de portas abertas À vida e À diferenÇa: a pedagogia...

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAÇÃO GLAUCIA DE MELO FERREIRA DE PORTAS ABERTAS À VIDA E À DIFERENÇA: A PEDAGOGIA FREINET E A INCLUSÃO CAMPINAS 2015

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

FACULDADE DE EDUCAÇÃO

GLAUCIA DE MELO FERREIRA

DE PORTAS ABERTAS À VIDA E À DIFERENÇA:

A PEDAGOGIA FREINET E A INCLUSÃO

CAMPINAS

2015

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GLAUCIA DE MELO FERREIRA

“DE PORTAS ABERTAS À VIDA E À DIFERENÇA: A

PEDAGOGIA FREINET E A INCLUSÃO”

Tese de Doutorado apresentada ao

Programa de Pós-Graduação em Educação

da Faculdade de Educação da Universidade

Estadual de Campinas para obtenção do

título de Doutora em Educação, na área de

concentração de Ensino e Práticas Culturais.

O ARQUIVO DIGITAL CORRESPONDE À VERSÃO FINAL

DA TESE DEFENDIDA PELA ALUNA GLAUCIA DE MELO

FERREIRA, E ORIENTADA PELA PROFA. DRA. MARIA

TERESA EGLÉR MANTOAN

CAMPINAS

2015

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Agência(s) de fomento e nº(s) de processo(s): Não se aplica.

Ficha catalográfica

Universidade Estadual de Campinas

Biblioteca da Faculdade de Educação

Rosemary Passos - CRB 8/5751

Ferreira, Glaucia de Melo, 1958-

F413d De portas abertas à vida e à diferença : a pedagogia Freinet e a inclusão /

Glaucia de Melo Ferreira. – Campinas, SP : [s.n.], 2015.

Orientador: Maria Teresa Eglér Mantoan.

Tese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de

Educação.

1. Inclusão. 2. Diferença (Educação). 3. Freinet, Método de educação. 4.

Formação continuada. 5. Ensino e aprendizagem. I. Mantoan, Maria Teresa

Eglér,1943-. II. Universidade Estadual de Campinas. Faculdade de Educação.

III. Título.

Informações para Biblioteca Digital Título em outro idioma: Doors open to life and difference : the Freinet pedagogy and inclusion Palavras-chave em inglês: Inclusion Difference (Education) Freinet, education method Continuing education Teaching and learning Área de concentração: Ensino e Práticas Culturais Titulação: Doutora em Educação Banca examinadora: Maria Teresa Eglér Mantoan [Orientador] Tânia Regina Laurindo Flávio Boleiz Júnior Guilherme do Val Toledo Prado Ana Maria Faccioli Camargo Data de defesa: 12-11-2015 Programa de Pós-Graduação: Educação

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

FACULDADE/INSTITUTO

TESE DE DOUTORADO

DE PORTAS ABERTAS À VIDA E À DIFERENÇA:

A PEDAGOGIA FREINET E A INCLUSÃO

Autora: Glaucia de Melo Ferreira

Orientadora: Profa. Dra. Maria Teresa Eglér Mantoan

COMISSÃO JULGADORA

Tânia Regina Laurindo

Flávio Boleiz Júnior

Guilherme do Val Toledo Prado

Ana Maria Faccioli Camargo

A Ata da Defesa assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida acadêmica do aluno.

2015

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À Mariana, minha filha, e à vida nova que agora

você traz ao mundo, formando uma nova

família. Meu coração já bate dobrado por vocês.

Aos curumins que povoam minha vida há 35

anos e me encantam com a beleza da vida e da

novidade que trazem ao mundo.

Aos queridos e queridas companheiros da Escola

Curumim, educadores que todo dia renovam em

mim o entusiasmo por esta nossa profissão.

Aos meus pais, que já foram se encontrar em

outros jardins, mas que deixaram a nós, seus

filhos, o maior legado: o de conviver na

diferença. Esta aprendizagem impregnou-se por

meus poros, está inscrita no DNA e me enche o

coração de alegria e gratidão.

Aos meus queridos irmãos e irmãs, pela

renovação das aprendizagens e legado de nossos

pais que fazemos agora na jornada da vida.

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AGRADECIMENTOS

À querida professora Maria Teresa Eglér Mantoan pelos tantos ensinamentos, por sua luta

inspiradora e incansável para abrir as portas de todas as escolas para todas as crianças e por

sua abertura e acolhimento a este trabalho.

À querida professora Corinta Geraldi, por seu olhar sempre atento e sensível, por sua

generosidade. Seu trabalho em defesa dos professores é sempre inspirador.

À querida professora e amiga Tânia Regina Laurindo, colega de tantas lutas, de tantos bons

combates que lutamos juntas. Gratidão sempre.

Ao professor e amigo Flávio Boleiz, companheiro nas lutas pela difusão da Pedagogia Freinet no

Brasil. Grata sempre por nossas conversas tão estimulantes e renovadoras.

À professora Ana Maria Camargo pela leitura atenta, pelas contribuições e sugestões a este trabalho.

Ao professor Guilherme do Val Toledo Prado, sempre presente e generoso nas minhas

incursões ao mundo acadêmico.

À professora Norma Sílvia Trindade de Lima, pela disponibilidade para a leitura e por suas

contribuições para este trabalho.

À professora Elizabete Costa Renders, pela disponibilidade para a leitura e por suas

contribuições para este trabalho.

Ao professor Wanderley Geraldi, meu mestre. Eterna gratidão por sua generosa leitura.

Agradeço ao Dr. Matheus pelas gotas homeopáticas milagrosas, ao professor Paulo pelas

práticas equilibradoras da yoga e à Dra. Elony pela escuta sensível e palavras de cura.

Agradeço a toda a equipe de educadores da Escola Curumim: queridos funcionários e professores

que sempre abrem espaços de afeto aos curumins por quem, juntos, fazemo-nos responsáveis.

Agradeço especialmente à equipe de coordenadoras e sócias por sua disponibilidade e

empenho quando de minhas ausências. Agradeço ainda mais por sua amizade, cumplicidade e

apoio a esta empreitada a que me propus. Muito obrigada Anita, Andréia, Ana Flávia,

Heloísa, Luana, Mônica e Rina, vocês sabem o quanto as estimo.

Aos queridos amigos do Coral Coromim, que se tornaram uma família eleita e unida pelo canto.

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RESUMO

Este trabalho parte da indagação colocada à autora por sua experiência vivida no espaço

escolar (ora como professora, ora como coordenadora e diretora de uma escola cuja proposta

se fundamenta na Pedagogia Freinet) sobre a dificuldade de implementar transformações mais

profundas e efetivas nas práticas escolares e nas relações entre os atores da cena escolar

(professores, alunos, coordenação, direção, pais) com vistas à inclusão.

Discuto a problemática da inclusão e as dificuldades que esta proposta enfrenta: por mais que

se tenha avançado em termos legais (ou mesmo em termos da compreensão da sociedade

sobre a sua importância), a diferença – aquilo que justamente nos torna únicos e singulares –

não cabe na escola. Indago o quadro situacional da maioria das escolas: seria possível

trabalhar com a diferença numa instituição que se orienta para a normalização? Coloco então

uma questão anterior: de que maneira as estruturas que a escola construiu ao longo do seu

processo de formação têm contribuído para a exclusão da diferença?

Para compreender as características (impregnadas no modelo escolar) do atendimento de um

aluno dito “normal”, busquei, no estudo da história da institucionalização da escola, marcas que

influenciam práticas correntes ainda hoje. A pergunta formulada para orientar esta compreensão

foi: como esta instituição se tornou o que ela é hoje? O estudo da história explicitou o que

chamamos de pilares da escolarização: a noção de infância, o pensamento científico moderno e

o capitalismo industrial. O trabalho objetivou a desconstrução destes pilares por meio das

análises que autores da pós-modernidade ensejam e pela identificação de algumas das

características que se forjaram na constituição da instituição escolar (que naturalizam práticas

excludentes, práticas institucionais e institucionalizadas que dificultam a inclusão). A escola

inclusiva encontra entraves em uma estrutura frontalizada, simultânea, seriada e homogênea.

Da análise histórica parti para a reflexão sobre a experiência vivida, usando a investigação

narrativa: a narrativa de episódios que marcaram minha experiência ensejou reflexões e permitiu

extrair algumas lições sobre os próprios fazeres pedagógicos, sobre a própria precariedade do

modelo escolar vigente e sobre as dificuldades para a sua transformação.

A apresentação e a discussão dos instrumentos da Pedagogia Freinet, desafios para minha

prática pedagógica, serviram como guia para investigar a possibilidade de introduzir novas

formas de produzir o espaço escolar e de transformar práticas tradicionais para construir

relações mais humanizadas e inclusivas para o ensino e a aprendizagem.

Palavras-chave: inclusão e diferença; Pedagogia Freinet; formação continuada; relações de

ensino e aprendizagem.

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ABSTRACT

This study begins with the question put by the author about her experience at a Freinet pedagogy

school, either as a teacher or as coordinator and principal. It then discuss about the difficulty of

implementing deeper and effective changes in school practices and in relations between the actors

in the school play (teachers, students, coordination, principal, parents) with a view to inclusion.

I discuss the issue of inclusion and the difficulties it faces: no matter how much progress has

been made in legal terms or even the society understanding of its importance, the difference -

precisely what makes us unique - has no place at school. I inquire about the situational context

of most schools: would it be possible to work with the difference in an institution that is

oriented towards standardization? That brings a previous question: how the school structures

and its formation process contribute to the exclusion of difference?

To understand the characteristics impregnated in the school model that deal with the so-called

"normal" student, it was needed to look into the history of the school institutionalization and the

traces that still influence current practices, formed in the historical process, marked by other

socioeconomic and cultural contexts. The posed question was how this institution has become what

it is today? The study of history explains what we call the pillars of education: the notion of

childhood, the modern scientific thought and the industrial capitalism. This study aimed to

deconstruct these pillars through analysis that post modernity authors provide and the identification

of some of the features forged in the establishment of school institutions that overlook exclusionary

practices, institutional and institutionalized practices that hinder inclusion. The inclusive school

faces barriers concerning frontalization, simultaneous, serial and homogeneous structures.

Using the methodology of narrative research, it goes from historical analysis to the

experience. The episodes that marked the author's experience were brought to reflections and

allowed lessons on the teaching process, on the precariousness of current school model and

the difficulties for its transformation.

The presentation and discussion of the components of Freinet pedagogy, which consisted in

challenges for the author’s teaching practice, served as a guide to discuss the possibility of

introducing new ways to create the school environment and to transform traditional practices

into a more humane and inclusive relation for teaching and learning.

Keywords: Inclusion and difference; Freinet pedagogy; continuing education; teaching and

learning relations.

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RÉSUMÉ

Ce travail commence avec la question posée à l'auteur par son expérience vécue, que ce soit en

tant que professeur ou comme coordinateur et directeur d'une école dont la proposition est basée

sur la pédagogie Freinet, à propos de la difficulté de la mise en œuvre des changements plus

profonds et efficaces au niveaux des pratiques scolaires et les relations entre les acteurs de la

scène de l'école (enseignants, étudiants, coordination, direction, parents) en vue de l'inclusion.

Discuter de la question de l'inclusion et les difficultés de cette proposition doit faire face: peu

importe combien de progrès ont été réalisés en termes juridiques ou même en termes de

compréhension de la société à propos de son importance, la différence - ce qui exactement nous

fait unique et singulière - pas Il tient dans l'école. Renseignez-vous sur le contexte situationnel de

la plupart des écoles: il serait possible de travailler avec la différence dans une institution qui est

orienté vers la normalisation? Se pose alors une question précédente: comment les structures que

l'école a construit par son processus de formation a contribué à l'exclusion de la différence?

Pour comprendre les caractéristiques imprégnées dans le modèle de l'école structurée pour

répondre à un soi-disant étudiant «normal», a cherché dans l'institutionnalisation de l'école

d'étude des marques qui influencent les pratiques actuelles de l'histoire aujourd'hui, et celui

formé dans le processus historique, marquée pour d'autres contextes socio-économiques et

culturels. La question posée pour guider cette compréhension était comme l'institution est

devenue ce qu'elle est aujourd'hui? L'étude de l'histoire a expliqué ce que nous appelons les

piliers de l'éducation: la notion de l'enfance, la pensée scientifique moderne et le capitalisme

industriel. L'étude visait à déconstruire ces piliers à travers l'analyse que les auteurs

fournissent la postmodernité et l'identification de certaines des caractéristiques qui ont été

forgés dans la mise en place de l'école qui naturalise les pratiques d'exclusion, des pratiques

institutionnelles et institutionnalisées qui entravent l'inclusion. L'école inclusive est barré par

une structure frontalizée, simultanée, de série et homogène.

L'analyse historique laissé à la réflexion sur l'expérience, en utilisant la méthodologie de la

recherche narrative. Le récit des épisodes qui ont marqué l'expérience de l'auteur a donné lieu

réflexions et a permis de tirer quelques leçons sur les propres actions d'enseignement, sur la

précarité même de modèle de l'école actuelle et les difficultés pour sa transformation.

La présentation et la discussion des composantes de la pédagogie Freinet, qui consistaient à

des défis pour l'enseignement de la pratique de l'auteur, a servi de guide pour discuter de la

possibilité d'introduire de nouvelles façons de faire de l'environnement scolaire et de

transformer les pratiques traditionnelles à l'égard de construire des relations plus humaine et

plus inclusive pour l'enseignement et l'apprentissage.

