de portas abertas À vida e À diferenÇa: a pedagogia...
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
GLAUCIA DE MELO FERREIRA
DE PORTAS ABERTAS À VIDA E À DIFERENÇA:
A PEDAGOGIA FREINET E A INCLUSÃO
CAMPINAS
2015
GLAUCIA DE MELO FERREIRA
“DE PORTAS ABERTAS À VIDA E À DIFERENÇA: A
PEDAGOGIA FREINET E A INCLUSÃO”
Tese de Doutorado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Educação
da Faculdade de Educação da Universidade
Estadual de Campinas para obtenção do
título de Doutora em Educação, na área de
concentração de Ensino e Práticas Culturais.
O ARQUIVO DIGITAL CORRESPONDE À VERSÃO FINAL
DA TESE DEFENDIDA PELA ALUNA GLAUCIA DE MELO
FERREIRA, E ORIENTADA PELA PROFA. DRA. MARIA
TERESA EGLÉR MANTOAN
CAMPINAS
2015
Agência(s) de fomento e nº(s) de processo(s): Não se aplica.
Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca da Faculdade de Educação
Rosemary Passos - CRB 8/5751
Ferreira, Glaucia de Melo, 1958-
F413d De portas abertas à vida e à diferença : a pedagogia Freinet e a inclusão /
Glaucia de Melo Ferreira. – Campinas, SP : [s.n.], 2015.
Orientador: Maria Teresa Eglér Mantoan.
Tese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de
Educação.
1. Inclusão. 2. Diferença (Educação). 3. Freinet, Método de educação. 4.
Formação continuada. 5. Ensino e aprendizagem. I. Mantoan, Maria Teresa
Eglér,1943-. II. Universidade Estadual de Campinas. Faculdade de Educação.
III. Título.
Informações para Biblioteca Digital Título em outro idioma: Doors open to life and difference : the Freinet pedagogy and inclusion Palavras-chave em inglês: Inclusion Difference (Education) Freinet, education method Continuing education Teaching and learning Área de concentração: Ensino e Práticas Culturais Titulação: Doutora em Educação Banca examinadora: Maria Teresa Eglér Mantoan [Orientador] Tânia Regina Laurindo Flávio Boleiz Júnior Guilherme do Val Toledo Prado Ana Maria Faccioli Camargo Data de defesa: 12-11-2015 Programa de Pós-Graduação: Educação
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
FACULDADE/INSTITUTO
TESE DE DOUTORADO
DE PORTAS ABERTAS À VIDA E À DIFERENÇA:
A PEDAGOGIA FREINET E A INCLUSÃO
Autora: Glaucia de Melo Ferreira
Orientadora: Profa. Dra. Maria Teresa Eglér Mantoan
COMISSÃO JULGADORA
Tânia Regina Laurindo
Flávio Boleiz Júnior
Guilherme do Val Toledo Prado
Ana Maria Faccioli Camargo
A Ata da Defesa assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida acadêmica do aluno.
2015
À Mariana, minha filha, e à vida nova que agora
você traz ao mundo, formando uma nova
família. Meu coração já bate dobrado por vocês.
Aos curumins que povoam minha vida há 35
anos e me encantam com a beleza da vida e da
novidade que trazem ao mundo.
Aos queridos e queridas companheiros da Escola
Curumim, educadores que todo dia renovam em
mim o entusiasmo por esta nossa profissão.
Aos meus pais, que já foram se encontrar em
outros jardins, mas que deixaram a nós, seus
filhos, o maior legado: o de conviver na
diferença. Esta aprendizagem impregnou-se por
meus poros, está inscrita no DNA e me enche o
coração de alegria e gratidão.
Aos meus queridos irmãos e irmãs, pela
renovação das aprendizagens e legado de nossos
pais que fazemos agora na jornada da vida.
AGRADECIMENTOS
À querida professora Maria Teresa Eglér Mantoan pelos tantos ensinamentos, por sua luta
inspiradora e incansável para abrir as portas de todas as escolas para todas as crianças e por
sua abertura e acolhimento a este trabalho.
À querida professora Corinta Geraldi, por seu olhar sempre atento e sensível, por sua
generosidade. Seu trabalho em defesa dos professores é sempre inspirador.
À querida professora e amiga Tânia Regina Laurindo, colega de tantas lutas, de tantos bons
combates que lutamos juntas. Gratidão sempre.
Ao professor e amigo Flávio Boleiz, companheiro nas lutas pela difusão da Pedagogia Freinet no
Brasil. Grata sempre por nossas conversas tão estimulantes e renovadoras.
À professora Ana Maria Camargo pela leitura atenta, pelas contribuições e sugestões a este trabalho.
Ao professor Guilherme do Val Toledo Prado, sempre presente e generoso nas minhas
incursões ao mundo acadêmico.
À professora Norma Sílvia Trindade de Lima, pela disponibilidade para a leitura e por suas
contribuições para este trabalho.
À professora Elizabete Costa Renders, pela disponibilidade para a leitura e por suas
contribuições para este trabalho.
Ao professor Wanderley Geraldi, meu mestre. Eterna gratidão por sua generosa leitura.
Agradeço ao Dr. Matheus pelas gotas homeopáticas milagrosas, ao professor Paulo pelas
práticas equilibradoras da yoga e à Dra. Elony pela escuta sensível e palavras de cura.
Agradeço a toda a equipe de educadores da Escola Curumim: queridos funcionários e professores
que sempre abrem espaços de afeto aos curumins por quem, juntos, fazemo-nos responsáveis.
Agradeço especialmente à equipe de coordenadoras e sócias por sua disponibilidade e
empenho quando de minhas ausências. Agradeço ainda mais por sua amizade, cumplicidade e
apoio a esta empreitada a que me propus. Muito obrigada Anita, Andréia, Ana Flávia,
Heloísa, Luana, Mônica e Rina, vocês sabem o quanto as estimo.
Aos queridos amigos do Coral Coromim, que se tornaram uma família eleita e unida pelo canto.
RESUMO
Este trabalho parte da indagação colocada à autora por sua experiência vivida no espaço
escolar (ora como professora, ora como coordenadora e diretora de uma escola cuja proposta
se fundamenta na Pedagogia Freinet) sobre a dificuldade de implementar transformações mais
profundas e efetivas nas práticas escolares e nas relações entre os atores da cena escolar
(professores, alunos, coordenação, direção, pais) com vistas à inclusão.
Discuto a problemática da inclusão e as dificuldades que esta proposta enfrenta: por mais que
se tenha avançado em termos legais (ou mesmo em termos da compreensão da sociedade
sobre a sua importância), a diferença – aquilo que justamente nos torna únicos e singulares –
não cabe na escola. Indago o quadro situacional da maioria das escolas: seria possível
trabalhar com a diferença numa instituição que se orienta para a normalização? Coloco então
uma questão anterior: de que maneira as estruturas que a escola construiu ao longo do seu
processo de formação têm contribuído para a exclusão da diferença?
Para compreender as características (impregnadas no modelo escolar) do atendimento de um
aluno dito “normal”, busquei, no estudo da história da institucionalização da escola, marcas que
influenciam práticas correntes ainda hoje. A pergunta formulada para orientar esta compreensão
foi: como esta instituição se tornou o que ela é hoje? O estudo da história explicitou o que
chamamos de pilares da escolarização: a noção de infância, o pensamento científico moderno e
o capitalismo industrial. O trabalho objetivou a desconstrução destes pilares por meio das
análises que autores da pós-modernidade ensejam e pela identificação de algumas das
características que se forjaram na constituição da instituição escolar (que naturalizam práticas
excludentes, práticas institucionais e institucionalizadas que dificultam a inclusão). A escola
inclusiva encontra entraves em uma estrutura frontalizada, simultânea, seriada e homogênea.
Da análise histórica parti para a reflexão sobre a experiência vivida, usando a investigação
narrativa: a narrativa de episódios que marcaram minha experiência ensejou reflexões e permitiu
extrair algumas lições sobre os próprios fazeres pedagógicos, sobre a própria precariedade do
modelo escolar vigente e sobre as dificuldades para a sua transformação.
A apresentação e a discussão dos instrumentos da Pedagogia Freinet, desafios para minha
prática pedagógica, serviram como guia para investigar a possibilidade de introduzir novas
formas de produzir o espaço escolar e de transformar práticas tradicionais para construir
relações mais humanizadas e inclusivas para o ensino e a aprendizagem.
Palavras-chave: inclusão e diferença; Pedagogia Freinet; formação continuada; relações de
ensino e aprendizagem.
ABSTRACT
This study begins with the question put by the author about her experience at a Freinet pedagogy
school, either as a teacher or as coordinator and principal. It then discuss about the difficulty of
implementing deeper and effective changes in school practices and in relations between the actors
in the school play (teachers, students, coordination, principal, parents) with a view to inclusion.
I discuss the issue of inclusion and the difficulties it faces: no matter how much progress has
been made in legal terms or even the society understanding of its importance, the difference -
precisely what makes us unique - has no place at school. I inquire about the situational context
of most schools: would it be possible to work with the difference in an institution that is
oriented towards standardization? That brings a previous question: how the school structures
and its formation process contribute to the exclusion of difference?
To understand the characteristics impregnated in the school model that deal with the so-called
"normal" student, it was needed to look into the history of the school institutionalization and the
traces that still influence current practices, formed in the historical process, marked by other
socioeconomic and cultural contexts. The posed question was how this institution has become what
it is today? The study of history explains what we call the pillars of education: the notion of
childhood, the modern scientific thought and the industrial capitalism. This study aimed to
deconstruct these pillars through analysis that post modernity authors provide and the identification
of some of the features forged in the establishment of school institutions that overlook exclusionary
practices, institutional and institutionalized practices that hinder inclusion. The inclusive school
faces barriers concerning frontalization, simultaneous, serial and homogeneous structures.
Using the methodology of narrative research, it goes from historical analysis to the
experience. The episodes that marked the author's experience were brought to reflections and
allowed lessons on the teaching process, on the precariousness of current school model and
the difficulties for its transformation.
The presentation and discussion of the components of Freinet pedagogy, which consisted in
challenges for the author’s teaching practice, served as a guide to discuss the possibility of
introducing new ways to create the school environment and to transform traditional practices
into a more humane and inclusive relation for teaching and learning.
Keywords: Inclusion and difference; Freinet pedagogy; continuing education; teaching and
learning relations.
RÉSUMÉ
Ce travail commence avec la question posée à l'auteur par son expérience vécue, que ce soit en
tant que professeur ou comme coordinateur et directeur d'une école dont la proposition est basée
sur la pédagogie Freinet, à propos de la difficulté de la mise en œuvre des changements plus
profonds et efficaces au niveaux des pratiques scolaires et les relations entre les acteurs de la
scène de l'école (enseignants, étudiants, coordination, direction, parents) en vue de l'inclusion.
Discuter de la question de l'inclusion et les difficultés de cette proposition doit faire face: peu
importe combien de progrès ont été réalisés en termes juridiques ou même en termes de
compréhension de la société à propos de son importance, la différence - ce qui exactement nous
fait unique et singulière - pas Il tient dans l'école. Renseignez-vous sur le contexte situationnel de
la plupart des écoles: il serait possible de travailler avec la différence dans une institution qui est
orienté vers la normalisation? Se pose alors une question précédente: comment les structures que
l'école a construit par son processus de formation a contribué à l'exclusion de la différence?
Pour comprendre les caractéristiques imprégnées dans le modèle de l'école structurée pour
répondre à un soi-disant étudiant «normal», a cherché dans l'institutionnalisation de l'école
d'étude des marques qui influencent les pratiques actuelles de l'histoire aujourd'hui, et celui
formé dans le processus historique, marquée pour d'autres contextes socio-économiques et
culturels. La question posée pour guider cette compréhension était comme l'institution est
devenue ce qu'elle est aujourd'hui? L'étude de l'histoire a expliqué ce que nous appelons les
piliers de l'éducation: la notion de l'enfance, la pensée scientifique moderne et le capitalisme
industriel. L'étude visait à déconstruire ces piliers à travers l'analyse que les auteurs
fournissent la postmodernité et l'identification de certaines des caractéristiques qui ont été
forgés dans la mise en place de l'école qui naturalise les pratiques d'exclusion, des pratiques
institutionnelles et institutionnalisées qui entravent l'inclusion. L'école inclusive est barré par
une structure frontalizée, simultanée, de série et homogène.
L'analyse historique laissé à la réflexion sur l'expérience, en utilisant la méthodologie de la
recherche narrative. Le récit des épisodes qui ont marqué l'expérience de l'auteur a donné lieu
réflexions et a permis de tirer quelques leçons sur les propres actions d'enseignement, sur la
précarité même de modèle de l'école actuelle et les difficultés pour sa transformation.
La présentation et la discussion des composantes de la pédagogie Freinet, qui consistaient à
des défis pour l'enseignement de la pratique de l'auteur, a servi de guide pour discuter de la
possibilité d'introduire de nouvelles façons de faire de l'environnement scolaire et de
transformer les pratiques traditionnelles à l'égard de construire des relations plus humaine et
plus inclusive pour l'enseignement et l'apprentissage.
Mots-clés: l'inclusion et de la différence; La pédagogie Freinet; la formation continue;
relations des enseignement et apprentissage.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1: Pátio de escola. .......................................................................................................... 51
Figura 2: Sala de aula. .............................................................................................................. 52
Figura 3: Sala de aula do “futuro”. ........................................................................................... 52
Figura 4: Gravura da ágora com a Acrópoles ao fundo ............................................................ 55
Figura 5: Afresco de Paestum, com cena de banquete, século V a.C. ...................................... 56
Figura 6: Academia de Platão: mosaico de Pompéia. .............................................................. 56
Figura 7: Detalhe de um sarcófago da primeira metade do século II ...................................... 57
Figura 8: Ramon Llull conversa a respeito de seus livros com seu discípulo Thomas Le
Myésier (detalhe da miniatura 11 do Breviculum). ................................................................ 58
Figura 9: Um grupo de discípulos estuda uma lição com seu mestre). Iluminura do século XIII . 59
Figura 10: Aula em Universidade Medieval............................................................................. 60
Figura 11: Jogos infantis. Pieter Bruegel (1525- 1569)............................................................ 61
Figura 12: O mestre açougueiro e o aprendiz.. .......................................................................... 62
Figura 13: O mestre padeiro e seu aprendiz. ............................................................................ 62
Figura 14: Arte do códice de esgrima medieval Gladiatória ................................................... 63
Figura 15: Interior da Catedral de Notre Dame, Paris.. ............................................................ 65
Figura 16: Afresco de Giotto, A Lamentaçãoi. ........................................................................ 66
Figura 17: O inferno. Pintura em óleo sobre madeira. Autor anônimo português do século XVI. 66
Figura 18: Iluminura que ilustra o calvário de Cristo. .............................................................. 67
Figura 19: Desfiles da monarquia terminavam nos átrios de igrejas. Procissão das relíquias de
Luis IX, ilustração de manuscrito, cardeal-mestre Bourbon, séc. XIII. ................................... 68
Figura 20: O jardim das delícias. Hieronymus Bosch. ............................................................. 68
Figura 21: Os monges recebiam nos mosteiros indistintamente todas as crianças a eles entregues,
vestindo-as, alimentando-as e educando-as, num sistema integral de formação educacional. ....... 70
Figuras 22 e 23: Páginas de abertura da Ratio Studiorum, publicada em 1599. ...................... 71
Figuras 24 e 25: Páginas iniciais da Ratio Studiorum. ................................................................ 71
Figura 26: O sistema heliocêntrico de Copérnico. ................................................................... 75
Figura 27: O Julgamento de Giordano Bruno pela Inquisição Romana. .................................. 76
Figura 28: Observação do satélite de Júpiter por Galileu. ........................................................ 78
Figura 29: O livro Orbis Pictus ................................................................................................ 81
Figura 30: Mais páginas do Orbis Pictus. ................................................................................. 81
Figura 31: Frontispício da Encyclopédie (editada em 1772 por Diderot e d’Alembert),
desenhado por Charles-Nicolas Cochin e gravado por Bonaventur-Louis Prévost.................. 86
Figura 32: Uma rua de um bairro pobre de Londres (Dudley Street)....................................... 88
Figura 33: Crianças na fábrica. Gravura de Gustave Doré de 1872. ........................................ 89
Figura 34: Ilustração de escola do século XIX de ensino mútuo. ............................................ 92
Figura 35: Ensino simultâneo assente no agrupamento constituído pela classe e sala de aula.93
Figura 36: Ilustração de Rousseau e crianças. .......................................................................... 98
Figura 37: Ensino individual. “Le Maître d’école”. Adriaen Van Ostade. 1662. .................... 98
Figura 38: Henri Jules Jean Geoffroy – “The Children’s Class” (1889). ................................ 98
Figura 39: A organização frontalizada do espaço da sala de aula. ......................................... 100
Figura 40: Freinet e seus alunos. ............................................................................................ 150
Figura 41: Roda de conversa de uma turma de 4º ano na Escola Curumim. .......................... 158
Figura 42: Roda de conversa de uma turma de 2º ano na Escola Curumim. .......................... 159
Figura 43: Trabalho em ateliês de uma turma de Infantil (4 a 5 anos) na Escola Curumim. ....... 160
Figura 44: A imprensa escolar na minha classe de 1ª série (1983).. ...................................... 179
Figura 45: Dois alunos apresentam a caixa de tipos a um visitante numa exposição (1983).. ..... 179
Figura 46: Páginas internas do mesmo Jornal. ....................................................................... 181
Figura 47: Álbuns de alunos de uma turma de 2º ano. ........................................................... 182
Figura 48: Plano de trabalho individual. ................................................................................ 192
Figuras 49 e 50: Exemplo de uma Aula–passeio .................................................................... 204
Figura 51: Aula passeio ao centro de Campinas..................................................................... 206
Figura 52: Roda de conversa de uma turma de 2º ano, com o Livro da Vida em frente à professora.. .. 224
Figura 53: Página do Livro da Vida com o registro da reunião do Jornal de Parede.. ........... 225
Figura 54: Jornal de Parede de uma turma de 7º ano ............................................................. 227
Figura 55: Painel da Festa Junina 2015 da Escola Curumim. ................................................ 244
Figura 56: Passeio da Lanterna (Festa Junina da Escola Curumim). ..................................... 245
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 15
O problema ............................................................................................................... 15
A abordagem ............................................................................................................ 18
Questões envolvidas ................................................................................................. 20
1. CAMINHO INVESTIGATIVO E MEUS INTERLOCUTORES ........................... 29
A investigação narrativa ........................................................................................... 29
A narrativa como fonte de perguntas ou como o disparador da busca de respostas 35
Meus interlocutores .................................................................................................. 41
Narrar por meio de imagens e as imagens como interlocutoras ............................... 45
2. UM PASSEIO PELA HISTÓRIA EM BUSCA DOS INDÍCIOS PARA O ATUAL
ESTADO DAS PRÁTICAS ESCOLARES: UMA GENEALOGIA DA ESCOLA .... 47
Buscando as origens da formação da atual visão de escola ...................................... 54
A construção da noção de infância e o pensamento religioso .................................. 60
A apropriação da infância: os jesuítas e a Ratio Studiorum ..................................... 69
O Renascimento e o surgimento do pensamento científico moderno ...................... 74
Uma reapropriação da infância: Comenius e a Didática Magna .............................. 79
O capitalismo industrial e o primado da economia .................................................. 87
A massificação da infância ....................................................................................... 91
A escola de hoje e as marcas da sua constituição ..................................................... 96
A “racionalidade” do modelo: uma discussão necessária ...................................... 101
A “equidade e produtividade” do modelo: mais questões em aberto ..................... 110
E a infância? O que é ela no mundo atual? ............................................................ 118
Características da escola e do ensino...................................................................... 128
1. Identidades fixadas para os sujeitos na escola ............................................................ 128
2. Exclusão da sensibilidade em benefício da racionalidade .......................................... 131
3. Separação entre saber e fazer: a destituição do trabalho em benefício do jogo ..................... 134
4. A frontalização do ensino: exclusão do acontecimento .............................................. 137
5. O ensino simultâneo ................................................................................................... 140
6. A classe homogênea: a exclusão do conflito .............................................................. 142
7. O ensino seriado e a avaliação .................................................................................... 144
A escola e as consequências que decorrem de suas características: ainda uma reflexão 146
3. A NARRATIVA COMO INVESTIGAÇÃO DE SI ABRINDO POSSIBILIDADES
PARA A REFLEXÃO E COMPREENSÃO .............................................................. 151
Uma novela que me formou: retomando alguns passos de minha trajetória .......... 154
1ª NARRATIVA: da solidão de ser professora à construção de outro modo de estar na
sala de aula. Uma data imprecisa de lembranças muito vivas. ....................................... 156
OS INSTRUMENTOS DA PEDAGOGIA FREINET EM AÇÃO ....................................... 158
RODA DE CONVERSA ................................................................................................. 158
A CLASSE EM ATELIÊS ............................................................................................ 160
REFLEXÕES SOBRE O EPISÓDIO:“o que era vidro se quebrou” e se abriu um novo encontro 161
2ª NARRATIVA: um fracasso que não se silenciou....................................................... 166
REFLEXÕES SOBRE O EPISÓDIO: aprender com o fracasso, aprender com o sucesso, aprender com a diferença ............................................................................... 168
AFINAL, PARA QUE ESTAMOS PREPARADOS? .................................................... 174
3ª NARRATIVA: expressões livremente impressas e a doce experiência de si e do outro 176
OS INSTRUMENTOS DA PEDAGOGIA FREINET EM AÇÃO ....................................... 178
O TEXTO LIVRE, O JORNAL ESCOLAR, A IMPRENSA .................................... 178
OS ÁLBUNS .................................................................................................................. 182
REFLEXÕES SOBRE O EPISÓDIO: deixar falar a criança para conhecê-la; pelo trabalho transformar esta palavra em objeto de fruição para todos .............. 183
4ª NARRATIVA: ciência e investigação e o tateio experimental .................................. 189
OS INSTRUMENTOS DA PEDAGOGIA FREINET EM AÇÃO ....................................... 190
OS PROJETOS COLETIVOS E OS PLANOS GERAIS ANUAIS ...................... 190
PESQUISAS INDIVIDUAIS E O PLANO DE TRABALHO INDIVIDUAL ..... 191
REFLEXÕES SOBRE O EPISÓDIO ........................................................................... 193
Aprender com as crianças a se reencantar com o mundo ...................................... 193
5ª NARRATIVA: tensões e distensões no cotidiano da escola ...................................... 199
OS INSTRUMENTOS DA PEDAGOGIA FREINET EM AÇÃO ....................................... 204
A AULA PASSEIO........................................................................................................ 204
A CULINÁRIA ............................................................................................................... 207
REFLEXÕES SOBRE O EPISÓDIO: o encontro entre alteridades e a autoridade como autoria de nossa própria maturidade ............................................................................ 209
6ª NARRATIVA: uma quinta-feira... quando o diabo mostra o rabo... .......................... 219
6ª NARRATIVA (segunda parte): separação entre saber e fazer ou do zelo em cada coisa
que se faz ........................................................................................................................ 222
OS INSTRUMENTOS DA PEDAGOGIA FREINET EM AÇÃO ....................................... 224
O LIVRO DA VIDA ...................................................................................................... 224
O JORNAL DE PAREDE .............................................................................................. 225
A CORRESPONDÊNCIA .............................................................................................. 228
REFLEXÕES SOBRE O EPISÓDIO: aprender a escutar escutando, aprender a fazer fazendo. Deixar a vida entrar, abrindo as portas para o acontecimento e a complexidade ........... 229
LIÇÕES DA EXPERIÊNCIA .................................................................................... 234
Buscar a gênese, as raízes, as estruturas ................................................................. 235
Desconstruir os pilares e encontrar rizomas e emaranhados de significação ......... 235
Aprendizagens que as crises ensejam e o retorno à experiência vivida ................. 237
Para uma nova escola novos instrumentos de trabalho .......................................... 238
O corpo docente aprende no encontro com o corpo discente ................................. 238
Arregaçar as mangas, engajar-se no trabalho, reencantar-se com o mundo ........... 239
Autoridade: autoria da própria idade. Maturidade para construir relação de escuta.
................................................................................................................................ 240
Da atualidade da Pedagogia Freinet ....................................................................... 241
A coragem de fazer, de correr os riscos, de transformar e transformar-se ............. 242
Não estamos sozinhos............................................................................................. 243
A educação e a pergunta ética ................................................................................ 244
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................... 246
ANEXO ...................................................................................................................... 253
15
INTRODUÇÃO
O problema
Se fizéssemos hoje um pequeno passeio a uma rua de comércio, a um shopping ou a
uma praça e, como quem faz uma pesquisa de opinião, perguntássemos às pessoas sobre quais
providências deveriam ser tomadas pelo poder público para melhorar a qualidade de vida, a
educação, certamente, estaria entre as respostas da maioria dos entrevistados. As passeatas e
atos públicos de junho de 2013 nos deram uma boa mostra de quantas e quão grandes são as
expectativas que a sociedade deposita na escola. Acostumamo-nos a ver a educação como a via
para resolver os problemas sociais. E, no entanto, se fôssemos agora a uma escola qualquer,
percorrêssemos seus corredores e adentrássemos uma sala de aula, talvez tivéssemos o desejo
de não permanecer ali por muito tempo. Na conhecida anedota Joãozinho aguardava ansioso o
dia de ir à escola. Finalmente chega o primeiro dia de aula, ele se despede da mãe e corre para o
pátio. No final do dia, seu avô vai buscá-lo e pergunta sobre como foi o dia, se gostou da escola.
Joãozinho fica calado, o avô insiste, “o que você gostou na escola?” e então Joãozinho pensa
um pouco e diz “do recreio!” O avô ainda tenta: “mais alguma coisa?” e o menino diz “acho
que vou gostar das férias”. Talvez, se perguntássemos às crianças sobre qual o melhor momento
da escola, muitas delas nos responderiam com um enorme “recreio”. A anedota que, para fazer
rir, traz o final inesperado, serve também para fazer pensar.
Tanta coisa tem sido dita sobre os problemas da escola brasileira, desde os
estruturais (como baixos salários dos professores, salas superlotadas, precariedade de
instalações e equipamentos), passando pelos mais diretamente ligados às questões
pedagógicas (tais como conteúdos desvinculados das vivências concretas dos alunos,
despreparo dos professores que se apegam a rotinas rígidas e sem vida, o desinteresse de
alunos e professores, a repetência, evasão escolar, exclusão...). Tudo isso já é bastante sabido
por todos. No entanto, a escola vem se reproduzindo, repetindo as velhas fórmulas. Ancorada
numa racionalidade técnica, o pensamento pedagógico reveste-se de uma cientificidade que
supostamente teria o poder de verdade para a formação do sujeito da sociedade moderna.
Acostumamo-nos a pensar na escola como este lugar de formação das novas
gerações e que bastaria melhorar alguns de seus aspectos problemáticos, ampliar o número de
16
vagas e tudo se encaixaria perfeitamente: teríamos a solução para todos os problemas. E, no
entanto, esta escola, sobre a qual temos uma visão naturalizada, vê-se abalada, ameaçada e
despreparada diante do compromisso – agora amplamente legislado – de incluir a todos os
alunos. A presença do visivelmente diferente provoca um desequilíbrio no ambiente escolar,
causa um distúrbio nas rotinas, provoca necessidades que não permitem mais aos professores
exercerem seu ofício da forma costumeira, seguindo as rotinas que repousam, que tornam leve
o trabalho e diminuem a necessidade de fazer pensar, criar, experimentar, reagir e agir.
As objeções que tantas vezes pude ouvir de tantos professores diante do tema da
inclusão revelou para mim uma resistência que pode ser entendida como um sintoma do
problema. Mesmo consciente das dificuldades geradas pelo descaso de políticas públicas que
dificultam enormemente seu trabalho e não querendo minimizar toda esta problemática, ainda
assim esta resistência me impunha constantes indagações. Vi-me às voltas com um sentimento
de estranhamento que a sensibilidade artística de Calvino me ajuda a expressar:
Aconteceu-me uma vez, num cruzamento, no meio da multidão, no vaivém.
Parei, pisquei os olhos: não entendia nada. Nada, rigorosamente nada: não
entendia as razões das coisas, dos homens, era tudo sem sentido, absurdo. E
comecei a rir.
Para mim, o estranho naquele momento foi que eu não tivesse percebido isso
antes. E tivesse até então aceitado tudo: semáforos, veículos, cartazes, fardas,
monumentos, essas coisas tão afastadas do significado do mundo, como se
houvesse uma necessidade, uma coerência que ligasse umas às outras.
Então o riso morreu em minha garganta, corei de vergonha. Gesticulei, para
chamar a atenção dos passantes e – Parem um momento! – gritei – tem algo
estranho! Está tudo errado! Fazemos coisas absurdas! Este não pode ser o
caminho certo! Onde vamos acabar?
As pessoas pararam ao meu redor, me examinavam, curiosas. Eu continuava
ali no meio, gesticulava, ansioso para me explicar, torná-las participantes do
raio que me iluminara de repente: e ficava quieto. Quieto, porque no momento
em que levantei os braços e abri a boca a grande revelação foi como que
engolida e as palavras saíram assim, de chofre.
– E daí? – perguntaram as pessoas. – O que o senhor quer dizer? Está tudo no lugar.
Está tudo andando como deve andar. Cada coisa é consequência de outra. Cada
coisa está vinculada às outras. Não vemos nada de absurdo ou de injustificado!
E ali fiquei, perdido, porque diante dos meus olhos tudo voltara ao seu devido lugar
e tudo me parecia natural, semáforos monumentos, fardas, arranha-céus, trilhos de
trem, mendigos, passeatas; e no entanto não me sentia tranquilo, mas atormentado.
– Desculpem – respondi. – Talvez eu é que tenha me enganado. Tive a impressão.
Mas está tudo no lugar. Desculpem. – E me afastei entre seus olhares severos.
Mas, mesmo agora, toda vez (frequentemente) que me acontece não entender
alguma coisa, então, instintivamente, me vem a esperança de que seja de novo
17
a boa ocasião para que eu volte ao estado em que não entendia mais nada,
para me apoderar dessa sabedoria diferente, encontrada e perdida no mesmo
instante. (Calvino, 2001, p. 16).
O estranhamento, o sentimento de perda de sentido ou de impossibilidade de
explicar o que para mim – ao olhar para as práticas tradicionais vigentes nas escolas – parecia
fora de lugar, dava-se muitas vezes nos diálogos com professores quando eu tentava falar de
um outro modo de ser e de estar na escola, um outro modo de fazer educação no qual a
diferença é parte integrante e essencial.
Minha experiência profissional foi marcada desde o início pelo estudo e prática da
Pedagogia Freinet a qual se constitui em seus princípios como uma Pedagogia da Diferença.
Respeitar os diferentes ritmos da classe, avaliar cada um segundo seus progressos, atender aos
diferentes interesses e necessidades próprios a cada um do grupo, foram para mim os desafios
próprios do trabalho de educar. Ao me ver tantas vezes diante de dedicados educadores que me
perguntavam sobre o que fazer com seus alunos com deficiência, senti a necessidade de entender
os motivos das preocupações deles e de me debruçar sobre o estudo da escola.
18
A abordagem
O presente projeto parte de um estranhamento sobre a escola, sobre a visão e as
expectativas que nela depositamos, e liga-se à questão da inclusão escolar tomada na sua
concepção mais ampla, profunda e radical como nos aponta Mantoan (2003, p.24):
As escolas inclusivas propõem um modo de organização do sistema
educacional que considera as necessidades de todos os alunos e que é
estruturado em função dessas necessidades. Por tudo isso, a inclusão implica
uma mudança de perspectiva educacional, pois não atinge apenas alunos
com deficiência e os que apresentam dificuldades de aprender, mas todos os
demais, para que obtenham sucesso na corrente educativa geral.
É dentro desta visão de inclusão a qual ajuda a denunciar a naturalização da forma
escolar tradicional e reclama uma revisão e transformação mais ampla, das concepções de
homem e de mundo que nela circulam que o presente trabalho se pauta.
A abordagem metodológica deste trabalho baseia-se na investigação narrativa
(que apresento no capítulo 2) e ao longo do trabalho algumas narrativas irão aparecer, às
vezes servindo para explicitar momentos em que as dúvidas e indagações surgiram na
experiência da pesquisadora, outras vezes como elucidação de respostas encontradas.
Entendendo que o modelo de escola vigente está estruturado para atender ao aluno
“normal”, partindo do princípio de que todos devem atingir os mesmos objetivos educacionais
para eles traçados, no terceiro capítulo deste trabalho iremos buscar na História pistas e
indícios para evidenciar outros modos de educar que foram correntes. Tentaremos
desnaturalizar as origens deste modelo, os pilares que sustentam esta edificação, buscando
compreender as marcas que até hoje se encontram impressas na instituição escolar,
conformando e padronizando os fazeres que ali se realizam. O pensamento foucaultiano
servirá como guia nesta empreitada: “o que se encontra no começo histórico das coisas não é
a identidade ainda preservada da origem − é a discórdia entre as coisas, é o disparate. A
história ensina também a rir das solenidades da origem” (Foucault, 1984, p. 13).
Num passeio pela História da Educação, abordamos com mais profundidade
ideias e práticas presentes na constituição da instituição escolar. Vemos a influência do
pensamento religioso, a importância do modelo pedagógico jesuíta como organizador da
escola e a visão de Comenius de “ensinar tudo a todos e ao mesmo tempo” como algo ainda
presente no modo de ensinar nas escolas. Também abordamos a influência do pensamento
19
científico moderno e do capitalismo industrial. Ainda no terceiro capítulo analisamos as
características que estas influências forjaram na instituição escolar. Finalizamos este capítulo
com uma discussão sobre as consequências que advêm deste modelo.
Este trabalho também é composto pelas imagens de escola, tanto do passado
quanto do presente. Trazê-las teve como intenção convidar o leitor a um olhar, a uma
aproximação com o ambiente escolar e, assim, propor novas miradas para este espaço, outros
coloridos para todos que nele habitam.
No capítulo quatro a narrativa da experiência vivida busca refletir sobre
dificuldades enfrentadas, tentando esboçar caminhos de aprendizagem. Os diferentes lugares
que a pesquisadora ocupou ao longo de sua trajetória, como professora, orientadora
pedagógica, ou ainda como diretora (mas sempre no chão da escola), ao serem explicitados
servirão para deles extrair as lições que se tornaram possíveis.
Em todo o trabalho que ora se inicia destacamos o fato de que a presença de
pessoas com deficiência evidencia a precariedade da escola, no sentido tanto material quanto
intelectual. A simples presença de um aluno numa turma já a mostra – o diferente torna-se
visível e ao fazê-lo revela a diferença antes invisível de todos os alunos.
A companheira nesta caminhada de trabalhadora da educação foi sempre a Pedagogia
Freinet. Suas contribuições referem-se tanto ao trabalho com alunos ditos “normais” quanto com
aqueles que apresentam dificuldades ou deficiências. A explicitação dos princípios freinetianos e
de seus instrumentos serão focados de forma a permitirem reflexões sobre as contribuições que
ela ensejou em toda esta empreitada e irão aparecer após as narrativas, para, em seguida tecermos
as reflexões e aprendizagens que os episódios narrados proporcionaram.
20
Questões envolvidas
Minha experiência pessoal e profissional tem me mostrado que a mudança de
perspectiva requerida pela inclusão é algo bastante difícil. Tantas vezes me vi e me vejo diante de
professores (envolvida que estive muitas vezes com a formação de professores ao longo de minha
caminhada), de pais de alunos e de outros colegas de profissão que se colocam – às vezes
abertamente, outras veladamente – em oposição à inclusão. Enfrentei e ainda enfrento atitudes às
vezes de desconfiança, de incredulidade, outras de imobilismo ou de uma inércia que rejeita a
mudança e se apoia no conformismo do “sempre foi assim...”, mas também me vi diante de
educadores extremamente dedicados e comprometidos com uma educação melhor, cheios de
entusiasmo e amor por sua profissão, mas que mesmo assim mostravam-se com muitos receios.
A instituição escolar está, hoje, diante do compromisso de incluir todas as crianças.
E, no entanto, ela está estruturada a partir de uma lógica meritocrática, que premia os bons
(estes bons, do ponto de vista da escola, são os que melhor se conformam aos desígnios que ela
impõe) e pune os maus (aqueles que de um modo ou de outro, mostram-se diferentes do padrão
esperado). Esta instituição apega-se às rotinas burocratizadas, ao formalismo de uma instrução
passiva e das provas e verificações de aprendizagem, aos conteúdos simplificados dos livros
didáticos e afasta-se dos alunos, de suas necessidades e interesses, negando a eles a
possibilidade de se realizarem por meio de uma atividade viva e construtiva.
Na sua longa trajetória em defesa de uma educação mais adaptada à criança,
Freinet já nos apontava o problema quando escreveu que “a escola já não prepara para a vida,
já não serve à vida, e está nisto sua definitiva e radical condenação” (Freinet, 2001, p. 4).
Estamos hoje diante de um conflito: este modelo padrão de escola que aí está já
não atende às necessidades dos alunos, mesmo daqueles ditos normais. E agora deve também
incluir aqueles outros, que antes eram encaminhados às instituições especializadas.
Foi pensando nas minhas vivências, refletindo sobre os tantos questionamentos
que o encontro com os tantos interlocutores do campo educacional me propiciaram, que em
minha trajetória profissional começou a desenhar-se o desejo de realizar este trabalho. A cada
encontro ou diante de cada dificuldade encontrada para manter viva e funcionando sob
princípios inovadores a escola onde trabalho, aprofundavam-se em mim as dúvidas, definia-se
o problema a estudar, que podemos resumir neste impasse diante do qual a escola comum se
vê ao enfrentar a questão da inclusão.
21
Tanta dificuldade e oposição me levaram a me perguntar sobre as razões ser tão
difícil para as pessoas admitirem que todas as crianças tenham o direito de frequentar a escola
sem sofrerem segregações ou discriminações de qualquer natureza. Por que muitos daqueles
que concordam com esse direito não admitem a necessidade de mudanças mais profundas na
forma de organização escolar e muitas vezes se restringem a simplesmente “aceitar” de maneira
conformada a presença de crianças com deficiência em suas salas de aula sem, contudo,
promover mudanças mais significativas no seu trabalho e sem questionar a forma de
organização da instituição escolar? Numa palavra: por que é tão difícil mudar a escola?
Um sentimento de estranhamento ainda me acomete diante dessas dificuldades. Mas é
preciso reconhecer: estranhar o outro é, para mim, muitas vezes, estranhar a mim mesma; reconhecer
os recantos, nem sempre explícitos, nos quais se entrincheiram dificuldades e travamentos que
obstruem e resistem ao desafio proposto por Hannah Arendt: “pensar sem corrimãos”.
Minha trajetória como educadora começou desde o início como uma busca por
propostas inovadoras de educação. Minha formação inicial em Pedagogia, na Unicamp, já havia
contribuído para que se esboçasse em mim uma visão crítica. Nos bancos daquela instituição, lá
pelos idos de 1978 até 1982, tive a oportunidade de ser aluna de Paulo Freire, Rubem Alves,
Maurício Tragtenberg, Moacir Gadotti, Milton de Almeida e outros. De diferentes maneiras
aqueles professores faziam com que nós estudantes sacudíssemos nossas concepções de mundo,
de sociedade e de educação. Embora não tenha tido, enquanto estudante universitária, a
oportunidade de conhecer e estudar os educadores que haviam desenvolvido projetos
pedagógicos inovadores (à exceção, é claro, do próprio professor Paulo Freire), a busca por
novas metodologias me animou desde o início e o encontro com a Pedagogia Freinet recuperou
em mim a esperança que, em alguns momentos, o excesso de criticidade sufocava.
Esse encontro com a Pedagogia Freinet se deu já no estágio que fiz na Escola
Curumim no ano de 1980. Um primeiro passo que se mostra necessário para o trabalho que me
proponho é o de explicitar o lugar de onde falo. E este lugar é a escola, o chão da escola. Trabalho
como diretora numa escola de Educação Infantil e Ensino Fundamental da rede privada da cidade
de Campinas, a Escola Curumim, que completou no ano de 2013 seus 35 anos de existência. Fui
professora por vários anos seguidos. Iniciei em 1980 numa turma de Educação Infantil com
crianças de dois a quatro anos. Em 1981 novamente trabalhei com esta faixa etária. No ano
seguinte assumi a turma de crianças de quatro a seis anos. A organização pedagógica da Escola
Curumim, naquele período inicial de sua formação, colocava nas turmas de Educação Infantil
22
duas professoras trabalhando juntas. Assim, nestes meus três primeiros anos trabalhei em
conjunto; em 1980 e 1981 minha colega foi Ruth Joffily e, em 82, foi Ednalva Guedes.
Em 1983 assumi o Ensino Fundamental, trabalhando com a 1ª série, classe de
alfabetização, sem uma colega professora na mesma turma. Ainda tive, no ano seguinte (1984),
uma turma acoplada, ou seja, que tinha crianças de 1ª e 2ª séries juntas. Mais à frente, em 1985,
assumi o trabalho de orientação pedagógica e, muitos anos depois (1996), o trabalho de direção
da escola. Meu trabalho no mestrado (especialmente os capítulos 2 e 3) foram dedicados à
narrativa da experiência por mim vivida nesta escola e às aprendizagens que ela me permitiu1.
Esta escola conta hoje com cerca de 440 alunos e, destes, cerca de 60 são alunos
com algum tipo de deficiência. Em cada uma das salas de aula temos um, dois ou três alunos
(ou até mais) que apresentam alguma deficiência. Esse levantamento, feito no ano de 2013,
mostra uma “fotografia” da situação da Inclusão na Escola. É preciso salientar que estes alunos
já estavam conosco em anos anteriores e que seguirão seu percurso escolar até a conclusão.
Além disso, é importante explicitar o fato de que a inclusão de alunos com
deficiência não é uma prática recente nessa escola. Ela já vem de longa data pois, desde o seu
início (a escola foi fundada por um grupo de pais e professores em 1978), a escola recebeu
(embora ainda não de uma forma sistemática, ainda que não houvesse uma política claramente
estabelecida) alunos com deficiências.
Como uma forma de explicitar a concepção de inclusão que permeia o trabalho
que temos realizado, procedo ao levantamento dos alunos com deficiência matriculados na
escola. Encontra-se em anexo um quadro da evolução do número de matrículas de alunos com
deficiência a partir do ano 2000. No quadro a seguir apresento os dados de 2013.
1 FERREIRA, Gláucia de Melo. Cooperação e democracia na escola: construção de parcerias no
cotidiano escolar como formação continuada. Dissertação de Mestrado. Campinas/SP: Unicamp, 2004.
23
Turmas da Manhã 2013 Turmas da Tarde Total
Infantil Paralisia Cerebral (1)
Deficiência Intelectual (1)
Deficiência Intelectual (1)
Síndrome de Down (1)
1º ano Deficiência Intelectual (1) Transtorno do Espectro Autista (2) SUBTOTAL 3 4 7 2º ano Hiperatividade (1)
Transtorno do Espectro Autista (1)
Deficiência Intelectual (2)
Deficiência Intelectual (1)
Transtorno do Espectro Autista (1)
Síndrome de Down (1)
3º ano Transtorno do Espectro Autista (1)
Deficiência Intelectual (1)
Hiperatividade (1)
Deficiências Múltiplas (2)
Deficiência Auditiva (1)
4º ano Deficiência Intelectual (2) Deficiência Intelectual (2)
Síndrome de Down (1)
Transtorno do Espectro Autista (1)
5º ano Deficiência Intelectual (2)
Síndrome de Down (1)
Deficiência Intelectual (2)
Transtorno do Espectro autista (1)
SUBTOTAL 11 14 25 6º ano Deficiência Intelectual (2)
Síndrome do Pânico (1)
Deficiência Intelectual (5)
7º ano Síndrome de Down (1)
Deficiência Intelectual (3)
Deficiência Intelectual (1)
Transtorno do Espectro autista (1)
8º ano Deficiência Intelectual (3)
Síndrome de Kabuki (1)
Deficiência Intelectual (1)
Deficiência Intelectual e Motora (1)
9º ano Transtorno do Espectro autista (1)
Deficiência Intelectual (1)
Deficiência Intelectual (2)
Transtorno do Espectro autista (2)
SUBTOTAL 12 14 26 26 32 58
O simples ato de fazer este quadro já me suscita inúmeras questões: assim
enumerados, são 58 alunos com algum tipo de deficiência, que possuem um diagnóstico
médico ou psicológico, e já chegam a nós rotulados e classificados, já vêm encaminhados por
psicólogos, médicos ou outros profissionais. Ocorre até mesmo de serem encaminhados a nós
por outras escolas que justificam não estarem preparadas para trabalhar com essas crianças.
A pergunta que me atravessa a mente é sobre os critérios que me levam a colocar
estes alunos, e não outros, nesta tabela. Apesar de toda a pretensa objetividade dos diagnósticos
clínicos, há muito de subjetividade nas classificações feitas sobre seres humanos. E cabe
discutir estes diagnósticos. Um dos trabalhos de Maria Aparecida Moysés, A Institucionalização
invisível – crianças que não aprendem na escola (2001), aborda o problema do diagnóstico
médico e do “olhar clínico”, apontando a responsabilização da criança – que é feita por
professores e outros profissionais da escola e mesmo pelos médicos – pelo seu fracasso escolar.
24
Testes padronizados, instrumentos de medida da “normalidade” mereceram uma análise aguda
desta autora, que buscou as origens das concepções positivistas da normalidade. Segundo ela:
Avançando esta análise podemos afirmar que o olhar clínico em si constitui
um dos pilares das sociedades disciplinares, ao mesmo tempo em que é um
de seus instrumentos. Se existe grande identidade entre olhar clínico e olhar
hierárquico desde o início da constituição da clínica como campo científico,
ela é crescente nos dias atuais. Vigilância, norma, exame, sanção, todas as
estratégias e fundamentos das disciplinas são intrínsecos ao olhar clínico.
Olhar que tem sido, ao longo dos tempos, instrumento de classificação,
hierarquização, discriminação, punição e docilização dos corpos; corpos e
mentes disciplinados, dóceis, institucionalizados em incapacidades e doenças
introjetadas. (Moysés, 2001, p. 236)
O “olhar clínico” de que nos fala Moysés tem conduzido a um olhar que só enxerga a
deficiência. O diagnóstico, o rótulo muitas vezes ajuda a criar uma barreira para a possibilidade de
relações interpessoais mais espontâneas, mais autênticas. Informados pelo diagnóstico, nós
professores, parece que deixamos de enxergar aspectos não problemáticos daquela criança ou
adolescente que está diante de nós. Do “autista”, por exemplo, só enxergamos o “autismo”. Qual é
o seu brinquedo preferido? Gosta de sorvete ou de macarronada? Como brinca com seus
carrinhos? Que perguntas ele tem para o mundo? Será que o estranhamento que ele nos aponta no
seu modo de ver o mundo não seria uma rica contribuição ao nosso olhar? Nada disso
enxergamos... E o espectro do autismo, como um fantasma, uma sombra, passa a rondar as
interações que estabelecemos com ele. Esta sombra cobre como um véu as possibilidades de
enxergar os talentos e capacidades que a pessoa com deficiência tem.
Estas reflexões têm sido explicitadas de inúmeras formas no trabalho de Mantoan
ao nos alertar para as armadilhas da inclusão. De acordo com Mantoan:
As classificações confinam a diferença em desvios de um modelo escolhido
ou inventado. As diferenças definidas por agrupamentos constituídos pela
semelhança de um ou mais atributos se desdobram em subclasses e tendem a
se tornarem permanentes, reificadas. Descartam-se, assim, o caráter mutante
da diferença e sua capacidade de escapar a toda convenção possível.
Quando se abstrai a diferença para se chegar a um sujeito universal, a
inclusão perde o seu sentido. Conceber e tratar as pessoas igualmente
esconde suas especificidades. Porém, enfatizar suas diferenças pode excluí-
las do mesmo modo! Eis aí a armadilha da inclusão. (Mantoan, 2011, p. 103)
A sombra dos diagnósticos fixa uma identidade para o aluno, o outro concreto
diante do qual nos vemos, retira desta relação o sentido de movimento e mudança que toda
relação pode ter. Ficamos engessados, presos na armadilha.
25
Moysés aponta em profundidade o problema da medicalização que estas
classificações e hierarquizações têm ocasionado. Tudo vira doença e para toda doença a indústria
farmacêutica se apressa em criar um remédio. Já no início dos anos 1960, no XVI Congresso da
Escola Moderna, Freinet propunha como tema do encontro a questão da saúde mental da criança.
Em diversos artigos publicados nas revistas do movimento Freinet da década de 1950 e em
especial no seu livro “A saúde mental da criança” (que reúne alguns destes artigos), Freinet
(1978) denunciava este problema, apontando inclusive para o que ele chamou de doenças
escolares, doenças que surgem pela própria inadequação da escola às necessidades da criança.
Esta objetividade dos diagnósticos é passível de questionamento, na medida em que se
reveste de uma suposta racionalidade científica que esvazia e simplifica uma complexidade que está
longe de ser solucionada pela mera rotulação de uma pessoa e pelo seu simples enquadramento
neste ou naquele quadro médico ou psiquiátrico. É preciso resgatar as possibilidades que se abrem
pela subjetividade nas complexas relações dos sujeitos com o mundo, com os outros, com as
instituições. A subjetividade como referência ou categoria de compreensão ou como possibilidade
de um outro olhar sobre estas questões estará presente ao longo do trabalho. Para falar de
subjetividade trago ao diálogo Fina Birulés no seu artigo Del sujeto a la Subjetividad (1996); nele a
autora nos propõe três fios (ou: três conceitos) para “amarrar” uma teia de pensamentos. Interessa-
me aqui retomar o segundo fio ao qual ela se refere: pensar o “outro concreto” como complemento
crítico à noção de “outro generalizado”. Para além das abstrações teóricas, Birulés nos propõe
pensar sobre e com esse outro concreto, que se apresenta diante de nós. Com essa noção poderemos
pensar o indivíduo como sujeito de direito, mas também como sujeito singular.
Así, por ejemplo, el hecho de introducir la noción del “outro concreto” permite
mostrar a los indivíduos no sólo como sujetos de derecho y, por tanto, iguales,
sino también como diferentes em funcion de su singularidade o de su
condición de membros de uma cultura o forma de vida. (idem, p. 231).
Com isso a autora propõe um pensar ético em relação ao “outro” diante de quem
o “eu” está. A noção de “outro concreto” permite-nos a explicitação sobre de quem nos
fazemos responsáveis. Mas, ainda assim, fugindo às classificações forçadas e
padronizadoras que proliferam nos dias atuais, é preciso falar de deficiências que
efetivamente dificultam a vida de crianças e adolescentes.
Ao elencar estes 58 alunos, reconheço os desafios que a presença deles na escola
coloca a nós, que lá trabalhamos, e evidencio a responsabilidade que assumimos de realizar o
trabalho com o que se apresenta como diferente. Mas também a presença de todos estes
26
alunos na escola têm me propiciado reconhecer o quanto a Pedagogia Freinet tem auxiliado
neste processo. Como aponta a Professora Mantoan nos diversos encontros de nosso grupo de
pesquisa, o LEPED2, para que a inclusão possa ocorrer de fato é necessária uma ruptura de
base com a estrutura organizacional do modelo de escola vigente. Vejo na Pedagogia Freinet
este rompimento se realizar e, além disso, vejo-a como uma proposta alternativa para o fazer
pedagógico. Algumas narrativas que serão apresentadas neste trabalho servirão como
exemplos de uma nova organização do tempo e do espaço escolar que constituem novas
dinâmicas para as relações de trabalho e aprendizagem na sala de aula.
A esta altura deste trabalho importa destacar que, na lida diária, no meu trabalho,
encontro-me não diante de 58 alunos com deficiência, mas com 440 alunos, “outros
concretos”, diante dos quais me coloco com a responsabilidade de proporcionar a eles um
ambiente educativo digno, saudável, produtivo, inclusivo.
Colocar-me diante destes “outros” é colocar-me diante das histórias vividas e das
lições aprendidas e deixar que elas falem por si. Histórias vividas na relação com os alunos, os
pais, os psicólogos, os fonoaudiólogos, os médicos, os professores da escola e com os tantos
professores que encontrei nos cursos de formação, de atualização, de extensão. Desenvolver
esta tese é para mim o exercício de buscar nestas histórias vividas os estranhamentos que elas
me ensejaram, as indagações que me suscitaram. É pensar nos compromissos e
responsabilidades que a relação com todos estes interlocutores me ensinou a assumir.
Assim, os objetivos deste estudo são:
Narrar a experiência vivida como educadora, para dela extrair lições sobre a
inclusão escolar.
Discutir as relações entre os atores da cena escolar, notadamente professores e
alunos quando frente a frente com a diferença, face à inclusão.
Para atingi-los parto da elaboração de uma genealogia da escola, evidenciando o
caráter institucional destas relações e seu grau de despersonalização e, portanto, o
esvaziamento da subjetividade (tão necessária quando falamos de relações entre pessoas). Ou
seja, por meio da retomada da História da Pedagogia buscar compreender e explicitar uma
genealogia da escola para conhecer os mecanismos que se forjaram ao longo da História e que
a aprisionam às velhas práticas, mantendo a escola presa em si mesma, impedindo o
necessário rompimento que poderia renová-la e aproximá-la mais dos alunos.
2 Laboratório de Estudos e Pesquisas de Ensino e Diferença. Faculdade de Educação, UNICAMP. Coordenadora
Professora Doutora Maria Teresa Eglér Mantoan.
27
Para melhor visualizar/especificar meus objetivos e intenções elaborei um
pequeno quadro de análise crítica da instituição escolar.
Genealogia da Escola
Fixação de identidades Exclusão da sensibilidade Separação entre saber e fazer
Frontalização Simultaneidade Homogeneidade Seriação
A entrada da criança com deficiência neste lugar é o ACONTECIMENTO.
Noção de Infância
Pensamento Científico
Capitalismo Industrial
ESCOLA
CARACTERÍSTICAS DA ESCOLA
Competição Heteronomia Repetição Tarefismo
CONSEQUÊNCIAS
28
Estes quadros me levam às perguntas que orientam este estudo:
Como transformar a escola num ambiente em que o acontecimento seja colocado como
centro do processo educativo?
Como fazer da escola um lugar de relações subjetivas não pré-estabelecidas, um lugar de
relações autênticas e cooperativas?
Em que a Pedagogia Freinet pode contribuir nas respostas a estas questões?
MINHA POSIÇÃO
Alunos não respondem segundo o padrão;
Nem todos fazem as coisas ao mesmo tempo;
Nem todos têm os mesmos conhecimentos previstos;
Ninguém é igual;
Todos são diferentes.
A inclusão visibiliza os problemas da escola
29
1. CAMINHO INVESTIGATIVO E MEUS INTERLOCUTORES
A investigação narrativa
“O romance é baseado na vida de gente boa, em suas
fisionomias, atos, palavra, pensamentos e esperanças.
Meu objetivo é atingir dois coelhos com uma cajadada:
retratar fielmente a vida e, ao mesmo tempo, mostrar
como ela se afasta da norma. Eu ignoro a norma, assim
como todos nós”.
(Anton Tchekhov)
Este é um projeto diferente dos projetos de pesquisa que seguem os cânones da
ciência positivista, quando se define e se delimita um campo e nele um objeto a se pesquisar,
em que se pressupõe a ideia de que um processo de investigação será realizado a partir das
coordenadas que supostamente se estabeleceriam neste projeto. A ação que me caberia como
pesquisadora estaria por ser iniciada. Proposta uma questão, um problema, utilizando o modelo
preconizado pela Ciência, eu deveria formular hipóteses, desenvolver uma forma de investigar e
coletar os dados que, após todo o processo, deveriam ser analisados, interpretados e
comunicados através de uma escrita neutra e impessoal. Isto era o que se esperava de uma
pesquisa moderna, ainda fundamentada nos modos cartesianos de produzir conhecimentos.
Adotar esta linha de procedimentos traria já de início um impasse, uma questão de
coerência para com o próprio trabalho que realizei e que ora me disponho a realizar. O
impasse, explico, apresenta-se de duas formas: a primeira é que o que me proponho aqui é
muito mais um voltar atrás. Rever momentos de minha trajetória de trabalhadora da educação
para destacar aprendizagens tornadas possíveis nesta história, analisar e refletir sobre este
vivido e estabelecer diálogos com a teoria. A segunda tem a ver com as aprendizagens
mesmas que construí para mim neste processo vivido que me ensinaram a colocar uma
profunda dúvida quanto à possibilidade de considerar viável a aplicação de uma abordagem
positivista para a pesquisa em educação. O intento deste trabalho é muito mais o de proceder a
uma reflexão sobre e com a experiência vivida, buscando outros caminhos que não os das
convenções acadêmicas objetivistas. Estes caminhos apresentam-se cheios de desafio para
mim. Talvez o maior deles seja a escrita em si, pois pressinto que escrever, narrar será ao
30
mesmo tempo rever o aprendido e continuar aprendendo, desvendando, reaprendendo. É o que
posso depreender de outros percursos realizados por outros pesquisadores que também
rejeitaram o positivismo em seus trabalhos e abraçaram metodologias alternativas de
pesquisa. Estas pesquisas, pela sua qualidade e reconhecimento acadêmico obtido, permitem-
me dispensar uma discussão mais ampla, aqui, sobre a validade de novos caminhos
metodológicos e por isso assumo que estou fazendo uma investigação narrativa. Vale a pena
citar os trabalhos do GEPEC3 que apontam a importância e validade desta forma de
investigação. Dentre eles destaco as teses de Maria Emília C. Castro Lima (2003) e de Rúbia
Cristina Cruz (2012) que utilizam a investigação narrativa. Meu próprio trabalho de mestrado
se inscreveu neste modelo investigativo. Também em outras Universidades esta linha de
investigação vem mostrando sua força, como é o caso da tese de doutorado de Tânia Regina
Laurindo (2013), que utiliza a investigação ação, trabalho este apresentado na UFSCar. Além
disso, os trabalhos sobre o cotidiano escolar da professora Regina Leite Garcia constituem
uma importante referência e apontam novas maneiras de investigação.
A própria escolha deste modo de investigar é uma busca de coerência com tudo que
tenho vivido, pois minha história como educadora está carregada de um encantamento com as
ideias e com a obra de Célestin Freinet e impregnada de um trabalho pessoal, autocrítico e
judicioso de não permitir que este encantamento permanecesse no âmbito da admiração.
Busquei e busco viver na relação educativa, no chão da escola, a coerência com os princípios de
um outro modo de educar e de fazer escola. E um outro modo de educar e fazer escola demanda
um outro modo de produzir conhecimentos, carregados e encarnados no cotidiano, na vida que
se leva. Foi tateando e refletindo sobre a própria prática que Freinet produziu sua obra, sendo
ele mesmo o primeiro exemplo, para mim, de alguém que investiga e produz conhecimentos no
e com o cotidiano escolar com seus alunos. Valorizar os resultados das minhas reflexões sobre o
vivido é não desperdiçar a experiência, é aprender com ela, é extrair dela as lições possíveis.
Para melhor explicitar o caminho investigativo desta tese, retomo trechos do
texto Investigação Narrativa – Narradores e Percursos Epistemológicos da Pesquisa
(2015), de autoria dos professores Maria Emília C. Lima, Corinta Geraldi e Wanderley
Geraldi. Neste texto, os autores, depois da explicitação dos sentidos da investigação
narrativa e a investigação como narrativa, apontam para a existência de quatro grandes tipos
3 Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Continuada. Faculdade de Educação, UNICAMP, criado
pela Professora Doutora Corinta Maria Grisólia Geraldi e hoje sob a coordenação do Professor Dr.
Guilherme do Val Toledo Prado.
31
de trabalhos ligados a esta forma de realizar pesquisa (citando os principais grupos e
pesquisadores que os desenvolvem) e que resumo a seguir.
O primeiro é a narrativa como ressignificação da História, no qual se faz o
resgate da história oral contada pelos sujeitos envolvidos em vez de recorrer à
documentação da época. Neste tipo de pesquisa emergem as versões não oficiais,
evidenciando o lugar de onde falam os narradores.
No segundo estão inseridas as narrativas biográficas ou autobiográficas. Neste
tipo de trabalho se faz a reconstituição da história de uma pessoa (que no caso das
autobiografias será o próprio investigador). O foco é produzir uma compreensão do sujeito e
de sua formação, por meio de uma escrita de si e sobre si no processo de formação. Os grupos
ligados a este modo de realizar pesquisa educacional destacam sua validade em propiciar a
compreensão das relações ensino-aprendizagem e das identidades profissionais entre outras.
O terceiro grupo envolve as pesquisas que costumam ser chamadas de colaborativas
ou participantes. Neste grupo encontram-se pesquisas nas quais se planeja previamente a
experiência que será depois relatada/narrada. As questões colocadas inicialmente orientam as
ações que serão realizadas e que deverão produzir respostas. Enfatiza-se neste modo de pesquisa o
controle sobre o processo e sobre os objetivos a serem atingidos, e elas têm sido utilizadas para
avaliar recursos didáticos ou novas metodologias. O pesquisador pode ser também o aplicador da
experiência e, neste caso, aparece mais fortemente a ideia de professor-reflexivo.
O quarto grupo é o que me interessa explicitar melhor, pois é ele que inspira o
modo como pretendo realizar este trabalho. Segundo seus autores:
No quarto e último grupo incluímos as pesquisas que só passam a existir
porque, havendo uma experiência significativa na vida do sujeito pesquisador,
este a toma como objeto de compreensão. A pesquisa decorre de uma situação
não experimental, mas vivencial. Podem ser chamadas de narrativas de
experiências educativas. A especificidade delas reside no fato de que o sujeito
da experiência a narra para, debruçando-se sobre o próprio vivido e narrado
extrair lições que valem como conhecimentos produzidos a posteriori,
resultando do embate entre a prática e os estudos realizados depois da
experiência narrada. A pesquisa que pode ser deflagrada a partir da narrativa
da experiência não é uma construção anterior à experiência. É da experiência
vivida que emergem temas e perguntas a partir dos quais se elegem os
referenciais teóricos com os quais vem a dialogar e que, por sua vez, fazem
emergir as lições a serem tiradas. Como o objeto empírico aqui é a experiência
vivida, há muito de autobiografia, mas diferentemente desta não faz emergir o
sujeito e sim a lição que se extrai da experiência, lição no sentido de conselho
a que apontava Benjamim (Lima, Geraldi e Geraldi, 2015, p. 25).
32
Em minha dissertação já narrei minha história com a Escola Curumim e com a
Pedagogia Freinet. Aqui proponho outra forma de conduzir este trabalho, não mais narrando a
história da escola, mas narrando histórias de momentos de encontro pedagógico significativos.
Tenho algumas histórias para contar de momentos educativos vividos. São acontecimentos
que sinto a necessidade de narrar e analisar para tirar as “lições do vivido”, compartilhar
aprendizagens. Narrar estas histórias tem, para mim, um sentido que aprendi com Benjamim
(1994, p. 200) de extrair delas uma “dimensão utilitária”. Ainda com Benjamim, entendo que
as respostas às perguntas que a narrativa me suscitará terão muito mais a intenção de “fazer
uma sugestão sobre a continuação de uma história que está sendo narrada” (idem).
Os episódios narrados são ligados às minhas vivências, no entanto, pela
necessidade de preservar os sujeitos envolvidos, optei por retirar as ancoragens em dados e
fatos reais. A localização não poderia ser omitida, uma vez que obviamente eles se deram no
local onde trabalho. Mas dados como turma, série e ano letivo foram omitidos ou trocados.
Uma vez que o nome da Escola é Curumim, que em tupi-guarani significa criança, optei por
escolher nomes indígenas para os alunos. Esta escolha mostrou-se inspiradora para mim, ao
descobrir nos nomes significados que a cultura indígena a eles atribui. Também os nomes dos
professores foram trocados por nomes indígenas.
A escolha das narrativas foi talvez uma das tarefas mais difíceis deste trabalho, uma vez
que, ao longo de tantos anos, torna-se imensurável a quantidade de momentos significativos que vivi.
