da Repblica para autorizar a realizao das passeatas no pas.

    Para analisar a Marcha da Maconha foi determinado o perodo que seria estudado, bem

    como o espao territorial a ser abrangido.

    O perodo de tempo escolhido para falar sobre a criminalizao da Marcha da

    Maconha foi das manifestaes pblicas at o julgamento no STF, isto, evidenciado pelo

    ttulo deste trabalho: Das ruas ao Supremo Tribunal Federal. J o espao, seria o Brasil,

    indicado no subttulo: a criminalizao da Marcha da Maconha no Brasil.

    Compreendendo que, embora a Marcha da Maconha j ocorresse desde o ano de 2002

    no Rio de Janeiro e em outras localidades, somente no ano de 2007, quando houve maior

  • 17

    impacto na sociedade, o movimento atinge o xito esperado. Devido ao sucesso da Marcha de

    2007 no Rio e do impulso que ela deu para outras cidades se organizarem, o Judicirio j se

    aprontava para o ano seguinte, 2008, momento em que comeam as primeiras demandas

    judiciais visando proibir a realizao das manifestaes1, at 2011, quando o Supremo decidiu

    pela legalidade das manifestaes, sendo este o perodo que exploramos: 2008 a 2011.

    Como o espao de explorao seria o Brasil, levantamos todas as cidades brasileiras

    marchantes e pesquisamos quais delas haviam sido proibidas de marchar, e ainda, entramos

    em contato com a organizao para saber se havia possibilidade de entrevista, visando

    identificar em seus depoimentos episdios de represses que haviam sofrido.

    Dentro desta proposta, percebemos que no possuamos todo o material que

    precisvamos para desenvolver o trabalho, e que deveria ser buscado no campo ou atravs de

    outras pessoas, e outros materiais at mesmo, j no mais existiam, devendo assim serem

    reconstrudos.

    Toda pesquisa demanda uma srie de tcnicas e atividades sequenciais para alcanar

    um objetivo, para dar resposta a uma pergunta. Assim, para investigar o tema, seriam

    utilizadas, a princpio, duas tcnicas comuns de pesquisa: a bibliogrfica e a documental. Mas

    o que fazer quando a bibliografia for escassa e a obteno da documentao for rgida ou at

    mesmo inexistente em tempo e espao?

    Devido dificuldade em compreender o objeto da pesquisa, bem como da

    disponibilizao de dados do estudo para realizar o que nos propomos, ou seja, falar sobre a

    criminalizao deste movimento, no restou alternativa seno entrevistar as pessoas que

    idealizaram e participaram do movimento. Imprescindvel foi a utilizao de tcnicas

    empricas para a concluso da pesquisa de forma que a proposta do estudo no fosse

    prejudicada. Foi atravs de mtodos empricos que buscamos no campo, atravs das pessoas

    que protagonizaram a histria, dados para a construo do trabalho.

    1 Em 2007, houve uma ao judicial no Rio Grande do Sul, no entanto no partiu do Ministrio Pblico ou outro rgo visando proibir o evento, e sim de um pedido dos manifestantes por meio de habeas corpus preventivo (Coletivo) demonstrando que poderia haver priso dos manifestantes durante o evento. A ordem foi deferida. S no ano de 2008 que comeam as proibies.

  • 18

    Uma vez compreendidas estas condies, o deslocamento para realizao das

    entrevistas foi programado, sendo visitadas estrategicamente as cidades de Salvador, Rio de

    Janeiro, Florianpolis e Braslia. Claro que o deslocamento s foi feito em ltimo caso, pois

    hoje em dia podemos alternativamente nos socorrer da tecnologia para nos aproximar das

    pessoas e documentos. As visitas foram feitas em cidades e dias especficos, geralmente em

    seminrios e congressos relacionados com o tema de drogas, onde estava presente boa parte

    das pessoas que poderiam prestar depoimentos em entrevistas. O I seminrio da Law

    Enforcement Against Prohibition, a LEAP Brasil, realizado no Rio de Janeiro, e o I Congresso

    Internacional sobre Drogas, Lei, Sade e Sociedade, em Braslia, foram os mais importantes.

    Portanto, podemos entender que este estudo , acima de tudo, um estudo sensvel que

    demandou uma pesquisa intensa de campo e coleta de dados (depoimentos, documentos,

    demais informaes) a partir de fontes diretas (pessoas) que fizeram parte da histria da

    Marcha da Maconha ou possuem algum outro envolvimento com ela, descrevendo fatos que

    trazem diferenciao em sua abordagem e entendimento, conduzindo assim explicao do

    contexto atravs de sua experincia como personagem.

    1.1.1 Quanto bibliografia

    No que tange s referncias bibliogrficas sobre o tema, constatamos a falta de fontes

    e trabalhos acadmicos que falassem sobre a Marcha da Maconha. No havamos localizado

    autores que tivessem discorrido sobre a Marcha da Maconha no Brasil, com exceo de

    alguns artigos que faziam meno ao objeto do estudo, mas ainda assim, eram insuficientes

    para nossa proposta.

    Procuramos nos principais bancos de testes e peridicos nacionais e internacionais,

    autores que tenham discorrido sobre o tema, podendo esclarecer melhor o assunto. O

    resultado da consulta foi intrigante. Para exemplificar, acessando a base de dados

    bibliogrficos da Coordenadoria de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior, a CAPES

    (http://www.periodicos.capes.gov.br/), que, segundo a referncia do professor Salo de

    Carvalho, a plataforma inseriu nos ltimos anos a academia brasileira no universo de

    pesquisa mundial, possibilitando a todos os pesquisadores brasileiros, da graduao e ps-

  • 19

    graduao, acesso aos principais peridicos cientficos2, porm no encontramos nenhum

    resultado sobre o assunto (marcha da maconha), em sua expresso exata. Outro exemplo em

    que o fato se repetiu, foi com a base de dados da Scientific Electronic Library Online, a Scielo

    (http://www.scielo.org/), tambm um referencial em plataforma de dados de pesquisa

    cientfica no Brasil.

    Ainda, importante registrar que, uma vez descoberta a origem da Marcha da Maconha,

    qual seja, a Milion Marijuana March americana, pesquisamos em plataformas de artigos

    cientficos e teses (www.jstor.org e google acadmico) utilizando as palavras marijuana

    march, milion marijuana march, global marijuana march e nenhum dado foi encontrado.

    Intrigados, entramos em contato com um pesquisador de Universit of Tulane, que gentilmente

    nos ajudou com a busca, localizando apenas um nico documento sobre a Global Marijuana

    March, um tpico de um artigo de apenas sete linhas sobre o tema, ou seja, tambm no

    localizou qualquer documento3, sendo encontrado apenas uma reportagem de uma revista

    canbica.

    A falta de bibliografia sobre o tema foi o maior incentivo para partir para as

    entrevistas. No decorrer da conversa com os entrevistados, a autora questionava se haviam

    produzido algum material sobre o tema e algumas respostas foram positivas,

    consequentemente, indicando os trabalhos. Srgio Vidal, por exemplo, escreveu um artigo

    esclarecedor quanto ao surgimento do debate antiproibicionista e as primeiras atuaes da

    sociedade civil em torno do assunto. No era um trabalho exatamente sobre a Marcha da

    Maconha, mas trazia elementos importantes para desbravar a questo.

    Passado meses do inicio deste estudo, descobrimos que alguns trabalhos estavam

    sendo elaborados, mais precisamente duas dissertaes de mestrado, a de Mauro Leno

    Silvestrin e Jlio Delmanto, estas que, s tivemos conhecimento depois de mais da metade da

    pesquisa, onde os autores, gentilmente, nos enviaram para estudo, mesmo antes de sua

    concluso.

    2 CARVALHO, Salo de. Como (no) se faz um trabalho de concluso: provocaes teis para orientadores e estudantes de direito, 2 ed. So Paulo: Saraiva, 2013, p. 42. 3 Research Global Marijuana March. [e-mail] De: [email protected] para: [email protected].. Enviado em 30 de junho de 3013.

  • 20

    1.1.2 Anlise documental: arte, mdia, procedimentos judiciais e no judiciais

    Os documentos utilizados para extrao de dados na pesquisa foram: 1) arte (flyers da

    Marcha da Maconha, cartazes, camisetas, calendrios personalizados, outros materiais

    confeccionados para divulgao); 2) notcias de meios de comunicao (jornais, revistas,

    vdeos); e 3) documentos jurdicos (ofcios e comunicados dirigidos Secretaria de Segurana

    Pblica e outros rgos, boletins de ocorrncia, termos de interrogatrios, autos processuais).