Mots-clés: l'inclusion et de la différence; La pédagogie Freinet; la formation continue;

relations des enseignement et apprentissage.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Pátio de escola. .......................................................................................................... 51

Figura 2: Sala de aula. .............................................................................................................. 52

Figura 3: Sala de aula do “futuro”. ........................................................................................... 52

Figura 4: Gravura da ágora com a Acrópoles ao fundo ............................................................ 55

Figura 5: Afresco de Paestum, com cena de banquete, século V a.C. ...................................... 56

Figura 6: Academia de Platão: mosaico de Pompéia. .............................................................. 56

Figura 7: Detalhe de um sarcófago da primeira metade do século II ...................................... 57

Figura 8: Ramon Llull conversa a respeito de seus livros com seu discípulo Thomas Le

Myésier (detalhe da miniatura 11 do Breviculum). ................................................................ 58

Figura 9: Um grupo de discípulos estuda uma lição com seu mestre). Iluminura do século XIII . 59

Figura 10: Aula em Universidade Medieval............................................................................. 60

Figura 11: Jogos infantis. Pieter Bruegel (1525- 1569)............................................................ 61

Figura 12: O mestre açougueiro e o aprendiz.. .......................................................................... 62

Figura 13: O mestre padeiro e seu aprendiz. ............................................................................ 62

Figura 14: Arte do códice de esgrima medieval Gladiatória ................................................... 63

Figura 15: Interior da Catedral de Notre Dame, Paris.. ............................................................ 65

Figura 16: Afresco de Giotto, A Lamentaçãoi. ........................................................................ 66

Figura 17: O inferno. Pintura em óleo sobre madeira. Autor anônimo português do século XVI. 66

Figura 18: Iluminura que ilustra o calvário de Cristo. .............................................................. 67

Figura 19: Desfiles da monarquia terminavam nos átrios de igrejas. Procissão das relíquias de

Luis IX, ilustração de manuscrito, cardeal-mestre Bourbon, séc. XIII. ................................... 68

Figura 20: O jardim das delícias. Hieronymus Bosch. ............................................................. 68

Figura 21: Os monges recebiam nos mosteiros indistintamente todas as crianças a eles entregues,

vestindo-as, alimentando-as e educando-as, num sistema integral de formação educacional. ....... 70

Figuras 22 e 23: Páginas de abertura da Ratio Studiorum, publicada em 1599. ...................... 71

Figuras 24 e 25: Páginas iniciais da Ratio Studiorum. ................................................................ 71

Figura 26: O sistema heliocêntrico de Copérnico. ................................................................... 75

Figura 27: O Julgamento de Giordano Bruno pela Inquisição Romana. .................................. 76

Figura 28: Observação do satélite de Júpiter por Galileu. ........................................................ 78

Figura 29: O livro Orbis Pictus ................................................................................................ 81

Figura 30: Mais páginas do Orbis Pictus. ................................................................................. 81

Figura 31: Frontispício da Encyclopédie (editada em 1772 por Diderot e d’Alembert),

desenhado por Charles-Nicolas Cochin e gravado por Bonaventur-Louis Prévost.................. 86

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Figura 32: Uma rua de um bairro pobre de Londres (Dudley Street)....................................... 88

Figura 33: Crianças na fábrica. Gravura de Gustave Doré de 1872. ........................................ 89

Figura 34: Ilustração de escola do século XIX de ensino mútuo. ............................................ 92

Figura 35: Ensino simultâneo assente no agrupamento constituído pela classe e sala de aula.93

Figura 36: Ilustração de Rousseau e crianças. .......................................................................... 98

Figura 37: Ensino individual. “Le Maître d’école”. Adriaen Van Ostade. 1662. .................... 98

Figura 38: Henri Jules Jean Geoffroy – “The Children’s Class” (1889). ................................ 98

Figura 39: A organização frontalizada do espaço da sala de aula. ......................................... 100

Figura 40: Freinet e seus alunos. ............................................................................................ 150

Figura 41: Roda de conversa de uma turma de 4º ano na Escola Curumim. .......................... 158

Figura 42: Roda de conversa de uma turma de 2º ano na Escola Curumim. .......................... 159

Figura 43: Trabalho em ateliês de uma turma de Infantil (4 a 5 anos) na Escola Curumim. ....... 160

Figura 44: A imprensa escolar na minha classe de 1ª série (1983).. ...................................... 179

Figura 45: Dois alunos apresentam a caixa de tipos a um visitante numa exposição (1983).. ..... 179

Figura 46: Páginas internas do mesmo Jornal. ....................................................................... 181

Figura 47: Álbuns de alunos de uma turma de 2º ano. ........................................................... 182

Figura 48: Plano de trabalho individual. ................................................................................ 192

Figuras 49 e 50: Exemplo de uma Aula–passeio .................................................................... 204

Figura 51: Aula passeio ao centro de Campinas..................................................................... 206

Figura 52: Roda de conversa de uma turma de 2º ano, com o Livro da Vida em frente à professora.. .. 224

Figura 53: Página do Livro da Vida com o registro da reunião do Jornal de Parede.. ........... 225

Figura 54: Jornal de Parede de uma turma de 7º ano ............................................................. 227

Figura 55: Painel da Festa Junina 2015 da Escola Curumim. ................................................ 244

Figura 56: Passeio da Lanterna (Festa Junina da Escola Curumim). ..................................... 245

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 15

O problema ............................................................................................................... 15

A abordagem ............................................................................................................ 18

Questões envolvidas ................................................................................................. 20

1. CAMINHO INVESTIGATIVO E MEUS INTERLOCUTORES ........................... 29

A investigação narrativa ........................................................................................... 29

A narrativa como fonte de perguntas ou como o disparador da busca de respostas 35

Meus interlocutores .................................................................................................. 41

Narrar por meio de imagens e as imagens como interlocutoras ............................... 45

2. UM PASSEIO PELA HISTÓRIA EM BUSCA DOS INDÍCIOS PARA O ATUAL

ESTADO DAS PRÁTICAS ESCOLARES: UMA GENEALOGIA DA ESCOLA .... 47

Buscando as origens da formação da atual visão de escola ...................................... 54

A construção da noção de infância e o pensamento religioso .................................. 60

A apropriação da infância: os jesuítas e a Ratio Studiorum ..................................... 69

O Renascimento e o surgimento do pensamento científico moderno ...................... 74

Uma reapropriação da infância: Comenius e a Didática Magna .............................. 79

O capitalismo industrial e o primado da economia .................................................. 87

A massificação da infância ....................................................................................... 91

A escola de hoje e as marcas da sua constituição ..................................................... 96

A “racionalidade” do modelo: uma discussão necessária ...................................... 101

A “equidade e produtividade” do modelo: mais questões em aberto ..................... 110

E a infância? O que é ela no mundo atual? ............................................................ 118

Características da escola e do ensino...................................................................... 128

1. Identidades fixadas para os sujeitos na escola ............................................................ 128

2. Exclusão da sensibilidade em benefício da racionalidade .......................................... 131

3. Separação entre saber e fazer: a destituição do trabalho em benefício do jogo ..................... 134

4. A frontalização do ensino: exclusão do acontecimento .............................................. 137

5. O ensino simultâneo ................................................................................................... 140

6. A classe homogênea: a exclusão do conflito .............................................................. 142

7. O ensino seriado e a avaliação .................................................................................... 144

A escola e as consequências que decorrem de suas características: ainda uma reflexão 146

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3. A NARRATIVA COMO INVESTIGAÇÃO DE SI ABRINDO POSSIBILIDADES

PARA A REFLEXÃO E COMPREENSÃO .............................................................. 151

Uma novela que me formou: retomando alguns passos de minha trajetória .......... 154

1ª NARRATIVA: da solidão de ser professora à construção de outro modo de estar na

sala de aula. Uma data imprecisa de lembranças muito vivas. ....................................... 156

OS INSTRUMENTOS DA PEDAGOGIA FREINET EM AÇÃO ....................................... 158

RODA DE CONVERSA ................................................................................................. 158

A CLASSE EM ATELIÊS ............................................................................................ 160

REFLEXÕES SOBRE O EPISÓDIO:“o que era vidro se quebrou” e se abriu um novo encontro 161

2ª NARRATIVA: um fracasso que não se silenciou....................................................... 166

REFLEXÕES SOBRE O EPISÓDIO: aprender com o fracasso, aprender com o sucesso, aprender com a diferença ............................................................................... 168

AFINAL, PARA QUE ESTAMOS PREPARADOS? .................................................... 174

3ª NARRATIVA: expressões livremente impressas e a doce experiência de si e do outro 176

OS INSTRUMENTOS DA PEDAGOGIA FREINET EM AÇÃO ....................................... 178

O TEXTO LIVRE, O JORNAL ESCOLAR, A IMPRENSA .................................... 178

OS ÁLBUNS .................................................................................................................. 182

REFLEXÕES SOBRE O EPISÓDIO: deixar falar a criança para conhecê-la; pelo trabalho transformar esta palavra em objeto de fruição para todos .............. 183

4ª NARRATIVA: ciência e investigação e o tateio experimental .................................. 189

OS INSTRUMENTOS DA PEDAGOGIA FREINET EM AÇÃO ....................................... 190

OS PROJETOS COLETIVOS E OS PLANOS GERAIS ANUAIS ...................... 190

PESQUISAS INDIVIDUAIS E O PLANO DE TRABALHO INDIVIDUAL ..... 191

REFLEXÕES SOBRE O EPISÓDIO ........................................................................... 193

Aprender com as crianças a se reencantar com o mundo ...................................... 193

5ª NARRATIVA: tensões e distensões no cotidiano da escola ...................................... 199

OS INSTRUMENTOS DA PEDAGOGIA FREINET EM AÇÃO ....................................... 204

A AULA PASSEIO........................................................................................................ 204

A CULINÁRIA ............................................................................................................... 207

REFLEXÕES SOBRE O EPISÓDIO: o encontro entre alteridades e a autoridade como autoria de nossa própria maturidade ............................................................................ 209

6ª NARRATIVA: uma quinta-feira... quando o diabo mostra o rabo... .......................... 219

6ª NARRATIVA (segunda parte): separação entre saber e fazer ou do zelo em cada coisa

que se faz ........................................................................................................................ 222

OS INSTRUMENTOS DA PEDAGOGIA FREINET EM AÇÃO ....................................... 224

O LIVRO DA VIDA ...................................................................................................... 224

O JORNAL DE PAREDE .............................................................................................. 225

A CORRESPONDÊNCIA .............................................................................................. 228

REFLEXÕES SOBRE O EPISÓDIO: aprender a escutar escutando, aprender a fazer fazendo. Deixar a vida entrar, abrindo as portas para o acontecimento e a complexidade ........... 229

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LIÇÕES DA EXPERIÊNCIA .................................................................................... 234

Buscar a gênese, as raízes, as estruturas ................................................................. 235

Desconstruir os pilares e encontrar rizomas e emaranhados de significação ......... 235

Aprendizagens que as crises ensejam e o retorno à experiência vivida ................. 237

Para uma nova escola novos instrumentos de trabalho .......................................... 238

O corpo docente aprende no encontro com o corpo discente ................................. 238

Arregaçar as mangas, engajar-se no trabalho, reencantar-se com o mundo ........... 239

Autoridade: autoria da própria idade. Maturidade para construir relação de escuta.

................................................................................................................................ 240

Da atualidade da Pedagogia Freinet ....................................................................... 241

A coragem de fazer, de correr os riscos, de transformar e transformar-se ............. 242

Não estamos sozinhos............................................................................................. 243

A educação e a pergunta ética ................................................................................ 244

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................... 246

ANEXO ...................................................................................................................... 253

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INTRODUÇÃO

O problema

Se fizéssemos hoje um pequeno passeio a uma rua de comércio, a um shopping ou a

uma praça e, como quem faz uma pesquisa de opinião, perguntássemos às pessoas sobre quais

providências deveriam ser tomadas pelo poder público para melhorar a qualidade de vida, a

educação, certamente, estaria entre as respostas da maioria dos entrevistados. As passeatas e

atos públicos de junho de 2013 nos deram uma boa mostra de quantas e quão grandes são as

expectativas que a sociedade deposita na escola. Acostumamo-nos a ver a educação como a via

para resolver os problemas sociais. E, no entanto, se fôssemos agora a uma escola qualquer,

percorrêssemos seus corredores e adentrássemos uma sala de aula, talvez tivéssemos o desejo

de não permanecer ali por muito tempo. Na conhecida anedota Joãozinho aguardava ansioso o

dia de ir à escola. Finalmente chega o primeiro dia de aula, ele se despede da mãe e corre para o

pátio. No final do dia, seu avô vai buscá-lo e pergunta sobre como foi o dia, se gostou da escola.

Joãozinho fica calado, o avô insiste, “o que você gostou na escola?” e então Joãozinho pensa

um pouco e diz “do recreio!” O avô ainda tenta: “mais alguma coisa?” e o menino diz “acho

que vou gostar das férias”. Talvez, se perguntássemos às crianças sobre qual o melhor momento

da escola, muitas delas nos responderiam com um enorme “recreio”. A anedota que, para fazer

rir, traz o final inesperado, serve também para fazer pensar.