Alguns critérios foram se apresentando a mim durante o próprio processo de narrar e de escolher as
narrativas. Assim, as primeiras narrativas falam de minha vivência nos primeiros anos do exercício da
profissão de professora e a escolha deles mostrou-se necessária como forma de explicitar e refletir
sobre as dificuldades que se apresentaram quando me vi a braços com o desafio de romper com o
modelo tradicional de escola (no qual eu mesma me formara) e colocar em ação uma pedagogia
inovadora. Algumas das situações narradas ocorreram há mais de trinta anos e mesmo assim
continuaram vivas nas minhas lembranças, continuaram servindo como referência para tantas
reflexões e aprendizagens que faço até hoje. Foram lições que não se concluíram e fecharam num
caderno escolar com o visto da professora. Algumas aprendizagens que fazemos tornam-se
automáticas, como por exemplo, quando aprendemos a dirigir. Os gestos tornam-se mecânicos e
conduzimos o carro sem precisar pensar se devemos acionar a embreagem e engatar a marcha. As
narrativas escolhidas não se encaixam neste formato. Elas foram momentos que abriram outros
vislumbres, que continuaram se fazendo sentir e continuam exigindo de mim um eterno aprender.
33
Outro aspecto importante que perpassou a escolha das narrativas foi a preocupação
em discutir um modelo de escola para todos os alunos com toda a complexidade que aí se insere.
Em alguns momentos da produção desta tese pensei em selecionar somente as experiências que
abordassem diretamente a presença de alunos com deficiência no contexto escolar. No entanto,
evitei esta opção, pois ela se apresentou a mim como insuficiente para falar de uma outra escola e
de uma outra forma de educar. Se queremos uma escola para todos é preciso abrir a reflexão para
os tantos desafios que se apresentam nas relações entre todos os atores envolvidos na cena escolar.
Foi neste sentido que optei também por escolher relatos que enfocaram situações vividas como
professora e também como coordenadora e diretora da escola.
Ao escolher a via da investigação narrativa para realizar este trabalho me vejo
também diante da necessidade de pensar no leitor a quem me dirijo. Um trabalho acadêmico,
habitualmente, tem como destinatário o ambiente acadêmico e, como leitores privilegiados, os
professores que integram a banca examinadora, com ênfase para o professor orientador.
Certamente este trabalho inscreve-se no contexto acadêmico e busca sua chancela. Porém, minha
própria experiência e as reflexões que ela inspirou foram fruto não somente das leituras e
aprendizagens que se tornaram possíveis dentro da Universidade, mas também da lida educativa
que vivi e vivo na escola, dos diálogos com professores nos momentos de formação, da
experiência com crianças e adolescentes e com outros tantos professores nos cursos de formação
que ministrei. Assim, a escrita deste texto tem também como destinatários os professores com os
quais trabalhei, os professores que porventura venham a ser leitores deste texto. Busco conversar
com tantos e tantas professoras que se lançam nesta tarefa de ressignificar o seu trabalho, que
questionam a instituição escolar, que se empenham em transformar velhas fórmulas e que
percebem a dificuldade desta tarefa. Professores e professoras que, acredito, como eu muitas
vezes se sentem inseguros e, em outras, cheios de certeza e entusiasmo. Mas é preciso admitir: o
destinatário primeiro da escrita sou eu mesma, que leio e releio cada frase que escrevo, corrijo e
autorizo ou não cada palavra para esta comunicação. E, como primeira leitora, assumo que este
trabalho deve também ser algo em que eu possa encontrar satisfação.
Se os últimos parágrafos esclarecem a direção do texto, os seus destinatários, há
ainda algo a dizer sobre a narradora, que se pergunta: por que escrever esta tese? Há poucos
dias, eu conversava com uma amiga, chorava as dores de estar metida nesta empreitada de
tese e, como boa amiga, ela me disse que não entendia porque eu tinha entrado no
doutorado. Com a carreira bem resolvida, já podendo começar a pensar na aposentadoria...
“Por que raios, você foi inventar de fazer tese?” Minha resposta naquela conversa foi só um
34
aquiescer, concordar com um “é mesmo, né?” Mas a pergunta ficou rondando... Em alguma
dessas rondas, veio-me à lembrança um livro de Rilke. Do seu famoso “Cartas a um jovem
poeta”, que li há tantos anos, uma frase ficou gravada na memória:
Ninguém o pode aconselhar ou ajudar, – ninguém. Não há senão um
caminho. Procure entrar em si mesmo. Investigue o motivo que o manda
escrever; examine se estende suas raízes pelos recantos mais profundos de
sua alma; confesse a si mesmo: morreria, se lhe fosse vedado escrever? Isto
acima de tudo: pergunte a si mesmo na hora mais tranquila de sua noite:
‘Sou mesmo forçado a escrever?’ Escave dentro de si uma resposta
profunda. Se for afirmativa, se puder contestar àquela pergunta severa por
um forte e simples ‘sou’, então construa a sua vida de acordo com esta
necessidade. (Rilke, 1988, p. 22 e 23)
Talvez não com tanta dramaticidade quanto exige Rilke, mas com muita verdade para
comigo mesma, percebi a enorme necessidade de escrever esta tese, de explicitar as ideias que
foram se construindo na minha caminhada. Vê-las ganharem a forma de letra impressa – como tão
bem aprendi com Freinet, na sua defesa de dar ao texto livre da criança o valor de objeto de
apreciação do grupo – tem para mim a força suficiente para me mover a esta tarefa.
Compartilhar esta tese, narrar algumas de minhas agruras e alegrias, explicitar meus
tateios e as aprendizagens que eles me permitiram, traz para mim um sentido que aprendi com
Freinet e que foi narrado por sua esposa, Elise Freinet, no livro Nascimento de uma pedagogia
popular (1978). Logo no início de sua carreira, quando trabalhava em Bar-Sur-Loup (uma pequena
vila nos alpes marítimos franceses), ele iniciou uma troca de correspondências com o professor de
outra pequena vila (Trégnunc, na região litorânea). A alegria e o interesse despertado nos alunos de
uma e de outra vila é descrito com entusiasmo e o encontro e as trocas com aquele colega professor
renovava o seu otimismo. Segundo Elise Freinet (idem, p. 55), em seu diário ele escreveria: “agora
já não estamos sós”. Minha experiência vivida, os tantos encontros da jornada encontram nesta tese
lugar de expressão desse sentimento: “não estou sozinha”.
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A narrativa como fonte de perguntas ou como o disparador da busca de respostas
Na aprendizagem de ser uma professora e educadora freinetiana que pude
construir ao longo dos anos, o caminho da prática e do tateio experimental sempre foram a via
privilegiada. Queria ser uma professora freinetiana e para aprender a sê-lo arregaçava as
mangas e me lançava ao trabalho. Acreditava e acredito que é na prática que nos forjamos,
aprendendo com os erros, com a experiência. Da mesma maneira me coloco agora, neste
início de trabalho com a investigação narrativa: experimento narrar.
Começo com uma das histórias que me ensinou e me constituiu. Por ser uma
experiência fundante, é também uma história que me suscitou indagação. Neste sentido defendo o
método da investigação narrativa como uma possibilidade de pensar sobre os próprios contextos
vividos e que, no sentido de Larrosa (2000), deslocaram-me porque me trouxeram questões.
Narrar para investigar, mas também narrar para explicitar momentos de embate que levaram a
questões. Narrar para perceber como foram surgindo as questões. Narrar para analisar a matéria
prima da vida vivida. Se um projeto de tese acadêmica requer uma pergunta, um problema, no
meu caso considero relevante explicitar o fato de que a pergunta e o problema foram muitos, pois
nasceram e nascem da lida, da prática diária, do diálogo com professores, pais e alunos. Foi a
própria experiência vivida que me colocou questões. Certamente há questões que este vivido me
colocou e que sequer percebi. E à medida que a experiência ia me colocando questões
explicitáveis, elas me levavam a respostas (provisórias na maior parte das vezes). A investigação
narrativa implica num movimento de recuperar a experiência vivida e, neste processo, buscar
compreender as questões que se faziam presentes no momento em que as vivia, mas que só foram
se elucidando depois, ao longo do tempo e, principalmente, vão se elucidando agora, no momento
mesmo da escrita, num movimento que Piaget chamaria de abstração reflexiva.
Na história que narro a seguir percebo ainda mais um aspecto extremamente
delicado para o trabalho a que me proponho nesta tese: quando estamos desempenhando o
trabalho (por exemplo, ao dialogar com professores numa reunião pedagógica, ou ao conversar
com os alunos ou com os pais) as situações se nos apresentam e demandam respostas (ainda que
silenciosas) estejamos ou não preparadas para elas. As situações se impõem, demandam
intervenções. E no momento do agir, há que agir. Ao narrar, a poeira assenta e se aprende ainda
mais com a precariedade das soluções encontradas quando a intervenção se impôs como
necessidade de resposta, do continuar a andar. Na narrativa a seguir espero poder explicitar
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também este aspecto, ou seja, de que a prática no cotidiano escolar naturalmente traz os
enfrentamentos entre pessoas, suas concepções de vida e de escola, nossos outros concretos.
Foi no final do ano de 1999, dezembro. Estávamos numa reunião de Conselho de Classe, com os professores do ginásio (na época, chamadas de 5ª a 8ª série). Já trabalhávamos com a Inclusão. No primário (atual 2º ao 5º ano), esta era uma prática já bem estabelecida. Porém, nas classes de ginásio a situação era um pouco diferente. Havia alguns alunos com deficiências leves, uma aluna com crises epiléticas e ausências, outro aluno cadeirante e com ligeiras dificuldades intelectuais; enfim, tínhamos alguns casos. Porém, a inclusão no antigo primário – que já trabalhava com casos nos quais as dificuldades eram bem mais graves – naturalmente levaria aqueles alunos para o ginásio. Havia um aluno, em especial, que era muito conhecido na escola toda, pois seu comportamento era agressivo. Esse aluno, que chamarei de Tupã, tinha Síndrome de Down e também recebeu o diagnóstico de Esquizofrenia pela psicóloga que o acompanhava.
Naquela reunião de Conselho, procedemos à discussão sobre cada aluno, cada professor relatava ao grupo as notas que cada um havia obtido em sua disciplina. Fomos passando a lista dos alunos e, a certa altura, paramos numa aluna (que chamarei de Bartira). Esta menina tinha algumas dificuldades quanto aos aspectos de atenção e concentração e estava com algumas notas baixas. Pedi aos professores que falassem um pouco mais sobre ela.
A professora de Ciências comentou o bom aproveitamento de Bartira nas suas aulas. Também em Matemática, o professor nos disse que ela havia conseguido um desempenho satisfatório. Porém ela apresentava dificuldades nas disciplinas de Português e Inglês, ambas ministradas pela mesma professora.
A coordenadora pedagógica a questionou, perguntando quais providências ela havia tomado para ajudar Bartira a superar as dificuldades, ao que ela respondeu que já havia encaminhado um trabalho e a aluna também se saíra mal. Bartira também tinha notas baixas em História. A conversa avançou e depois a professora verbalizou: “mas não podemos dar nota a esta aluna!”, “isto seria como que premiá-la sem merecer”. O professor de História fez a seguinte colocação: “é que me preocupa a reputação da escola... Sabe? O que as pessoas irão dizer da Escola Curumim, se uma aluna como ela é aprovada?”.
Teci alguns comentários sobre a avaliação, dizendo que “nosso modo de avaliar coloca o aluno em comparação com ele mesmo e não com os outros; assim, se ele avançou no seu processo isto deve ser levado em consideração. A reprovação de um aluno que está mostrando avanço no seu processo de aprendizagem não resolve o problema. Além disso, vocês devem se lembrar de que temos outros alunos que agora estão no primário e que daqui a um ou dois anos serão seus alunos, ou seja, estarão frequentando as classes do ginásio. O que acontecerá com eles? O Tupã (aquele aluno com Síndrome de Down anteriormente citado) será aluno de vocês em breve. Vocês irão reprová-lo?”.
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Lembro-me do silêncio que reinou na sala. Havia um quê de susto em alguns professores. Esta não foi a primeira e nem a última vez em que me deparei com este tipo de situação. Retomamos a discussão avaliando a possibilidade de um plano de recuperação para Bartira e ficou decidido que ela teria mais uma oportunidade.
Escrevi um pouco antes sobre viver a experiência (no caso deste relato, os embates com
professores numa reunião de Conselho de Classe) e deixar que ela suscitasse questões. Percebo
agora que aqueles momentos permitiram que, gradativamente, eu construísse uma compreensão
sobre a questão da meritocracia. Aquele conflito aprofundava em mim os questionamentos acerca
da visão de educação baseada no mérito, pois ela tem como falso pressuposto a ideia de que todos
partem de um mesmo ponto e devem atingir o mesmo ponto de chegada, e este é o aspecto a meu
ver mais perverso: aqueles que não o atingem devem ser excluídos. Questionar a meritocracia passa
também por questionar a validade, a importância e pertinência de muito do que tradicionalmente se
ensina nas escolas, questionar os próprios conteúdos envolvidos neste “ponto de chegada”. O mérito
é muitas vezes a confirmação daquilo que Bourdieu e Passeron (1992) nos apontam como o capital
cultural e linguístico escolarmente rentável.
Questionar a meritocracia passa por uma compreensão mais profunda do conceito
de diferença. Nicholas Burbules (2012, p. 190) ao nos apresentar uma “gramática da
diferença” chama a atenção para os discursos que a reduzem a uma mera questão de tolerância
à diversidade. De acordo com esta perspectiva, o mérito seria resultante da diferença entre os
alunos e, portanto, ainda preso a um pensamento categorial.
Ouvi muitas vezes a argumentação sobre o mérito, ponderei muitas vezes sobre suas
implicações. Vi-me bem dentro desta problemática por muitas vezes na vida ao viver, por um
lado, a experiência de defender e lutar por uma escola alternativa (tateando e aprendendo a
praticar a Pedagogia Freinet) que buscava ser vista com respeito pela comunidade, querendo
construir uma reputação de seriedade no trabalho. Não queríamos a pecha e o desprezo de quem é
visto como uma escola fraca e famosa pelo “pagou, passou”! Nossas preocupações extrapolavam
as questões de reputação da escola, interessava-nos, isto sim, a questão da qualidade mesma do
ensino e da aprendizagem. Mas, por outro lado, eu tinha também forte a compreensão de que ao
levantarem estas objeções os professores manifestavam, sem perceber, seus medos e sua visão de
educação ainda pautada em notas e avaliações, em méritos estabelecidos de cima para baixo,
externos ao aluno. Muitas vezes o que eles entendiam da proposta pedagógica da escola estava
mais ligado ao trabalho com os conteúdos de uma maneira mais crítica. Só para exemplificar,
posso citar a crítica mais que difundida em relação aos conteúdos de História. Nos anos 1970 e
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1980 muito se falou e escreveu sobre a inutilidade de abordar seu ensino enfatizando datas e
nomes de grandes personagens. Interessantes revisões do conteúdo dessa disciplina introduziram
no seu currículo noções como Tempo, Permanência etc. Outro exemplo que se tornou típico é o
do ensino de Geografia, que sofreu severas e pertinentes críticas ao acúmulo de dados, nomes de
rios e seus afluentes, capitais, países, populações sem abranger noções mais essenciais como as de
Fronteira ou Perímetro ou ainda as noções de espaço construído pelo ser humano. A crítica ao
ensino “decoreba” se tornou patente há muito tempo. Aqueles professores adotavam esta nova
visão dos conteúdos programáticos, mas mesmo eles – que trabalhavam numa escola reconhecida
como alternativa pela comunidade – resistiam a mudanças mais profundas na forma de ensinar, na
organização da dinâmica de sala de aula. Mudavam os conteúdos, mas não mudavam a forma.
Além disso, colocava-se para mim um princípio de coerência: eu não queria
simplesmente impor uma decisão sobre a aprovação ou retenção do aluno, tal qual o papel de diretora
da escola me facultaria. Conversávamos muito, trazíamos leituras, fazíamos debates para ir criando
naqueles professores a compreensão mais ampla do significado de nossa proposta pedagógica.
O sentimento de ser acometido por um raio, embora não sendo tão intenso quanto
aquele que Calvino descreve, também não foi só desta vez que me atingiu. As dúvidas me
assolavam (e ainda assolam). O que há de tão difícil em orientar as pessoas para um trabalho
inclusivo? Por que, mesmo numa escola que pesquisa e pratica uma pedagogia tão inovadora como
é a Pedagogia Freinet, ressoavam ainda as velhas fórmulas da avaliação meritocrática e excludente?
Por que, mesmo quando se está caminhando numa direção oposta aos modelos tradicionais,
conformistas e reprodutores das velhas práticas escolares, parece tão difícil encetar e empreender
mudanças na escola? Estas perguntas me levam a formular a hipótese de que adotar a Pedagogia
Freinet na prática educativa não é um processo simples, não é uma mera tomada de decisão – de
agora em diante sou um educador freinetiano. Não se muda de uma hora para outra. Muito ao
contrário, o processo de mudança é complexo e não linear. Este processo esbarra na própria
instituição escolar. Tudo isso me remete a mais perguntas: o que é a escola? Que instituição é esta
que sabe tão bem se criticar (afirmo isto como alguém que foi formada nos bancos da Unicamp,
uma Faculdade de Educação que sempre primou pela formação crítica) e, tão pouco, se modificar?
Relato a seguir mais uma destas situações que ocorreu bem mais recentemente.
No primeiro semestre de 2013 assumi como PED (Programa de Estágio Docente) a disciplina de Educação Especial e Inclusão na Faculdade de Educação da Unicamp. Eram duas turmas (A e B) com dois professores titulares da disciplina e minha participação ativa em todas as aulas. Logo no primeiro dia, apresentamos
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o Plano de Curso, cada aluno fez sua apresentação individual. Logo após propus uma leitura de texto em grupos e a seguir estávamos fazendo o debate sobre a leitura realizada. Os alunos iam colocando suas impressões sobre o texto e sua compreensão e comentando sobre suas experiências pessoais com a inclusão. Uma das alunas, então, fez mais ou menos o seguinte relato:
Sou professora de História (do 6º ao 9º ano) numa escola estadual. Recentemente recebi em minha sala dois alunos cadeirantes. Ambos têm deficiência intelectual, dificuldades motoras bastante acentuadas e dificuldades de comunicação, eles quase não falam. A diretora me disse que agora existe a obrigatoriedade em matricular tais alunos nas salas regulares, que eles têm direito de frequentar uma escola comum e, portanto, a escola tinha que aceitá-los. A turma mostrou-se disposta a ajudá-los nas situações de sala. Fomos tocando o trabalho mas, sinceramente, eu não sabia o que fazer com eles. Outro dia tivemos a aplicação das provas do SARESP. Recebi o envelope com todas as provas e fui entregando aos alunos. Porém, quando cheguei perto do lugar onde estes alunos ficam, fiquei meio sem ação. Eles mal conseguem segurar um lápis... Eu não sabia se devia entregar as provas a eles. É este tipo de situação que me preocupa, como é que o professor pode fazer seu trabalho numa situação destas? O que eu devia fazer?
Novamente a sensação do raio, do estranhamento profundo tomava conta de mim.
Escolhi não ao acaso relatar esta situação que se passou em 2013 numa sala de aula da Unicamp e
colocá-la logo a seguir de uma situação de 1999 num Conselho de Classe de uma escola
alternativa de Campinas (a Curumim). Quatorze anos separam uma da outra, porém mesmo após
tantas discussões e tanta difusão do pensamento inclusivo parece que pouca coisa mudou.
A pergunta que formulei a mim mesma naquela aula é também a que me orienta
neste trabalho de doutorado: por que ela se faz esta questão? Por que ela se sente tão
impotente diante desta situação? Que concepção de educação está subjacente? O que ela está
enxergando nesta situação que não lhe permite relacionar-se com estes alunos levando em
consideração suas características específicas? Suas possibilidades e dificuldades? Que véu
encobre e impede um olhar para aquele outro concreto diante do qual ela está?
A situação descrita acima suscita questões que vão além da resposta individual que
aquela aluna/professora poderia dar diante da situação. Sabemos que a prova do SARESP (uma
avaliação meritocrática feita para criar exclusões) deposita nos ombros dos professores
responsabilidades pesadas, pois seus resultados podem influenciar na avaliação da escola e até
mesmo no seu salário. Além disso, a prova evidencia os descaminhos das políticas: diferentes
instâncias se contradizem e se atropelam. Que fazer com uma educação inclusiva num mundo
de exclusões? Talvez conhecer mais profundamente as regras para a aplicação de provas como
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o SARESP possa ser uma estratégia de resistência; isto ocorre, por exemplo, quando “alguns
alunos” são “dispensados” de ir à escola nos dias de sua aplicação.
Mas interessa aqui não o exemplo individualizado, mas sim todo o pano de fundo
no qual ele se insere. A narrativa desta experiência por mim vivida tem como objetivo a
explicitação da indagação que tem me acompanhado na vida profissional. Aquela professora,
com sua pergunta, denunciava uma problemática que está acima das meras práticas em sala de
aula e que contradiz toda a organização do processo escolar com vistas à inclusão. É a este
pano de fundo – a instituição escolar – que pretendo dar atenção no desenvolvimento deste
trabalho. São questões que têm permanecido vivas em mim.
Os estudos do mestrado me permitiram esboçar alguma compreensão sobre o
processo de institucionalização da escola. Considero hoje que a retomada destes estudos e o seu
aprofundamento serão de extrema importância para o escopo deste trabalho. Mais que retomar o
fio da meada, percebo que foi a própria experiência que me levou aos caminhos da História da
Educação como busca de respostas para perguntas que me coloco. As perguntas que o presente
me coloca – a escola de hoje com suas inadequações e dificuldades para enfrentar a questão da
inclusão –, o estranhamento que tudo isto me suscita, levaram-me a buscar as origens deste
estado de coisas. E a genealogia foucaultiana foi o guia e a inspiração na tarefa.
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Meus interlocutores
O aprofundamento do estudo histórico é de extrema importância, uma vez que
parte do trabalho está voltada para a questão da naturalização da forma escolar e da
institucionalização das relações que se estabelecem no espaço escolar. Assim, proponho partir
do estudo do processo histórico de construção da escola, analisando sua institucionalização
para destacar as estruturas que a caracterizam hoje.
Partindo do levantamento de percepções frequentemente encontradas nas respostas
de professores ou generalizadas socialmente sobre o que é a escola (como as que se desenharam
para mim como pistas a partir da fala dos professores nos exemplos citados no item anterior),
tentarei trazer à tona as concepções que estão na base do modelo de escola. Procurarei lançar
questões a este modelo para tentar desconstruir sua lógica e desnaturalizar a percepção que se
tem dele como de algo que é imutável. Tentarei proceder a uma genealogia da escola. A própria
ideia de proceder a uma “genealogia da escola” tem apoio e inspiração no pensamento de
Foucault, que é certamente um interlocutor de bastante influência nesta minha tarefa.
Para as análises e mesmo para os recortes que fiz no estudo da História da
Pedagogia, a leitura de autores como Julia Varela e Fernando Alvarez-Uria, Dominique Julia,
David Hamilton, Mario A. Manacorda e Philippe Ariès também foram essenciais.
Para proceder a esta desnaturalização através da genealogia da escola será útil
compreender que esta instituição é relativamente nova em termos de História da Humanidade e
compreender os paradigmas que estão em jogo e que formam a escola de hoje. Nas palavras do
historiador Franco Cambi (1999, p. 35) encontro respaldo para o projeto a que me proponho:
A História é o exercício da memória realizado para compreender o presente e
para nele ler as possibilidades do futuro, mesmo que seja de um futuro a
construir, a escolher, a tornar possível. Mas é justamente a atividade da
memória, a focalização do passado que anima o presente e o condiciona, como
também o reconhecimento das suas possibilidades sufocadas ou distantes ou
interrompidas e, portanto das expectativas que se projetam do passado-presente
para o futuro, que estabelece o horizonte de sentido de nossa ação, de nossas
escolhas. A memória não é absolutamente o exercício de uma fuga do presente
nem uma justificação genealógica daquilo que é, e tampouco o inventário mais
ou menos sistemático dos monumentos de um passado encerrado e definitivo
que se pretende reativar por intermédio da nostalgia: não, é a imersão na fluidez
do tempo e o traçado de seus múltiplos – e também interrompidos – itinerários, a
recomposição de um desenho que, retrospectivamente, atua sobre o hoje
projetando-o para o futuro, através da indicação de um sentido, de uma ordem
ou desordem, de uma execução possível ou não.
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Foi na lida diária como educadora, no contato constante com os atores da cena
educativa (alunos, professores e funcionários, pais e outros profissionais ligados a esta área)
que me senti confrontada e instigada a entender o passado, não como uma forma de justificar
as coisas e me conformar ao que está posto, mas sim como uma forma de, compreendendo-me
um ser “imerso na fluidez do tempo”, espantar-me com o absurdo do sofrimento inútil ao qual
tantas vezes são submetidas crianças e adolescentes dentro da instituição escolar e ainda como
possibilidade de olhar adiante, olhar com outros olhos e pensar diferente.
Uma outra autora que me foi apresentada pela professora Ana Maria Faccioli de
Camargo no meu exame de qualificação (e a quem agradeço a orientação) é Maria Rita Cesar.
Na sua dissertação de mestrado esta autora resume perfeitamente bem o modo de proceder ao
estudo que aqui se inicia para mim. Segundo Cesar (1998, p. 8),
A ‘genealogia’ diz respeito a uma história voltada para o presente, e deve ser
compreendida em termos de uma crítica do presente. A história genealógica
traz consigo a possibilidade de utilizar o conhecimento histórico, tendo em
vista o objetivo político de mudar o nosso tempo, constituindo-se, deste
modo, em uma crítica da cultura dominante.
Dito de outra forma, com inspiração no pensamento de Foucault (1984), encontro-
me diante de um problema presente: a escola e suas práticas excludentes e procedo a uma
crítica a este estado de coisas, pergunto sobre as possibilidades de transformação deste
presente e busco na genealogia a desconstrução e desnaturalização do passado como forma de
fazerem emergir novas possibilidades para o presente. Segundo Foucault (idem, p. 21):
A história, genealogicamente dirigida, não tem por fim reencontrar as raízes
de nossa identidade, mas ao contrário, se obstinar em dissipá−la; ela não
pretende demarcar o território único de onde nós viemos, essa primeira
pátria à qual os metafísicos prometem que nós retornaremos; ela pretende
fazer aparecer todas as descontinuidades que nos atravessam.
E, para evidenciar estas descontinuidades, discuto a matriz epistemológica
instaurada a partir do pensamento científico moderno cuja análise encontra em Boaventura
Souza Santos (2010) uma crítica e a defesa de um antipositivismo para as ciências humanas. Ao
discutir o caráter global da racionalidade científica, que a partir do século XIX estende-se do
campo das ciências naturais para o campo das ciências humanas, este autor aponta para o
problema do paradigma dominante e das crises que enfrenta no mundo moderno.
43
O entendimento da estrutura das revoluções científicas a leitura de Thomas Kuhn
também se mostrou frutífera para algumas análises a que nos propomos.
Autores como Jorge Larrosa, Tomas Tadeu da Silva e Fina Birules ajudam a
aprofundar a reflexão sobre a educação como campo no qual a Razão preside soberana e que
coloca no centro o sujeito e a consciência. Engajados no pensamento pós-estruturalista
(particularmente de Foucault) estes autores discutem e questionam, cada um a seu modo, o
conhecimento e o saber como fontes de libertação, esclarecimento e autonomia e nos dão
elementos para uma discussão acerca de novas perspectivas para a relação educativa.
Meu estranhamento, muitas vezes, encontra eco em outras vozes do pensamento
filosófico, sociológico ou pedagógico. Uma verdadeira alegria ainda me acomete ao ler alguns
autores; eles fazem sempre brotar em mim um sentimento de não estar sozinha. O educador
Célestin Freinet é certamente um destes interlocutores, talvez o mais assíduo e com o qual eu
encontro grande identificação. As reflexões sobre a experiência vivida se tornaram mais
amplas graças a estas e outras leituras.
Reflexões intrigantes e extremamente pertinentes em relação ao curso tomado
pela instituição escolar ao longo da história são apontadas no trabalho de Jacques Rancière (O
Mestre Ignorante, 2010), que nos traz as ideias de Joseph Jacotot (um educador do século
XIX). As discussões sobre a relação educativa e a questão da emancipação são abordadas
numa conversa na qual chamei ao debate o educador Célestin Freinet. Tentei mostrar
congruências importantes entre estes dois mestres relativas à forma de enxergar a relação
entre mestre e discípulo, entre sábios e ignorantes. Também a discussão proposta por
Wanderley Geraldi (2004) sobre a “aula como acontecimento” me permitiu outros diálogos
proveitosos sobre a construção de novas relações entre professor e aluno.
Para a discussão sobre as relações pedagógicas, já apontadas como questões
suleadoras (adoto a expressão proposta por Souza Santos) deste trabalho, são trazidos ao debate
outros autores. Em especial, para a discussão sobre as relações entre as gerações (adultos e
crianças, o velho e o novo) a contribuição de Hannah Arendt é de extrema importância.
Outras interlocuções compõem os diálogos deste trabalho. As conversas e leituras
feitas com a Professora Maria Teresa Mantoan e sua contribuição inequívoca ao projeto de
Inclusão no Brasil são essenciais a este trabalho. Sem dúvida o diálogo com Piaget também se
faz necessário para discutir e compreender aspectos do conhecimento (sua epistemologia) e da
criança (sua Psicologia). Além deles, os estudos de Deleuze em relação à Diferença e ao
44
Acontecimento e a discussão epistêmica que este autor propõe ao apresentar o conceito de
Rizoma serão abordados.
Mas, talvez, minha maior interlocutora seja mesmo minha própria experiência,
que me desperta sempre curiosidade e desejo de compreender as situações vividas no
momento mesmo em que elas se dão. O interesse e entusiasmo que sempre tive em dar sentido
e significado a cada uma dessas vivências, aos sustos, às certezas e incertezas que os
acontecimentos do cenário escolar proporcionam formam, assim, uma matéria viva com a
qual busquei sempre diálogo e interlocução.
45
Narrar por meio de imagens e as imagens como interlocutoras
“Decidi então tomar como guia da minha nova análise a
atração que sentia por certas fotos. Porque dessa atração,
pelo menos eu estava seguro. Como designá-la? Fascínio?
Não. Essa fotografia que eu distingo, e de que gosto, nada
tem a ver com o ponto brilhante que se agita diante dos
olhos e faz menear a cabeça; o que ela produz em mim é
mesmo o contrário da estupidez. É antes uma agitação
interior, uma festa, também um trabalho, a pressão do
indizível que quer ser dito”.
(Roland Barthes)
Na Pedagogia Freinet, quando temos nossos encontros, a principal marca que eles
possuem é a troca de experiências. Outra característica é o fato de que, quando não se pode visitar
a sala daquele professor mais experiente, ele mesmo se encarrega de fotografar seu trabalho para
mostrar aos novos colegas. Nas imagens que eles nos trazem podemos ver os alunos trabalhando,
o material de classe, as prateleiras com os utensílios que as crianças utilizam, os ateliês de
trabalho, a Roda de Conversa, o Livro da Vida... São imagens preciosas, para mim sempre
ofereceram pistas mais claras sobre as mudanças que eu poderia fazer no meu próprio trabalho.
Reforçaram a máxima de que uma imagem vale mais que mil palavras. Assim, utilizarei para esta
narrativa uma segunda via, trazendo imagens que poderão me ajudar a explicitar a tese e também
estarão abertas às diferentes leituras que os destinatários deste texto desejem fazer.
Na primeira parte deste trabalho percorro o passado da escola, revendo sua
genealogia, e imagens (gravuras, pinturas etc.) produzidas ao longo da História sobre a Educação
e o Ensino servirão como fotografias, como flashes para ajudar na compreensão. Colocar estas
imagens foi para mim um trabalho extremamente agradável, tornou mais vivo, mas visível e
compreensível o próprio passeio pela História. Creio que o leitor também se beneficiará com elas.
Na segunda parte serão utilizadas fotografias mais atuais, das situações de sala de
aula típicas da organização da classe segundo os princípios da Pedagogia Freinet. Fotografias há
muito guardadas em meus arquivos pessoais foram resgatadas para ajudar a contar as
experiências. Outras fotos mais recentes também se prestam a esta mesma função. Além de fotos,
em algumas situações optei por reproduzir trabalhos dos alunos, como por exemplo alguns álbuns.
Esta forma de proceder à produção desta tese, tem como “cúmplice” a minha própria
orientadora, a professora Mantoan, a quem agradeço pelo estímulo de ousar outros caminhos para
46
o trabalho acadêmico. Esta narrativa imagética também se reveste, para mim, do significado dado
por Benjamim, ou seja, o de narrar sugerindo outras continuações para a história.
Em síntese, a proposta deste trabalho será a de investigar a História, contar
histórias, refletir sobre o vivido buscando a interlocução de alguns intelectuais e pensadores,
visitar as imagens, pensar sobre elas e, de tudo isto, tirar lições.
47
2. UM PASSEIO PELA HISTÓRIA EM BUSCA DOS INDÍCIOS PARA O ATUAL
ESTADO DAS PRÁTICAS ESCOLARES: UMA GENEALOGIA DA ESCOLA
“A cidade se embebe como uma esponja dessa onda que
reflui das recordações e se dilata. Uma descrição de Zaíra
como é atualmente deveria conter todo o passado de Zaíra.
Mas a cidade não conta o seu passado, ela o contém como
as linhas da mão, escrito nos ângulos das ruas, nas grades
das janelas, nos corrimãos das escadas, nas antenas dos
para-raios, nos mastros das bandeiras, cada segmento
riscado por arranhões, serradelas, entalhes, esfoladuras”.
(Ítalo Calvino)
O processo social engendrou ao longo da História a institucionalização da escola e
tornou-a um lugar marcado por rotinas e procedimentos impessoais ou despersonalizados.
Construiu-se um modelo no qual seus atores – professores e alunos – são genéricos: a mesma
aula pode ser ministrada numa escola de um grande centro urbano ou numa pequena cidade
do interior, o mesmo livro didático pode ser utilizado aqui e acolá, podendo ser vendido para
todo o território nacional. Mas, hoje, a inclusão traz para a sala de aula um problema, traz um
desequilíbrio. Ao garantir o direito de estudo na escola comum para pessoas com deficiências,
as políticas inclusivas dissolvem o sonho pedagógico de uma sala de aula homogênea, fazem
reconhecer que tal homogeneidade nunca existiu, acirram o problema da Diferença.
Por que este problema existe? Por que a Pedagogia tem buscado esta
homogeneidade para a formação dos seres humanos? Como se formou este sonho de uma classe
homogênea? Como se construiu esta convicção de que os alunos são iguais? Nesta mirada para
a História faço um recorte, dirijo meu foco à escola e à sala de aula. A pergunta que faço para o
presente diz respeito a este espaço, a esta cena (hoje institucional e institucionalizada) e ao
modo como se dão as relações entre os atores que aí circulam. Como são estas relações? Que
desígnios as orientam? Elas podem ser transformadas? A História da Pedagogia servirá para
aprofundar a compreensão de como se constituiu este lugar para onde a sociedade encaminha
seus filhos. Uma instituição na qual se dão relações entre pessoas. Uma instituição que
transforma aqueles que nela vivem, transitam, trabalham. Uma instituição que transforma
crianças e adolescentes em alunos, que transforma adultos em professores e/ou funcionários.
48
Por que procedo a esta busca? Para desnaturalizar (para mim mesma antes de
qualquer outra coisa) a rigidez que entendo como instalada na instituição escolar. Para ver
com outros olhos, para me libertar dos discursos prescritivos e unitários que se fazem
presentes nas críticas às tentativas de se fazer e pensar uma outra escola. Mirar a história para
encontrar “o disparate”, o risível que se embute na cristalização de práticas e rotinas do
presente. Segundo Foucault (1984, p. 13):
O que se encontra no começo histórico das coisas não é a identidade ainda
preservada da origem − é a discórdia entre as coisas, é o disparate. A história
ensina também a rir das solenidades da origem. A alta origem é o "exagero
metafísico que reaparece na concepção de que no começo de todas as coisas
se encontra o que há de mais precioso e de mais essencial": gosta-se de
acreditar que as coisas em seu início se encontravam em estado de perfeição;
que elas saíram brilhantes das mãos do criador, ou na luz sem sombra da
primeira manhã. A origem está sempre antes da queda, antes do corpo, antes
do mundo e do tempo; ela está do lado dos deuses, e para narrá-la se canta
sempre uma teogonia. Mas o começo histórico é baixo. Não no sentido de
modesto ou de discreto como o passo da pomba, mas de derrisório, de
irônico, próprio a desfazer todas as enfatuações.
Compreender essas características mais centrais e, principalmente, entender o
quanto elas foram construídas de forma arbitrária e ligadas a certos contextos históricos
ajudará a pensar nos entraves que a esta instituição se interpõem para a realização de um
projeto no qual a escola possa ser um lugar de convívio entre humanos, um projeto no qual ela
possa ser um lugar onde relações autênticas (não previstas) aconteçam. Assumir o
estranhamento a partir do conhecimento da história, como ressaltam Veiga-Neto e Lopes
(2010, p. 150), nos mostra que conhecer a história nos permite reconhecer os “mecanismos
que nos sufocam, dominam e nos mantêm presos até a nós mesmos”.
Tenho observado nos últimos trinta anos um crescimento do interesse por
propostas alternativas. Tive, ao longo de minha carreira, inúmeras oportunidades de ministrar
cursos de formação para docentes, apresentando a Pedagogia Freinet, que é uma destas
propostas inovadoras. Muitas vezes, no contato com estes grupos de professores, percebia a
sede e o interesse deles e a vontade de trabalhar de uma maneira diferente com seus alunos e
de construírem com eles relações mais humanas, mais afetivas. Mas também podia notar a
dificuldade que sentiam em colocar em prática as propostas que ela traz. Sempre vi na nela
uma proposta de mudança do paradigma educacional e, no diálogo com tantos professores,
percebi que era preciso colocar questionamentos sobre a própria concepção de escola.
49
Em outras palavras, constatei muitas vezes que o professor, diante de seus alunos,
sente-se responsável por transmitir os conteúdos que constam no currículo e nos livros didáticos. Ele
sente que sem os tais conteúdos, sem as provas e verificações que o aluno deverá enfrentar, ele não
estará preparado para a vida adulta. O medo de transformar mais profundamente a rotina e a
dinâmica da sala de aula mostram-se também como prudência e como responsabilidade com o
ensino. Muitas e importantes críticas têm sido feitas a este modelo que Paulo Freire (1975) chamou
de educação bancária e, por mais contundentes e pertinentes que estas críticas tenham sido, estas
velhas convicções e suas práticas decorrentes têm permanecido inalteradas há muitos e muitos anos.
E há toda uma sociedade que acredita no poder desta educação e desta forma de ensinar. Muitas
vezes, nestes cursos, por trás do interesse por inovação, o que aqueles professores mostravam era
mais um desejo de aprender alguma nova técnica, sem, contudo, interessar-se por uma
transformação mais profunda na forma de organização do trabalho escolar.
Assim, acabei aprendendo muito com cada uma destas situações que me levavam
a fazer um questionamento sobre a visão em relação à escola, ao aluno e ao conhecimento.
Para descontruir sem destruir alguma coisa é preciso conhecer as suas partes. Uma
pequena lembrança pessoal me ajuda a me explicar melhor. Certa vez, em 1990, quando
estive pela primeira vez na Europa (fui para participar da RIDEF4 na Finlândia), visitei um
casal espanhol. Cândido era professor primário num pequeno vilarejo chamado Horcajada,
próximo à cidade de Salamanca. Ele nos levou a uma enorme praça em frente à Universidade
de Salamanca e nos chamou a atenção para as pedras, os blocos daquela enorme construção,
mostrando que naquela parte da construção, em cada bloco havia uma inscrição feita em giz.
Eram números e letras e ele nos perguntou se sabíamos o que era aquilo. Como não estávamos
entendendo nada ele explicou que aquela parte do prédio havia sido desconstruída e
reconstruída e, para que pudessem recolocar tudo no lugar, estas marcas haviam sido feitas.
Entendo que para que consigamos pensar uma nova escola, questionar os
poderosos paradigmas sobre os quais ela se fundamenta, deveríamos pegar emprestada esta
ideia e, usando-a como contra metáfora, procedermos a uma desconstrução do antigo edifício
escolar para, usando muitas das pedras da construção original, reconstruí-lo sob uma nova
planta, com uma arquitetura mais arejada, mais fluida e agradável para o convívio.
Nas conversas com professores aprendi a formular perguntas. A primeira delas é
sobre a própria palavra tradicional. Permito-me aqui a uma pequena digressão para refletir
4 Reunião Internacional de Educadores Freinet. Trata-se de um encontro bianual promovido pela
Federação Internacional dos Movimentos de Escola Moderna (Pedagogia Freinet).
50
sobre esta palavra: o que é tradicional? Quando pensamos e dizemos a palavra tradicional,
ela nos remete a coisas que parecem que sempre foram assim. O tradicional é para nós aquilo
que sempre foi e, portanto, tem a característica de imutável. Desde crianças fomos
acostumados a ouvir sobre a importância da Grécia e do Mundo Antigo e da riqueza do seu
legado cultural para toda a História da Humanidade. É lá que vemos surgir os grandes
filósofos que influenciaram todo o pensamento ocidental. Imagens de excelência, verdade,
sabedoria nos foram transmitidas, amalgamando em nossas consciências o valor dos
conhecimentos que a tradição deste passado luminoso nos legou. Foram séculos de História,
foram incontáveis lutas e disputas pelo predomínio de uma ou de outra concepção filosófica
dentre tantas que habitaram a consciência dos seres humanos. Foram estas lutas que forjaram
ao longo da História a construção das instituições que, hoje em dia, se nos apresentam como
algo de eterno. Do alto de mais de 25 séculos de civilização, aprendemos por meio das nossas
instituições pedagógicas e dos sistemas de dominação a elas relacionados a nos ver como
herdeiros de um legado filosófico, científico, social e político que deve ser transmitido às
novas gerações. Aprendemos também – especialmente nós, os pedagogos e professores – a
nos ver como responsáveis pela transmissão desse precioso legado. Aprendemos a acreditar
no papel central da educação como fator de desenvolvimento da sociedade, como lugar de
formação do indivíduo que deverá ser capaz de viver e participar produtiva e ativamente da
vida social, harmonizando-se e harmonizando-a. Desenvolveu-se assim o “mito da educação”.
E, no entanto, o “mito da educação” como o centro e grande bastião para o
desenvolvimento da civilização é, ele próprio, algo relativamente recente na história da
humanidade. Foi somente a partir do século XVII que a importância da pedagogia ganha
expressão e passa, nos dois séculos seguintes, a exercer uma maior atração na sociedade.
Segundo Cambi (1999, p. 390):
Na época contemporânea afirmou-se e cresceu o “mito da educação”. Em razão
justamente de sua centralidade política e social, a educação foi vista como o
fator-chave do desenvolvimento social, como o fulcro da evolução da sociedade
no seu conjunto, como o “lugar” em que se vem estabelecer o intercâmbio social
além de sua coesão. A educação colocou-se como substituta da política, como
via para operar a construção do homem moderno (indivíduo e cidadão ao
mesmo tempo, autônomo e socializado) e para realizar uma sociedade orgânica,
mas na liberdade, mediante livre colaboração de todos.
Embora desde muito antes – já com os gregos, por exemplo, com a noção de
Paideia e seu ideal de formação humanística e universal do homem – a educação tenha sido
51
alvo de reflexões importantes e, com o advento do cristianismo, a instituição Igreja tenha
tomado para si a tarefa de pensar e realizar a formação religiosa, é somente a partir da Idade
Contemporânea que veremos a educação tornar-se esta instituição, que chegou a ter nos dias de
hoje essa enorme penetração na sociedade, comparável talvez enquanto presença em toda a
sociedade à instituição religiosa. Em cada bairro, em cada pequeno vilarejo, no campo ou nas
grandes cidades sempre há escolas. Alguns dados podem dar uma medida mais evidente: temos
hoje no Brasil cerca de 50 milhões de alunos matriculados na educação básica. Especificamente
no ensino fundamental temos mais de 29 milhões de alunos em pouco mais de 144 mil escolas
espalhadas por todo o país. E são mais de dois milhões de professores atuando. A educação
tornou-se hoje um problema de enormes proporções (Anuário Brasileiro, 2014).
E quando, hoje em dia, pensamos educação, temos no nosso imaginário a visão de
escola: sala de aula, carteiras enfileiradas, quadro negro, giz, o pátio, alunos, professor... Em
outras palavras, educação e escola são muitas vezes tomados como sinônimos. E são imagens
como estas a seguir que se plasmaram no nosso inconsciente e se naturalizaram como a forma
última, eficaz e eficiente de produzir ensino/educação.
Quando pensamos na palavra tradicional, estas imagens parecem misturar-se com
a sabedoria do legado da civilização, amalgamando em nós um sentido de continuidade, um
sentimento de que tudo sempre foi assim.
Figura 1: Pátio de escola. Fonte: TV Sergipe5
5 Disponível em <http://g1.globo.com/se/sergipe/noticia/2012/11/faltam-professores-em-escola-de-se-com-pior-
desempenho-no-enem-2011.html>. Acesso em: 04/04/2015.
52
Figura 2: Sala de aula. Fonte: Notícias no Leste6
As imagens são tão plasmadas em nós como modelo único e insubstituível que, quando
se fala em modernizar a escola e atualizar o ensino, pensa-se na introdução das novas tecnologias sem
contudo alterar as formas de se atuar no espaço da sala de aula. Uma breve pesquisa por imagens na
Internet sob o título “escola do futuro” nos darão uma profusão de imagens como a seguir:
Figura 3: Sala de aula do “futuro”. Fonte: Revista Exame.com7
6 Disponível em <http://noticiasnoleste.com.br/wp-content/uploads/2013/03/sala-de-aula.jpg>. Acesso em 04/04/2015.
53
Discutiremos no final deste capítulo as características que se encontram presentes neste
modelo, nesta forma de organizar o trabalho, na disposição das carteiras, da lousa e o lugar que neste
espaço ocupam o professor e os alunos. Mas é preciso enfatizar antes este aspecto recente da valorização
da escola como panaceia para a questão social. Ainda em Cambi (1999, p.390) temos que a educação:
com o iluminismo, foi – em Rousseau, por exemplo – a via para reorganizar
a sociedade e, ao mesmo tempo para pôr o homem (com a sua “natureza”,
com os seus direitos) no centro dela, restaurando uma verdadeira e profunda
simbiose entre homem e sociedade.
Pensar o quanto é relativamente nova esta ideia – se pensamos no tempo maior da
História – da escola como redentora da sociedade, como força capaz de promover o estado de
bem-estar social talvez seja útil para que possamos nos livrar dela e relativizar o poder que
atribuímos à escola como aparato para a solução dos males humanos.
Além disso, é importante ressaltar que, ao atrelarmos os termos Educação e Escola como
se fossem uma mesma coisa, deixamos de perceber que educação e escolarização são coisas
diferentes. Destaco aqui as ideias de David Hamilton (2001), que propõe a questão sobre “onde se
originou a escolarização moderna”. No artigo Notas de Lugar Nenhum: sobre os primórdios da
escolarização moderna, questiona a visão historiográfica embasada numa visão de continuidade dos
processos históricos. Nesta abordagem, aponta ele, temos uma visão na qual as coisas parecem
evoluir, de um estado menos elaborado, menos organizado para outro mais avançado. “Tais
pressupostos, entretanto, são imediatamente limitadores. Eles dão atenção preferencial à continuidade
em detrimento da mudança. Destacam a evolução ao invés da gênese das instituições sociais” (p. 47).
É neste sentido que busco a seguir retomar as origens da construção da instituição escolar,
enfatizando que a “história da escolarização não é idêntica à história da educação” (idem, p. 51). Esta
busca será acompanhada por algumas imagens que escolhi (pinturas, ilustrações, fotografias). Elas serão
parte integrante da pesquisa compondo com a escrita, conforme já descrito no item que trata dos
caminhos investigativos. Defendo uma desconstrução, uma desnaturalização da imagem de escola com a
qual nos habituamos hoje em dia e considero que, para realizar esta tarefa, será útil olharmos outras
imagens que já foram tidas como naturais na compreensão e visão de educação da humanidade. Para o
estudo histórico buscarei principalmente os trabalhos artísticos que foram produzidos nas respectivas
épocas das quais estivermos falando. Tentamos, desta forma, trazer ao olhar do leitor um fragmento que
seja da visão, da imagem que se tinha de educação.
7 GUSMÃO, Gustavo. Uso da tecnologia na Educação precisa ser planejado. Disponível em
<http://exame.abril.com.br>. Acesso em 05/04/2015.
54
Buscando as origens da formação da atual visão de escola
O processo de construção da escola e de sua constituição como Instituição de
Ensino assenta-se naquilo que, já na minha dissertação de mestrado, chamei de pilares da
escolarização. Assim como um edifício precisa se apoiar em pilares, também as instituições
humanas se apoiam nas visões de homem e de mundo que se impõem em determinada época
ou em determinada sociedade.
O primeiro desses pilares foi o surgimento, na História da Humanidade, da noção
de Infância. Esse fenômeno social viria a se constituir em um primeiro pilar para o processo
de escolarização. Em outras palavras, para que a sociedade se mobilizasse no sentido de
construir um espaço destinado a abrigar e educar as crianças e adolescentes foi necessário
antes que a própria sociedade compreendesse a infância como uma etapa específica da
existência humana e, portanto, merecedora de um tratamento específico. A evolução desta
compreensão, a evolução deste conceito de infância, levou-nos ao ponto de termos hoje em
dia o Estatuto da Criança e do Adolescente. Autores da área de História da Educação – como
David Hamilton (2001), Philippe Ariès (1981), Julia Varela e Fernando Alvarez-Uria (1992) e
ainda Mario Alighiero Manacorda (1989) – foram essenciais para a compreensão do
surgimento histórico da noção de infância como um dos fatores que conduziu ao aparecimento
de instituições escolares como lugares para onde as crianças começaram a ser encaminhadas.
Sabemos que, antes disso, as sociedades já haviam produzido suas formas de
educar. A preocupação com a Educação esteve sempre presente. Pensemos, por exemplo, na
Grécia Antiga e em sua ágora onde os cidadãos se reuniam para o comércio, a política, mas
também para o teatro e o debate que cumpria função educativa. O projeto educativo grego
abrangia todo um ideal de formação humana. Em Sócrates temos a formação através do
diálogo entre o mestre que levanta dúvidas ao seu discípulo e o leva ao conhecimento de si
mesmo. Sua ênfase está na formação da alma. E em Platão temos, além disso, uma
preocupação política: a educação deveria preparar o cidadão para a vida na polis.
55
Figura 4: Gravura da ágora com a Acrópoles ao fundo
Fonte: Mi Moleskine Arquitetónico8
A educação ocorria, por exemplo, na Academia de Platão (que podia ser um jardim
ou um pátio), onde ele ensinava aos seus discípulos. Nas ilustrações a seguir vemos situações de
educação e de ensino, mas dificilmente as chamaríamos de escolas, embora fossem as formas
correntes de promover educação. A palavra escola vem do grego Skholé, que significa tempo
livre para estudar (Masschelein, 2013, p. 26). Ou seja, escola era um tempo, não um lugar.
As imagens a seguir nos evocam este “tempo para estudar”, mostrando os
componentes de prazer (como no banquete que se vê na primeira) e de arte (na segunda), que
compunham o fazer educativo. Um tempo de fruição, um tempo para pensar.
8 El ágora de Atenas vs. El foro romano. Disponível em <http://moleskinearquitectonico.blogspot.com.br>.
Acesso em 08/05/2014.
56
Figura 5: Afresco de Paestum, com cena de banquete, século V a.C.
Fonte: Acemprol9
Figura 6: Academia de Platão: mosaico de Pompéia. Museu Arqueológico Nacional (Nápoles).
Fonte: Suma Teológica10
9 Pintura da Grécia Antiga. Disponível em <http://www.acemprol.com>. Acesso em 05/05/2014.
57
Neste passeio pelas imagens de educação e da “escola antes da escola”, podemos
passar da Grécia Antiga ao Império Romano. Muito diferente da nossa visão atual sobre os
cuidados com o recém-nascido, a rejeição da prole era comum. Cabia ao pai, o chefe da família,
a decisão sobre a vida ou morte do bebê. Ali veremos como centrais na tarefa de educar
crianças as figuras da nutriz e do pedagogo. A educação das crianças realizava-se na casa da
família (eventualmente uma casa de campo) e uma parenta idosa supervisionava seus estudos e
deveres e até mesmo a diversão. Na figura abaixo temos, segundo Veyne (1990, p. 33):
Um menino declama um dever de Retórica diante de seu pai (não do mestre).
Tanto os seus dois dedos da mão direita quanto sua postura corporal (inclusive
a perna direita levemente inclinada para trás) compõem a eloquência; o papiro
na mão esquerda é o símbolo de sua cultura, de sua dignidade social. O estudo
na Antiguidade existia para adornar o espírito e instruir o estudante nas belas
letras. Em Roma não havia utilitarismo na Educação.
Figura 7: Detalhe de um sarcófago da primeira metade do século II (Paris, Louvre).
Fonte: Idade Média – www.ricardocota.com11
10 O Ser (II) – Platão: o ser e o outro diverso do ser. Disponível em <https://sumateologica.wordpress.com>.
Acesso em 05/05/2014. 11 COSTA, Ricardo. A Educação na Idade Média. A busca da Sabedoria como caminho para a Felicidade: al-
Farabi e Ramon Llull. Disponível em <http://www.ricardocosta.com>. Acesso em 05/05/2014.
58
Figura 8: Ramon Llull conversa a respeito de seus livros com seu discípulo Thomas Le Myésier (detalhe da
miniatura 11 do Breviculum).
Fonte: Idade Média – www.ricardocota.com12
E avançando nesta mirada pela História, buscando as imagens de escola que existiram,
temos no Mestre e seu discípulo a forma mais frequente, entre as famílias mais abastadas, de
preparar seus filhos para a vida em sociedade. Teremos também a instituição do espaço de ensino
para a formação religiosa quando pensamos nos primeiros mosteiros da Antiguidade Clássica. O
que queremos destacar aqui é justamente o caráter de institucionalização que entra em voga a partir
da construção desta noção de Infância. É a partir dela que se iniciaria este processo.
12 COSTA, Ricardo. A Educação na Idade Média. A busca da Sabedoria como caminho para a Felicidade: al-Farabi e
Ramon Llull. Disponível em <http://www.ricardocosta.com>. Acesso em 05/05/2014.
59
Figura 9: Um grupo de discípulos estuda uma lição com seu mestre, que lê (repare nos olhos de todos: tanto os
do professor quanto os dos estudantes fixam atentamente os livros abertos). Iluminura do século XIII
(Bibliothèque Sainte-Geneviève, Paris, MS 2200, folio 58).
Fonte: Idade Média – www.ricardocota.com13
13 COSTA, Ricardo. A Educação na Idade Média. A busca da Sabedoria como caminho para a Felicidade: al-Farabi e
Ramon Llull. Disponível em <http://www.ricardocosta.com>. Acesso em 05/05/2014.
60
A construção da noção de infância e o pensamento religioso
“Não existe cidade mais disposta a aproveitar a vida e a
evitar aflições do que Eusápia. E, a fim de que o salto da
vida para a morte seja menos brusco, os habitantes
construíram no subsolo uma cópia idêntica da cidade”.
(Ítalo Calvino)
Baseando-me nos autores já citados e também no vasto trabalho de Franc'o Cambi,
trago à reflexão, nesta tese, a ideia de que as sociedades, em todo o período que vai da
Antiguidade Clássica até a Idade Média, não atribuíam um valor diferenciado para a Infância. Ela
não era vista como uma fase específica da vida humana. Ao contrário, a alta mortalidade infantil
talvez explique a pouca atenção investida na criança. De acordo com Cambi (1999, p. 176):
As crianças na Idade Média têm um papel social mínimo, sendo muitas
vezes consideradas no mesmo nível que os animais (sobretudo pela altíssima
mortalidade infantil, que impedia um forte investimento afetivo desde o
nascimento), mas não na sua especificidade psicológica e física, a tal ponto
que são geralmente representadas como ‘pequenos homens’, tanto na
vestimenta quanto na participação na vida social.
Figura 10: Aula em Universidade Medieval. Laurentius de Voltolina.
Fonte: Idade Média – Glória da Idade Média14
14 Ciência, invenções, Universidades, hospitais, educação, descobertas, culinária, nomes: a lista interminável
do progresso mundial. Disponível em <http://gloriadaidademedia.blogspot.com.br>. Acesso em 05/05/2014.
61
Numa síntese das proposições destes autores, podemos dizer que até o
Renascimento a instituição escola ainda era muito fraca na sociedade, e não estava
institucionalizada. Seu processo de institucionalização começaria no período seguinte, a partir
do Renascimento, com o advento da Modernidade.
No famoso quadro de Pieter Bruegel vemos os jogos infantis, mas olhando
atentamente, chama a atenção o fato de que todos que brincam são adultos, sugerindo uma
não separação entre o mundo adulto e o infantil.
Figura 11: Jogos infantis. Pieter Bruegel (1525- 1569). Fonte: Wikiart15.
Assim que a criança ganhava alguma autonomia e podia se defender minimamente, ela
passava a participar de todos os espaços da vida em comum: festas, trabalho e até mesmo nas
guerras (havia soldados de dez, doze anos). Sua educação era feita nas oficinas (voltada para a
aprendizagem de uma técnica ou ofício) ou nas igrejas (para a devoção e formação moral).
Até aqui podemos dizer que a educação da nobreza se dava pela aprendizagem do
ofício das armas e as classes populares eram dirigidas a aprendizagem dos ofícios (de ferreiro,
15 Children's Games. Disponível em <http://www.wikiart.org>. Acesso em 08/07/2015.
62
açougueiro, padeiro etc.). Firmavam-se contratos entre a família e o mestre, que recebia um
aprendiz de cada vez. As imagens a seguir ilustram melhor:
Figura 12: O mestre açougueiro e o aprendiz. Fonte: Idade Média16.
Figura 13: O mestre padeiro e seu aprendiz. Fonte: Idade Média 17
16 Relações entre patrões e empregados nas corporações de ofício. Disponível em
<https://idademedia.wordpress.com/2011/09/11>. Acesso em 05/05/2014.
63
Figura 14: Arte do códice de esgrima medieval Gladiatória em que se mostra a esgrima de espada longa armada.
Fonte: Wikipédia18.
Paralelamente ao estudo das origens da formação da instituição escola, proponho
aqui outro olhar sobre o estudo da História, uma segunda digressão ao presente estudo:
investigo a forma como, ao longo do tempo, foram respondidas grandes questões filosóficas
(de onde viemos? Para onde vamos? Quem somos nós?). Entendo que a importância de
proceder a este olhar se dá pelo fato de que, dependendo da maneira como respondemos a
estas questões, desenvolveremos modos específicos de educar. E, em cada tempo, estas
respostas não serão nunca únicas ou monolíticas, mas encontraremos certamente a
predominância de uma ou outra forma. Encontraremos o discurso hegemônico que pauta os
procedimentos de inclusão ou de exclusão a que estarão sujeitos os indivíduos de uma dada
sociedade. No livro A ordem do discurso, Foucault nos propõe a ideia de “vontade de
verdade” e os mecanismos pelos quais esta vontade de verdade se mascara e se impregna no
corpo social como riqueza, como fecundidade, como verdade. Segundo este autor (1999, p.
20), “e ignoramos, em contrapartida, a vontade de verdade, como prodigiosa maquinaria
17 Relações entre patrões e empregados nas corporações de ofício. Disponível em
<https://idademedia.wordpress.com/2011/09/11>. Acesso em 05/05/2014. 18 Formação de linhagens na nobreza galega da Baixa Idade Média. Disponível em <http://www.wikipedia.org>.
Acesso em 05/05/2014.
64
destinada a excluir todos aqueles que, ponto por ponto, em nossa história, procuraram
contornar essa vontade de verdade e recolocá-la em questão...”
O longo período histórico que vai desde o fim do século V até finais do século
XV e que chamamos de Idade Medieval se caracteriza pela forte presença da igreja, pela sua
consolidação, expansão e difusão pela Europa. Através da Igreja o cristianismo é difundido
como principal forma de concepção de mundo. Trata-se de um período impregnado dos
valores espirituais (como o de superação da vida mundana, de renúncia aos prazeres
terrenos); um período impregnado de mitos e pautado por rituais que orientam a vida e
convivência social. O amálgama que sedimentava as relações era dado pelo pensamento
religioso ou, dizendo de outra maneira, as respostas às grandes questões da existência eram
dadas pela Fé. Segundo Cambi (p. 145), “a Igreja foi o ‘palco fixo’ por trás do qual se
moveu toda a história da Idade Média e um dos motores do seu inquieto desenvolvimento
(ao lado do Império e das cidades), talvez o motor por excelência”.
A educação teve nesse contexto enorme importância e a Igreja se dedicou a ela
profundamente, discutindo e implementando modelos educativos e práticas de formação e
organizando as suas instituições de ensino. Mas o projeto educativo da Igreja não se ateve
unicamente à instituição escolar: da arquitetura à música, da literatura à pintura e escultura,
a Igreja soube lançar mão de todos os recursos que iam, assim, compondo o imaginário do
homem medieval. Entre as ameaças dos suplícios do Inferno e o convite à expiação da culpa
dos pecados, a Igreja Católica assume o comando da educação através de um vasto
programa que incluía a construção de enormes catedrais, ricamente ornadas de pinturas e
esculturas com forte teor doutrinário, e nas quais a própria arquitetura cumpria a função de
ensinar ao homem medieval o respeito e a obediência aos seus desígnios. Com seus vitrais,
suas altas torres e abóbodas, a inferioridade do homem em relação a Deus fazia-se vivência
concreta. Os templos não eram apenas destinados à prática religiosa: neles havia bibliotecas
e escolas de música. Também eram centros de cultura e educação.
65
Figura 15: Interior da Catedral de Notre Dame, Paris. Sua construção foi iniciada em 1163 e concluída em 1345.
Fonte: TurboSquid19
A pintura recorre a um repertório medieval de referências teológicas cristãs,
propondo uma imagem do Inferno como inventário de torturas incessantes, lugares de suplício
e condenação eterna dos que incorrem nos chamados pecados capitais, sem distinção do seu
estado ou condição social.
19 Notre Dame Cathedral Paris. Disponível em <http://www.turbosquid.com>. Acesso em 05/05/2014.
66
Figura 16: Afresco de Giotto, A Lamentação, c. 1305, Cappella Degli Scrovegni, Pádua. Fonte: Wikipédia20
Os afrescos nas igrejas ou as iluminuras nos livros eram formas de educar,
especialmente os monges nos mosteiros, o que me permite enfatizar aqui a ideia de que
educar não estava ligado à existência de um espaço escolar.
Figura 17: O inferno. Pintura em óleo sobre madeira. Autor anônimo português do século XVI.
Fonte: Uol Educação21
20 Estilo Gótico. Disponível em <http://www.wikipedia.org>. Acesso em 06/05/2014
67
Figura 18: Iluminura que ilustra o calvário de Cristo.
Fonte: abrancoalmeida.com22
Entre castigos e devoções e almejando a formação do homem pio, temente a Deus e
obediente ao clero, o educar se revestia do caráter de sacerdócio (que ainda hoje influencia muitos
educadores). Até aqui, podemos dizer que a fé era tida como a resposta para as questões centrais
do homem: de onde viemos? De Deus. Quem somos nós? Somos filhos de Deus. Para onde
vamos? Se tivermos nosso comportamento adequado aos desígnios da Igreja, voltaremos a Deus.
21 Auto da Barca do Inferno: Análise da obra de Gil Vicente. Disponível em <http://educacao.uol.com.br>.
Acesso em 05/05/2014. 22 Iluminuras do advento. Disponível em <http://abrancoalmeida.com>. Acesso em 05/05/2014.
68
Figura 19: Desfiles da monarquia terminavam nos átrios de igrejas. Procissão das relíquias de Luis IX, ilustração
de manuscrito, cardeal-mestre Bourbon, séc. XIII. Biblioteca Nacional da França, Paris.
Fonte: História Viva23
Figura 20: O jardim das delícias. Hieronymus Bosch.
Fonte: Wikipédia24
23 Os animados cemitérios medievais. Disponível em <http://www2.uol.com.br/>. Acesso em 05/05/2014.
69
A apropriação da infância: os jesuítas e a Ratio Studiorum
O fim dos anos quatrocentos verá surgirem profundas mudanças de toda ordem
(sociais, econômicas, geográficas, políticas, religiosas, ideológicas, culturais e pedagógicas).