    A arte parte expressiva fundamental da Marcha da Maconha enquanto movimento

    social e cultural. A expresso artstica proveniente do perfil de seus idealizadores e

    manifestantes utilizada, alm de atrativo 4 , como forma de divulgao de ideias e

    informaes sobre o movimento. Por meio de adesivos, flyers, calendrios, camisetas e

    chaveiros, entre outros objetos personalizados, a Marcha da Maconha difundia a lista de

    cidades marchantes, informando dia e local das passeatas. Alguns dos trabalhos exibiam

    inclusive instrues sobre como se comportar durante a passeata e, s vezes, narravam

    proibies judiciais pelo pas.

    Em relao busca de documentos produzidos pela mdia, ou seja, jornais, revistas,

    sites de notcias e reportagens, constatamos grande quantidade de material de fcil acesso que

    foi selecionado por ano, contendo informaes sobre as passeatas, ou a proibio destas.

    Alguns desses materiais foram doados pelos entrevistados tambm.

    Quanto busca por informaes sobre as disputas no Judicirio envolvendo a Marcha

    da Maconha, imprescindvel seria fazer uma anlise dos prprios instrumentos processuais.

    Ocorre que, em decorrncia do tempo que se passou desde a distribuio e processamento, os

    processos encontravam-se arquivados e a Justia de cada estado brasileiro dispe de

    procedimento especfico para obteno de cpia dos mesmos. Seria preciso consultar 26

    Estados da Federao, mais o Distrito Federal. Felizmente, nos dias de hoje, podemos contar 4 Os organizadores deixam claro que, como forma de atrair cada vez mais manifestantes para as passeatas, atriburam, na definio de Maira Guarabyra, uma cara pop para a Marcha da Maconha. A Marcha no se identifica como um evento poltico tradicional munido de bandeiras de partido e gritos de ordem, pelo contrrio, procurava fugir de tudo isso e fizeram uso da arte para inovar a maneira de fazer poltica. Uma analogia Marcha da Maconha como manifestao poltica com forte expresso artstica a Parada Gay, que rene a populao LGBT com seu esteretipo alegre, colorido, excessivo e cheio de brilho na Avenida Paulista uma vez por ano. Hoje, a passeata vista como uma grande festa e at quem no homossexual participa do evento. GUARABIRA. Maira. Depoimento [jul. 2013]. Entrevistadora: Lorena Otero. So Paulo: Lapa, 2013. MP3. Entrevista concedida a este trabalho; LANTELME FILHO, William. Depoimento [mai. 2013]. Entrevistadora: Lorena Otero. So Paulo: Lapa, 2013. MP3. Entrevista concedida a este trabalho.

  • 21

    com a internet para a chamada consulta eletrnica processual, obtida diretamente no site de

    cada Tribunal de Justia.

    Em consulta ao Tribunal de Justia de So Paulo (www.tjsp.jus.br) observamos o

    campo para fazer a consulta de processos (criminais e cveis, tanto do interior, quanto da

    capital e ainda da segunda instncia) que podem ser obtidos atravs do fornecimento das

    seguintes informaes: nmero do processo (desconhecido), nome da parte (desconhecidos os

    representantes do movimento capazes de serem parte de um processo judicial); documento da

    parte (desconhecido); nome do advogado (desconhecido), OAB do advogado (desconhecido),

    ou seja, no havia informaes para busca processual. Insistindo na consulta por marcha da

    maconha, no campo nome da parte, a pesquisa resta frustrada.

    Para quem possui certa experincia em navegar pelos sites dos Tribunais de Justia do

    pas em busca de informaes de processos, induzida tambm a consulta jurisprudencial,

    pois, considerando que houve, com toda certeza, um processo em relao Marcha da

    Maconha, esse processo foi julgado e seu acrdo foi registrado e disponibilizado para

    consulta do documento. Assim, introduzindo as palavras marcha da maconha no campo

    pesquisa livre de jurisprudncia, localizamos 14 aes judiciais, pois esse verbete era

    mencionado a todo momento no texto das decises judiciais. Diante do xito na obteno das

    informaes que inicialmente precisvamos para discorrer sobre as incriminaes de apologia

    ao crime versus direito livre manifestao do pensamento, como nmero do processo, tipo

    de ao judicial, advogados, promotores, julgadores, bem como responsveis que assinavam

    como organizadores do evento, procedemos com a mesma consulta em todos os Tribunais de

    Justia brasileiros. Conseguimos, neste momento, uma obteno parcial de material

    documental onde tnhamos a concluso da demanda, ou seja, apenas o juzo do julgador. Seria

    necessrio ir em busca dos argumentos tanto das acusaes quanto da defesa, no se limitando

    ao relatrio do acrdo. Tarefa que, pelo tempo que nos foi dado, restaria tambm frustrada,

    no senso possvel desarquivar os autos para anlise a tempo.

    Os entrevistados foram questionados se possuam cpias dos processos que envolviam

    a Marcha da Maconha, sendo que muitos haviam guardado boa parte destes documentos, que

    foram enviados por correio para o endereo da autora.

  • 22

    Se por um lado houve certa dificuldade na obteno de informaes processuais na

    Justia Estadual, no site do Supremo Tribunal Federal (http://www.stf.jus.br/) localizamos

    com facilidade em consulta ao campo andamento processual, buscando pela Arguio de

    Descumprimento de Preceito Fundamental, a ADPF n 187 - que se encontrava totalmente

    digitalizada. Ou seja, atravs do site do STF, pela consulta processual, poderamos ler o

    processo completo, a representao, a petio inicial, as manifestaes da Advocacia Geral da

    Unio e dos Amicus Curie, bem como o acrdo que julgou a ao.

    1.1.3 Entrevistando os protagonistas da histria da Marcha da Maconha

    A entrevista, utilizada como tcnica de pesquisa emprica, para este trabalho foi uma

    iniciativa decisiva. Este estudo s foi possvel em decorrncia de muito dilogo entre a autora

    e os entrevistados, essencialmente aqueles que se fizeram mais prximos a fim de esclarecer

    quaisquer dvidas, que surgiam com certa frequncia5.

    Para realizao das entrevistas, privilegiamos o contato pessoal entre entrevistador e

    entrevistado, mediante gravao de udio, e, quando no era possvel a pessoalidade, foram

    utilizados os recursos do Skype6. Isto, salvo raras excees onde, por motivo de fora maior,

    no era possvel o contato pessoal ou via Skype, restando alguns depoimentos coletados

    atravs de e-mail.

    Ao todo, foram realizadas 53 entrevistas7, que foram transcritas e selecionadas as falas

    que utilizaramos para o trabalho, em um plano contemplando trs modalidades de

    5 Emlio Nabas Figueiredo, o primeiro contato que fizemos, foi quem nos direcionou s pessoas envolvidas com a Marcha da Maconha, em diferentes localidades. Ainda na fase de levantamento de dados, na elaborao da lista com os nomes das instituies e coletivos antiproibicionistas, disparamos e-mails para os coletivos para que pudessem analisar a lista e informar se conheciam alguma outra organizao que no estivesse listada. Emlio respondeu o e-mail destinado ao Growroom, pois consultor jurdico do coletivo. Na poca, era aluno de ps-graduao em Terceiro Setor e Responsabilidade Social no Instituto de Economia da UFRJ, e sua pesquisa de trabalho de concluso tambm abrangeria as organizaes da sociedade civil e a demanda por direitos ou mudana em Polticas Pblicas relacionadas poltica de drogas. Foi um colaborador elementar para este trabalho. FIGUEIREDO, Emlio Nabas. Assunto: Re: Instituies e Movimentos Sociais por uma nova poltica de drogas. De: [email protected]; para: [email protected], 18 de janeiro de 2013. 6 O Skype (http://www.skype.com/) um programa de comunicao da Microsoft que serve para ajudar as pessoas a fazerem coisas juntas quando esto separadas. Possui chat, chamadas de voz com vdeo e facilita a troca de experincia, onde quer que as pessoas estejam. 7Porm, nem todas foram utilizadas neste trabalho. A autora descartou entrevistas em que o depoimento dos entrevistados no estivesse alinhado, neste momento, com sua proposta de estudo, bem como os que no

  • 23

    entrevistados, que assim dividimos: 1) ativistas; 2) advogados; 3) outras personalidades

    (polticos, magistrados, promotores e agentes da lei (Apndice B Qualificao dos

    Entrevistados)8. As questes a serem abordadas foram pensadas exclusivamente para cada

    um dos entrevistados e diferentes estratgias foram aplicadas para cada grupo, a fim de

    explorar as experincias de cada um em relao ao tema (Apndice C Roteiro de

    Entrevistas).