Tanta coisa tem sido dita sobre os problemas da escola brasileira, desde os

estruturais (como baixos salários dos professores, salas superlotadas, precariedade de

instalações e equipamentos), passando pelos mais diretamente ligados às questões

pedagógicas (tais como conteúdos desvinculados das vivências concretas dos alunos,

despreparo dos professores que se apegam a rotinas rígidas e sem vida, o desinteresse de

alunos e professores, a repetência, evasão escolar, exclusão...). Tudo isso já é bastante sabido

por todos. No entanto, a escola vem se reproduzindo, repetindo as velhas fórmulas. Ancorada

numa racionalidade técnica, o pensamento pedagógico reveste-se de uma cientificidade que

supostamente teria o poder de verdade para a formação do sujeito da sociedade moderna.

Acostumamo-nos a pensar na escola como este lugar de formação das novas

gerações e que bastaria melhorar alguns de seus aspectos problemáticos, ampliar o número de

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vagas e tudo se encaixaria perfeitamente: teríamos a solução para todos os problemas. E, no

entanto, esta escola, sobre a qual temos uma visão naturalizada, vê-se abalada, ameaçada e

despreparada diante do compromisso – agora amplamente legislado – de incluir a todos os

alunos. A presença do visivelmente diferente provoca um desequilíbrio no ambiente escolar,

causa um distúrbio nas rotinas, provoca necessidades que não permitem mais aos professores

exercerem seu ofício da forma costumeira, seguindo as rotinas que repousam, que tornam leve

o trabalho e diminuem a necessidade de fazer pensar, criar, experimentar, reagir e agir.

As objeções que tantas vezes pude ouvir de tantos professores diante do tema da

inclusão revelou para mim uma resistência que pode ser entendida como um sintoma do

problema. Mesmo consciente das dificuldades geradas pelo descaso de políticas públicas que

dificultam enormemente seu trabalho e não querendo minimizar toda esta problemática, ainda

assim esta resistência me impunha constantes indagações. Vi-me às voltas com um sentimento

de estranhamento que a sensibilidade artística de Calvino me ajuda a expressar:

Aconteceu-me uma vez, num cruzamento, no meio da multidão, no vaivém.

Parei, pisquei os olhos: não entendia nada. Nada, rigorosamente nada: não

entendia as razões das coisas, dos homens, era tudo sem sentido, absurdo. E

comecei a rir.

Para mim, o estranho naquele momento foi que eu não tivesse percebido isso

antes. E tivesse até então aceitado tudo: semáforos, veículos, cartazes, fardas,

monumentos, essas coisas tão afastadas do significado do mundo, como se

houvesse uma necessidade, uma coerência que ligasse umas às outras.

Então o riso morreu em minha garganta, corei de vergonha. Gesticulei, para

chamar a atenção dos passantes e – Parem um momento! – gritei – tem algo

estranho! Está tudo errado! Fazemos coisas absurdas! Este não pode ser o

caminho certo! Onde vamos acabar?

As pessoas pararam ao meu redor, me examinavam, curiosas. Eu continuava

ali no meio, gesticulava, ansioso para me explicar, torná-las participantes do

raio que me iluminara de repente: e ficava quieto. Quieto, porque no momento

em que levantei os braços e abri a boca a grande revelação foi como que

engolida e as palavras saíram assim, de chofre.

– E daí? – perguntaram as pessoas. – O que o senhor quer dizer? Está tudo no lugar.

Está tudo andando como deve andar. Cada coisa é consequência de outra. Cada

coisa está vinculada às outras. Não vemos nada de absurdo ou de injustificado!

E ali fiquei, perdido, porque diante dos meus olhos tudo voltara ao seu devido lugar

e tudo me parecia natural, semáforos monumentos, fardas, arranha-céus, trilhos de

trem, mendigos, passeatas; e no entanto não me sentia tranquilo, mas atormentado.

– Desculpem – respondi. – Talvez eu é que tenha me enganado. Tive a impressão.

Mas está tudo no lugar. Desculpem. – E me afastei entre seus olhares severos.

Mas, mesmo agora, toda vez (frequentemente) que me acontece não entender

alguma coisa, então, instintivamente, me vem a esperança de que seja de novo

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a boa ocasião para que eu volte ao estado em que não entendia mais nada,

para me apoderar dessa sabedoria diferente, encontrada e perdida no mesmo

instante. (Calvino, 2001, p. 16).

O estranhamento, o sentimento de perda de sentido ou de impossibilidade de

explicar o que para mim – ao olhar para as práticas tradicionais vigentes nas escolas – parecia

fora de lugar, dava-se muitas vezes nos diálogos com professores quando eu tentava falar de

um outro modo de ser e de estar na escola, um outro modo de fazer educação no qual a

diferença é parte integrante e essencial.

Minha experiência profissional foi marcada desde o início pelo estudo e prática da

Pedagogia Freinet a qual se constitui em seus princípios como uma Pedagogia da Diferença.

Respeitar os diferentes ritmos da classe, avaliar cada um segundo seus progressos, atender aos

diferentes interesses e necessidades próprios a cada um do grupo, foram para mim os desafios

próprios do trabalho de educar. Ao me ver tantas vezes diante de dedicados educadores que me

perguntavam sobre o que fazer com seus alunos com deficiência, senti a necessidade de entender

os motivos das preocupações deles e de me debruçar sobre o estudo da escola.

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A abordagem

O presente projeto parte de um estranhamento sobre a escola, sobre a visão e as

expectativas que nela depositamos, e liga-se à questão da inclusão escolar tomada na sua

concepção mais ampla, profunda e radical como nos aponta Mantoan (2003, p.24):

As escolas inclusivas propõem um modo de organização do sistema

educacional que considera as necessidades de todos os alunos e que é

estruturado em função dessas necessidades. Por tudo isso, a inclusão implica

uma mudança de perspectiva educacional, pois não atinge apenas alunos

com deficiência e os que apresentam dificuldades de aprender, mas todos os

demais, para que obtenham sucesso na corrente educativa geral.

É dentro desta visão de inclusão a qual ajuda a denunciar a naturalização da forma

escolar tradicional e reclama uma revisão e transformação mais ampla, das concepções de

homem e de mundo que nela circulam que o presente trabalho se pauta.

A abordagem metodológica deste trabalho baseia-se na investigação narrativa

(que apresento no capítulo 2) e ao longo do trabalho algumas narrativas irão aparecer, às

vezes servindo para explicitar momentos em que as dúvidas e indagações surgiram na

experiência da pesquisadora, outras vezes como elucidação de respostas encontradas.

Entendendo que o modelo de escola vigente está estruturado para atender ao aluno

“normal”, partindo do princípio de que todos devem atingir os mesmos objetivos educacionais

para eles traçados, no terceiro capítulo deste trabalho iremos buscar na História pistas e

indícios para evidenciar outros modos de educar que foram correntes. Tentaremos

desnaturalizar as origens deste modelo, os pilares que sustentam esta edificação, buscando

compreender as marcas que até hoje se encontram impressas na instituição escolar,

conformando e padronizando os fazeres que ali se realizam. O pensamento foucaultiano

servirá como guia nesta empreitada: “o que se encontra no começo histórico das coisas não é

a identidade ainda preservada da origem − é a discórdia entre as coisas, é o disparate. A

história ensina também a rir das solenidades da origem” (Foucault, 1984, p. 13).

Num passeio pela História da Educação, abordamos com mais profundidade

ideias e práticas presentes na constituição da instituição escolar. Vemos a influência do

pensamento religioso, a importância do modelo pedagógico jesuíta como organizador da

escola e a visão de Comenius de “ensinar tudo a todos e ao mesmo tempo” como algo ainda

presente no modo de ensinar nas escolas. Também abordamos a influência do pensamento

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científico moderno e do capitalismo industrial. Ainda no terceiro capítulo analisamos as

características que estas influências forjaram na instituição escolar. Finalizamos este capítulo

com uma discussão sobre as consequências que advêm deste modelo.

Este trabalho também é composto pelas imagens de escola, tanto do passado

quanto do presente. Trazê-las teve como intenção convidar o leitor a um olhar, a uma

aproximação com o ambiente escolar e, assim, propor novas miradas para este espaço, outros

coloridos para todos que nele habitam.

No capítulo quatro a narrativa da experiência vivida busca refletir sobre

dificuldades enfrentadas, tentando esboçar caminhos de aprendizagem. Os diferentes lugares

que a pesquisadora ocupou ao longo de sua trajetória, como professora, orientadora

pedagógica, ou ainda como diretora (mas sempre no chão da escola), ao serem explicitados

servirão para deles extrair as lições que se tornaram possíveis.

Em todo o trabalho que ora se inicia destacamos o fato de que a presença de

pessoas com deficiência evidencia a precariedade da escola, no sentido tanto material quanto

intelectual. A simples presença de um aluno numa turma já a mostra – o diferente torna-se

visível e ao fazê-lo revela a diferença antes invisível de todos os alunos.

A companheira nesta caminhada de trabalhadora da educação foi sempre a Pedagogia

Freinet. Suas contribuições referem-se tanto ao trabalho com alunos ditos “normais” quanto com

aqueles que apresentam dificuldades ou deficiências. A explicitação dos princípios freinetianos e

de seus instrumentos serão focados de forma a permitirem reflexões sobre as contribuições que

ela ensejou em toda esta empreitada e irão aparecer após as narrativas, para, em seguida tecermos

as reflexões e aprendizagens que os episódios narrados proporcionaram.

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Questões envolvidas

Minha experiência pessoal e profissional tem me mostrado que a mudança de

perspectiva requerida pela inclusão é algo bastante difícil. Tantas vezes me vi e me vejo diante de

professores (envolvida que estive muitas vezes com a formação de professores ao longo de minha

caminhada), de pais de alunos e de outros colegas de profissão que se colocam – às vezes

abertamente, outras veladamente – em oposição à inclusão. Enfrentei e ainda enfrento atitudes às

vezes de desconfiança, de incredulidade, outras de imobilismo ou de uma inércia que rejeita a

mudança e se apoia no conformismo do “sempre foi assim...”, mas também me vi diante de

educadores extremamente dedicados e comprometidos com uma educação melhor, cheios de

entusiasmo e amor por sua profissão, mas que mesmo assim mostravam-se com muitos receios.

A instituição escolar está, hoje, diante do compromisso de incluir todas as crianças.

E, no entanto, ela está estruturada a partir de uma lógica meritocrática, que premia os bons

(estes bons, do ponto de vista da escola, são os que melhor se conformam aos desígnios que ela

impõe) e pune os maus (aqueles que de um modo ou de outro, mostram-se diferentes do padrão

esperado). Esta instituição apega-se às rotinas burocratizadas, ao formalismo de uma instrução

passiva e das provas e verificações de aprendizagem, aos conteúdos simplificados dos livros

didáticos e afasta-se dos alunos, de suas necessidades e interesses, negando a eles a

possibilidade de se realizarem por meio de uma atividade viva e construtiva.

Na sua longa trajetória em defesa de uma educação mais adaptada à criança,

Freinet já nos apontava o problema quando escreveu que “a escola já não prepara para a vida,

já não serve à vida, e está nisto sua definitiva e radical condenação” (Freinet, 2001, p. 4).

Estamos hoje diante de um conflito: este modelo padrão de escola que aí está já

não atende às necessidades dos alunos, mesmo daqueles ditos normais. E agora deve também

incluir aqueles outros, que antes eram encaminhados às instituições especializadas.

Foi pensando nas minhas vivências, refletindo sobre os tantos questionamentos

que o encontro com os tantos interlocutores do campo educacional me propiciaram, que em

minha trajetória profissional começou a desenhar-se o desejo de realizar este trabalho. A cada

encontro ou diante de cada dificuldade encontrada para manter viva e funcionando sob

princípios inovadores a escola onde trabalho, aprofundavam-se em mim as dúvidas, definia-se

o problema a estudar, que podemos resumir neste impasse diante do qual a escola comum se

vê ao enfrentar a questão da inclusão.

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Tanta dificuldade e oposição me levaram a me perguntar sobre as razões ser tão

difícil para as pessoas admitirem que todas as crianças tenham o direito de frequentar a escola

sem sofrerem segregações ou discriminações de qualquer natureza. Por que muitos daqueles

que concordam com esse direito não admitem a necessidade de mudanças mais profundas na

forma de organização escolar e muitas vezes se restringem a simplesmente “aceitar” de maneira

conformada a presença de crianças com deficiência em suas salas de aula sem, contudo,

promover mudanças mais significativas no seu trabalho e sem questionar a forma de

organização da instituição escolar? Numa palavra: por que é tão difícil mudar a escola?

Um sentimento de estranhamento ainda me acomete diante dessas dificuldades. Mas é

preciso reconhecer: estranhar o outro é, para mim, muitas vezes, estranhar a mim mesma; reconhecer

os recantos, nem sempre explícitos, nos quais se entrincheiram dificuldades e travamentos que

obstruem e resistem ao desafio proposto por Hannah Arendt: “pensar sem corrimãos”.

Minha trajetória como educadora começou desde o início como uma busca por

propostas inovadoras de educação. Minha formação inicial em Pedagogia, na Unicamp, já havia

contribuído para que se esboçasse em mim uma visão crítica. Nos bancos daquela instituição, lá

pelos idos de 1978 até 1982, tive a oportunidade de ser aluna de Paulo Freire, Rubem Alves,

Maurício Tragtenberg, Moacir Gadotti, Milton de Almeida e outros. De diferentes maneiras

aqueles professores faziam com que nós estudantes sacudíssemos nossas concepções de mundo,

de sociedade e de educação. Embora não tenha tido, enquanto estudante universitária, a

oportunidade de conhecer e estudar os educadores que haviam desenvolvido projetos

pedagógicos inovadores (à exceção, é claro, do próprio professor Paulo Freire), a busca por

novas metodologias me animou desde o início e o encontro com a Pedagogia Freinet recuperou

em mim a esperança que, em alguns momentos, o excesso de criticidade sufocava.