Invenções técnicas como a bússola, a imprensa de Gutenberg e o domínio do emprego da
pólvora trariam novas e importantes mudanças no cenário europeu. As crises da Era Medieval
trarão o questionamento da visão religiosa e a defesa da razão como fundamento para o
desenvolvimento de toda potencialidade humana. Fé e razão disputam os espaços de
organização da sociedade e se articulam para realizar seus projetos de hegemonia. Como nos
mostra Foucault em Vigiar e Punir, a produção dos mecanismos de controle dos corpos e
mentes serão produções tanto de origem religiosa como dos organismos sociais (exército,
prisões, hospitais etc.). Mas o surgimento do pensamento científico moderno traria
consequências profundas para as concepções de homem e de mundo até então predominantes.
A força da Igreja Católica também sofre alguns reveses como, por exemplo, o
movimento da Reforma Protestante. Embora estejamos acostumados a pensar na Reforma
como um movimento religioso, um cisma entre tendências e visões espirituais dentro da
própria Igreja, é importante lembrar que outras forças foram determinantes, como a burguesia
financeira (que se insurgia contra o fiscalismo papal), os movimentos de camponeses na
Alemanha contra os grandes proprietários de terras e a ampliação da força de protesto dos
novos intelectuais mais propensos a uma visão laica do homem e da sociedade. Isso sem falar
do desejo de alguns reis de se libertarem da ingerência do papa nos seus domínios.
O pensamento e as ações de Lutero tiveram grande impacto na forma de pensar a
educação, ao defender uma educação laica e gratuita, afirmando o conceito de indivíduo autônomo e
responsável e não mais condicionado à relação com a verdade divina tal como mediada pela igreja.
É neste contexto que ganha força a noção de infância e, segundo Varela (1994, p. 87),
vai se produzir uma separação cada vez mais marcada entre o mundo dos
adultos e o das crianças, e vai surgir a necessidade de delinear, de pôr em
ação, novas formas específicas de educação. Foi nesse quadro que teve lugar
o surgimento de novas instituições educacionais.
Ainda segundo esta autora (idem, p. 88):
24 O Jardim das Delícias Terrenas. Disponível em <http://wikipedia.org>. Acesso em 05/04/2015.
70
Para levar adiante seu projeto de formação de bons cristãos, os mestres
jesuítas não apenas reforçaram o estatuto conferido à “infância” com a opção
de educá-la em espaços fechados, nos colégios, mas sentiram também a
necessidade de controlar os saberes que iam transmitir e de organizar estes
saberes de tal forma que se adequassem às supostas capacidades infantis.
Figura 21: Os monges recebiam nos mosteiros indistintamente todas as crianças a eles entregues, vestindo-as,
alimentando-as e educando-as, num sistema integral de formação educacional.
Fonte: Glória da Idade Média25
Pela primeira vez, sob o comando da Igreja, surge um projeto de sistematização e
de codificação precisa e minuciosa do fazer pedagógico. Estava-se diante do que Varela
(idem) chamou de “pedagogização do conhecimento”.
Embora tardia, a sistematização de todo este ideário se deu com a publicação da
Ratio Studiorum, em 1599, obra que resume o processo de elaboração das normas que devem
reger a organização da vida dos colégios. Elaborada pela Companhia de Jesus, a Ratio tinha a
25 A Igreja extirpou a escravidão na Idade Média. Disponível em <http://gloriadaidademedia.blogspot.com.br>.
Acesso em 05/05/2014.
71
finalidade de prescrever de forma completa e minuciosa as atividades e práticas que deveriam
formar o “rebanho” dócil e obediente.
Figuras 22 e 23: Páginas de abertura da Ratio Studiorum, publicada em 1599.
Fonte: Spiritual Journey26
Figuras 24 e 25: Páginas iniciais da Ratio Studiorum.
Fonte: Loyola University Chicago Digital Special Collections27
26 Spiritual Journeys. Disponível em <http://libraries.slu.edu/digital/spiritual-journeys/ratio.html>. Acesso em 12/12/2015.
72
O reforço à noção de infância levava ao seu isolamento em espaços fechados.
Empenhados no projeto de formar bons cristãos, os jesuítas se dedicaram a selecionar, organizar
e controlar os saberes que deveriam ser transmitidos às crianças e adolescentes, censurando
aqueles que eram considerados maus em relação à ortodoxia católica. A transmissão dos saberes
adquiria assim uma natureza moralizante. Segundo Foucault (1987, p. 137),
a ideia de um “programa” escolar que acompanharia a criança até o termo de
sua educação e que implicaria de ano em ano, de mês em mês, em exercícios
de complexidade crescente, apareceu primeiro, parece, num grupo religioso,
os Irmãos da Vida Comum.
Os Irmãos da Vida Comum pertenciam à ordem dos jesuítas, cuja obra
pedagógica estamos analisando. Segundo Varela (idem, p. 89) três efeitos importantes
resultaram do esforço jesuíta de “pedagogização do conhecimento”, e podemos vê-los ainda
hoje como características do modo de ensinar.
O primeiro efeito é que “a aquisição desses saberes moralizados não exigia uma
cooperação” (ibidem). Esta é uma marca importante que se inscreve no ideário da escola e que
nos interessa destacar. Como vimos, a aprendizagem própria do modelo do mestre e seu
aprendiz implicava numa atividade cooperativa entre eles. Para fazer o pão, para fazer um par
de sapatos ou qualquer obra, mestre e aprendiz trabalhavam juntos, em cooperação. Porém, com
os saberes codificados, “os mestres passaram a ser os únicos detentores” e os estudantes passam
a ser aqueles que deveriam adquirir (quase sempre por meio da memorização) os ensinamentos.
O segundo efeito (ainda de acordo com Varela) liga-se ao fato de que aquilo que
passa a ser importante ensinar são os saberes selecionados como verdadeiros, os saberes da
doutrina e tradição católicas. A preocupação com a formação centra-se nas questões espirituais e
desvincula-se dos problemas sociais ou da vida material e cotidiana, entendida como carregada de
erro e ignorância. Cria-se a “cultura culta, uma cultura que, com o passar do tempo, converteu-se
na cultura dominante e reclamou para si o monopólio da verdade e neutralidade” (idem).
E um terceiro efeito resultou desse processo: a constituição de um aparato para a
disciplinarização dos estudantes. A virtude e a verdade, segundo os cânones da doutrina
seriam atingidas por meio da renúncia de si mesmo. Estes conteúdos moralizantes foram
instaurando todo um aparato disciplinar. Segundo Varela (idem, p. 89) “a disciplina e a
27 Ratio Atque Institution Studiorum Societatis Iesu. Disponível em <http://www.lib.luc.edu>. Acesso em 04/04/2014.
73
manutenção da ordem nas salas de aula passaram a ocupar um papel central no interior do
sistema de ensino até chegar praticamente a eclipsar a própria transmissão de conhecimentos”.
Além da abolição do trabalho cooperativo entre mestre e discípulo, nos colégios
jesuítas encontrava-se uma organização que colocava os alunos em competição. Segundo Foucault
(1987), inspirados nos modelos militares, os alunos eram divididos em grupos de dez (decúria) e a
cada decúria correspondia uma outra adversária. Assim, formavam dois exércitos na classe que se
confrontavam no trabalho e na aprendizagem. Seu desempenho garantia a sua classificação, bem
como a de sua decúria. O aparato disciplinar foi se desenvolvendo com base na correção dos corpos
e o recurso à violência fazia-se costumeiro. Reunidas e fechadas num espaço destinado à educação,
crianças e adolescentes não deveriam reagir a este enclausuramento, sob ameaça de castigos e
punições. As práticas de interrogatório utilizadas nos processos da Inquisição serviriam de
inspiração – ainda que abrandadas – para a domesticação das novas gerações. A instituição escolar
nascia, assim, marcada pela violência, pelos castigos e punições como forma de educar corpos,
mentes e espíritos. A organização do tempo e do espaço era destinada a garantir o controle dos
alunos. Ainda com Foucault (idem, p. 128): “durante séculos, as ordens religiosas foram mestras de
disciplinas: eram especialistas do tempo, grandes técnicos do ritmo e das atividades regulares”.
Interessa para este trabalho destacar o fato de que na própria gênese da institucionalização
da escola, a partir da construção da noção de infância, inscrevem-se na escola alguns aspectos que,
acredito, ainda não conseguimos superar: a perda de relações cooperativas entre mestre e aprendiz, o
esvaziamento de significação baseada na vida material e cotidiana do aprendiz e a ênfase na disciplina
como algo externo ao aluno, como uma docilização dos corpos. A tarefa educativa, nestes inícios,
constituiu-se como confronto entre o projeto do mestre e os desejos do aprendiz. À imagem de
infância pura, anjos do paraíso, deveriam moldar-se as crianças reais. Os desvios de um certo ideal
deveriam ser combatidos, enquadrados a um padrão entendido como divino.
Embora estejamos seguindo uma linha relativamente cronológica neste estudo,
ressalvo que a constituição da escola não se deu de maneira linear. Diferentes projetos coexistiram
e, ao longo dos anos, disputaram seus espaços e hegemonias. Estas disputas se acirraram e
ganharam proporções alarmantes para aqueles que detinham o poder do discurso de verdade e o
uso da força e da coerção (lembremo-nos do poder da Inquisição) ao aumentarem seus tentáculos
revelariam o enfraquecimento e a crise da fé como amálgama das relações sociais.
O período a seguir, irá desempenhar um papel de extrema importância na constituição
da Escola, no qual o surgimento do Estado Moderno terá um papel essencial.
74
O Renascimento e o surgimento do pensamento científico moderno
“Cada habitante de Eudóxia compara a ordem imóvel do
tapete a uma imagem sua da cidade, uma angústia sua, e
todos podem encontrar, escondidas entre os arabescos, uma
resposta, a história de suas vidas, as vicissitudes do destino”.
(Ítalo Calvino)
A partir do Renascimento, inicia-se na sociedade uma ruptura com as formas de
explicação do mundo, do homem e da natureza baseadas na fé e é proposto o modelo racional como
forma de explicar o mundo e a sociedade. Apoiada no uso da razão, a ciência moderna almeja
explicá-los e planificá-los. O desejo de resposta às questões que sempre inquietaram o pensamento
humano passará a buscar na razão sua força de satisfação. Em outras palavras podemos dizer que ela
será o principal componente na elaboração das respostas àquelas grandes perguntas. René Descartes
será um dos expoentes de sua defesa como princípio para acessar o conhecimento; inaugura-se com
ele o racionalismo. As ciências ganham um desenvolvimento antes nunca visto e a busca dos
filósofos e cientistas é orientada para a questão de um método para se chegar ao saber.
A definição do método científico iniciada por Galileu e mais tarde completada por
Newton assentaria suas bases na observação, hipótese, matematização e verificação experimental. A
teoria heliocêntrica (elaborada por Copérnico) terá sua possibilidade de comprovação com o
telescópio aperfeiçoado por Galileu, fundando as bases de uma nova visão de homem e de mundo.
As grandes navegações realizadas nos séculos XV e XVI também contribuíram
para essa nova visão. Contra a velha imaginação de uma época que temia os monstros que
habitavam os mares, contra a visão da terra como algo plano e que no seu fim seria um grande
abismo no qual as embarcações cairiam, tínhamos agora a visão da Terra redonda e a
descoberta de novas terras a serem exploradas. Tudo isso forjava transformações e exigia um
novo tipo de homem e por isso um novo tipo de educação.
É neste período que veremos surgir com mais força o “mito da educação”. Como
vimos, o pensamento religioso, a fé como resposta às questões do homem, foi a marca central
da sociedade medieval, que agora se encerrava. O surgimento dos reis absolutistas e das
nações (o que caracteriza o começo da modernidade) levaria à laicização da sociedade. O
pensamento religioso perde sua força de estruturação da sociedade. É o pensamento científico
– o conhecimento – que surge como projeto para a sociedade como um todo. E a escola
75
emerge como o lugar em que ele deverá ser difundido. Se antes nos remetíamos a Deus e à fé,
agora nos remetemos ao conhecimento e à razão. Não mais as explicações pelo milagre, o
homem passava a se ver como capaz de produzir e explicar os fenômenos. Neste contexto,
vemos que a escolarização assume papel central.
O avanço do pensamento científico como alguma coisa objetiva e observável
levaria, nos séculos seguintes, a se enxergar como alvo expurgar do conhecimento qualquer
componente que estivesse fora do controle da razão e da lógica. Nesta época, outros projetos
(como o dos alquimistas) passariam a ser desacreditados. Saberes intuitivos ou ligados a
estados mentais diferentes (como os das bruxas) seriam projetos vencidos nesta nova etapa.
Figura 26: O sistema heliocêntrico de Copérnico. Fonte: Astro Mía28
O pensamento científico moderno lançava as bases para uma nova visão de homem
e de mundo: postulava por um método de construção do saber que deveria ser empírico e
racional, imprimindo profunda influência no âmbito da pedagogia e da educação. Claro está que
28 Sistema heliocéntrico. De la Prehistoria a la Edad Media. Disponível em <http://www.astromia.com>. Acesso
em 20/05/2014.
76
este processo não se deu de forma linear. Em muitos momentos o pensamento religioso e o
científico se uniram em favor de projetos de hegemonia. A igreja continuaria a se empenhar na
produção do conhecimento, sendo-lhe atribuída a prerrogativa de determinar os fundamentos do
conhecimento verdadeiro e de salvaguardar o controle sobre ele. Às ideias novas que surgiam,
como a do universo infinito e da pluralidade dos mundos defendidas por Giordano Bruno, a
igreja respondia com processos, excomunhões e condenações à fogueira da Inquisição.
Figura 27: O Julgamento de Giordano Bruno pela Inquisição Romana.
Relevo em bronze por Ettore Ferrari, Campo de Fiori, Roma.
Fonte: Wikipédia29
Entre continuidades e descontinuidades, acordos e desacordos, uma nova forma de
conceber o homem e o universo, baseando-se nas observações e interpretações dos fenômenos,
a revolução do pensamento iria se aprofundando. O exemplo mais conhecido é o do físico,
astrônomo e matemático Galileu Galilei cujas obras (ora aceitas e publicadas, ora proscritas e
inscritas no Índice dos livros proibidos) alcançariam ampla repercussão em toda a Europa.
O modo de pensamento científico irá inspirar e refletir-se na nascente instituição
escola, propondo a disciplinarização do conhecimento e sua organização a partir do simples
para o mais complexo. Embora saibamos que isto não se deu de forma linear, podemos dizer
29 Giordano Bruno. Disponível em <http://www.wikipedia.org>. Acesso em 20/05/2014.
77
que o pensamento científico moderno começaria então a se constituir em mais um pilar para o
processo de escolarização.
Avançar no estudo sobre este período da história tem, para esta tese, importância
fundamental. Compreender, ainda que em linhas gerais, o espírito e a mentalidade dos
movimentos sociais que moveram e influenciaram a definição da forma educativa e a estrutura da
instituição escolar tem como propósito, neste trabalho, buscar possíveis respostas à pergunta sobre
por que é tão difícil mudar a escola e, além disso, pensar “a reviravolta que a inclusão impõe”.
Ao elencar as principais características do pensamento revolucionário que surge no
século XVII poderemos ouvir seus ecos ressoando até os dias de hoje no pensamento pedagógico.
Temos no pensamento iluminista uma revolução racionalista, que busca a tudo
esclarecer por meio do saber. É pela razão que se chega à verdade do conhecimento, ou
melhor, ao conhecimento verdadeiro. Alia-se à ideia de razão a crença na perfeição da
natureza. Passamos a ter uma visão calcada na materialização dos fenômenos que, pela
observação, podem ser apreendidos. O empirismo passa a ser a principal forma de produção
do conhecimento. A elaboração de experimentos, a observação sistemática e a corroboração
(ou não) dos resultados são os fundamentos para a elaboração de uma teoria científica.
Contra o racionalismo puro de Descartes surgiria um movimento (que tinha entre
seus expoentes John Locke e David Hume) cujas ideias se orientam para o que poderíamos
chamar de uma racionalidade empírica: a experiência sensorial atrelada a uma indagação
racional seria o caminho para a descoberta da verdade (Cambi, 1999).
Observa-se aqui uma laicização do pensamento a partir da separação entre fé e
realidade natural. A natureza, através do processo científico, pode agora ser submetida ao
controle do homem e à sua manipulação. Este movimento intelectual de cientistas e filósofos
traz no seu bojo o desejo de superação do senso comum, rejeita a visão antropomórfica da
natureza, até então reinante. Nos séculos seguintes ao Renascimento ocorre paulatinamente
uma liberação do homem em relação ao sagrado e ao mundo sacralizado, tendo na Ciência sua
possibilidade de superação das superstições e do senso comum.
Esta é sem dúvida uma marca presente hoje em dia na nossa mentalidade pedagógica.
Nós, professores, ciosos e responsáveis do nosso papel na sociedade, entendemos que a ciência tem a
função de tirar os alunos da obscuridade do senso comum e elevá-los a uma visão mais racional e
abstrata (não antropomórfica) do mundo e dos fenômenos. Esta é a impressão que temos de nós
mesmos como divulgadores da ciência e da cultura. Mas também aqui caberá uma reflexão mais
profunda sobre o educar e sobre o ensinar. Acostumamo-nos a pensar que ao ensinar estamos lidando
78
com a Ciência, porém como veremos a seguir, o que fazemos é lidar com Conteúdos. As descobertas
científicas, que no âmbito da pesquisa são formuladas como hipóteses, para efeito de ensino são
selecionadas, classificadas e embaladas para o consumo com o selo de verdades científicas.
Figura 28: Observação do satélite de Júpiter por Galileu.
Fonte: Canal Académie30
30 De la lunette de Galilée à l’ELT. Disponível em <http://www.canalacademie.com/>. Acesso em 20/05/2014.
79
Uma reapropriação da infância: Comenius e a Didática Magna
A preocupação com a pedagogia é evidenciada, por exemplo, na intensa atividade
desenvolvida por Comenius (1592 – 1670). Em disputa com a educação dos jesuítas (que
ainda tinham sua presença forte e disseminada na sociedade), Comenius irá se dedicar a
prescrever uma organização minuciosa e precisa da vida escolar, a divisão do tempo das
lições, os equipamentos adequados, a estruturação dos exercícios e a ênfase na verificação
através de exames revelam um processo de revisão da antiga escolástica e de racionalização
dos métodos de ensino. Comenius foi bispo ligado à Reforma Protestante, distinguindo-se
como homem de fé e de ciência. Seu método visa a formação do homem sábio, instruído no
conhecimento do mundo e também piedoso cristão.
Em consonância com as ideias científicas que estavam se propagando neste
momento, vemos em Comenius uma enorme preocupação em organizar a vida escolar (ainda
que existissem muito poucas escolas), em submetê-la a sistemas de controle e planificação.
São instituídos rituais e introduzidos instrumentos como a chamada e o registro diário, como
forma de organizar a atividade de ensino e com a pretensão de mensurar a respectiva
aprendizagem. Consoante ao espírito de iluminação que a filosofia inspirava, encontramos no
seu famoso Orbis Pictus, publicado em 1658, o que hoje chamaríamos de livro didático. Seu
esforço em produzir um material didático ilustrado, utilizando para isto a xilogravura, visava
ensinar aos alunos os principais temas por ele considerados. Segundo Miranda (2011),
a obra foi estruturada para mostrar a figuração das principais coisas do
mundo - com imagens em xilogravura -; a nomenclatura de cada coisa, com
os nomes dos assuntos de cada unidade em latim e na língua materna; e suas
particularidades, com um texto que acompanha cada unidade.
A obra de Comenius, profundamente engajada no pensamento científico e em
consonância com a Reforma Protestante, propõe a universalização da educação como forma
de disciplinar as diversas classes e grupos sociais. Ainda em Miranda (idem),
sem dúvida, as grandes metáforas que inspiraram Comenius são a concepção
mecânica de natureza e a organização da oficina dos artesãos. Porém, mais
que isso, Comenius talvez tenha sido o primeiro educador a colocar em livro
uma iconologia didática em prol da educação escolar.
80
A concepção de aluno que permeia seu esforço é pautada pela ideia de alguém
que, como um vaso, um receptáculo, recebe as informações criteriosamente organizadas para
ele. Além disso, temos na contribuição de Comenius um golpe fatal na constituição da própria
profissão de professor. No artigo A aula como acontecimento o professor João Wanderley
Geraldi nos atenta para o fato de que até este momento a figura do mestre estava revestida de
uma reverência ao saber que ele estava produzindo, ou seja, “ensinavam aqueles que estavam
produzindo conhecimento” (Geraldi, 2004, p. 10).
Para compreendermos o processo que se instaurava a partir dos esforços de
Comenius, trago à reflexão uma metáfora proposta por ele na sua Didática Magna e também
citada por Geraldi:
serão hábeis para ensinar mesmo aqueles a quem a natureza não dotou de muita
habilidade para ensinar, pois a missão de cada um não é tanto tirar da própria
mente o que deve ensinar, como sobretudo comunicar e infundir na juventude
uma erudição já preparada e com instrumentos também já preparados, colocados
nas suas mãos. Com efeito, assim como qualquer organista executa qualquer
sinfonia, olhando para a partitura, a qual talvez ele não fosse capaz de compor,
nem de executar de cor só com a voz ou com o órgão, assim também porque é
que não há de o professor ensinar na escola todas as coisas, se tudo aquilo que
deverá ensinar e, bem assim, os modos como o há de ensinar, o tem escrito
como que em partituras? (Comenius, XXXII – 4).
E assim podemos ver que na obra de Comenius temos, de um lado, o culto à ciência,
o desejo de ensinar todas as descobertas que a ciência ensejava e, de outro, o que poderíamos
chamar de “escolastização” da ciência. Movido pelo ímpeto de “ensinar tudo a todos” Comenius
defende a seleção e organização dos conteúdos que deveriam ser transmitidos aos alunos e com
isto ele retira do ensinar o aspecto de produzir a ciência – ao professor caberá o papel de
reproduzir os conhecimentos produzidos por outros (pelos sábios e cientistas). Esta característica
do ensino permanece até os dias de hoje, ou seja, embora na ciência o pesquisador esteja lidando
com hipóteses que o levam a perceber a provisoriedade do seu conhecimento, quando
transportamos as conquistas científicas para o âmbito escolar todo o processo de produção do
conhecimento é esvaziado e passamos a lidar com conteúdos tidos como certos e definitivos.
81
Figura 29: O livro Orbis Pictus, cuja tradução é Mundo Ilustrado, foi escrito por Comenius para auxiliá-lo no
ensino de seus alunos. Nesta página vê-se a introdução, na qual o mestre convida o aluno a ser sábio. O mestre
lhe mostrará todas as coisas e as nomeará. Fonte: Centro de Investigación MANES - Manuales Escolares31
Figura 30: Mais páginas do Orbis Pictus. Fonte: Centro de Investigación MANES - Manuales Escolares32
31 Jan Amós Komensky (Comenius): Orbis Sensualium Pictus. Disponível em <http://www.uned.es>. Acesso em
20/04/2014.
82
Avançando na busca pelas marcas deixadas por tantos pensadores, tomemos, por
exemplo, um dos principais filósofos e um dos precursores do iluminismo, o pensador John
Locke (1632 – 1704). Contestando a crença nas ideias inatas, ele traria para o debate a
importância da aquisição do conhecimento através dos sentidos, ou seja, que o conhecimento
é determinado pela experiência. O empirismo de Locke traria para o campo pedagógico
importantes consequências que podemos sentir ainda hoje. Destaco alguns de seus princípios
que temos hoje como atuais e contemporâneos. Segundo Cambi (idem, p. 316), para Locke:
Tais princípios são: 1. A mens sana in corpore sano, afirmada como um
“estado feliz neste mundo” e como critério-guia de todo educador; 2. A
importância do “raciocinar com as crianças” como meio de ensino; 3. A
prioridade da formação prático-moral em relação à intelectual e do critério
da “utilidade” das disciplinas a ensinar aos jovens; 4. A centralidade da
experiência, que desenvolve a natural curiosidade das crianças, amadurece
seus interesses e se afirma também através do jogo e do trabalho.
Estas ideias foram defendidas há mais de 300 anos (a publicação do Pensamentos
sobre a Educação data de 1693). Em linhas gerais temos em sua obra algumas bases para as
transformações sociais que estavam ocorrendo (dentre elas, a contestação do inatismo que se
desdobra na defesa da separação entre Estado e Igreja). Mas retomo aqui a ideia que importa
para este trabalho, ou seja, entre as ideias dos filósofos e cientistas sobre a educação e as
efetivas práticas que estavam se realizando, teremos uma distância que se constitui até mesmo
pela fraca presença de instituições escolares espalhadas na sociedade. A escola era uma
instituição destinada a poucos, a uma pequena elite.
O cenário de todo este período é marcado por disputas de diferentes matizes. No
campo religioso luteranos, calvinistas e católicos buscam ampliar suas áreas de influência. Porém,
outra disputa ocorria no âmbito político com a laicização do estado, afastando a Igreja Católica da
sua tradicional hegemonia. E ainda no campo econômico teremos a burguesia ampliando sua
força e influência. Tudo isso levava a uma busca pela formação do rebanho (no caso religioso), do
povo (do ponto de vista do poder político) ou do trabalhador (na visão do empreendedor burguês).
Segundo Hamilton (2001, p. 58):
A organização integrada da vida pessoal, da vida familiar e da vida pública
para atender aos propósitos disciplinares sobrepostos de ordem mental,
corporal e social é um traço permanente da Europa dos séculos XVI e XVII.
32 Jan Amós Komensky (Comenius): Orbis Sensualium Pictus. Disponível em <http://www.uned.es>. Acesso em
20/04/2014.
83
Neste contexto veríamos surgir a figura do cidadão, que passa a ter deveres como
indivíduo, mas também responsabilidades da cidadania. Gradativamente foram se construindo
as bases para o surgimento do Estado Moderno, que centraliza a autoridade e o poder e, para
garantir sua permanência, lança mão da criação de instituições. Ainda em Hamilton “as
aspirações políticas do Estado Moderno deviam ser incentivadas através de uma matriz
institucional patrocinada pelo Estado – a escolarização moderna” (idem, p. 68). É só a partir
deste momento que começaria a surgir a instituição escolar, e tanto a influência religiosa
quanto a civil se tornaram parte integrante desta instituição nascente.
Uma mudança de extrema importância para a história da escola é operada de
forma mais definitiva no final do século XVII, quando o espaço fechado onde se exercerá o
ensino emerge como dispositivo institucional. Segundo Philippe Ariés, citado por Varela e
Alvarez-Uria (1992, p. 76):
A escola substituiu a aprendizagem como meio de educação. Isso quer dizer
que a criança deixou de ser misturada aos adultos e de aprender a vida
diretamente, através do contato com eles. A despeito das muitas reticências e
retardamentos, a criança foi separada dos adultos e mantida à distância numa
espécie de quarentena, antes de ser solta no mundo. Essa quarentena foi a
escola, o colégio. Começou então um longo processo de enclausuramento
das crianças (como dos loucos, dos pobres e das prostitutas) que se
estenderia até nossos dias, e ao qual se dá o nome de escolarização.
Este aspecto é de extrema importância para entender as características da
instituição escolar: a criação de um espaço destinado a guardar a infância.
Para o escopo deste trabalho faz-se necessário ressaltar o quão recente, o quão
nova (em termos de história da civilização) é o surgimento desta instituição nestes moldes, ou
seja, como um lugar para onde são enviadas as crianças. Estamos acostumados a pensar a
escola como uma instituição ancestral, tão antiga quanto a nossa História, porém a visão que
estes historiadores nos apresentam mostra um quadro bem diferente. É novamente em David
Hamilton (2001, p. 48) que este ponto de vista é melhor explicitado:
Da mesma forma, este ensaio parte de um pressuposto excêntrico (fora do
centro): o de que a escolarização moderna não teve ancestrais institucionais. Se,
por um lado, é conscientemente desafiadora e desconfortante, essa premissa de
trabalho – de que a escolarização moderna veio de lugar nenhum – é também
libertadora. Ela desatrela a investigação da escolarização moderna do curso da
teorização linear, que coloca uma coisa após a outra.
84
O título do artigo acima citado (Notas de lugar nenhum – sobre os primórdios
da escolarização moderna) é sugestivo e reforça a ideia de que foi necessário primeiro
distinguir as crianças como um grupo separado para, a seguir, construir um lugar, uma
instituição para onde enviá-las.
Até aqui apresentamos alguns dos pilares que sustentam a instituição escolar e
forjam suas principais características. Em síntese podemos dizer que, na história da
Educação, a escola é uma instituição bastante recente, fruto de rupturas e mudanças
envolvidas em aparentes continuidades e processos. Vimos que ela se apoiou primeiramente
na noção de infância (chamamos de primeiro pilar) e agora temos o surgimento do
pensamento científico moderno (segundo pilar).
O ideal de disciplinarização e de formação do homem adequado e adaptado às
exigências que a sociedade lhe impõe seriam, desde o nascimento, as principais marcas da
instituição escola. Com o surgimento da ciência moderna estaríamos diante de uma revolução
do pensamento que aspira à verdade racional: as Luzes da Ciência e da Razão deveriam trazer
a resposta para a formação do homem moderno.
Geraldi, no livro Portos de Passagem (2013), mostra-nos como a sociedade que se
encerrava – a sociedade medieval – tinha um amálgama comum, algo que sedimentava as
relações: o pensamento religioso. Com a laicização da sociedade forjada pela defesa do uso da
razão como forma de explicação do mundo, que caracteriza o começo da modernidade, a
sociedade perde o pensamento (religioso) capaz de lhe dar este amálgama. Então o pensamento
científico – o conhecimento – aparece como esta seiva amalgamadora da sociedade. E a escola
emerge como o lugar em que todos devem aprender um conjunto específico de conhecimentos –
os conteúdos – selecionados como capazes de produzir este amálgama. Veremos então serem
fortalecidos os processos de pedagogização da infância, já iniciados pela Igreja, e que seriam
então transformados pela racionalidade técnica que a ciência propicia.
De acordo ainda com Geraldi, cria-se (com o surgimento da ciência moderna) um
novo sistema antropocultural de referências a que todos se remetem. Até aquele momento o
pensamento religioso, Deus e a fé proviam (ou deveriam prover) o homem das respostas às
suas angústias e inquietações. Porém, agora a razão e o conhecimento seriam capazes (ou
deveriam ser) de nos livrar das explicações milagrosas, deveriam nos fazer acessar a verdade.
Começava a se criar e difundir a partir dali o modelo que constitui a ciência moderna.
85
E hoje, já entrados no século XXI, nossas certezas se esvaem e começamos a nos
aperceber de que é necessário colocar em dúvida estas verdades científicas. É o que nos
mostra Jorge Larrosa, em Agamenon e seu porqueiro (2000):
Se a realidade parece um invento europeu recente, talvez possamos fazer agora
uma brevíssima consideração sobre a verdade, com o fim de chamar a atenção
de vocês sobre o funcionamento do modelo positivo de verdade, do modelo da
adequação ou da correspondência entre as proposições e a realidade, do
modelo que constitui a ciência moderna e nosso sentido comum desse modelo
de acordo com o qual a ciência é a teoria do real e, por isso, o principal jogo
do verdadeiro ou do falso relativamente à realidade. (Idem, p. 163).
A revolução instaurada pelo pensamento científico moderno e da qual somos hoje
herdeiros nos habituou a pensar que só esta forma é capaz de produzir verdades e certezas. Mas
será que a verdade é a verdade? É o porqueiro de Agamenon (que Larrosa nos apresenta por meio
de um apólogo de Antonio Machado) que nos incita e nos coloca a dúvida: “não me convence”.
86
Figura 31: Frontispício da Encyclopédie (editada em 1772 por Diderot e d’Alembert), desenhado por Charles-
Nicolas Cochin e gravado por Bonaventur-Louis Prévost. Esta obra está carregada de simbolismo: a figura do
centro representa a verdade – rodeada por luz intensa (o símbolo central do iluminismo). Duas outras figuras à direita,
a razão e a filosofia, estão a retirar o manto sobre a verdade. Fonte: Wikipédia33
33 Iluminismo. Disponível em <http://www.wikipedia.org>. Acesso em 20/05/2014.
87
O capitalismo industrial e o primado da economia
“Mesmo as mercadorias que os vendedores expõem em suas
bancas valem não por si próprias mas como símbolos de
outras coisas: a tira bordada para a testa significa
elegância; a liteira dourada, poder; os volumes de Averróis,
sabedoria; a pulseira para o tornozelo, voluptuosidade”.
(Ítalo Calvino)
Na esteira das ideias do pensamento iluminista e principalmente ocasionada pela
crise econômica gerada por diversos fatores (dentre os quais se destaca a crise agrícola, que
colocou o fantasma da fome a rondar a população), o século XVIII veria irromper na França
uma revolução que ameaçaria as nações europeias. As lutas políticas que colocavam em foco
os problemas das classes sociais e da enorme desigualdade na distribuição das riquezas teriam
nos princípios da liberdade, igualdade e fraternidade sua expressão de síntese.
Neste período veremos a nascente revolução industrial ser forjada graças ao
fortalecimento da burguesia, que vinha acumulando capital e ampliando o comércio em nível
mundial. Em virtude de mudanças na produção agrícola ocorre, em várias partes da Europa,
um deslocamento da população rural para a zona urbana, criando enorme concentração
urbana. Uma das principais transformações ocorridas neste período foi o surgimento das
máquinas (em especial a máquina a vapor) que passaram a substituir partes do processo
produtivo até então realizado pela mão humana. Esta revolução traz consigo um intenso
aumento da pobreza de populações empurradas do campo para a periferia das cidades.
A partir da revolução industrial ocorre uma importante mudança nos processos
produtivos e nas relações econômicas e sociais. A produção dos bens de consumo iria passar,
nesse momento, do modelo artesanal, das corporações de ofício para o modelo da fábrica.
Segundo Cambi (1999, p. 370):
A Revolução Industrial vem transformar profundamente a sociedade
moderna – no sistema produtivo e no estilo de trabalho, na mentalidade e nas
instituições (família, paróquia, vila), na consciência individual – produzindo
também uma nova classe social (o proletariado) e um novo sujeito
socioeconômico (o operário).
Se de um lado o crescente empresariado – mais adepto a uma visão laica da
sociedade – usaria sua influência para reivindicar a construção de escolas públicas destinadas
88
à educação do povo para o trabalho nas fábricas, de outro, a criação de escolas públicas em
larga escala – como no caso da Prússia (atual Alemanha) – teria como intento a unificação da
nação, garantindo a transmissão de valores cívicos e a obediência ao Estado. Com ênfase nos
interesses econômicos ou nos interesses políticos, a escola ia se constituindo e se alastrando.
Neste período, liderada por pensadores que representavam as ideias e o
pensamento burgueses, a Europa iria ampliar suas reinvindicações por uma educação pública
e estatal. Segundo Cambi (1999, p. 365) na França, por exemplo,
nasce um sistema educativo moderno e orgânico, que permanecerá
longamente como um exemplo a imitar para a Europa inteira e que fornecerá
os fundamentos para a escola contemporânea, com seu caráter estatal,
centralizado, organicamente articulado, unificado por horários, programas e
livros de texto.
Figura 32: Uma rua de um bairro pobre de Londres (Dudley Street).
Gravura de Gustave Doré de 1872. Fonte: Imago História34
Um terceiro pilar se constituiria assim para apoiar esse modelo de escola que vivemos
hoje o qual está ligado ao surgimento e expansão do capitalismo e da sociedade industrial.
34 A Revolução Industrial. Disponível em <http://imagohistoria.blogspot.com.br>. Acesso em 20/05/2014
89
Figura 33: Crianças na fábrica. Gravura de Gustave Doré de 1872.
Fonte: Imagens Históricas35
No campo das ideias, ampliavam-se os ecos dos esforços de pensadores que, desde
o final de Renascimento, empenharam-se em conhecer e sistematizar os fenômenos. De Francis
Bacon (1561 – 1626) a Isaac Newton (1642 – 1727), aprofundava-se o debate em torno de uma
visão mecanicista do universo, substituindo visões mais animistas e fortalecendo a convicção
nas possibilidades de conhecer e controlar a natureza. De acordo com Hamilton (1999, p. 14),
Isaac Newton fue una gran figura de esta transformación filosófica general.
El éxito alcanzado al explicar el funcionamento del movimiento planetário y
terrestre en los Principia (1687), sirvió como modelo y motivacion para los
pensadores de otros campos.
Neste momento veremos a importante figura do filósofo e economista Adam
Smith (1723 – 1790) influenciar de forma decisiva, com suas teses do liberalismo econômico,
amplos setores da sociedade. Em A riqueza das nações, inspirando-se no impacto causado
pelo pensamento newtoniano, Smith destacaria as virtudes da liberdade econômica em
35 Revolução Industrial. Disponível em <http://imagenshistoricas.blogspot.com.br>. Acesso em 20/05/2014
90
detrimento das restrições comerciais, vinculando o interesse pessoal da ganância como capaz
de beneficiar o conjunto da sociedade (idem, p. 15). A força da burguesia europeia impõe seu
modelo de modernização, apoiando-se nos Estados (que passariam a assumir o controle e
dirigir o funcionamento da vida, inspirando-se numa racionalidade técnica) e pressionando-os.
O estudo da História que temos desenvolvido neste trabalho é baseado no ponto
de vista de que os recursos materiais, o modo de produção dos bens necessários para a
sociedade e as ideias produzidas influenciam-se mutuamente. E, principalmente, que todo este
movimento influencia e produz determinadas práticas educativas.
91
A massificação da infância
Essas transformações que se operaram nos processos produtivos e nas ideias
também se refletiram nas formas de organizar a jovem instituição. É somente a partir deste
período que veremos ser generalizado o modelo de ensino baseado na lousa e giz. As ideias de
Comenius de quase 150 anos antes, somente agora encontrariam ambiente e condições
materiais e ideológicas para se disseminarem. Inspirada pelo modelo de produção em massa
propiciado pela revolução industrial, a escola buscou formas de promover o ensino em grande
escala, dividindo os alunos por grau de aproveitamento e trabalhando o modo de transmissão
simultânea dos conhecimentos previamente organizados.
Com sua influência Adam Smith traz ao debate noções como “divisão do
trabalho” e “distinção de classe social” e, no campo das práticas educativas e da organização
do trabalho escolar, veremos surgir a noção de classes como grupo de alunos. Temos nesta
noção um importante modelo que apoia a instituição escolar. A formação de grupos de 30 ou
40 alunos classificados por idade ou nível de aprendizagem promoveria o ensino simultâneo,
ou seja, uma mesma aula para todos e não mais os cursos individualizados.
As necessidades impostas pelo modo de produção capitalista buscariam nas
tradições desenvolvidas pelas ordens religiosas a inspiração para organizar o trabalho. Segundo
Foucault (1987, p. 128), para acostumar as populações rurais ao trabalho na indústria apelava-se
às congregações: “os operários são enquadrados em ‘fábricas-conventos’”. E, ainda com
Foucault (idem), veremos esta mesma inspiração se deslocar para a organização das escolas:
“nas escolas elementares, a divisão do tempo torna-se cada vez mais esmiuçante; as atividades
são cercadas o mais possível por ordens a que se tem que responder imediatamente”.
Dois exemplos interessantes de organização escolar vêm das propostas do educador
Andrew Bell (1753 – 1832) e, pouco depois dele, de outro educador, Joseph Lancaster (1778 –
1838) e o Sistema Monitorial ou Ensino Mútuo para a escolarização de crianças em orfanatos
ou escolas caritativas, ambos fortemente influenciados pelas ideias de Smith. O crescente
número de matrículas exigia soluções para administrar o ensino nestas instituições. No modelo
de Ensino Mútuo, a classe – que chegava a ter 100 alunos – era dividida em grupos que ficavam
a cargo de um monitor – um aluno (geralmente mais velho) que ficava responsável pela
organização da escola, pela limpeza e pela manutenção da ordem. Estes monitores transmitiam
a lição a ser memorizada pelos estudantes, que depois poderiam se dirigir às suas mesas para
escrevê-las. A ilustração a seguir mostra uma classe de ensino mútuo.
92
Figura 34: Ilustração de escola do século XIX de ensino mútuo. Fonte: História da Educação36
Controlar a atividade dos alunos, administrar calculadamente o tempo tornaram-se
objetivos centrais nas questões pedagógicas. Foucault (idem, ibidem) nos dá ainda uma
medida da importância dedicada ao controle do tempo:
No começo do século XIX, serão propostos para a escola mútua horários
como o seguinte: 8,45 entrada do monitor, 8,52 chamado do monitor, 8,56
entrada das crianças e oração, 9 horas entrada nos bancos, 9,04 primeira
lousa, 9,08 fim do ditado, 9,12 segunda lousa, etc.
O controle do tempo, dos corpos e das vontades vai se aprimorando e constituindo
seu legado. A imagem anterior representa uma escola do século XIX, por volta do ano de
1820. Ou seja, cerca de 200 anos atrás, esta instituição buscava formas de se organizar, em
nada parecidas com o modelo atual. Em toda a Europa eram intensificados os debates sobre a
educação, a escola e os métodos de sua organização. Os métodos de ensino mais comuns e
presentes especialmente nas universidades (até princípios do século XVIII) ainda eram
bastante medievais: o professor ditava sua conferência e procedia ao exame dos alunos
verificando o quanto eles haviam retido de sua exposição. Mas as mudanças econômicas que
estavam sendo operadas em todos os setores da sociedade, as novas ideias que se difundiam e
a facilidade provocada pela disseminação de publicações de textos impressos levavam
professores universitários (dentre eles, o próprio Smith) a adotarem métodos relativamente
36 Ensino Mútuo ou Método Lancasteriano. Disponível em <https://historiadaeducacaobrasileira.wordpress.com>.
Acesso em 20/05/2014
93
improvisados de ensino e exame. Não mais o ditado frio e distante, mas um discurso e um
diálogo com os alunos iriam orientar a instituição da aula. George Jardine (professor escocês,
discípulo de Smith) e outros professores estavam entre os defensores desta mudança.
Era introduzida uma nova preocupação quanto à formação dos estudantes, até
então voltada para desenvolver as virtudes da obediência e da fé, preocupando-se agora com a
atenção e compreensão dos alunos. O sistema da aula passaria a ser defendido como modelo
da instrução simultânea. Neste sistema a defesa do princípio da emulação como fator de
estímulo para a aprendizagem ganharia ampla repercussão, sendo prescrito a partir de então, a
reunião de grupos de 30, 40 e até 50 alunos que, referidos ao mestre, receberiam a aula.
Finalmente as ideias de Comenius ganhariam corpo. Durante o século XIX é difundida na
Europa a escola pública de massas que iria consolidar o modelo de organização conhecido
como Ensino Simultâneo no qual todos devem fazer a mesma coisa, ao mesmo tempo.
Figura 35: Ensino simultâneo assente no agrupamento constituído pela classe e sala de aula. Fonte: In Learning37
Se na primeira metade do século XIX as ideias do novo liberalismo econômico se
impregnaram no pensamento pedagógico, na sua segunda metade veríamos inúmeros
pensadores e educadores se empenharem em fazer nascer aquilo que ficou conhecido como a
pedagogia científica. Seu projeto se separava (ou tentava) da filosofia e da política e buscava
construir os saberes pedagógicos à luz das ciências positivas. Lançando mão dos
conhecimentos da fisiologia, da psicologia e da antropologia (mais ligados ao homem) e da
37 Modos de Organização Escolar - consequências para o espaço escolar. Disponível em <http://in-learning.ist.utl.pt>.
Acesso em 20/05/2014
94
sociologia (ligada à sociedade) – saberes estes que reivindicavam para si o estatuto de ciência
– a pedagogia adotava o paradigma científico, indutivo e experimental, articulando-se em
torno de conhecimentos baseados em “fatos” (Cambi, idem, p. 498).
O sociólogo francês Emile Durkheim (1858-1917) exerceria enorme influência
que se estendeu ao século XX, ao elaborar uma teoria da educação como socialização.
Durkheim foi fortemente influenciado pelo positivismo, logrando aperfeiçoar as ideias de
Comte (1798-1857), ele defende a educação como função da sociedade e, organizada em
instituições específicas, esta deve introduzir ao aprendizado de técnicas, linguagens e normas
sociais as novas gerações, integrando-as à sociedade.
É também neste período que começa a tomar corpo a pedagogia experimental.
Baseando-se na psicologia experimental – e também fortemente influenciada pelo modelo
positivista – busca entender e codificar os princípios do comportamento infantil, utilizando-se
para isto de intervenções deliberadas e controladas de determinadas situações (educativas ou
experimentais). Ainda segundo Cambi (idem, p. 500) “a pedagogia experimental nasce como não
valorativa (deixa de fora os ‘juízos de valor’) e visa aos aspectos objetivos e mensuráveis da
experiência educativa submetida a experimentação”. Este modelo teria importante
desenvolvimento e penetração no século XX, especialmente nas suas últimas décadas.
E assim, concluindo este estudo da história da escola, vimos que no plano mais
amplo da sociedade, sobrepujando as questões da fé e da razão, as sociedades capitalistas
industriais começaram a encontrar no comércio, na venda e no consumo das mercadorias uma
maneira de viver. Numa sociedade pautada pela resposta teológica às grandes questões
filosóficas (Idade Média) a educação será marcada pela doutrinação, será focada no valor da
fé com todas as consequências desta tomada de posição em favor deste valor. Por outro lado,
numa sociedade que luta para se emancipar dos ditames religiosos (Renascimento) e busca a
valorização da capacidade humana de pensar, de racionar, também a educação será entendida
como a possibilidade de desenvolver o engenho humano e o valor central será a razão. E por
último, ou pelo menos até onde chegam os nossos tempos atuais, numa sociedade voltada para
a produção e circulação dos bens materiais, temos como valor central a Matéria. E a educação
será a preparação para o mercado. Todos esses processos históricos que se constituíram em
pilares para a construção da instituição escola tal qual a conhecemos hoje também a tornam
esse lugar onde se manifestam seus conflitos e contradições.
Até aqui nosso passeio pela História da Pedagogia ajudou a compreender os
porquês embutidos no modelo educacional vigente. Buscamos, ainda que em linhas gerais,
95
conhecer aspectos de sua genealogia e pudemos descortinar aspectos do projeto de escola que
adquiriu hegemonia e preponderância até os dias de hoje, reconhecendo os discursos de poder
que nela se encontravam subjacentes. Nosso percurso genealógico foi pautado por aquilo que
de transformador reconhecemos no pensamento foucaultiano (1984, p. 13):
Ora, se o genealogista tem o cuidado de escutar a história em vez de
acreditar na metafísica, o que é que ele aprende? Que atrás das coisas há
"algo inteiramente diferente": não seu segredo essencial e sem data, mas o
segredo que elas são sem essência, ou que sua essência foi construída peça
por peça a partir de figuras que lhe eram estranhas. A razão? Mas ela nasceu
de uma maneira inteiramente "desrazoável" − do acaso. A dedicação à
verdade e ao rigor dos métodos científicos? Da paixão dos cientistas, de seu
ódio recíproco, de suas discussões fanáticas e sempre retomadas, da
necessidade de suprimir a paixão − armas lentamente forjadas ao longo das
lutas pessoais". E a liberdade, seriada, na raiz do homem o que o liga ao ser
e à verdade? De fato, ela é apenas uma "invenção das classes dominantes". O
que se encontra no começo histórico das coisas não é a identidade ainda
preservada da origem − é a discórdia entre as coisas, é o disparate.
Nosso estudo teve como propósito perceber que a escola não é eterna nem natural, é
uma instituição que se encontra na interseção entre as ideias e os recursos materiais que se fizeram
presentes ao longo da história, que esta instituição viveu caminhos e descaminhos, continuidades
e descontinuidades e que se constituiu e desconstituiu no embate entre os diferentes atores, seres
humanos que protagonizaram processos históricos. Seguimos então com o propósito de, tendo
percebido e retirado os véus que turvavam a visão daqueles pilares ocultos sobre os quais foi se
assentando esta instituição, dar o passo seguinte no sentido de desnaturalizar o olhar para a escola
e buscarmos o espanto, ou seja o estranhamento com este modelo, para então buscarmos outras
possibilidades, outras “verdades” ainda que, como tudo, sempre provisórias.
O estudo da História teve como pano de fundo o propósito de fazer refletir sobre o
não determinismo das instituições e práticas humanas. Conhecer o passado para, compreendendo-
o, liberar-se das amarras das mistificações e, aprendendo com ele, ousar outros futuros. É tempo
de reconhecermos que entre o tempo que vivemos em nossa sociedade – com toda a velocidade
que a tecnologia impõe e todas as mudanças nos valores, na cultura e nas instituições – e o tempo
que passamos na escola – com sua lenta reprodução de velhas práticas – há um descompasso. É
tempo de buscarmos novas formas de tornar nossa escola menos anacrônica.
96
A escola de hoje e as marcas da sua constituição
E a escola? O que é ela hoje? Quais marcas ela guarda do passado? Será que está
fadada ao enrijecimento de suas formas de organização? Será que pode se transformar?
Defendo uma ideia simples: a escola se tornou um lugar. Um lugar que foi
construído socialmente e que traz as marcas dos embates e lutas por hegemonia e, certamente,
a forma de hoje é a propugnada por aqueles que venceram estas lutas ao longo da trajetória
histórica. Além de um lugar, ela é também um tempo. Do não lugar da Grécia antiga, do
Skholé que significava tempo livre para estudar e pensar, aos dias de hoje, em que sua
edificação se estabeleceu, temos uma trajetória que cristalizou esta instituição dada como
espaço/tempo imutável. A escola é um lugar e um tempo.
Hoje, muitos anos transcorridos nos quais as sociedades se empenharam em
promover a educação e o preparo das gerações vindouras, a escola habita o nosso imaginário
com este status de espaço/tempo destinado à preparação das crianças e dos jovens. Neste lugar
está prevista a realização de relações educativas. Mas, em torno desse espaço/tempo, orbita
um mundo atravessado por transformações. A informação e a comunicação circulam nos
espaços vivenciais, tanto de professores como de alunos, numa velocidade jamais imaginada
como possível. E nós, milhares de professores, em milhares de salas de aula, diante dos
milhões de crianças e adolescentes, agimos como se tudo pudesse ou devesse continuar sendo
como sempre foi. Estudar a história da constituição da escola teve como objetivo desvelar e
permitir a compreensão de que ela não foi sempre assim. É neste sentido que considero
importante analisarmos as principais características que se construíram. E, a partir daí,
perguntar sobre o tipo de relações que este modelo, esta forma escolar, prevê.
Uma primeira constatação que o estudo da História da Pedagogia me permite é que a
construção deste lugar escola instituiu certo tipo de relações entre seres humanos (crianças e
adultos) voltadas para a produção da normalidade, a padronização dos comportamentos.
Este lugar social, este lugar escola tem uma materialidade física: o prédio, os
corredores por onde se deve andar (ainda hoje, muitas vezes em fila e em silêncio), a sala de
aula para onde se deve caminhar, as carteiras e cadeiras onde se deve sentar, a lousa e o
professor para onde se deve olhar. Esta materialidade física que se constituiu na arquitetura
escolar determina ou tenta determinar as ações possíveis, o que é e o que não é permitido
neste ambiente. Quer dizer, o espaço físico foi se constituindo também como adestrador.
97
Então minha hipótese é a de que, para que se possa repensar a educação, é preciso
redefinir este lugar escola, dando a ele novas funções e significações. O que quero salientar
aqui é que a educação tem ocorrido de muitas formas e em muitos espaços ao longo da nossa
História, mas a escola consagrou-se como lugar de ensino. Separo aqui os termos Educação e
Ensino. Enfatizo, ainda que correndo o risco de me tornar repetitiva, que nem sempre este lugar
escola existiu. Embora isso possa parecer óbvio, a forma como pretendo abordar este trabalho
está ligada a este óbvio. Entendo que às vezes é necessário dizer o óbvio para que possamos
discuti-lo. Assim, se paramos para pensar em outras instituições sociais, poderemos lançar
perguntas interessantes sobre o que está embutido nas arquiteturas destas instituições. Por
exemplo, a instituição Igreja, que já existia muito tempo antes da escola, conduz a certo
comportamento das pessoas que nela adentram. Também os hospícios, hospitais, asilos, como
bem nos mostrou Foucault, as instituições instituem os modos de coexistência e vice-versa.
Numa discussão mais atual, o sociólogo polonês Zigmunt Bauman (2000) nos oferece análises
interessantes sobre os espaços públicos (como praças e shopping centers) e a forma como eles
são construídos para determinar (de maneira invisível) os comportamentos ali esperados.
Assim, do não lugar, ou seja, de uma situação na qual a educação ocorria de forma
difusa por todos os espaços da sociedade, como vimos na Grécia Antiga e na Europa Medieval,
até chegarmos aos enormes edifícios com suas salas de aula, corredores e pátio, percorremos
muitos caminhos e diferentes formas de organizar o ensino. Do ensino que se dava na relação
entre o mestre e seu discípulo, passamos à constituição de pequenos grupos e, depois, de
classes. Passamos do espaço aberto e vivo aos espaços fechados que separam a criança do
mundo externo. Passamos do tempo livre para aprender (da Skholé), para os tempos rotinizados
e vigiados da escola de hoje. Nas duas imagens a seguir temos exemplos do ensino
individualizado que foi a principal característica dos modelos de educação até o século XVIII.
98
Figura 36: Ilustração de Rousseau e crianças. Fonte: Assuntos de Pedagogia38
Figura 37: Ensino individual. “Le Maître d’école”. Adriaen Van Ostade. 1662. Fonte: In Learning39
Figura 38: Henri Jules Jean Geoffroy – “The Children’s Class” (1889). Fonte: Jurjo Torres40
38 Disponível em <http://assuntosdepedagogia.zip.net/arch2005-09-04_2005-09-10.html>. Acesso em 15/07/14 39 Modos de Organização Escolar - consequências para o espaço escolar. Disponível em <http://in-learning.ist.utl.pt>.
Acesso em 15/07/14
99
Na figura 38 podemos ver uma classe com muitos alunos, mas divididos em diferentes
atividades. Enquanto alguns trabalham na lousa de ardósia, podemos observar um menino que
realiza uma cópia de um livro, outro desenha utilizando uma régua, uma dupla trabalha na produção
de um texto... Pouco mais de cem anos nos separam desta sala de aula. A racionalização do processo
de ensino-aprendizagem conduziria ao ensino coletivo e simultâneo, uma mesma aula para vários
alunos, uma organização pedagógica em que todos devem fazer a mesma coisa ao mesmo tempo.
Como vimos, o surgimento da instituição escolar teve como um de seus primeiros
fatores a separação entre a infância e o mundo adulto. Esta separação se concretizou quando
foram construídos espaços específicos para educar as crianças: as escolas. Dentro de seus
muros uma população passa a conviver, o alunado. Neste lugar estão previstas certas rotinas e
são distribuídos os papéis aos diferentes sujeitos que ali se encontram. O espaço e o tempo
estão organizados de forma a garantir que ocorram certos acontecimentos previstos e
estruturados segundo aquelas prescrições que se forjaram historicamente.
Em resumo, a produção dos saberes escolares e a determinação das práticas prescritas
e autorizadas, inscrevem-se num processo histórico que tem referência nos discursos de verdade
que o jogo entre os desígnios da Fé (com a força da igreja), da Razão (com as descobertas da
racionalidade científica) e os interesses do Capital fizeram surgir. Cada um, a seu modo, logrou
informar o olhar daqueles que se dedicavam a produzir este espaço de preparação das novas
gerações. A produção deste espaço/escola foi se constituindo a partir da visão paradigmática de
cada uma dessas vertentes. Assentada nos pilares que se constituíram na sociedade – entre os
quais destacamos a noção de infância, o pensamento científico moderno e o capitalismo industrial
– e que dão sustentação aos seus modos de organização interna, vimos a escola multiplicar-se e
disseminar-se na vida moderna. A escola tornou-se esse lugar metodizado, marcado por rotinas
fixas, um lugar normalizado, no qual só devem ocorrer acontecimentos previstos. E tudo se passa
como se assim fosse, como se sempre tivesse sido... Será?
Mudar a escola para que nela possam caber todos os alunos passa por desconstruir este
espaço/tempo já instituído. Mas não é o mesmo que começar a construir uma casa num terreno
vazio: nossa casa já está construída e, portanto, é muito mais do que a tarefa de fazer uma grande
reforma. Mas esta reforma não é só física, é também (e talvez mais) uma reformulação das ideias
que presidem esta empreita de educar. Trata-se de desvelar os paradigmas que se instauraram no
âmbito da escola, de questioná-los, de compreender seu estatuto histórico para que possamos pensar
40 SANTOMÉ, J.T. Sobre los libros de texto. Algunas objeciones. Disponível em <http://jurjotorres.com/>.
Acesso em 15/07/14.
100
novas maneiras de receber as novas gerações, pensar em como apresentar o nosso mundo, deixando
ao mesmo tempo o espaço para a irrupção do novo e do inusitado que toda nova geração traz
consigo. E permanece a questão: como podemos alterar nossas práticas, como podemos transformar
este lugar escola? E ainda mais importante: em que direção queremos transformá-la?
Das instituições que temos na sociedade e que são vividas por nós como
tradicionais temos, por exemplo, o casamento como uma delas. Esta foi a ou uma das
instituições que mais se transformou: da sagrada família ao casamento gay, temos pouco mais
que cinco décadas em que esta instituição vista como eterna e imutável sofreu alterações
profundas. E a nossa velha e boa escola? Continuará impassível?
Figura 39: A organização frontalizada do espaço da sala de aula. Fonte: In Learning41
Creio que para seguir com este trabalho é preciso enfrentar mais um passo:
colocar em questão, olhar com estranhamento, desconstruir isto que chamei de pilares da
escolarização. Será que a racionalidade científica ainda pode legitimar nossos esforços de
formação das novas gerações? Será que o modelo capitalista industrial responde ou
corresponde às promessas de “liberdade, igualdade e fraternidade”? E a infância? Quem e o
que é ela na nossa pós-modernidade? Essas serão as reflexões a que me proponho a seguir.
41 Modos de Organização Escolar - consequências para o espaço escolar. Disponível em <http://in-learning.ist.utl.pt>.
Acesso em 15/07/14
101
A “racionalidade” do modelo: uma discussão necessária
Vimos até aqui o esforço desenvolvido por educadores e filósofos se orientar para a
laicização da educação. Iluminados pelas luzes da ciência, ora compondo com o pensamento
religioso, ora promovendo rupturas mais impactantes, pensadores e educadores desenvolveram
suas concepções e seus projetos de sociedade. O desejo de racionalidade, que talvez Foucault
chamasse de “vontade de verdade”, exerceria forte influência no modo de se pensar o homem e a
sociedade, repercutindo nos modos de fazer e pensar a educação até os dias de hoje. O status de
verdade que a ciência positiva angariou para si colocaria a educação científica como apanágio
para a formação do homem, que deveria, assim, ser preparado para viver numa sociedade racional
e progressista. Cresce o mito da educação como a via para construir a sociedade equilibrada,
orgânica, apta a desenvolver o progresso (entendido de um ponto de vista positivista: para uma
sociedade fundada nos valores da razão, uma educação racional e científica). Temos nas análises
do professor Tomaz Tadeu da Silva (1994, p. 255) reflexões sobre esta problemática:
É difícil pensar a educação fora do contexto do predomínio da Razão, tal
como definida e elaborada pelo Iluminismo. A história da educação de
massas e a do pensamento ilustrado quase se confundem. A educação
institucionalizada é um dos mecanismos pelos quais a Razão se instala e se
difunde, os currículos educacionais são baseados na concepção de Razão, o
cultivo da Razão é um dos principais objetivos educacionais. Em muitos
sentidos, educação significa produção da racionalidade.
A esta altura de nossa conversa, e para seguir com este trabalho, iremos encontrar
inspiração nas ideias de Thomas Kuhn a respeito das revoluções científicas. Para o nosso
propósito, alguns conceitos que ele nos apresenta são úteis e serão utilizados
comparativamente aos problemas que se nos apresentam na área educacional.
No livro A estrutura das revoluções científicas, Kuhn descreve os processos que
envolvem a ciência e o pensamento científico, apresentando seus períodos de tranquilidade e
os de crise. Para Kuhn a ciência avança ou retrocede transitando entre diferentes fases.
Resumidamente podemos dizer que, para ele, um problema científico ou mesmo uma ciência
possuem fases diferentes em torno das quais se dá a produção do conhecimento científico,
sendo que estas fases caracterizam a produção mesma deste conhecimento. Assim, temos o
estágio pré-paradigmático no qual diferentes teorias estão em vigência e os adeptos de uma ou
de outra competem entre si. Em algum momento do desenvolvimento das pesquisas, os
102
cientistas ligados a determinado campo de estudo se tornam capazes de estabelecer os
fundamentos pertinentes a ele: “elaboram um paradigma capaz de orientar as pesquisas de
todo o grupo”. (Kuhn, 2000, p. 42)
Instaura-se a partir daí um período que Kuhn denomina de “ciência normal”, no
qual o paradigma vitorioso orienta o olhar do cientista. Segundo Kuhn (idem, p. 147 e 148):
Outras experiências demonstram que o tamanho, a cor, etc., percebidos de
objetos apresentados experimentalmente também varia com a experiência e o
treino prévios do participante. Ao examinar a rica literatura da qual esses
exemplos foram extraídos, somos levados a suspeitar de que alguma coisa
semelhante a um paradigma é um pré-requisito para a própria percepção. O
que um homem vê depende tanto daquilo que ele olha como daquilo que sua
experiência visual-conceitual prévia o ensinou a ver.
O período de “ciência normal” torna-se fértil ao permitir que os cientistas se
dediquem à atividade de “solucionar quebra-cabeças”. O trabalho da chamada ciência normal
“não visa produzir uma novidade inesperada” (idem, p. 58). Informados pelo paradigma
vigente, os cientistas avançam na produção científica, solucionando os problemas inscritos no
seu campo de pesquisa. Os dados coletados oferecem possibilidades de elaboração frutífera.
No entanto, em algum momento da vida de uma comunidade científica surgem
problemas que resistem às soluções até ali garantidas pelo paradigma. Inicialmente a anomalia
será vista como uma inabilidade do cientista e não uma inadequação do paradigma. A
persistência da anomalia confronta a atividade científica, questionando os pressupostos sobre os
quais se orientou até então. Neste momento surgem resistências por parte de muitos cientistas
que se mantém convictos de que o antigo paradigma acabará por solucionar os problemas que a
anomalia evidencia. Será na persistência do fracasso na resolução de um quebra-cabeça
importante que se originará a crise do paradigma. De acordo com Kuhn (idem, p. 184)
Por isso, o teste de um paradigma ocorre somente depois que o fracasso
persistente na resolução de um quebra-cabeça importante dá origem a uma
crise. E, mesmo então, ocorre somente depois que o sentimento de crise
evocar um candidato alternativo a paradigma.
O período de crise do paradigma abre a perspectiva de surgirem ou de passarem a
ser considerados paradigmas rivais e conflitantes que entrarão em competição. É interessante
salientar que, para Kuhn, a transição entre estes paradigmas em competição não pode ser feita
suavemente, passo a passo, pela simples análise lógica ou por experiências neutras destinadas a
estabelecer a pertinência ou não do novo paradigma. Estes momentos nem mesmo podem ser
103
chamados de transição, pois caracterizam-se por verdadeiras revoluções. O período de crise
caracteriza-se pelo debate no qual entram em disputa os diferentes paradigmas.
Outro aspecto apresentado por Kuhn explicita o caráter não cumulativo da ciência, pois,
se assim fosse, “os novos conhecimentos substituiriam a ignorância, em vez de substituir outros
conhecimentos de tipo distinto e incompatível” (idem, p. 129).
Outra ideia que aqui nos interessa diz respeito à comparação que ele faz entre os
momentos de crise da ciência e os momentos revolucionários da sociedade. Diríamos que
diferentes projetos se encontram em competição, disputando a cena institucional, defendendo ou
atacando estas mesmas instituições e propondo novas estruturas. Kuhn nos atenta para o fato de
que estas disputas se dão no seio de uma comunidade relevante e buscam seu consentimento.
Para descobrir como as revoluções científicas são produzidas, teremos,
portanto, que examinar não apenas o impacto da natureza e da Lógica, mas
igualmente as técnicas de argumentação persuasiva que são eficazes no
interior dos grupos muito especiais que constituem a comunidade dos
cientistas. (Idem, p. 128. Grifo meu)
A questão passa então a se revestir de aspectos de conversão e de fé no novo
paradigma, entendido como uma nova verdade revelada. É um novo discurso dotado de
argumentos suficientemente persuasivos que terá que ser assimilado pela comunidade. Volto
ao diálogo com Foucault (1999, p. 16), quando ele discute os deslocamentos ocorridos na
produção da verdade:
Essa divisão histórica deu sem dúvida sua forma geral à nossa vontade de saber.