    Iniciamos as entrevistas com os ativistas, procurando respeitar a ordem cronolgica de

    atuao deles na organizao das marchas, conforme fomos descobrindo-os e identificando-os

    atravs dos fruns de discusses do Growroom (http://www.growroom.net/board/forum/) e da

    Marcha da Maconha, onde se utilizavam de apelidos. Enquanto entrevistvamos um ativista,

    perguntvamos se este possua conta em uma daquelas pginas, qual era seu apelido e, ainda,

    se poderiam indicar outros colegas de militncia, o que acabava quase sempre nos

    direcionando a outras pessoas.

    Aos poucos, estes conviventes do ciberespao, deixam o medo do estigma, do

    preconceito e da criminalizao e vo se identificando neste trabalho, fazendo as peas do

    quebra-cabea, mais uma vez, se encaixarem. Interessante foi notar que at mesmo os

    ativistas, quando questionados durante as entrevistas, se espantaram por j no mais

    lembrarem de seus posts antigos, por no se darem conta de que registraram uma histria na

    internet, e por no estarem acreditando que pesquisadores os estavam estudando.

    Para os ativistas, preparamos questes buscando explorar suas experincias nas

    participaes/organizao dos eventos, sobre as pessoas envolvidas que poderiam ser

    entrevistadas, se havia assessoria jurdica e quem eram os colaboradores, se personalidades

    polticas incentivam a iniciativa e, sobretudo, se sofreram algum tipo de represso no decorrer

    da militncia, e que relatassem detalhadamente estes episdios.

    Aps, procuramos os advogados que prestaram assessoria jurdica ao movimento.

    Perguntamos o que os motivou a colaborar com o movimento e quais eram suas estratgias de

    defesa. Relataram os trmites processuais, pesquisas jurdicas sobre as teses utilizadas, troca

    apresentassem nenhuma informao relevante. Houve casos em que os entrevistados apenas contavam sobre a organizao, desentendimentos internos no movimento, entre outras informaes que no julgamos relevante. 8 A lista era modificada com frequncia, na medida em que identificvamos mais personagens na histria do movimento. Geralmente, eram informados pelos entrevistados, durante as entrevistas.

  • 24

    de experincias entre colegas, diligncias forenses, cultura dos Tribunais em que atuaram.

    Questionamos tambm sobre eventual represso sofrida em decorrncia de seu trabalho, e

    alguns responderam positivamente, descrevendo minunciosamente cada uma delas e

    apontando as pessoas que as fizeram. Alguns advogados j atuam h anos pela modificao na

    poltica de drogas no Brasil. Nilo Batista, Alberto Zacarias Toron e Salo de Carvalho, por

    exemplo, possuem vrios artigos e at livros publicados sobre a questo, sustentando posio

    favorvel descriminalizao das drogas.

    Seguindo o cronograma de acontecimentos da Marcha da Maconha, uma vez

    compreendidos os fatos das disputas judiciais no mbito dos Tribunais Estatuais,

    entrevistamos tambm os advogados que atuaram no Supremo Tribunal Federal representando

    as entidades admitidas como amicus curiae na ADPF n 187.

    Se por vez ouvimos os defensores da Marcha da Maconha, igualmente ouvimos

    aqueles que a acusavam de fazer apologia ao crime, os promotores de justia. Questionados

    sobre sua motivao em ingressar no judicirio para proibir a realizao das manifestaes,

    explicaram seus motivos, apontando os fundamentos jurdicos e as circunstncias que estavam

    envolvidos poca. Contaram ainda de contatos com outros colegas de profisso para

    compartilharem seus pontos de vistas e atitudes a serem tomadas em relao s manifestaes,

    bem como a criao de associaes a fim de reprimir essas condutas. Embora a posio do

    Ministrio Pblico em relao Marcha da Maconha fosse repressiva, registramos que no foi

    unnime, sendo coletados tambm depoimentos de promotores que se posicionaram a favor da

    realizao das Marchas da Maconha, mesmo mantendo uma posio conservadora em relao

    descriminalizao da droga.

    Foram entrevistados tambm membros do Ministrio Pblico Federal, que explicam

    por que decidiram ingressar com a ADPF perante o STF. Para este perfil de entrevistados,

    tambm exploramos questes em relao represso eventualmente sofrida por algum deles.

    No constatamos nenhum relato pessoal dos membros do Ministrio Pblico, tanto Estadual

    quanto Federal, de que tenham sofrido qualquer tipo de represso. Afirmavam que a reao

    das pessoas que a eles se dirigiam era, em sua totalidade, de apoio.

    Ainda explorando os perfis do terceiro grupo de entrevistados que relacionamos,

    buscamos o depoimento de magistrados que tiveram contato com os processos da Marcha da

  • 25

    Maconha. Estes julgadores relataram a sensao que tiveram do Judicirio quanto s decises

    proferidas, tanto de suspenso quanto de permisso da realizao dos eventos. Descrevem

    casos de aproximao com a matria onde buscaram compreender melhor o assunto e at

    mesmo trocar experincias com outros colegas de magistratura. Ambos os julgadores,

    favorveis e contrrios, foram reprimidos, e, registramos estas represses.

    Alm das figuras jurdicas do terceiro grupo de entrevistados, registramos os

    depoimentos tambm de personalidades polticas que apoiaram o movimento e que inclusive

    participavam das passeatas e que tambm sofreram represses por sustentarem sua posio,

    ainda mais pelo peso de tal atitude, em decorrncia da visibilidade que o cargo pblico

    implica. Registramos tambm relatos de agentes da lei que descreveram fatos de represses

    policiais e at mesmo nos indicaram para outros profissionais a fim de coletar depoimentos.

    Desta forma, procuramos reconstruir a Marcha da Maconha com os depoimentos dos

    protagonistas da histria do movimento. Os relatos foram transcritos e esquematizados

    cronologicamente e as informaes que nos foram passadas buscamos, sempre que possvel,

    relacionar com a documentao a que tivemos acesso. Assim, exemplificando de maneira

    prtica os relatos de prises de ativistas que ouvimos nos depoimentos, procurvamos

    documentao para confrontar as falas e at complementao das informaes, como os

    termos circunstanciados de ocorrncias lavrados nas delegacias e notcias sobre as prises ou,

    para cada relato de deciso judicial e argumento judicial, buscvamos analisar os prprios

    documentos processuais.

  • 26

    CAPTULO 2

    A MARCHA DA MACONHA NO BRASIL:

    UMA HISTRIA DE REPRESSO

    2.1 Breve introduo histria do movimento pr-legalizao no Brasil

    No adianta olhar pro cu Com muita f e pouca luta

    Levanta a que voc tem muito protesto pra fazer

    At quando? (Gabriel O Pensador)

    Anos aps as primeiras iniciativas antiproibicionistas ps-republicanas e com o uso

    macio da internet, que vem ao longo dos anos disponibilizando recursos cada vez mais

    aprimorados, no demoraram a surgir movimentos sociais em prol da legalizao das drogas,

    tema j h muito tempo discutido. E foi em meio a este cenrio que se massificou o maior

    evento j visto no Brasil pela causa: a Marcha da Maconha.

    A Marcha da Maconha, denominao abrasileirada da Million Marijuana March,

    um evento mundial realizado em diversas cidades, que rene indivduos e coletivos, no

    primeiro sbado do ms de maio, considerado o Dia Mundial pela Descriminalizao da

    Maconha, para ir s ruas pedir mudanas na lei de drogas.

    Nas palavras de Salo de Carvalho, a Marcha da Maconha objetiva realizao de

    manifestaes pacficas, performances culturais e atos de livre expresso para informao e

    discusso de polticas pblicas que envolvem a (des)criminalizao da Cannabis e

    idealizada e coordenada por organizaes civis e pblicas no governamentais9.