Esse encontro com a Pedagogia Freinet se deu já no estágio que fiz na Escola

Curumim no ano de 1980. Um primeiro passo que se mostra necessário para o trabalho que me

proponho é o de explicitar o lugar de onde falo. E este lugar é a escola, o chão da escola. Trabalho

como diretora numa escola de Educação Infantil e Ensino Fundamental da rede privada da cidade

de Campinas, a Escola Curumim, que completou no ano de 2013 seus 35 anos de existência. Fui

professora por vários anos seguidos. Iniciei em 1980 numa turma de Educação Infantil com

crianças de dois a quatro anos. Em 1981 novamente trabalhei com esta faixa etária. No ano

seguinte assumi a turma de crianças de quatro a seis anos. A organização pedagógica da Escola

Curumim, naquele período inicial de sua formação, colocava nas turmas de Educação Infantil

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duas professoras trabalhando juntas. Assim, nestes meus três primeiros anos trabalhei em

conjunto; em 1980 e 1981 minha colega foi Ruth Joffily e, em 82, foi Ednalva Guedes.

Em 1983 assumi o Ensino Fundamental, trabalhando com a 1ª série, classe de

alfabetização, sem uma colega professora na mesma turma. Ainda tive, no ano seguinte (1984),

uma turma acoplada, ou seja, que tinha crianças de 1ª e 2ª séries juntas. Mais à frente, em 1985,

assumi o trabalho de orientação pedagógica e, muitos anos depois (1996), o trabalho de direção

da escola. Meu trabalho no mestrado (especialmente os capítulos 2 e 3) foram dedicados à

narrativa da experiência por mim vivida nesta escola e às aprendizagens que ela me permitiu1.

Esta escola conta hoje com cerca de 440 alunos e, destes, cerca de 60 são alunos

com algum tipo de deficiência. Em cada uma das salas de aula temos um, dois ou três alunos

(ou até mais) que apresentam alguma deficiência. Esse levantamento, feito no ano de 2013,

mostra uma “fotografia” da situação da Inclusão na Escola. É preciso salientar que estes alunos

já estavam conosco em anos anteriores e que seguirão seu percurso escolar até a conclusão.

Além disso, é importante explicitar o fato de que a inclusão de alunos com

deficiência não é uma prática recente nessa escola. Ela já vem de longa data pois, desde o seu

início (a escola foi fundada por um grupo de pais e professores em 1978), a escola recebeu

(embora ainda não de uma forma sistemática, ainda que não houvesse uma política claramente

estabelecida) alunos com deficiências.

Como uma forma de explicitar a concepção de inclusão que permeia o trabalho

que temos realizado, procedo ao levantamento dos alunos com deficiência matriculados na

escola. Encontra-se em anexo um quadro da evolução do número de matrículas de alunos com

deficiência a partir do ano 2000. No quadro a seguir apresento os dados de 2013.

1 FERREIRA, Gláucia de Melo. Cooperação e democracia na escola: construção de parcerias no

cotidiano escolar como formação continuada. Dissertação de Mestrado. Campinas/SP: Unicamp, 2004.

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Turmas da Manhã 2013 Turmas da Tarde Total

Infantil Paralisia Cerebral (1)

Deficiência Intelectual (1)

Deficiência Intelectual (1)

Síndrome de Down (1)

1º ano Deficiência Intelectual (1) Transtorno do Espectro Autista (2) SUBTOTAL 3 4 7 2º ano Hiperatividade (1)

Transtorno do Espectro Autista (1)

Deficiência Intelectual (2)

Deficiência Intelectual (1)

Transtorno do Espectro Autista (1)

Síndrome de Down (1)

3º ano Transtorno do Espectro Autista (1)

Deficiência Intelectual (1)

Hiperatividade (1)

Deficiências Múltiplas (2)

Deficiência Auditiva (1)

4º ano Deficiência Intelectual (2) Deficiência Intelectual (2)

Síndrome de Down (1)

Transtorno do Espectro Autista (1)

5º ano Deficiência Intelectual (2)

Síndrome de Down (1)

Deficiência Intelectual (2)

Transtorno do Espectro autista (1)

SUBTOTAL 11 14 25 6º ano Deficiência Intelectual (2)

Síndrome do Pânico (1)

Deficiência Intelectual (5)

7º ano Síndrome de Down (1)

Deficiência Intelectual (3)

Deficiência Intelectual (1)

Transtorno do Espectro autista (1)

8º ano Deficiência Intelectual (3)

Síndrome de Kabuki (1)

Deficiência Intelectual (1)

Deficiência Intelectual e Motora (1)

9º ano Transtorno do Espectro autista (1)

Deficiência Intelectual (1)

Deficiência Intelectual (2)

Transtorno do Espectro autista (2)

SUBTOTAL 12 14 26 26 32 58

O simples ato de fazer este quadro já me suscita inúmeras questões: assim

enumerados, são 58 alunos com algum tipo de deficiência, que possuem um diagnóstico

médico ou psicológico, e já chegam a nós rotulados e classificados, já vêm encaminhados por

psicólogos, médicos ou outros profissionais. Ocorre até mesmo de serem encaminhados a nós

por outras escolas que justificam não estarem preparadas para trabalhar com essas crianças.

A pergunta que me atravessa a mente é sobre os critérios que me levam a colocar

estes alunos, e não outros, nesta tabela. Apesar de toda a pretensa objetividade dos diagnósticos

clínicos, há muito de subjetividade nas classificações feitas sobre seres humanos. E cabe

discutir estes diagnósticos. Um dos trabalhos de Maria Aparecida Moysés, A Institucionalização

invisível – crianças que não aprendem na escola (2001), aborda o problema do diagnóstico

médico e do “olhar clínico”, apontando a responsabilização da criança – que é feita por

professores e outros profissionais da escola e mesmo pelos médicos – pelo seu fracasso escolar.

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Testes padronizados, instrumentos de medida da “normalidade” mereceram uma análise aguda

desta autora, que buscou as origens das concepções positivistas da normalidade. Segundo ela:

Avançando esta análise podemos afirmar que o olhar clínico em si constitui

um dos pilares das sociedades disciplinares, ao mesmo tempo em que é um

de seus instrumentos. Se existe grande identidade entre olhar clínico e olhar

hierárquico desde o início da constituição da clínica como campo científico,

ela é crescente nos dias atuais. Vigilância, norma, exame, sanção, todas as

estratégias e fundamentos das disciplinas são intrínsecos ao olhar clínico.

Olhar que tem sido, ao longo dos tempos, instrumento de classificação,

hierarquização, discriminação, punição e docilização dos corpos; corpos e

mentes disciplinados, dóceis, institucionalizados em incapacidades e doenças

introjetadas. (Moysés, 2001, p. 236)

O “olhar clínico” de que nos fala Moysés tem conduzido a um olhar que só enxerga a

deficiência. O diagnóstico, o rótulo muitas vezes ajuda a criar uma barreira para a possibilidade de

relações interpessoais mais espontâneas, mais autênticas. Informados pelo diagnóstico, nós

professores, parece que deixamos de enxergar aspectos não problemáticos daquela criança ou

adolescente que está diante de nós. Do “autista”, por exemplo, só enxergamos o “autismo”. Qual é

o seu brinquedo preferido? Gosta de sorvete ou de macarronada? Como brinca com seus

carrinhos? Que perguntas ele tem para o mundo? Será que o estranhamento que ele nos aponta no

seu modo de ver o mundo não seria uma rica contribuição ao nosso olhar? Nada disso

enxergamos... E o espectro do autismo, como um fantasma, uma sombra, passa a rondar as

interações que estabelecemos com ele. Esta sombra cobre como um véu as possibilidades de

enxergar os talentos e capacidades que a pessoa com deficiência tem.

Estas reflexões têm sido explicitadas de inúmeras formas no trabalho de Mantoan

ao nos alertar para as armadilhas da inclusão. De acordo com Mantoan:

As classificações confinam a diferença em desvios de um modelo escolhido

ou inventado. As diferenças definidas por agrupamentos constituídos pela

semelhança de um ou mais atributos se desdobram em subclasses e tendem a

se tornarem permanentes, reificadas. Descartam-se, assim, o caráter mutante

da diferença e sua capacidade de escapar a toda convenção possível.

Quando se abstrai a diferença para se chegar a um sujeito universal, a

inclusão perde o seu sentido. Conceber e tratar as pessoas igualmente

esconde suas especificidades. Porém, enfatizar suas diferenças pode excluí-

las do mesmo modo! Eis aí a armadilha da inclusão. (Mantoan, 2011, p. 103)

A sombra dos diagnósticos fixa uma identidade para o aluno, o outro concreto

diante do qual nos vemos, retira desta relação o sentido de movimento e mudança que toda

relação pode ter. Ficamos engessados, presos na armadilha.

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Moysés aponta em profundidade o problema da medicalização que estas

classificações e hierarquizações têm ocasionado. Tudo vira doença e para toda doença a indústria

farmacêutica se apressa em criar um remédio. Já no início dos anos 1960, no XVI Congresso da

Escola Moderna, Freinet propunha como tema do encontro a questão da saúde mental da criança.

Em diversos artigos publicados nas revistas do movimento Freinet da década de 1950 e em

especial no seu livro “A saúde mental da criança” (que reúne alguns destes artigos), Freinet

(1978) denunciava este problema, apontando inclusive para o que ele chamou de doenças

escolares, doenças que surgem pela própria inadequação da escola às necessidades da criança.

Esta objetividade dos diagnósticos é passível de questionamento, na medida em que se

reveste de uma suposta racionalidade científica que esvazia e simplifica uma complexidade que está

longe de ser solucionada pela mera rotulação de uma pessoa e pelo seu simples enquadramento

neste ou naquele quadro médico ou psiquiátrico. É preciso resgatar as possibilidades que se abrem

pela subjetividade nas complexas relações dos sujeitos com o mundo, com os outros, com as

instituições. A subjetividade como referência ou categoria de compreensão ou como possibilidade

de um outro olhar sobre estas questões estará presente ao longo do trabalho. Para falar de

subjetividade trago ao diálogo Fina Birulés no seu artigo Del sujeto a la Subjetividad (1996); nele a

autora nos propõe três fios (ou: três conceitos) para “amarrar” uma teia de pensamentos. Interessa-

me aqui retomar o segundo fio ao qual ela se refere: pensar o “outro concreto” como complemento

crítico à noção de “outro generalizado”. Para além das abstrações teóricas, Birulés nos propõe

pensar sobre e com esse outro concreto, que se apresenta diante de nós. Com essa noção poderemos

pensar o indivíduo como sujeito de direito, mas também como sujeito singular.

Así, por ejemplo, el hecho de introducir la noción del “outro concreto” permite

mostrar a los indivíduos no sólo como sujetos de derecho y, por tanto, iguales,

sino también como diferentes em funcion de su singularidade o de su

condición de membros de uma cultura o forma de vida. (idem, p. 231).

Com isso a autora propõe um pensar ético em relação ao “outro” diante de quem

o “eu” está. A noção de “outro concreto” permite-nos a explicitação sobre de quem nos

fazemos responsáveis. Mas, ainda assim, fugindo às classificações forçadas e

padronizadoras que proliferam nos dias atuais, é preciso falar de deficiências que

efetivamente dificultam a vida de crianças e adolescentes.

Ao elencar estes 58 alunos, reconheço os desafios que a presença deles na escola

coloca a nós, que lá trabalhamos, e evidencio a responsabilidade que assumimos de realizar o

trabalho com o que se apresenta como diferente. Mas também a presença de todos estes

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alunos na escola têm me propiciado reconhecer o quanto a Pedagogia Freinet tem auxiliado

neste processo. Como aponta a Professora Mantoan nos diversos encontros de nosso grupo de

pesquisa, o LEPED2, para que a inclusão possa ocorrer de fato é necessária uma ruptura de

base com a estrutura organizacional do modelo de escola vigente. Vejo na Pedagogia Freinet

este rompimento se realizar e, além disso, vejo-a como uma proposta alternativa para o fazer

pedagógico. Algumas narrativas que serão apresentadas neste trabalho servirão como

exemplos de uma nova organização do tempo e do espaço escolar que constituem novas

dinâmicas para as relações de trabalho e aprendizagem na sala de aula.

A esta altura deste trabalho importa destacar que, na lida diária, no meu trabalho,

encontro-me não diante de 58 alunos com deficiência, mas com 440 alunos, “outros

concretos”, diante dos quais me coloco com a responsabilidade de proporcionar a eles um

ambiente educativo digno, saudável, produtivo, inclusivo.

Colocar-me diante destes “outros” é colocar-me diante das histórias vividas e das

lições aprendidas e deixar que elas falem por si. Histórias vividas na relação com os alunos, os

pais, os psicólogos, os fonoaudiólogos, os médicos, os professores da escola e com os tantos

professores que encontrei nos cursos de formação, de atualização, de extensão. Desenvolver

esta tese é para mim o exercício de buscar nestas histórias vividas os estranhamentos que elas

me ensejaram, as indagações que me suscitaram. É pensar nos compromissos e

responsabilidades que a relação com todos estes interlocutores me ensinou a assumir.