Mas não cessou, contudo, de se deslocar: as grandes mutações científicas podem
talvez ser lidas, às vezes, como consequências de uma descoberta, mas podem
também ser lidas como a aparição de novas formas na vontade de verdade.
Assim também podemos dizer que, no processo de institucionalização da escola,
produziram-se discursos que ganharam status de verdade e que, ao serem incutidos nos atores desta
cena, tornaram-se paradigmas nem sempre explícitos (ou, dito de outro modo: muitas vezes ocultos).
Embora possam ser apontadas críticas e questões ao pensamento kuhniano (que
não cabem no espaço deste trabalho), interessa-nos destacar neste autor esta ideia de um
paradigma que orienta o olhar do observador. Esta ideia é útil para tentarmos enxergar alguns
dos aspectos que permeiam o espaço da instituição escolar. Podemos pensar, a partir de suas
pesquisas, numa extrapolação para o modo de pensar que orienta o trabalho docente. Encontro
em Nudler respaldo para esta forma de propor nossa reflexão. Segundo a autora (1975):
104
Extrapolando – embora se force a intensão original do autor – esse
pensamento para o domínio da vida cotidiana, podemos dizer que cada
indivíduo possui um paradigma para se ligar ao mundo; um esquema
categorial “existencial”; um sistema de referências que organiza sua
percepção, interpretação e valoração do mundo.
Creio que as considerações anteriores já nos permitem questionar alguns pilares
que sustentam nosso edifício escolar. Começando pelo princípio da racionalidade ao qual se
tem, na escola, empenhado tanto apreço. A discussão tão acirrada entre as ciências exatas e as
ciências humanas (tão inexatas) e o desejo que, nos seus inícios, orientou esta última a buscar
o crivo e o status de ciência exata, têm sofrido reviravoltas importantes na pós-modernidade.
As formulações de Silva (1994, p. 256) ajudam a repensar estas questões no contexto da pós-
modernidade. Segundo ele:
As perspectivas pós-modernista e pós-estruturalista, em conjunto, colocam
em questão esse predomínio de uma Razão, universal e abstratamente
definida. Nessa visão, a noção predominante de Razão é encarada como
produto de uma construção histórica que deve suas características às
condições da época em que foi desenvolvida e não a uma essência humana
abstrata e universalizante.
O pensamento de Boaventura Souza Santos também nos ajuda a compreender o
modo como as mudanças vêm ocorrendo na pós-modernidade. Esse autor analisa os movimentos
pelos quais tem passado o estudo das humanidades, descrevendo duas grandes correntes: uma de
filiação positivista a qual “consistiu em aplicar, na medida do possível, ao estudo da sociedade
todos os princípios epistemológicos e metodológicos que presidiam ao estudo da natureza desde o
século XVI” (Santos, 2010, p. 33). A segunda corrente rompe com a anterior e “consistiu em
reivindicar para as ciências sociais um estatuto epistemológico e metodológico próprio, com base
na especificidade do ser humano e sua distinção polar em relação à natureza”.
Já não estamos mais (na pós-modernidade) preocupados em fazer das ciências
humanas uma cópia do modelo das exatas. Mas, talvez mais impactante do que este rompimento
com os cânones da ciência clássica, seja o fato de que ela própria (nossa velha e boa ciência
clássica), está em crise. Assentada na formulação de leis que se obtém a partir da observação do
real, a ciência moderna foi fundada na convicção de que esta observação se faz a partir de um
ponto exterior ao objeto, como um olhar neutro e equidistante, um olhar sem tempo nem espaço.
Um olhar embasado no pressuposto da ordem e estabilidade do mundo, na percepção de que
determinadas causas implicam em determinadas consequências sempre inalteráveis, na ideia de
105
que o passado se repete no futuro (Santos, idem, p. 30) e que o tempo seria algo desprezível para
determinar os fenômenos naturais. A ciência clássica se dedicou desde os seus inícios a estudar a
natureza segundo a perspectiva da reversibilidade, ou seja, dado um fenômeno, se forem repetidas
as mesmas condições iniciais, tudo deverá se repetir. Ainda citando Santos (idem, p. 30 e 31):
Segundo a mecânica newtoniana, o mundo da matéria é uma máquina cujas
operações se podem determinar exatamente por meio de leis físicas e
matemáticas, um mundo estático e eterno a flutuar num espaço vazio, um
mundo que o racionalismo cartesiano torna cognoscível por via da sua
decomposição nos elementos que o constituem.
O que a ciência da pós-modernidade está a nos mostrar é que este seu fundamento da
reversibilidade se encontra em transformação. O químico russo Ilya Prigogine (Prêmio Nobel de
Química de 1977) é uma dentre as muitas vozes que têm apontado novas perspectivas para a
ciência, trazendo a questão da irreversibilidade e, portanto, do tempo como aspecto constitutivo
do seu campo de estudos. Antes desprezado como ilusão, “o tempo é ‘real’ e a irreversibilidade
cumpre, na natureza, um papel constitutivo fundamental” (Prigogine, 1996, p. 38).
O ideal de um saber real e objetivo enfrenta na pós-modernidade um abalo
provocado pela introdução do tempo (e com ele a história) como elemento constitutivo do real
e, portanto, “já não podemos continuar falando unicamente de ‘leis universais extra-
históricas’, mas que, além disso, temos que acrescentar o ‘temporal e o local’; entretanto, isto
implica afastar-se dos ideais da ciência tradicional” (idem, 1996, p.40).
As consequências destas transformações do pensamento não podem ser ignoradas
e produzem impactos na compreensão da teoria. A crise do paradigma da reversibilidade
introduz o tempo, a história e o sujeito na cena da produção de conhecimentos e nos permite
reconhecer a possibilidade de superação da dicotomia entre ciências naturais e ciências
sociais. Permite-nos questionar o status das ciências naturais, cuja suposta racionalidade seria
a única forma de produzir verdades inequívocas.
A possibilidade de narrar objetivamente aquilo que se observa de um ponto de
vista exterior ao objeto tem se mostrado uma tarefa problemática, uma vez que um sujeito
neutro e equidistante dos objetos que observa e descreve (princípio fundante do pensamento
científico) está sob questionamento e, mais que isso, tem-se a partir de agora a compreensão
de uma impossibilidade de dissociação entre este mesmo sujeito e seu objeto.
Antoni J. Colom (um professor espanhol que tem se dedicado a estudar as novas
teorias surgidas na pós-modernidade) nos atenta para o problema da narrativa mesma da
106
realidade, da comunicação científica, colocando em questão o problema de nossa própria
percepção do real. Segundo Colom (2004)
... o problema talvez seja mais profundo e complexo do que o que foi insinuado
até agora, já que possivelmente não se trate apenas de um problema de
comunicação interindividual, mas de nossa própria capacidade de percepção; ou
seja, o que vemos é realmente o que existe ou é unicamente o que percebemos?
Ou, o que seria ainda pior para nossas intenções de transmissão do saber: a
realidade é como se nos apresenta ou, simplesmente, percebemos uma
manifestação aparente dela? Enfim, tudo é como nos parece ser?
A ciência clássica (se é que assim a podemos chamar, dada toda a discussão sobre os
discursos e a vontade de verdade que pudemos vislumbrar em nosso estudo) e sua forma de
produzir discursos de verdade estão em uma crise que impacta a própria forma de produzir novos
conhecimentos. A simples descrição do “real” como aquilo que é, a crença de que por meio do
discurso científico podemos narrá-lo e determinar suas causas e dominar seus efeitos, sofre
profundas mudanças na pós-modernidade e introduz no debate o problema sobre a forma e as
condições históricas em que tal ou tal objeto foi analisado e determinados saberes (teorias, leis)
foram constituídos. A produção do conhecimento, antes vista como fruto de uma racionalidade
neutra e superior, vê-se agora atravessada pelo tempo, pelo sujeito, pelo acaso e pelas questões
do poder e das dinâmicas de hegemonia de um determinado contexto no qual este conhecimento
foi produzido. Passa a ter maior evidência o fato de que os conhecimentos são transitórios e
mutáveis. Chamo ao debate outro autor que ajuda a explicitar as consequências que advém da
crise dos paradigmas. Segundo Plastino (2010, p. 37):
A irrupção do tempo, da história e do sujeito derruba assim não apenas a
concepção do real-objetivo (como algo que é), mas também invalida a
concepção do saber como reflexo disso, capaz de ser pensado omitindo-se as
condições históricas de sua produção. A irrupção do sujeito, isto é, da
história, ou seja, do novo, do não determinado, impõe a mudança radical na
compreensão da teoria. Esta não mais pode ser considerada como um olhar
neutro sobre aquilo que é, mas deve ser pensada como uma prática social
coconstitutiva daquilo que advém, prática esta intimamente entrelaçada ao
contexto global da sociedade na qual ela é produzida.
Talvez o leitor esteja pensando que tudo isso que acabo de apresentar sejam ideias
já bastante conhecidas. A primeira edição do livro de Thomas Kuhn é de 1962, o químico
Prigogine teve seu prêmio Nobel em 1977, o filósofo e historiador das ideias Michel Foucault
publicou suas obras nas décadas de 1960 e 1970, Boaventura Souza Santos publicou o
Discurso sobre as ciências em 1985. Para ser sincera, não sei se o leitor se questiona sobre
107
isto, mas eu mesma estou me perguntando. De fato, toda esta discussão em torno da ciência,
dos paradigmas e das crises que estão postas na pós-modernidade já é bastante discutida.
Porém, no meu entender, tudo isto ainda permanece no campo das discussões teóricas, no
âmbito das produções acadêmicas. Minha própria experiência de formação de professores tem
me mostrado que, em muitos casos, tudo isso se passa em altas esferas das elites de
intelectuais e ainda não chegou nem ao espaço de formação de professores e muito menos ao
espaço escolar. A própria compreensão da ciência moderna e os esforços que ela realizou no
sentido de produzir conhecimentos (antes mesmo de adentrarmos na discussão sobre a ciência
na pós-modernidade) tem uma compreensão bastante superficial no ambiente pedagógico.
Podemos dizer, mesmo arriscando uma generalização, que os professores não são
formados nem mesmo para aprender e entender como funciona a ciência. Nossa formação
inicial está muito mais voltada para questões do desenvolvimento infantil, aspectos da
sociologia que dizem respeito ao papel da escola na sociedade, história da educação... O
pedagogo e a pedagoga passam seus anos de formação universitária lendo, estudando e
reproduzindo os textos das ditas ciências aplicadas à educação, mas não realizam nenhum
estudo ligado diretamente às áreas das ciências naturais. Ou seja, o pedagogo (refiro-me ao
estudante que se prepara para atuar na Educação Infantil e no Ensino Fundamental I) irá
ensinar às crianças as noções de ciência que se encontram organizadas e resumidas nos
currículos escolares, sem ter ele mesmo uma experiência científica prática. Sua formação não
está voltada para formá-lo e prepará-lo para o exercício da ciência e seus métodos e nem
mesmo para aprender conhecimentos específicos de qualquer área do conhecimento (da
Literatura à Matemática, da Filosofia à Geografia). O professor terá apenas algumas
orientações gerais sobre como ensinar estas disciplinas sem, contudo, realizar um maior
aprofundamento em qualquer uma delas. O passeio pela história deve ter nos ajudado a ver o
quanto a concepção de Comenius, seu livro didático, sua proposta de um professor como
mero repetidor de uma “partitura” se encontra presente no modelo de formação do pedagogo.
Ao discutir a crise da educação nos Estados Unidos dos anos 1950, a filósofa
Hannah Arendt destaca três pressupostos básicos que estariam na origem dessa crise. Para o
tema que estamos discutindo aqui, interessa-nos o segundo pressuposto apresentado por
Arendt, o qual revela de certa forma características gerais da formação do educador.
O segundo pressuposto básico que veio à tona na presente crise tem a ver
com o ensino. Sob a influência da Psicologia moderna e dos princípios do
Pragmatismo, a Pedagogia transformou-se em uma ciência do ensino em
108
geral a ponto de se emancipar inteiramente da matéria efetiva a ser ensinada.
Um professor, pensava-se, é um homem que pode simplesmente ensinar
qualquer coisa; sua formação é no ensino, e não no domínio de qualquer
assunto particular. (Arendt, 2003, p. 231)
Embora esteja se referindo a efeitos surgidos mais recentemente, pudemos
constatar que eles remontam a tempos um pouco mais distantes e surgem das tentativas de
constituir as ciências humanas segundo o modelo das ciências exatas, surgem da tentativa
de racionalizar o fazer pedagógico.
Nossa formação inicial não tem dado conta nem de aprofundar uma certa gama de
conhecimentos e nem sequer de nos levar a compreender como estes conhecimentos foram
construídos – a questão do método científico – ao longo da história. Temos no pensamento de
Jean Piaget (1970, p. 39) uma explicitação dos questionamentos que tento expor aqui:
No curso dos últimos anos cada vez mais se tem insistido – e não
deixaremos de repeti-lo – na lacuna fundamental da maioria dos métodos de
ensino que, numa civilização em grande parte baseada nas ciências
experimentais, negligencia quase totalmente a formação do espírito
experimental entre os alunos.
Negligencia-se a formação do espírito experimental entre os alunos e,
principalmente entre os estudantes de pedagogia. E nos vemos a braços com a tarefa de
compreender a crise da ciência sem mesmo termos compreendido um pouco melhor a ciência
antes dessa crise, a ciência da modernidade.
Nossa formação inicial se assenta na ideia de que um professor “pode
simplesmente ensinar qualquer coisa” (Arendt, 2003, p.231) pois a ele cabe somente
reproduzir os conhecimentos produzidos pelos cientistas ou pelos estudiosos e autores dos
diferentes campos do conhecimento. Mas agora, antes mesmo de termos conseguido avançar
numa pedagogia que dê conta de colocar na sala de aula uma dinâmica que permita a
experimentação e o espírito científico, os educadores observam, talvez sem compreender mais
a fundo, a discussão que coloca em questão o próprio sentido formativo do conhecimento, sua
transitoriedade. E talvez fique a pergunta: se ele é tão transitório, por que ensiná-lo?
Fica-nos ainda outra questão: de que forma isso tem a ver com a sala de aula? Que
consequências toda esta discussão pode trazer para nossas práticas pedagógicas concretas?
Para o nosso trabalho interessa de toda esta discussão a reflexão sobre o trabalho educativo.
Sendo o educar uma atividade humana, que acontece entre humanos, que se investiu de, que
reivindicou para si um estatuto de racionalidade científica, a crise da ciência deve repercutir
109
neste campo, deve trazer para a nossa área de atuação questionamentos úteis e consequências
ainda por serem avaliadas. Se a própria ciência moderna, que tanto defendeu uma objetividade
isenta e equidistante em relação aos fenômenos aos quais se dedica, vê-se às voltas com uma
crise que introduz a subjetividade como algo determinante e não mensurável, será que ainda
poderemos continuar a pensar em fórmulas racionalizadas de transmitir conhecimentos e obter
aprendizagem que, como vimos, nada têm de efetivamente experimental e científico?
Por outro lado, toda esta discussão nos permite questionar a racionalidade tão
propugnada pela modernidade, permite-nos compreender as insuficiências que são próprias do
modelo racionalista ao esquivar-se dos problemas que a complexidade impõe. Seja pelo fato
de que a ciência moderna chega à sala de aula como farsa encenada pelo livro didático e pela
exposição dogmática do saber, seja pelo fato de que a ciência moderna vê-se em crise na sua
forma mesma de produzir o conhecimento, sem dúvida tudo isto nos leva a perceber que
estamos diante de uma crise que afeta e abala um dos pilares da instituição escolar, o qual nos
conduziu a pensar na racionalidade técnica e científica como axioma da ação pedagógica.
110
A “equidade e produtividade” do modelo: mais questões em aberto
Nosso estudo histórico deve ter servido para mostrar o quanto a instituição escolar
teve entre suas bases de sustentação o surgimento do capitalismo industrial. Este complexo
processo, surgido a partir das revoluções burguesa e industrial, promoveu impactantes
transformações econômicas e sociais que afetam de forma indelével as visões e as práticas
educativas na instituição escolar.
As alterações advindas com o capitalismo industrial, se por um lado trouxeram
como consequência a produção de bens de consumo e ampliaram as facilidades e
comodidades na vida contemporânea (pense-se por exemplo na ampliação da produção e
circulação de alimentos e mercadorias, e na ampliação do acesso às infraestruturas básicas
como água e energia elétrica), por outro se fundamentam na submissão de massas numerosas
de trabalhadores às leis do capital.
Uma profunda transformação é operada na sociedade moderna em função das
enormes alterações causadas por este sistema produtivo. Em outras palavras, o trabalho
humano iria se transformar de forma radical: do artesão ao operário, o capitalismo iria
transformar a própria relação do homem com seu trabalho e com o produto de seus esforços.
O trabalho como esforço do homem para transformar a natureza, imprimindo nela
sua força, sua intencionalidade e sua expressão pessoal sofreria perdas nestas características
ao se transformar – em função dos ditames do modo de produção capitalista industrial – em
trabalho em série, dividido em etapas que não se comunicam entre si e sobre as quais o
trabalhador deixa de possuir o controle. O modelo de produção capitalista, ao transformar o
trabalho em tarefa, em etapa estanque e mecânica da produção, esvazia-o de seu significado,
retira dele seu caráter de realização humana e de manifestação do humano no mundo. O
desvelamento das contradições inerentes às relações entre capital e trabalho, a produção de
maiores desigualdades em função da exploração da mais valia, tiveram no grande filósofo
alemão, Karl Marx (1818 – 1883) sua melhor explicitação (Marx, 1965).
Temos também em Hannah Arendt o aprofundamento da análise sobre os
problemas colocados pela sociedade capitalista. Enfrentando as questões da condição humana
e os meios que a humanidade utiliza para superar e suprir as necessidades da vida, esta autora
introduz o conceito de labor humano e problematiza:
111
A revolução industrial substituiu todo artesanato pelo labor; o resultado foi
que as coisas do mundo moderno se tornaram produtos do labor, cujo destino
natural é serem consumidos, ao invés de produtos do trabalho, que se que se
destinam a ser usados. (Arendt, 2001, p. 137)
Sua análise avança para denunciar o problema que as transformações nas relações
de trabalho implicam. Ainda segundo Arendt (idem, p. 147):
Um dos óbvios sinais do perigo de que talvez estejamos a ponto de realizar o
ideal do animal laborans é a medida em que toda a nossa economia já se
tornou uma economia de desperdício, na qual todas as coisas devem ser
devoradas e abandonadas quase tão rapidamente quanto surgem no mundo, a
fim de que o processo não chegue a um fim repentino e catastrófico.
O século XX veria este modelo se espalhar por todo o planeta, colocando-nos nos
dias atuais diante do fenômeno da globalização. Iludidos pelas palavras de ordem da revolução
francesa – as tão sonhadas conquistas da liberdade, igualdade e fraternidade ou pelas promessas
de um bem estar social que decorreria do aumento da produção e distribuição de mercadorias –,
vemos surgir um sistema que, difundindo o mito da “aldeia global”, cria em nosso imaginário a
impressão de um discurso único e de um progresso para todos, mas que permanece atrelado aos
interesses hegemônicos de uma minoria (agora não mais restrita a esta ou aquela nação) que
impõe a lógica soberana do lucro, um pequeno grupo de atores globais que atua em seu próprio
benefício para uma concentração de riquezas talvez nunca antes experimentada na história.
A crise e a problemática das desigualdades e uma certa forma de propagandear o
fenômeno da globalização têm em Milton Santos análises acuradas que ajudam a
compreender a presença de uma ideologização maciça, que no mundo atual se torna o que este
autor chamou de “fabulação” (Santos, 2000, p. 9).
O mundo contemporâneo vem se organizando não mais em torno de potências
nacionais (que, até o início da segunda metade do século XX, exerciam seu domínio,
controlando determinadas áreas do globo e imprimindo seu ritmo, orquestrando a produção
nas diferentes regiões segundo a lógica da exploração da mais-valia e disputando os espaços
para a comercialização dos produtos). Segundo Santos, temos uma nova organização que se
dá em escala mundial e em torno de um motor único que “se tornou possível porque nos
encontramos em um novo patamar da internacionalização, com uma verdadeira mundialização
do produto, do dinheiro, do crédito, da dívida, do consumo, da informação” (idem, p. 15).
A competição se torna concorrência feroz, transmutada em competitividade.
Ainda com Santos (idem, p. 15):
112
A atual competitividade entre as empresas é uma forma de exercício dessa
mais-valia universal, que se torna fugidia exatamente porque deixamos o
mundo da competição e entramos no mundo da competitividade. O exercício
da competitividade torna exponencial a briga entre as empresas e as conduz
a alimentar uma demanda diuturna de mais ciência, de mais tecnologia, de
melhor organização, para manter-se à frente da corrida.
O modelo que vivemos, regulado pela economia do lucro e pela ilusão do consumo
como fonte de satisfação e resposta para o problema da existência, revela a precariedade de soluções
que não enfrentem questões estruturais. Instala-se uma crise que é permanente e estrutural, mas que
se manifesta ora numa, ora noutra região. Ainda segundo Santos (opus cit, p. 17):
Então, neste período histórico, a crise é estrutural. Por isso, quando se
buscam soluções não estruturais, o resultado é a geração de mais crise. O que
é considerado solução parte do exclusivo interesse dos atores hegemônicos,
tendendo a participar de sua própria natureza e de suas próprias
características.
Este modelo econômico leva a um acirramento na exploração das riquezas do
planeta (materiais ou humanas) que conduz a crises que, longe de serem momentâneas,
inscrevem-se no cerne do próprio modelo. E o escândalo da situação planetária que
presenciamos denuncia o caráter de inadequação estrutural do modelo. O problema ecológico
tem na análise do filósofo Félix Guatari (1990, p. 7) uma visão que nos obriga a pensar:
O planeta Terra vive um período de intensas transformações técnico-
científicas, em contrapartida das quais engendram-se fenômenos de
desequilíbrios ecológicos que, se não forem remediados, no limite, ameaçam
a vida em sua superfície. Paralelamente a tais perturbações, os modos de
vida humanos individuais e coletivos evoluem no sentido de uma
progressiva deterioração. As redes de parentesco tendem a se reduzir ao
mínimo, a vida doméstica vem sendo gangrenada pelo consumo da mídia, a
vida conjugal e familiar se encontra frequentemente “ossificada” por uma
espécie de padronização dos comportamentos, as relações de vizinhança
estão geralmente reduzidas a sua mais pobre expressão...
E se antes vimos que a ciência, em larga medida, conciliou-se com a igreja (adequando
seus discursos para se beneficiar da hegemonia que ela representava), nós a vemos agora sendo
colocada a serviço do capital. O desenvolvimento do “progresso científico” se atrelar aos interesses
das grandes corporações globais, que reclamam mais e mais inovações técnicas que permitam uma
exploração cada vez maior daquilo que Milton Santos chamou de mais-valia global.
113
Quando, na universidade, somos solicitados todos os dias a trabalhar para
melhorar a produtividade como se fosse algo abstrato e individual, estamos
impelidos a oferecer às grandes empresas possibilidades ainda maiores de
aumentar sua mais-valia. Novos laboratórios são chamados a encontrar as
novas técnicas, os novos materiais, as novas soluções organizacionais e
políticas que permitam às empresas fazer crescer a sua produtividade e o seu
lucro. (Santos, op. cit., p. 15)
E a fábula da “aldeia global” dissimula o fato de que o mundo se torna menos unido,
mais desigual, povoado por uma cidadania que, longe de se aproximar de uma convivência
universal mais solidária, perde-se no individualismo, amortece-se no consumismo. A vida no
mundo contemporâneo se apoia na exacerbação do individualismo consumista.
Na pós-modernidade, nesse nosso mundo contemporâneo, operou-se uma
libertação das tradições antigas que subjugavam o indivíduo, emancipando-o e o liberando das
concepções que o aprisionavam, por meio do medo e da culpa, ao pensamento religioso. O
estudo da História nos ajuda a compreender o processo de liberação experimentado a partir da
revolução científica. A este processo o influente historiador das religiões Mircea Eliade (1907
– 1986) chamou de dessacralização do homem e do mundo. Segundo ele “o homem moderno
a-religioso assume uma nova situação existencial: reconhece-se unicamente sujeito agente da
História, e recusa todo o apelo à transcendência” (Eliade, 1956, p. 210).
E, no entanto, liberado dos mitos e superstições que o jugo do pensamento
religioso impunha, o homem moderno perde a sensação de conforto e tranquilidade que a
resposta transcendental lhe proporcionava, na medida em que fornecia uma solução exemplar
para as questões e angústias da existência.
Solução exemplar, não somente porque é indefinidamente repetível, mas
também porque é considerada de origem transcendental e, por consequência,
valorizada como revelação recebida de um outro mundo, trans-humano. A
solução religiosa não somente resolve a crise, mas ao mesmo tempo torna a
existência “aberta” a valores que já não são contingentes nem particulares,
permitindo assim ao homem ultrapassar as situações pessoais e, no fim de
contas, o acesso ao mundo do espírito. (idem, p. 217).
Liberado, mas também alijado da resposta teológica e incapaz de encontrar ou
produzir respostas totais que ultrapassem as situações pessoais, vemos o individualismo eivado
de hedonismo surgir como regra de vida nas sociedades contemporâneas. A referência a si
próprio e à satisfação das necessidades/desejos pessoais se alia, no mundo moderno, ao modelo
de produção e circulação de mercadorias que nos relega à condição de homens/mulheres-massa.
Aprendemos por meio da mídia mundializada quais são os comportamentos capazes de nos
114
tornarem aceitos e felizes. O hedonismo da sociedade pós-moderna exacerba a máxima do
“mais prazer, tempo livre e consumo, menos trabalho, esforço e produção”.
O mundo burguês do século XX com seu “homem novo” inaugura o fenômeno do
homem-massa, o qual perde suas características de interioridade e de espiritualidade, esquecendo-se
ou se livrando do passado, mas frequentemente caindo numa rebeldia inócua ou num
embrutecimento vazio que se inebria no consumo como medida da felicidade. Nosso mundo é o
mundo do consumo, nossa sociedade é a sociedade de consumidores. Mas, numa estranha pirueta,
para que o indivíduo da sociedade de consumo possa se tornar sujeito, ele antes deve se tornar
mercadoria, desenvolvendo habilidades atraentes ao mercado de trabalho. Esvazia-se assim, a
dignidade do trabalho ao tornar o indivíduo mais um produto que espera ser consumido no mercado.
No livro Vida para consumo, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman (2008, p. 17 e
18) aponta para as novas características da mão-de-obra que são exigidas pelo capital. A busca
por um empregado mais flexível e disposto a todo e qualquer esforço para continuar sendo visto
e apreciado como mercadoria desejável se tornou corrente. Este novo empregado deve ser
alguém livre de vínculos e ligações emocionais, pronto a se moldar às mudanças de qualquer
ordem que se imponham na realização do trabalho, alguém que muda de emprego com
facilidade e que também não causará problemas à empresa quando tiver que ser descartado.
Instaura-se uma crise no sujeito cartesiano (aquele do “penso logo existo”) a quem
se atribuía certa soberania na relação com o objeto de consumo. E podemos entender com
Bauman (idem, 20) que:
Na sociedade de consumidores, ninguém pode se tornar sujeito sem primeiro
virar mercadoria, e ninguém pode manter segura sua subjetividade sem
reanimar, ressuscitar e recarregar de maneira perpétua as capacidades
esperadas e exigidas de uma mercadoria vendável.
E a escola, em todo este contexto, desempenha mais e mais seu papel de reprodutora
das relações sociais e econômicas que se estabelecem neste modelo. E exige-se da escola que
trabalhemos para formar “mercadorias” aptas a serem consumidas no mercado de trabalho.
Das análises que pudemos fazer sobre este pilar no qual se assenta nossa instituição
escolar – o capitalismo industrial e globalizado –, a partir do diálogo com autores como Marx, Arendt,
Santos, Guatari, Eliade, Bauman, mas que poderíamos acrescentar muitos outros, salta mais um
questionamento que o trabalho de Bourdieu e Passeron suscita: o problema das relações entre a Escola
e as classes sociais. Uma vez institucionalizado o sistema de ensino, este atuará para se perpetuar para
tanto deve prestar contas a quem o mantém. Dito de outro modo: como pudemos apontar pelo estudo
115
da História, a escolarização surge como demanda de uma classe – a burguesia – que vê nela o
instrumento para formação dos trabalhadores. Em Bourdieu e Passeron (1992, p. 64) temos que:
Todo sistema de ensino institucionalizado (SE) deve as características
específicas de sua estrutura e de seu funcionamento ao fato de que lhe é preciso
produzir e reproduzir, pelos meios próprios da instituição, as condições
institucionais cuja existência e persistência (auto-reprodução da instituição) são
necessários tanto ao exercício de sua função própria de inculcação quanto à
realização de sua função de reprodução de um arbitrário cultural do qual ele não
é o produtor (reprodução cultural) e cuja reprodução contribui à reprodução das
relações entre os grupos ou as classes (reprodução social).
O trabalho destes autores nos ajuda a compreender o modo de inculcação da
cultura dominante – que no mundo atual se manifesta pelo capitalismo globalizado – como
cultura legítima, cabendo, neste contexto, à escola sua reprodução e legitimação. Legitima-
se a competitividade do sistema, e a exclusão daqueles que não partilham de um mesmo
capital cultural se torna decorrência “natural”, dissimulando sua arbitrariedade e
perversidade. É esta invisibilidade dos mecanismos de exclusão que asseguram sua
reprodutibilidade. Ainda com Bourdieu e Passeron (idem, p. 218)
Assim, numa sociedade em que a obtenção dos privilégios sociais depende
cada vez mais estreitamente da posse de títulos escolares, a Escola tem apenas
por função assegurar a sucessão discreta a direitos de burguesia que não
poderiam mais se transmitir de uma maneira direta e declarada. Instrumento
privilegiado da sociodicéia burguesa que confere aos privilegiados o privilégio
supremo de não aparecer como privilegiados, ela consegue tanto mais
facilmente convencer os deserdados que eles devem seu destino escolar e
social à sua ausência de dons ou de méritos, quanto em matéria de cultura a
absoluta privação de posse exclui a consciência da privação de posse.
Toda esta reflexão nos permite questionar as tão propaladas “equidade e
produtividade” deste modelo. No mundo competitivo e no qual a exclusão já se coloca de
antemão como o destino naturalizado para uma enorme parte da população, que lugar existe
para o diferente, para a Diferença? E, mais ainda, se estamos atados, mergulhados mesmo
neste modelo econômico, que naturaliza a desigualdade e instrumentaliza a escola para a
reprodução deste estado de coisas, que lugar existe para se pensar e fazer uma outra escola?
Para criar outras relações no espaço educativo?
Distancio-me um pouco do debate com os tantos e tão importantes intelectuais e
pensadores de nosso tempo, sem deixar, no entanto, de reconhecer a pertinência, importância
e necessidade de suas reflexões, e volto-me à matéria viva de minha própria experiência que,
116
no partilhar cotidiano com tantos educadores, coloca-me de chofre uma pergunta (que eu
mesma não esperava): mas que raio é isto tudo? Ouço suas vozes que me indagam: O que isso
tudo tem a ver com a sala de aula e os meus alunos? Por que uma simples professora precisa
saber disso tudo? Não basta ser boa com crianças? É novamente um raio que me atinge. E me
devolve ao dia a dia, ao pequeno de nossas lidas diárias que, muitas vezes, afastam-nos das
reflexões mais amplas, cercam-nos pela correria e pelo imperativo do agir. E me dou conta de
que nossa formação quase nunca dá conta de religar os saberes criados no âmbito da produção
teórica, científica e intelectual com a experiência concreta na escola.
E, assim como nossa formação dos educadores é falha na compreensão da ciência e
dos seus métodos de produção de conhecimento, é falha também na compreensão das relações
mais amplas da sociedade, nos seus mecanismos de produção e reprodução dos poderes que se
encontram na base da desigualdade social e é falha, ainda, em propiciar uma articulação destes
saberes com as práticas que se desenvolvem na vida da escola, no nosso dia a dia.
Aqui neste trecho tenho enfocado a problemática das relações econômicas e sociais
que permeiam nosso mundo. Mas nem mesmo uma visão sobre o que seja o capitalismo, a
democracia ou as correlações entre as forças políticas e econômicas que regem o mundo
contemporâneo encontra uma compreensão mais crítica e acurada na formação inicial do
pedagogo. O próprio entendimento sobre o capitalismo e sua lógica assentada na produção do
lucro muito frequentemente não encontra uma explicitação e análise que possa contribuir para
uma tomada de consciência sobre o nosso modo de estar e agir no mundo. Naturaliza-se a vida
de e para o consumo como a melhor consequência do progresso humano e as ideologias que se
colocam como alternativas (o socialismo, o comunismo) são vistas como baseadas em sistemas
fechados (ditatoriais mesmo) que retiram as liberdades individuais. E mesmo quando somos
alvo de uma formação mais crítica, que nos convida à leitura de teóricos que (como os autores
citados acima) produziram interpretações abrangentes, em nossa formação este conhecimento
se apresenta fragmentado e desarticulado da realidade (ou pelo menos de nossa realidade mais
concreta da sala de aula, dos alunos, da escola). As autoras Garcia e Alves (2000, p. 84 e 85)
atentam para esta questão, discutindo as reações dos estudantes quando solicitados a articular os
conteúdos aprendidos nas disciplinas fundamentais da educação e suas observações de estágio.
Segundo elas: “para eles são fragmentos de um conhecimento desarticulado que não lhes parece
ter qualquer sentido, pois não os ajuda a compreender o real”.
As últimas observações deverão ser retomadas nas conclusões deste trabalho. Para o
momento, interessa-nos destacar os problemas levantados pela análise que fizemos, ainda que
117
geral, do capitalismo, suas crises consecutivas e que se constituem em uma crise estrutural.
Interessa-nos deixar como questão o quanto achamos aceitável este modelo cujas características
se ligam ao esvaziamento da dignidade do trabalho, suas características que produzem
desigualdade, um sistema que atua como explorador/destruidor das riquezas naturais do planeta
e que, em última análise, transforma o homem em mercadoria. Dito de outro modo, as
observações que fizemos sobre o sistema econômico sob o qual vivemos tiveram por objetivo
descontruir sua lógica oculta e colocar em questão sua pretensa “equidade e produtividade”.
Porque a tarefa de educar, mesmo quando se age tentando cobrir-se com um manto de
uma suposta neutralidade, revela-se impregnada de nossas concepções de homem e de mundo, de
ideologia e valores, é uma tarefa que envolve nosso posicionamento perante o mundo.
118
E a infância? O que é ela no mundo atual?
Nosso estudo, ao retomar as análises de historiadores como Ariés, Manacorda, Varela,
Hamilton, Julia e Cambi, ajudou a explicitar a importância do surgimento da noção de infância na
constituição da escola, mostrando que é necessário compreender a interdependência entre infância e
escola. À construção de uma percepção de uma etapa diferenciada da vida humana correspondeu o
isolamento desta população em espaços destinados à sua “civilização” – a escola. Varela e Alvarez-
Uria (1992, p. 78) destacam este caráter de enclausuramento e moralização que os projetos
religiosos (tanto católico quanto protestante) tiveram e, ainda, as perspectivas higienistas às quais se
vinculavam e que se difundiram a partir do século XVII. Segundo eles:
O isolamento converte-se assim num dispositivo que contribui para a
constituição da infância ao mesmo tempo que o próprio conceito de infância
ficará associado de forma quase natural à demarcação espaço-temporal.
(Grifo meu na palavra isolamento).
Muito lentamente iria se constituir esta separação entre infância e mundo adulto,
que seria também o seu isolamento do mundo adulto, da vida comum de todos, ou o que Ariés
chamou de quarentena e que colocaria a escola como espaço e meio de educação.
Destaca-se ainda do estudo da História que este processo não se deu de forma linear –
não poderíamos falar em uma escolarização institucional e difundida na sociedade até o surgimento do
estado moderno. Cumpre ressaltar, ainda, que o aparecimento da escola não se deu como continuidade
ou como evolução lenta e gradual em direção a formas mais aperfeiçoadas de organização social.
Apoio-me em Hamilton, em seu ensaio Notas de lugar nenhum (2001), para com ele enfatizar que “a
história da escolarização não é idêntica à história da educação” (p. 51). Depreendo, deste estudo, as
manobras colocadas em ação pelo pensamento do liberalismo econômico, que defendiam o Estado
como responsável pela criação e manutenção de instituições capazes de treinar e civilizar a população
– mas que, em última análise, atrelaram-se aos seus interesses econômicos – apropriando-se de
discursos da tradição (Comenius e outros) para reforçar a ilusão de uma instituição universal e eterna
(Varela e Alvarez-Uria, idem, p. 68), uma instituição que, supostamente, sempre existira:
Se a Escola existiu sempre e por toda parte, não só está justificado que
continue existindo, mas também que sua universalidade e eternidade a fazem
tão natural como a vida mesma, convertendo, de rebote, seu questionamento
em algo impensável ou antinatural. Isso explica por que as críticas mais ou
119
menos radicais à instituição escolar são imediatamente identificadas com
concepções quiméricas que levam ao caos e ao irracionalismo.
Naturalizou-se no processo histórico, nossa percepção da infância. Uma vez criada
essa noção e, estando ela ligada à construção de espaços para o seu confinamento, naturalizou-se
também a compreensão de que “lugar de criança é na escola e escola é lugar de criança”. Mas
como não discutir a questão da infância se nossa tarefa é conviver com ela e educá-la, na escola?
Retomo aqui algumas ideias que apresentei num artigo intitulado Proposta para
uma escola deste milênio (publicação eletrônica sob a coordenação da professora Mantoan) que
podem contribuir para aprofundar esta temática. Do artigo retomo um aspecto que não pode ser
esquecido, o fato de que o tempo de maturação e de dependência que nós, seres humanos, temos
ao nascer é maior do que em qualquer outra espécie. A plasticidade de nosso cérebro, nossa
biologia humana é a mais incompleta ao nascermos. Temos um longo período de dependência
de outro ser humano para garantir nossa sobrevivência e poderíamos lembrar os mitos de
meninos-lobos para dizer que só nos tornamos humanos no convívio com humanos.
Mas, para além deste período em que somos totalmente dependentes, estende-se
esta criação da cultura humana que é a infância. Nossa cultura humana, com o objetivo de
perpetuar-se, prepara as novas gerações e as introduz ao nosso modo de vida. E esse tempo de
preparação se torna mais longo à medida em que cresce o cabedal de conhecimentos e
comportamentos construídos por essa mesma cultura. É no pensamento de Arendt que
encontramos a inspiração para essas reflexões, quando ela aponta para o fato de que a criança
humana nasce para a vida nos seus aspectos naturais e biológicos, nasce para sobreviver como
continuidade natural da espécie, mas, também, nasce para um mundo de construções
simbólicas, de condutas esperadas, de cultura. Assim, a autora nos introduz a uma das questões
essenciais da educação ao perguntar: “por que educamos?” (Arendt, 2003). E a resposta é a
natalidade, o fato de que seres nascem para o mundo e de que seres humanos nascem para o
mundo humano. E esta realidade exige “um processo de iniciação em seus significados,
práticas, sentidos e linguagem, ou seja, exigem a formação por meio de um processo educativo”
(Carvalho, 2009, p. 19). E este processo educativo é colocado a cargo do professor e da escola.
E neste ponto se faz necessário buscar compreender o compromisso que o mundo
adulto assume – por meio da escola e do professor – face ao aparecimento desse novo no mundo – a
criança. E esse mundo adulto da pós-modernidade se vê diante de crises (esboçadas nas discussões
anteriores sobre a ciência e o capitalismo globalizado), em que a perda das respostas nas quais nos
apoiávamos – a fé, a razão, a matéria e que constituíam o amálgama social que parecia nos sustentar
120
– desestabiliza e nos coloca diante de incertezas que são difíceis de conviver quando se tem diante
de si a criança pela qual nos tornamos responsáveis. Da arte (a música e o cinema) retiro dois
exemplos para expressar as angústias e o insólito desses nossos tempos. Uma bela canção do
compositor popular Ivan Lins, “Aos nossos filhos”, gravada nos anos 1970, quando ainda vivíamos
sob a ditadura militar, vem-me à cabeça. Diz assim nos seus primeiros versos:
Perdoem a cara amarrada, perdoem a falta de abraço,
Perdoem a falta de espaço, os dias eram assim.
Perdoem por tantos perigos, perdoem a falta de abrigo,
Perdoem a falta de amigos, os dias eram assim.
O segundo exemplo vem com o filme “A vida é bela”, dirigido e protagonizado
por Roberto Benigni, que conta a história de Guido, um italiano que, levado para um campo
de concentração nazista durante a Segunda Guerra mundial, usa sua imaginação para fazer seu
pequeno filho acreditar que estão participando de uma grande brincadeira, com o intuito de
protegê-lo do terror e da violência que os cercam.
Como educadores, Hannah Arendt nos faz atentar para este fato, estamos diante
da criança e do jovem como representantes de um mundo pelo qual devemos assumir a
responsabilidade. Nosso papel é o de introduzi-la no mundo, ensiná-la sobre seus significados
para que ela possa frui-lo tal como ele é. Mas parece que nós mesmos, os adultos, não temos
tanta certeza de que queremos este mundo tal como é, e nos desculpamos por ele. As
incertezas e os perigos que nos envolvem no turbilhão da pós-modernidade nos esvaziaram de
nossas certezas e corremos o risco de oscilar entre o pedir perdão e o fantasiar uma realidade
colorida. Esta última, principalmente, é uma especialidade dos programas de entretenimento
que a mídia veicula, que o consumo promete.
Esse mundo no qual habitamos, por um lado esvazia-nos das certezas e por outro
proclama-se como o “futuro prometido”, e mergulha-nos numa vida de “progresso” e
desenvolvimento técnico que oculta a barbárie ética necessária para manter a fábula da aldeia global. E
se o mundo adulto, vendo-se insatisfeito, enfrenta dificuldades para assumir perante a criança isto que
aí está, temos visto, por outro lado, um movimento muito disseminado de colocar na criança o centro
de atenções – quem sabe não está nela a nossa redenção? Nos séculos XIX e XX se desenvolveu
fortemente a ideia da importância da educação, que passa a ganhar centralidade no debate dos projetos
políticos e econômicos em disputa: difunde-se o “mito da educação” e a seu lado o “mito da infância”.
Creio que é necessário pensarmos em como a noção de infância tem sido vivida na
contemporaneidade, na pós-modernidade. Passeando pela história pudemos ver o quanto se
121
transformou esta noção ao longo do tempo. De um status praticamente inexistente ao Estatuto da
Criança e do Adolescente temos uma mudança na forma de ver e se relacionar com a criança
bastante importante nos últimos tempos. De uma existência ameaçada pela rejeição dos pais (na
Antiguidade o pai tinha o poder de rejeitar os filhos, em especial as meninas e os que nasciam
com problemas físicos), passou-se na Idade Média, com a afirmação do cristianismo, a uma
profunda transformação na célula educativa fundamental e primária: a família (Cambi, idem, p.
133). Esta transformação se deu também e concomitantemente em relação ao modo de se encarar
a mulher, que passa a ter papel relevante no cuidado amoroso com a prole. A ambiguidade e
dualidade fundantes do pensamento cristão – dividido entre Deus e o Diabo, entre o Bem e o Mal,
entre o Espiritual e o Mundano – difunde uma visão da criança que, assim como a visão de
mulher (ora vista como Eva corruptora, ora como Virgem Maria redentora), oscila entre anjo e
demônio, entre a inocência e o pecado. E, a par com as transformações sociais, econômicas e
culturais, veríamos a modernidade propor outro modo de se pensar, cuja síntese podemos
identificar no pensamento de Rousseau e o seu “bom selvagem” – uma infância pura e virtuosa,
que deveria ser afastada do convívio social, fonte de todo mal e corrupção.
A Pedagogia, nos séculos XIX e XX, investe-se de um pensamento puericêntrico –
centrado na criança – e surgem as escolas ativas que ganham forte repercussão no debate pedagógico,
filosófico, político, mas que permanecem experiências isoladas – tornando-se alvo de críticas, de
debates, acusadas como “concepções quiméricas” –, mas que não chegam a abalar a instituição escolar
e a vasta estrutura dos sistemas tradicionais de ensino que se pulverizaram pelas sociedades.
Porém, ainda que na escola os modelos educacionais continuassem reproduzindo o
caráter autoritário, doutrinário e conformista (próprio do pensamento religioso), a sociedade (Estado,
família, meios de comunicação) iria viver grandes alterações no modo de entender a infância com o
surgimento do “Século da Infância”. E, influenciado pela modernidade científica e industrial, veríamos
ser difundido o apelo à “criança cidadã”. Reforça-se o “mito da educação” e tanto as pedagogias
renovadoras do ocidente quanto as revolucionárias (veja-se as produções dos pedagogos soviéticos)
assumiam a pedagogia como espaço e ação para reprojetar o homem. Agora protegida e merecedora
de cuidados e atenção, a infância ganha o centro e o foco das atenções sociais.
E proliferou a produção de saberes sobre a criança que se tornou objeto da ciência
positiva. As reflexões críticas de Jorge Larossa (2000, p. 183) sobre o “enigma da infância”
nos atentam para o fato de que:
122
Podemos, no entanto, abrir um livro de psicologia infantil e saberemos de
suas satisfações, de seus medos, de suas necessidades, de seus peculiares
modos de sentir e de pensar. Podemos ler um estudo sociológico e
saberemos de seu desamparo, da violência que se exerce sobre elas, de seu
abandono, de sua miséria.
Toda essa produção, que se desenvolveu na esteira do pensamento científico
moderno, visa nomear, explicar e compreender com o objetivo de interferir e converter a
criança “na matéria prima para a realização de nossos projetos sobre o mundo, de nossas
previsões, nossos desejos e nossas expectativas sobre o futuro” (idem, 188). Sobre este uso e
manipulação, Arendt nos chamava a atenção para o caráter autoritário e totalitário de uma
educação que retira da criança – essa recém-chegada – a oportunidade de introduzir com sua
chegada o novo – o inesperado e imponderável – no mundo.
Nossa época contemporânea se vê às voltas com intensas discussões sobre a
infância, desenvolve políticas educacionais e planos mil para ela “feitos tal qual se fazem os
planos e projetos: com um diagnóstico da situação, objetivos, estratégias e uma série de
mecanismos de avaliação” (|Larossa, idem, p. 184).
Mas, antes mesmo que se pudesse beneficiar deste novo lugar na sociedade
ocorreu que, assim como o indivíduo na contemporaneidade se vê transformado em “massa”
sujeita aos mecanismos de controle ideológicos, em mercadoria que deve se esforçar para
estar sempre desejável no mercado, temos a criança que é apreendida pela lógica do consumo
e se torna ela mesma uma fatia do mercado.
A criança, na feliz expressão que dá título ao documentário da cineasta Stela Renner,
torna-se “a alma do negócio” (Documentário Criança, a alma do negócio. Ver referência). Alvo
da pesada propaganda, o documentário mostra as mudanças que ocorreram a partir da ampla
presença e penetração da mídia nos lares de hoje em dia. Dados de diversas fontes de pesquisas
estatísticas, apresentados no documentário, mostram que as crianças passam cada vez mais tempo
diante da TV, recebendo informações das quais elas ainda não são capazes de separar a parte real
da imaginária. Um mundo mágico e fantasioso se coloca diante delas e a publicidade promete,
mais do que a alegria da posse, a inscrição no mundo dos consumidores, a inserção na
comunidade cujos pares são também consumidores dos mesmos produtos.
Em artigo de 2009, o professor Jean-Paul Laurens (Universidade Paul Valery,
Paris) sintetiza o problema do assédio da mídia sobre esta geração:
123
A escola nunca teve o monopólio da educação das crianças. Essa função é
compartilhada com a instituição religiosa e a família. Em certos casos, com a
natureza (a escola da vida). Hoje, daria para falar em escola das ruas. Desde
os anos 1960, a escola oficial deve atuar junto com um novo parceiro no
campo da educação dos jovens: os meios de comunicação de massa.
Televisão, rádio, cinema e jornais, queira-se ou não, desempenham um papel
de verdadeira “escola paralela” na socialização.
Embora saibamos que, ao longo da história, outras instituições se arrogaram a tarefa
de educar e que muitas outras manifestações (a Arte, a Arquitetura, a Música etc.) concorreram
para realizar a formação humana (como vimos no terceiro capítulo), tem-se hoje um acesso à
criança que se faz por meio de todo o aparato midiático que toma proporções nunca antes
experimentadas na História. Laurens chama a atenção para o problema de uma mídia que, por
um lado, transforma as crianças em adultos “prematuros” e, por outro, infantiliza os adultos.
A escola que é, ou deveria ser, o lugar de apresentar o mundo às novas gerações,
vê-se ameaçada por este assédio midiático e continua empenhada em apresentar um mundo
velho e enrijecido. Uma rápida comparação entre um livro didático e um programa infantil
pode nos dar uma medida do desinteresse de um e o deslumbramento do outro aos olhos de
uma criança. Uma reação de indignação da parte dos educadores tem, muitas e muitas vezes,
como resposta uma rejeição a esta linguagem, a estes novos recursos, uma recusa em permitir
a entrada de novas tecnologias no espaço da aula ou, quando cede a elas o faz segundo a velha
forma expositiva, usando os recursos tecnológicos segundo a lógica do “lousa e giz”.
Face à velocidade e à facilidade de acesso à informação ainda vemos a escola
fechada em si mesma, debruçada sobre suas velhas formas de ensinar conhecimentos para os
quais dificilmente as crianças de hoje percebem valor e utilidade. A tarefa legada à escola de
introduzir a criança no mundo vê-se comprometida. Uma escola presa ao passado, anacrônica
e ultrapassada pelo modo de vida na sociedade atual enfrenta um processo de desvalorização
por parte da sociedade. Incapaz de transformar-se, a escola vê-se questionada e boa mostra
disso podemos depreender da problemática da violência nas escolas.
Outro sintoma desta situação de desvalorização que a escola tem sofrido pode ser
exemplificado pelo crescimento dos movimentos por uma sociedade sem escolas. Especialmente
na Internet encontramos hoje divulgação das ideias da educação sem escolas ou da escolarização
no lar. Cito um vídeo que me chamou especial atenção: a palestra de um menino de doze anos
124
proferida na Universidade de Nebrasca (EUA), que integra o ciclo de palestras TEDx42. O
menino, Logan LaPlante, conta sobre sua experiência de ter deixado o sistema tradicional de
ensino e adotado o que ele chama de Hackschooling – rackear as aprendizagens pela rede, ou no
grupo de convívio (família, amigos), ou ainda em lugares como acampamentos, oficinas etc. – e
de como ele aprende fazendo experimentos ou vivenciando situações diferentes. A principal
ênfase dos seus quase doze minutos de discurso é centrada no foco do “ser feliz (palavra que ele
repete cerca de dezoito vezes) saudável e criativo”. O movimento em torno da desescolarização
parece nos dizer que a única saída para a educação é a dissolução da escola. Será?
Nossa sociedade de consumo vendeu o sonho de um estar no mundo sempre bem,
sempre feliz, difundiu uma ideia de felicidade como uma lista de compras. E, como o consumo
precisa sempre se renovar (problema já apontado por Marx nas análises sobre o capital), cria-se
incessantemente novos produtos, fazendo com que a busca nunca chegue ao fim. É em Bauman que
encontro melhor síntese para esta corrida que resulta cada vez mais em infelicidade e insatisfação e
que impele o indivíduo a continuar na busca (Bauman, 2009, p. 18).
Alterando sutilmente o sonho da felicidade – da visão de uma vida plena e
satisfatória para a busca dos meios considerados necessários para que uma vida
assim seja alcançada –, os mercados fazem com que essa busca nunca possa
terminar. Seus alvos substituem uns aos outros a uma velocidade estonteante.
Na sociedade dos consumidores o valor supremo é o de uma vida feliz. Sua
promessa é a de um bem-estar aqui e agora (não mais no futuro ou no além vida). Uma
sociedade cujo valor central é o da felicidade instantânea e perpétua, que se recusa a tolerar
qualquer dor ou insatisfação (Bauman, idem, p. 60). E, no entanto, descobrimos que, ao
contrário das promessas, o consumo não se constitui em sinônimo de felicidade. Constatamos
que “a promessa de satisfação só permanece sedutora enquanto o desejo continua insatisfeito”
(ibidem, p. 63). A insatisfação e a insegurança do mundo adulto com a vida por meio do olhar
agudo de Arendt nos levam a reflexões (Arendt, idem, p. 241):
O homem moderno, por outro lado, não poderia encontrar nenhuma
expressão mais clara para sua insatisfação com o mundo, para seu desgosto
42 TED (Technology, Entertainment, Design) é uma série de conferências realizadas na Europa, na
Ásia e nas Américas pela fundação Sapling, dos Estados Unidos, sem fins lucrativos, destinadas à
disseminação de ideias – segundo as palavras da própria organização, "ideias que merecem ser
disseminadas". Suas apresentações são limitadas a dezesseis minutos, e os vídeos são amplamente
divulgados na Internet. Entre os palestrantes estão Bill Clinton, Al Gore, Bill Gates e diversos
ganhadores do Prêmio Nobel.
125
com o estado de coisas, que sua recusa a assumir, em relação às crianças a
responsabilidade por tudo isso.
E vemos uma tendência, um movimento, um discurso que leva a colocar na satisfação
dos desejos da criança um substitutivo e uma forma de amenizar as dores da existência. Nossa
incerteza com as próprias certezas, nossa recusa em assumir este mundo que iremos legar às novas
gerações, parece buscar na espontaneidade, na inocência e verdade do ser criança uma resposta para
o estar no mundo. E a tão sonhada criança cidadã, – talvez por não estarmos tão certos dos
significados desse exercício de cidadania, talvez por não nos termos dado conta da complexidade e
dificuldade que envolve a cidadania como atividade política coletiva entre adultos, ou talvez por
nossa infantilização –, se vê alçada ao status de rainha. A infância nunca foi tão rainha.
A título de ilustrar o problema bastaria ligar a TV. Mesmo que estejamos em uma
programação adulta, veremos o assédio da propaganda feita com a mensagem de consumo guiada
pelos desejos da criança. Vendem-se produtos alimentícios, automóveis, roupas, tudo, praticamente
utilizando a criança como garota propaganda. Do menino que imagina o pai como um gigante
porque dirige certo tipo de caminhonete à menina que diz à mãe e ao vendedor qual a marca de
presunto deve ser comprada, passando por incontáveis exemplos, vemos uma apropriação da
infância que está muito longe da escola, que nada tem a ver com a escola, mas que forma e informa
a esta criança que nos vem ao encontro na escola. E isto não tem nenhuma relação com questões
como classe social ou nível cultural das famílias. É um fenômeno difuso por toda a sociedade. Não é
possível pensar a educação sem questionar o que se tem feito por meios dos mecanismos midiáticos.
A criança como o novo que chega (para um mundo adulto que se nega a aceitar o
que fez do próprio mundo, que teme o totalitarismo que o traumatizou, mas que também
rejeita os esforços que se impõem para equilibrar direitos e deveres numa sociedade
democrática) recebe a responsabilidade de mudar o mundo. Arendt adverte para a gravidade
dos riscos de uma educação que não intervenha na infância, deixando-a à própria sorte. Diante
do medo de “arrancar das mãos da criança a oportunidade de trazer o novo” vemos o mundo
adulto abrir mão de agir sobre e com a infância, submetendo-se aos seus ditames e caprichos.
É o monólogo da infância ao qual este adulto aquiesce. Cria-se uma outra forma de abandonar
a criança ao seu mundo, criando uma linha a nos separar. E com tudo isto perde-se de vista
que é no diálogo entre o velho e o novo que se pode preservar e se renovar a vida.
Até aqui discorremos sobre o processo de formação da escola para desvelar os
paradigmas que na sua constituição se engendraram. Até aqui buscamos explicitar a compreensão
acerca da instituição escolar e do quanto o próprio processo histórico que a constituiu marca o tipo
126
de relação entre professor e aluno que deverá ocorrer no espaço escolar. Este trabalho
fundamenta-se na ideia de que de todo este processo histórico constituiu um tipo de instituição
cujas características “já não servem à vida, já não preparam para a vida” (Freinet) dos dias de hoje
e menos ainda para a promoção de uma educação inclusiva. Este estudo colocou-se para mim
como forma de entender o mundo no qual eu vivo e assim, pensar interpretações para a pergunta:
como foi que a escola se tornou o que ela é hoje? Pois, embora tenhamos crescido acreditando no
mito da educação, acreditando que ela poderia transformar a sociedade, vemos que a sociedade
determina o modo como a escola se produz e o modo como ela deve reproduzir esta sociedade.
Mais uma vez as exortações de Mantoan (2003, p.15) me amimam a empreitada:
A escola se entupiu do formalismo da racionalidade e cindiu-se em
modalidades de ensino, tipos de serviço, grades curriculares, burocracia.
Uma ruptura de base em sua estrutura organizacional, como propõe a
inclusão, é uma saída para que a escola possa fluir, novamente, espalhando
sua ação formadora por todos os que dela participam.
Pode parecer simples concluir que o formato desta instituição atrapalha e inibe a
possibilidade de se realizar uma educação na qual professor e aluno trabalhem juntos na produção
de aprendizagens, atrapalha e inibe a consecução do objetivo de permitir que todos os alunos
sejam respeitados nos seus ritmos e possibilidades. Mas acho que não estaria errando ao concluir
por esta inadequação inscrita nas próprias origens da instituição escolar, na sua genealogia.
O fazer pedagógico se naturalizou na instituição escolar a tal ponto, o sistema da
aula que emana do professor para o aluno arraigou-se de tal maneira, que se torna difícil
enxergar as inadequações que lhes são próprias, formam-se imagens abstratas da escola, do
professor, do aluno. E passa-se a lidar com abstrações que pouco contribuem para uma
alteração efetiva nesta problemática. Um olhar mais atento para dentro da escola,
especialmente se focarmos nos níveis escolares que trabalham com adolescentes, certamente
mostrará situações de litígio entre professores e alunos que não são expressas, enormes
dificuldades nas relações entre professores e alunos poderão ser percebidas. As coisas não
acontecem segundo as prescrições dos manuais ou tratados pedagógicos.
Um exemplo interessante é dado pelo sociólogo francês François Dubet que, em
entrevista concedida à Revista Brasileira de Educação (Dubet, 1997, p. 222-231), relata as
dificuldades que encontrou “quando um sociólogo quer saber o que é ser professor” (título da
entrevista). Tendo se sentido desafiado pelas descrições que os professores (com quem trabalhava
num projeto de pesquisa) faziam da profissão, Dubet resolveu lecionar, por um ano, aulas de
127
História e Geografia para adolescentes. Suas observações, no trabalho direto com eles, levaram-
no a uma compreensão da complexidade das relações que se estabelecem no ambiente escolar.
Segundo Dubet (idem, p. 223): “realmente, a relação escolar é a priori desregulada. Cada vez que
se entra na sala, é preciso reconstruir a relação: com este tipo de alunos ela nunca se torna rotina”.
Assim, pois, para que possamos repensar a educação numa perspectiva inclusiva e
de qualidade para todos os alunos é necessário identificar as características que estão inscritas
no modelo tradicional e que obstruem a construção de um espaço inclusivo, de um espaço
mais orgânico e humanizado. É necessário, pois, proceder a uma desconstrução deste edifício
escolar, para podermos fazer sua reconstrução em outras bases. Sei, porém, que é necessário
compreender as tantas dificuldades que têm sido vivenciadas por tantos educadores, que há
também complexidades importantes a envolvê-los.
É neste sentido que procedermos a seguir a uma explicitação de algumas
características deste modelo de escola que surgiu – fortemente inspirada nos paradigmas da
ciência moderna, ainda com profundas referências nas visões da fé e de sacerdócio da
educação (embora laica), e tendo sido adequada aos interesses econômicos que a sociedade
capitalista impõe – e que, a meu ver, são características que, envolvendo o ambiente escolar e
as práticas pedagógicas ali presentes, dificultam a transformação da escola.
Assim, veremos a seguir as características de que vimos falando e que constituem hoje
a instituição escolar. As três primeiras características estão mais ligadas a aspectos relacionais entre
os atores da cena escolar (o professor, o aluno e o conhecimento) e aos papéis que se estabeleceram
para eles. As quatro últimas estão mais ligadas ao ensino e às práticas pedagógicas em si.
128
Características da escola e do ensino
1. Identidades fixadas para os sujeitos na escola
Salta do estudo da genealogia da escola todo o esforço realizado na elaboração de
um conhecimento racional e sistemático, na construção de um modelo explicativo unitário do
mundo, na separação entre fé e realidade natural e na busca por submeter a natureza, por meio
dos processos de racionalização científica, ao controle e manipulação do homem.
O afã de conhecer, que no paradigma da modernidade ganha no conhecimento
científico status de verdade, teve na educação importante repercussão, atingida diretamente pela
revolução científica. Busca-se a partir de então a racionalização dos saberes educacionais; o
foco investigativo dirige-se tanto à forma de transmissão dos conhecimentos – ensino e
aprendizagem – quanto ao objeto desta transmissão – a criança. A produção de um saber
racional e desencarnado, movido pela racionalidade científica iria colocar a criança como foco e
objeto de conhecimento e se destinaria a prescrever modelos para a pedagogia. A suposição de
que podemos saber tudo sobre a criança e, portanto, de posse desse saber agir sobre ela está no
cerne da racionalidade técnico-científica da modernidade. Mas, a pós-modernidade viria nos
chacoalhar estas certezas, conforme já esboçamos ao discutir a questão da infância e que retomo
com Larossa a reflexão crítica para esse afã esquadrinhador (Larossa, 2000, p. 184): “a infância
é algo que nossos saberes, nossas práticas e nossas instituições já capturaram: algo que podemos
explicar e nomear, algo sobre o qual podemos intervir, algo que podemos acolher”.
A criança ganha assim uma certa identidade, para ela fixada por nossos saberes
racionais e técnicos. As ciências que orbitam em torno da educação nos dão – especialmente no
período de formação para a profissão de educador – um vasto aparato explicativo sobre a infância,
o adolescente. E vemos que se trata de uma criança ou adolescente genérico, alguém que, tornado
objeto de estudo racional, nos é apresentado já dissecado, esquadrinhado nas suas características,
mas que nunca é a criança concreta, de carne e osso com a qual nos deparamos no nosso dia-a-dia
na relação educativa. “As crianças, esses seres estranhos dos quais nada se sabe, esses seres
selvagens que não entendem nossa língua” (idem, p. 183).
Mas, se nos inclinássemos a pensar que a esta identidade fixada pelos cânones
científico, a instituição escolar opôs o professor, cuja identidade fixada pelo seu papel, seria
supostamente a do detentor do saber, a fonte da autoridade, vimos que nas continuidades e
129
descontinuidades do processo histórico este não foi o papel e nem a identidade a ele
destinados. Como vimos na genealogia da instituição escolar, instituiu-se como papel do
professor – já na sua gênese – a reprodução de saberes que se produzem alhures. Sua
identidade é fixada como a de alguém que não produz saberes, nem sobre o mundo e nem
sobre a sua própria profissão, alguém que só reproduz os saberes autorizados pelo crivo da
racionalidade técnica. Retomo o diálogo com Geraldi (2004, p. 12), que nos recorda sobre o
momento da emergência da profissão de professor:
Deste ponto de vista, o processo de educação se dá como se um de seus
agentes, o professor, executasse uma partitura. O professor não precisa ser
douto, mas saber tudo o que deve fazer, e este “tudo” lhe é dado nas mãos
pelos doutos, que preparariam o que ensinar e como ensinar.
Na pequena genealogia da escola realizada neste trabalho, pudemos ver também
que a educação, durante muito tempo na História, dava-se entre o mestre e seu discípulo.
Geraldi salienta que neste quadro o mestre era alguém que produzia determinado saber. Alguém
que investigava a natureza, o mundo, as pessoas. Como vimos em nosso estudo, aquele que
ensinava um ofício ao seu aprendiz possuía um conhecimento próprio, era autor de seu ofício e
trabalhava em cooperação com o aprendiz. Mas, do mestre de seu ofício ao operário da fábrica,
ocorre uma desapropriação de seus saberes, que também orienta o trabalho do professor. Sua
identidade foi fixada como a de reprodutor de conhecimentos que ele não produz. O papel a ele
atribuído foi o de mantenedor da ordem, de transmissor de conteúdos, de disciplinador. Ainda
que desvalorizado, atribuiu-se ao professor um lugar e um papel de superioridade e mando
sobre a criança, mas de inferioridade em relação a todo o resto da sociedade.