    As primeiras articulaes em torno da realizao do evento ocorreram nos Estados

    Unidos no ano de 1998, organizadas pela ONG americana Cure-Not-War, tendo como seu

    principal representante o ativista Dana Beal. Tais articulaes resultaram no evento

    9 CARVALHO, Salo de. A poltica criminal de drogas no Brasil: estudo criminolgico e dogmtico da Lei 11.343/06. 6 ed. So Paulo: Saraiva, 2013, p. 393/394.

  • 27

    denominado Million Marijuana March (MMM), que tomou dimenso global e passou em

    1999 a ser conhecido mundialmente como Global Marijuana March (GMM)10.

    Atualmente, Dana Beal est preso em Nebraska (EUA) e o tradicional stio eletrnico

    da marcha americana foi censurado11. Em uma entrevista que Beal concedeu a uma revista de

    cultura canbica12, ele faz alguns relatos sobre a GMM:

    The first Million Marijuana March was held in New York City on the first Saturday of May, May, 1 1998, to announce the launch of the Worldwide March the following year. It was attended by Ed Rosenthal, Jack Herer, Gatewood Galbraith and Dennis Peron, in response to New York Mayor Rudolf Giulianis (rhymes with Adolf Mussolini) attempt to completely ban our traditional pot parade, held every year since 1972.

    ()

    In 1999 we had the biggest march in years, pictured at the end of the movie GRASS. Best of all, in that first year we were already established in 36 cities. Through the Millennium Marijuana March (2000), the 2001 Space Odyssey, and 2002s Liberation Day, we advanced to 238 cities. Then in mid-decade fell back to a low point of about 165 cities, only to advance in 2010 to 330 cities. This year, with Marc Emery and myself locked up, we probably will come nowhere near our goal of 420 cities. But we know that when we reach our goal of 1000 to 10,000 people in 900 cities, a phase shift will occur and the marijuana movement will be accepted as a legitimate civil rights movement everywhere13.

    Com um calendrio oficial previamente divulgado em diferentes formas de veiculao

    (sites, fruns, flyers, psteres), o evento vem ocorrendo mundialmente, em cerca de 300

    10 RAJ. Bruno. Resistncia Verde: 10 anos de Marcha da Maconha. Revista semSemente: So Paulo, volume 1, pg. 14, junho/julho 2012. 11 Beal foi preso diversas vezes desde os anos 60. Mais recentemente, em 2009, foi detido com cerca de 70 kg de maconha, em 2008 com uma pequena quantia e US$ 150 mil e em janeiro de 2011, com 84 kg da mesma droga. Ele alegou que a maconha era destinada para fins medicinais, algo que permitido em alguns Estados americanos. Os stios eletrnicos www.millionmarijuanamarch.org e www.globalmarijuanamarch.org foram desativados. 12 As perguntas foram transmitidas via e-mail para o advogado de Dana e respondidas por ele a lpis, na cadeia, enviadas por correio e enviadas para a revista. A entrevista completa foi publicada em Cannabis Culture Magazine. Disponvel em: http://www.cannabisculture.com/node/27053. Acesso em 11 de maio de 2013. 13A primeira Marcha da Maconha foi realizada em Nova Iorque, no primeiro sbado de Maio de 1998 (01/05/1998) para anunciar o lanamento da Marcha Mundial no ano seguinte. Foi organizada por Ed Rosenthal, Jack Herer, Gatewood Galbraith e Denis Peron, em resposta ao prefeito de Nova Iorque Rudolf Giuliani (que rima com Adolf Mussolini) que tentava banir completamente a nossa tradicional Pot Parade (Parada da Maconha), realizada anualmente desde 1972. () Em 1999, tivemos a maior marcha de todos os tempos, a que exibida no final do filme Grass. O melhor de tudo, que nesse primeiro ano ns j estvamos estabelecidos em 36 cidades. Atravs (da mobilizao) para as Millenium Marijuana March (em 2000), The 2001 Space Odyssey e a Liberation Day (de 2002), avanamos para 238 cidades. No meio dessa primeira dcada camos para o ponto mais baixo de eventos registrados: 165 cidades, para da avanar, em 2010, para 330 cidades. Esse ano, com Marc Emery e eu trancados, provavelmente no chegaremos nem perto de nossa meta das 420 cidades. Mas ns sabemos que quando chegarmos ao nosso objetivo de ter entre 1.000 e 10.000 pessoas em cada uma de 900 cidades, uma mudana de fase vai ocorrer e o movimento pr-maconha ser aceito como um movimento de direitos civis legtimo em todo lugar. (traduo nossa)

  • 28

    cidades ao redor do mundo14, somando cada vez mais participantes. As denominaes dadas

    ao evento variam segundo a localidade, assim tambm so sinnimos: World Cannabis Day,

    Cannabis Liberation Day, Global Space Odyssey, Ganja Day, J Day, Million Blunts March.

    No Brasil, a primeira marcha nos moldes da GMM foi incentivada pela portuguesa

    Susana Sousa15, que estava de passagem no pas. O evento foi intitulado de Marcha Mundial

    da Maconha, traduo literal da verso americana. Foi organizada de modo espontneo, sem

    ligao com partidos polticos ou movimentos estudantis. A estrangeira identificou um ponto

    na cidade do Rio de Janeiro que era frequentado por usurios de maconha e distribuiu flyers

    em forma de folhas de seda carimbadas com a descrio do evento16, que reuniu cerca de 800

    pessoas na Praa Nossa Senhora da Paz e que terminou no posto 9, na praia de Ipanema17.

    No houve qualquer represso policial durante a realizao do evento.

    Figura 01 - Flyer da Marcha Mundial da Maconha em folha de seda: distribuda pela portuguesa Susana Souza, no Rio de Janeiro, convidando para a Marcha Mundial da Maconha, o primeiro registro documental do evento brasileiro nos moldes da GMM. (Foto: digitalizao do documento original, fornecido por William Lantelme Filho)

    14GLOBAL Cannabis March, Aproximao diante da listagem das cidades inscritas na GMM no ano de 2013. Disponvel em http://www.globalcannabismarch.com/. Acesso em 11 de maio de 2013. 15 A Susana era uma pessoa especial, nos conta Luiz Paulo Guanabara lembrando da amiga que faleceu em 2011. Susana organizou marchas no Brasil e na Argentina. 16 RAJ. Bruno. Resistncia Verde: 10 anos de Marcha da Maconha. Revista semSemente, So Paulo, volume 1, pg. 14, junho/julho 2012. O autor confirmou as informaes na entrevista para esse trabalho. 17 Relatos de alvaro lobo e Hernesto, no frum do stio eletrnico da Marcha da Maconha. Hernesto Bruno Raj. Muitas das informaes sobre esse trabalho so provenientes de fruns da internet, meio pelo qual os manifestantes se comunicavam, ainda com pseudnimos, apelidos, para protegerem sua identidade real. Disponvel em: http://forum.marchadamaconha.org/lofiversion/index.php?t450.html. Acesso em 11 de maio de 2013.

  • 29

    Aps a iniciativa no Brasil, a organizao do evento retomada na mesma cidade, pela

    Psicotropicus, uma organizao no governamental brasileira especializada em reduo de

    danos, em parceria com personalidades polticas apoiadoras da causa. Luiz Paulo

    Guanabara18, representante da Psicotropicus, nos conta em entrevista que em 2003 s no

    ocorreu o evento porque o parceiro de organizao Fernando Gabeira desistiu s vsperas do

    evento e em 2004 recuou novamente, mas depois de todo o trabalho da organizao, decidiu

    promov-la mesmo com a desistncia do poltico. E assim o evento se repetia, desta vez com

    o nome de Marcha Mundial pela Legalizao da Maconha, que se realizou pacificamente na

    orla carioca, sem qualquer constrangimento ou represso.

    Ainda em 2004, destacou-se no Rio de Janeiro a consolidao do Movimento Nacional

    pela Legalizao das Drogas (MNLD), movimento composto por ex-membros do Partido dos

    Trabalhadores (PT), que posteriormente fundaram o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL),

    sendo a personalidade mais conhecida Renato Cinco, e tinham como principal objetivo

    promover debate sobre a atual poltica de drogas a partir de uma reflexo que fizeram sob a

    tica da democracia19.