Assim, os objetivos deste estudo são:

Narrar a experiência vivida como educadora, para dela extrair lições sobre a

inclusão escolar.

Discutir as relações entre os atores da cena escolar, notadamente professores e

alunos quando frente a frente com a diferença, face à inclusão.

Para atingi-los parto da elaboração de uma genealogia da escola, evidenciando o

caráter institucional destas relações e seu grau de despersonalização e, portanto, o

esvaziamento da subjetividade (tão necessária quando falamos de relações entre pessoas). Ou

seja, por meio da retomada da História da Pedagogia buscar compreender e explicitar uma

genealogia da escola para conhecer os mecanismos que se forjaram ao longo da História e que

a aprisionam às velhas práticas, mantendo a escola presa em si mesma, impedindo o

necessário rompimento que poderia renová-la e aproximá-la mais dos alunos.

2 Laboratório de Estudos e Pesquisas de Ensino e Diferença. Faculdade de Educação, UNICAMP. Coordenadora

Professora Doutora Maria Teresa Eglér Mantoan.

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Para melhor visualizar/especificar meus objetivos e intenções elaborei um

pequeno quadro de análise crítica da instituição escolar.

Genealogia da Escola

Fixação de identidades Exclusão da sensibilidade Separação entre saber e fazer

Frontalização Simultaneidade Homogeneidade Seriação

A entrada da criança com deficiência neste lugar é o ACONTECIMENTO.

Noção de Infância

Pensamento Científico

Capitalismo Industrial

ESCOLA

CARACTERÍSTICAS DA ESCOLA

Competição Heteronomia Repetição Tarefismo

CONSEQUÊNCIAS

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Estes quadros me levam às perguntas que orientam este estudo:

Como transformar a escola num ambiente em que o acontecimento seja colocado como

centro do processo educativo?

Como fazer da escola um lugar de relações subjetivas não pré-estabelecidas, um lugar de

relações autênticas e cooperativas?

Em que a Pedagogia Freinet pode contribuir nas respostas a estas questões?

MINHA POSIÇÃO

Alunos não respondem segundo o padrão;

Nem todos fazem as coisas ao mesmo tempo;

Nem todos têm os mesmos conhecimentos previstos;

Ninguém é igual;

Todos são diferentes.

A inclusão visibiliza os problemas da escola

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1. CAMINHO INVESTIGATIVO E MEUS INTERLOCUTORES

A investigação narrativa

“O romance é baseado na vida de gente boa, em suas

fisionomias, atos, palavra, pensamentos e esperanças.

Meu objetivo é atingir dois coelhos com uma cajadada:

retratar fielmente a vida e, ao mesmo tempo, mostrar

como ela se afasta da norma. Eu ignoro a norma, assim

como todos nós”.

(Anton Tchekhov)

Este é um projeto diferente dos projetos de pesquisa que seguem os cânones da

ciência positivista, quando se define e se delimita um campo e nele um objeto a se pesquisar,

em que se pressupõe a ideia de que um processo de investigação será realizado a partir das

coordenadas que supostamente se estabeleceriam neste projeto. A ação que me caberia como

pesquisadora estaria por ser iniciada. Proposta uma questão, um problema, utilizando o modelo

preconizado pela Ciência, eu deveria formular hipóteses, desenvolver uma forma de investigar e

coletar os dados que, após todo o processo, deveriam ser analisados, interpretados e

comunicados através de uma escrita neutra e impessoal. Isto era o que se esperava de uma

pesquisa moderna, ainda fundamentada nos modos cartesianos de produzir conhecimentos.

Adotar esta linha de procedimentos traria já de início um impasse, uma questão de

coerência para com o próprio trabalho que realizei e que ora me disponho a realizar. O

impasse, explico, apresenta-se de duas formas: a primeira é que o que me proponho aqui é

muito mais um voltar atrás. Rever momentos de minha trajetória de trabalhadora da educação

para destacar aprendizagens tornadas possíveis nesta história, analisar e refletir sobre este

vivido e estabelecer diálogos com a teoria. A segunda tem a ver com as aprendizagens

mesmas que construí para mim neste processo vivido que me ensinaram a colocar uma

profunda dúvida quanto à possibilidade de considerar viável a aplicação de uma abordagem

positivista para a pesquisa em educação. O intento deste trabalho é muito mais o de proceder a

uma reflexão sobre e com a experiência vivida, buscando outros caminhos que não os das

convenções acadêmicas objetivistas. Estes caminhos apresentam-se cheios de desafio para

mim. Talvez o maior deles seja a escrita em si, pois pressinto que escrever, narrar será ao

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mesmo tempo rever o aprendido e continuar aprendendo, desvendando, reaprendendo. É o que

posso depreender de outros percursos realizados por outros pesquisadores que também

rejeitaram o positivismo em seus trabalhos e abraçaram metodologias alternativas de

pesquisa. Estas pesquisas, pela sua qualidade e reconhecimento acadêmico obtido, permitem-

me dispensar uma discussão mais ampla, aqui, sobre a validade de novos caminhos

metodológicos e por isso assumo que estou fazendo uma investigação narrativa. Vale a pena

citar os trabalhos do GEPEC3 que apontam a importância e validade desta forma de

investigação. Dentre eles destaco as teses de Maria Emília C. Castro Lima (2003) e de Rúbia

Cristina Cruz (2012) que utilizam a investigação narrativa. Meu próprio trabalho de mestrado

se inscreveu neste modelo investigativo. Também em outras Universidades esta linha de

investigação vem mostrando sua força, como é o caso da tese de doutorado de Tânia Regina

Laurindo (2013), que utiliza a investigação ação, trabalho este apresentado na UFSCar. Além

disso, os trabalhos sobre o cotidiano escolar da professora Regina Leite Garcia constituem

uma importante referência e apontam novas maneiras de investigação.

A própria escolha deste modo de investigar é uma busca de coerência com tudo que

tenho vivido, pois minha história como educadora está carregada de um encantamento com as

ideias e com a obra de Célestin Freinet e impregnada de um trabalho pessoal, autocrítico e

judicioso de não permitir que este encantamento permanecesse no âmbito da admiração.

Busquei e busco viver na relação educativa, no chão da escola, a coerência com os princípios de

um outro modo de educar e de fazer escola. E um outro modo de educar e fazer escola demanda

um outro modo de produzir conhecimentos, carregados e encarnados no cotidiano, na vida que

se leva. Foi tateando e refletindo sobre a própria prática que Freinet produziu sua obra, sendo

ele mesmo o primeiro exemplo, para mim, de alguém que investiga e produz conhecimentos no

e com o cotidiano escolar com seus alunos. Valorizar os resultados das minhas reflexões sobre o

vivido é não desperdiçar a experiência, é aprender com ela, é extrair dela as lições possíveis.

Para melhor explicitar o caminho investigativo desta tese, retomo trechos do

texto Investigação Narrativa – Narradores e Percursos Epistemológicos da Pesquisa

(2015), de autoria dos professores Maria Emília C. Lima, Corinta Geraldi e Wanderley

Geraldi. Neste texto, os autores, depois da explicitação dos sentidos da investigação

narrativa e a investigação como narrativa, apontam para a existência de quatro grandes tipos

3 Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Continuada. Faculdade de Educação, UNICAMP, criado

pela Professora Doutora Corinta Maria Grisólia Geraldi e hoje sob a coordenação do Professor Dr.

Guilherme do Val Toledo Prado.

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de trabalhos ligados a esta forma de realizar pesquisa (citando os principais grupos e

pesquisadores que os desenvolvem) e que resumo a seguir.

O primeiro é a narrativa como ressignificação da História, no qual se faz o

resgate da história oral contada pelos sujeitos envolvidos em vez de recorrer à

documentação da época. Neste tipo de pesquisa emergem as versões não oficiais,

evidenciando o lugar de onde falam os narradores.

No segundo estão inseridas as narrativas biográficas ou autobiográficas. Neste

tipo de trabalho se faz a reconstituição da história de uma pessoa (que no caso das

autobiografias será o próprio investigador). O foco é produzir uma compreensão do sujeito e

de sua formação, por meio de uma escrita de si e sobre si no processo de formação. Os grupos

ligados a este modo de realizar pesquisa educacional destacam sua validade em propiciar a

compreensão das relações ensino-aprendizagem e das identidades profissionais entre outras.

O terceiro grupo envolve as pesquisas que costumam ser chamadas de colaborativas

ou participantes. Neste grupo encontram-se pesquisas nas quais se planeja previamente a

experiência que será depois relatada/narrada. As questões colocadas inicialmente orientam as

ações que serão realizadas e que deverão produzir respostas. Enfatiza-se neste modo de pesquisa o

controle sobre o processo e sobre os objetivos a serem atingidos, e elas têm sido utilizadas para

avaliar recursos didáticos ou novas metodologias. O pesquisador pode ser também o aplicador da

experiência e, neste caso, aparece mais fortemente a ideia de professor-reflexivo.

O quarto grupo é o que me interessa explicitar melhor, pois é ele que inspira o

modo como pretendo realizar este trabalho. Segundo seus autores:

No quarto e último grupo incluímos as pesquisas que só passam a existir

porque, havendo uma experiência significativa na vida do sujeito pesquisador,

este a toma como objeto de compreensão. A pesquisa decorre de uma situação

não experimental, mas vivencial. Podem ser chamadas de narrativas de

experiências educativas. A especificidade delas reside no fato de que o sujeito

da experiência a narra para, debruçando-se sobre o próprio vivido e narrado

extrair lições que valem como conhecimentos produzidos a posteriori,

resultando do embate entre a prática e os estudos realizados depois da

experiência narrada. A pesquisa que pode ser deflagrada a partir da narrativa

da experiência não é uma construção anterior à experiência. É da experiência

vivida que emergem temas e perguntas a partir dos quais se elegem os

referenciais teóricos com os quais vem a dialogar e que, por sua vez, fazem

emergir as lições a serem tiradas. Como o objeto empírico aqui é a experiência

vivida, há muito de autobiografia, mas diferentemente desta não faz emergir o

sujeito e sim a lição que se extrai da experiência, lição no sentido de conselho

a que apontava Benjamim (Lima, Geraldi e Geraldi, 2015, p. 25).

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Em minha dissertação já narrei minha história com a Escola Curumim e com a

Pedagogia Freinet. Aqui proponho outra forma de conduzir este trabalho, não mais narrando a

história da escola, mas narrando histórias de momentos de encontro pedagógico significativos.

Tenho algumas histórias para contar de momentos educativos vividos. São acontecimentos

que sinto a necessidade de narrar e analisar para tirar as “lições do vivido”, compartilhar

aprendizagens. Narrar estas histórias tem, para mim, um sentido que aprendi com Benjamim

(1994, p. 200) de extrair delas uma “dimensão utilitária”. Ainda com Benjamim, entendo que

as respostas às perguntas que a narrativa me suscitará terão muito mais a intenção de “fazer

uma sugestão sobre a continuação de uma história que está sendo narrada” (idem).

Os episódios narrados são ligados às minhas vivências, no entanto, pela

necessidade de preservar os sujeitos envolvidos, optei por retirar as ancoragens em dados e

fatos reais. A localização não poderia ser omitida, uma vez que obviamente eles se deram no

local onde trabalho. Mas dados como turma, série e ano letivo foram omitidos ou trocados.

Uma vez que o nome da Escola é Curumim, que em tupi-guarani significa criança, optei por

escolher nomes indígenas para os alunos. Esta escolha mostrou-se inspiradora para mim, ao

descobrir nos nomes significados que a cultura indígena a eles atribui. Também os nomes dos

professores foram trocados por nomes indígenas.

A escolha das narrativas foi talvez uma das tarefas mais difíceis deste trabalho, uma vez

que, ao longo de tantos anos, torna-se imensurável a quantidade de momentos significativos que vivi.

Alguns critérios foram se apresentando a mim durante o próprio processo de narrar e de escolher as

narrativas. Assim, as primeiras narrativas falam de minha vivência nos primeiros anos do exercício da

profissão de professora e a escolha deles mostrou-se necessária como forma de explicitar e refletir

sobre as dificuldades que se apresentaram quando me vi a braços com o desafio de romper com o

modelo tradicional de escola (no qual eu mesma me formara) e colocar em ação uma pedagogia

inovadora. Algumas das situações narradas ocorreram há mais de trinta anos e mesmo assim

continuaram vivas nas minhas lembranças, continuaram servindo como referência para tantas

reflexões e aprendizagens que faço até hoje. Foram lições que não se concluíram e fecharam num

caderno escolar com o visto da professora. Algumas aprendizagens que fazemos tornam-se

automáticas, como por exemplo, quando aprendemos a dirigir. Os gestos tornam-se mecânicos e

conduzimos o carro sem precisar pensar se devemos acionar a embreagem e engatar a marcha. As

narrativas escolhidas não se encaixam neste formato. Elas foram momentos que abriram outros

vislumbres, que continuaram se fazendo sentir e continuam exigindo de mim um eterno aprender.

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Outro aspecto importante que perpassou a escolha das narrativas foi a preocupação

em discutir um modelo de escola para todos os alunos com toda a complexidade que aí se insere.

Em alguns momentos da produção desta tese pensei em selecionar somente as experiências que

abordassem diretamente a presença de alunos com deficiência no contexto escolar. No entanto,

evitei esta opção, pois ela se apresentou a mim como insuficiente para falar de uma outra escola e

de uma outra forma de educar. Se queremos uma escola para todos é preciso abrir a reflexão para

os tantos desafios que se apresentam nas relações entre todos os atores envolvidos na cena escolar.