A criança passa a ser vista e concebida como objeto a que as ciências dirigem suas
vontades de saber e, no aprofundamento dos poderes explicativos sobre a natureza, os
fenômenos e o homem, ganham o foco a pessoa com deficiência e a criança com deficiência.
Surgem as incontáveis classificações, hierarquizações e discriminações de que o “olhar
clínico” se torna instrumento. Fixa-se, a partir de um rótulo, a identidade deste outro: o que
foge à norma, o diferente. O filósofo Deleuze, cuja obra tratou de compreender a questão da
diferença, chama nossa atenção para o problema da identidade (Deleuze, 2009, p. 8):
O primado da identidade, seja qual for a maneira pela qual esta é concebida,
define o mundo da representação. Mas o pensamento moderno nasce da
falência da representação, assim como da perda das identidades, e da
130
descoberta de todas as forças que agem sob a representação do idêntico. O
mundo moderno é o dos simulacros.
A escola tradicional – uma vez fixadas as identidades professor e alunos – foi o
campo fértil para o surgimento de relações prescritas para estas identidades. Relações entre
protótipos: o professor que ensina e o aluno que tem que aprender. E, em tudo isso, perde-se
a subjetividade, desaparece a relação de alteridade. Duas identidades fixadas que se
encontram em relação sem que esta relação de encontro os altere, os modifique. Relações
entre identidades e não entre sujeitos.
131
2. Exclusão da sensibilidade em benefício da racionalidade
Fixadas as identidades, tudo deverá se passar segundo a lógica que a racionalidade
prescreve. Instaura-se neste espaço/tempo escola uma racionalidade inspirada no sucesso obtido
pela ciência em explicar, prever, controlar a natureza. Tudo é passível de ser apreendido pelo
método científico. Tudo é uma questão de método, inclusive ensinar. Como se comporta o
oxigênio na presença de substâncias inflamáveis? O que é necessário para provocar uma
combustão? Como ela pode ser controlada? Os elementos comportam-se de maneira previsível
e assim o homem assume o comando e controle. O pensamento causal – a toda causa
corresponde um efeito, controlada a causa, controla-se o efeito –, expandiu barreiras e ampliou
seu domínio e aplicação, como vimos no percurso histórico da escolarização.
O modelo científico se impõe no imaginário da instituição escolar, seus
paradigmas nos colocam lentes que nos informam sobre um modo de olhar e ver: para todo
efeito observado existe uma causa e toda causa produz um efeito. Numa extrapolação
apressada partiu-se do ensino como causa para chegar a aprendizagem como efeito direto e
proporcional. Assim, no caso da instituição escolar a “aula” dada pelo professor deve produzir
o efeito aquisição dos ensinamentos transmitidos por ele ao aluno. Em presença de um
comburente, um combustível e uma fonte de calor produz-se a combustão.
A partir desta concepção busca-se adequar métodos para transmitir os
conhecimentos. A racionalização engendrada pelos cânones da ciência moderna se torna na
escola um racionalismo que pressupõe que uma mesma causa – a aula – deverá produzir o
mesmo efeito – a aprendizagem – em todos os alunos. E mais ainda, deve produzir a mesma
aprendizagem, igual para todos. Entende-se a relação ensino aprendizagem como uma relação
diretamente proporcional, ficando aí subentendido que ensinar é transmitir conhecimentos,
excluindo-se daí o subjetivo, o afetivo. Mas nós, professores e educadores, sabemos que as
coisas não acontecem desta forma. Mas, ainda ancorados pela racionalização própria do
pensamento científico, buscamos explicações e comumente são levantadas duas hipóteses: o
professor não ensinou direito ou o aluno tem problemas de aprendizagem. Na primeira
hipótese temos que, como educadores dedicados e conscienciosos, assumimos uma “culpa”
pela não aprendizagem do aluno, imaginando que a aula não foi eficaz o bastante para
produzir o efeito desejado. Se não é o próprio professor a se culpar pelo fracasso dos alunos,
outros especialistas se encarregarão de fazê-lo. Outra saída para o sentimento de culpa é
132
transferi-la ao professor do ano anterior. Veremos que o ensino seriado permite uma espécie
de “lavar as mãos”: “Este aluno chegou a mim sem os requisitos previstos para esta série!”.
A segunda hipótese busca sua justificativa racional nas deficiências dos alunos,
nas suas dificuldades pessoais. No entanto, no nosso dia-a-dia dentro desta instituição,
constatamos a insuficiência deste modo de pensar para dar conta das relações humanas. De
acordo com Mantoan (2003, p. 19):
A lógica dessa organização é marcada por uma visão determinista,
mecanicista, formalista, reducionista, própria do pensamento científico
moderno, que ignora o subjetivo, o afetivo, o criador, sem os quais não
conseguimos romper com o velho modelo escolar para produzir a reviravolta
que a inclusão impõe.
Assim como o cientista que, praticando a ciência normal (segundo Tomas Kuhn),
realiza o seu trabalho sem esperar novidades (ele procura comprovar as teses estabelecidas
pelo paradigma dominante), também o professor busca praticar o “ensino normal”, cujo
resultado esperado é a aprendizagem do aluno. Freinet já apontava para este problema, em
muitos de seus livros ele aborda a questão, como por exemplo nas obras em que expõe suas
ideias sobre o Método Natural (Freinet, 1977, p. 46):
Reside aí precisamente o grande erro escolástico e científico, jugar que se
pode proceder com as engrenagens complexas de vida como se faz com um
mecanismo movido por rodas dentadas. Não dizemos que os princípios dos
dentes e das engrenagens sejam falsos. Pelo contrário, nós próprios a tal nos
referimos no decorrer das nossas investigações. Porém, o princípio, ou a lei
mecânica não devem fazer-nos esquecer que a vida é algo de mais subtil, de
muito mais evoluído, ao lado da qual as descobertas mais surpreendentes da
ciência nos surgem apenas como um balbuciar elementar.
Nesta suposta racionalidade de engrenagens, a relação esvazia-se de subjetividade
e de afetividade, torna-se relação de transmissão. Praticam-se rotinas repousantes que
distanciam o professor da interação com a criança. Não se busca a interação entre
subjetividades e as possibilidades que esta relação poderia produzir, mas buscam-se culpados.
A lógica da instituição escolar tem resultado no que poderíamos chamar de Pedagogia do
Inquérito, na qual é instaurado o processo para descobrir os culpados pelo fracasso da
educação. Numa lógica kafkiana, aluno ou professor, dependendo da perspectiva que se adote,
serão julgados e condenados, muitas vezes sem nem saberem que havia um processo.
133
Volto mais uma vez ao passado, desta vez para buscar inspiração em outros
exemplos já produzidos. Sócrates que, como filósofo, produzia conhecimento, deixou-nos
uma lição, se pensamos nas suas escolhas para transmitir seus saberes aos discípulos.
Evitando a mera transmissão de suas ideias por meio de discursos, ele buscava o diálogo, as
perguntas que iam conduzindo o discípulo para as conclusões. Sócrates mostrava-se
profundamente interessado por aquilo que seu aprendiz pensava, nas respostas que produzia, e
nestes diálogos ia construindo relações entre ele e o discípulo, produzindo educação.
Parar de buscar culpados implica em permitir a entrada da sensibilidade para o
âmbito desta relação. Implica em reconhecer que nosso papel de educadores é também o de
nos interessarmos pela criança, querermos conhecer o que se passa com ela. Implica na
compreensão do que nos fala Freinet (idem, 170) no seu terceiro invariante:
O comportamento escolar de uma criança depende do seu estado fisiológico,
orgânico e constitucional. Existe a tendência para considerar desumanamente
que a criança que trabalha mal ou se comporta de forma repreensível o faz
intencionalmente e por maldade.
Interessar-se pela criança e reconhecer que ela é “da mesma natureza que o adulto”,
nos coloca a obrigação de olharmos para nós mesmos e reconhecermos nossos próprios
processos e desejos. A entrada da sensibilidade para o espaço/tempo da sala de aula, não quer
dizer, contudo, que de agora em diante basta praticar uma “pedagogia do amor” como panaceia
para os males da educação. Quer dizer tão somente que na relação entre subjetividades
incorpora-se o sensível, o sutil, os desejos de sucessos, os fracassos como obstáculos a serem
superados, o humano e, nisto tudo, o imponderável que nossa humanidade comporta.
A aprendizagem tem a ver com a relação pessoal e subjetiva que estabeleço com
meu interlocutor, a educação é da ordem do sensível, do sutil.
134
3. Separação entre saber e fazer: a destituição do trabalho em benefício do jogo
Os processos históricos que estudamos na genealogia da escola foram
constituindo uma separação entre o saber e o fazer. Tanto o trabalho dos jesuítas, como a obra
de Comenius e seus seguidores dedicaram grande parte de seus esforços a uma codificação
minuciosa dos conteúdos a serem transmitidos. Surgiria em ambos os processos (dos jesuítas
e de Comenius) uma cultura intelectualista. Operava-se uma verdadeira destilação do
conhecimento a ser transmitido. O mestre passa a ser o que sabe um saber (codificado,
destilado dos perigos que o rondam, depurado das sombras que poderiam maculá-lo, livre das
dúvidas e incertezas que o processo de sua criação necessariamente comporta) que será
transmitido ao aluno. O professor será então aquele que professa a palavra pura, a verdade
estabelecida, transmite o saber. Cria-se uma cultura livresca e vazia de sentidos ligados a vida
prática e cotidiana, uma cultura de erudição e retórica. Freinet chamava a isto de escolástica.
É esta cultura (e somente esta) que deverá ser assimilada pelo aluno e a visão de
escola que se instala será pautada pela acumulação, por parte do aluno, daquilo que o mestre
deposita em sua cabeça. Quanto mais informações o aluno for capaz de reproduzir, maior
qualidade se atribui ao processo educativo. Segundo Mantoan (2013, p. 60):
Vigora ainda a visão conservadora de que as escolas de qualidade são as que
enchem as cabeças dos alunos com datas, fórmulas, conceitos justapostos,
fragmentados. A qualidade desse ensino resulta do primado e da
supervalorização do conteúdo acadêmico em todos os seus níveis.
Mas, num “golpe de mestre” (que o estudo da história ajudou a compreender), ao
mesmo tempo em que o professor ganha o status de detentor de um saber, ele perde a
capacidade de produzir saberes. Ele se torna um veículo de entrega ao aluno de saberes
produzidos em outras instâncias. Não é mais um mestre que pensa e produz saberes, torna-se
um repetidor, um executor de propostas concebidas em outras instâncias, como já vimos ao
discutir as identidades fixadas de professor e de aluno, mas que é importante retomar aqui.
O esforço empenhado por aqueles que se interessaram em sistematizar a forma
escolar e a forma de ensinar (desde os Jesuítas, passando por Comenius até os modelos de
ensino mútuo e chegando aos “sistemas de ensino apostilado” dos dias atuais) levou à redução
desta atividade a um caráter de reprodução de saberes produzidos fora do âmbito da relação
135
pedagógica. O professor, desapropriado de seus saberes, passa a ser o transmissor de
conteúdos e informações contidos nos livros didáticos e nas apostilas43.
Separação entre saberes eruditos e racionais e os saberes da vida cotidiana, separação
entre quem sabe e quem faz. Mas há, ainda, mais uma grave consequência para esta separação entre
saber e fazer para a qual pouco se atenta. Toda esta cultura livresca e intelectualizada nutre profundo
desprezo pelo trabalho manual. O conhecimento, concebe-se, é transmitido pela palavra e é ela que
detém o lugar de destaque e honra. A sala de aula é organizada como um lugar, um espaço/tempo de
culto à palavra, não como um lugar de trabalho, nunca como uma oficina. Isto fica bem evidente nas
concepções da aula de artes como uma atividade menor, para os momentos de descanso ou para
cumprir horários, “encher o tempo”, quando nada de “mais importante” deve ser feito.
Toda a nossa sociedade está impregnada desta concepção de desvalia do trabalho
manual. Começando pelas profissões que se inserem nesta categoria e chegando ao próprio
desvalor que desde sempre se atribuiu ao trabalho doméstico, relegando a mulher a uma
condição de inferioridade. Mas na escola isto tem particular apelo. A dicotomia que se formou
entre saber e fazer, na sala de aula pode ser percebida quando olhamos para o desprezo que se
tem com as tarefas de limpeza e organização.
Mas uma suposta “modernização” da escola foi operada (especialmente no século
XX) que, para minimizar os efeitos maçantes que esta pedagogia verborrágica ocasionou,
lançou mão do jogo como recurso didático. O trabalho acadêmico desprovido de significação
prática, típico da escolástica é desinteressante e, para manter os alunos de alguma forma
interessados nos conteúdos, produz-se o jogo. Introduz-se a competição como forma de
mobilizar as crianças para aprenderem os conteúdos. Responder mais e mais rapidamente às
questões apresentadas se torna o objetivo e com isso vai se perdendo a possibilidade de uma
realização cooperativa e construtiva que um trabalho orgânico e integrado aos interesses do
grupo permitiria.
Recuperar o valor do trabalho em todas as suas formas (manual, intelectual,
criativo etc.) é um exercício para o qual Freinet nos convida. Uma ampla discussão feita por
ele propõe o trabalho como força vital na criança. Relembro aqui o invariante de número 10
de seu livro Para uma escola do povo (1978, p. XX): “não é o jogo que é natural na criança,
43 Uma ampla e profunda discussão sobre o problema dos sistemas apostilados foi desenvolvida pela
professora Tânia Laurindo na sua tese de doutorado: “Fora de lugar: ação e reflexão na coordenação
pedagógica em uma escola de sistema apostilado” (UFSCar, São Carlos, 2012).
136
mas sim o trabalho”. A atenção dada por ele a este aspecto foi defendida em toda a sua obra,
mas em especial no livro A educação do trabalho (1998, p. 189):
Não há na criança necessidade natural do jogo; há apenas necessidade de
trabalho, isto é, a necessidade orgânica de usar o potencial de vida numa
atividade ao mesmo tempo individual e social, que tenha uma finalidade
perfeitamente compreendida, de acordo com as possibilidades infantis, e que
apresente uma grande amplitude de reações: fadiga-repouso, agitação-calma;
emoção-tranquilidade; medo-segurança; risco-vitória. Além disso, é preciso
que esse trabalho preserve uma das tendências psíquicas mais urgentes,
sobretudo desta idade: o sentimento de potência, o desejo permanente de se
superar, de superar os outros, de conquistar vitórias, pequenas ou grandes, de
dominar alguém ou alguma coisa.
Em resumo, a separação entre saber e fazer que se tornou paradigmática na
instituição escolar transformou aluno e professor em repetidores de conhecimentos e saberes
desvitalizados que se produzem longe da escola. E o recurso ao jogo tornou-se moeda corrente
para dar aspecto atraente a conteúdos empoeirados. Porém, as mudanças que presenciamos nos
últimos vinte ou trinta anos na forma de circulação da informação (basta pegarmos somente o
exemplo da Internet) tem tornado cada vez mais anacrônica e desatualizada esta escola, embora
ainda se atribua tanto valor à sua capacidade de transmitir os conteúdos acadêmicos.
137
4. A frontalização do ensino: exclusão do acontecimento
Outra característica da instituição escolar é a organização do mobiliário da sala de
aula: todas as carteiras dispostas em filas apontando para frente da sala onde estão o professor
e a lousa. Esta disposição institui a aula, estabelece o ensino frontalizado e o modo de
conduzir o trabalho pedagógico.
É interessante observar como as prescrições de Comenius se encontram ainda tão
vivas e presentes na escola de hoje. A frontalização do ensino promove um distanciamento do
professor de seus alunos. Ao abordar os problemas que podem surgir com a utilização de seu
método, Comenius propõe várias providências, como vemos na sua proposta para o problema
1: como pode um só professor ser suficiente para qualquer número de alunos?
II. Se nunca se instruir um aluno sozinho, nem privadamente fora da escola,
nem publicamente na escola, mas todos ao mesmo tempo e de uma só vez.
Por isso, o professor não deverá aproximar-se de nenhum aluno em
particular, nem permitir que qualquer aluno, separando-se dos outros, se
aproxime dele, mas, mantendo-se na cátedra (de onde pode ser visto e
ouvido por todos), como o sol, espalhará os seus raios sobre todos; e todos,
com os olhos, os ouvidos e os espíritos voltados para ele, receberão tudo o
que ele expuser com palavras, ou mostrar com gestos ou gráficos. Deste
modo, com um só vaso de cal poderão caiar-se, não duas paredes, mas
muitíssimas. (Comenius, 1621-1657, p. 93).
A sala de aula normal, com suas carteiras enfileiradas, a lousa na frente, os livros
didáticos abertos na mesma página, o silêncio dos corpos dóceis, permite a repetição da
rotina, uma rotina que é repousante, pois basta ministrar a aula – a mesma aula – para todos os
alunos. Basta reproduzir o conhecimento já criado por outros. Basta manter a ordem na classe,
fazendo com que os alunos escutem e reproduzam. É uma espécie de ordem “panoptípica”
para a qual nos alertava Foucault. O professor em pé a frente da classe pode a todos observar
ou, pelo menos, fazer com que os alunos se sintam observados, que se saibam vigiados para
que nada que não estiver previsto aconteça. Mantoan (2013, p. 65) ressalta e retoma as ideias
de Paulo Freire para explicitar um problema intrínseco à lógica desta forma de ensino:
O professor palestrante, tradicionalmente identificado com a lógica de distribuição
do ensino, é o que pratica a pedagogia do “A” para e sobre “B”. Essa
unidirecionalidade supõe que os alunos ouçam diariamente um discurso, nem
sempre dos mais atraentes, em um palco distante, que separa o orador do público.
138
A força desta racionalização na organização da sala de aula se faz sentir, pois a
simples sugestão de alterar esta dinâmica e colocar os alunos para trabalhar em grupos já
angustia o zeloso professor que deve a tudo controlar. O professor na frente da sala e a lousa
como catalizador das atenções é talvez a mais naturalizada das instituições da sala de aula. Ela
institui certo tipo de relações que devem ocorrer neste espaço, traz sensação de controle, traz
sentimento de conforto de se sentir no comando do tempo de cada um dos alunos vistos como
um todo indistinguível. Institui-se o acontecimento previsto: a aula. E ainda assim, o suposto
repouso proporcionado por estas rotinas se vê dia-a-dia ameaçado pela indisciplina dos alunos.
E muitas vezes a indisciplina é o acontecimento: uma discussão entre dois colegas, um desafio
para o jogo de futebol que acontece no recreio (quando e se isto é permitido) e que poderiam se
transformar em pontes para investigações sobre nossa cultura esportiva, as crônicas nos jornais,
as tabelas e quadros dos campeonatos e tantos outros aspectos que envolvem este tema e que
tanto interessam aos adolescentes são imediatamente caladas e o assunto da aula é retomado. Do
seu lugar à frente da sala o professor não pode permitir que distrações e ruídos atrapalhem a
transmissão dos conteúdos tão valorizados pela cultura livresca e intelectualista própria da
instituição escolar. Sua voz deve ser ouvida por todos e nenhuma outra pode interrompê-la.
E, mais delicado do que isto, do “professor-sol” ao professor desencarnado e mero
repetidor de uma partitura (ambos imaginados e propostos por Comenius) nem sempre nós,
humildes mortais, conseguimos desempenhar os modelos propostos. Em Freinet encontro uma
importante ponderação para esta questão:
A escola tradicional exige bastante mais do professor, menos aliás – o que é
mais grave – no domínio da técnica que sob o ponto de vista das qualidades
pessoais e psíquicas que nem sempre depende dele possuir ou adquirir:
calma, equidade, autoridade pessoal, intuição, paciência, domínio de si,
abnegação, dedicação... e amor! E como os professores são homens, que,
portanto só muito excepcionalmente possuem todas estas qualidades
consideradas essenciais, é todo o sistema pedagógico que se desmorona, os
professores impotentes que se cansam e acabam por se desinteressar
instalando-se uma rotina banal... (Freinet, 1978, p. 120).
Diferentemente do mestre e seu discípulo que trabalhavam juntos, o que se
consolidou em todo esse processo histórico foi um distanciamento entre eles, que teve como
uma de suas concretizações físicas a criação do estrado, colocado para dar ao mestre a altura
que seu papel impunha. Embora, felizmente, já tenhamos, há muito, abolido este
“equipamento” das salas de aula, seu lugar simbólico ainda permanece no ensino frontalizado.
139
A produção do espaço escolar e do modelo de trabalho pedagógico – que a
genealogia da escolarização procurou explicitar – vem se dando segundo uma matriz
epistemológica que Deleuze e Guatari (1995) caracterizaram como árvore e raízes e cuja
hierarquia estabelece os modos de comunicação: da raiz e do tronco (centrais) para os galhos e
ramos (periféricos). Porém, o que acontece efetivamente numa sala de aula, por mais que se tente
manter a ordem do uno, são relações rizomáticas: a voz e frontalidade do mestre não calam, nem
impedem a multiplicidade de interações que se dão entre os alunos, que se dão nas ligações que
são trazidas por eles de seus diferentes contextos. Estes autores nos lembram que “uma das
características mais importantes do rizoma talvez seja a de ter sempre múltiplas entradas” (idem,
p. 8). Assim é o espaço e as relações na sala de aula: múltiplas entradas, começos sem começos,
interferências de toda ordem, mas que, no silêncio imposto pelo mestre à frente, não se visibiliza.
Mas os velhos métodos de ensino parecem não reconhecer a multiplicidade deste
espaço e das relações que ali ocorrem: o rizoma de que é feito. Buscar uma nova organização do
espaço escolar, do espaço da sala de aula envolve a compreensão de uma nova matriz
epistemológica como a que nos oferece Deleuze. A organização do trabalho em ateliês, os
diferentes planos de trabalho individuais que nos propõe Freinet são, a meu ver, pistas
interessantes para se pensar a educação segundo uma nova matriz epistemológica, um diálogo que
se promete profícuo.
140
5. O ensino simultâneo
Estando todos os alunos dispostos nas fileiras e virados para frente da sala onde
estão o professor e a lousa, todos deverão fazer a mesma coisa e ao mesmo tempo. O controle
deste tempo deve estar nas mãos do professor; claro está que, num modelo assim, todos devem
ter o mesmo ritmo, caso contrário atrapalharão o bom andamento do trabalho. A formação de
turmas numerosas se torna permitida, pois todos devem fazer a mesma coisa ao mesmo tempo,
não importando o número de alunos. É a ciência do educar, ou melhor dizendo, uma certa
ciência do educar, autorizando e legitimando o modelo, mesmo que muitos e muitos professores
já tenham denunciado as dificuldades de trabalhar em ambientes populosos e massificados.
Neste modo de ensinar cabe ao professor professar a lição, a mesma e única lição,
que todos deverão realizar simultaneamente. Contrariando a natureza própria das crianças,
suas necessidades de movimento, sua curiosidade e desejo de manipular e conhecer o mundo
a sua volta, elas se veem obrigadas a se conformar ao ritmo imposto. Mantoan (2013, p. 64)
nos alerta para a persistência de professores nas práticas do ensino tradicional, entre as quais
destaco duas que se ligam diretamente ao modelo de ensino simultâneo:
Propor trabalhos coletivos, que nada mais são do que atividades
individuais realizadas ao mesmo tempo pela turma;
Servir-se da folha mimeografada ou xerocada para que todos os alunos as
preencham ao mesmo tempo, respondendo às mesmas perguntas, com as
mesmas respostas
O que deveria ser um ensino igual e simultâneo para todos se torna o que a autora
denuncia como “o ensino para alguns alunos”.
A escola deveria ser o lugar de formação das novas gerações para fomentar o
avanço da ciência (se tomarmos como referência o projeto da modernidade, reconhecendo que
nas escolas ainda nem chegamos na pós-modernidade), no entanto ela se tornou o lugar onde
não há espaço para “fazer ciência”: fazer perguntas, valorizar a curiosidade, formular
hipóteses, construir formas de investigar, corroborar ou não as hipóteses formuladas... São
processos necessários à investigação científica que foram banidos da escola. E, para dar uma
roupagem com ares de inovação, vemos professores ou escolas aderirem a novas práticas de
propor projetos que são gestados pela coordenação ou por instâncias mais altas, “totalmente
desvinculados das experiências e dos interesses dos alunos, que só servem para demonstrar a
pseudoadesão do professor às inovações” (idem, p. 64). Restou ao professor e ao aluno a
141
repetição de conhecimentos prontos – os conteúdos. Restou à escola o papel e lugar de “culto
à ciência”. Vale destacar que culto é atividade própria da religião.
Mais uma vez encontramos nos invariantes propostos por Freinet a crítica a este
modo de ensinar e a proposição para agir de outro modo. É o invariante número 11 (idem, p.
185) que nos dá as pistas para uma transformação da escola:
A via normal de aquisição não é unicamente a observação, a explicação e a
demonstração, processos essenciais da escola, mas a experiência tateante,
conduta natural e universal.
A escola tradicional atua exclusivamente por meio de explicações. As
experiências, quando se fazem, intervêm apenas como complemento de
demonstração.
Ora, a explicação, ainda que ajudada pela demonstração, não proporciona
mais do que uma aquisição superficial e formal, que nunca radica na vida do
indivíduo, no seu meio.
A experiência tateante de que nos fala Freinet não ocorre para os alunos de uma
classe de forma simultânea. Ela é o exercício da indagação, da busca de respostas para
problemas que interessam ao aluno. Ela envolve a formulação de hipóteses e sua
confrontação. Mas uma organização do trabalho escolar que permita este exercício do tateio
experimental coloca para o professor a perda do controle de uma aquisição, por parte dos
alunos, de maneira paulatina e disciplinada. “Abram todos o livro na página tal” é uma
garantia de transmitir as informações previstas para aquele grupo, naquele dia.
142
6. A classe homogênea: a exclusão do conflito
Para que todos possam assistir à mesma aula é preciso que não haja diferenças
significativas entre os alunos. É necessário que exista uma homogeneidade da classe. Não
cabe a diferença, pois ela é fonte de conflitos que pode levar a rupturas da frágil e enganosa
harmonia que se preconizava para o trabalho escolar. Conflitos ou rupturas que ameaçam
nossa compreensão e segurança dentro do espaço escolar. Segundo Burbules (2012, p. 176),
As disrupções a que a diferença pode levar têm crescentemente estimulado
os educadores (oriundos de um leque de posições políticas e morais bem
diferentes) a cada vez mais, defender ambientes organizados em torno de
grupos relativamente mais homogêneos. (Grifo meu)
A possibilidade de aprendermos com o conflito não tem encontrado espaço nos
modelos tradicionais de ensino. Em vez disso, busca-se retirar do caminho qualquer obstáculo
que possa levar ao conflito, busca-se a homogeneidade.
Para Deleuze (2009, p. 39) a complexidade da questão da diferença solicita o
esforço da filosofia:
Tirar a diferença de seu estado de maldição parece ser, assim, a tarefa da
filosofia da diferença. Não poderia a diferença tornar-se um organismo
harmonioso e relacionar a determinação com outras determinações numa
forma, isto é, no elemento coerente de uma representação orgânica?
Este é um efeito ainda mais perverso desta racionalização: a anulação da diferença
pela instauração de um modelo arbitrário e homogeneizante. E como esta anulação é
impossível, a diferença se torna um problema. A normalização e a padronização de todos os
alunos é adotada como meta. O aluno que não corresponde às exigências previstas pela aula é
percebido como um empecilho ao bom andamento do trabalho. Em nome de uma suposta
igualdade as diferenças são sufocadas. É aqui que podemos ver o quanto a entrada do
“diferente” constitui um problema e vemos o recurso à tolerância se tornar nefasto. É aqui que
vemos surgir a expressão “aluno de inclusão” – o aluno tolerado porque diferente como se
todos os outros fossem iguais. A diferença é julgada segundo quadros de referências e padrões
de normalidade, mas sem buscar a adoção de um outro ponto de vista, o ponto de vista
daquele sobre quem se fala ou se tece julgamento discriminatório.
Mantoan (2013, p. 64) traz uma análise contundente desta problemática:
143
É assim que a exclusão se alastra e se perpetua, atingindo a todos os alunos,
não apenas os que apresentam uma dificuldade maior de aprender ou uma
deficiência específica. Porque em cada sala de aula sempre existem alunos
que rejeitam propostas de trabalho escolar descontextualizadas, sem sentido
e atrativos intelectuais, sempre existem aqueles que protestam, a seu modo,
contra um ensino que não os desafia e não atende às suas motivações e
interesses pessoais.
As críticas que têm sido feitas aos modelos padronizadores na educação têm já
favorecido uma mudança de perspectiva e levado ao debate a importância de prestar atenção à
própria caracterização da diferença como algo produzido social e culturalmente. Ou como
argumenta Burbules (idem, p. 180): “finalmente, fez as pessoas perceberem que essas diferenças
estão relacionadas a determinadas estruturas de significação que são produzidas, ou construídas –
não são inerentes; portanto poderiam ter sido construídas de outra maneira”. Mais à frente, Burbules
(idem, p. 201) conclui: “Ao transferirem a necessidade de justificativa do pressuposto de
semelhança para uma consciência da diferença e sensibilidade para com ela, essas perspectivas
críticas criaram a possibilidade de repensarmos a educação de uma forma significativamente nova”.
Destaco da argumentação deste autor o questionamento ao “pressuposto de
semelhança” que temos visto como um axioma fundante da instituição escolar. A
homogeneização do alunado foi se constituindo no próprio processo de institucionalização da
escola, instituindo-se como o modo de organizar os grupos de alunos a fim de ensinar.
Nos invariantes de Freinet iremos encontrar o questionamento a esta característica
do modelo tradicional. O invariante de número 21 (idem, p. 196) alerta-nos: “A criança não
gosta do trabalho em rebanho a que o indivíduo tem de sujeitar-se. Gosta do trabalho
individual ou do trabalho em equipa no seio de uma comunidade cooperativa.”
144
7. O ensino seriado e a avaliação
Para que se possam formar classes homogêneas é preciso classificar os alunos,
medir seu grau de aproveitamento. Institui-se a avaliação como forma de enquadrar os alunos.
O ensino seriado institui as provas, exames e avaliações que serão, a partir de então, o meio
de garantir que o aluno adquiriu os conhecimentos na versão exata em que foram transmitidos
pelo professor. Mas, mais que isso, institui o modelo exemplar de aluno e com ele, institui-se
o fracasso para aqueles que não se ajustam à norma.
Ensinar nesse modelo é ensinar o que está previsto para aquele grau de escolaridade.
É transmitir o conteúdo daquela série, supondo que o aluno possui os pré-requisitos que devem ter
sido adquiridos nas séries anteriores. É mais que conhecida a reclamação de professores que se
defrontam com alunos com alguma dificuldade na sua aquisição da escrita. Proclamam aos
quatros ventos nas salas de professores o absurdo de terem em suas classes alunos que “ainda não
estão alfabetizados!”. É como se dissessem: “o que faz na minha classe este aluno?”. Em nenhum
momento lhes ocorre a possibilidade de conhecer as necessidades daquela criança e de se
ocuparem de lhe proporcionar as oportunidades para se desenvolverem. Muito menos se lhes
ocorre perguntar: “o que sabe este aluno?”.
A explicitação e discussão desta problemática tem encontrado na produção da
professora Mantoan (2007, p. 65) uma viva e contundente denúncia:
O sistema educacional se porta como mais um instrumento de seleção social, que
se arroga o direito de fazer triagens da população escolar, retirando de alguns
alunos as vantagens de crescer em ambientes escolares abertos às diferenças.
A educação bancária, que Paulo Freire (1978) já desvelava e denunciava na
década de 1970, e na qual o professor “deposita” na cabeça do aluno os conteúdos para ele
selecionados e ao final de um certo período (bimestre, trimestre) “cobra a devolução” destes
conteúdos e recompensa esta devolução com a “nota” é ainda hoje o modelo paradigmático
em nossa sociedade. Assim como o trabalho passa a ser concebido no mundo moderno como
uma forma de ganhar a vida, também a escola e o “trabalho” que nela as crianças são
chamadas a realizaram passa a ser uma forma de ganhar a aprovação.
Uma vasta e proveitosa discussão sobre o problema da reprovação já tem sido
feita e cito aqui como exemplo o trabalho do professor Vitor Paro (2001). O sistema de
avaliação que ainda vigora, ao reprovar os alunos que não se enquadram ao modelo, vai
145
seguindo seu percurso, atribuindo ao aluno um fracasso que uma análise crítica já mostrou
que é muito mais da escola e do professor. Mas quem o sofre é o aluno. É mais um invariante
(o de número 10) de Freinet (idem, p. 181) que deve ser considerado para que possamos sair
deste círculo vicioso em que a escola se meteu: “todo indivíduo quer ser bem sucedido. O
fracasso é inibidor, destruidor do ânimo e do entusiasmo”. Tanto já se escreveu sobre o
fracasso escolar e, ainda, tão pouco de efetivo se fez contra ele. Continuo o diálogo com
Freinet, retomo aqui mais dois de seus invariantes – o de número 19 e o 21 Freinet (idem, p.
194 e p. 196). No invariante 19 já nos apresenta sua concepção de avaliação:
As notas e classificações constituem sempre um erro.
A nota é a apreciação feita por um adulto do trabalho da criança. Seria válida
se fosse objetiva e justa. Pode sê-lo, parcialmente pelo menos, quando se
trata de aquisições simples; por exemplo: a técnica das quatro operações
aritméticas. Mas quando se trata de trabalhos mais complexos, em que a
inteligência, a compreensão e as próprias noções de comportamento entram
em jogo, qualquer medida sistemática é desencorajadora.
Seguindo esta linha de raciocínio temos os seus comentários sobre o invariante 21:
É inútil classificar os alunos por turmas ou cursos: nunca têm as mesmas
necessidades ou aptidões, sendo profundamente irracional pretender que
todos avancem ao mesmo ritmo. Uns enervam-se porque têm de marcar
passo, enquanto desejariam e poderiam andar mais depressa. Outros
desanimam porque são incapazes de continuar sem auxílio. Só uma pequena
minoria aproveita o trabalho assim organizado. Procurámos e encontrámos a
possibilidade de permitir que as crianças trabalhem ao seu ritmo próprio, no
seio de uma comunidade viva.
146
A escola e as consequências que decorrem de suas características: ainda uma reflexão
Para encerrar toda esta análise e este capítulo que começou com a genealogia da
escola ainda resta por fazer uma reflexão sobre as consequências que estas características
fomentam no espaço escolar, na sala de aula e principalmente na formação do aluno. Falamos das
características, mas ainda não aprofundamos a reflexão sobre suas consequências. Proponho,
então, darmos uma olhadela para esta sala de aula tradicional, ainda que fictícia e modelar, para
pensarmos sobre o que este modelo está favorecendo para a formação destes alunos.
Assim, vamos imaginar todos aqueles estudantes sentados nas suas carteiras enfileiradas
e viradas para a frente onde a professora já encheu a lousa com um texto que deve ser copiado por
todos, ou nas classes “modernizadas” já colocou na tela a apresentação do conteúdo. Eles deveriam
copiar no mesmo ritmo, mas sempre tem aquele aluno que termina mais depressa. Ele, então, avisa a
professora que já acabou (dá uma olhada para os colegas em volta) e pergunta sobre o que ele pode
fazer agora. A professora, sem se dirigir à carteira deste aluno, pede que ele espere os outros
terminarem. Uma simples cena que pode nos dizer muito sobre o que ali se ensina e se aprende.
Proponho um desvelamento desta cena e algumas reflexões em contraponto,
apelando para possíveis caminhos apontados pela Pedagogia Freinet. Como já vim fazendo ao
discutir as características da escola – trazendo propostas ou formulações da Pedagogia Freinet
como possibilidade de contraposição a elas – também aqui proponho a reflexão sobre alguns
dos eixos desta pedagogia e suas possibilidades para pensar novos modos de fazer escola.
Começo com uma questão: por que o aluno avisa que já acabou? E ainda por cima
dá uma olhada para os colegas? Não é difícil concluir que ele se gaba para os colegas, pois
terminou primeiro. E, num ambiente em que todos estão fazendo a mesma coisa, ao mesmo
tempo (própria do ensino simultâneo), a competição para ver quem termina primeiro aflora,
mesmo que esta conscienciosa professora tenha iniciado a manhã de trabalho com uma bela
preleção ou uma história de um livro infantil sobre a importância da cooperação entre as
pessoas. A competição vai sendo aprendida no agir, embora o falar, o discurso, diga outra coisa.
O que buscamos na organização de nossas classes segundo os princípios da
Pedagogia Freinet é, pelo contrário criar um ambiente que favoreça a cooperação entre os
alunos. Os complexos de interesses que se tornam projetos de trabalho de todo o grupo têm
como premissa que todos poderão contribuir, segundo suas capacidades e seus potenciais para
a consecução de uma obra coletiva: um álbum, uma maquete, um painel de pinturas... Não
147
queremos dizer com isto que está banida de nossas salas a competição – às vezes saudável e
estimulante – , mas que ela se inscreve numa produção coletiva e que poderá favorecer um
desempenho que se engaja num compromisso de desenvolvimento pessoal.
Um exemplo concreto de como trabalhamos numa sala Freinet poderá ser mais útil para
explicitar o que quero dizer. Uma turma de 2º ano da Escola Curumim estava envolvida com a
pesquisa sobre as danças e brincadeiras típicas nas diferentes regiões do Brasil. Para divulgar suas
descobertas eles queriam fazer um grande mapa do Brasil no qual eles iriam colar seus desenhos
representando as diferentes danças que haviam pesquisado. Para fazer o mapa duas alunas muito
habilidosas utilizaram a técnica do retroprojetor – elas projetaram o mapa numa grande folha de
papel pardo pregada na parede e, com canetas grossas de hidrocor foram contornando o desenho.
Quando este trabalho ficou pronto era preciso colorir todo o mapa. A técnica de pintar com as mãos
era própria para aquela superfície tão grande e dois alunos (um que tinha Síndrome de Down e outro
com Deficiência Intelectual) ficaram responsáveis por esta etapa do trabalho e foram ajudados pelas
meninas que haviam feito o contorno do mapa. Enquanto isso, nos outros ateliês, outros alunos se
encarregavam de desenhar as personagens que representavam as diferentes danças regionais. Dia a
dia o projeto ia ganhando forma. Pequenos textos explicativos também foram feitos e quando os
alunos expuseram seu trabalho no painel na entrada da escola todos se sentiam autores do belo
trabalho. Esta é uma outra cena possível para a organização da sala na qual o trabalho cooperativo é
vivido como uma necessidade para a realização e satisfação de todos no grupo.
Voltando a nossa análise daquela cena tradicional podemos nos indagar sobre o
que leva este menino a perguntar sobre o que pode fazer a seguir. Não é exagerado pensar que
a professora pode mandá-lo esperar em silêncio, com os braços cruzados (lembrem-se que
estamos fazendo um exercício de ficção, e sabemos que o ambiente nas escolas é bem mais
tumultuado e complexo). Podemos perceber mais uma consequência que está se forjando na
formação deste menino e de seus colegas que está ligada à impossibilidade de tomar decisões.
Ele pergunta à professora porque não pode decidir por si mesmo o que quer fazer a seguir. É a
heteronomia que vai se perpetuando no processo de formação desta criança. Embora muito se
diga sobre a importância de permitir o desenvolvimento da autonomia, mais uma vez,
constatamos nas práticas correntes no modelo tradicional, e mesmo nas suas práticas
atualizadas, o impedimento de seu exercício instituído pelo próprio modelo.
O trabalho pedagógico que prevê a Pedagogia Freinet organiza-se em torno de
escolhas e compromissos que o aluno vai aprendendo a assumir no seu processo de
desenvolvimento. Assim, os Planos de Trabalho, as metas que ele elege (claro que muitas vezes
148
com a orientação da professora) visam a estimular o aluno a tomar decisões. Quando ele
terminar determinado trabalho, pode consultar seu próprio Plano e ver quais atividades poderá
desenvolver na sequência. A construção da autonomia vai se forjando dia a dia num processo
paulatino que, é certo, nem sempre é linear e de acordo com um figurino (da própria Pedagogia
Freinet), mas que é oportunizado e envolve o trabalho do professor num diálogo com o aluno.
Outra observação que podemos fazer, voltando àquela cena, é que a professora
não irá ler o que o aluno escreveu. Talvez, se for uma professora muito conscienciosa, ela
poderá ir até a carteira dele, tomar seu caderno e corrigir sua escrita. Mas ela não irá ler o
aluno, pois só lemos quando não sabemos ainda o que está escrito e, neste caso, a professora
já sabe, afinal foi ela mesma quem escreveu na lousa. Estamos diante de uma situação
formadora que informa (e forma) àquele aluno de que escrever é repetir o que já está escrito.
Não há possibilidade de criação ou de expressão original de si mesmo pela palavra e, diga-se
de passagem, por qualquer outro meio expressivo. Temos então, na mera repetição do já
pronto, mais uma consequência para a formação do aluno.
A livre expressão de que nos fala Freinet se apoia numa prática muito presente na
sua sala de aula: o texto do aluno será lido aos demais do grupo. Escreve-se para comunicar
suas ideias e sentimentos e esta produção será submetida ao grupo. O texto é lido porque
ninguém sabe ainda o que foi escrito. Ele poderá ser escolhido para ser publicado (no jornal
da turma, num álbum que está sendo produzido, num boletim da escola etc.), ganhando assim
sua característica de produção concreta no seio de uma comunidade.
Ainda uma questão podemos lançar para a cena descrita. Ao terminar a cópia, é
possível imaginar que este aluno dá um suspiro de alívio de quem diz: “ufa, acabei!”. Mas por que
uma criança, cheia de vida, apressa-se em livrar-se logo da cópia? Para uma tarefa sem graça e
mecânica, nossa melhor resposta é mesmo a de alívio ao terminarmos. O trabalho se torna tarefa,
muitas vezes sem vida e sem significado. Chega-se mesmo à admissão de que o recomendado é não
ultrapassar um x de minutos e que depois precisa descansar. E, por mais que queiramos defender as
virtudes do trabalho, agimos na prática ensinando nossos alunos um tarefismo vazio e sem graça.
Com a Pedagogia Freinet buscamos favorecer o engajamento em um trabalho que
responda às necessidades da criança, que seja funcional. Se observarmos a nós mesmos,
adultos, veremos que quando nos engajamos em um trabalho que nos absorve e interessa,
podemos passar horas dedicados a um esforço que no fundo nos alimenta e realiza. Assim
também acontece com a criança. Nosso esforço pedagógico deve ser sempre no sentido de
149
encontrar o trabalho que permita a expressão da criança no mundo. Um trabalho que seja
criativo e que esteja ligado aos interesses da criança, suas necessidades vitais.
As consequências educativas que acabamos de elencar, embora certamente não
esgotem a questão, podemos resumir como eixos para a formação da criança e do adolescente
na escola tradicional: competição, heteronomia, repetição e tarefismo. E, assim, todo o nosso
edifício pedagógico construído ao longo dos anos mostra suas fendas, a escola vê-se numa crise.
A sociedade mutante, nossa “modernidade líquida” olha para a instituição escolar e aponta suas
ineficiências, questiona seus métodos. Mas, muitas vezes, esta escola segue praticando seu
velho script sem se preocupar ou mesmo reconhecer a crise ou, por outro lado, lança-se em
ativismos transformistas que correm o risco de desvalorizar ainda mais esta instituição e
enfraquecer suas possibilidades de exercer um efetivo papel na formação das novas gerações.
Mas, se não queremos destruir a escola, acredito que as respostas mais capazes de
superar o impasse que se coloca devem ser buscadas na própria escola, que ela se volte um
pouco para si mesma, se reconheça e reconheça seu papel na sociedade e, revalorizando-o,
possa, a partir daí, voltar o olhar para a sociedade para estabelecer um diálogo que renove
suas relações.
E, para que possamos enfrentar a crise é preciso construir novas respostas,
embasadas no conhecimento do passado, que ofereçam outros vislumbres de futuros. É
preciso retomar as questões colocadas no quadro inicial desta tese:
Como transformar a escola num ambiente em que o acontecimento seja colocado como
centro do processo educativo?
Como fazer da escola um lugar de relações subjetivas não pré-estabelecidas, um lugar de
relações autênticas e cooperativas?
Em que a Pedagogia Freinet pode contribuir nas respostas a estas questões?
Temos, na Pedagogia Freinet alguns vislumbres para novas possibilidades, outros
eixos a guiar a prática: a cooperação, a autonomia, a livre expressão e o trabalho.
150
Figura 40: Freinet e seus alunos.
Fonte: Les amis de Freinet44.
As questões deste trabalho, o estudo da história, as análises sobre o modelo
escolar institucionalizado, tudo o que foi apresentado até aqui, foi e está sendo feito por
alguém que, tendo vivido as dificuldades do processo, pode dizer “de cátedra”: sei que não é
fácil. E, no entanto, nas situações vividas com os alunos encontrei perguntas. Nas situações
vividas com os alunos encontrei respostas. Nas situações vividas com os alunos encontrei a
mim mesma e me encontrei com eles. Volto então à escola. Não aquela das teorias e análises
(ainda que aquela, sim, mesmo que pela negação das características que nela se
impregnaram), mas aquela onde piso, onde caminho todos os dias.
44 Disponível em <http://www.amisdefreinet.org/goupil> Acesso em 12/07/2014.
151
3. A NARRATIVA COMO INVESTIGAÇÃO DE SI ABRINDO POSSIBILIDADES
PARA A REFLEXÃO E COMPREENSÃO
“A ciência é grosseira, a vida é sutil, e é para corrigir
essa distância que a literatura nos importa. Por outro
lado, o saber que ela mobiliza nunca é inteiro nem
derradeiro; a literatura não diz que sabe alguma coisa,
mas que sabe de alguma coisa; ou melhor; que ela sabe
algo das coisas – que sabe muito sobre os homens”.
(Roland Barthes)
A narrativa do vivido será, a partir daqui, nosso caminho para tentar explicitar as
reflexões tornadas possíveis no processo e com isso buscar as lições. A lida com as crianças
trazia os questionamentos à minha própria ação, mas também os estudos, as leituras e
discussões que o contato com a vida acadêmica sempre me estimularam me levavam a refletir
sobre essa lida, colocá-la em dúvida, questioná-la.
Antes de qualquer coisa, explicito mais uma vez que grande parte de minha
história pessoal e profissional está narrada na dissertação de mestrado que defendi em 2004, e
entendo que muito deste trabalho de tese está ligado a uma retomada e um aprofundamento de
muitas das ideias já desenhadas na dissertação.
Os recortes que escolhi fazer agora de toda aquela narrativa da dissertação se
ligam a reflexões que se tornaram possíveis, justamente, a partir deste aprofundamento. Serão
alguns episódios que irei narrar como forma de explicitar momentos e acontecimentos que me
proporcionaram aprendizagens e des-aprendizagens. Os quatro primeiros são episódios em
modo de novela de formação. Creio que se justificam como forma de explicitar o lugar de
onde falo, as experiências que me constituíram, mas também como reflexões sobre as
características da escola tradicional e os desafios que se colocaram a mim quando me vi a
braços com a tarefa de praticar uma outra pedagogia, rompendo com o modelo no qual me
formei. Na sequência entrarão outros episódios mais recentes nesta minha trajetória de
educadora, exercendo o papel de coordenadora e diretora de escola, mas que também
tematizam as características da instituição escolar descritas no terceiro capítulo.
Algumas características da Pedagogia Freinet diferenciam-se radicalmente daquelas
do modelo tradicional descritas no capítulo 2. Acredito que não seja necessária aqui uma
152
exposição sobre a biografia deste professor primário, criador de um movimento internacional de
educadores, autor de vasta obra pedagógica. Existe já uma bibliografia importante sobre este
tema, uma ampla literatura. As obras de Elise Freinet são referências básicas, tanto do ponto de
vista biográfico quanto das suas ideias e criações em pedagogia. No Brasil, as obras de Sampaio
(2002) e Oliveira (1995) e Santos (1993) são referências necessárias para aqueles que se
interessam em conhecer sua vida, sua obra e o contexto no qual ele viveu.
Muitas teses e dissertações que abordam a Pedagogia Freinet e apresentam sua vida e
obra também já têm sido defendidas. Destaco, por exemplo, as reflexões da tese de Boleiz (2012),
que realiza um estudo comparativo entre Célestin Freinet e Paulo Freire, como trabalho relevante
tanto no aspecto da biografia de Freinet quanto na análise sobre um eixo central de sua pedagogia:
o trabalho. Além desses, temos a dissertação da professora Munhoz (2010) que apresenta Freinet
e o movimento internacional que ele ajudou a criar, destacando assim um aspecto fundamental
desta pedagogia (que é o de se propor a uma constante reflexão, por parte dos professores sobre
suas práticas). Muitos outros trabalhos são citados nas referências bibliográficas desta tese.
Mas para o escopo deste trabalho interessa descrever alguns instrumentos, uma certa
forma de organizar o espaço/tempo da sala de aula, para que possamos discutir alguns temas que nela
se fazem presentes. Assim, dos episódios narrados irei destacar instrumentos da Pedagogia Freinet que
se encontravam em ação naquela sala, naquele momento, com aquela turma e aquela professora, para
depois discutirmos os temas e as aprendizagens tornadas possíveis a partir da experiência. Ou seja,
entre a narrativa (os episódios) e as lições e reflexões que pude tirar da experiência vivida, irei interpor
breves apresentações dos instrumentos da Pedagogia Freinet. São eles que, a meu ver, dão
materialidade ao fazer pedagógico inovador e propiciam a construção de novas relações, mais
cooperativas e humanizadas entre professores e alunos. Essas descrições dos instrumentos, mesmo
não sendo ainda a discussão sobre o tema geral da tese, fazem-se necessárias para explicitar um outro
modo de organizar o trabalho pedagógico a fim de podermos discutir suas consequências. Dito de
outra maneira, o que acontece quando praticamos uma outra dinâmica? O capítulo pretende apresentar
as ideias que constituem esta tese, a partir da minha experiência com os instrumentos da Pedagogia
Freinet e sua filosofia. Em suma, é uma tese com Freinet e não sobre Freinet.
Para iniciar esta tarefa chamo ao diálogo o próprio Freinet, que no livro Para uma
escola do povo chama a atenção:
Porque queremos construir efetiva e solidamente a partir do real, procuramos
instrumentos, técnicas e uma organização que permitam resultados educativos
máximos com professores que se conservam na órbita do humano: quer dizer que
podem perder a calma em muitas circunstâncias, que nem sempre manifestam
uma habilidade notável, sabem dedicar-se, é certo, mas são incapazes na maioria
das vezes de alcançar a comunhão e o amor. (Freinet, 1978, p. 121).
153
“Professores que se conservam na órbita do humano”: destaco este trecho porque
começo por aí para pensar nas narrativas e nas lições que se tornaram possíveis a partir do vivido,
pois é só na “órbita do humano” que se pode falar em subjetividade das relações. E como seres
humanos (ocupando o lugar de educadores) em relação de alteridade com outros seres humanos
(ocupando o lugar de educandos), proponho pensarmos nos instrumentos da Pedagogia Freinet
não como fórmulas, não como receitas, mas como possibilidades de se constituírem relações
cooperativas, autênticas e capazes de acolher acontecimentos. Reforço a advertência: é preciso
que sejam compreendidos como escolhas conscientes que fazemos na busca de transformar a
prática pedagógica. Ou seja, eles não são receitas simplificadas do como fazer. O que propõe são
“novas instituições” que queremos viver na sala de aula45.
Mas nós professores somos seres que se perguntam sobre o como. Como eu faço
na sala de aula? A pergunta “como?” em educação, na perspectiva que adoto, só pode ser
respondida com um “como eu fiz”, pois as situações não se repetem. Posso contar como vivi,
mas o outro a quem me dirijo não viverá a mesma cena. Minha experiência, se compartilhada,
pode inspirar, sugerir, mas não se pode esperar que ela seja repetida. As imagens de outras
cenas de uma outra vida escolar possível irão compor a sequência deste trabalho.
À guisa de enfatizar a impossibilidade de sermos o “professor sol” de que nos fala
Comenius e compreendendo que o professor repetidor dos saberes construídos alhures encontra-se
esvaziado das certezas e verdades que a ciência nos prometia, retomo o diálogo com Larrosa:
Talvez tenhamos que aprender a pronunciar na sala de aula uma palavra
humana, isto é, insegura e balbuciante, que não se solidifique na verdade. Talvez
tenhamos que redescobrir o segredo de uma relação pedagógica humana, isto é,
frágil e atenta, que não passe pela propriedade. (Larrosa, 2000, p. 165)
45 O uso da palavra “instituição” – escolhida por mim neste trabalho – pode dar margem a compreensões
equívocas, mas ainda assim escolho utilizá-la e explico que sua utilização busca marcar a diferença que
estas “novas instituições” têm em relação às velhas. Contra a velha instituição, por exemplo, da lousa e do
professor frontalizando e determinando o espaço e o tempo do trabalho escolar, veremos a instituição da
Roda de Conversa, ou da classe em ateliês para modificar o espaço, o tempo e as relações educativas. São
instituições que se colocam a serviço da constituição da sala de aula como um “canteiro de obras”,
expressão utilizada por Freinet e que ilumina o tipo de trabalho e de relações que se deseja estabelecer neste
ambiente arejado e renovado.
154
Uma novela que me formou: retomando alguns passos de minha trajetória
Minha formação inicial já havia provocado comissuras na ingênua e entusiasmada
jovem que entrara na faculdade cheia de certezas. Dizia mesmo – com o entusiasmo ainda intacto
da juventude –, nas conversas informais, aos amigos e colegas, que era preciso dizer à sociedade,
explicar aos governantes, que para podermos sair do estágio de pobreza e subdesenvolvimento em
que nos encontrávamos, era preciso educar o povo, levar a eles os conhecimentos e a cultura que
nos libertariam da ignorância e atraso. Confesso minha ingenuidade...
Uma necessária ducha de água fria caiu na minha cabeça quando comecei a tomar
contato com as teorias sociológicas, em especial as ideias de Althusser e de Bourdieu, sobre os
problemas da educação como aparelho ideológico de estado e a reprodução do status quo. A
visão crítica da Educação teve, para mim, um forte impacto que me levaria a muitos
questionamentos e a uma sensação de imobilidade e impotência. Mas junto com o choque
nascia um desejo de resistir e o sentimento de que nem tudo estava perdido. Os próprios
professores nos estimulavam a uma criticidade, mas também nos apontavam para as “brechas
do sistema” – expressão muito corrente naqueles tempos de ditadura militar em que
conversávamos em voz baixa e com a sensação de um gelo na nuca de alguém a nos espiar.
A visão crítica da educação que foi parte fundamental de minha formação inicial
me apontava para dois caminhos: acomodar-me e, como um avestruz, fingir que estava tudo
certo e seguir reproduzindo velhos modelos, ou tentar novas possibilidades, buscar conhecer
outras experiências.
Assim, ainda estudante de Pedagogia no final dos anos 1970 e início dos 1980,
quando busquei trabalho como professora, foi natural para mim querer conhecer experiências
novas em educação. As críticas ao ensino tradicional calavam fundo na jovem que eu era e
aquele desejo de me engajar em projetos inovadores me levou, no ano de 1980, durante os
meses de maio e junho, a um estágio na Escola Curumim.
Senti um sopro de esperança, uma admiração pelo trabalho que as pessoas faziam
ali, sentia-me identificada nas conversas com professores desta escola. Tudo o que queria era
aprender mais sobre a educação alternativa. Embora com muitas discussões e desentendimentos
(presentes naquela escola e exaustivamente narrados na dissertação de mestrado) a proposta da
Pedagogia Freinet ia ganhando espaço na equipe e eu fui me encantando com sua filosofia, com
seus instrumentos e as possibilidades que eu antevia de uma prática mais coerente com as
155
aprendizagens que a formação inicial me oportunizara. Fui encontrando as ancoragens
necessárias para desenvolver as práticas da professora que eu queria ser.
No mês de julho trabalhei com outra professora no curso de férias oferecido pela
escola. No mês de outubro daquele mesmo ano surgiu a oportunidade de substituir uma professora;
assumi uma turma de crianças de dois a quatro anos em dupla com outra professora. No ano
seguinte, naquele mesmo esquema de trabalhar em dupla com outra professora, assumi uma turma
de crianças de quatro a seis anos. Fazíamos muitas reuniões pedagógicas e encontros informais nas
nossas casas. Comecei a ler os livros disponíveis sobre a Pedagogia Freinet, ouvia muito o que as
outras professoras falavam e ia tentando incorporar os princípios desta pedagogia. No final do ano
(1981) nasceu minha filha Mariana e então passei o primeiro semestre de 1982 afastada da Escola.
Quando voltei, em agosto, assumi com outra professora a classe de quatro a seis anos. Era uma
turma grande, com vinte e oito alunos, e minha colega enfrentava sérias dificuldades pessoais que a
obrigavam a faltar com frequência. Mas estávamos muito empenhadas em aprender e utilizar os
instrumentos da Pedagogia Freinet em nossa sala, havíamos organizado vários ateliês.
Por formador que se constituiu faço a seguir a narrativa de um episódio que
ocorreu naquele ano com aquela turma.
156
1ª NARRATIVA: da solidão de ser professora à construção de outro modo de estar na sala de aula. Uma data imprecisa de lembranças muito vivas.
Cheguei à escola às 13:00. Meus alunos também estavam chegando. Passei pela cozinha para tomar um café e a secretária veio me avisar que a Edi (minha colega de docência) tinha telefonado, dizendo que hoje não viria novamente. Fui para a área externa, procurei minha turma, alguns estavam jogando bola no gramado, outros brincavam no tanque de areia. Fui chamando todos eles: “pra sala! Pra sala!”
Eles foram entrando e eu fui buscar o Peri e o Raoni que ainda brincavam lá fora. “Ah... espera um pouquinho...”, “já vou...” Um pouco relutantes – pois a brincadeira estava divertida – eles vieram. “Vamos fazer nossa Roda, turma?”
Sentamos todos no espaço da sala que era reservado para a Roda. Eram 28 alunos presentes naquele dia e o espaço era pequeno. Então fui organizando com eles para que todos pudéssemos nos ver e ouvir. “Senta mais pra cá”, “dá espaço pra sua colega...” Em seguida iniciamos a Roda.
“Quem é o responsável pelo nosso calendário da semana?” (esse calendário era uma locomotiva: seus vagões recortados em papel cartão e pendurados em um cordão formavam o nosso trenzinho, representando o domingo e os outros dias da semana). Eu tinha preparado este material no fim de semana e estava contente de mostrar a eles como deveríamos usar esse “trenzinho da semana” que tinha, para mim, o objetivo pedagógico de ensinar este conteúdo.
Piatã se apresentou e virou de costas o vagão da quarta-feira do nosso trenzinho. “Hoje é quarta, né Gláucia?”, “sim, turma. Bom, tenho que dizer uma coisa: hoje a Edi faltou.” Alguém pergunta: “ela está doente?” , “sim, mas amanhã ela vem, tá bom?”
Fizemos uma rodada de novidades. O Irati contou que tinha um cachorrinho e os colegas gostaram de saber. Eles comentam sobre seus bichos de estimação. Proponho que a gente pesquise sobre cachorros e outros bichos de estimação e várias crianças se animam com a ideia. Mas logo começa uma pequena confusão entre alguns meninos. Alguém grita: “para, Peri!”. Pergunto o que foi. “Ele tá me beliscando!”, “olha pessoal, hoje eu estou sozinha, então preciso que vocês se comportem bem. Vamos trabalhar tranquilos, tá?”
Continuamos mais um pouco na Roda e vejo que eles começam a se agitar. Eu ainda queria que aproveitássemos o tempo para conversar sobre os dias da semana e do mês, queria explorar outro material preparado (um calendário com os dias do mês) e pretendia ensinar isto a eles. Mas a agitação foi aumentando...
“Vocês querem começar o trabalho nos ateliês?”, “sim”, “então, tá. Venham colocar seus nomes no quadro de ateliês” (um quadro de pregas no qual colocávamos os ateliês que estavam em funcionamento no dia, e nas pregas abaixo de cada ateliê cada aluno devia colocar o cartãozinho com o seu nome).
157
“Hoje tem ateliê de desenho, de recorte/colagem, de escrita no caderno, de casinha e de leitura”, “ah... Gláucia... a gente queria o ateliê de pintura” (Peri e Raoni), “ah... não sei não... Acho que hoje não dá porque a Edi não está aqui pra ajudar”, “mas deixa... vai? A gente sabe fazer sozinho...”
Outra criança (um dos menores da turma) vem me perguntar alguma coisa e vou atendê-la, deixando os dois sem resposta. Logo depois fui olhar o quadro de ateliês e vejo que algumas crianças já se dirigiram para o trabalho, mas não colocaram seus cartões de nome nas respectivas pregas. Então vou procurá-los para que venham fazer isto. Este quadro de pregas era importante, nas nossas reuniões pedagógicas conversávamos muito sobre a necessidade de registrar o que as crianças faziam, que ateliês elas estavam escolhendo. A partir dele eu anotava num outro quadro bem grande o que cada criança tinha feito de ateliê a cada dia. O objetivo era ter um controle sobre as atividades das crianças para que pudéssemos fazer o Relatório Individual para os pais.
Como as crianças estavam trabalhando nos diferentes ateliês eu aproveitei para dar uma passeada pela sala, olhar o trabalho deles, ver se precisavam de algo. Sentei-me ao lado de um grupinho que estava no ateliê de escrita.
De repente escuto um barulho de vidro se quebrando.
Nossa sala era toda dividida em cantos, com prateleiras ou biombos (de no máximo 1,20m de altura) separando cada ambiente. Então, ali sentada com as crianças, eu não podia ver o que estava acontecendo lá no outro canto da sala, de onde vinha o barulho. Em voz alta perguntei o que estava acontecendo. “Pode deixar Gláucia! Não foi nada!”.
Pedi que esperassem um pouquinho, que eu já estava chegando lá. Mas, ao chegar, vejo que Peri já tinha ido buscar vassoura e pá e estava recolhendo os cacos. As outras crianças do ateliê também estavam arrumando a bagunça. Ajudei-os a reorganizar o espaço. Estava tudo bem. Eles voltaram ao trabalho.
158
OS INSTRUMENTOS DA PEDAGOGIA FREINET EM AÇÃO
RODA DE CONVERSA
É assim que começamos o dia com as crianças.
Figura 41: Roda de conversa de uma turma de 4º ano na Escola Curumim. Fonte: acervo da autora.
A roda de conversa institui-se como espaço/tempo para as expressões de cada
um e se constitui como possibilidade do acolhimento a todos e a cada um. Um espaço circular
(não mais frontalizado) que se orienta para o acolhimento à palavra da criança, à sua
expressão autêntica e para a construção do diálogo que vai se dar entre professor e aluno
(mas também entre aluno e aluno, dimensão esta não prevista no modelo tradicional). A
professora Andréa Siste (2003, p. 87) nos dá uma medida deste momento na vida do grupo:
a roda é o primeiro momento do dia, nosso primeiro olhar. A própria
situação física já nos proporciona um prazer imenso: sentados no chão, em
círculo, num canto da sala (de preferência longe da porta para evitar
interrupções), podemos ver e ouvir cada um, e somos vistos e ouvidos por
todos também. É o momento da acolhida aos que chegam, tímidos no início.
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Na Roda vamos ver todos que vieram, saber se faltou alguém, vamos marcar o
calendário, escolher os Ajudantes da Semana e pode ser também o momento de organizar
a rotina de trabalho do dia ou da semana. O registro das conversas da Roda é feito no
Livro da Vida (outro instrumento da Pedagogia Freinet que abordaremos mais adiante).
Assim, as crianças e a professora trazem suas novidades para a Roda. Cada um
que quiser falar precisa se inscrever e esperar a sua vez. Nas turmas que já dominam a
escrita, costuma-se combinar com as crianças que tragam suas novidades para serem lidas
aos colegas. As novidades (faladas ou escritas) que vão sendo trazidas pelas crianças
costumam despertar o interesse das outras. O papel do professor reveste-se de cuidado e
atenção para perceber e explorar este interesse. Procurar as possibilidades de exploração
que a novidade trazida oferece envolve nossa escuta atenta e livre de ideias
preconcebidas. É então que podem surgir temas ou projetos de trabalho do grupo. A partir
daí podemos fazer outras coisas na Roda como, por exemplo, compartilhar informações
que eles estão pesquisando sobre os assuntos em torno do projeto.
Figura 42: Roda de conversa de uma turma de 2º ano na Escola Curumim. Fonte: acervo da autora.