    O que nos levou a debater a poltica de drogas foi a questo da antiga ditadura e o atual regime de democracia. Naquele ano (2004), se eu no me engano, ou em 2003, a polcia no Rio estava matando onze pessoas por dia, na tortura, nas cadeias, e a gente comeou a discutir isso porque a gente a sexta economia do mundo e a oitava desigualdade social e no tem nenhum pas no mundo como o Brasil, to rico, to poderoso e com uma desigualdade social to grande e obvio que isso no foi uma deciso democrtica, obvio que o povo no optou por viver isso, ento a nossa democracia ela de faixada, sequestrada. Ento a gente tentou comear a entender como aquele processo se desenvolveu, acho que todos nos j ramos a favor da legalizao das drogas, e quando a gente foi discutir esse problema com a democracia a gente chegou nessa concluso, ento nos decidimos fazer a marcha20. (sic)

    A primeira atividade pblica do MNLD foi a oficina Basta de guerra s drogas: a

    nova cara da velha ditadura, realizada no dia 29 de janeiro de 2005, no V Frum Social

    Mundial de Porto Alegre.

    18 GUANABARA, Luiz Paulo. Depoimento [ago. 2013]. Entrevistadora: Lorena Otero. Rio de Janeiro: Centro, 2013. MP3. Entrevista concedida a este trabalho. 19 O MNLD surgiu a partir de treze ex-integrantes do PT que estavam saindo do partido e em meio a debates sobre democracia e politica de drogas, decidiram iniciar, em 2004, militncia no assunto. 20 CINCO, Renato Athayde Silva. Depoimento [mai. 2013]. Entrevistadora: Lorena Otero. Braslia: Museu da Repblica, 2013. MP3. Entrevista concedida a este trabalho.

  • 30

    Neste mesmo ano, retornando ao Rio, o MNLD passou a organizar a Marcha, que

    ainda ocorria pacificamente em quantidade razovel de manifestantes, em parceria com a

    Psicotropicus. No ano seguinte organizaram a Marcha Rio pela Legalizao das Drogas:

    Basta de Violncia. A programao iniciou-se no Instituto de Filosofia e Cincias Sociais

    (IFCS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) com a exibio dos filmes Grass,

    sobre a histria da proibio da maconha nos EUA, e Narcotrfico: entre a mentira e o

    espanto, sobre a problemtica da produo de drogas na Colmbia. Aps os filmes, partiram

    em marcha do Largo de So Francisco at a Cinelndia, contando com a participao de cerca

    de 100 pessoas21.

    Na capital gacha, as primeiras articulaes em torno da realizao de um movimento

    pr-legalizao ocorreram no ano de 2005. Os estudantes Denis Petuco, Rafael Gil e Tiago

    Ribeiro, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS), fundaram o Coletivo

    Antiproibicionista de Porto Alegre22, que tinha inicialmente o objetivo de organizar a Marcha

    na cidade.

    Denis nos descreve que, em sua atuao como redutor de danos, teve oportunidade de

    assistir a uma fala de Luiz Paulo Guanabara durante um encontro de especialistas em reduo

    de danos em Campo Grande (MS), pde conversar mais com ele, e voltou para Porto Alegre

    com a ideia de organizar o evento.

    Quando comecei a atuar na reduo de danos, trazia uma bagagem da educao popular e quando eu ouvi o Luiz Paulo falando da Marcha da Maconha, da necessidade de incluir dentro do debate da reduo de danos, essa fala que no era uma coisa consensual dentro da reduo de danos, e ainda no , no bvio que os redutores de danos defendem a legalizao. Para mim, era bvio e fui procurar ele e ele me deu uma provocada no tem ningum fazendo esse debate no Rio Grande do Sul, por que voc no faz? Ento eu levei esse debate dentro da reduo de danos de Porto Alegre, mas a galera no foi muito simptica. (...) ento levei a questo para dentro da universidade e l encontrei um pessoal parceiro, um deles e o Thiago Ribeiro, (...) e o Rafael Gil e ns trs formamos oque veio a ser o Princpio Ativo, o nome do grupo foi batizado pelo Marcos Rolim, que foi um cara que nos ajudou muito quando a gente quis organizar pela primeira vez uma marcha da maconha nas ruas. E nesse primeiro ano ns decidimos fazer uma atividade de rua naquele primeiro momento23.

    21 MOVIMENTO Nacional pela Legalizao das Drogas. Blog. Disponvel em: http://mnldrogasarquivos.blogspot.com.br/2006/11/marcha-rio-pela-legalizao-das-drogas.html. Acesso em 26 de maio de 2013. 22 Que mais tarde passaria a se chamar Princpio Ativo. 23 PETUCO, Denis Roberto da Silva. Depoimento [jun. 2013]. Entrevistadora: Lorena Otero. Rio de Janeiro/So Paulo: Lapa, 2013. MP3. Entrevista concedida a este trabalho.

  • 31

    Com o tempo os objetivos deste coletivo foram se ampliando e o debate tomou

    dimenses mais amplas. Com o apoio da UFRS, no Diretrio Central dos Estudantes (DCE)

    foi realizado o primeiro evento do Coletivo para debater a poltica de drogas. Esse evento foi

    descrito como pertencente ao Dia Mundial pela Legalizao da Maconha e registrado no

    calendrio oficial da GMM americana.

    Figura 02 Evento pertencente ao Dia mundial pela legalizao da maconha realizado no DCE da UFRS no dia 7 de maio de 2005 pelo Coletivo Antiproibicionista de Porto Alegre, o Principio Ativo. (Foto: Rafael Gil)

    Pela experincia da roda de dilogo que foi realizada em 2005, os integrantes do

    Coletivo concluram que seria possvel organizar a Marcha em forma de passeata no ano

    seguinte. No entanto, em 2006, o evento no ocorreu em Porto Alegre e, diante dos motivos

    que levaram ao seu cancelamento, registramos a primeira ao de represso significativa em

    torno do movimento.

    Aps elaborar o material de chamada para o evento e realizar todo o trabalho de

    divulgao, em decorrncia de uma forte presso policial instigada pela mdia gacha - o

    Grupo RBS 24 publicou uma notcia que repercutiu fortemente dizendo que at o nome

    24Retransmissora da Rede Globo no Rio Grande do Sul. eles detm o monoplio dos veculos de informao do Rio Grande do Sul, afirma Petuco.

  • 32

    Marcha da Maconha era uma apologia - poucos dias antes da realizao do evento os

    organizadores foram surpreendidos25.

    Denis Petuco explica os fatos melhor do que poderamos:

    Cinco ou seis dias antes da marcha ns recebemos um e-mail de um jornalista do maior jornal da cidade, o Jornal Zero Hora, pedindo um telefone, pedindo para fazer uma entrevistas, como eu te falei ontem, nos tnhamos muito receio do pessoal l da retransmissora da Globo, o pessoal l tem uma grande empresa de comunicao que eles tem os canais de rdio, televiso, mais assistidos, jornal, enfim, dominam toda a mdia do Rio Grande do Sul, um grupo familiar, extremamente conservador, no s do ponto de vista poltico mas tambm do ponto de vista moral se que a gente pode separar as duas coisas. Quando apareceu aqui aquilo ns tivemos uma reuniozinha do Princpio Ativo, que era eu, o Rafael Gil e o Tiago, e decidimos que entrevista pessoal por telefone pode ser perigoso, ento vamos propor o seguinte: fazer uma entrevista por e-mail. Ento eles mandam as perguntas e a gente manda as resposta e a a gente fez e tudo mais e eu sei que dentro de um ou dois dias e comeou a acontecer no jornal, no rdio eles comeam a divulgar informaes completamente aterrorizantes da marcha de modo que coisas do tipo: eu recebo uma ligao do tipo: meu nome fulano eu t ligando porque eu e meus amigos a gente vai participar da marcha, e eu olha, que legal. Voc vai com seus amigos, vocs vo em uma turma, como ?. Ele disse isso, isso, a gente vai em uma turma eu disse ento deixe eu dar uma orientao para voc que a gente est dando para todo mundo, eu disse no leve nada, deixe o beque em casa e o cara ok, tudo bem. Era um jornalista. (...) e a ele divulgou essa conversa, totalmente editada, e essa frase deixe o beque em casa ele ficava repetindo mais ou menos [como] quando um jornalista faz uma entrevista com algum criminoso e o cara confessa o crime e fica aquela frase da confisso, e eu me perguntava qual o problema de voc dizer isso, sem contar na matria de jornal que vi dizendo organizador da marcha diz que ela no apologia mas admite ter sido presidente do... ou seja, fulano nega as acusaes mas admite, n?... Esse tipo de construo. Ento assim, eu no admito ter sido presidente do conselho, eu fui presidente do conselho, no h nada que precise ser admitido ali, mas quando voc faz uma matria assim, voc sabe o que est sendo produzido, esta sendo produzida a criminalizao e a passou a receber ligaes da delegacia de narcticos, os nossos telefones passaram a ser grampeados, eu ligava pro Rafael e a gente ouvia barulho de botozinho sendo apertado, at que a gente recebeu um convite do delegado da delegacia de narcticos, numa sexta-feira recebemos o convite, a marcha estava marcada para o domingo 26 . (sic) (grifos nossos)

    (...)