Foi neste sentido que optei também por escolher relatos que enfocaram situações vividas como

professora e também como coordenadora e diretora da escola.

Ao escolher a via da investigação narrativa para realizar este trabalho me vejo

também diante da necessidade de pensar no leitor a quem me dirijo. Um trabalho acadêmico,

habitualmente, tem como destinatário o ambiente acadêmico e, como leitores privilegiados, os

professores que integram a banca examinadora, com ênfase para o professor orientador.

Certamente este trabalho inscreve-se no contexto acadêmico e busca sua chancela. Porém, minha

própria experiência e as reflexões que ela inspirou foram fruto não somente das leituras e

aprendizagens que se tornaram possíveis dentro da Universidade, mas também da lida educativa

que vivi e vivo na escola, dos diálogos com professores nos momentos de formação, da

experiência com crianças e adolescentes e com outros tantos professores nos cursos de formação

que ministrei. Assim, a escrita deste texto tem também como destinatários os professores com os

quais trabalhei, os professores que porventura venham a ser leitores deste texto. Busco conversar

com tantos e tantas professoras que se lançam nesta tarefa de ressignificar o seu trabalho, que

questionam a instituição escolar, que se empenham em transformar velhas fórmulas e que

percebem a dificuldade desta tarefa. Professores e professoras que, acredito, como eu muitas

vezes se sentem inseguros e, em outras, cheios de certeza e entusiasmo. Mas é preciso admitir: o

destinatário primeiro da escrita sou eu mesma, que leio e releio cada frase que escrevo, corrijo e

autorizo ou não cada palavra para esta comunicação. E, como primeira leitora, assumo que este

trabalho deve também ser algo em que eu possa encontrar satisfação.

Se os últimos parágrafos esclarecem a direção do texto, os seus destinatários, há

ainda algo a dizer sobre a narradora, que se pergunta: por que escrever esta tese? Há poucos

dias, eu conversava com uma amiga, chorava as dores de estar metida nesta empreitada de

tese e, como boa amiga, ela me disse que não entendia porque eu tinha entrado no

doutorado. Com a carreira bem resolvida, já podendo começar a pensar na aposentadoria...

“Por que raios, você foi inventar de fazer tese?” Minha resposta naquela conversa foi só um

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aquiescer, concordar com um “é mesmo, né?” Mas a pergunta ficou rondando... Em alguma

dessas rondas, veio-me à lembrança um livro de Rilke. Do seu famoso “Cartas a um jovem

poeta”, que li há tantos anos, uma frase ficou gravada na memória:

Ninguém o pode aconselhar ou ajudar, – ninguém. Não há senão um

caminho. Procure entrar em si mesmo. Investigue o motivo que o manda

escrever; examine se estende suas raízes pelos recantos mais profundos de

sua alma; confesse a si mesmo: morreria, se lhe fosse vedado escrever? Isto

acima de tudo: pergunte a si mesmo na hora mais tranquila de sua noite:

‘Sou mesmo forçado a escrever?’ Escave dentro de si uma resposta

profunda. Se for afirmativa, se puder contestar àquela pergunta severa por

um forte e simples ‘sou’, então construa a sua vida de acordo com esta

necessidade. (Rilke, 1988, p. 22 e 23)

Talvez não com tanta dramaticidade quanto exige Rilke, mas com muita verdade para

comigo mesma, percebi a enorme necessidade de escrever esta tese, de explicitar as ideias que

foram se construindo na minha caminhada. Vê-las ganharem a forma de letra impressa – como tão

bem aprendi com Freinet, na sua defesa de dar ao texto livre da criança o valor de objeto de

apreciação do grupo – tem para mim a força suficiente para me mover a esta tarefa.

Compartilhar esta tese, narrar algumas de minhas agruras e alegrias, explicitar meus

tateios e as aprendizagens que eles me permitiram, traz para mim um sentido que aprendi com

Freinet e que foi narrado por sua esposa, Elise Freinet, no livro Nascimento de uma pedagogia

popular (1978). Logo no início de sua carreira, quando trabalhava em Bar-Sur-Loup (uma pequena

vila nos alpes marítimos franceses), ele iniciou uma troca de correspondências com o professor de

outra pequena vila (Trégnunc, na região litorânea). A alegria e o interesse despertado nos alunos de

uma e de outra vila é descrito com entusiasmo e o encontro e as trocas com aquele colega professor

renovava o seu otimismo. Segundo Elise Freinet (idem, p. 55), em seu diário ele escreveria: “agora

já não estamos sós”. Minha experiência vivida, os tantos encontros da jornada encontram nesta tese

lugar de expressão desse sentimento: “não estou sozinha”.

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A narrativa como fonte de perguntas ou como o disparador da busca de respostas

Na aprendizagem de ser uma professora e educadora freinetiana que pude

construir ao longo dos anos, o caminho da prática e do tateio experimental sempre foram a via

privilegiada. Queria ser uma professora freinetiana e para aprender a sê-lo arregaçava as

mangas e me lançava ao trabalho. Acreditava e acredito que é na prática que nos forjamos,

aprendendo com os erros, com a experiência. Da mesma maneira me coloco agora, neste

início de trabalho com a investigação narrativa: experimento narrar.

Começo com uma das histórias que me ensinou e me constituiu. Por ser uma

experiência fundante, é também uma história que me suscitou indagação. Neste sentido defendo o

método da investigação narrativa como uma possibilidade de pensar sobre os próprios contextos

vividos e que, no sentido de Larrosa (2000), deslocaram-me porque me trouxeram questões.

Narrar para investigar, mas também narrar para explicitar momentos de embate que levaram a

questões. Narrar para perceber como foram surgindo as questões. Narrar para analisar a matéria

prima da vida vivida. Se um projeto de tese acadêmica requer uma pergunta, um problema, no

meu caso considero relevante explicitar o fato de que a pergunta e o problema foram muitos, pois

nasceram e nascem da lida, da prática diária, do diálogo com professores, pais e alunos. Foi a

própria experiência vivida que me colocou questões. Certamente há questões que este vivido me

colocou e que sequer percebi. E à medida que a experiência ia me colocando questões

explicitáveis, elas me levavam a respostas (provisórias na maior parte das vezes). A investigação

narrativa implica num movimento de recuperar a experiência vivida e, neste processo, buscar

compreender as questões que se faziam presentes no momento em que as vivia, mas que só foram

se elucidando depois, ao longo do tempo e, principalmente, vão se elucidando agora, no momento

mesmo da escrita, num movimento que Piaget chamaria de abstração reflexiva.

Na história que narro a seguir percebo ainda mais um aspecto extremamente

delicado para o trabalho a que me proponho nesta tese: quando estamos desempenhando o

trabalho (por exemplo, ao dialogar com professores numa reunião pedagógica, ou ao conversar

com os alunos ou com os pais) as situações se nos apresentam e demandam respostas (ainda que

silenciosas) estejamos ou não preparadas para elas. As situações se impõem, demandam

intervenções. E no momento do agir, há que agir. Ao narrar, a poeira assenta e se aprende ainda

mais com a precariedade das soluções encontradas quando a intervenção se impôs como

necessidade de resposta, do continuar a andar. Na narrativa a seguir espero poder explicitar

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também este aspecto, ou seja, de que a prática no cotidiano escolar naturalmente traz os

enfrentamentos entre pessoas, suas concepções de vida e de escola, nossos outros concretos.

Foi no final do ano de 1999, dezembro. Estávamos numa reunião de Conselho de Classe, com os professores do ginásio (na época, chamadas de 5ª a 8ª série). Já trabalhávamos com a Inclusão. No primário (atual 2º ao 5º ano), esta era uma prática já bem estabelecida. Porém, nas classes de ginásio a situação era um pouco diferente. Havia alguns alunos com deficiências leves, uma aluna com crises epiléticas e ausências, outro aluno cadeirante e com ligeiras dificuldades intelectuais; enfim, tínhamos alguns casos. Porém, a inclusão no antigo primário – que já trabalhava com casos nos quais as dificuldades eram bem mais graves – naturalmente levaria aqueles alunos para o ginásio. Havia um aluno, em especial, que era muito conhecido na escola toda, pois seu comportamento era agressivo. Esse aluno, que chamarei de Tupã, tinha Síndrome de Down e também recebeu o diagnóstico de Esquizofrenia pela psicóloga que o acompanhava.

Naquela reunião de Conselho, procedemos à discussão sobre cada aluno, cada professor relatava ao grupo as notas que cada um havia obtido em sua disciplina. Fomos passando a lista dos alunos e, a certa altura, paramos numa aluna (que chamarei de Bartira). Esta menina tinha algumas dificuldades quanto aos aspectos de atenção e concentração e estava com algumas notas baixas. Pedi aos professores que falassem um pouco mais sobre ela.

A professora de Ciências comentou o bom aproveitamento de Bartira nas suas aulas. Também em Matemática, o professor nos disse que ela havia conseguido um desempenho satisfatório. Porém ela apresentava dificuldades nas disciplinas de Português e Inglês, ambas ministradas pela mesma professora.

A coordenadora pedagógica a questionou, perguntando quais providências ela havia tomado para ajudar Bartira a superar as dificuldades, ao que ela respondeu que já havia encaminhado um trabalho e a aluna também se saíra mal. Bartira também tinha notas baixas em História. A conversa avançou e depois a professora verbalizou: “mas não podemos dar nota a esta aluna!”, “isto seria como que premiá-la sem merecer”. O professor de História fez a seguinte colocação: “é que me preocupa a reputação da escola... Sabe? O que as pessoas irão dizer da Escola Curumim, se uma aluna como ela é aprovada?”.

Teci alguns comentários sobre a avaliação, dizendo que “nosso modo de avaliar coloca o aluno em comparação com ele mesmo e não com os outros; assim, se ele avançou no seu processo isto deve ser levado em consideração. A reprovação de um aluno que está mostrando avanço no seu processo de aprendizagem não resolve o problema. Além disso, vocês devem se lembrar de que temos outros alunos que agora estão no primário e que daqui a um ou dois anos serão seus alunos, ou seja, estarão frequentando as classes do ginásio. O que acontecerá com eles? O Tupã (aquele aluno com Síndrome de Down anteriormente citado) será aluno de vocês em breve. Vocês irão reprová-lo?”.

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Lembro-me do silêncio que reinou na sala. Havia um quê de susto em alguns professores. Esta não foi a primeira e nem a última vez em que me deparei com este tipo de situação. Retomamos a discussão avaliando a possibilidade de um plano de recuperação para Bartira e ficou decidido que ela teria mais uma oportunidade.

Escrevi um pouco antes sobre viver a experiência (no caso deste relato, os embates com

professores numa reunião de Conselho de Classe) e deixar que ela suscitasse questões. Percebo

agora que aqueles momentos permitiram que, gradativamente, eu construísse uma compreensão

sobre a questão da meritocracia. Aquele conflito aprofundava em mim os questionamentos acerca

da visão de educação baseada no mérito, pois ela tem como falso pressuposto a ideia de que todos

partem de um mesmo ponto e devem atingir o mesmo ponto de chegada, e este é o aspecto a meu

ver mais perverso: aqueles que não o atingem devem ser excluídos. Questionar a meritocracia passa

também por questionar a validade, a importância e pertinência de muito do que tradicionalmente se

ensina nas escolas, questionar os próprios conteúdos envolvidos neste “ponto de chegada”. O mérito

é muitas vezes a confirmação daquilo que Bourdieu e Passeron (1992) nos apontam como o capital

cultural e linguístico escolarmente rentável.

Questionar a meritocracia passa por uma compreensão mais profunda do conceito

de diferença. Nicholas Burbules (2012, p. 190) ao nos apresentar uma “gramática da

diferença” chama a atenção para os discursos que a reduzem a uma mera questão de tolerância

à diversidade. De acordo com esta perspectiva, o mérito seria resultante da diferença entre os

alunos e, portanto, ainda preso a um pensamento categorial.

Ouvi muitas vezes a argumentação sobre o mérito, ponderei muitas vezes sobre suas

implicações. Vi-me bem dentro desta problemática por muitas vezes na vida ao viver, por um

lado, a experiência de defender e lutar por uma escola alternativa (tateando e aprendendo a

praticar a Pedagogia Freinet) que buscava ser vista com respeito pela comunidade, querendo

construir uma reputação de seriedade no trabalho. Não queríamos a pecha e o desprezo de quem é

visto como uma escola fraca e famosa pelo “pagou, passou”! Nossas preocupações extrapolavam

as questões de reputação da escola, interessava-nos, isto sim, a questão da qualidade mesma do

ensino e da aprendizagem. Mas, por outro lado, eu tinha também forte a compreensão de que ao

levantarem estas objeções os professores manifestavam, sem perceber, seus medos e sua visão de

educação ainda pautada em notas e avaliações, em méritos estabelecidos de cima para baixo,

externos ao aluno. Muitas vezes o que eles entendiam da proposta pedagógica da escola estava

mais ligado ao trabalho com os conteúdos de uma maneira mais crítica. Só para exemplificar,

posso citar a crítica mais que difundida em relação aos conteúdos de História. Nos anos 1970 e

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1980 muito se falou e escreveu sobre a inutilidade de abordar seu ensino enfatizando datas e

nomes de grandes personagens. Interessantes revisões do conteúdo dessa disciplina introduziram

no seu currículo noções como Tempo, Permanência etc. Outro exemplo que se tornou típico é o

do ensino de Geografia, que sofreu severas e pertinentes críticas ao acúmulo de dados, nomes de

rios e seus afluentes, capitais, países, populações sem abranger noções mais essenciais como as de

Fronteira ou Perímetro ou ainda as noções de espaço construído pelo ser humano. A crítica ao

ensino “decoreba” se tornou patente há muito tempo. Aqueles professores adotavam esta nova

visão dos conteúdos programáticos, mas mesmo eles – que trabalhavam numa escola reconhecida

como alternativa pela comunidade – resistiam a mudanças mais profundas na forma de ensinar, na

organização da dinâmica de sala de aula. Mudavam os conteúdos, mas não mudavam a forma.