160
A CLASSE EM ATELIÊS
É nos ateliês que iremos realizar nossos projetos. A sala se transforma num
canteiro de obras. Pintura, escrita, leitura, fichas de atividades, recorte e colagem,
pesquisas e experiências, o computador: são inúmeras as possibilidades de organização do
trabalho. Nos ateliês oferecemos os materiais necessários para que a criança dê
seguimento aos seus projetos, seus interesses e necessidades.
Figura 43: Trabalho em ateliês de uma turma de Infantil (4 a 5 anos) na Escola Curumim. Fonte: acervo da autora.
Diversas atividades acontecem ao mesmo tempo. Não mais a simultaneidade
de todos fazerem a mesma coisa ao mesmo tempo: temos, nesta forma de organizar o
trabalho no espaço/tempo da sala de aula, a possibilidade de atender às diferentes
necessidades e interesses das crianças. Todos fazendo diferentes trabalhos ao mesmo
tempo, cada um segundo suas necessidades, possibilidades e interesses – inverte-se a
ideia de simultâneo para um “tudo ao mesmo tempo agora”.
161
REFLEXÕES SOBRE O EPISÓDIO
“O que era vidro se quebrou” e se abriu um novo encontro
O pequeno episódio, orientado pelas concepções da Pedagogia Freinet, inscrevia-
se no quadro de uma desconstrução do modelo frontalizado e simultâneo. Iniciávamos o dia
com a Roda de Conversa, abria-se o espaço para a expressão livre das crianças. Mas tudo isto
apresentado assim parece algo simples. Basta sentar-se com as crianças em círculo, conversar
e pronto: está “desfrontalizado” o ensino e agora temos uma relação de acolhimento, de
expressão livre e de ordem democrática na sala de aula. Instaura-se o exercício da cidadania.
É isto mesmo! Mas também não é. As crianças, aquelas ali bem concretas e encarnadas diante
de mim, beliscavam-se, inquietavam-se. Logo começava uma agitação entre elas. E a
professora que eu era ainda se angustiava com os riscos de uma perda de controle.
Após a Roda de Conversa as crianças iam todas trabalhar em diferentes ateliês, cada
uma buscando um trabalho que as satisfizesse nas suas necessidades de produzir algo, de se
expressar. Era assim, mas também não era. Não era tão harmonioso assim este momento.
Algumas crianças encontravam uma atividade, um trabalho ao qual se dedicar, outras ficavam
um pouco perdidas e necessitavam de minha ajuda (Peri e Raoni foram para o ateliê de pintura
mesmo sem a minha concordância). Aqueles alunos, embora fossem crianças pequenas, me
mostravam ser capazes de tomar para si a responsabilidade pelo bom andamento do trabalho,
mas também se mostravam perdidos. As crianças trabalhavam muito, estando eu “sozinha” ou
acompanhada da outra professora, mas eu não percebia este trabalho, sentia que não estava
interferindo adequadamente para produzir neles as corretas aprendizagens. Preocupava-me em
produzir os quadros de controle da frequência em cada ateliê.
E também me sentia só diante da turma. Um certo modelo do ofício de ser
professor colocava-me esta sensação de solidão diante do grupo de alunos. Por que
dizemos que estamos sós diante de uma classe? A História da institucionalização da escola
analisada no terceiro capítulo pode nos mostrar o quanto esse processo se deu de forma a
construir relações de controle sobre a criança, sobre a infância, enquadrando-a aos princípios
ora da doutrinação, ora da racionalização, ora do adestramento e da conformação às
necessidades de formação de trabalhadores.
Como vimos, o projeto religioso – em que o exemplo da Ratio Studiorum elaborada pela
Companhia de Jesus se destaca – foi minuciosamente sistematizado para selecionar, organizar e
162
controlar os conteúdos e os fazeres educativos, prescrevendo um certo modo de estar em relação com
os alunos que esvaziava desta relação o componente de cooperação entre mestre e aprendiz. Instituía-
se um modo de conceber o aluno como alguém a ser domado, alguém contra quem se coloca a figura
do professor. É certo que no próprio processo histórico este modelo foi sendo superado nas e pelas
transformações sociais e políticas que continuaram se dando, porém as práticas, os gestos que já
haviam sido difundidos como a forma pedagógica de realizar o trabalho de ensino permaneceram,
continuaram a desempenhar no imaginário das gerações que se seguiram o papel de modelo para o
modo de relacionamento entre professor e aluno. Pudemos ver isto no próprio surgimento de outros
projetos educativos (entre os quais demos já alguma atenção para as ideias de Comenius). Separado do
aluno, fisicamente distante dele, coloca-se o “professor sol”. A cooperação que se exigirá do aluno
será a de manter-se atento e em silêncio, ouvindo as palavras do mestre.
O papel do professor foi construído de forma a enfatizar como sua a atribuição de
conduzir o aluno. Instalou-se como cerne do fazer pedagógico a ideia de um exercício de controle
sobre a criança, sobre seu corpo e seu pensamento: dentro da sala de aula, os alunos devem pensar
naquilo que diz o professor, devem reagir com “aprendizagem” aos ensinamentos que ele apresenta.
O mestre sabe mais, o mestre sabe o que o aluno deve aprender. O sentimento de solidão instala-se
na própria relação, pois passa-se a entender que esta é uma relação na qual o fazer, a ação do
professor se dá sobre ou contra o aluno e não com o aluno. Logo, estamos sós.
Sei que não estive sozinha neste sentimento de solidão diante de crianças. Minha
experiência profissional, as tantas conversas em momentos de formação de professores, a
escuta de suas angústias e preocupações têm me mostrado que este é um tema recorrente.
A professora Sílvia Cristina Salomão desenvolveu sua dissertação de mestrado
fazendo uma pesquisa qualitativa a partir de sua própria experiência como professora de
Educação Infantil numa rede municipal. Fundamentando sua prática pedagógica em Freinet
e em Freire, seu trabalho defende a importância da escuta à palavra da criança e da
legitimidade da fala infantil como algo confiável e capaz de promover o protagonismo
infantil no processo educativo. Falando sobre o lugar do adulto na relação pedagógica,
conta-nos de seus receios docentes (Salomão, 2008, p. 37):
Falo dos riscos, que minha formação acusava, em perder o controle docente, em
assumir o imprevisto do cotidiano, em não se fazer nada de novo com os pequenos
e ficar apenas na escuta e registro descritivo do cotidiano. Enfim, de não saber o
que fazer e como encaminhar tanta vida nessas falas (grifos da autora).
163
Há mesmo um risco quando nos engajamos em outros caminhos pedagógicos,
quando rompemos com os modelos vigentes. Então por quê? Para quê? Por que enfrentar tantos
riscos? Não seria mais fácil procurar a tranquilidade e segurança de rotinas repousantes, já
“consagradas” pelo discurso pedagógico? Não seria mais fácil e “garantido” ministrar a aula,
transmitir os conteúdos previstos e depois avaliar o grau de sua assimilação pelos alunos?
Nos anos 1960 Piaget publicou Psicologia e Pedagogia, uma das poucas obras
suas (dentre sua vasta produção) em que discute a questão da educação e na qual tenta
explicitar algumas possíveis consequências que seus estudos poderiam ter para as práticas
educativas, possíveis aproveitamentos no campo educacional para toda a pesquisa que
realizara. O próprio Piaget, ao constatar que ainda pouco progredira a prática dos métodos
ativos nas escolas, argumenta (Piaget, 1970, p. 69):
Porque os métodos ativos são muito mais difíceis de serem empregados do
que os métodos receptivos correntes. Por um lado, exigem do mestre um
trabalho bem mais diferenciado e bem mais ativo, enquanto dar lições é
menos fatigante e corresponde a uma tendência muito mais natural no adulto
em geral e no adulto pedagogo em particular.
Empresto da expressão artística e literária do conto de Calvino (colocado logo no
prólogo desta tese) a ideia do estranhamento necessário para de possamos desnaturalizar as
práticas tradicionais instaladas nas escolas há tanto tempo. Sua imagem de alguém acometido
por um raio que ilumina e faz ver as coisas, até ali tão naturalizadas, “semáforos, veículos,
cartazes, fardas, monumentos” como “tão afastadas do significado do mundo” faz sacudir
minha visão. Desequilibra-me e tira do lugar das certezas daqueles que acreditam que “está
tudo no lugar. Está tudo andando como deve andar. Cada coisa é consequência da outra. Cada
coisa está vinculada às outras. Não vemos nada de absurdo ou de injustificado!”
A inspiração que a leitura dos textos de Freinet trazia me proporcionava outras
visões do espaço da sala de aula, outros modos possíveis de me relacionar com as crianças. A
cena daquela sala do episódio narrado tinha uma forma de organizar o trabalho escolar que
rompia com duas das características do ensino tradicional: a frontalização do ensino e o
ensino simultâneo. Dediquei-me a promover uma outra forma de trabalhar, organizando os
diferentes espaços da sala, arrumando formas de ter prateleiras e estantes (que os parcos
recursos daquela escola cooperativa e iniciante limitavam) para criar um outro cenário, um
lugar diferente, mas no qual eu ainda não sabia me movimentar, sentia-me perdida. E,
164
principalmente, com a presença de uns outros (as crianças) que não respondiam do modo
como eu sonhara ao ler as propostas de Freinet.
Ao invés dos riscos provenientes de meu imaginário de professora a quem era
atribuída a tarefa de ensinar e manter o controle sobre o ensinado, escolhi me preocupar com
os riscos concretos que inadvertidamente deixei passar: os frascos de tinta para o ateliê de
pintura eram de vidro e o vidro pode quebrar! Tive que fazer uma aprendizagem simples, que
parece quase uma bobagem, um detalhe ao qual quem não está no dia a dia da sala de aula não
dá muita importância: aprendi a usar frascos plásticos para guardar tintas, cola, anilina etc.
Para realizar um trabalho cooperativo e autônomo uma das preocupações que precisamos ter é
de garantir o acesso fácil e seguro aos materiais de trabalho.
Dividir a classe em ateliês para atender às diferentes necessidades daquelas
crianças (era uma turma de quatro a seis anos de idade) envolvia o risco de não saber
exatamente o que cada criança estava fazendo em cada momento do período de aula.
Enquanto aqueles dois meninos trabalhavam com a pintura, eu estava no outro lado da sala,
ocupada em ajudar outras crianças.
Voltava-me para as leituras do parco material sobre a Pedagogia Freinet
disponível naquela época. Dentre elas, uma publicação do Dossiê Pedagógico da Revista
L’Educateur (publicação do Movimento Freinet francês) me ajudava a refletir sobre minhas
práticas, instigava-me a seguir adiante. Nesta publicação encontramos que:
... nada será feito se não houver uma transformação das relações professor-
aluno, pois a Pedagogia Freinet é uma educação na confiança que é
acompanhada de uma real atitude das crianças de se encarregarem de seu
modo de vida e de trabalho. (L’Educateur, 1979)
Aprender a estar com as crianças promovendo uma transformação nestas relações
envolve um trabalho de nossa parte de proceder a um estranhamento deste papel para romper
com os paradigmas do modelo tradicional. Ainda em Salomão (idem, p. 21):
Para isso, é necessário, mas não suficiente, que haja como ponto de partida o
olhar de estranhamento do educador para com suas próprias práticas
cotidianas, no cenário do próprio espaço educativo, relacionado com a
infância, a criança, seus tempos e espaços.
Com Larossa (idem, p. 184) pudemos compreender que “a infância é um outro:
aquilo que, sempre além de qualquer tentativa de captura, inquieta a segurança de nossos
165
saberes, questiona o poder de nossas práticas e abre um vazio em que se abisma o edifício
bem construído de nossas instituições de acolhimento”. As dificuldades logo se apresentam
quando nos lançamos nesta empreitada de relacionar-se com a alteridade de que se reveste a
infância. Talvez seja preciso pensar no modo como em qualquer aspecto e em qualquer
tempo de nossa vida nos relacionamos com os outros, quaisquer outros (adultos ou crianças).
O primeiro invariante de Freinet (“a criança é da mesma natureza que o adulto”) coloca-me
diante de um outro que, embora da mesma natureza que eu, leva-me a perceber o pouco que
sei de mim, leva-me a pensar na alteridade do eu mesmo. Não sou sempre igual, não sou
sempre um, sou estranho de mim, não me compreendo.
A experiência vivida logo naquele início de carreira me mostrava algo que eu
ainda não conseguia perceber: que podemos estar com os alunos. Sem dúvida há um caráter
de alteridade na relação professor aluno. Assumir esta alteridade da criança abre o fazer
pedagógico para o campo do inesperado, do imponderável. A pedagogia dos gabinetes lida
com uma criança ideal, mas não é ela que encontramos na sala de aula. Neste espaço/tempo
da sala de aula vivemos um encontro com a criança, o “outro concreto” ao qual Fina Birulés
já nos alertava. O projeto da modernidade pretendeu excluir das relações professor/aluno seu
caráter de subjetividade, prevendo relações racionalizadas e estereotipadas, porém, é preciso
reconhecer que, sendo relações entre pessoas, a subjetividade nunca esteve ausente.
Assumir o caráter subjetivo do encontro com este outro, a criança, é uma
aprendizagem que pode ajudar a desenvolver uma “educação na confiança”, e assim superar as
marcas da instituição escolar. Ensinou-me que educar é um trabalho coletivo porque se faz com
outros adultos (pais, colegas, coordenação, direção), mas principalmente com as crianças – nossos
primeiros parceiros. E a própria experiência ia me levando a perceber que nos dias em que a outra
professora faltava a turma se encarregava com mais afinco e responsabilidade da organização do
trabalho. Levava-me a perceber que eu estava acompanhada por 28 pessoas/crianças. Esta e outras
experiências foram me ensinando a confiar nas crianças. Fui aprendendo com Freinet, na prática
desta pedagogia, a deixar brotarem outras formas para esta relação (Freinet, 1991, p. 104):
Essa nova intimidade estabelecida pelo trabalho entre o adulto e a criança,
esse novo grafismo aparentemente sem objeto, valorizado pela matéria ou
pela cor, esse texto eternizado pela imprensa, esse poema que é o cântico da
alma, esse cântico que é como um apelo do ser para o afeto que nos
ultrapassa – é de tudo isso que vive a criança, normalmente alimentada de
pão e conhecimentos, é tudo isso que a engrandece e a idealiza, que lhe abre
o coração e o espírito.
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2ª NARRATIVA: um fracasso que não se silenciou
Ainda no ano de 1984 (quando havíamos recém-mudado a escola para o endereço da Rua Jasmim) eu trabalhava como professora numa turma de 1ª e 2ª série acoplada. Eram poucos alunos (somente dez) e a solução acordada com os pais foi a de reunir as turmas (seis alunos de 1ª série e quatro de 2ª série). Eu me sentia insegura e preocupada com o desafio, mas confiante nas propostas que a Pedagogia Freinet me apontava para atender às diferentes necessidades e níveis de aprendizagem dos alunos. O trabalho em ateliês, a imprensa que tínhamos na nossa sala para produzir o Jornal da Turma e a própria parceria com os pais eram pontos de apoio para conduzir o trabalho. O ano letivo foi se desenrolando, fui seguindo nos meus tateios para aprender a trabalhar com o Método Natural da Alfabetização.
No segundo semestre a escola foi procurada pela mãe de uma criança, para matricular seu filho. Ela foi atendida pela coordenadora, que depois me procurou para falar do caso. Tratava-se de um menino com deficiência intelectual severa. A coordenadora descreveu, em linhas gerais, a situação dele salientando que, além das visíveis dificuldades de fala e expressão, ele apresentava um comportamento hiperativo bastante acentuado. Na entrevista inicial com a mãe o menino estava presente e ela não havia conseguido fazer um contato, um diálogo com ele.
Fiquei bastante ansiosa mas, pensando em outras crianças que já havíamos recebido (com dificuldades ou deficiências leves, é importante explicitar), respondi que poderíamos fazer uma tentativa. E assim, no dia seguinte, Jupi veio para a minha sala.
Eu estava na porta da sala e chamei Jupi (que veio acompanhado da mãe) para entrar. Ele não me olhou nem respondeu, mas foi entrando na sala, procurando alguma coisa. Andava pelo espaço sem se fixar em nenhum objeto ou pessoa. Chamei a turma para nos sentarmos na Roda e ele continuou andando. Logo veio olhar para o grupo, agora sentado em roda e começou a “conversar” balbuciando palavras que eu não compreendia, dirigindo-se a um dos meninos da turma. Continuamos ali sentados e eu o chamei novamente: “venha sentar aqui comigo, Jupi”. Mas poucos minutos depois ele voltou a andar pela sala, dirigiu-se a uma prateleira onde guardávamos o material de desenho e recorte/colagem (papéis, algumas cartolinas, lápis, giz de cera, tubos de cola, tesouras) e derrubou vários destes materiais no chão e, deixando tudo ali, continuou a andar.
Nossa sala era pequena e, além da porta de entrada, tinha também uma segunda porta que dava para um pequeno corredor que levava à secretaria. Jupi saiu da sala por aquela porta e em pouco tempo estava lá fora, na área externa da escola (que era uma chácara bem grande). Fui ao seu encalço. Corri para alcançá-lo. Trouxe-o de volta à sala, mas o outros já estavam dispersos, três deles haviam saído da sala e ido para a amoreira que ficava no fundo da chácara.
O pânico foi se instalando em mim. Aquele menino não parou um só segundo. Foram, talvez, as mais longas quatro horas de aula de que me recordo. Em tudo
167
ele tocava, falava o tempo todo, repetindo frases que eu não compreendia, andava de um lado para o outro, tentava sair da sala e, quando eu tocava em seu braço pedindo para voltar, ele escapulia para outro lado... Naquele dia, deixei a turma sozinha várias vezes para ir atrás dele e trazê-lo de volta à sala.
No final do dia procurei a coordenadora e disse que sentia que não daria conta de trabalhar com aquele menino. Ela concordou comigo e logo no dia seguinte procurou a mãe para dizer que seu filho precisaria de um trabalho especializado e que nós não poderíamos acolhê-lo.
Voltei ao trabalho, fui tocando em frente. Mas a dúvida se instalou. Por que não aquele menino? Já havíamos trabalhado com alguns casos de crianças com algum tipo de deficiência. Um livro de Freinet – A Saúde Mental da Criança (1978) – bastante inspirador e que trata da possibilidade de acolhimento de todas as crianças na escola, fazia-me questionar a decisão que havia tomado. Qual é o critério? Se uma criança pode ir à escola e esta deve estar preparada para recebê-la e atendê-la nas suas necessidades (um princípio da Pedagogia Freinet), por que não outra?
Me senti incapaz de responder a esta pergunta. A saída encontrada naquele momento foi mandá-lo embora.
Mas, naqueles tempos, ainda não se falava em inclusão da forma como hoje a compreendemos. As justificativas para a segregação de pessoas com deficiência em instituições “especializadas” eram o discurso corrente, a visão naturalizada do que se entendia como papel da instituição escolar: uma escola para as crianças “normais”, outra escola para as “não normais”.
Aquela experiência (da recusa) foi se escondendo no fundo da minha memória, outros desafios foram se apresentando, mas a dúvida incomodava; como um calo, intermitentemente, fazia-se doer e lembrar.
168
REFLEXÕES SOBRE O EPISÓDIO
Aprender com o fracasso, aprender com o sucesso, aprender com a diferença
Embora se possa constatar o fracasso nesta experiência narrada, creio que ainda se
pode tirar alguma reflexão interessante ou, talvez, até mesmo por isto (pelo fracasso) é que
vale a pena expô-la e pensar nela.
Há trinta anos a percepção geral da sociedade sobre o lugar para o qual deveria ser
destinada a pessoa com deficiência estava bem estabelecido: a certeza era geral quanto ao
imperativo de sua segregação, de seu confinamento em instituições fechadas. Nosso estudo da
história da escolarização pôde esboçar as linhas gerais pelas quais esta noção foi se formando
socialmente. Poucas referências podemos encontrar sobre as pessoas com deficiência antes da
Idade Média, quando a força do pensamento religioso, exercendo sua hegemonia por meio da
culpa e da punição ao pecado, enxerga essas pessoas como culpadas por sua condição, devendo
ser excluídas ou mesmo castigadas e mortas por seus pecados ou de seus ascendentes. Possuídas
pelo demônio, bruxas ou criaturas bizarras deveriam ser queimadas nas fogueiras da Inquisição.
Naturalizou-se a compreensão da necessidade de segregá-las e a história da pessoa com
deficiência tem sido a história de sua segregação e exclusão, ainda que, muitas vezes, a influência
do pensamento cristão tenha atuado no sentido de dar assistência a elas. A igreja tomava para si a
responsabilidade de atender, educar e dar salvação às pessoas com deficiência.
A partir do século XVI, com o advento do pensamento científico moderno,
teríamos o desenvolvimento da ciência médica que passaria a entender a deficiência como um
problema médico, defendendo que estas pessoas deveriam ter tratamento adequado. É neste
sentido que a segregação do deficiente em instituições aprofunda-se cada vez mais, sendo os
asilos e hospitais os locais para onde eram encaminhados. Este processo foi desenvolvido de
forma que, a partir do século XIX, ampliou-se a criação de instituições com uma abordagem
médica para pessoas com deficiência. A criação, em especial, de instituições manicomiais
visava a separação do deficiente da família e da sociedade. No Brasil, datam de meados do
século XIX as primeiras instituições voltadas para o atendimento de pessoas cegas e surdas.
Neste contexto e durante muito tempo depois, a educação especial foi organizada
de forma paralela à educação regular, baseando-se na concepção de que se deveria ter, por um
lado, um sistema rígido de ensino (a cujas estruturas não se adequariam alunos com
deficiências) e, por outro lado, as instituições mais preparadas para atender as necessidades
169
específicas das pessoas com deficiência (onde eles estariam melhor atendidos). Foi
constituído assim um sistema paralelo de ensino. De acordo com o documento elaborado pelo
Grupo de Trabalho designado em 2006 pelo Ministério da Educação, que define a Política
Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva:
“Essa concepção exerceu impacto duradouro na história da educação
especial, resultando em práticas que enfatizavam os aspectos relacionados à
deficiência, em contraposição à sua dimensão pedagógica”.
Somente a partir da segunda metade do século XX é que se iniciaria uma
discussão sobre os direitos humanos, incluindo a discussão sobre os direitos da pessoa com
deficiência. Ainda segundo o documento citado (BRASIL, 2006, p.330):
O desenvolvimento de estudos no campo da educação e dos direitos
humanos vêm modificando os conceitos, as legislações, as práticas
educacionais e de gestão, indicando a necessidade de se promover uma
reestruturação das escolas de ensino regular e da educação especial. Em
1994, a Declaração de Salamanca proclama que as escolas regulares com
orientação inclusiva constituem os meios mais eficazes de combater atitudes
discriminatórias e que alunos com necessidades educacionais especiais
devem ter acesso à escola regular, tendo como princípio orientador que “as
escolas deveriam acomodar todas as crianças independentemente de suas
condições físicas, intelectuais, sociais, emocionais, linguísticas ou outras”.
Em relação à discussão que temos levado neste trabalho, interessa destacar que
estas mudanças que foram se impondo nos últimos anos dependem, para que continuem
avançando, de que sejam explicitadas e reforçadas as críticas àquilo que vinha sendo tido
como certo e imutável: a escola tradicional.
É neste sentido que os princípios que nos “suleavam” (e aqui a expressão “sulear”,
emprestada de Boaventura Souza Santos, cabe perfeitamente bem pois buscávamos nos
posicionar de um outro lado, em um outro ângulo, para a composição de nossas visões)
naquela escola – inspirados na Pedagogia Freinet – nos idos da década de 1980 já nos
permitiam trabalhar com algumas crianças que, em função de nossas posturas e
posicionamento pedagógico, eram incluídas e “escapavam” da segregação institucional. Já
nos fazíamos como uma escola diferente, como uma escola aberta às diferenças pelos próprios
princípios freinetianos que nos orientavam e nos constituíam.
Quando a inclusão se tornou, nos anos 1990, um tema social e uma reivindicação
da sociedade, nossa decisão em favor dela já estava tomada. As considerações feitas por
170
Freinet nos anos 1950 a respeito do que ele chamou de doenças escolares” tinham, para nós,
repercussões que já nos impulsionavam à inclusão: recebíamos alunos que haviam fracassado
nas escolas tradicionais ou que nem sequer haviam sido aceitos nelas. A percepção da
inadequação do ensino tradicional estimulava-nos a outros desafios. Elise Freinet escreve no
prefácio do livro A saúde mental da criança (1978, p. 10) a síntese das ideias de Freinet e do
movimento de educadores que ele organizou e que também nos inspiravam:
É o ensino desvitalizado e constrangedor que provoca, nas crianças,
fisiológica e psiquicamente frágeis, as doenças escolares. Porque é preciso
chamá-las pelo seu nome, de tal maneira os seus sintomas são significativos
quanto a síndromas caracterizados: o escolismo, a domesticação, os
complexos e as fobias, a anorexia escolar são desregramentos profundos
inscritos no processo generalizado da dislexia.
Existiram fracassos, é certo. O episódio narrado infelizmente explicita isso. Mas os
fracassos constituíram desafios para a sua superação. O fracasso e os erros fazem parte do
processo. Mas o que poderia ter sido resolvido como uma racionalização que encontrava
respaldo nas práticas correntes de exclusão e segregação, ao continuar incomodando, ao
continuar presente como fonte de inquietação, motivava-me à busca por outras respostas. O
processo de inclusão foi se instaurando gradativamente na escola como uma prática sistemática.
Uma reflexão diz respeito aos perigos que podem advir quando simplesmente são
matriculados alunos com deficiência em classes de ensino simultâneo: o risco da
discriminação e exclusão ficarão rondando esta criança e o grupo no qual ela foi incluída. É
neste sentido que a diferença é uma presença natural quando falamos da dinâmica que a
Pedagogia Freinet propõe: nos ateliês todos fazem coisas diferentes, buscam atender suas
necessidades segundo seus ritmos, potencialidades, interesses, situação que é bem diferente
do ensino simultâneo no qual todos fazem a mesma coisa ao mesmo tempo e, neste caso, a
entrada do diferente é um transtorno que leva ao atendimento diferenciado somente para a
criança com deficiência que está sendo incluída ali.
Mantoan (2013, p. 63) nos alerta para o problema de uma inclusão que não toque
mais a fundo no problema da “velha matriz de concepção do ensino escolar”. O ensino
simultâneo é regido pela lógica de que a homogeneidade da classe é o requisito para o
trabalho pedagógico de exposição dos conteúdos a serem assimilados pelo aluno. Neste
contexto e sob estas concepções, o diferente é singularizado, destaca-se. É como se só
houvesse uma diferença, um diferente e todos os outros fossem iguais. A sequência desta
171
lógica é ministrar duas aulas: uma para a criança que apresenta qualquer dificuldade para
adquirir os conteúdos previstos e, outra, para o resto da turma (os iguais). Segue mais uma
consequência que é mais problemática ainda: a questão da avaliação.
O exemplo daquele primeiro relato lá no início deste trabalho, quando narrei a reunião
de conselho de classe e o caso daquele menino com Síndrome de Down, já dá uma mostra dos
embates que é necessário enfrentar para poder fazer frente ao trabalho inclusivo. A discussão
naquele Conselho de Classe já se inscrevia num quadro social que avançava na defesa da inclusão e
dentro da escola o ambiente tinha gradualmente se transformado. Em 1999 já se tinha a Declaração
de Salamanca (Espanha, 1994) embasando as Diretrizes Nacionais da Educação brasileira. Porém, a
discussão sobre a avaliação ainda resvalava, ainda ecoavam as questões da meritocracia presentes
no imaginário dos professores. É no diálogo com Mantoan (idem, p. 63) que vejo ser explicitado o
que, como coordenadora da escola, defendia nos diálogos com eles:
A avaliação do desenvolvimento dos alunos também muda, para ser coerente
com as outras inovações propostas. Acompanha-se o percurso de cada
estudante, do ponto de vista da evolução de suas competências para resolver
problemas de toda ordem, mobilizando e aplicando conteúdos acadêmicos e
outros meios que possam ser úteis para se chegar a soluções pretendidas;
apreciam-se seus progressos na organização dos estudos; no tratamento das
informações e na participação na vida social da escola.
A entrada de crianças com necessidades especiais torna difícil a reprodução dos
velhos métodos, repetindo as velhas avaliações e classificações. As adaptações e mudanças
que vamos fazendo no trabalho, são destinadas a todas as crianças, não só para crianças com
deficiências e, ao atenderem melhor as crianças com deficiências, ajudam a criar o ambiente
inclusivo para todos.
Este processo gradativo de assumir a inclusão na Escola Curumim aos poucos
ganhou mais consistência, foi sendo assumido por todos nós, cada vez com mais convicção
e disposição. Isto porque, se o fracasso mobilizou a atenção e foi fator de estímulo para sua
superação, o sucesso também exerceu papel fundamental no fortalecimento de nossas
práticas na busca de uma pedagogia da diferença (para todos). Outras experiências vieram,
novos desafios foram enfrentados e com eles fui aprendendo a fazer um trabalho
pedagógico com e para todas as crianças.
A dissertação de mestrado da professora Laurindo (a qual tive oportunidade de
acompanhar e participar) constitui rico exemplo de um estudo de caso que aborda sua própria
experiência com a inclusão na Escola Curumim, no ano de 1999. As reflexões que ela faz
172
sobre as dificuldades enfrentadas face à inclusão nos dão pistas sobre os desafios (que são
sempre pessoais e escapam às racionalizações sobre as quais se assentava a escola
tradicional). Seu trabalho enfrenta as questões de nossa formação (tanto as vivências sociais
como as escolares), que dão uma sensação de despreparo. Nas suas palavras (2003, p. 8):
Estava aí, portanto, uma constatação que me levou a refletir sobre a situação
vivida por nós, professoras e professores, com o trabalho de inclusão: fomos
criados para uma sociedade na qual a diferença é considerada incapacidade e
o sujeito diferente não só como incapaz mas como “monstro assustador”
porque capaz de ação imponderável.
No próprio título de sua dissertação (“A educação pelo outro: Lorelai, uma
experiência de inclusão”), Laurindo explicita e reflete sobre as dificuldades que se colocam a
nós quando diante do desafio da inclusão. Enfatizo a expressão “a educação pelo outro”, que
já aponta para um processo que não é só o de educar “o outro”, mas também educar-se “pelo
outro”. A autora reflete (idem, p. 20): “vivi e senti tudo isso, mas nunca deixei de estar
disposta a trabalhar com todas as crianças sem distinção, lutando bravamente comigo mesma,
com meus medos, nojos e preconceitos”.
Vínhamos trabalhando no sentido de superar a velha matriz tradicional, mas ainda
tínhamos que trabalhar para superar os “medos, nojos e preconceitos”, que se inscreviam em
nossa formação. Este processo envolve um trabalho pessoal de desconstruir as identidades
para nós fixadas em nossa formação. A primeira das características elencadas sobre a escola
tradicional (as identidades fixadas dos sujeitos na escola) aponta para a problemática que se
estabelece nas relações entre professor e aluno: preparamo-nos nos bancos universitários para
entrar numa sala de aula padrão e para ensinar um aluno ideal que nos foi apresentado.
A escolha de trazer para este diálogo o trabalho de Laurindo tem mais um motivo
importante: ainda que de forma não totalmente direta, estive presente e participando, como orientadora
pedagógica, de toda a experiência ali narrada. Esta é uma aprendizagem que pude fazer sobre a
necessidade de parcerias na construção de um ambiente educativo inclusivo: é papel da coordenação,
da direção estar presente na sala de aula, entrar neste espaço, às vezes só mesmo para quebrar um
círculo de crise que se estabeleceu nas tensões que naturalmente fazem parte do convívio das crianças
– entre si ou com o adulto. Porque tensões e conflitos são parte inerente do trabalho de relacionar-se
todos os dias, num espaço institucional com outros seres humanos. Fui muitas vezes, e ainda vou, à
sala de aula, ajudar as professoras, intervir nas situações com as crianças. Embora no episódio narrado
o que se expressou foi uma recusa à matrícula de Jupi, tive, nos anos seguintes, outras oportunidades
173
de receber alunos com deficiências. Nos diálogos e orientações com os professores, depois, quando
me tornei orientadora (e depois diretora), a experiência vivida permitia-me uma compreensão mais
profunda sobre as dificuldades que eles enfrentam.
Fosse no papel de professora, orientadora ou diretora, colocava-se para mim o
imperativo de uma escola para todas as crianças, colocava-se a inclusão como uma “lei” na
escola. Mas, mesmo sendo “a lei para todos”, não pode ser algo que a direção da escola impõe aos
seus professores: “aí está este aluno: trabalhe com ele, faça a inclusão”. Ou seja, se “a lei é para
todos”, a coordenação e a direção devem participar. É importante explicitar que inclusão a gente
faz junto, todo mundo na escola – do porteiro à direção. Hoje temos, em todas as classes, vagas
(duas ou às vezes mais) para crianças ou adolescentes com algum tipo de deficiência, transtorno
ou incapacidade. Os quadros anexos (ver Anexos X) mostram quantitativamente como está
construída dentro da nossa proposta a política de inclusão da escola.
No episódio Jupi, aquela mãe buscava uma escola regular para seu filho de maneira
tímida e conformada. Ela foi ousada sob certo ângulo, pois a solução vigente era a da instituição
especializada. Hoje somos procurados por pais e mães para matricular seus filhos que têm alguma
deficiência e também por professores, estudantes e outros profissionais interessados em conhecer
nosso trabalho. Neste sentido é impossível não se animar com um certo otimismo, se pensamos no
quanto o quadro geral da sociedade mudou nos últimos trinta anos. Além disso, a legislação para a
inclusão tem avançado positivamente e instituiu o Atendimento Educacional Especializado. A
presença deste profissional dá suporte para o processo de construção de uma escola efetivamente
para todos, na medida em que ele seja recebido como parceiro e que não lhe seja atribuído o papel
de promover uma “normalização” da criança com deficiência (e muito menos o de substituto do
professor). É preciso ter em mente que a inclusão é na sala de aula, onde ocorre o convívio entre os
alunos. É lá que todos os alunos devem ser incluídos, é lá que todos devem se encontrar.
174
AFINAL, PARA QUE ESTAMOS PREPARADOS?
As reflexões anteriores levam-me a outras considerações sobre questionamentos
mais frequentes e incisivos feitos por professores e professoras nas inúmeras ocasiões de
formação em que trabalhei – minicursos, palestras, aulas – a alegação por parte deles: “mas nós
não estamos preparados para trabalhar com esta criança com deficiência”. Uma constatação que
se faz necessária diz respeito à questão do “estar preparado”. Nosso modelo de formação
apresenta-nos um aluno ideal, tornado conhecido pela nossa ciência positiva. E, embora não
seja com este aluno ideal que nos encontramos no cotidiano da escola, apegamo-nos às
prescrições racionalistas e lançamos mão dos mecanismos colocados à nossa disposição (como
a seriação e a avaliação padronizadora) para colocar dentro de uma “curva” os desvios mais ou
menos aceitáveis. Ficamos com uma falsa sensação de preparo quando classificamos e seriamos
os alunos. A reprovação escolar é uma forma de confirmarmos nosso “preparo” para excluir os
que não se comportam segundo o modelo. Aplicam-se provas, testes e avaliações que dizem
muito sobre o que se quer que o aluno saiba, o que ele deveria reproduzir dos ensinamentos e
explicações que lhes fornecemos, mas pouco sobre o que ele possa querer saber. Muito pouco
sobre quem é este outro com quem nos relacionamos no espaço da sala de aula.
Uma aprendizagem que tenho como das mais preciosas é que somente convivendo
com as crianças com deficiências é que podemos aprender a construir um convívio respeitoso,
construtivo, produtivo, saudável. Pode-se discutir métodos inovadores, reciclar práticas
tradicionais, mas somente a partir da mudança do corpo discente é que o corpo docente se
verá efetivamente diante da exigência de praticar uma nova pedagogia. A mudança do corpo
discente (entendida aqui como a entrada das crianças com deficiências) irá trazer novas
aprendizagens para o corpo docente e ajudará a compor novas transformações para o espaço
escolar. Aprendi que a Inclusão poderá se constituir em motivo para construirmos a escola
como um lugar seguro e bom para todos. Um lugar de encontro.
No episódio narrado, eu também me sentia “sem preparo” para receber aquele
aluno. Mas me manter insatisfeita com meu “despreparo” implicou em não desistência.
Implicou também em não buscar o caminho de uma certa preparação que se liga ao desejo de
saber tudo sobre a deficiência, que se liga ao desejo de reduzir nossa ignorância sobre as
características de cada uma das deficiências.
175
Assim como a instituição escolar teve sua constituição vinculada ao pensamento
científico, também no período do final do século XVIII e inícios do século XIX surge a
medicina tal qual a conhecemos hoje em dia: uma ciência fundada no olhar clínico para a
anatomia e patologia. Ela se torna o campo do discurso científico sobre o indivíduo, tomando
o homem como objeto do saber positivo. Tomaria para si a tarefa de definir o homem-modelo
e o estudo dos desvios (doenças) objetivam ao tratamento e à normalização.
O avanço da ciência aprofundaria e legitimaria os procedimentos classificatórios,
ampliando o aspecto normativo da medicina. Ganha ampla repercussão o discurso do
diagnóstico. Para além das doenças do corpo, entram na composição dos saberes médicos
científicos as doenças e transtornos mentais. Nesta linha é que surgem os manuais de
diagnósticos, dentre os quais, o Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, o
DSM (Manual de Estatística e Diagnóstico), que é considerado um instrumento importante
entre aqueles que se dedicam ao campo. Toda ordem de comportamento que se desvia de um
padrão estabelecido ganha rótulo de doença e é elaborado um remédio para o mal. Trata-se do
fenômeno da medicalização (a que já nos referimos no primeiro capítulo desta tese), que tem
tido repercussões sobre as questões da educação especial.
Esta forma de encarar a questão da educação especial está bastante disseminada.
São promovidos cursos para professores com o objetivo de ensinar “tudo sobre o autismo” ou,
pior, “tudo o que o professor precisa saber sobre o autismo”, ou sobre a Síndrome de Down,
ou sobre os Transtornos do comportamento (os famigerados TDA, TDAH e outras infindáveis
siglas). Como se agora, de posse dos conhecimentos sobre a deficiência, nós estivéssemos
“prontos” para o trabalho com estas crianças, “prontos” para submetê-las às nossas práticas.
Claro que buscar conhecimentos sobre as crianças (com ou sem deficiência), aprender
sobre suas dificuldades e necessidades é mais do que necessário, é compromisso de nossa profissão.
Mas, para além do conhecimento técnico e científico (que em muitos casos deve ser colocado entre
muitas aspas) sobre as deficiências, há uma aprendizagem que se faz na relação, que é da ordem do
subjetivo e que só se faz possível no encontro com o outro. Aprendi com as muitas experiências
vividas que nunca serei capaz de saber tudo sobre qualquer coisa, menos ainda sobre outros seres
humanos (e talvez esta seja a maravilha de educar). Aprendi com Freinet que “a vida prepara-se pela
vida” (1991, p. 23) e esta aprendizagem é desdobrada para compreender que o convívio com a
diferença é aprendido no convívio. Estar preparado para trabalhar com crianças com qualquer tipo
de deficiência é estar disposto (não pronto) e aberto a um convívio que nos educa, que nos forma e
nos transforma. A inclusão prepara-se pela inclusão.
176
3ª NARRATIVA: expressões livremente impressas e a doce experiência de si e do outro
No ano seguinte (1985) assumi uma turma de 1ª série com 15 alunos. Eu continuava desafiada ao trabalho com a Pedagogia Freinet: alfabetizar sem cartilha, sem apostila, utilizando a Imprensa Escolar para a produção do Jornal com os textos livres dos alunos. Iniciávamos o dia com a Roda de Conversa mas, na hora de organizar os ateliês, eu ainda me via num tumulto, achava que os combinados para que eles se dirigissem aos seus trabalhos ficavam confusos. Eu me preocupava muito em “não perder tempo”, mas até que os ateliês entrassem em funcionamento eu sentia que precisava orientar cada criança, encaminhá-la ao trabalho, garantir que ela tivesse uma atividade adequada às suas necessidades para realizar. Preocupava-me e buscava me certificar de que cada um realizasse o trabalho sob a minha supervisão. Talvez seja importante mencionar que dentro da escola não havia um consenso quanto à adoção da Pedagogia Freinet e, portanto, o sucesso do trabalho com aquela turma tinha um peso maior para mim, como defensora da proposta. Mesmo com uma classe de crianças ditas “normais”, é claro que eles eram muito diferentes entre si. Havia dois meninos (que chamarei de Joaci e Acir) que me preocupavam bastante pois, cada um à sua maneira, recusava-se a fazer qualquer trabalho. Aquilo me deixava estarrecida: como assim? Numa proposta pedagógica que enxerga o trabalho como uma necessidade vital para toda criança, por que eles se recusam? Será que estou oferecendo opções adequadas? Será que não estou percebendo seus interesses e necessidades? O que está “travando” esses meninos?
O semestre estava correndo e eles ainda não mostravam avanços no domínio da escrita. Pelo menos não para mim, o que me afligia mais e mais. Como fazer para ajudá-los a dar o “clique”? (era assim que, nas nossas conversas informais sobre o trabalho de alfabetização, denominávamos o processo de descoberta da escrita e da leitura). Voltava à leitura de Freinet. Achei num livro de Bruno Ciari (1978) o relato de uma técnica que ele utilizava com seus alunos, a partir do texto livre surgido na roda de conversa. Escolhido o texto que motivara o interesse dos alunos, este seria transcrito num cartaz: na parte superior, a frase deveria ser escrita com letras de imprensa e, na inferior, com letra manuscrita. No meio do cartaz, as crianças poderiam ilustrar as palavras principais. Pus as mãos à obra. Na roda inicial da segunda-feira escolhíamos um texto (uma história contada por uma das crianças), extraíamos a frase principal e a colocávamos no cartaz. As palavras significativas estariam bem visíveis e as crianças poderiam consultá-las como referência para suas outras produções, para suas outras tentativas de escrita.
Fomos seguindo, mas eu não tinha certeza de que aquilo estava sendo útil para aqueles meninos. Certo dia as crianças estavam trabalhando nos ateliês e um deles estava no ateliê de escrita. Eu atendia a outra criança quando Joaci, de lá de sua carteira, pergunta: “Gláucia, doce é com C ou com S?” Parei o que estava fazendo e fui ver o trabalho dele. Joaci estava escrevendo! Do jeito dele, mostrava para mim que já sabia as letras da palavra doce (só tinha uma questão ortográfica a resolver) e várias outras palavras que compunham seu texto. Doce experiência!
177
Mas eu ainda não estava tão segura de que a turma toda estava no rumo certo, de que estavam envolvidos do jeito que eu gostaria que estivessem. Achava que o trabalho nos ateliês era muito tumultuado e que eles não tinham autonomia, por exemplo, para fazerem o jornal. Foi mais perto do fim do ano que um “clique” finalmente aconteceu para mim. Havíamos discutido em roda sobre o que faríamos para o final do ano e, embora eu achasse que eles não iriam nem pensar em propor mais um jornal (eu já estava até mesmo conformada que talvez eles nem gostassem tanto assim de trabalhar com a imprensa), qual não foi a minha surpresa quando eles disseram que queriam fazer um Jornal do Natal. Fiquei feliz e já comecei a perguntar sobre quais textos iríamos publicar, como faríamos as escolhas... Em uma palavra, tentei assumir o comando daquela produção.
Mas as crianças não deixaram. Saíram da roda e foram direto para o ateliê de imprensa. Foram se organizando entre eles, alguns se sentaram diante da caixa de tipos e, conversando entre si, iam decidindo qual frase formar. Então eles a compunham nos componedores e a seguir outras crianças já levavam a frase para o prelo e começavam a sua impressão. Tentei chegar ali e interferir no trabalho deles: “turma, o que vocês estão fazendo? Vocês já sabem quais textos querem imprimir?” Mas eles foram claros comigo: “Gláucia, pode deixar, nós vamos fazer isso sozinhos”. Um deles, muito gentilmente, levou-me para fora da sala! E as crianças voltaram ao trabalho, inclusive Joaci e Acir.
O que era isso? Entre rejeitada pelos meus próprios alunos e feliz pela capacidade de iniciativa e de trabalho que eles estavam demonstrando, saí da sala. Quando voltei eles continuavam a produzir o jornal – uma coisa linda, diga-se de passagem – e fui para a minha mesa, procurar outro trabalho para fazer.
O ano letivo chegou ao fim e eu estava contente com os resultados, mas percebo hoje que ainda não compreendia o significado daquela experiência. Ainda teria que viver muita coisa para começar a reunir as pontas dessas fitas que iam se desenrolando no processo de me tornar uma educadora freinetiana.
178
OS INSTRUMENTOS DA PEDAGOGIA FREINET EM AÇÃO
O TEXTO LIVRE, O JORNAL ESCOLAR, A IMPRENSA
Para dar aos textos livres de suas crianças o valor de letra impressa, Freinet
introduziu o Jornal Escolar, utilizando a imprensa escolar. Os textos que foram lidos na
Roda de Conversa podem então ser escolhidos para figurarem no jornal da turma. Como
princípio geral o Jornal Escolar não precisa ter o formato dos jornais comuns, eles têm
como objetivo valorizar o texto livre da criança, multiplicando-o e divulgando-o na
comunidade. Ao defendê-los, Freinet escreve (1974, p. 21):
Nas nossas classes, a criança conta primeiro e, mais tarde, escreve
livremente aquilo que sente necessidade de exprimir, de exteriorizar, de
comunicar aos que com ela convivem ou aos seus correspondentes. Não
escreve uma coisa qualquer. A “espontaneidade” que tem sido tão
discutida, não deve ser para nós uma fórmula pedagógica. A criança
exprime-se inserida num contexto que nos cabe tornar o mais educativo
possível, com objetivos que devemos englobar nas nossas técnicas de vida.
Elise Freinet descreve os esforços iniciais para introduzir a Imprensa Escolar.
Dar vida à técnica do Texto Livre, permitindo que ele fosse multiplicado, foi sempre o
principal objetivo. O Jornal Escolar é “uma recolha de textos livres de crianças, expressão
fiel dos principais interesses da classe no seu meio ambiente” (Freinet, 1974, p. 40).
179
Figura 44: A imprensa escolar na minha classe de 1ª série: o prelo (à esquerda) e o aluno trabalhando na caixa de
tipos (à direita). O menino ajoelhado recolhe alguns tipos que caíram (1983). Fonte: acervo da autora.
A livre expressão abre ao adulto a possibilidade de entrar em contato com a
infância, conhecer seus interesses, sua forma de ver as coisas que a cercam; permite, de
certa maneira, “entrar” em sua psicologia, comungar com ela a experiência do mundo.
Figura 45: Dois alunos apresentam a caixa de tipos a um visitante numa exposição (Escola Curumim, 1983).
Fonte: acervo da autora.
180
Os tempos mudaram e, com eles, os modos de se produzir a expressão;
mudaram as mídias, outros instrumentos e ferramentas. O próprio Freinet se expressou
claramente quanto à necessidade de propiciar às crianças uma apropriação dos meios que
cada época oferece (1974, p. 11): “cada época tem uma linguagem e utensílios que lhe são
próprios”. E mais à frente explicita:
Estamos atualmente na aurora de um novo período: a imprensa impôs a tal
ponto a sua soberania que mesmo o manual mais rico não passa de um “ersatz”
da riqueza gráfica posta à disposição de todos pela técnica contemporânea. A
própria escrita manuscrita tende a minimizar-se num mundo em que a máquina
de escrever, a poligrafia, o disco, a rádio, o cinema, a televisão, o gravador,
intensificam e aceleram a intercomunicação e as trocas.
Hoje usamos outras tecnologias para reproduzir os textos, mas o princípio
fundamental permanece. Não mais os velhos manuais, mas a palavra da criança, sua
expressão ganhando leitores. O Jornal Escolar recupera a escrita na sua função social: a
criança escreve para ser lida. Hoje temos a internet, que não pode ser ignorada ou
rejeitada (como, às vezes, ainda se faz). Na escola onde trabalho, as crianças têm (cada
turma) um blog que elas alimentam com textos, notícias, pesquisas. O que permanece
como espírito desta mudança na dinâmica da sala de aula, nos instrumentos que nós
professores iremos introduzir, é novamente Freinet que, em “Pedagogia do Bom Senso”,
fala-nos de forma poética: “as crianças precisam de pão e rosas”:
Precisam sentir que encontraram em você, e na sua escola, a ressonância de
falar com alguém que as escute, de escrever a alguém que as leia ou as
compreenda, de produzir alguma coisa de útil e de belo, que é a expressão de
tudo o que trazem nelas, de generoso e de superior. (FREINET, 1991, p. 104)
181
Figura 46: Páginas internas do mesmo Jornal. Fonte: acervo da autora.
182
OS ÁLBUNS
Na mesma linha do Jornal Escolar, temos os álbuns, individuais ou coletivos.
Podem ser uma coletânea de textos livres, o registro de uma pesquisa ou de um projeto
que o grupo realizou, o registro de uma aula passeio etc.
São sempre bem ilustrados com desenhos ou pinturas. No final do ano letivo
os álbuns coletivos são levados à biblioteca para serem arquivados. Eles se tornarão
fonte de consulta para outros alunos e, assim, pode-se transitar do aluno consumidor de
apostilas para o aluno autor.
Figura 47: Álbuns de alunos de uma turma de 2º ano.
183
REFLEXÕES SOBRE O EPISÓDIO
Deixar falar a criança para conhecê-la; pelo trabalho transformar esta palavra
em objeto de fruição para todos
A pergunta que me fazia como professora, naquele momento, era sobre a motivação e
interesse de Joaci. Formulava a hipótese de que sua recusa em trabalhar estava ligada ao
desinteresse pelo que era proposto. A preocupação com o processo de alfabetização mobilizava
minhas atenções. Coloquei as mãos à obra para proporcionar mais materiais de leitura. Então, além
dos cartazes com o texto escolhido na roda, produzi um fichário de palavras para a turma: pequenos
retângulos de cartolina (10cm x 7cm) com uma figura (recortada de revistas) e a respectiva palavra
escrita em letra bastão e script. Lembro-me que isto também não chamou a atenção de Joaci e, mais
ainda, lembro-me da frustração que isto me causou. Mas, apesar de empenhada em aprender a
conduzir o trabalho pedagógico segundo os princípios da Pedagogia Freinet, naquele momento, o
que fiz foi não fazer nada. Nem posso dizer que o que fiz foi esperar tranquilamente, confiando que
o tempo de cada um é diferente e que as formas das crianças de se aproximarem de algo
desconhecido para elas passa por caminhos muito particulares, que quase nunca estão à vista e
muito menos sob nosso controle. Esperei, mas não tranquilamente. Fomos seguindo nosso dia-a-dia.
Mas eu me encontrava em uma espécie de “estado de suspensão” e hoje diria que era nisto que se
constituía o meu próprio tateio experimental. Fui aprendendo, aos poucos, que o conhecimento
sobre a experiência nem sempre se dá concomitantemente à experiência.
Uma certa esperança às escuras, mas não uma esperança passiva, ia me
constituindo. Eu acreditava nas possibilidades de uma alfabetização sem cartilhas, sem
explicações professorais; voltava-me aos estudos de Piaget, encontrava neste autor as
explicações sobre como se dá o desenvolvimento e a aquisição de conhecimentos pela
criança, mas me sentia numa situação de risco, com medo de que fracassássemos (meu
aluno e eu). Continuei buscando.
Trago ao diálogo as reflexões propostas pelo filósofo Jacques Rancière (2010)
que só vim a conhecer muitos anos depois, mas que fizeram sentido para as questões que me
colocava nos meus inícios de professora. Rancière nos apresenta a história de Joseph
Jacotot, um pedagogo francês do início do século XIX. Rancière já alerta que a voz solitária
deste mestre “em um momento vital da constituição dos ideais, das práticas e das
instituições que ainda governam nosso presente, ergueu-se como uma dissonância inaudita”
a apontar para as incoerências da instituição pedagógica.
184
Tendo vivido uma experiência de ensinar a alunos holandeses sem saber uma
palavra deste idioma, e tendo constatado que ela havia contrariado os princípios da pedagogia
que ele próprio praticara por toda a vida, Jacotot viu-se diante de uma revelação que “se
relaciona ao seguinte: é preciso inverter a lógica do sistema explicador. A explicação não é
necessária para socorrer uma incapacidade de compreender” (idem, p. 23). Esta revelação
levaria Jacotot a uma aventura intelectual que causou comoção e polêmica em diversos meios
intelectuais e políticos da época e, vale ressaltar, também neste início de século XXI, quando
é trazida novamente ao debate pelo filósofo.
As proposições deste professor partiam de uma crítica ao princípio da explicação
que já se difundira amplamente nos modelos pedagógicos vigentes que, para ele, constituem o
“princípio do embrutecimento”: quanto mais “esclarecido” o mestre explicador, mais irá
apoiar sua ação pedagógica neste procedimento de explicar, lançando mão do método mais e
mais apurado para se fazer entender:
O procedimento próprio do explicador consiste nesse duplo gesto inaugural:
por um lado, ele decreta o começo absoluto – somente agora tem início o ato
de aprender; por outro lado, ele cobre todas as coisas a serem aprendidas
desse véu de ignorância que ele próprio se encarrega de retirar (idem, p.24).
O espaço escolar constituído historicamente foi forjado como espaço de controle e
vigilância sobre a aprendizagem: medir, contabilizar os progressos ou retrocessos de cada
aluno e, por meio da explicação, controlar a forma como o aluno está aprendendo. No caso da
aquisição da escrita temos os métodos de alfabetização que partem do supostamente “mais
simples” para o “mais complexo”. Bastaria explicar ao meu aluno o como juntar as letras e
formar as palavras e tudo se resolveria. Freinet (1977, p. 27) alerta para o insólito desta
postura, desta forma de conceber a questão educativa:
Se a criança não compreendeu, é preciso explicar-lhe, fazer-lhe ganhar
consciência das razões de sua incompreensão. E só intelectualmente se pode
explicar, como se os mecanismos sensíveis do indivíduo funcionassem em
circuito fechado, no cérebro soberano.
Nossa faina de conhecer, capturar, esquadrinhar, catalogar a criança, esse
arcabouço de tudo que já sabemos sobre a infância, pode nos dar uma sensação de domínio,
um sentimento de segurança sobre o que e como fazer. Mas ainda assim ela nos escapa. É
185
com Larossa (2000, p. 184) que dialogo para pensar nisto que ainda não sabemos sobre a
infância e que, portanto, nossas explicações não alcançam.
O que ainda não sabemos não é outra coisa senão o que se deixa medir e
anunciar pelo que sabemos, aquilo que o que sabemos se dá como meta, como
tarefa e como itinerário pré-fixado. A arrogância do saber não apenas está na
exibição do que já se conquistou, mas também no tamanho de seus projetos e
de suas ambições, em tudo aquilo que ainda está por conquistar, mas que já foi
assinalado e determinado como território de conquista possível.
Mas se entendo (com Freinet) que “a criança é da mesma natureza que o adulto” e é
também (com Larossa) o outro do qual nada sei, é preciso que reflitamos sobre nossa forma de
nos relacionarmos com o outro, seja ele adulto ou criança. Se quando me relaciono com adultos
entendo que se tratam de alteridades às quais se impõe o limite do respeito (não posso
transformá-los em objeto de minha vontade de poder, de saber), o mesmo não se dá (na tradição
da relação educativa) quando nos relacionamos com a infância. Se, entre adultos, minha
arrogância explicadora é interditada pelo outro, que se defende de igual para igual, a infância é
mais indefesa e suscetível. Provém daí todo o movimento histórico que coloca para a pedagogia
a função de formar o homem-cidadão de uma “nova ordem” que deveria ser construída por nós
mesmos nas relações políticas entre adultos. Mas esta manobra, denunciada por Hannah Arendt
(2003, p. 226), tira das mãos da criança suas oportunidades de, enquanto algo de novo que
adentra o nosso mundo, transformá-lo pela própria novidade que ela representa.
Pertence à própria natureza da condição humana o fato de que cada geração
se transforma em um mundo antigo, de tal modo que preparar uma nova
geração para um mundo novo só pode significar o desejo de arrancar das
mãos dos recém-chegados sua própria oportunidade face ao novo.
E, no entanto, é a própria Arendt quem coloca mais uma questão ao nos lembrar que a
educação tem a ver com o dar acesso – para o novo que chega – às heranças simbólicas do mundo
para que ela possa fruí-lo. E isto me coloca diante da responsabilidade que o estar com crianças
acarreta. Estamos então aqui em um ponto que nos coloca diante de duas negativas: nem quero
submeter a criança ao meu conhecimento, tornando-a objeto de minha ação, negando a ela sua
oportunidade de ser o novo no mundo, nem quero me eximir da responsabilidade que a presença,
a vinda de crianças ao mundo impõe-se a mim, como adulto que as recebe. Nem isto, nem aquilo.
Teimosamente eu acreditava na possibilidade de ser como o mestre emancipador,
que na leitura de Jacotot encontrei ressonância. Ser um mestre emancipador exige bem mais
186
de nós, pois não se trata apenas de deixar nossos alunos à própria sorte e nem de submetê-los
ao nosso controle estrito. Cito mais um trecho de Rancière (2010, p. 31) que discute a questão
do trabalho do professor em Jacotot:
Eles haviam aprendido sem mestre explicador, mas não sem mestre. Antes,
não sabiam e, agora, sim. Logo, Jacotot havia lhes ensinado algo. No
entanto, ele nada lhes havia comunicado de sua ciência. Não era, portanto, a
ciência do Mestre que os alunos aprendiam. Ele havia sido mestre por força
da ordem que mergulhara os alunos no círculo de onde eles podiam sair
sozinhos, quando retirava sua inteligência para deixar as deles entregues
àquela do livro. (Grifo meu)
Do nosso estudo da história ecoam as perguntas: educar não estava ligado à
existência de um espaço escolar e de um professor explicador? Onde foi que aquele menino
aprendeu a escrever? Afinal, quem alfabetizou Joaci?
Nem deixá-los à própria sorte, nem fazer deles espectadores passivos de minhas
explicações. E, naquela turma tínhamos – eu e meus alunos – um instrumento bem concreto, a
impressora, para permitir os tateios, as pesquisas dos alunos quanto à palavra escrita. Uma
palavra escrita que revestia-se de significado e emergia do próprio contexto das crianças. Uma
palavra que ao ser apropriada permitia que as crianças se apropriassem ao mesmo tempo de
sua função social de comunicação e expressão. Escreve-se para ser lido.
Piaget, ao analisar as iniciativas pedagógicas dedicadas a favorecer processos
mais adaptados ao desenvolvimento da inteligência, escolheu citar o trabalho de Freinet como
um exemplo. Ele ressalta (1970, p. 71):
Sua célebre ideia da imprensa escolar constitui a esse respeito uma ilustração
particular entre outras, mas especialmente instrutiva, porque é evidente que
uma criança que imprime pequenos textos chegará a ler, a escrever e a
ortografar de uma maneira bem diferente do que se não possuísse qualquer
ideia sobre a fabricação dos documentos impressos de que se serviu.
E aqueles meus alunos, de repente, estavam produzindo algo de belo e de útil. Faziam
um Jornal do Natal e sabiam que seriam lidos, apropriavam-se da palavra escrita para expressar
suas ideias e sentimentos. Realizava-se o que Piaget salientou como objetivo de uma educação da
inteligência que é a “formação social da criança”. Lembro-me com alegria e espanto que Joaci foi
(idem, p.24) um dos primeiros a se sentar diante da caixa de tipos e, falando com a colega ao lado,
ia propondo frases para compor, ia escolhendo as letras na caixa e montando-as no componedor.
187
Uma educação do trabalho (defendida por Freinet) se faz com trabalho e é preciso não só um
trabalho manual, não só um trabalho intelectual, mas um trabalho que envolva mãos e mente.
Na tese sobre a Pedagogia Freinet da professora Anne-Marie Milon Oliveira, as
reflexões sobre a centralidade do trabalho encontram síntese (1995, p. 139):
Este é o sentido profundo da expressão “Educação do Trabalho” usada por
Freinet: não é educação para o trabalho (profissionalização), nem tampouco
educação pelo trabalho como foi equivocadamente traduzido em português,
o que evoca a proposta liberal deweyana. Não há mediação entre educação e
trabalho, a educação é trabalho ou não é. Na perspectiva marxista, que aqui
influencia indubitavelmente Freinet, só o trabalho permite que os homens, ao
transformarem a natureza, se transformem a si próprios, se eduquem.
Uma aprendizagem que se fez possível é a de que trabalhar com uma organização
da sala de aula proposta pela Pedagogia Freinet introduz novas relações, introduz um “caos”
de vozes e silêncios que não pode se confundir com a simples utilização de novas técnicas,
meros instrumentos para moldar esse outro, essa alteridade diante da qual nos encontramos
todos os dias nesse espaço/tempo chamado escola. Trabalhar segundo esta nova perspectiva
significa compreender que ao introduzir novos instrumentos surgirá um novo tipo de relação
professor/aluno que aponta sua seta de transformação em duas direções: eu e o outro. É querer
promover um encontro que me transforma e transforma o outro.
O artigo de Tsoukala publicado no Dossier Pedagógico da Revista L’Educateur
(1991, p. 30) ajuda a compreender a dimensão mais profunda da concepção freinetiana de
trabalho. O autor faz reflexões sobre o trabalho alienado, comparando-o às tarefas escolares
em contraposição ao trabalho como produção humana, comparando-o ao texto livre de
Freinet. Neste texto Tsoukala faz uma longa citação de Oeuvres Ecónomiques de Marx:
Suponhamos que produzíssemos como seres humanos: cada um de nós se
afirmaria duplamente em sua produção – a si mesmo e ao outro.
1. Em minha produção eu realizaria minha individualidade, minha
particularidade; sentiria, ao trabalhar, o prazer de uma manifestação
individual de minha vida, e, na contemplação do objeto, teria a alegria
individual de reconhecer minha personalidade como força real,
concretamente apreensível e escapando a qualquer dúvida.
2. No teu prazer ou no teu uso de meu produto, sentiria a alegria espiritual
imediata de satisfazer, por meu trabalho, uma necessidade de um outro,
o objeto de sua necessidade.
3. Teria consciência de servir de mediador entre ti, como um complemento
a teu próprio ser e como uma parte necessária de ti mesmo, de ser
reconhecido e sentido por ti como um complemento de teu próprio ser,
aceito em teu espírito como em teu amor.
188
4. Teria, em minhas manifestações individuais, a alegria de criar a
manifestação de tua vida, isto é, de realizar e de afirmar em minha atividade
individual minha verdadeira natureza, minha sociabilidade humana.
Nossas produções seriam como espelhos nos quais nossos seres irradiariam
um para o outro.
Viver com aqueles meus alunos a experiência de produzir algo que se
transformava em um objeto que seria apresentado aos outros foi uma aprendizagem que me
levou a querer sempre mais e mais trabalhar desta forma. E, hoje em dia, ver na escola o
fervilhar das crianças preparando as exposições de seus trabalhos para nossas festas ou tantos
outros momentos do dia-a-dia me faz pensar nesta centralidade do trabalho como expressão
de nossa humanidade, faz-me pensar que é de trabalho que as crianças têm sede.
Mais uma lição possível com as reflexões sobre o episódio: as crianças aprendem
conosco ou apesar de nós. Mas a escola foi desenvolvida em outra forma de pensar. Freinet
discutiu assiduamente este problema, combateu a escola tradicional:
Nunca virá a um educador tradicional a ideia de que a criança, colocada em
certas condições favoráveis, depois de ter feito um determinado número de
observações e de experiências, possa por si mesma resolver certas
dificuldades de que apenas o mestre julga deter o segredo. O saber, segundo
ele, desce de cima, não pode subir de baixo. (Freinet, 1977, p. 27)
Esta é uma boa lição para nos tirar do pedestal, mas também para que não nos
despojemos de um papel necessário e que só um adulto educador pode exercer no trabalho
pedagógico: o de ser ressonância para a palavra (e, às vezes, para a não palavra da criança), para a
sua voz e o seu silêncio ou a sua recusa em se mostrar a nós. É uma boa lição para nos lembrarmos
de que estaremos juntos no trabalho de aprender. É uma boa lição para nos fazer pensar sobre como
é ou pode ser esta relação com a criança. Para pensar sobre o que não sabemos da infância.
189
4ª NARRATIVA: ciência e investigação e o tateio experimental
Outra situação vivida naquela mesma turma, com outro aluno, ainda repercute em minha memória, me traz reflexões.