    Tiago Ribeiro nos conta que na poca conversou com o pai de um amigo da faculdade

    que Defensor Pblico e que ele disse que essa interceptao telefnica era ilegal, inclusive,

    25 PETUCO, Denis Roberto da Silva. Depoimento [jun. 2013]. Entrevistadora: Lorena Otero. Rio de Janeiro/So Paulo: Lapa, 2013. MP3. Entrevista concedida a este trabalho. 26 PETUCO, Denis Roberto da Silva. Depoimento [jun. 2013]. Entrevistadora: Lorena Otero. Rio de Janeiro/So Paulo: Lapa, 2013. MP3. Entrevista concedida a este trabalho.

  • 33

    ns conversamos por telefone, ele falando que era ilegal e falando sobre as consequncias

    disso, para a polcia ouvir 27.

    Nesse dia (domingo) eu (Denis) e o Tiago fomos delegacia de narcticos e a aconteceu uma coisa muito interessante. Ns recebemos uma ligao da Bandeirantes. A Bandeirantes queria fazer uma entrevista conosco e a a gente acabou marcando na frente da delegacia, a o pessoal foi l, nos entrevistou e enquanto ns ramos entrevistados, os policiais vieram todos para frente da delegacia assistir a entrevista, ficaram l olhando, a a gente entrou na delegacia e comeou uma srie de intimaes o tempo inteiro, na chegada o pessoal pediu documento e a o Tiago s tinha a carteira de estudante. E a polcia ah, isso no documento, que num sei o qu, e a o Tiago, se sentindo intimidado, falou olha, cara, eu no sou obrigado a estar aqui, eu fui convidado, se vocs no querem que eu entre eu vou embora, no tem problema nenhum. Eu no quero entrar aqui e sim vocs que querem que eu entre. A o pessoal se ajeitou por l pera um pouquinho e claro que morreu a, porque a gente no precisa ter documento pra entrar numa delegacia, a gente sabe disso. At porque voc chega numa delegacia, por exemplo, depois de ter sido roubado, est sem documento. A eles nos encaminharam para uma salinha e essa salinha ela era uma salinha pequena, com um banco de ferro, esse banco em formato de U acompanhando a parede e na altura e imaginando assim na altura da cabea, uma barra de ferro. E a gente olhando aquilo eu falei caramba, olhei para o Tiago e disse Tiago, voc se deu conta de onde estamos? eu disse cara essa barra de ferro onde eles colocam as algemas, ou seja, depois vieram nos buscar. Todo aquele procedimento de gente que est sendo presa! A nica diferena e que no tnhamos algemas... Mas eles fizeram questo de deixar muito claro que nos estvamos sendo tratados desse modo. E fomos chamados para a reunio depois de 15 minutos de espera e nos conduziram dois policiais frente, dois policiais atrs. Chegando sala do delegado, ele estava com o novo comandante da Brigada Militar Gacha, e eles pediram que nos explicssemos e ns explicamos para ele que era um evento internacional que a gente estava promovendo em Porto Alegre e explicamos para ele o que era esse movimento, que no havia nenhuma caracterstica de desobedincia civil, muito pelo contrrio, nossos materiais sempre diziam para [que] no levem drogas e que uma atividade poltica, e que ns mesmos estvamos preparados para caso a pessoa aparecesse com alguma coisa, ns estamos preparados para chegar at aquela pessoa e pedir para parar. Depois de nos ouvir, o delegado toma a palavra e diz o seguinte - eu nunca vou me esquecer disso - ele disse assim: olha, mesmo que nenhuma ilegalidade acontea, ilegalidades vo acontecer e ns iremos agir. Tiago e eu deciframos aquela frase assim: se ningum estiver infringindo a legalidade ns daremos um jeito para que alguma ilegalidade seja cometida para que isso justifique nossa ao. O nome do delegado eu no me lembro, mas o sobrenome era Grello, eu ainda encontrei esse camarada em programas de rdio, em funo disso ns passamos a ser chamados para entrevistas, tanto eu quanto ele, e chegou at a me pedir desculpas em outro momento, tudo em off, claro. Ele passava por mim depois da entrevista e dizia oi, voc quer uma carona? eu dizia no delegado, muito obrigado. Estou com meu carro aqui. (risos) E eles vinham o tempo inteiro deixando bem claro que iria haver represso, que a represso poderia ser violenta e que eu me lembro de que pouco tempo antes havia acontecido uma verdadeira batalha em So Paulo, em Florianpolis, em manifestaes, e eu pensava caramba, se isso acontecer aqui eu no vou ser responsvel por isso eu no vou dar essa capa para o grupo RBS. Conversei com o pessoal e disse que a gente no tinha clima, a a gente conversou com o delegado na quinta-feira, o evento era no domingo, e disse olha, a gente precisa fazer o seguinte acordo. Ns decidimos cancelar o evento, mas

    27 RIBEIRO, Tiago Magalhes. Depoimento [jul. 2013]. Entrevistadora: Lorena Otero. Porto Alegre/So Paulo: Lapa, 2013. MP3. Entrevista concedida a este trabalho.

  • 34

    essa informao ela ainda no ser repassada ns temos amanha a entrevista marcada na rdio, a gente precisa desse momento e a gente acha que essa entrevista [talvez] possa ser desmarcada ou tenha todo seu rumo modificado e a gente precisa manter esse acordo com vocs, ento iremos anunciar o cancelamento dessa entrevista coletiva ao meio-dia, depois dessa entrevista de rdio. E a gente ainda queria fazer outro acordo, ns temos pouco tempo antes da atividade e ns precisamos que vocs permitam que a gente v e possa ficar l no local do evento e ficar informando as pessoas sobre o cancelamento e a gente precisa ir l explicando o porqu do cancelamento e vocs precisam deixar. Acordo fechado. Demos a entrevista e depois anunciamos o cancelamento do evento porque a cidade de Porto Alegre no estava preparada para esse movimento. E foi tudo tranquilo, ficamos no local da atividade explicando o porqu que no haveria o evento. E no fim da tarde fomos procurados por jornalistas, perguntaram se poderamos gravar uma entrevistas, ns aceitamos e a quando ele liga a cmera a pergunta que ele faz a seguinte: o que vocs acham das prises que foram feitas aqui hoje? A nesse momento, o Rafael colocou a mo na frente da cmera e disse assim desliga essa cmera que a gente tem que conversar e a a gente sem saber o que aconteceu foi informado de que foram feitas 50 prises aqui no parque, e a gente se perguntando como assim?. Dei para a pergunta a seguinte resposta: Olha essas prises s justificam que esse tipo de atividade necessria. A ento o que aconteceu, aconteceu que no parque da Redeno, que como um Central Park de Porto Alegre, um parque prximo ao centro da cidade, enfim, um lugar onde as pessoas se encontram para festejar, curtir um domingo de sol, e obviamente um lugar frequentado por maconheiros, lugar ideal apara voc sentar num lugar mais reservado e fumar. Grande parte das pessoas nem sabia o que estava acontecendo [e] estava sendo presa. (sic) (grifos nossos)

    (...)