Além disso, colocava-se para mim um princípio de coerência: eu não queria

simplesmente impor uma decisão sobre a aprovação ou retenção do aluno, tal qual o papel de diretora

da escola me facultaria. Conversávamos muito, trazíamos leituras, fazíamos debates para ir criando

naqueles professores a compreensão mais ampla do significado de nossa proposta pedagógica.

O sentimento de ser acometido por um raio, embora não sendo tão intenso quanto

aquele que Calvino descreve, também não foi só desta vez que me atingiu. As dúvidas me

assolavam (e ainda assolam). O que há de tão difícil em orientar as pessoas para um trabalho

inclusivo? Por que, mesmo numa escola que pesquisa e pratica uma pedagogia tão inovadora como

é a Pedagogia Freinet, ressoavam ainda as velhas fórmulas da avaliação meritocrática e excludente?

Por que, mesmo quando se está caminhando numa direção oposta aos modelos tradicionais,

conformistas e reprodutores das velhas práticas escolares, parece tão difícil encetar e empreender

mudanças na escola? Estas perguntas me levam a formular a hipótese de que adotar a Pedagogia

Freinet na prática educativa não é um processo simples, não é uma mera tomada de decisão – de

agora em diante sou um educador freinetiano. Não se muda de uma hora para outra. Muito ao

contrário, o processo de mudança é complexo e não linear. Este processo esbarra na própria

instituição escolar. Tudo isso me remete a mais perguntas: o que é a escola? Que instituição é esta

que sabe tão bem se criticar (afirmo isto como alguém que foi formada nos bancos da Unicamp,

uma Faculdade de Educação que sempre primou pela formação crítica) e, tão pouco, se modificar?

Relato a seguir mais uma destas situações que ocorreu bem mais recentemente.

No primeiro semestre de 2013 assumi como PED (Programa de Estágio Docente) a disciplina de Educação Especial e Inclusão na Faculdade de Educação da Unicamp. Eram duas turmas (A e B) com dois professores titulares da disciplina e minha participação ativa em todas as aulas. Logo no primeiro dia, apresentamos

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o Plano de Curso, cada aluno fez sua apresentação individual. Logo após propus uma leitura de texto em grupos e a seguir estávamos fazendo o debate sobre a leitura realizada. Os alunos iam colocando suas impressões sobre o texto e sua compreensão e comentando sobre suas experiências pessoais com a inclusão. Uma das alunas, então, fez mais ou menos o seguinte relato:

Sou professora de História (do 6º ao 9º ano) numa escola estadual. Recentemente recebi em minha sala dois alunos cadeirantes. Ambos têm deficiência intelectual, dificuldades motoras bastante acentuadas e dificuldades de comunicação, eles quase não falam. A diretora me disse que agora existe a obrigatoriedade em matricular tais alunos nas salas regulares, que eles têm direito de frequentar uma escola comum e, portanto, a escola tinha que aceitá-los. A turma mostrou-se disposta a ajudá-los nas situações de sala. Fomos tocando o trabalho mas, sinceramente, eu não sabia o que fazer com eles. Outro dia tivemos a aplicação das provas do SARESP. Recebi o envelope com todas as provas e fui entregando aos alunos. Porém, quando cheguei perto do lugar onde estes alunos ficam, fiquei meio sem ação. Eles mal conseguem segurar um lápis... Eu não sabia se devia entregar as provas a eles. É este tipo de situação que me preocupa, como é que o professor pode fazer seu trabalho numa situação destas? O que eu devia fazer?

Novamente a sensação do raio, do estranhamento profundo tomava conta de mim.

Escolhi não ao acaso relatar esta situação que se passou em 2013 numa sala de aula da Unicamp e

colocá-la logo a seguir de uma situação de 1999 num Conselho de Classe de uma escola

alternativa de Campinas (a Curumim). Quatorze anos separam uma da outra, porém mesmo após

tantas discussões e tanta difusão do pensamento inclusivo parece que pouca coisa mudou.

A pergunta que formulei a mim mesma naquela aula é também a que me orienta

neste trabalho de doutorado: por que ela se faz esta questão? Por que ela se sente tão

impotente diante desta situação? Que concepção de educação está subjacente? O que ela está

enxergando nesta situação que não lhe permite relacionar-se com estes alunos levando em

consideração suas características específicas? Suas possibilidades e dificuldades? Que véu

encobre e impede um olhar para aquele outro concreto diante do qual ela está?

A situação descrita acima suscita questões que vão além da resposta individual que

aquela aluna/professora poderia dar diante da situação. Sabemos que a prova do SARESP (uma

avaliação meritocrática feita para criar exclusões) deposita nos ombros dos professores

responsabilidades pesadas, pois seus resultados podem influenciar na avaliação da escola e até

mesmo no seu salário. Além disso, a prova evidencia os descaminhos das políticas: diferentes

instâncias se contradizem e se atropelam. Que fazer com uma educação inclusiva num mundo

de exclusões? Talvez conhecer mais profundamente as regras para a aplicação de provas como

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o SARESP possa ser uma estratégia de resistência; isto ocorre, por exemplo, quando “alguns

alunos” são “dispensados” de ir à escola nos dias de sua aplicação.

Mas interessa aqui não o exemplo individualizado, mas sim todo o pano de fundo

no qual ele se insere. A narrativa desta experiência por mim vivida tem como objetivo a

explicitação da indagação que tem me acompanhado na vida profissional. Aquela professora,

com sua pergunta, denunciava uma problemática que está acima das meras práticas em sala de

aula e que contradiz toda a organização do processo escolar com vistas à inclusão. É a este

pano de fundo – a instituição escolar – que pretendo dar atenção no desenvolvimento deste

trabalho. São questões que têm permanecido vivas em mim.

Os estudos do mestrado me permitiram esboçar alguma compreensão sobre o

processo de institucionalização da escola. Considero hoje que a retomada destes estudos e o seu

aprofundamento serão de extrema importância para o escopo deste trabalho. Mais que retomar o

fio da meada, percebo que foi a própria experiência que me levou aos caminhos da História da

Educação como busca de respostas para perguntas que me coloco. As perguntas que o presente

me coloca – a escola de hoje com suas inadequações e dificuldades para enfrentar a questão da

inclusão –, o estranhamento que tudo isto me suscita, levaram-me a buscar as origens deste

estado de coisas. E a genealogia foucaultiana foi o guia e a inspiração na tarefa.

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Meus interlocutores

O aprofundamento do estudo histórico é de extrema importância, uma vez que

parte do trabalho está voltada para a questão da naturalização da forma escolar e da

institucionalização das relações que se estabelecem no espaço escolar. Assim, proponho partir

do estudo do processo histórico de construção da escola, analisando sua institucionalização

para destacar as estruturas que a caracterizam hoje.

Partindo do levantamento de percepções frequentemente encontradas nas respostas

de professores ou generalizadas socialmente sobre o que é a escola (como as que se desenharam

para mim como pistas a partir da fala dos professores nos exemplos citados no item anterior),

tentarei trazer à tona as concepções que estão na base do modelo de escola. Procurarei lançar

questões a este modelo para tentar desconstruir sua lógica e desnaturalizar a percepção que se

tem dele como de algo que é imutável. Tentarei proceder a uma genealogia da escola. A própria

ideia de proceder a uma “genealogia da escola” tem apoio e inspiração no pensamento de

Foucault, que é certamente um interlocutor de bastante influência nesta minha tarefa.

Para as análises e mesmo para os recortes que fiz no estudo da História da

Pedagogia, a leitura de autores como Julia Varela e Fernando Alvarez-Uria, Dominique Julia,

David Hamilton, Mario A. Manacorda e Philippe Ariès também foram essenciais.

Para proceder a esta desnaturalização através da genealogia da escola será útil

compreender que esta instituição é relativamente nova em termos de História da Humanidade e

compreender os paradigmas que estão em jogo e que formam a escola de hoje. Nas palavras do

historiador Franco Cambi (1999, p. 35) encontro respaldo para o projeto a que me proponho:

A História é o exercício da memória realizado para compreender o presente e

para nele ler as possibilidades do futuro, mesmo que seja de um futuro a

construir, a escolher, a tornar possível. Mas é justamente a atividade da

memória, a focalização do passado que anima o presente e o condiciona, como

também o reconhecimento das suas possibilidades sufocadas ou distantes ou

interrompidas e, portanto das expectativas que se projetam do passado-presente

para o futuro, que estabelece o horizonte de sentido de nossa ação, de nossas

escolhas. A memória não é absolutamente o exercício de uma fuga do presente

nem uma justificação genealógica daquilo que é, e tampouco o inventário mais

ou menos sistemático dos monumentos de um passado encerrado e definitivo

que se pretende reativar por intermédio da nostalgia: não, é a imersão na fluidez

do tempo e o traçado de seus múltiplos – e também interrompidos – itinerários, a

recomposição de um desenho que, retrospectivamente, atua sobre o hoje

projetando-o para o futuro, através da indicação de um sentido, de uma ordem

ou desordem, de uma execução possível ou não.

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Foi na lida diária como educadora, no contato constante com os atores da cena

educativa (alunos, professores e funcionários, pais e outros profissionais ligados a esta área)

que me senti confrontada e instigada a entender o passado, não como uma forma de justificar

as coisas e me conformar ao que está posto, mas sim como uma forma de, compreendendo-me

um ser “imerso na fluidez do tempo”, espantar-me com o absurdo do sofrimento inútil ao qual

tantas vezes são submetidas crianças e adolescentes dentro da instituição escolar e ainda como

possibilidade de olhar adiante, olhar com outros olhos e pensar diferente.

Uma outra autora que me foi apresentada pela professora Ana Maria Faccioli de

Camargo no meu exame de qualificação (e a quem agradeço a orientação) é Maria Rita Cesar.

Na sua dissertação de mestrado esta autora resume perfeitamente bem o modo de proceder ao

estudo que aqui se inicia para mim. Segundo Cesar (1998, p. 8),

A ‘genealogia’ diz respeito a uma história voltada para o presente, e deve ser

compreendida em termos de uma crítica do presente. A história genealógica

traz consigo a possibilidade de utilizar o conhecimento histórico, tendo em

vista o objetivo político de mudar o nosso tempo, constituindo-se, deste

modo, em uma crítica da cultura dominante.

Dito de outra forma, com inspiração no pensamento de Foucault (1984), encontro-

me diante de um problema presente: a escola e suas práticas excludentes e procedo a uma

crítica a este estado de coisas, pergunto sobre as possibilidades de transformação deste

presente e busco na genealogia a desconstrução e desnaturalização do passado como forma de

fazerem emergir novas possibilidades para o presente. Segundo Foucault (idem, p. 21):

A história, genealogicamente dirigida, não tem por fim reencontrar as raízes

de nossa identidade, mas ao contrário, se obstinar em dissipá−la; ela não

pretende demarcar o território único de onde nós viemos, essa primeira

pátria à qual os metafísicos prometem que nós retornaremos; ela pretende

fazer aparecer todas as descontinuidades que nos atravessam.

E, para evidenciar estas descontinuidades, discuto a matriz epistemológica

instaurada a partir do pensamento científico moderno cuja análise encontra em Boaventura

Souza Santos (2010) uma crítica e a defesa de um antipositivismo para as ciências humanas. Ao

discutir o caráter global da racionalidade científica, que a partir do século XIX estende-se do

campo das ciências naturais para o campo das ciências humanas, este autor aponta para o

problema do paradigma dominante e das crises que enfrenta no mundo moderno.

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O entendimento da estrutura das revoluções científicas a leitura de Thomas Kuhn

também se mostrou frutífera para algumas análises a que nos propomos.

Autores como Jorge Larrosa, Tomas Tadeu da Silva e Fina Birules ajudam a

aprofundar a reflexão sobre a educação como campo no qual a Razão preside soberana e que

coloca no centro o sujeito e a consciência. Engajados no pensamento pós-estruturalista

(particularmente de Foucault) estes autores discutem e questionam, cada um a seu modo, o

conhecimento e o saber como fontes de libertação, esclarecimento e autonomia e nos dão

elementos para uma discussão acerca de novas perspectivas para a relação educativa.

Meu estranhamento, muitas vezes, encontra eco em outras vozes do pensamento

filosófico, sociológico ou pedagógico. Uma verdadeira alegria ainda me acomete ao ler alguns

autores; eles fazem sempre brotar em mim um sentimento de não estar sozinha. O educador

Célestin Freinet é certamente um destes interlocutores, talvez o mais assíduo e com o qual eu

encontro grande identificação. As reflexões sobre a experiência vivida se tornaram mais

amplas graças a estas e outras leituras.