Certo dia, estávamos já trabalhando nos ateliês e um menino, a quem chamo aqui de Rudá, me disse que queria pesquisar as formigas. Respondi que tudo bem, que iria procurar algum material (minha ideia era buscar algum livro na biblioteca) para que ele realizasse seu trabalho. Rudá disse que não, que não precisava porque ele estava observando (ele usou esta palavra mesmo) um formigueiro que havia no jardim, fora da sala. Disse a ele que, então, era preciso pegar uma prancheta para anotar o que estava vendo (mas, a bem da verdade, eu não sabia muito bem como orientá-lo naquela tarefa). Ele concordou com a prancheta e, alegremente saiu da sala para observar as formigas. Fui cuidar de outros afazeres, ajudar outras crianças. Algum tempo depois ele voltou muito animado e me disse: “Gláucia, eu descobri o que as formigas comem”, “ah é? O que você descobriu?”, “foi assim: eu fiquei olhando as formigas, elas estavam andando em fila, indo para o formigueiro. Então eu peguei umas folhas e coloquei no caminho delas. Elas não pegaram as folhas. Depois eu fui na mesa do lanche e pedi um pedaço de pão pra turma que tava lanchando e coloquei no caminho das formigas. Elas também não pegaram o pão. Então eu fui na cozinha e pedi um pouquinho de açúcar pra D. Maria. Eu pus o açúcar no caminho das formigas e elas pegaram! Então, as formigas comem açúcar!”
Fiquei encantada com o que aquele menino me contava: “muito bem!”, mas não sabia bem o que fazer com todo aquele trabalho dele. Propus que escrevesse um texto...
190
OS INSTRUMENTOS DA PEDAGOGIA FREINET EM AÇÃO
OS PROJETOS COLETIVOS E OS PLANOS GERAIS ANUAIS
Como vimos, as Rodas de Conversa são um momento importante para compartilhar
informações e descobertas. As crianças trazem novidades e falam sobre coisas que as
interessam. Estas conversas são oportunidades para nós, professores, estarmos atentos aos
interesses e curiosidades do grupo. Às vezes lançando mais perguntas sobre um assunto
trazido por alguém ou simplesmente aproveitando uma chuva de perguntas lançadas pelas
próprias crianças sobre um assunto que as interessou. Em qualquer dos casos, a partir daí
pode-se propor a organização de um projeto e todo o grupo irá participar e contribuir na
busca de respostas às perguntas levantadas. A Roda é uma das formas pelas quais pode-se dar
a organização de um projeto coletivo no qual todo grupo estará comprometido. No
desenvolvimento do projeto cada um irá contribuir segundo suas possibilidades e capacidades.
Os projetos também podem surgir a partir de situações do próprio trabalho. Por exemplo, ao
prepararem uma culinária de lanche, pode surgir o interesse pela transformação dos
alimentos, que poderá se tornar uma pesquisa para todo o grupo.
Também a professora poderá trazer à turma uma proposta de trabalho para
contemplar os itens contidos nos Planos Gerais Anuais de trabalho do grupo (Freinet,
1978, p. 101). Estes planos contêm de forma sintética os programas curriculares para cada
série e são apresentados às crianças logo no início do ano. Por exemplo, o estudo do
município onde as crianças vivem encontra-se no Plano Geral Anual de uma classe de 3º ano
e a professora poderá trazer para a Roda de Conversa algumas curiosidades sobre a
cidade e propor uma investigação mais aprofundada por parte do grupo. Um levantamento
de tudo que eles sabem sobre sua cidade será sempre a etapa inicial. A seguir serão feitas
as perguntas sobre o que mais queremos descobrir. E, gradativamente, irá se construindo
um projeto do grupo. Muitas atividades serão desenvolvidas com o intuito de aprofundar
descobertas, partilhar informações sobre o tema em pauta. Por exemplo, uma Aula
191
Passeio (outro instrumento fundamental da Pedagogia Freinet) poderá ser uma etapa
importante e necessária na realização deste projeto de conhecer o município.
Trago um exemplo do Relatório de Grupo da professora Paula que descreve
um projeto e as muitas atividades desenvolvidas com a turma durante todo um semestre:
“Nas primeiras semanas de aula de 2014 começamos a conversar sobre o calor e a situação da
estiagem. Quando o Gabriel Z. trouxe a reportagem de jornal com maiores informações sobre
o rio Atibaia a turma toda se empolgou. Montamos um ateliê de leitura de trechos do jornal.
Cada grupo teve que ler, pesquisar e reescrever sobre o assunto com as suas palavras.
Aprendemos sobre poluição, sobre a relação
entre a temperatura da água e a
mortalidade dos peixes, sobre a
profundidade do rio, sobre as diferentes
espécies de peixes, etc. Ficamos
particularmente impressionados com a
quantidade de lixo encontrada no fundo dos
rios e resolvemos pensar sobre a relação do
homem com o ambiente.
Conversamos sobre consumo e desperdício, sobre descarte e reutilização. Produzimos textos
sobre o tema e publicamos no informativo da escola. Queríamos saber como estava a situação
na nossa escola. Reviramos os lixos da escola em busca de pistas.
Conversamos com os alunos do 7°ano sobre os
alimentos encontrados no lixo orgânico. Aprendemos
com eles como fazer um minhocário e como os restos
de alimentos podem ser transformados em adubo.
Semanalmente alimentamos as minhocas com o lixo
orgânico produzido no nosso lanche coletivo.
Para a Festa Junina, além de organizar essas informações
sobre o lixo para apresentar, refletimos sobre elas dentro
dos ambientes urbanos e rurais. O que é consumido em
cada ambiente? Como o lixo é destinado?”
Trecho do Relatório de Grupo do 2º trimestre 2014, Professora
Paula Virgínia Rochetti, Escola Curumim.
Fotos: acervo da autora.
192
PESQUISAS INDIVIDUAIS E O PLANO DE TRABALHO INDIVIDUAL
Uma criança pode trazer para a Roda um tema de seu interesse, ou mesmo o
interesse pode surgir de uma situação do trabalho (por exemplo, ao fazer uma pintura e
misturar duas cores a criança pode se perguntar sobre o que está acontecendo ali) e isto
poderá desencadear uma pesquisa. Nem sempre isto desperta a atenção do grupo todo.
Neste caso ela poderá conduzir uma pesquisa individual. A atenção que, como professores,
devemos dar a esta criança é a mesma que aos projetos coletivos. No Plano de Trabalho
Individual haverá a possibilidade desta criança se organizar para pesquisar seu tema.
Os projetos individuais são sempre estimulados na classe e periodicamente
são marcados momentos para que cada criança possa apresentar ao grupo os resultados
de sua pesquisa.
Figura 48: Plano de trabalho individual. Fonte: acervo da autora
193
REFLEXÕES SOBRE O EPISÓDIO
Aprender com as crianças a se reencantar com o mundo
A lembrança desse episódio me é particularmente agradável. Lembro-me de meu
espanto com a perspicácia daquele menino. Ele pensou num experimento, formulou hipóteses, criou
um método para testar suas hipóteses, observou e tirou suas conclusões. É no mínimo espantoso, se
considerarmos as dificuldades que nós, estudantes dos cursos de mestrado e doutorado, enfrentamos
para realizar nossas pesquisas, definir a metodologia que iremos utilizar e todos os esforços e
sofrimentos que enfrentados no processo de produzir conhecimentos. E Rudá estava com sete anos!
Impossível não colocar uma exclamação aqui. E, no entanto, o episódio me traz, para além do alegre
espanto, dúvidas e inquietações. Ele me traz questões sobre a responsabilidade que existe no ato de
educar, na seriedade da tarefa que assumimos diante da criança e da sociedade.
Naqueles anos iniciais de exercício da minha profissão eu me encontrava cheia de
entusiasmo pelas novas teorias e propostas que sacudiam o campo das ciências humanas.
Achava mesmo, como é próprio (e salutar) da juventude, que a educação devia desempenhar
um papel transformador da sociedade. Em especial as aprendizagens na universidade haviam
me apresentado a Piaget e eu me sentia compelida a buscar na prática uma atuação coerente
com aquelas ideias, e me sentia com sorte de ter na Pedagogia Freinet um exemplo a seguir.
Mas naquele episódio eu constatava minhas insuficiências quanto ao domínio quer fosse do
assunto em si (“formigas”), quer fosse dos procedimentos que pudessem auxiliar uma
pesquisa mais consistente para que juntos, eu e Rudá, pudéssemos aprofundar as descobertas.
É bem verdade que, felizmente, naquela mesma época conversei com um amigo
biólogo, contando alegremente sobre a pesquisa de meu aluno e ele me explicou que “a formiga
não come açúcar, na verdade as formigas levam para o formigueiro várias coisas que encontram e
lá existe um fungo que se alimenta de tudo isso. As formigas se alimentam desse fungo que cresce
dentro do formigueiro”. “Ah! Entendi!” E fui logo conversar com Rudá, contar-lhe sobre o que
tinha aprendido. Procuramos livros na biblioteca e encontramos mais informações sobre o tema.
As contribuições de Piaget, sua pesquisa sobre o desenvolvimento da criança e
suas proposições sobre o modo como ela constrói seu conhecimento marcaram profundamente
as concepções de educação no século XX. Compreender o caráter ativo e construtivo dos
processos de aquisição de conhecimento pela criança nos colocou a nós, educadores
progressistas, um questionamento e um rompimento com os modelos formalistas, verbalistas
194
e disciplinares até então reinantes. Piaget nos levou a reconhecer a importância de
proporcionar à criança um ambiente rico e capaz de favorecer o desenvolvimento do espírito
experimental. Segundo este autor (Piaget, 1970, p. 39):
No curso dos últimos anos cada vez mais se tem insistido – e não deixaremos de
repeti-lo – na lacuna fundamental da maioria dos métodos de ensino que, numa
civilização em grande parte baseada nas ciências experimentais, negligencia
quase totalmente a formação do espírito experimental entre os alunos.
Negligencia-se a formação do espirito experimental não só entre os alunos, mas também
na nossa formação inicial de professores, como vimos na discussão sobre a racionalidade do modelo
científico e, como o próprio episódio denunciou sobre minha formação. Apesar desta falta na
formação inicial de professores, difundiu-se no século XX um pensamento pedagógico que coloca
como centro a criança e sua atividade no e sobre o ambiente. Em termos das teorias sobre a educação,
iniciava-se uma ruptura com os modelos formalistas e verbalistas e os movimentos de renovação da
escola tiveram forte influência no pensamento pedagógico, embora em termos práticos ainda
perdurem, até hoje, os modelos de transmissão de saberes codificados e sistematizados em apostilas ou
livros didáticos, da aula frontalizada, do ensino simultâneo. Neste sentido, experiências como a vivida
por mim se alinhavam a estes ideais de mudança e transformação da escola.
Por outro lado, temos em Hannah Arendt uma discussão de extrema importância
acerca da instituição escolar, sobre a qual ela nos relembra seu papel de “instituição que
interpomos entre o domínio privado do lar e o mundo com o fito de fazer com que seja possível a
transição, de alguma forma, da família para o mundo” (Arendt, 2003, p. 238). E ainda nos aponta
a crise na educação e aborda o problema que adveio de uma certa transposição para o âmbito
educacional das visões do pragmatismo, filosofia particularmente difundida nos Estados Unidos e
que se tornou um pressuposto assumido na educação. Em suas palavras (idem, p. 232):
Esse pressuposto básico é o de que só é possível conhecer e compreender aquilo
que nós mesmos fizemos, e sua aplicação à educação é tão primária quanto
óbvia: consiste em substituir, na medida do possível, o aprendizado pelo fazer.
Confesso que, quando tomei contato com o pensamento de Arendt e li isto, minha
primeira reação foi de rejeição. Havia sempre defendido o valor da atividade da criança como
possibilidade de adquirir conhecimento e me empenhado em proporcionar aos meus alunos
um ambiente rico em experiências, muito material concreto para que eles pudessem manipular
e construir conhecimento. E, no entanto, apesar da rejeição inicial, o questionamento que
195
Arendt colocava martelava minhas certezas, permanecia incomodando. Ainda mais se, ao
retomar/relembrar a experiência narrada neste episódio, constatava minha própria inabilidade
e despreparo para contribuir de forma mais efetiva no processo de Rudá. Mas continuei lendo
Arendt. Especialmente porque encontrei beleza e sensibilidade em suas proposições sobre o
modo pelo qual o mundo adulto deve se relacionar com a infância.
No modelo tradicional de ensino, mostrar à criança o que é e como é o mundo,
faz-se por meio da simples transmissão do conhecimento, com ênfase na transmissão oral e no
uso dos recursos como a lousa e livro didático. Piaget (1970, p. 41) alerta para o fato de que
“a aquisição dos conhecimentos depende naturalmente das transmissões”, mas “apenas sobre
esse processo é que durante muito tempo se baseou a escola tradicional”.
Se, com Arendt (idem, p. 244), reconheço que a crise na educação está ligada à atitude
disseminada em nossa sociedade de rejeição à tradição e, portanto, coloca-nos em desconfortável
situação, “pois é de seu ofício servir como mediador entre o velho e o novo, de tal modo que sua
própria profissão lhe exige um respeito extraordinário pelo passado”, entendo também como
necessário que o educador se atualize quanto ao mundo mesmo do qual ele faz parte e que, como
Piaget já ressaltava, trata-se de um mundo fortemente baseado nas ciências experimentais.
Se minha função de educadora é, como representante dos adultos, mostrar à criança o
mundo como ele é, é preciso entender também que, para que ela possa aprender sobre “o mundo
como ele é”, minhas explicações codificadas e sistematizadas não bastam. O modelo tradicional
recebe do pensamento de Piaget (idem, p. 41-2) uma análise da qual não podemos fugir:
Em uma palavra, desde que se trata da fala ou do ensino verbal, parte-se do
postulado implícito de que tal transmissão educativa fornece à criança os
instrumentos próprios da assimilação, ao mesmo tempo que os conhecimentos a
assimilar, esquecendo que esses instrumentos só podem ser adquiridos pela
atividade interna e que toda assimilação é uma reestruturação ou uma reinvenção.
Um pouco mais adiante (p. 42) Piaget conclui:
Numa palavra: a linguagem não basta para transmitir uma lógica e só é
compreendida graças aos instrumentos de assimilação lógicos de origem mais
profunda, visto que procedem da coordenação geral das ações e das operações.
Mas, infelizmente, em muitas escolas ainda vivemos uma situação de defasagem:
o professor explicador “dá sua aula” e o aluno tenta “assimilar” as informações usando seu
sistema de representações e, em muitos casos, usando somente a memória.
196
Contar para as crianças, mostrar a elas, como é o nosso mundo não é dar aula
expositiva sobre ele, mas é sim, ajudá-la e permitir a ela atividades de experimentação que
possam lhe mostrar o mundo e permitam que ela mesma se relacione com o mundo, pois,
mesmo sabendo que haverá sempre a nossa intervenção, é preciso lembrar que haverá também
a ação da criança. Embora eu perceba que posso estar “chovendo no molhado” ou repetindo o
que já foi dito, entendo como importante esta discussão pois, o questionamento de Arendt
discute um certo ativismo pedagógico que se difundiu por meio de experiências inovadoras no
último século. Minha experiência profissional levou-me a esta aprendizagem de que educação
ativa e com espírito experimental não é o mesmo que ativismo em educação.
Este pequeno diálogo (não de duas, mas de três vozes, incluindo a minha própria)
em que me vi entre Arendt e Piaget, trouxe-me inquietações e dúvidas, pois as afirmações de
um e de outro me pareciam contraditórias em alguns momentos. Creio que o desafio que se
coloca para a transformação da escola é revestido de dificuldades que têm a ver com este
exercício de conciliar termos que podem, às vezes, parecer contraditórios. Como por exemplo
a tarefa de reconhecer a infância, sua novidade no mundo, mas também reconhecer o papel da
escola de introduzi-la no mundo, apresentá-lo a ela. Isto que enxerguei – hoje entendo melhor
– como contraditório, creio que tanto a prática da Pedagogia Freinet quanto a reflexão que se
faz possível com a produção desta tese encontram alguma conciliação. É em Freinet que
encontro uma quarta voz para esta conversa. Em Pedagogia do bom senso (1991) Freinet já
apontava sua crítica aos modelos que se apoiam exclusivamente na explicação (p. 42):
“Inútil desperdício de energia”, observam sentenciosamente os pedagogos, e
dizem: “Então? Iremos obrigar cada homem a redescobrir o carrinho de mão,
a máquina a vapor ou a virtude das sulfamidas? Homens com prática de
crianças coletaram material para elas, classificaram-nas, agruparam-nas.
Para que deixar a criança tatear, perder-se em inúteis labirintos! Existem
manuais escolares!” Isso mesmo... e que evitam às crianças o trabalho de
atirarem pedras nos lagos, e explicam-lhes, com fotografias e desenhos
elucidativos, o que ocorre quando uma pedra cai na água.
E hoje em dia as novas tecnologias tornaram estas exposições mais fantásticas e
atraentes e preparam com melhor maestria o cidadão para viver diante da tela. “Evitam o
trabalho”, evitam a sujeira nas mãos. Os produtos escolares tornaram-se vendáveis. Perde-se
neste processo a capacidade de pensar criticamente o produto, especialmente quando se trata
de crianças. A discussão que fizemos ao analisar a questão da infância nos dias de hoje
197
reaparece aqui para que pensemos criticamente o uso indiscriminado da informação como
produto de consumo. Seguindo ainda as reflexões de Freinet (idem):
Hoje, todo mundo sabe andar de bicicleta. Como é possível que almas
generosas não tenham imaginado ainda, para uso das crianças, um manual
para ensinar a arte de andar de bicicleta sem quedas e machucados? Os
próprios pedagogos verificaram que esse manual em nada diminuiria as
tentativas e também não evitaria quedas e arranhões.
No Dossiê Pedagógico da Revista L’Educateur (1979, p. 5)46, temos uma proposição
que sintetiza o pensamento de Freinet: “a Pedagogia Freinet assume para fins educativos as
necessidades de cada criança”. Destaco aqui o uso do verbo “assumir”, que exige de nós a
imprescindível atitude responsável. Além disso, o que se propõe é assumir as “necessidades das
crianças”. Dentre as necessidades elencadas no documento, destaco uma que se encaixa na
discussão deste episódio, a necessidade de “criar, agir, conhecer”. Para assumir educativamente
esta necessidade da criança, é preciso lançar-se junto com ela no caminho de descobrir e
redescobrir o mundo. E, assim, reconhecer que o mundo que devemos apresentar a ela é também
o mundo que ela naturalmente problematiza e se encanta curiosamente por seus mistérios. É neste
sentido que podemos aprender o caráter cooperativo desta relação professor/aluno e seu caráter
ativo. Há uma ação do professor, no exemplo do episódio: eu estava agindo na organização do
trabalho da turma ao garantir que Rudá saísse para pesquisar. Rudá, por sua vez, coordenou ação e
reflexão, realizou tateios experimentais para responder à pergunta que ele se colocava.
Na prática da Pedagogia Freinet nos esforçamos para permitir que a criança se
aproprie de instrumentos de produção do conhecimento: manipular, experimentar, emitir
hipóteses, confrontá-las, ensaiar “teorizações”, fazer abstrações. Numa síntese, devemos
permitir o tateio experimental. Segundo o Dossiê Pedagógico (idem, p. 17):
É esse trabalho de pesquisa reflexiva sobre os materiais físicos ou mentais os mais
diversos que nós chamamos de tateio experimental. Uma verdadeira formação
científica exige o respeito a esse tateio e ao ritmo de aprendizagem que dele decorre.
No episódio narrado meu aluno estava profundamente envolvido no processo de
conhecer as formigas e para isto buscava observar e construía suas explicações. Ou seja, ele
realizava sua aprendizagem por meio do contato com objetos e materiais
46 Este Dossiê foi escrito por um grupo de educadores freinetianos em colaboração, o que constitui
assim um exemplo extremamente relevante quando se fala da formação do professor reflexivo. O
esforço de Freinet para criar e animar um movimento de educadores foi analisado no trabalho de
Munhoz (já citado).
198
concretos(observação das formigas), mas também por meio de operações mentais, suas
abstrações a partir das observações. Era neste ponto em que minha interferência se tornava
necessária, pois suas conclusões eram ainda incompletas.
O documento especial da Revista Le Nouvel Educateur oferece reflexões sobre a
importância das representações mentais no processo de aprendizagem. O autor, Pierre Guerin
(1988, p. 3), um professor do movimento Freinet francês, defende: “assim como nós, a criança
constrói sistemas explicativos do mundo natural e social que a envolve a partir de suas
observações e das referências que memorizou”. Era o que eu presenciava com aquele meu
aluno. Ele fazia o seu “tateio experimental”.
Há mais uma lição que me importa aqui: também eu procedia a um “tateio
experimental”. A organização do trabalho naquela sala de aula era estruturada segundo uma
nova ordem escolar e isto abria algum espaço para estes tateios. Ainda segundo Guerin (idem,
p. 37): “levar em conta realmente as representações mentais iniciais da criança requer
incontestavelmente uma gestão diferente do tempo e do espaço escolares e a utilização de
instrumentos pedagógicos adaptados”.
Creio que a mais importante lição que aprendi diz respeito a uma tomada de
consciência da necessidade de continuarmos aprendendo. A aprendizagem de ser um professor
que se pretende não um repetidor, não um transmissor de informações, ocorre em diferentes
níveis. Estamos sempre aprendendo sobre quem é esta criança que está diante de nós. Mas
também estamos sempre aprendendo sobre as coisas e o mundo que ela descobre e que
descobrimos junto com ela. É preciso manter nossa curiosidade, é preciso colocar em ação
nossas habilidades de formular hipóteses, de descobrir coisas novas. Mantermo-nos junto com a
criança encantados com o mundo e tudo que há nele. E estamos, nisso tudo, aprendendo sempre
sobre nós mesmos. E isto não é fácil, não é pouco, e contém algo de maravilhoso.
* * *
Até aqui expus narrativas (episódios) que fizeram parte de minha formação
como professora de crianças. As próximas narrativas estão ligadas ao trabalho de
coordenadora e diretora da escola.
199
5ª NARRATIVA: tensões e distensões no cotidiano da escola
“Do nada Likeke agrediu um colega com uma caneta. Ele estava sentado num banco do ônibus e golpeou Kerexu (que estava na poltrona à sua frente) na cabeça, várias vezes, provocando um corte que sangrava muito. Eles estavam entrando no ônibus, de volta da aula-passeio, da qual ele havia participado tranquila e alegremente”.
Quando, ao telefone, eu disse à mãe esta frase, a reação dela foi intensa. “Likeke não tem reações agressivas, assim, do nada. Algo deve ter acontecido”. Ela argumentou que em casa ele conseguia explicar que se sentia sozinho, que os amigos não ficavam com ele e que quando ele reagia agressivamente havia sempre um gatilho, um disparador para a reação.
Nas entrelinhas desta fala percebi a enorme angústia que esta mãe vivia. Ela buscava razões ou explicações razoáveis para o comportamento do filho. Respondi que sim, que eu compreendia que havia algum disparador para a agressividade dele e acrescentei: “acho que me expressei mal quando usei a expressão ‘do nada’ para falar do momento em que aquilo começou”. Disse ainda que nós (a professora, a professora auxiliar e eu) também estávamos procurando e fazendo hipóteses sobre o que havia gerado aquela agressão. Achávamos que ele tinha ficado contrariado quando, na volta do passeio, a professora tinha ficado na entrada do ônibus cuidando de outro colega dele, o Ubiraci, que é um menino de quem Likeke gosta muito, mas com quem também tem uma relação competitiva e tensa. Expliquei que estávamos achando que os cuidados que a professora Jandira estava dedicando ao Ubiraci haviam provocado ciúmes e disparado o impulso agressivo de Likeke. A mãe então falou de uma percepção dela de que a turma não tinha com ele o acolhimento de que ele necessitava. Disse ainda que achava que ele percebia isto e reagia.
O incidente ocorrera na volta de uma aula-passeio. Quando eles chegaram à escola, a coordenadora do 2º ano e eu recebemos os dois (Likeke e Kerexu) enquanto a professora levava a turma para a sala, para acalmá-los e conversar com eles. Atendi e cuidei primeiro de Kerexu, procurei ver o machucado, constatando que não era profundo, embora sangrasse bastante (pois a cabeça é uma região bastante irrigada), não haveria necessidade de dar pontos. Mandei chamar a mãe dele e enquanto ela não chegava fiquei conversando com ele, que se mostrava calmo, embora chateado com o ocorrido. A mãe de Kerexu chegou e expliquei o que tinha acontecido. Nós duas conversamos com Kerexu e procuramos nos certificar de que ele estava bem. Recomendei que ela o levasse a um Pronto Socorro ou um médico, para ter certeza de que não era grave. Ela concordou, mas disse que tinha certeza que não era grave. Disse a ela: “olha, o Likeke vai ficar suspenso da escola por três dias.” Ela respondeu: “nossa! Acho que é um pouco demais...”
Lembro-me que isso me deu mais tranquilidade, pois em outros incidentes semelhantes em outras turmas a reação de outros pais havia sido bem mais intransigente. Mas respondi a ela que era uma medida necessária e que estávamos tranquilas e seguras de nossa decisão.
200
Mãe e filho foram embora e fui cuidar da situação de Likeke, que estava numa salinha de reuniões com a coordenadora Anauá. Ela também já havia pedido que chamassem a mãe dele. Durante todo o tempo em que esperávamos, estava muito difícil estabelecer uma conversa com Likeke. Ele gritava muito, com uma careta de raiva repetia apenas uma frase: “eu, eu, eu... Eu não devia estar aqui”.
Coloquei-o sentado na cadeira e nos sentamos uma de cada lado dele. Ele tentava nos bater e arranhar e nós segurávamos suas mãos, com firmeza e tranquilidade. E Likeke continuou gritando: “eu, eu, eu, eu não devia estar aqui. Ele que devia estar aqui, não eu!”. Por um breve momento ele parou de gritar e Anauá tentou conversar com ele, mas imediatamente ele recomeçou. Pedi que ela não falasse e ficamos as duas em silêncio, ao lado dele. Por cerca de 40 minutos ficamos ali esperando. Quando a mãe chegou estávamos os três na salinha e tenho certeza de que ela ainda pôde ouvir seus gritos antes de entrar. Mas, quando ela entrou, ele parou de gritar. Aprumou-se na cadeira, olhou pra ela e perguntou: “você vai me bater? Vai me deixar de castigo?”
Cumprimentei-a e lhe dei uma cadeira. Ficamos assim os quatro sentados num pequeno círculo. Iniciei a conversa explicando a ela o que havia acontecido. Explicar os fatos em frente ao Likeke era importante, a meu ver, para que ele percebesse que os adultos estavam de acordo entre si e não aprovavam este comportamento dele.
A mãe então olhou para o filho e perguntou: “por que você fez isto?”. Ele respondeu com gritos: “Por quê? Por que eu fiz isto?”. E voltou à mesma fala: “Eu, eu, eu não devia estar aqui”.
Então tomei a palavra: “mas agora você está aqui e o Kerexu teve que ir embora pra cuidar do machucado”. Ele me olhou cheio de dúvidas. Eu disse: “você não devia estar aqui porque você é um bom menino e acho que não queria machucar seu amigo. Mas parece que está muito difícil pra você se controlar. Agora a mamãe está triste. Acho que não foi isto que a mamãe te ensinou”. A mãe retomou: “a mamãe, quando fica brava, ela bate? É assim que a gente resolve as coisas em casa? E o papai? Ele bate?”. Likeke, com uma voz grave e séria, responde: “Não...!”
A conversa continuou assim por mais alguns minutos e então pedi que Anauá se afastasse com Likeke para que eu pudesse dar mais algumas palavras com a mãe. Disse a ela que, embora normalmente e nós fôssemos contrários ao uso de medicamentos psicotrópicos, eu via como necessária uma consulta a um psiquiatra que pudesse avaliar o caso. Ela me respondeu que, como eu já sabia, ele tinha um médico neurologista que o acompanhava e prescrevia medicações fitoterápicas. Insisti um pouco com ela, falando que a impulsividade e agressividade que ele apresentava eram dados muito importantes a serem considerados. Embora a conversa estivesse bastante difícil, carregada de emoções, sentia-me solidária com as dificuldades que esta família estava vivendo. Quando ela saiu com o filho combinamos que no dia seguinte nos falaríamos por telefone.
Mas o dia ainda não tinha terminado... Como era uma terça-feira, naquela noite tínhamos reunião pedagógica e a pauta seria a apresentação do trabalho da
201
professora de Educação Física. Estávamos no mês de maio e, portanto, realizando os ensaios da quadrilha. Nanine iniciou o relato sobre as aulas de Educação Física. Mas logo passou a falar da dificuldade de trabalhar com Likeke: “ele bate nos colegas, belisca a mão daqueles que fazem par com ele no ensaio da quadrilha. É muito difícil pra mim ter que lidar com ele e com o grupo. Tem horas que eu consigo dar uma atenção mais individualizada pra ele, mas eu tenho que dar atenção ao grupo também. Eu me sinto dividida sabe, fico tensa e com medo que ele bata em alguém ou faça alguma coisa”.
A reunião torna-se então um momento de abordarmos este caso, mais ou menos como um “estudo de caso”. Estamos todos envolvidos com a questão, e falar sobre o assunto, usar a nossa “roda de conversa” para pensarmos juntos em como agir, é um recurso precioso.
Abro um parêntese para explicitar um pouco da cronologia do caso Likeke, ou daquilo que as pessoas presentes naquela reunião já sabiam. Quando este incidente ocorreu, Likeke já estava matriculado na escola há três anos. Ele iniciou na turma do Infantil. O primeiro contato da família com a escola foi feito pela coordenadora da Educação Infantil (eu acompanhava o caso um pouco mais à distância). Na entrevista inicial entre os pais e a coordenadora eles mencionaram as dificuldades de Likeke na escola anterior, onde seu comportamento agressivo havia levado a um pedido (por parte da escola) de que eles buscassem uma outra instituição. A turma na qual ele foi matriculado na Curumim tinha o Cauã como professor e considerávamos este um aspecto importante: uma figura masculina bastante estável e tranquila. O ano letivo já havia começado, estávamos em abril quando ele entrou. Sua adaptação inicial não apresentou maiores dificuldades, ele estabeleceu uma boa relação com o professor. Porém, aos poucos as dificuldades foram aparecendo. Dois aspectos chamavam nossa atenção: as dificuldades de relacionamento com os colegas e a baixa resistência a qualquer frustração. Também mostrou dificuldades no seu desenvolvimento cognitivo, suas produções e desenhos apresentavam pouca elaboração, nas conversas em roda mostrava baixa compreensão e pouca participação nos projetos da turma. Não posso deixar de explicitar o fato de que a dedicação de todos os professores envolvidos no trabalho (direto ou indireto) com ele tem sido intensa. A nosso pedido a família procurou a ajuda de uma terapeuta que, depois de um período de avaliação, levantou um diagnóstico de autismo.
Agora, no 2º ano, as dificuldades se acirraram. O tempo de trabalho em sala e as exigências são maiores. O grupo todo se sente desafiado com o projeto de dominar a escrita e a leitura, e muitos já se encontram num nível bastante avançado. Apesar das dificuldades, Likeke participa dessas dinâmicas, envolve-se com o trabalho no seu ritmo próprio. Os colegas sempre o convidam para as atividades ou brincadeiras. Ele é sempre chamado para jogar junto ou para brincar no recreio. E aqui fecho o parêntese para voltar à Reunião Pedagógica.
Jandira (a professora dele) relata a dificuldade de Likeke no grupo: “ele manifesta sentimentos de perseguição. Mas, ao mesmo tempo, ele implica com
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os outros, quer controlá-los. Quando eu o coloco perto de mim ele se irrita, dizendo que eu só fico chamando a atenção dele. Ele repete frases assim: ‘por que você só fala isso pra mim?’ , ‘por que só eu vou ficar do seu lado?’. Mas não é isso que acontece, sabe? Não é só ele que fica sentado perto de mim. Eu também chamo outras crianças quando elas precisam de ajuda individualizada”.
Jandira continua sua fala contando outro exemplo: “outro dia a gente estava na Roda Inicial, falando sobre a lição de casa. A atividade proposta era trazerem de casa a sugestão de um alimento típico das festas juninas para a nossa Culinária. Fui perguntando a cada criança qual era a sua ideia, que alimento tinha trazido. A ideia do Likeke era a paçoca, porém, antes que chegasse a vez dele, outra criança disse a palavra paçoca. Likeke ficou muito contrariado e gritava que era ele quem ia falar paçoca. Foi muito difícil acalmá-lo”. Falei: “eu sei que agora esse momento já passou, então não adianta mais eu dar alguma sugestão... Mas o que eu vou falar é mais pra gente pensar junto nas formas de agir nesses momentos difíceis. Você acha que era possível mostrar a ele um outro jeito de enxergar aquela situação? Sei lá... Se você dissesse assim: ‘olha que legal, Likeke! A sua comida já tem dois votos!’ Será que não seria uma forma de tirar ele daquela cisma?”. Jandira me olhou e senti em seu olhar uma concordância com a minha sugestão. Ela continuou seu relato dizendo que ele havia ficado muito irritado e saiu da sala e ficou ali ao lado da porta mexendo no próprio caderno com violência, tentando amassá-lo. Jandira continuou a atividade com as outras crianças. Lá fora passava uma coordenadora (Jaciara) que, vendo Likeke isolado da turma, aproximou-se e conversou com ele. Ela relatou que já de cara percebeu que Likeke estava “alterado”. Fez contato com ele por meio de uma brincadeira e ele foi se acalmando. Jandira então nos contou que outro alimento havia sido lembrado por outras duas crianças. E ela tinha se aproveitado disso para dizer a Likeke: “olha, vem ver, tem outra comida repetida. Agora não é só a paçoca”.
Jaciara comenta que pra ele tudo é perseguição. As falas dele revelam isso. Ele fica “emburrado” muitas vezes no dia.
Outra professora, a Araci, comenta: “acho que nesse casso é importante que se considere a necessidade dele usar medicação, é um caso, é um quadro bem mais grave do que outros que já tivemos”. Comento que isto está sendo considerado, que iremos conversar com a família.
Nanine volta a falar das suas aulas: “eu fico preocupada com a questão do tempo. Eu sinto que tem muita pressão de preparar a quadrilha pra festa (com prazo já apertado) e percebo essa demanda de um tempo específico para trabalhar esta necessidade do Likeke”. Outra professora mostra-se solidária com essas preocupações. Comenta: “acho que é muito difícil uma professora, sozinha com a turma toda, lá fora da classe, e tendo só 45 minutos de aula, dar conta de tudo”. Comento que se enxergamos a situação como tendo que dar conta, se “a dança da Quadrilha” é da professora e ela tem que fazer as crianças cumprirem isso, então é mesmo difícil. Porém, comento, é um projeto de todos. Não é só da
203
professora. Criar uma relação de cooperação com o grupo passa por entender que estamos aqui juntos para fazer alguma coisa, no caso, dançar a Quadrilha.
Continuamos a falar sobre como lidar com Likeke. Proponho à Jandira que procure sempre iniciar as conversas com ele fazendo perguntas. “Por exemplo, quando for chamá-lo para sentar perto de você, você pode abordá-lo com uma pergunta carinhosa: ‘Likeke, você quer se sentar aqui perto de mim?’ Assim, ele terá oportunidade de se envolver com você de outra maneira. Sabe? Você vai mostrar pra ele um espaço de acolhimento que ele pode usufruir, mas que envolve a participação dele”. Ainda argumento com todos da reunião sobre o quanto é importante explicitarmos este espaço de acolhimento com as crianças. A reação das pessoas é acolhedora em relação à minha fala.
Araci volta a falar sobre a possibilidade de ele receber um tratamento medicamentoso, pois observa que tudo isso o faz sofrer bastante. Além disso, a escola, as professoras, todos que estão envolvidos com ele têm realizado muitos esforços para ajudá-lo. Mas esta agressividade dele coloca as outras crianças em situação perigosa. Concordo com ela e volto a dizer que estamos vendo a possibilidade disso com a família. Enfatizo nossa posição de cuidado em relação a esta questão que é bastante controversa e passa por uma decisão da família também (além do médico, é claro). Mas relembro ao grupo de alguns exemplos que tivemos no passado em que a medicação foi uma providência útil.
Outra professora faz então um relato pessoal muito emotivo: “sabe, eu tive uma infância que foi muito tumultuada, era difícil porque minha mãe tinha muitos problemas. Eu e meus irmãos sofríamos muito, eu me sentia responsável; acabei tendo problemas na escola também. E teve um tempo que eu tomei antidepressivos. Naquele momento, aquilo foi como uma tábua de salvação pra mim. Foi muito importante”. Esta fala inesperada dessa professora me tocou profundamente. Sinto-me comovida. Acho que tocou a todas nós que estávamos ali. No final da reunião, aproximei-me dela para abraçá-la.
O caso Likeke e essas conversas em reunião pedagógica reforçam em mim a consciência da escola como lugar de formação em serviço, pois é o lugar onde são vividas as relações entre professores e alunos, ente adultos e crianças. Ela deve ser este lugar de livre expressão também para o professor, um lugar de diálogo, de questionamentos e de reflexão sobre a prática.
204
OS INSTRUMENTOS DA PEDAGOGIA FREINET EM AÇÃO
A AULA PASSEIO
Aula-passeio, como o próprio nome já diz é, um passeio que o professor e a
turma organizam para aprender alguma coisa, para ampliar conhecimentos em torno de
um projeto no qual estejam trabalhando: a ida a um serpentário, a um mercado, a um
museu, a um laboratório de pesquisa científica, à prefeitura, a uma estação de
tratamento de água etc. A escolha dependerá do tema (ou complexo de interesse) em
torno do qual a turma estiver trabalhando. Os passeios são cuidadosamente organizados
pela professora e pela turma. Coletam informações sobre o local a ser visitado, preparam
perguntas que poderão ser respondidas, observações que poderão ser feitas. Também se
deve estar atento aos cuidados com a segurança de todos. É importante estabelecer
bem todos os combinados para a atividade.
Figuras 49 e 50: Exemplo de uma Aula–passeio com um roteiro para conhecer o centro da cidade. As imagens
mostram a visita à Prefeitura Municipal e ao Museu de Arte Contemporânea de Campinas e na página seguinte a
continuação do passeio. Fonte: acervo da autora
205
Neste longo roteiro que fizemos à pé
pelo centro de Campinas, depois do paço
municipal fomos à praça do Bicentenário
com o Monumento à Princesa, subimos
para a praça com a estátua de Carlos
Gomes. Ali paramos para um lanche.
Visitamos a igreja do Rosário e
continuamos até o Mercado Municipal.
Em tudo, em cada canto, explorávamos
cores, cheiros, sensações, barulhos.
E também aprendíamos a cuidar uns
dos outros, a cuidar cada um de si.
Na volta fizemos (ajudei a
professora) um Álbum Coletivo sobre
nosso passeio, sobre toda a experiência.
Fotos: acervo da autora
206
Também se pode organizar uma aula-passeio com o objetivo de iniciar, de
desencadear um novo estudo. Pode também ocorrer que uma aula-passeio prevista para
estudar um certo assunto, traga outros assuntos inesperados que passarão a orientar a
curiosidade e a investigação da turma.
Quando Freinet introduziu este instrumento de trabalho na sua classe, ele se
inspirou na Pedagogia Ativa de Adolphe Ferrière. Segundo Oliveira (1995, p. 112 e 113):
Eles saem. Começam as famosas “aulas-passeio” (curiosa antinomia!) – que
vêm, tranquilamente, negar o disciplinamento forçado dos corpos e das
mentes das crianças do povo.
Professor e alunos passeiam na aldeia e nas plantações, visitam os artesãos,
observam seu trabalho ou os fenômenos da natureza. Tomam notas. Na volta
à sala de aula, os alunos descrevem o observado. Sem constrangimentos
escrevem na língua nacional. Freinet descobre que não há meio mais
poderoso de aprendizagem do que o envolvimento afetivo que liga
intrinsicamente os conteúdos de ensino aos interesses concretos dos alunos.
Figura 51: Aula passeio ao centro de Campinas. Fonte: acervo da autora
207
A CULINÁRIA
Preparar o alimento, experimentar novos sabores, descobrir o valor nutritivo
de frutas, legumes, verduras, aprender sobre a cultura culinária como patrimônio de um
povo, descobrir a química da transformação dos alimentos... Isso e muito mais pode ser
explorado nas atividades de culinária com as crianças. Apresento a seguir um exemplo
que está registrado num álbum feito por uma turma de 2º ano e que agora se encontra no
acervo da biblioteca da escola. Transcrevo a seguir os registros das crianças e as
imagens deste trabalho realizado pela turma de 2º ano de 2013, com a professora Tânia
Rocha e professora auxiliar Janaína Costa. Creio que o exemplo fala por si.
DE ONDE VEM O POLVILHO?
Na nossa primeira culinária do ano, a turma escolheu preparar o pão de queijo. Em
roda de conversa surgiu a pergunta: qual seria a origem do pão de queijo? Fomos então
pesquisar a história deste alimento de que todos nós gostamos muito. Uma das histórias
que encontramos foi esta:
“No século XVIII, época do Império Português, a farinha era um alimento
muito caro e às vezes de baixa qualidade. Para continuar a preparar pães e
bolos, as cozinheiras das fazendas de Minas Gerais começaram a utilizar o
polvilho. Aos poucos foram incorporando ao pão de goma as sobras de
queijo endurecido que não era utilizado”.
Como a origem do pão de queijo se deu por conta de um dos seus ingredientes
principais, o polvilho, perguntamos então:
O QUE É POLVILHO?
DE ONDE VEM ESTE PÓ BRANCO E
MACIO?
Após algumas pesquisas, descobrimos que o
polvilho vem da mandioca.
208
Resolvemos, então, fazer esta experiência que vamos descrever a seguir:
Primeiro picamos a mandioca e colocamos no liquidificador com um pouco de água
para bater.
O próximo passo foi coar essa mistura de
água e mandioca em um tecido, assim
retiramos toda a parte líquida (uma água
branca), e vimos a fibra da mandioca
muito parecida com uma farinha. Logo
uma das crianças disse: “farinha de
mandioca”.
Depois desse trabalho deixamos a água branca em descanso por mais ou menos duas horas.
O resultado foi uma água amarelada por cima e no fundo da travessa de vidro o pó
branco ainda úmido, mas que depois de secar se transformou em polvilho.
Fotos: acervo da autora.
.
209
REFLEXÕES SOBRE O EPISÓDIO
O encontro entre alteridades e a autoridade como autoria de nossa própria maturidade
Este não é um episódio, mas muitos. A vida na escola é assim, composta de muitas
vozes, muitos momentos, muitas pessoas, seus passados, seus presentes e futuros, seus entornos
e contornos. Muitos eus e muitos outros. É neste espaço, que se compõe de muitos laços e
entrelaços, em que nos movimentamos, relacionamo-nos, vivemos. Teia da vida a nos tecer.
Tentarei puxar alguns laços visíveis na narrativa do episódio. Começo pelo mais fácil,
pelo que já se desenhou como reflexão e aprendizagem nos episódios anteriores desta tese: a
organização do trabalho segundo os princípios da Pedagogia Freinet. Assim, na sala de aula de Likeke,
pode-se observar pelos relatos da professora que uma organização plural e não unificada, nem
homogênea, estava em ação. Havia já um planejamento no qual o trabalho organizado em ateliês
permitia que cada criança realizasse o seu Plano de Trabalho individual, escolhendo o ateliê no qual
iria trabalhar. Projetos de toda a turma estavam em andamento (dentre os quais os que destacamos no
item anterior – Instrumentos da Pedagogia Freinet em ação – A aula-passeio e a culinária).
Não planejamos e ministramos uma mesma aula para toda a turma. Planejamos,
sim. Há uma falsa percepção de que na Pedagogia Freinet é “tudo livre”, “tudo solto” (muitas
vezes constatei este questionamento). Também não planejamos duas aulas: uma para a criança
ou o subgrupo com dificuldades e outra para o resto da turma. Nem, tampouco, planejamos
várias aulas, uma para cada criança. Planejamos uma organização do ambiente como uma
oficina de trabalho. Nos ocupamos em providenciar materiais, utensílios, fontes de consulta,
fichas de atividades. Nos ocupamos em conhecer os Planos de Trabalho de cada criança para
poder ajudá-las e nos ocupamos de alimentar, estimular os projetos do grupo lançando
perguntas, chamando a atenção com problematizações. Num ambiente assim, não se espera que
todos façam a mesma coisa ao mesmo tempo. Assim, temos melhores condições de atender às
diferentes necessidades e interesses das crianças mas, principalmente, temos um espaço e uma
organização na qual estimulamos as crianças a buscarem por si mesmas o atendimento de seus
interesses. É desconstruída a expectativa de uniformização. É valorizada e favorecida a
construção da autonomia. Um ambiente assim naturaliza a diferença que é inerente a cada um.
É descontruída uma relação de dependência entre professor e aluno. Um ambiente assim
favorece a construção de relações cooperativas entre a professora e as crianças e também das
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crianças entre si. Um ambiente acolhedor é condição para o desenvolvimento saudável de todas
as crianças, não importa se tenham ou não alguma incapacidade ou deficiência que as limite.
Com os instrumentos da Pedagogia Freinet em ação, aquela turma estava se
desenvolvendo e muitos projetos já estavam desencadeados a partir das conversas em Roda.
Cada um ia se envolvendo segundo seu ritmo e suas potencialidades com as pesquisas e
descobertas nos ateliês. Mas... como o relato do caso Likeke revela, ainda assim as dificuldades
aparecem... Não creio ser possível pensar pedagogia sem conflito. Educação é conflito. Seria
ingênuo acreditar que basta mudar os instrumentos pedagógicos e tudo estará resolvido e, como
que por decreto, todos passam a viver um clima idílico de respeito e cooperação.
Tem algo no relato do(s) episódio(s) que certamente não passou despercebido ao leitor:
Likeke foi suspenso das aulas por três dias! Talvez mesmo tenha se perguntado: “como assim? Não
é uma escola democrática e emancipadora? Que acolhe amorosamente todas as crianças?” Sim, é.
Mas isto não quer dizer que não existam regras que são anteriores às crianças que chegam na escola.
Não significa que teremos que inventar tudo de novo a cada ano, em cada novo começo. Como nos
diz Arendt, a criança chega a um mundo ao qual ela ainda não está familiarizada e nosso papel será
o de introduzi-la nele. Como adultos temos que assumir que já construímos socialmente a noção de
que a violência não é aceitável e quem a pratica perde o direito ao convívio com aqueles a quem
agrediu. Por mais que possa existir uma explicação, uma justificação (de ordem emocional,
neurológica etc.) para uma agressividade excessiva no comportamento de uma criança, para que se
possa construir um ambiente de acolhimento e de bem-estar para todos não se pode simplesmente
aceitá-la. A agressividade, até onde mostra minha experiência profissional, é normal, é comum, as
crianças nem sempre sabem se controlar e fazer uso da palavra para resolver suas questões. Estão
ainda construindo os filtros e censuras necessários para o convívio com os pares. Abrir mão do
papel de adulto que faz interdições, que explicita regras básicas de convívio, seria abandoná-las num
“mundo de crianças”, deixando-as à própria sorte.
Entendo como necessário enfrentar e aprofundar esta discussão e, embora esta
tese não tenha nenhuma pretensão de esgotar o assunto, gostaria de esboçar algumas ideias
que a própria experiência tem me oportunizado e que a narrativa do episódio acaba por exigir.
A análise dos pilares da escolarização, no nosso estudo, teve como intenção buscar
compreender este mundo em que vivemos; o desconforto em que se encontra o mundo adulto,
de que nos fala Arendt. Especialmente na discussão sobre o capitalismo industrial como um dos
pilares da escolarização, a reflexão e diálogo com autores como Santos, Guatari, Marx, Eliade,
Bourdieu, Passeron, Bauman, Arendt, explicitou os questionamentos, desvelou suas mazelas,
211
ajudou-nos a pensar nossa aldeia global cuja crise embute-se nas suas próprias estruturas, mas
cuja fábula da qual se serve como mecanismo de reprodução a coloca sempre à beira da própria
destruição; permite-nos o olhar de desconstrução. É neste mundo de incertezas e de
inseguranças, mas povoado de sedutoras engenhocas tecnológicas e cuja lógica depende de
descartar o velho e consumir a última novidade, que se produz a ideologia do novo.
O século XX, como vimos, nasce como o “século da criança” e sob o signo da
liberdade, muitas experiências educacionais se realizaram com o intuito de inovar e reinventar
a educação e a escola. Sob certo ponto de vista, a Pedagogia Freinet também se inscreve neste
quadro. É uma pedagogia que propõe um lugar central para a criança na relação pedagógica e
que recupera o valor da construção de relações cooperativas no trabalho.
Tenho, entretanto, tido contato (por meio do estudo, ou de encontros, conversas
ou pela própria divulgação midiática – revistas, jornais, TV, internet) com diferentes
tendências que propõem a inovação ou a reinvenção da escola. Ora movidas pelo desejo de
“reprojetar” o cidadão do futuro, ora desencantadas com a modernidade que assume no
consumismo sua face individualista e predatória, ora simplesmente movidas por uma rebeldia
quase infantil e sem causa, tenho me deparado com ativismos pedagógicos que muitas vezes
se revestem de um niilismo que beira um perigoso abismo. Depreendo destas tendências uma
recusa à autoridade, uma recusa a tudo que possa significar imposição de regras de
comportamento para as crianças, como se elas fossem portadoras de uma verdade pura, como
se elas, e somente elas, pudessem criar e constituir seu mundo, suas regras.
Por outro lado, tenho também, na experiência da vida, convivido com a posição
contrária nesta curva, a posição do velho autoritarismo no qual não cabe o novo, no qual não
cabe a criança, nem sua palavra e expressão. E, embora esta atitude seja ainda a mais corrente
dentro das escolas, a situação tem mudado muito na sociedade em geral. Na análise que fizemos
sobre o problema da Infância no mundo contemporâneo foi destacada a questão do papel que se
vem atribuindo à criança, uma forma de encará-la que a alça ao lugar de rainha. Arendt foi
aguda na análise do problema da autoridade que tem instaurado uma crise tanto no âmbito
político como em muitos outros aspectos da vida social (2003, p. 128):
O sintoma mais significativo da crise, a indicar sua profundeza e seriedade, é
ter ela se espalhado em áreas pré-políticas tais como a criação dos filhos e a
educação, onde a autoridade no sentido mais lato sempre fora aceita como
uma necessidade natural, requerida obviamente tanto por necessidades
naturais, o desamparo da criança, como por necessidade política, a
continuidade de uma civilização estabelecida que somente pode ser garantida
212
se os que são recém-chegados por nascimento forem guiados através de um
mundo pré-estabelecido no qual nasceram como estrangeiros.
Minha experiência pessoal e profissional tem me colocado vezes demais diante de uma
atitude de adultos (pais ou professores) que delegam às crianças decisões que pesam sobre seus
ombros, podem mesmo oprimi-las com uma responsabilidade para a qual não possuem ainda
maturidade para assumir. Uma reação às avessas também pode ocorrer e vemos crianças
autoritárias, acostumadas a impor seus desejos. Exemplos demais tenho presenciado de pais que
deixam aos filhos a decisão de escolher desde o eletrodoméstico ou o carro que será comprado pela
família até a escola na qual ele quer estudar. Mas crianças mimadas sempre existiram. Preocupa-me
um outro tipo de exemplo que também tenho visto: professores que se sentem autoritários por
qualquer proibição que tenham que impor aos alunos, professores que se gabam da atitude rebelde
(mas que tem muito de destrutiva) de seus alunos. O extremo desta atitude encontrei no exemplo de
uma escola que, ao matricular um novo aluno (com o ano letivo já iniciado), colocou-o numa turma
e, no dia seguinte, levou-o a outra para que escolhesse em qual delas ficaria. Se parece exagero, não
seria demais lembrar as avaliações feitas em muitas escolas pelos alunos que determinam o IBOPE
dos professores e, portanto, sua permanência ou não no emprego.
A retomada da reflexão sobre as questões do mundo adulto (suas marcas na pós-
modernidade) e o mundo da infância (e o como tem sido vivenciado) tem, para mim, o
propósito de pensar nestas relações, discutir caminhos para se chegar a um encontro entre
alteridades que não passe pela negação de nenhuma delas: nem negar à infância sua novidade,
nem negar ao adulto sua maturidade.
Tantas reflexões para explicar a suspensão de um aluno! Para mim, isto só reforça
a maravilhosa complexidade de viver este espaço/tempo escola, esta teia viva de relações
entre humanos. Só evidencia o caráter sempre investigativo que o estar no espaço escolar abre
como possibilidade o tempo todo.
Além disso, toda esta discussão me permite agora abordar uma questão que tem se
mostrado presente ao meu olhar sobre as questões da educação. Trata-se de pensar o objetivo, mais
que urgente e legítimo, de promover a formação de uma cidadania pautada pelos valores da
democracia. Em síntese, a construção de uma escola democrática. Minha trajetória profissional tem
me mostrado que esta proposição se reveste de uma interessante complexidade. Especialmente no
Brasil, cuja história da construção da democracia é bem recente, praticamente recém-nascida. Nossa
própria experiência da vida democrática com seus direitos e deveres é ainda tateante, temos ainda
dificuldade em assumir as responsabilidades que o processo democrático demanda. É mais fácil
213
reivindicar direitos, mais difícil cumprir deveres. E, às vezes, uma transposição destes princípios
para o espaço escolar resvala do democrático para um democratismo.
As análises de Arendt ajudam também a ver o quanto a própria perda do sentido da
autoridade coloca (a nós, habitantes do mundo adulto) de novo confrontados com os problemas
elementares da convivência humana (idem, p. 187). É ainda com Arendt que dialogo:
Na educação, ao contrário, não pode haver tal ambiguidade face à perda
hodierna de autoridade. As crianças não podem derrubar a autoridade
educacional, como se estivessem sob a opressão de uma maioria adulta –
embora mesmo esse absurdo tratamento das crianças como uma minoria
oprimida carente de libertação tenha sido efetivamente submetido a prova na
prática educacional moderna. A autoridade foi recusada pelos adultos, e isso
somente pode significar uma coisa: que os adultos se recusam a assumir a
responsabilidade pelo mundo ao qual trouxeram as crianças (idem, p. 240).
Estas considerações levam a pensar no delicado trabalho de construir relações
democráticas com as crianças, sem, contudo, abrir mão da autoridade que nossa experiência
de adultos e nossa responsabilidade para com as crianças que recebemos nos confere.
Entender a não simetria da relação adulto criança, significa não uma licença para
simplesmente comandá-la e manipulá-la como a uma marionete, negando a ela seu status de
humanidade e nem a desistência de nos colocarmos como presença ativa diante dela, presença
capaz de promover sua segurança, de impedir sua temeridade e imprudência que possa
colocá-la em risco ou aos seus pares. Um ambiente democrático na sala de aula e na escola
não prescinde de nossa atuação. Nas reflexões de Paulo Freire encontro síntese:
Noutro momento deste texto me referi ao fato de não termos ainda resolvido
o problema da tensão entre a autoridade e a liberdade. Inclinados a superar a
tradição autoritária, tão presente entre nós resvalamos para formas
licenciosas de comportamento e descobrimos autoritarismo onde só houve o
exercício legítimo da autoridade. (Freire, 1996, p. 117)
Democracia não é cada um fazer o que quer, como quer; democracia não é
remédio milagroso que retira os conflitos e nos exime do difícil trabalho de aprender a
conviver. Há no trabalho de educar uma importante dose de continência ante o arrojo da
criança. Há no trabalho de educar uma dose de conservadorismo, que é o de conservar o
mundo para que a chegada do novo não o destrua, conservar a criança, protegendo-a dos
riscos de certa audácia imprudente. E é com Freinet que encontro respostas satisfatórias para o
equilíbrio neste encontro entre o novo e o velho, que não se reduza à negação de alteridades e
214
nem à omissão ou diluição frente ao outro. Busco nos “ditos de Mathieu”, personagem por ele
criada para falar de uma Pedagogia do Bom Senso, as pistas para o estabelecimento de
relações humanas, de afeto e respeito (Freinet, 1991, p. 23):
“Se você não voltar a ser como uma criança...” não entrará no reino encantado
da pedagogia... Ao invés de procurar esquecer a infância, acostume-se a
revivê-la; reviva-a com os alunos, procurando compreender as possíveis
diferenças originadas pela diversidade de meios e pelo trágico dos
acontecimentos que influenciam tão cruelmente a infância contemporânea.
Voltar a ser como uma criança, talvez não seja demais dizer, não é voltar a ser criança. É
reviver com as crianças nossa infância para, com os olhos de hoje, olhar seus medos, compreender suas
necessidades de apoio, de continência, de estabilidade. Para, com os olhos de adultos, sabermos
compreender os sentimentos de injustiça que uma omissão de nossa parte pode causar ao seu desamparo.
Não é mera inversão das identidades, o que significaria cair no democratismo, o que seria reafirmar o
princípio da identidade. Voltar a ser como uma criança é algo que só minha maioridade e maturidade
podem conseguir pelo exercício de sair de um eu egocêntrico para chegar um pouco mais perto deste
outro diante de quem me encontro. Eis aí uma lição que aprendo e reaprendo a cada dia.
Há outra reflexão no episódio narrado que é uma lição para mim e que tem a ver com
uma certa forma de encarar a inclusão como se, ao lidar com a diferença, devêssemos tratar
desigualmente as crianças: um tratamento para os “normais” e outro para os “deficientes”. Esta
questão contém certa ingenuidade por parte de professores e educadores, que parecem conceber a
inclusão como um modo de conviver com a diferença como se nossa atitude tivesse que ser sempre a
de uma indulgência e aceitação incondicional. Como se lidar com crianças com deficiência fosse não
corrigi-las. Como se tudo nelas já estivesse dado. Nesta concepção, é o diferente que passa a ocupar o
lugar do rei. Quando o elevo a rei – eu o trato de forma desigual. Minha vivência e experiência com a
Pedagogia Freinet mostra que uma pedagogia efetivamente inclusiva é aquela que trata a todos
diferentemente quando se trata de respeitar suas personalidades, ritmos, gostos, talentos, dificuldades,
necessidades. Tratar diferentemente nem é tratar com paternalismo, nem é tratar como desigual. Uma
pedagogia efetivamente inclusiva trata a todos com igualdade nos seus direitos e deveres.
Este episódio composto de muitos episódios ainda enseja outras reflexões que
dizem respeito às relações entre adultos numa escola que se propõe inclusiva. Já no trabalho
de mestrado, ao narrar a história da Escola Curumim e os caminhos trilhados para manter viva
sua proposta, teci, nas conclusões, a reflexão sobre a necessidade de compreendermos o
trabalho escolar como um trabalho coletivo. Um trabalho que se faz com parcerias. Creio que
215
o episódio explicita isto. Primeiro na relação dos profissionais da escola com os pais: somos
parceiros do mundo adulto a receber a infância. Depois nas relações entre professores e
coordenadores: somos parceiros entre nós, realizamos coletivamente o trabalho.
Por muito tempo (e certamente ainda hoje em muitos lugares) a escola recebeu os
pais para, como detentora dos saberes educacionais, apresentar-lhes os resultados dos
rendimentos do filho e, eventualmente, apontar insuficiências da educação no lar, quase
sempre como forma de justificar o fracasso do aluno. Porém, mais recentemente, a educação
tem, na sociedade capitalista, sido transmutada em prestação de serviços. O estudo da história
da escolarização nos ajudou a compreender que este fenômeno não surge do nada, que todo
um processo de apropriação da escola, seu aparelhamento como instrumento para a
reprodução das relações políticas e econômicas no âmbito mais amplo da sociedade, entrou
em ação com o surgimento do estado moderno. Em troca de e-mails do grupo de professores
freinetianos, a professora Anne-Marie Milon Oliveira (cuja obra é citada nesta tese) chama
nossa atenção para o fato de que as velhas pedagogias tradicionais têm retornado sob “novas
roupagens”. Cito um trecho do e-mail: “e hoje está voltando sob outra roupagem, a meu ver
muito mais perigosa, a da ‘gestão empresarial do ensino’ que assola secretarias pelo Brasil,
inclusive aqui no Rio de Janeiro, tanto no estado como no município”.
Além de muitos outros problemas que este assédio de uma visão empresarial da
escola acarreta, temos uma virada nas relações entre a família e a escola que, especialmente na
rede privada, transforma-se em relação prestador-de-serviço/cliente. O perigo de uma deterioração
nas relações escola-família (que, em âmbito mais amplo, traduzem as relações escola-sociedade) é
patente. Mas é neste espaço/tempo escola que nós, educadores e pais, vivemos e sofremos as
influências que se fazem sentir na sociedade, estejamos ou não conscientes disso.
A construção de relações de parceria passa pela compreensão do papel de cada um
dos atores desta cena e pelo respeito aos diferentes saberes que cada um aporta, bem como as
diferentes responsabilidades que cada um pode e deve assumir na educação das crianças
(lembrando que são elas o nosso elo de ligação). É papel da escola receber e acolher os pais,
tanto quanto as crianças. A escola compartilha com os pais a tarefa de educar, mas não pode
desempenhar um papel que não lhe pertence. No episódio, minha preocupação era de mostrar
a Likeke a concordância entre mim e sua mãe, mostrar nossa parceria, para que ele pudesse
encontrar consistência e segurança por parte dos adultos, de forma a poder sentir-se orientado,
sentir que saberíamos conduzir a situação, fazendo a ele as exigências que lhe dessem pistas
sobre o que se pode e o que não se pode fazer no convívio com seus colegas.
216
A pedagogia tradicional (que chamamos de Pedagogia do Inquérito) quando da
discussão sobre suas características (a segunda característica, a de exclusão da sensibilidade
em favor da racionalidade) marca nossa existência, nosso agir e relacionar-se no mundo.
Cabia a mim, na vivência do episódio, buscar uma compreensão solidária com as dificuldades
que a mãe enfrentava para formar com ela um laço, uma parceria que nos ajudasse a sair de
um impasse que poderia se transformar numa mera e desastrosa troca de acusações. Formar
uma parceria, buscar pontos de convergência, compreender o que tínhamos em comum. Não é
da natureza deste papel o caráter terapêutico, embora exista sempre algo de terapêutico na
relação de abertura entre dois seres humanos. Faz parte do trabalho na escola, do trabalho
educativo compreender esta sua natureza humana: entre humanos nos educamos. É nesta
dimensão de ação entre humanidades que atuamos e aprendemos constantemente. Eis, então,
mais uma lição que é a do agir solidário, responsável e comprometido. Esta é uma lição que
não sei se já sei, mas posso dizer que me esforço em aprendê-la todos os dias.
Nossa conversa naquela reunião e tantas outras conversas que vínhamos fazendo em
busca de compreender para poder agir melhor no caso Likeke carecia ainda de mais uma construção
de parceria – desta vez com o médico e outros especialistas que poderiam ajudar no caso. A
coordenação estava agindo como parceira da professora. Hoje temos, na legislação, o apoio do
Atendimento Educacional Especializado que pode atuar como elo, como elemento de articulação entre
os profissionais, com o objetivo de criar melhores condições para o trabalho inclusivo. No caso
Likeke, efetivamente, o médico neurologista receitou, além da medicação fitoterápica, medicamentos
alopáticos que trouxeram muitos benefícios para ele. No entanto, a questão que se coloca para mim é a
de pensar por um outro ângulo. As abordagens típicas das visões mais cientificistas apresentam uma
tendência a lançar mão do recurso medicamentoso quase que como panaceia para os problemas de
comportamentos que fogem aos padrões normatizados por esta mesma visão. Já tecemos algumas
considerações e ensaiamos lições sobre esta problemática na discussão do segundo episódio. Creio
que a mais importante aprendizagem do caso Likeke é justamente a que diz respeito ao convívio como
processo terapêutico e curativo para toda e qualquer pessoa. A medicação não pode ser entendida
como panaceia, mas também não pode ser vista como algo de que não se pode nunca lançar mão.
Existem casos em que ela é necessária, do mesmo modo que para algumas crianças iremos lançar mão
de um andador, de uma cadeira de rodas ou qualquer outro aparato que a auxilie em suas realizações,
em seus esforços para viver, conviver e usufruir da vida. Mas é o convívio que propicia o conflito e é o
conflito que mobiliza as energias para sua superação.