    Chegamos concluso que toda essa represso da polcia foi produzida pela mdia, enfim, aquilo que o Foucault chama de produzir produes de emergncia, numa sociedade onde voc s pode infringir a democracia quando voc cria condies para isso, um movimento de autorizao social, e quando voc cria essa autorizao social e assim voc produz esse clima de medo, e automaticamente quando voc cria esse medo, as pessoas dizem por que voc no prendeu ele? Por que voc no bateu nele? 28 (sic) (grifos nossos)

    Denis deixa evidente todo o processo de criminalizao do movimento em Porto

    Alegre, fatos que veremos mais adiante que se repetiram em outras cidades que organizam

    suas marchas. Demonstra que a represso que sofreram foi produzida pela mdia que detinha o

    monoplio de todos os meios de comunicao da localidade, promovendo a ao da Brigada

    Militar, que prometia uma resposta agressiva s iniciativas de manifestao,

    independentemente do que acontecesse ou no durante os eventos.

    Os ativistas gachos perceberam que a cidade no estava preparada para uma marcha,

    ento em 2007 a capital decidiu promover um debate fechado no auditrio da Assembleia

    Legislativa. No entanto, o debate foi prejudicado em virtude da Cmara de Vereadores da

    cidade pedir o espao onde seria realizado o evento em cima da hora e no ltimo momento

    28 PETUCO, Denis Roberto da Silva. Depoimento [jun. 2013]. Entrevistadora: Lorena Otero. Rio de Janeiro/So Paulo: Lapa, 2013. MP3. Entrevista concedida a este trabalho.

  • 35

    no terem conseguido avisar as pessoas29. Por fim, o debate se realizou em outro local e

    restringiu-se s pessoas que participaram da organizao e aos profissionais convidados a

    falar sobre o assunto. Entre eles, o deputado poca Marcos Rolim e o professor e advogado

    Salo de Carvalho, apoiadores do movimento.

    Embora com manifestaes tmidas, o nmero de cidades e de manifestantes crescia a

    cada ano que passava, bem como as argumentaes e propsitos levados ao debate da poltica

    de drogas no Brasil. Profissionais de diversas reas como Antropologia, Direito, Medicina,

    Comunicao, Histria e Sociologia de todo o Brasil se uniram para promover eventos e abrir

    espao para debater a questo de forma que pudessem expor seus argumentos e explicaes

    sobre por que legalizar as drogas seria a melhor opo para o atual cenrio de danos causados

    pela poltica proibicionista.

    No Rio de Janeiro, a Marcha em 2007 organizada pelo MNLD foi um fracasso.

    Apenas quinze pessoas compareceram ao evento. No entanto, outra tentativa de marchar na

    cidade foi concretizada. Uma marcha atrevida e tambm muito polmica aparece pelas ruas da

    capital carioca. Fruto de um trabalho criativo, a marcha brasileira ganhou uma identidade

    visual que passaria nos anos seguintes a ser conhecida uniformemente por todas as cidades

    brasileiras marchantes, a identidade que conhecemos hoje: Marcha da Maconha.

    Fizemos questo de colocar a palavra maconha de forma direta, porque queramos acabar com o estigma em torno dessa palavra. Mas a marcha era muito mais do que isso (maconha). Sempre foi. As pessoas veem a marcha como uma reunio de playboys e associam a droga a vagabundos, que vo fazer graa na rua pra dizer que maconha bom, que fumar faz bem. Mentira isso. (...) Eu morei na Europa por quatro anos e l as coisas so diferentes, percebi muita coisa vivendo em outro sistema. Mas percebi tambm que no assim no Brasil, no porque no somos uma nao evoluda, mas sim porque brasileiro acomodado30.

    A marcha que surgiu a primeira vez com o nome Marcha da Maconha e a identidade

    visual que conhecemos hoje no Brasil foi organizada por integrantes do Growroom31 que

    29 Denis ainda relata que no dia do seminrio no houve qualquer evento no espao que anteriormente foi marcado. 30LANTELME FILHO, William. Depoimento [mai. 2013]. Entrevistadora: Lorena Otero. So Paulo: Lapa, 2013. MP3. Entrevista concedida a este trabalho. 31 O Growroom (www.growroom.net/) foi o primeiro frum brasileiro sobre o cultivo de maconha. Iniciativa de William Lantelme Filho que, sempre em contato com a cultura alem, e a vivencia por algum tempo no exterior, tomou conhecimento de produtos e revistas sobre cannabis culture e sendo tambm um apreciador do cultivo, enviou convites a outros growers brasileiros, que conhecia de outras plataformas e passaram a compartilhar

  • 36

    vinham observando desde 2002 as manifestaes pblicas em torno do debate de drogas e

    moldando, a partir dos erros e acertos, uma tentativa de marcha que pudesse se concretizar

    sem complicaes32. As reunies de organizao eram realizadas na casa de William Lantelme

    Filho e na loja La Cucaracha, de seu amigo Matias Maximiliano, tudo de modo muito

    espontneo, informal, sem a presena de representantes de partidos polticos ou influenciados

    por ideologias partidrias, tudo partindo de estratgias bem simples.

    Pensando principalmente em formas de divulgar o evento, os amigos convidaram

    outras pessoas para ajudar na organizao, sendo as principais colaboraes vindas de Luiz

    Paulo Guanabara, da Psicotropicus, organizador das marchas dos anos passados, Maira

    Guarabyra, primeira voluntria brasileira do Greenpeace, e Raoni Mouchoque, da Rdio

    Legalize.

    A Marcha da Maconha de 2007 que ocorreu na orla carioca foi pacfica, a polcia

    acompanhou o evento de longe, sem qualquer atrito. Pessoas de todas as idades marcharam

    com cartazes escritos No h vitima, no h crime: legalize a Cannabis, O trfico contra

    a legalizao da maconha, e voc?, Voc sabia que a Cannabis cura muitas doenas?.

    Algumas delas com seus rostos cobertos por mscaras33, com medo de expor sua identidade.

    Ao final da passeata ainda foi realizada uma festa no Arpoador.

    Esta marcha ainda recebeu o apoio do MNLD, em especial de Renato Cinco que,

    como tinha experincia em manifestaes, dava umas dicas para o pessoal, e em virtude do

    sucesso desta passeata, o MNLD deixou de existir, pois no faz sentido ter dois movimentos

    na mesma cidade 34, passando a se unirem nas organizaes das Marchas dos anos seguintes. 35

    experincias que no se restringiam ao cultivo, posto que propunham ao debate tambm de experincias sociais, sensoriais e polticas referentes ao hbito de consumir maconha. 32 Neste sentido, visualizar o frum do Growroom, disponvel em http://www.growroom.net/board/. Neste frum, possvel visualizar fotos dos eventos, relatos dos participantes, nem como as primeiras articulaes de listar erros e acertos das manifestaes que vinham ocorrendo, com a inteno de evitar a repeties dos erros e causar algum problema. Percebemos assim, uma estratgia dos organizadores. 33As mscaras foram desenhadas por Marcela Gil e deram origem a um bloco de carnaval: planta na mente GIL, Marcela. Depoimento [mai. 2013]. Entrevistadora: Lorena Otero. So Paulo: Perdizes, 2013. MP3. Entrevista concedida a este trabalho. 34CINCO, Renato Athayde Silva. Depoimento [mai. 2013]. Entrevistadora: Lorena Otero. Braslia: Museu da Repblica, 2013. MP3. Entrevista concedida a este trabalho. 35 Uma semana antes da Marcha do Growroom, ns fizemos uma marcha que foi um fracasso (Marcha Rio pela Legalizao das Drogas Basta de violncia!), teve quinze pessoas. Quando vimos a quantidade de pessoas que

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    O papel do Growroom foi fundamental para estabelecer a comunicao entre os

    indivduos que pretendiam marchar, bem como na divulgao do evento. Na poca, o site

    contava com uma rede de aproximadamente 20.000 growers36, e hoje conta com mais de

    50.000. O Growroom referncia fortssima no ativismo brasileiro em relao ao tema.

    Paralelamente, como o Growroom dispunha e ainda dispe de uma conexo virtual

    forte entre ativistas e cultivadores de todo o Brasil, um amigo nordestino, de Salvador (BA),

    figura bem conhecida entre os estudiosos do assunto, Srgio Maurcio de Souza Vidal37,

    realizava na Universidade Federal da Bahia (UFBA) uma oficina chamada Maconha na

    Roda, com vrios professores e ainda uma exposio de artes. Seria a primeira tentativa na

    Bahia para a chamada que no ano seguinte seria um evento maior.