217
Ainda pensando nas reflexões sobre o trabalho coletivo que o contexto escolar
exige, quero explicitar nesta narrativa composta de tantos episódios o aspecto das relações entre
os adultos profissionais da escola. Naquela reunião pedagógica e em muitos outros momentos
do dia-a-dia escolar fazíamos o trabalho coletivo de refletir sobre nossas práticas, refletir sobre
o que tínhamos de conhecimentos, intuição, experiências, informações sobre o caso Likeke e
todo o seu quadro. A inclusão acontece quando, face à presença de crianças com transtornos,
deficiências ou síndromes, mobilizamos, em todos nós, esforços no sentido de construir um
convívio significativo – para nós e para estas crianças –, um convívio educativo de qualidade.
Mobilizar esforços é entender esta empreitada como nossa, sabendo que ela exige
que nos lancemos ao tateio experimental de que nos fala Freinet. O episódio mostra que,
diante das dificuldades que se apresentam, nós, professores, fazemos hipóteses, investigamos,
opomos restrições, ponderamos riscos, questionamos nossas capacidades. As falas da
professora Jandira testemunham para mim seu envolvimento, seu interesse e disposição para
construir com todo o seu grupo de alunos um ambiente inclusivo, um lugar seguro e bom.
Para finalizar as reflexões deste episódio creio que não poderia passar em branco a
aprendizagem e as lições que aprendo todos os dias no trabalho coletivo, pelo fato mesmo de
ser um trabalho coletivo. Ninguém faz educação sozinho, ninguém faz inclusão sozinho. É
nos esforços e articulações de todos, é no interesse e empenho de toda a equipe, seja pelo caso
Likeke, seja por tantos outros casos com os quais lidamos no nosso dia-a-dia, que vamos
aprendendo e fazendo educação e inclusão. É na ajuda mútua que prestamos uns aos outros e
numa certa cumplicidade que nos oferecemos no enfrentamento dos desafios que aprendemos.
Os esforços que a professora Jandira mostrava nas suas falas me trazem mais uma vez
e sempre a lição de que fazer inclusão – e educar também – é não estar nunca pronto. Não há
como querer munir-se de todos os saberes para, a partir daí, de posse desses saberes, entrar para a
sala de aula e fazer a inclusão. Como se agora pudéssemos ter a certeza de um agir certo e
eficiente. Esta é a promessa de uma visão racionalista e positivista, cuja impossibilidade já vimos
discutindo em toda esta tese. Esta é uma ilusão que somente perdura em nossas escolas porque
todo o imaginário do primado da razão – sob o qual nos formamos – articula-se em nossa
sociedade como uma promessa de progresso. A ciência médica, ao entrar no campo do
comportamento humano passou a definir o comportamento padrão, a classificar e diagnosticar as
doenças, especialmente as que dizem respeito a crianças-que-não-aprendem-na-escola. Uma gama
de especialidades (psicologia, fonoaudiologia, neuropsicologia etc.) passou a orbitar em torno de
cada faixa etária, estabelecendo os desvios dos comportamentos esperados e as atitudes corretas –
para o professor e para os pais – para corrigir os desvios. A promessa de progresso fundamenta-se
218
na crença de que o acréscimo de informações pode trazer a resposta certa para o agir. A educação
que se submete a este discurso é aquela para a qual Larossa (2000, p. 193) aponta sua crítica:
A educação é, em suma, a obra de um pensamento calculador e de uma ação
técnica, em que se trata de conseguir um produto real mediante a intervenção
calculada num processo concebido como um campo de possibilidades. Uma
prática técnica, definitivamente, em que o resultado deve se produzir
segundo o que foi previsto antes de iniciar.
Não descarto, nem desprezo a importância das informações e do conhecimento que se
produz sobre o desenvolvimento das crianças, suas necessidades e dificuldades, mas creio que por
si só este conhecimento não basta; pode mesmo atrapalhar, às vezes, quando se descuida do
caráter singular e único de cada pessoa e, principalmente, do caráter singular e único das relações
que, como educadores, estabelecemos com as crianças. Fazemos o que é necessário fazer: tatear,
investigar, aprender. Assim se constrói experiência, assim se aprende que a experiência não se
repete – não entramos no mesmo rio duas vezes – mas aprendemos a abrir espaços de
subjetividade para estar com as crianças. É no acontecimento do encontro que aprendemos a tecer
relações humanas e humanizadoras. Ou não! Há sempre alguma margem de escolha por mais
marcados que sejamos pelo nosso passado, pelo nosso presente e pelos nossos sonhos de futuro.
219
6ª NARRATIVA: uma quinta-feira... quando o diabo mostra o rabo...
Eram cerca de duas e meia da tarde. Estava voltando do Banco, entro na secretaria e vejo o Marani (que é do 3º ano manhã e também frequenta o Período Integral) sentado numa mesinha que temos ali. Sento-me ao seu lado e pergunto: o que aconteceu? Por que você veio para cá? Ele se mantém em silêncio. Num tom amigável procuro dizer a ele que tudo bem, que podemos conversar. Ele mostra uma cara amarrada, de poucos amigos. Então também altero o meu tom, também me mostrando um pouco menos amigável e digo a ele que se ele está aqui na secretaria é porque aconteceu alguma coisa e que ele deve ter perdido o direito de estar na sala com os amigos. Marani continua com o rosto mais e mais fechado. Sem muita paciência, digo a ele que então não vou ficar ali esperando e que quanto mais ele se fechar, mais tempo levará para resolver a situação.
Vou cuidar de outras coisas na secretaria. A coordenadora da Educação Infantil vem conversar sobre bilhete que temos que enviar aos pais sobre a Festa de encerramento dos Jogos da Amizade. Ela me mostra o rascunho que já preparou no qual explica que, como o clima está muito seco e quente, teremos que mudar um pouco o esquema da Festa, fazendo-a mais breve. Resolvo isso com ela, também atendo telefonema para tratar com fornecedor de materiais de construção para a reforma que faremos nas férias. Atendo o diretor de uma Escola de Inglês que veio pessoalmente à escola para oferecer aos nossos alunos um serviço especial (nada de terceirização! Jamais! Apenas um esquema que poderá ser conveniente para nossos alunos e seus pais). Mas quando vou conversar com ele, Jaci, coordenadora do Fundamental II, vem subindo devagar a escada de acesso à secretaria. Ela está machucada, estava acompanhando os Jogos da Amizade quando levou uma bolada de Bets no olho. As pessoas que estão na secretaria (inclusive eu) se agitam e se preocupam. O que aconteceu, Jaci? Machucou? O professor de Educação Física vem explicar que é bom levá-la ao médico e começa a falar sobre fundo de olho e “se a pessoa enxergar duplo pode ser um tipo de lesão e se enxergar turvo é outro sintoma...” Mas nem tenho tempo de ouvi-lo, pois o arquiteto que fará a obra de reforma me liga e pede que eu receba o vendedor das telhas que serão usadas na reforma. Enquanto falo ao telefone, vou olhando os e-mails e vejo que o responsável do terreno ao lado da nossa escola respondeu ao meu pedido de empréstimo de uma caixa d’água de 15 mil litros (embora tenhamos várias caixas, elas estão distribuídas pelos nossos diferentes ambientes e setores e isso complica muito a recepção de água do caminhão pipa). Penso no enorme problema que teremos em breve, pois este terreno ao lado irá abrigar um conjunto residencial com vários prédios de oito andares, o que certamente vai piorar o já difícil trânsito. Mas, neste momento em que as obras não começaram, este nosso vizinho irá nos ajudar com o problema do abastecimento de água que estamos vivendo no Estado de São Paulo. Peço às meninas da secretaria que avisem nosso encarregado da manutenção para ir amanhã buscá-la. Termino de atender o Diretor da Escola de Inglês, que ficou me esperando. A professora Jurema (do Período Integral) já está subindo pra conversarmos juntas com o Marani.
Sentamos em frente a ele na mesa onde aguardava. Perguntei à Jurema o que acontecera, ele continuava se recusando a falar. Ela explica: “encontrei o Marani
220
com o colega Araripe na porta da sala conversando. O Araripe estava dando uma advertência para Marani, que ficava dando socos no ar enquanto Aimiri estava por perto. Marani inicialmente negou, mas depois admitiu”. Jurema me explica que, como Marani já há algum tempo estava apresentando esse comportamento provocativo e de ficar ameaçando o tempo todo, ela achou importante e necessário que ele perdesse o direito de ficar com o grupo (o comportamento era sempre de dar socos no ar). Marani faz Kung Fu e fica fazendo todos os movimentos do Kung Fu quando a Aimiri está por perto.
Marani resolve falar (com a voz ainda bastante engasgada): é, mas eu estava longe dela, não ia machucar ela”. Digo: “então você estava dando soco no ar. Com era isso? Me mostra”. Marani se fecha, fica com a cara amarrada e diz: “não vou fazer”. Percebo a tensão e intuo sofrimento no rosto desse menino, mas eu não estava entendendo qual era o problema, o que tinha de tão grave nesse gesto dele que motivara a professora a mandá-lo para a secretaria. Levantei e insisti para representarmos a cena e ele continuou negando. Pedi à Jaciara (coordenadora), que passava por ali, que me ajudasse a dramatizar a cena. Iniciamos alguns gestos (eu no papel de Marani e ela no de Aimiri). Marani até fechou os olhos, não queria ver a cena. Depois, ainda meio desconfiado abriu-os e acompanhou nossa dramatização.
Sentei-me novamente com ele e Jurema e perguntei se era assim mesmo que acontecia. Marani responde que sim, mas que “isso não tem nada a ver!” (acho que ele queria dizer que não havia machucado a Aimiri e nem ninguém, que não tinha nada de mais no que ele fazia). Jurema retomou o fato de que isso vinha acontecendo várias vezes e Marani retrucou dizendo que ela nunca pediu para parar. Jurema explica/relembra a ele que Aimiri é uma menina que precisa de nossa ajuda, que eles já tinham conversado sobre isso com o grupo (ele se mostra mais irritado com essa fala da professora. Seu rosto se fecha mais ainda).
Interfiro dizendo que nosso assunto não é Aimiri, mas sim ele, Marani. Ele responde: “vocês não entendem!”. Respondo: “é, acho que eu não estou entendendo mesmo. O que é que nós não entendemos? Você pode me dizer?”, “eu já tenho muitos problemas...” , “que problemas? Você quer me dizer? O que é que está te preocupando?”, “não, vocês não entendem...”, “e se você não falar, nós vamos continuar sem entender...”, “eu já tenho muitas coisas pra corrigir”. Procuro outra forma de abordar: “você acha que isso está te ajudando a ser mais amigo do Araripe? Mais amigo de Aimiri? E dos outros?”. Marani me olha nos olhos e responde em tom de desafio: “nunca que eu ia querer ser amigo dessa diaba!”
Um raio me atravessa. Susto e silêncio são nossas reações (minha e de Jurema). Ficamos perplexas. Como assim? Esse menino (normalmente tão educado, tranquilo, solidário) está chamando a Aimiri de diaba? A Aimiri, que tem tanta dificuldade (deficiência intelectual) e que estamos tão empenhados em incluir no convívio escolar? Olho mais atentamente para Marani. Uma calma me invade. “Ah... Agora eu entendi o problema”. Ele dá um suspiro de alívio ao me ouvir, ao perceber e sentir que acolho esta sua fala. Que não julgo e nem condeno. Continuo: “você está com problemas com a Aimiri, né?”, “é, aquela diaba!”, “ela
221
está te incomodando? Ela te provoca?”, “ela faz muita coisa errada, muita coisa errada! E ninguém fala nada!”, “entendo que você está com problemas com Aimiri, mas essas provocações têm que parar. Vamos fazer um combinado de parar”. Ele continuou dizendo que não, que não ia parar.
“Então tem duas opções: ou combinamos isso aqui ou terei que chamar seus pais para conversarmos juntos”, “não! Você não vai chamar meus pais!!!”, “então você tem que aceitar o combinado”, “eu já tenho tantas coisas pra corrigir. Eu não aguento mais”, “quais coisas? Você quer contar?”, “não! É difícil pra mim”, “Tudo bem, eu respeito. Mas, aqui e agora temos que fechar esse combinado. Você consegue consertar isso? O jeito que você está tratando a Aimiri?”, “não vai adiantar nada, não vai ajudar quase nada”, “por que não vai adiantar?”, “você não entende. Eu tenho cem coisas pra consertar...”, “mas agora só estamos pedindo pra você pra consertar essa coisa”, “mas não vai adiantar. ”
Falamos as duas: vai sim! “Se for ajudar vai ser 1%, vai sobrar 99%”. Jurema diz: “1% já está bom, já é bom começo”. Eu digo: “Marani, sabe de uma coisa, eu entendi que você anda preocupado. Se quiser, pode vir conversar comigo numa outra hora. Se não quiser, tudo bem, eu entendo. Ou então, se quiser, depois num outro momento, você pode conversar com a Jurema, que é sua professora, ela está sempre com você. Tenho certeza que ela vai querer conversar”.
Marani desce com Jurema de volta à sala.
222
6ª NARRATIVA (segunda parte): separação entre saber e fazer ou do zelo em cada coisa que se faz
Ao chegar à escola, na segunda-feira seguinte, vejo que Marani já está lá na mesinha da secretaria, conversando com a coordenadora Jaciara.
Depois de um tempo entro também na conversa, dizendo que sei que eles dois já conversaram bastante e que eu não preciso interferir. Mas pergunto se já resolveram o problema que trouxe o Marani à secretaria. Inicialmente ele não queria falar nada. Eu digo que entendo, que tudo bem. E então ele começa a falar. Vai explicando tudo que havia acontecido: “eu estava irritado e o Tinga ficou apontando pra mim e dizendo que eu ia perder o recreio”. Sem que eu peça Marani vai acrescentando detalhes à cena, retomando cada ponto e os momentos em que ficou irritado. A certa altura diz: “eu admito que falei palavrão, mas será que o Tinga não percebeu que eu estava nervoso?”
Fico escutando o que ele diz com muita atenção, às vezes perguntando e esclarecendo com ele os fatos e informações que ele traz. Espero que ele fale e explique tudo que deseja e depois pergunto se ele já falou sobre esses problemas com o Tinga e com a turma. Ele diz que sim, mas que não adiantou. Pergunto se ele já tentou levar para o Jornal de Parede. Ele diz que não, porque acha que se fizer isso ele irá perder o recreio. Continuamos a conversa e nem sei bem como, mas ele decide que irá fazer um bilhete para colocar o assunto no Jornal de Parede. Marani me pergunta se posso participar da reunião de Jornal de Parede. Pergunto que dia será a Roda de Jornal de Parede. Ele diz que é de segunda-feira. E volta pra sala com o propósito de escrever o bilhete. Pouco depois eu desço à sala e peço à professora que me chamem quando forem fazer a reunião. E no final da manhã sou chamada à sala pra participar da Roda.
Ao entrar vejo que eles estão sentados em Roda, mas está tudo muito apertado, a roda não está “redonda”. Marani abre um sorriso quando entro. Começo a afastar as carteiras e cadeiras para o fundo da sala para que a Roda fique mais aberta. Imediatamente Marani vem me ajudar nesta tarefa. Afastamos umas oito carteiras para o fundo da sala, abrindo um bom espaço. As crianças se espalham melhor, mas ainda deixamos as carteiras do canto direito da sala no mesmo lugar. A roda não chega a ficar bem redonda, mas como não quero atrapalhar muito o momento da turma eu me sento com eles e peço que continuem.
A professora está com o Livro da Vida na mão, anotando as coisas que eles vão discutindo. Marani levanta a mão para falar sobre o seu bilhete. Ele argumenta com os amigos, expõe seu ponto de vista sobre a situação vivida pouco antes na manhã de hoje.
Outras crianças erguem a mão pedindo a palavra. Então vejo que ainda não há um responsável por anotar as inscrições de fala. Pergunto à professora e ela devolve a pergunta à turma: “quem são os ajudantes de Jornal de Parede?” Dois
223
alunos se apresentam (eles já estavam escalados na tabela feita pela turma) e finalmente começam a cuidar das inscrições. Providencio folhas de papel rascunho para que eles possam anotar os nomes e então, seguimos47.
Quando chega a vez de Marani falar, ele diz que se irrita muito quando os amigos não querem brincar com ele. Outro amigo, o Araripe, diz que não sabia disso, que Marani tinha que falar, que não tinha como adivinhar... Outra criança sentada lá no cantinho, onde ainda tinha umas carteiras atrapalhando a roda, pede a palavra. Eu e os outros que estavam sentados do outro lado não conseguíamos vê-la bem. Então, novamente me levanto e, com ajuda de algumas crianças, afasto as carteiras que ainda atrapalhavam a roda. Finalmente temos um espaço circular bem confortável onde todos podemos nos ver e ouvir bem. A reação de todas as crianças é muito positiva.
47 Parte desta conversa está registrada no Livro da Vida da turma (imagem digitalizada).
224
OS INSTRUMENTOS DA PEDAGOGIA FREINET EM AÇÃO
O LIVRO DA VIDA
O livro da vida é um grande caderno no qual são anotados os momentos do dia a
dia. É um “diário de bordo” que registra a vida da sala, os combinados da turma, as conversas,
os projetos encampados. Todos podem deixar suas marcas e impressões. Não mais o livro
didático ou os sistemas apostilados nos quais tudo o que deve acontecer na sala está previsto
e prescrito: este livro permite que a vida das crianças e sua palavra torne-se acontecimento e
que, ao ser partilhado, torne-se aprendizagem. Oferece possibilidades de estruturar a
memória coletiva e individual, favorecer a comunicação entre as crianças e seus pais, valorizar
os sucessos de cada um e mostrar a riqueza daquilo que faz a vida de cada criança e a da
classe. Em outras palavras, o acontecimento se torna objeto de estudo, algo para se conhecer
e aprender. Como já escrevi em outro momento (Ferreira, 2003, p. 31):
A escrita ganha força de expressão e pode, assim, ser compreendida como
alguma coisa que serve para contar a história da vida do grupo. Muito
antes de aprender a ler e escrever, as crianças já são usuárias da escrita.
Figura 52: Roda de conversa de uma turma de 2º ano, com o Livro da Vida em frente à professora. Fonte: acervo da autora.
225
O JORNAL DE PAREDE
“O enunciado teórico dos direitos e deveres do indivíduo na
comunidade não é suficiente: é a prática social que é
necessário desenvolver, a fim de que o homem saiba mais tarde
se conduzir livremente nas diversas ocasiões de sua vida”.
(Célèstin Freinet)
É uma dessas novas instituições na sala de aula de que temos falado nesta tese.
Um instrumento simples, um cartaz (uma cartolina) com três envelopes nos quais estão as
inscrições: “eu proponho”, “eu critico”, “eu felicito”. Algumas turmas acrescentam um quarto
envelope no qual escrevem “eu quero saber”. A vida da turma, naturalmente, tem seus
conflitos. Acolhê-los é só parte da tarefa educativa. A outra parte diz respeito ao exercício
do diálogo, da negociação, ou seja, o exercício da cooperação na busca de soluções para um
convívio ético. É, pois, um instrumento prático, uma “técnica” que guarda enormes
potencialidades como uma instituição na sala de aula para favorecer o convívio na diferença.
Figura 53: Página do Livro da Vida com o registro da reunião do Jornal de Parede. Fonte: acervo da autora.
226
Entendo este instrumento da Pedagogia Freinet como um recurso precioso
para criarmos um ambiente de livre expressão, democrático e cooperativo. Nas reuniões
de leitura dos bilhetes colocados durante a semana nos envelopes, é oportunizada a
discussão e a definição de combinados. Ele permite, por exemplo, que o grupo discuta os
problemas de relacionamento que naturalmente surgem entre eles. Segundo os autores
do artigo da Revista Le Nouvel Educateur 168 (OUVRARD e TIBERI, 2005):
Quando os primeiros conflitos aparecem, eles nos dão ocasião de abordar a
noção de violência. Ela se apresenta de todas as formas: violências físicas,
violências verbais, roubos... As crianças sabem identificá-las, elas já têm a
noção do bem e do mal. Então, assim que seja identificada, etiquetada, ela é
proibida e “não se discute mais” mesmo que uma discussão fosse possível.
Mas, proibir uma violência não significa que ela vá desaparecer. Assim, no
correr das semanas, cada dia carrega uma série de queixas.
Muitas vezes os professores que iniciam esta prática sentem-se incomodados
com esta chuva de queixas, preocupam-se em “perder tempo” com reclamações pois, uma vez
aberto o espaço para esta expressão, amplificam-se as discussões. É justamente essa a
importância deste instrumento: ele abre o espaço da escuta que tem sido tão negligenciado
nos modelos tradicionais de ensino. E as crianças utilizam essa ferramenta com muita
propriedade, dirigem suas críticas e reclamações quando um colega faz algo que desagrada.
Aprendem a combinar as regras a partir das próprias necessidades que o convívio impõe.
Aprendem a “legislar” a vida do grupo, aprendem que há consequências para comportamentos
inadequados e que desrespeitam as pessoas do grupo. Aprendem que o convívio é feito de
direitos e deveres e que quando não se cumpre um dever pode-se perder um direito, ou que
alguém está tendo um direito desrespeitado. Ainda citando o artigo do LEducateur:
A existência de um lugar onde se pode escrever e, em seguida falar para toda
a classe, acontece como uma instância dissuasiva. Se não se fala nele agora,
ele será comentado mais tarde. Em todo caso é impossível agora se agredir
sem impunidade. A lei da negociação toma o lugar da lei do mais forte.
Outras aprendizagens igualmente importantes estão em curso quando se utiliza o
Jornal de Parede. Uma delas é sobre o registro dos combinados: os bilhetes são colados no
227
Livro da Vida e a conversa é registrada. Faz-se uma Ata da reunião. Nas séries iniciais é a
própria professora que faz este registro e depois lê para o grupo mas, na medida em que
eles crescem, passa-se a ter uma criança (ou adolescente) responsável pelas anotações.
Além disso, não se destina somente às críticas. Aprender a felicitar é um aspecto
muito positivo para o convívio. Aprender a propor é outro. As crianças têm a chance de fazer
todo tipo de propostas e, neste exercício, aprendem a defender pontos de vista, argumentar.
Figura 54: Jornal de Parede de uma turma de 7º ano. Fonte: acervo da autora.
228
A CORRESPONDÊNCIA
Embora não tenha aparecido explicitamente nos episódios narrados, não
poderia deixar de apresentar este importante instrumento da Pedagogia Freinet (que, se
pensarmos no mundo de hoje com as tantas formas de comunicação e troca entre as
pessoas, nas redes e intercâmbios), mostra o quão atuais eram as ideias deste educador.
Praticamos com nossas turmas a correspondência, que se trata da troca de cartas entre
duas turmas. Esta troca pode ser entre turmas de escolas diferentes ou dentro de uma
mesma escola, por exemplo, entre a turma da manhã e a turma da tarde. A
correspondência interescolar, assim como outros instrumentos freinetianos, tem esta
força de favorecer uma comunicação real e concreta: as crianças escrevem para alguém
de verdade e não para ver seu texto submetido à correção do professor.
Os professores combinam a troca de correspondência coletiva para suas
turmas. A carta coletiva tem um tamanho grande, ela é feita com folhas de sulfite coladas
umas às outras. Todos os alunos da classe podem expressar sentimentos comuns, contar
eventos ou fazer as perguntas que interessam à coletividade. Todos eles podem fazer
desenhos ou colagens para enfeitar a carta.
Depois da troca das cartas coletivas entre duas
turmas, pode surgir uma troca de correspondência
individual. A carta individual de uma criança é só
uma mensagem muito pessoal onde conta para outro
sobre coisas que viveu na vida doméstica, talvez,
mensagens que não tocam a totalidade das crianças
da outra classe. Assim, quando uma criança escreve,
ou faz tentativas de escritas, ou ainda alguém lhe
serve de escriba, fala de acontecimentos de sua
vida, serve-se da escrita para se comunicar.
O sentido vivo da comunicação pode ser vivido na
experiência da troca de correspondência. Foto: acervo da autora.
229
REFLEXÕES SOBRE O EPISÓDIO
Aprender a escutar escutando, aprender a fazer fazendo. Deixar a vida entrar,
abrindo as portas para o acontecimento e a complexidade
Este episódio me faz lembrar de uma frase de Freinet: “é preciso deixar a vida
entrar na sala de aula”. Muitas vezes o que se lê nesta frase é uma imagem bucólica da
borboletinha entrando na sala, as crianças felizes e curiosas, a professora aproveitando o
momento e iniciando uma pesquisa. Ensinando as crianças a fazerem uma observação. Pode
ser que isso também corresponda à ideia de Freinet de deixar a vida entrar. Mas, para mim, é
muito mais que isso. É deixar que o conflito se expresse, é acolher o que está carregado de dor
e sofrimento também. É constatar que a complexidade se manifesta.
Já vimos discutindo o quanto é importante compreender a inclusão não como a simples
inserção de alunos com deficiência numa sala comum. Toda a discussão sobre a integração versus a
inclusão já nos alertou sobre os perigos que rondam concepções que não avançam na direção de
uma educação que se pretenda viva e pulsante, aberta a todas as suas contradições e superações.
Além disso, temos testemunhado a ineficácia dos discursos moralistas do tipo “vamos respeitar
nosso amiguinho, ele tem dificuldade...!”. Assim como no pensamento freinetiano deixar a vida
entrar na sala é receber toda a complexidade do convívio, também a inclusão implica em reconhecer
que conflitos irão adentrar a sala de aula. Creio que a imagem do rizoma deleuzeano (Deleuze e
Guatari, 1995, p. 14 e 15) nos dá outras possibilidades de pensar este espaço/tempo escola e suas
relações. Pensar uma transformação das práticas escolares, pensar uma nova educação é pensar
rizomaticamente o que acontece na sala de aula e nos espaços da escola.
Resumamos os principais caracteres de um rizoma: diferentemente das árvores
ou de suas raízes, o rizoma conecta um ponto qualquer com outro ponto
qualquer e cada um de seus traços não remete necessariamente a traços de
mesma natureza; ele põe em jogo regimes de signos muito diferentes,
inclusive estados de não-signos. O rizoma não se deixa reconduzir nem ao
Uno nem ao múltiplo. Ele não é o Uno que se torna dois, nem mesmo que se
tornaria diretamente três, quatro ou cinco etc. Ele não é um múltiplo que
deriva do Uno, nem ao qual o Uno se acrescentaria. Ele não é feito de
unidades, mas de dimensões, ou antes de direções movediças. Ele não tem
começo nem fim, mas sempre um meio pelo qual ele cresce e transborda.
Nas reflexões sobre o episódio é isto que aprendo. Vejo rizomas: no rosto fechado
de Marani toda a expectativa que ele colocava sobre si mesmo e a pergunta que me formulei
sobre como ele estava se sentindo em relação aos pais (“o que seus pais diriam de tudo
230
aquilo?); nos seus gestos de socar o ar, o desejo de colocar para fora algo que incomodava,
seu desejo de tornar isto visível; na crítica do amigo Araripe e nas conversas que a turma já
fizera, as milhares de possíveis interpretações que cada um tinha sobre as questões a envolver
Aimiri; no olhar da professora, no seu pedido de que eu participasse daquela conversa e no
seu desejo de que seus alunos se entendessem e se respeitassem; na possibilidade do desabafo
que saía na voz engasgada de Marani ao recusar amizade com “aquela diaba”; no alívio que
seu rosto mostrou quando finalmente percebeu que eu havia entendido; no lugar que ocupei
como um nó da trama para que ele desengasgasse seu nós da garganta; na pequena porta que
encontramos – Jurema e eu – para melhorar 1% daqueles tantos problemas... Rizomas que se
ligam, entrelaçam-se com os outros significados que, não estando visíveis na concretude da
cena descrita, não deixavam de estar presentes, fazendo seus agenciamentos. No meio daquela
cena sem começo nem fim, muitas direções movediças transbordavam.
O episódio tematiza as muitas dimensões que o modelo cartesiano e racionalista
aplicado à educação omite. A racionalidade que exclui a sensibilidade tentaria apontar uma
resposta correta, reconduzir ao uno, ou mesmo ao múltiplo, para oferecer uma chave
interpretativa, mas, no episódio, algo de movediço mostrava-se em curso. Como, aliás, em todas
(ou quase) as situações que acontecem na escola, sejamos ou não capazes de percebê-las.
Nesta matéria viva e movediça que ali se desenrolava, percebia uma impossibilidade
que, infelizmente, é a marca corriqueira nas relações entre professores e alunos: um certo modo de
discursar para a criança, fazer preleções (sobre a amizade, o respeito, a cooperação...). Também é
possível discursar sobre regras e combinados mas, felizmente para mim, no meio daquela
conversa eu me sentia “balbuciante e insegura...” Não sabia mesmo o que acontecia com Marani.
Intuía algum sofrimento, estava nítido, mas não sabia o quê... Muito menos como ajudá-lo. Que
tantos problemas poderia ter aquele menino que estava estudando, bem alimentado, vestido e
tratado? Vivia esta impossibilidade de fazer discurso para ele ou sobre ele.
Expressar sentimentos e ideias é um dos eixos da Pedagogia Freinet, mas é
possível cair numa ingênua compreensão de que um lindo mundo da infância, com toda sua
doçura e ingenuidade se apresentará a nós. Mas, quando começamos a ouvir efetivamente a
criança, estes chavões logo se desmancham.
E naquela cena só me restava a escuta. Tentar ouvir a palavra dele. Acolhê-la sem
julgar. Uma lição que aprendo sempre é esta: não ouvir a criança com ouvidos adultos. É
preciso ouvi-la com ouvidos humanos – de um ser humano para outro. É preciso descer do
pedestal de instituição, é preciso sair do lugar de professor/coordenador/diretor. Do mergulho
231
na história pude aprender que o papel institucional que nos é prescrito na escola se reveste de
uma mística de alguém que ilumina, que dirige: o professor Sol de Comenius. A escola nos
torna instituições. Mas instituições são desencarnadas, dizem muito pouco de nossa
pessoalidade, de nossa subjetividade. E, no momento em que nos deparamos com uma fala
como esta, é preciso aprender a lição: ouvir é mais difícil do que parece. E falar nem sempre é
resolver a questão. Não posso simplesmente calar sua fala com meus discursos, com minha
maioridade e experiência. Não posso exibir uma pretensa esperteza de alguém que, como um
detetive, descobriu o crime e o culpado. Muitas vezes o adulto exibe sua competência
linguística, sua lógica infalível para apontar a imaturidade e inadequação: o discurso sobre a
criança a desconsidera e prescreve comportamentos. Nesta forma de “diálogo” (poderíamos
dizer: pseudodiálogo), o aluno é instado a falar, mas somente para que se possa apontar suas
falhas, achar sua culpa. Não é diálogo, é interrogatório. Escutamos já com os ouvidos cheios
de nossas preconcepções. Acreditamo-nos já sabedores do problema e da resposta.
Marani expressava sentimentos contraditórios de incômodo, de rejeição a Aimiri.
Sentia-se excluído, sentia que era ela quem ganhava as atenções. Ele estava nos mostrando
suas angústias e as cobranças que ele sentia que pesavam sobre seus ombros. E com isso ele
se constituía no diferente para mim. No outro de mim, mas também, no reflexo de mim. Ele
me mostrava minhas próprias incertezas, colocava-me em contato com minhas angústias e
incertezas no trabalho com a inclusão. E, na escuta atenta e despojada de prescrições,
encontrei-me comigo mesma na face fechada e atormentada de Marani: muitas exigências ele
sentia que havia sobre seus pequenos ombros de menino. Muitas exigências eu sentia que o
papel, a instituição diretora, fazia pesar sobre mim. Foi o encontro que nos fez aprender.
É preciso aprender a viver relações de humanidade para poder aprender a viver
uma pedagogia da diferença. Uma pedagogia que não define quem é diferente, porque entende
que todos somos singulares e estamos no processo de devir. E isto não é fácil. E isto é difícil.
Cabe aqui também, agora sob um outro ângulo, uma outra dimensão nas direções
movediças em que nos movimentamos no ambiente escolar: a reflexão sobre o trabalho coletivo e
a construção de parcerias no cotidiano escolar. Jurema havia mandado Marani para a secretaria.
Quando uma criança é encaminhada à secretaria, uma de nós, coordenadoras (sempre há uma ou
duas coordenadoras presentes na escola), interrompe o que estiver fazendo para conversar com a
criança que nos foi encaminhada. Essas conversas têm sido para mim, fonte de muitas
aprendizagens. Tanto em relação ao seu teor e as parcerias que podemos formar com as crianças,
quanto na própria forma de fortalecer parcerias com as professoras. Evitar a simples “bronca” e
232
constituir-me em aprendiz de sensibilidade na escuta subjetiva de Marani abria também para ela
este espaço de escuta. E isto me leva à segunda parte do episódio, à reunião do Jornal de Parede.
Fui convidada por Marani a estar presente naquela reunião do Jornal de Parede.
Isto me dava pistas de que a conversa que havíamos tido na sexta-feira anterior criara uma
relação de confiança entre nós. Minha escuta, meu ouvido era solicitado novamente. O
problema com Aimiri começava a resolver-se para ele, que, agora mais fortalecido, passava a
buscar a solução para seus relacionamentos com outros colegas.
Como vimos no estudo da história, a constituição do modelo frontalizado é regida
por uma concepção de ensino em que o saber emana de um centro que se coloca na figura do
mestre. A reunião do Jornal de Parede como uma outra forma de educar institui a
possibilidade de relações em roda (não frontais). É instituída a circulação de ideias e
discussões entre os alunos: a comunicação entre eles (e não para eles). Não é o professor que
informa, orienta, decide. O instrumento cria um cenário na sala de aula, mas não somente com
os móveis e as paredes: é a dinâmica que se estabelece, o modo de agir dentro do espaço, as
possibilidades que são oferecidas às pessoas que ali atuam. É novamente a imagem do rizoma
que melhor expressa o fervilhar destas comunicações. Não uma comunicação unidirecional e
centralizada, mas comunicações dinâmicas, entre todos, embora cada um tivesse que levantar
a mão e esperar sua vez para falar. Embora houvesse duas crianças responsáveis por anotar as
inscrições de fala. Todos tinham algo a dizer sobre aquele conflito vivido por Marani e alguns
colegas. Mas o convite de Marani me dizia também que o olhar mais maduro, a autoridade
não era rejeitada ali. As crianças pedem a presença do adulto.
Mais uma reflexão sobre o episódio diz respeito à preparação do momento da
reunião, o que requer cuidado do professor, seu papel é de enorme importância. Este momento
precisa de toda a seriedade que uma assembleia exige. O espaço físico pode refletir a
importância que estamos dando àquela atividade com nossas crianças. Naquele momento,
embora a professora estivesse presente na sala, ela estava envolvida em outra atividade. As
crianças precisavam de ajuda e minha ação concreta foi a de arrumar as carteiras, de
providenciar papel para fazer as inscrições de fala, entendendo o quanto tudo se reveste de
seriedade e o quanto é preciso dedicar zelo aos detalhes.
A institucionalização da escola teve como uma de suas bases a separação entre o saber
e o fazer (vimos isto na terceira característica da escola), com forte depreciação do segundo em
benefício do primeiro. Existe uma depreciação pelos fazeres mais concretos, mais ligados ao serviço
e um maior apreço ao trabalho mais “intelectualizado”. A ação de arrumar implica em se envolver
233
com os alunos, fazer junto com eles o que precisa ser feito para que tudo funcione. Como
professores – ou coordenadores, ou diretores, não importa a hierarquia, nossa atitude de engajar-se
no trabalho efetivo para que a Roda fique bem confortável diz muito às crianças sobre o que
consideramos importante, qual o valor que damos para o evento que irá se desenrolar naquele
espaço/tempo. Somos um exemplo que está sendo aprendido e, neste caso, construímos confiança.
É a proposição do Dossiê Pedagógico (Debarbieux, 1991, p. 5) que inspira minhas aprendizagens:
“nada será feito se não houver uma transformação das relações professor aluno, porque a Pedagogia
Freinet é uma educação na confiança...” O sorriso de Marani e sua presteza em me ajudar a afastar
as cadeiras e carteiras me dava os indícios de que esta confiança estava sendo construída.
E há ainda uma reflexão que se liga a todas as anteriores: trata-se da questão do trabalho
coletivo na escola. O relato do episódio talvez não tenha conseguido explicitar as aprendizagens que
também fazíamos, eu e a professora, sobre este trabalho de formação em serviço. Aprendendo, eu
ensinava; ensinando, eu aprendia. Mas, assim como em relação às crianças, compreendendo meu
lugar assimétrico, eu evitava a “bronca” (ou a preleção que, como diz a sabedoria popular, “entra
por um ouvido e sai pelo outro”), também na relação com a professora uma relação de confiança, de
respeito, é construída. Trabalhar junto com os professores, estar com elas na sala, coloca-me
solidariamente na construção de melhores práticas para elas, para as crianças.
234
LIÇÕES DA EXPERIÊNCIA
“Além da Terra, além do Céu,
no trampolim do sem-fim das estrelas,
no rastro dos astros,
na magnólia das nebulosas.
Além, muito além do sistema solar,
até onde alcançam o pensamento e o coração,
vamos!
vamos conjugar o verbo fundamental essencial,
o verbo transcendente, acima das gramáticas
e do medo e da moeda e da política,
o verbo sempreamar,
o verbo pluriamar,
razão de ser e de viver”.
(Carlos Drummond de Andrade)
Por que é tão difícil mudar a escola?
A pergunta inicial que orientou esta tese parece agora ainda mais ambiciosa do
que já parecia lá no início. Os riscos já se apresentavam. O chamado à personagem do conto
de Calvino, no prólogo deste trabalho, que se vê como que atingido por um raio de
significação diante da perda de significado de todas as coisas, indiciava a impossibilidade da
tarefa de explicitar dificuldades tão complexas e emaranhadas. Propunha um estranhamento
que, como um raio, ilumina e some; e, sumindo, deixa-nos quietos. “Quieto, porque no
momento em que levantei os braços e abri a boca a grande revelação foi como que engolida e
as palavras saíram assim, de chofre” (Calvino, 2001, p. 16). Já intuindo a dificuldade desta
tarefa, escolhi caminhos que me permitissem vislumbrar respostas, sabendo-as parciais,
sabendo-as pessoais, sabendo-as recortes, trechos; rizomas de uma trama maior, bem maior.
Os objetivos explicitados no primeiro capítulo (narrar a experiência vivida como
educadora, para dela extrair as lições sobre a inclusão e discutir as relações entre os atores da
cena escolar, notadamente professores e alunos quando frente a frente com a diferença, face à
inclusão), foram também a forma que encontrei de circunscrever a ambição da pergunta. Colocá-
la no seu devido lugar – pois é isto que se deve fazer com ambições desmedidas!
235
Buscar a gênese, as raízes, as estruturas
Mas, ainda assim, não podia me furtar a um estudo – uma ambição mais comedida –,
a um esforço de compreensão da escola hoje; não podia me furtar à investigação que trouxesse
mais entendimento e respostas, ainda que parciais, para uma questão que se desdobra da
primeira: como é que a escola chegou a ser o que é hoje? A genealogia da escola se apresentou
como caminho que serviu para me situar na trama toda. Como seres históricos chegamos a um
mundo que já existia antes de nós, mas isto não quer dizer que ele já está pronto e determinado.
Conhecer o mundo ao qual se chega passa por compreender a história, mas também por vivê-la
como tempo de possibilidades – a história é também o que se faz hoje.
O estudo da história me proporcionou aproximações com as diferentes concepções
de homem e de mundo que orientaram e influenciaram os fazeres humanos em diferentes
aspectos da vida das sociedades. Estudar a história serviu para desmistificar a tradição.
Toda minha experiência profissional e de vida está ligada às questões da
educação. Assim, a história foi pensada sob o foco da pedagogia, da escola, este espaço/tempo
no qual, cotidianamente, dão-se as relações entre seres humanos. Entender como se
produziram teorias do conhecimento (como um dom da fé, como uma faculdade da razão,
como utilidade para a produção de bens) me ajudou a compreender os desdobramentos que
estes modos de conceber a vida e o mundo aportaram ao fazer educativo. Como ensina o
mestre Paulo Freire: toda educação é sempre uma teoria do conhecimento posta em prática.
Assim, procurei entender as influências que constituíram a escola lançando olhares
para o que chamei de pilares da escolarização: a noção de infância, o pensamento científico
moderno, o capitalismo industrial, buscando explicitar o que compreendi como fatores presentes
ainda hoje, na forma como se organiza, produz e reproduz a escola e o ensino. Este esforço de
compreensão ajudou na análise da instituição escolar e dos problemas estruturais que ela contém.
Desconstruir os pilares e encontrar rizomas e emaranhados de significação
Mas a pós-modernidade tem sido um tempo de desconstrução e, sendo uma pessoa que
vive neste hoje, compreender o ontem teve como desdobramento desconstruí-lo com as ferramentas
que este pensamento da tem produzido. Assim, foi necessário proceder a crítica às premissas, aos
paradigmas que historicamente se constituíram para informar os atores da cena escolar. Crítica e
desconstrução do pilar de racionalidade do pensamento científico moderno, cuja objetividade se vê às
236
voltas com a impossibilidade de descartar a subjetividade, o tempo, o acaso e as dinâmicas de poder
do contexto no qual seu conhecimento é produzido. Uma racionalidade que se vê em crise. Crítica ao
pilar das propaladas equidade e produtividade prometidas pelo modo de produção capitalista, fábulas
de um modelo que esconde a farsa de um prometido bem-estar baseado no consumo. Uma
produtividade e equidade que, ameaçando os recursos e a vida no planeta, não podem mais negar sua
crise. E crítica e desconstrução do modo como a infância vem sendo concebida e tratada; este novo
que chega ao mundo e deve ser recebido pelo adulto, mas este adulto encontra-se em crise com seu
mundo e a infância vê-se ameaçada de ter que desempenhar um papel que não é seu – a “adultização”
da criança. Ela vê-se “abandonada” a um mundo da infância que, em última análise, poderíamos dizer
que é o mundo no qual o adulto desta sociedade em crise gostaria de estar – a infantilização do adulto.
Ao voltar os olhos para a história, pude enxergar não uma árvore com suas raízes, tronco
e as ramificações em galhos: vi o quanto de rizoma há na genealogia. Pensando em pilares a sustentar
a estruturação da instituição escolar, encontrei interdependências, agenciamentos; ou, como disseram
Deleuze e Guattari, “comunicações transversais entre linhas diferenciadas (que) embaralham as
árvores genealógicas” (1995, p. 7). Rizomas que se interligam como, por exemplo, o desenvolvimento
do pensamento científico sendo apropriado como razão para justificar a fé, ou os interesses do capital
que se apoiaram na ciência para “libertar” os cristãos do pagamento das indulgências à igreja, a ciência
que aperfeiçoa as tecnologias para servir aos interesses da produtividade que livra assim o capital das
obrigações que o trabalho e o trabalhador reclamam, ou as paixões com que cientistas defendem suas
lógicas pretensamente isentas de paixões, ou a materialidade das expressões do poder religioso nos
seus templos e riquezas, anéis e coroas ou... Pilares que são mais como rizomas, que ainda assim
possuem nós e arborescências. Um mundo líquido, como talvez dissesse Bauman. Um mundo ao qual
Edgar Morin nos convida a um pensamento complexo que não se reduza às dicotomias, abrindo
possibilidades para além do simples ou isto ou aquilo, abrindo possibilidade para o e isto e aquilo. Um
mundo de árvores e rizomas.
Aprendi nas lições da filosofia que os saberes produzidos sobre a infância nos dão a
sensação de que captamos o enigma da infância, mas aprendi que continuamos nós mesmos um
enigma para nosso olhar. Que não chegamos ao fim da viagem e ainda estamos por conhecer nossa
própria humanidade. Descobrirmo-nos frente a um espelho que não nos explica, que devolve
sempre uma imagem enigmática. E, talvez, seja isso o mais belo: a presença sempre desafiadora do
mistério, do enigma, do imponderável a nos devolver humildade na relação conosco, com os outros
adultos, com as crianças. A lição da história diz respeito a este saber difícil que é o da Pedagogia,
por se encontrar na intersecção de outros saberes. Um saber que é teórico, é técnico, é político.
237
Aprendizagens que as crises ensejam e o retorno à experiência vivida
A lição da história nos mostrou também que em toda esta complexidade, nas
construções e desconstruções, vemo-nos em um mundo sempre em crise.
Aprendi, na experiência vivida, a viver e pensar as crises como momentos
profícuos. Não se pode voltar às velhas respostas de antes. A crise deve ser o momento de,
levando em conta o passado, pensar novas possibilidades que se fazem no presente para
construir outros futuros. Pensar a crise na educação é pensar formas de superá-la, não é voltar
aos velhos métodos. É fazer uma nova escola que, incluindo o novo, também inclui o velho.
E, neste emaranhado intrincado e enigmático, a narrativa de minha vivência e experiência
trouxe reflexões para o meu trabalho de pedagoga. Não sou filósofa, não sou historiadora, não sou
psicóloga, nem socióloga ou antropóloga. Interessa-me o que acontece na sala de aula, no espaço
escolar e, neste espaço que é atravessado por aquilo que os saberes destas outras áreas explicita, o que
acontece são relações: um maravilhoso rizoma em que milhares de hastes se interligam umas às
outras, interligam-se a tudo que está ali dentro, mas também ao que está, aparentemente, do lado de
fora (as relações sociais, econômicas e políticas e os saberes sobre elas produzidos); ao que ali é
passado, mas também é futuro, sendo no presente, um presente que é a expressão da complexidade.
A descrição das sete características deste espaço/tempo escola teve a pretensão
singela de explicitar alguns nós deste rizoma, nunca a temeridade de esgotá-lo. Foi o que minha
própria experiência foi me fazendo ver quando me encontrei diante de dificuldades para agir em
favor de uma mudança, de uma transformação da escola. Foi neste sentido que o caminho da
investigação narrativa se tornou a via necessária para adentrar este universo de complexidade,
explicitar características que nele enxerguei e cotejá-las com a própria experiência. A narrativa
teve sempre presente o sentido, destacado por Benjamin, de minha própria inserção no fluxo
narrativo. E foi assim que, narrando e refletindo sobre o narrado (o vivido), fui encontrando
oportunidade de explicitar lições ou de propor outras continuações para a história. Os episódios
foram conversando com a história, foram conversando com as crises, com as características
forjadas a partir dos paradigmas que a própria história constituiu. E desta conversa foram
nascendo as lições. E as próprias lições, além de conversar com as teorizações, conversavam
também entre si, uma lição aprendida antes entrava em diálogo com outra que vinha a seguir e
tudo isso me mostrava mais e mais os rizomas deleuzianos a se entrelaçarem.
238
Para uma nova escola novos instrumentos de trabalho
Uma reflexão que foi pairando sobre todos os episódios tem a ver com a
transformação da escola (a pergunta inicial da tese) e a lição que pude ir explicitando sobre a
introdução de novos instrumentos (a Pedagogia Freinet) modificam as próprias características
deste espaço/tempo escola. É o que o próprio Freinet chamava de “materialismo escolar”, que
se constitui como pedra angular de sua obra, na medida em que quando nos encontramos face
a face com as crianças, a mudança concreta do meio material será o caminho mais efetivo e
seguro para constituirmos novas relações com elas. Foi por esta razão que a cada episódio
tornava-se necessário apresentar estes instrumentos da Pedagogia Freinet.
Uma lição muito preciosa para mim, é a de que transformar as práticas, as
instituições, os instrumentos do trabalho pedagógico, também me transforma – e isto não é
fácil, e isto é difícil. Há uma retórica bastante comum no ambiente de professores que
proclama uma “postura” democrática, mas cuja prática concreta repete as velhas fórmulas
autoritárias da aula e da avaliação. Não é possível transformar as relações do espaço/tempo
escola e sala de aula utilizando os velhos instrumentos, agindo segundo o princípio da
frontalização. Elas permanecerão relações de oposição. Foi esta uma lição que o primeiro
episódio me favoreceu: transformar o espaço daquela sala de aula, organizar o trabalho em
ateliês, permitir o burburinho, embora contivesse riscos da perda do controle, trazendo-me
certo pânico, trouxe-me também a possibilidade do trabalho cooperativo com os alunos.
Transformou a solidão numa outra intimidade na relação com eles.
O corpo docente aprende no encontro com o corpo discente
E desta primeira lição é desdobrada a segunda, que o episódio da recusa à matrícula
de Jupi me ensinou: é no encontro com o outro que nos preparamos para o que a relação nos
traz de aprendizagem. Se continuarmos a praticar um modelo de exclusão de crianças com
qualquer tipo de deficiência nunca poderemos aprender a praticar a inclusão, pois é na presença
do outro, na relação de alteridade, que nos formamos. Insisto na lição já enunciada nas reflexões
do próprio episódio: assim como disse Freinet, “a vida se prepara pela vida”, e também a
“inclusão se prepara pela inclusão”. E a lição se completa com a compreensão de que tudo isto
envolve uma atitude de abertura e hospitalidade à criança, ao outro.
239
A escola tradicional, e todo o modelo que viemos discutindo, informa-nos da necessidade
de haver homogeneidade no grupo de alunos para que possamos desempenhar o papel de
transmissores de conhecimentos/informações. Ora, primeiro descobre-se que a pretensa
homogeneidade não existe. Segundo: descobre-se que no pretenso combinado em que cada ator da
cena escolar assumiria a identidade para eles fixada, os alunos, talvez por sua novidade e estrangeirice
no mundo, não assumem a identidade que se espera deles. Nem mesmo o professor – diga-se de
passagem – assume completamente uma identidade universal (que, no mais, também não existe).
Num quadro assim desenhado, a entrada do diferente, da criança com qualquer tipo de dificuldade ou
deficiência, é vista como um complicador para o funcionamento daquela máquina. E é esta presença
que irá denunciar a obsolescência da máquina. Em sua primeira experiência como professor, em 1920,
numa pequena aldeia dos alpes franceses, Freinet via-se diante de grandes dificuldades impostas por sua
própria saúde (debilitada pelos ferimentos da guerra), pela pobreza do meio escolar de poucos recursos e
as que se fizeram notar pelas próprias dificuldades e deficiências (cognitivas, emocionais,
socioeconômicas) de seus alunos. A presença de crianças com deficiência mental e seu entendimento de
que a escola é para todas as crianças o levaria a construir outras dinâmicas para o seu trabalho. Levá-lo-
ia a reconhecer as tantas “doenças escolares” que uma máquina obsoleta pode causar. E, debruçando-
se sobre cada um daqueles alunos, dedicou seus esforços de compreensão e entendimento, atribuindo-
lhes valor único, tornando-os fonte de suas preocupações e afetos. Transformar a sala de aula,
modificar as dinâmicas, respeitar os diferentes ritmos, estimular a fala e expressão de seus alunos,
confiar que para conhecê-los seria preciso ouvi-los, confiar na sua natureza humana, na sua centelha de
vida e no seu impulso de crescimento, numa palavra, descer do velho estrado do professor e ir ao
encontro das crianças, seriam as consequências naturais de quem educando, educa-se.
Arregaçar as mangas, engajar-se no trabalho, reencantar-se com o mundo
O que se desdobra desta segunda lição é o que o terceiro episódio me ensinou:
aprender é dar aos alunos e a si mesmo o tempo e a oportunidade do tateio experimental,
abandonando a postura explicadora, a fórmula unidirecional da transmissão de
conhecimentos. Sair do lugar frontalizado à frente da sala, o lugar do mestre explicador (de
Jacotot), não é sair da sala! Nosso trabalho de professor requer muita laboriosidade. Não é
possível se acomodar às rotinas cansadas e sem vida da pedagogia tradicional. Também não
será uma transformação da escola a simples superposição de tecnologias que “melhoram a
240
aula”. É preciso trazer materiais, instrumentos de trabalho, tecnologias, ferramentas e
organizar tudo com as crianças para que elas, apropriando-se deles, possam trabalhar. Como
nos exorta Freinet: “é preciso ir ao encontro da vida”.
Desdobra-se da lição anterior a aprendizagem que vem com o quarto episódio: a
investigação do mundo, o interesse pelas coisas que existem. O que são? Como funcionam? Quem
inventou? Nossa formação, todo o edifício escolar, construiu-se para banir do espaço/tempo escola a
curiosidade e a investigação. A começar pelos próprios professores, que não mais precisam fazer
perguntas, nem pesquisar, pois já têm tudo dado e sistematizado nos livros e manuais didáticos. E
ficamos com a informação, em detrimento do conhecimento (o que Freinet chamava de “trabalho em
migalhas”): migalhas de leitura, de história, de matemática. O mundo moderno nos coloca como que
numa torre de Babel pela profusão de informações a que estamos submetidos. O poeta T. S. Eliot
lança a pergunta: “onde está o conhecimento que perdemos na informação?” É fácil se perder nesse
mar de informação. Para nós mesmos e para a criança a bússola que nos ajudará a construir uma vida
melhor liga-se à possibilidade de construirmos conhecimentos significativos. Com o bom senso que é
marca de sua pedagogia, Freinet (idem, p. 62), nos lembra que “a infância não é um saco que temos de
encher, mas uma pilha generosamente carregada”. Ela irá buscar o conhecimento que lhe seja
significativo, movida pelo interesse e curiosidade e é isto que lhe permitirá a elaboração de um
conhecimento organizado porque vivo e integrado às suas necessidades vitais. A criança, toda criança
– com dificuldades especiais ou não – quando proporcionamos a ela um meio rico e instigante, seguirá
nutrindo-se e fazendo crescer sua curiosidade. Mas, nós adultos formados na forma da acumulação de
informações já perdemos nossa faísca de curiosidade. Há um trabalho que, como professores,
precisamos fazer sobre nós mesmos, que é o de nos reencantarmos com o mundo e as coisas.
Recuperarmos nossa capacidade de espanto e interesse pelo conhecimento, pelo saber, pelo aprender.
Autoridade: autoria da própria idade. Maturidade para construir relação de escuta.
E as lições continuaram nas reflexões dos episódios narrados. Do quinto destaco a
necessidade de uma reconstrução da autoridade do adulto que não se perde no autoritarismo. “Voltar a
ser como uma criança”, como ensina Freinet, para, com olhos de adulto-criança, enxergar o que esta
relação exige de acolhimento e continência. A reflexão/lição que se é a de que a construção de
relações cooperativas entre professor e aluno demanda uma atitude de reconhecimento daquilo que há
de humanidade em todos nós. Mas demanda também um entendimento de nossa própria autoridade
241
como autoria, autoria de nosso amadurecimento, de nossa idade. Embora nosso mundo venha
valorizando mais que nunca a juventude e a novidade, creio que é momento de trabalharmos para
recuperar o valor da maturidade. É ela que trará equilíbrio na relação com a infância. Esta lição
demanda a revalorização de uma certa assimetria do papel e do trabalho do professor.
Mas o sexto episódio me ensina que esta assimetria da relação adulto criança não se
faz no enrijecimento de identidades fixadas. Ela se dá na possibilidade do encontro, da escuta,
do acolhimento, da hospitalidade. O encontro que só é possível porque se faz de diferença, na
diferença, com a diferença. O mesmo, o igual, só prevê extensão, continuação, repetição. É
preciso diferença, relação é algo que ocorre nela. Se não compreendemos esta dimensão, a
relação torna-se a busca de encontrar nossa própria extensão no outro, o que por si só inviabiliza
a relação de alteridade. Não me encontrando no outro, tendo o outro me negado um espelho
narcísico, passo a condená-lo. Quando o aluno não nos apresenta a identidade para ele fixada, o
caminho que a pedagogia tradicional percorre é o da acusação (pedagogia do inquérito). A
prática de uma pedagogia da diferença se faz, dentre outras coisas, abandonando identidades
fixadas e recuperando um olhar de curioso interesse pelo outro diante de quem estamos.
O episódio explicita ainda uma outra lição que diz respeito à dificuldade tão
arraigada no pensamento pedagógico sobre a hierarquia do trabalho: trabalho intelectual
versus o trabalho manual. Revalorizar o trabalho é revalorizar todo trabalho: organizar a sala,
varrer o chão, elaborar uma pesquisa e, em tudo, dedicar zelo e cuidado.
E aqui tento fechar este trabalho, com algumas últimas considerações. Procurando
resposta para a pergunta formulada, postulo que mudar a escola é difícil porque educar é difícil.
É com Paulo Freire que dialogo nesta reflexão. Em Pedagogia da Autonomia (1996), o mestre
fala-nos das tantas exigências que se embutem no ensinar: rigorosidade metódica, pesquisa,
respeito aos saberes dos educandos, criticidade, estética e ética, risco, aceitação do novo etc.
(são 27 exigências). Concordo com todas elas, não descarto nenhuma. Mas reconheço que será
preciso considerar pelo menos quatro aspectos para uma empreitada assim tão exigente e difícil.
Da atualidade da Pedagogia Freinet
O primeiro aspecto já explicitei ao tocar a questão dos instrumentos. Quando
tenho diante de mim uma tarefa difícil, procuro instrumentos adequados para realizá-la. Só
minha “boa” personalidade não basta. Velhos instrumentos podem comprometer minha tarefa.
A medicina tem desenvolvido cada vez mais instrumentos que auxiliem a busca da cura, a
engenharia e arquitetura também. O artista escolhe seus pincéis e suas tintas. Em educação, os
242
instrumentos são tanto as teorias do conhecimento quanto as instituições e as formas de
organizar o trabalho na sala de aula. A escola tradicional continua atada aos velhos
instrumentos de trabalho pedagógico, a escola “modernizada” os plastifica, sem contudo,
alterar as dinâmicas do trabalho na sala de aula. Os instrumentos que a Pedagogia Freinet
propõe prestam-se a alterações mais profundas na forma de se construir as relações entre
professor e alunos na sala de aula e está nisto sua força e sua atualidade.
A coragem de fazer, de correr os riscos, de transformar e transformar-se
Um segundo aspecto que vejo ao admitir as tantas e tão difíceis exigências do
trabalho de educar é que se aplicássemos isto à maternidade talvez não tivéssemos filhos. E,
no entanto, os temos: trazemos ao mundo novos seres. Uma certa leveza e alegria nos
encoraja. Um desejo de encontro com o futuro que a criança traz consigo anima-nos à
maternidade e paternidade. Mas, na escola, talvez se pensássemos demais na dificuldade do
educar filhos que nem são os nossos, mas que chegam ao mundo e, por nossa escolha de
profissão, assumimos a tarefa educá-los, talvez desistíssemos antes de começar. E, se não
desistimos, talvez seja este um testemunho de amor ao mundo e às crianças, um testemunho
de abertura para tudo que é difícil. Gosto de pensar que isto é mais do que motivo para que se
revalorize a profissão de educador, de professor. Nossa disponibilidade de mobilizar nossos
muitos registros na relação com as crianças faz desta profissão um exercício que, no mínimo,
merece mais respeito. Distingue-se neste trabalho esta característica de ação reflexiva, ação
que implica na mobilização de muitos dos nossos registros: afetivo, intelectual, emocional,
espiritual, corporal... Sentimos, muitos de nós, a “urgência de opções novas”. Mas a prática de
novas instituições na sala de aula traz, na concretude do encontro com o outro – a criança, o
aluno, que se expressa na sua inteireza e pessoalidade, nas suas idiossincrasias, desejos e
necessidades – o confronto que é próprio do estar em relação com o outro. É nesta relação que
se dá o educar e ela é relação de transformação contínua de mim e do outro.
243
Não estamos sozinhos
E um terceiro aspecto que se desdobra dos anteriores é que, além das ferramentas
adequadas para a tarefa e da disposição, é preciso reconhecer que um trabalho assim tão
difícil não se faz sozinho. Ele se faz com as crianças e com nossos pares, colegas desta
profissão. É a lição do trabalho coletivo na escola. Trabalho coletivo entre professores,
trabalho coletivo com os alunos. Trabalho coletivo que se faz no respeito às individualidades,
sabendo que é a contribuição original de cada um que irá construir a beleza do todo.
Pensar a educação como trabalho coletivo é lembrar que não é preciso fazer as
descobertas e enfrentar os riscos sozinho. É preciso fazer rede, compartilhar com os pares. A
Pedagogia Freinet diferencia-se de outras propostas: além de ser uma pedagogia que parte da
base, ou seja, daqueles que estão na sala de aula – Freinet teve sempre muito orgulho de se
auto intitular “um simples professor primário” – é também a primeira vez na história em que
uma proposta pedagógica constitui uma rede de educadores e que, por isso mesmo, não se
cristaliza como um modelo fechado ou, pior, como uma franquia que o modelo neoliberal
empacota e vende no mercado da educação. Se entendemos a educação como um ponto de
interseção de muitos saberes, é preciso compreender também que ela é a interseção de muitos
fazeres. E por meio das trocas, dos apoios, das críticas e indagações que o diálogo em rede
possibilita, são criadas as condições para uma constante renovação destes mesmos saberes.
Creio que o poeta João Cabral de Melo Neto fala melhor para explicitar esta lição: “um galo
sozinho não tece a manhã, ele precisará sempre de outros galos...”
A imagem a seguir é exemplo e lição de minha experiência de um trabalho
coletivo de professores, coordenação e alunos. Um enorme painel em que a expressão de cada
um compôs um todo de arte e beleza.
244
Figura 55: Painel da Festa Junina 2015 da Escola Curumim. Cada criança pintou sua bandeirinha com as cores e
artes que escolheu, compondo este mural de cerca de 9m x 4,5m. Fonte: acervo da autora.
A educação e a pergunta ética
O último aspecto que trago à consideração está ligado à pergunta ética. Diante de
tantos pequenos curumins, Tupãs, Bartiras, Raonis, Jupis, Joacis, Rudás, Peris, Likekes,
Maranis, Aimiris me encontrei a vida toda, neste caminho que trilhei na escola. Nunca encontrei
nenhum igual ao outro. Nunca a descrição de uma síndrome, um diagnóstico ou laudo médico
foi capaz de evitar em mim o espanto diante do enigma, diante da pessoa de carne e osso que se
encontrava à minha frente. Nunca fui capaz de sossegar e nem de retirar do encontro face a face
o seu inusitado. Porque a questão da educação, e mais ainda a questão da educação inclusiva,
por ser um saber e uma prática que se inserem na ordem das relações, não prescinde da questão
ética. E o que tenho aprendido na vida é que a ética é a resposta à pergunta: como vamos
conviver? E as respostas que construí para o convívio com tantos curumins foram as que juntos
construímos no diálogo, nem sempre fácil, nunca previsto ou pré-determinado.
Foi também no encontro com tantos educadores (Juremas, Jaciaras, Nanines,
Kauãs, Aracis, Jandiras, Anauás) e com as tantas mães e pais das crianças que aprendi que a
educação é um saber instável, nunca fixado, nunca acabado. Um saber que não se faz sozinho,
245
um saber que me reconcilia com a certeza de que não estamos sozinhos e que precisamos uns
dos outros para nos educarmos.
Despeço-me com esta última imagem que me é muito cara: o Passeio da Lanterna da nossa
Festa Junina. Todos os anos o repetimos, é uma tradição alemã que foi, ao longo dos anos, recriada e
reinventada por nós. As crianças carregam suas lanternas com velas e caminham pela quadra cantando a
canção que diz: “eu vou com a minha lanterna, e ela comigo vai. No céu brilham estrelas, na terra
brilhamos nós. A luz se apagou, para casa eu vou, com a minha lanterna na mão”. Caminhamos em
torno da quadra e cada um vela pelo fogo, protegendo a sua chama. No momento final, sentados numa
grande roda, eles apagam suas velas fazendo um pedido. Plasma-se o sentimento de beleza pelo mundo
que se faz com o brilho de cada um e, ao se unir com os brilhos de todos os outros, produz o sentido de
encantamento pela vida e pelo mundo. Faltam-me palavras para descrever a seriedade e solenidade com
que as crianças vivem este momento. Na simbologia e magia deste passeio encontro um sentido e uma
certeza de que a inclusão é difícil, a educação é difícil, mas é também encantamento e beleza.
Figura 56: Passeio da Lanterna (Festa Junina da Escola Curumim). Fonte: acervo da autora.
Postulo esta tese, quer dizer, peço que me leiam e me acreditem, ou pelo menos
considerem as ideias aqui registradas. Deposito esta tese no espaço da academia, na sua
biblioteca, na esperança de que este seja um espaço preservado no tempo, que perdure para
que um dia alguém possa lê-la e usufruir do trabalho a que me propus.
246
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253
ANEXO
Este gráfico apresenta a evolução de matrículas da Escola Curumim entre os anos 2000 e 2014,
apresentando o total de alunos e o total de alunos com deficiência nas salas de aula.
Os dados indicam que o percentual de alunos de alunos com deficiência incluídos se manteve numa
faixa de 14% do total.