    A realizao da Marcha em 2007 no Rio, despertou a ateno da mdia que registrou o

    evento e circulou em diversos meios de comunicao. As crticas rapidamente surgiram de

    diferentes formas e de diferentes personalidades e instituies. Moradores das redondezas do

    local de realizao da marcha sentiram-se inseguros diante da manifestao.

    O Ministrio Pblico recebeu uma denncia feita pelo prior do apostolado da Opus

    Christi, Joo Carlos Costa, que disse que apologia no deve ser tolerada em lugares

    frequentados por crianas. Ainda, o representando religioso repudiou o uso da imagem do

    Cristo no flyer do evento alegando que um desrespeito f de milhares de pessoas38.

    o William e os amigos deles tinham juntado, no vimos motivo para ter dois eventos separados, afinal nossos objetivos eram comuns. Ento passei a contribuir com a organizao. O Cinco hoje vereador no Rio de Janeiro e acompanha as marchas de todas as cidades, sempre ajudando e defendendo o movimento. CINCO, Renato Athayde Silva. Depoimento [mai. 2013]. Entrevistadora: Lorena Otero. Braslia: Museu da Repblica, 2013. MP3. Entrevista concedida a este trabalho. 36 Denominao dada ao usurio da rede, a pessoa que utiliza o site, que geralmente, em 99% dos casos se identificam por apelidos. 37 VIDAL, Srgio Maurcio de Souza. Depoimento [mai. 2013]. Entrevistadora: Lorena Otero. Braslia: Museu da Repblica, 2013. MP3. Entrevista concedida a este trabalho. 38 GLOBO.com. Notcias disponvel em: http://g1.globo.com/Noticias/Rio/0,,MUL32243-5606,00.html. Acesso em 26 de maio de 2013.

  • 38

    Figura 03 Flyer da realizao da Marcha da Maconha de 2007 no Rio de Janeiro. A arte de William Lantelme Filho e o logo foi feito por um amigo portugus, Nuno Pereira. Destaque para a descrio e recomendao do flyer: crime fazer apologia da maconha, e no a nossa inteno. Mas a realidade que cresce cada vez mais o consumo dessa planta e, portanto, no adianta ser hipcrita e no falar abertamente desse assunto deixar de fazer o nico trabalho de preveno possvel: educar sem contar mentiras. De acordo com as leis brasileiras ilegal fumar ou fazer apologia maconha. NO D MOLE! (Foto: site Marcha da Maconha)

    Atravs da internet, era possvel ver que o movimento estava crescendo. Logo, passou

    a ser objeto de estudos e debates na academia: Marcha da Maconha: apologia ou liberdade de

    expresso? A Marcha, a partir de 2007, causou as primeiras reaes significativas na

    sociedade e nas instituies do Estado, e assim ainda em 2007 eram iniciados os trabalhos

    para realizao da Marcha em 2008, muito mais organizada e forte. Um trabalho que demanda

    muita dedicao e tempo por parte dos organizadores.

    Assim, como em qualquer outro assunto polmico, no demorou a surgir uma

    oposio, desprovida de respostas sobre quem eram as pessoas responsveis, quais eram as

    intenes do movimento, de quem era o patrocnio para o material de divulgao e realizao

    do evento, entre outras questes. So essas justamente as caractersticas que refletem o que a

    doutrina chama de Novos Movimentos Sociais, at ento mal entendidos pelo judicirio.

    Estes movimentos fazem parte de organizaes da sociedade civil, pessoas comuns da

    sociedade que se organizam. No possuem registro ou estatuto. No possuem liderana ou

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    qualquer ambio de poder pleno, sua estruturao horizontal, no se fala em funes,

    como diretores, secretrios, ou qualquer outro cargo 39 . Todos so manifestantes e quem

    quiser/puder ajuda com a organizao que feita pela internet, atravs de fruns. Todo o

    desdobramento da Marcha pode ser visto atravs dos fruns da internet.

    Ao analisarmos os processos judiciais nos tpicos frente, perceberemos as

    indagaes das promotorias de justia para com essas questes e a preocupao dos

    defensores da sociedade em relao conduta dessa manifestao perante as pessoas nas ruas.

    Surgiriam assim as primeiras demandas judiciais de represso da histria da Marcha. Ou

    devemos dizer, da histria de represso da Marcha da Maconha.

    2.2 A histria da represso: entre apologia e liberdade de expresso

    Iniciadas as primeiras tentativas de promover o debate que a Marcha da Maconha se

    props a pautar, a verso carioca de 2007 que logrou xito, superando as demais

    manifestaes, passou a ser alvo de crticas, mas tambm de inspirao para as demais

    cidades marcharem. Com o crescimento do movimento que se preparava para marchar em

    2008, as organizaes contrrias ideologia do movimento, bem como o judicirio,

    entendendo que tratava-se de apologia ao uso de maconha, comearam a se articular visando

    proibir a realizao do evento.

    Todas as demandas judiciais ajuizadas em torno da Marcha da Maconha tinham um

    objetivo a se concretizar em relao ao evento: suspender ou garantir sua realizao. Nas aes

    que pretendiam suspender os eventos pelo pas, justificavam seus autores com incriminao de

    fazer apologia ao crime, enquanto era debatida pelos defensores do movimento com argumentos

    baseados em garantias fundamentais asseguradas pela Constituio Federal.

    As incriminaes eram feitas com base em dois dispositivos legais: o artigo 287 do

    Cdigo Penal e o pargrafo 2 do artigo 33 da Lei 11.343/06, que passamos a transcrever:

    Art. 287 - Fazer, publicamente, apologia de fato criminoso ou de autor de crime:Pena - deteno, de trs a seis meses, ou multa40.

    39 CASTELLS, M. A sociedade em rede. So Paulo: Paz e Terra, 1997. 40 Cdigo Penal Brasileiro, disponvel em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848.htm. Acesso em 20 de outro de 2013.

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    Art. 33. (...) 2o Induzir, instigar ou auxiliar algum ao uso indevido de droga: Pena - deteno, de 1 (um) a 3 (trs) anos, e multa de 100 (cem) a 300 (trezentos) dias-multa41.

    Como observa Salo de Carvalho, o bem jurdico tutelado pelo artigo 287 do Cdigo

    Penal Brasileiro a paz pblica assim, a conduta, para constituir materialmente delito, deve,

    necessariamente, gerar, no seio social, perturbao42. Quanto ao pargrafo 2 do artigo 33 da

    Lei de Drogas, referem-se ao convencimento e a persuaso (induo e instigao) ou ao

    efetivo apoio material (auxlio) e para que o crime seja configurado fundamental que o

    resultado final efetivamente ocorra, no caso, que terceiro consuma a droga43.

    O rgo que todos os anos ingressava com aes visando a suspenso da Marcha da

    Maconha era o Ministrio Pblico, que tambm era provocado pela polcia ou por alguma

    personalidade poltica a agir. Os promotores de justia identificaram no material de

    divulgao do evento fatores que, ao ver deles, induziam ao uso de entorpecentes e enalteciam

    a droga.

    Tratando-se de uma questo jurdica, para provocar o Judicirio so necessrios meios

    corretos para obteno do direito que se pretende. A ao utilizada pelos membros do

    Ministrio Pblico foi a Ao Cautelar44, do tipo inominada. Igualmente, tambm foram

    ajuizados Mandados de Segurana (MS)45. So aes que visam prevenir de ameaa a

    direitos.

    A principal estratgia do Ministrio Pblico era distribuir essas aes durante o

    Planto Judicirio, que era quando o frum estava fechado, permanecendo apenas um juiz de

    41 Lei 11.343 de 23 de agosto de 2006. Disponvel em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm. Acesso em 20 de outubro de 2013. 42 CARVALHO, Salo de. A poltica criminal de drogas no Brasil: estudo criminolgico e dogmtico da Lei 11.343/06. 6 ed. So Paulo: Saraiva, 2013, p. 397.43 Idem., p. 393. 44 uma ao para proteger um direito. No julga, no tendo parte ganhadora ou perdedora, pois qualquer das partes poder ganhar o processo subsequente, chamado de "principal". Pode ser uma ao cautelar nominada (arresto, sequestro, busca e apreenso) ou inominada, ou seja, a que o Cdigo de Processo Civil no atribui nome, mas, sim, o proponente da medida (cautelar inominada de sustao de protesto, por exemplo). chamada preparatria quando antecede a propositura da ao principal, ou incidental, quando proposta