Reflexões intrigantes e extremamente pertinentes em relação ao curso tomado

pela instituição escolar ao longo da história são apontadas no trabalho de Jacques Rancière (O

Mestre Ignorante, 2010), que nos traz as ideias de Joseph Jacotot (um educador do século

XIX). As discussões sobre a relação educativa e a questão da emancipação são abordadas

numa conversa na qual chamei ao debate o educador Célestin Freinet. Tentei mostrar

congruências importantes entre estes dois mestres relativas à forma de enxergar a relação

entre mestre e discípulo, entre sábios e ignorantes. Também a discussão proposta por

Wanderley Geraldi (2004) sobre a “aula como acontecimento” me permitiu outros diálogos

proveitosos sobre a construção de novas relações entre professor e aluno.

Para a discussão sobre as relações pedagógicas, já apontadas como questões

suleadoras (adoto a expressão proposta por Souza Santos) deste trabalho, são trazidos ao debate

outros autores. Em especial, para a discussão sobre as relações entre as gerações (adultos e

crianças, o velho e o novo) a contribuição de Hannah Arendt é de extrema importância.

Outras interlocuções compõem os diálogos deste trabalho. As conversas e leituras

feitas com a Professora Maria Teresa Mantoan e sua contribuição inequívoca ao projeto de

Inclusão no Brasil são essenciais a este trabalho. Sem dúvida o diálogo com Piaget também se

faz necessário para discutir e compreender aspectos do conhecimento (sua epistemologia) e da

criança (sua Psicologia). Além deles, os estudos de Deleuze em relação à Diferença e ao

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Acontecimento e a discussão epistêmica que este autor propõe ao apresentar o conceito de

Rizoma serão abordados.

Mas, talvez, minha maior interlocutora seja mesmo minha própria experiência,

que me desperta sempre curiosidade e desejo de compreender as situações vividas no

momento mesmo em que elas se dão. O interesse e entusiasmo que sempre tive em dar sentido

e significado a cada uma dessas vivências, aos sustos, às certezas e incertezas que os

acontecimentos do cenário escolar proporcionam formam, assim, uma matéria viva com a

qual busquei sempre diálogo e interlocução.

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Narrar por meio de imagens e as imagens como interlocutoras

“Decidi então tomar como guia da minha nova análise a

atração que sentia por certas fotos. Porque dessa atração,

pelo menos eu estava seguro. Como designá-la? Fascínio?

Não. Essa fotografia que eu distingo, e de que gosto, nada

tem a ver com o ponto brilhante que se agita diante dos

olhos e faz menear a cabeça; o que ela produz em mim é

mesmo o contrário da estupidez. É antes uma agitação

interior, uma festa, também um trabalho, a pressão do

indizível que quer ser dito”.

(Roland Barthes)

Na Pedagogia Freinet, quando temos nossos encontros, a principal marca que eles

possuem é a troca de experiências. Outra característica é o fato de que, quando não se pode visitar

a sala daquele professor mais experiente, ele mesmo se encarrega de fotografar seu trabalho para

mostrar aos novos colegas. Nas imagens que eles nos trazem podemos ver os alunos trabalhando,

o material de classe, as prateleiras com os utensílios que as crianças utilizam, os ateliês de

trabalho, a Roda de Conversa, o Livro da Vida... São imagens preciosas, para mim sempre

ofereceram pistas mais claras sobre as mudanças que eu poderia fazer no meu próprio trabalho.

Reforçaram a máxima de que uma imagem vale mais que mil palavras. Assim, utilizarei para esta

narrativa uma segunda via, trazendo imagens que poderão me ajudar a explicitar a tese e também

estarão abertas às diferentes leituras que os destinatários deste texto desejem fazer.

Na primeira parte deste trabalho percorro o passado da escola, revendo sua

genealogia, e imagens (gravuras, pinturas etc.) produzidas ao longo da História sobre a Educação

e o Ensino servirão como fotografias, como flashes para ajudar na compreensão. Colocar estas

imagens foi para mim um trabalho extremamente agradável, tornou mais vivo, mas visível e

compreensível o próprio passeio pela História. Creio que o leitor também se beneficiará com elas.

Na segunda parte serão utilizadas fotografias mais atuais, das situações de sala de

aula típicas da organização da classe segundo os princípios da Pedagogia Freinet. Fotografias há

muito guardadas em meus arquivos pessoais foram resgatadas para ajudar a contar as

experiências. Outras fotos mais recentes também se prestam a esta mesma função. Além de fotos,

em algumas situações optei por reproduzir trabalhos dos alunos, como por exemplo alguns álbuns.

Esta forma de proceder à produção desta tese, tem como “cúmplice” a minha própria

orientadora, a professora Mantoan, a quem agradeço pelo estímulo de ousar outros caminhos para

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o trabalho acadêmico. Esta narrativa imagética também se reveste, para mim, do significado dado

por Benjamim, ou seja, o de narrar sugerindo outras continuações para a história.

Em síntese, a proposta deste trabalho será a de investigar a História, contar

histórias, refletir sobre o vivido buscando a interlocução de alguns intelectuais e pensadores,

visitar as imagens, pensar sobre elas e, de tudo isto, tirar lições.

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2. UM PASSEIO PELA HISTÓRIA EM BUSCA DOS INDÍCIOS PARA O ATUAL

ESTADO DAS PRÁTICAS ESCOLARES: UMA GENEALOGIA DA ESCOLA

“A cidade se embebe como uma esponja dessa onda que

reflui das recordações e se dilata. Uma descrição de Zaíra

como é atualmente deveria conter todo o passado de Zaíra.

Mas a cidade não conta o seu passado, ela o contém como

as linhas da mão, escrito nos ângulos das ruas, nas grades

das janelas, nos corrimãos das escadas, nas antenas dos

para-raios, nos mastros das bandeiras, cada segmento

riscado por arranhões, serradelas, entalhes, esfoladuras”.

(Ítalo Calvino)

O processo social engendrou ao longo da História a institucionalização da escola e

tornou-a um lugar marcado por rotinas e procedimentos impessoais ou despersonalizados.

Construiu-se um modelo no qual seus atores – professores e alunos – são genéricos: a mesma

aula pode ser ministrada numa escola de um grande centro urbano ou numa pequena cidade

do interior, o mesmo livro didático pode ser utilizado aqui e acolá, podendo ser vendido para

todo o território nacional. Mas, hoje, a inclusão traz para a sala de aula um problema, traz um

desequilíbrio. Ao garantir o direito de estudo na escola comum para pessoas com deficiências,

as políticas inclusivas dissolvem o sonho pedagógico de uma sala de aula homogênea, fazem

reconhecer que tal homogeneidade nunca existiu, acirram o problema da Diferença.

Por que este problema existe? Por que a Pedagogia tem buscado esta

homogeneidade para a formação dos seres humanos? Como se formou este sonho de uma classe

homogênea? Como se construiu esta convicção de que os alunos são iguais? Nesta mirada para

a História faço um recorte, dirijo meu foco à escola e à sala de aula. A pergunta que faço para o

presente diz respeito a este espaço, a esta cena (hoje institucional e institucionalizada) e ao

modo como se dão as relações entre os atores que aí circulam. Como são estas relações? Que

desígnios as orientam? Elas podem ser transformadas? A História da Pedagogia servirá para

aprofundar a compreensão de como se constituiu este lugar para onde a sociedade encaminha

seus filhos. Uma instituição na qual se dão relações entre pessoas. Uma instituição que

transforma aqueles que nela vivem, transitam, trabalham. Uma instituição que transforma

crianças e adolescentes em alunos, que transforma adultos em professores e/ou funcionários.

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Por que procedo a esta busca? Para desnaturalizar (para mim mesma antes de

qualquer outra coisa) a rigidez que entendo como instalada na instituição escolar. Para ver

com outros olhos, para me libertar dos discursos prescritivos e unitários que se fazem

presentes nas críticas às tentativas de se fazer e pensar uma outra escola. Mirar a história para

encontrar “o disparate”, o risível que se embute na cristalização de práticas e rotinas do

presente. Segundo Foucault (1984, p. 13):

O que se encontra no começo histórico das coisas não é a identidade ainda

preservada da origem − é a discórdia entre as coisas, é o disparate. A história

ensina também a rir das solenidades da origem. A alta origem é o "exagero

metafísico que reaparece na concepção de que no começo de todas as coisas

se encontra o que há de mais precioso e de mais essencial": gosta-se de

acreditar que as coisas em seu início se encontravam em estado de perfeição;

que elas saíram brilhantes das mãos do criador, ou na luz sem sombra da

primeira manhã. A origem está sempre antes da queda, antes do corpo, antes

do mundo e do tempo; ela está do lado dos deuses, e para narrá-la se canta

sempre uma teogonia. Mas o começo histórico é baixo. Não no sentido de

modesto ou de discreto como o passo da pomba, mas de derrisório, de

irônico, próprio a desfazer todas as enfatuações.

Compreender essas características mais centrais e, principalmente, entender o

quanto elas foram construídas de forma arbitrária e ligadas a certos contextos históricos

ajudará a pensar nos entraves que a esta instituição se interpõem para a realização de um

projeto no qual a escola possa ser um lugar de convívio entre humanos, um projeto no qual ela

possa ser um lugar onde relações autênticas (não previstas) aconteçam. Assumir o

estranhamento a partir do conhecimento da história, como ressaltam Veiga-Neto e Lopes

(2010, p. 150), nos mostra que conhecer a história nos permite reconhecer os “mecanismos

que nos sufocam, dominam e nos mantêm presos até a nós mesmos”.

Tenho observado nos últimos trinta anos um crescimento do interesse por

propostas alternativas. Tive, ao longo de minha carreira, inúmeras oportunidades de ministrar

cursos de formação para docentes, apresentando a Pedagogia Freinet, que é uma destas

propostas inovadoras. Muitas vezes, no contato com estes grupos de professores, percebia a

sede e o interesse deles e a vontade de trabalhar de uma maneira diferente com seus alunos e

de construírem com eles relações mais humanas, mais afetivas. Mas também podia notar a

dificuldade que sentiam em colocar em prática as propostas que ela traz. Sempre vi na nela

uma proposta de mudança do paradigma educacional e, no diálogo com tantos professores,

percebi que era preciso colocar questionamentos sobre a própria concepção de escola.

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Em outras palavras, constatei muitas vezes que o professor, diante de seus alunos,

sente-se responsável por transmitir os conteúdos que constam no currículo e nos livros didáticos. Ele

sente que sem os tais conteúdos, sem as provas e verificações que o aluno deverá enfrentar, ele não

estará preparado para a vida adulta. O medo de transformar mais profundamente a rotina e a

dinâmica da sala de aula mostram-se também como prudência e como responsabilidade com o

ensino. Muitas e importantes críticas têm sido feitas a este modelo que Paulo Freire (1975) chamou

de educação bancária e, por mais contundentes e pertinentes que estas críticas tenham sido, estas

velhas convicções e suas práticas decorrentes têm permanecido inalteradas há muitos e muitos anos.

E há toda uma sociedade que acredita no poder desta educação e desta forma de ensinar. Muitas

vezes, nestes cursos, por trás do interesse por inovação, o que aqueles professores mostravam era

mais um desejo de aprender alguma nova técnica, sem, contudo, interessar-se por uma

transformação mais profunda na forma de organização do trabalho escolar.

Assim, acabei aprendendo muito com cada uma destas situações que me levavam

a fazer um questionamento sobre a visão em relação à escola, ao aluno e ao conhecimento.

Para descontruir sem destruir alguma coisa é preciso conhecer as suas partes. Uma

pequena lembrança pessoal me ajuda a me explicar melhor. Certa vez, em 1990, quando

estive pela primeira vez na Europa (fui para participar da RIDEF4 na Finlândia), visitei um

casal espanhol. Cândido era professor primário num pequeno vilarejo chamado Horcajada,

próximo à cidade de Salamanca. Ele nos levou a uma enorme praça em frente à Universidade

de Salamanca e nos chamou a atenção para as pedras, os blocos daquela enorme construção,

mostrando que naquela parte da construção, em cada bloco havia uma inscrição feita em giz.

Eram números e letras e ele nos perguntou se sabíamos o que era aquilo. Como não estávamos

entendendo nada ele explicou que aquela parte do prédio havia sido desconstruída e

reconstruída e, para que pudessem recolocar tudo no lugar, estas marcas haviam sido feitas.

Entendo que para que consigamos pensar uma nova escola, questionar os

poderosos paradigmas sobre os quais ela se fundamenta, deveríamos pegar emprestada esta

ideia e, usando-a como contra metáfora, procedermos a uma desconstrução do antigo edifício

escolar para, usando muitas das pedras da construção original, reconstruí-lo sob uma nova

planta, com uma arquitetura mais arejada, mais fluida e agradável para o convívio.

Nas conversas com professores aprendi a formular perguntas. A primeira delas é

sobre a própria palavra tradicional. Permito-me aqui a uma pequena digressão para refletir

4 Reunião Internacional de Educadores Freinet. Trata-se de um encontro bianual promovido pela

Federação Internacional dos Movimentos de Escola Moderna (Pedagogia Freinet).

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sobre esta palavra: o que é tradicional? Quando pensamos e dizemos a palavra tradicional,

ela nos remete a coisas que parecem que sempre foram assim. O tradicional é para nós aquilo

que sempre foi e, portanto, tem a característica de imutável. Desde crianças fomos

acostumados a ouvir sobre a importância da Grécia e do Mundo Antigo e da riqueza do seu

legado cultural para toda a História da Humanidade. É lá que vemos surgir os grandes

filósofos que influenciaram todo o pensamento ocidental. Imagens de excelência, verdade,

sabedoria nos foram transmitidas, amalgamando em nossas consciências o valor dos

conhecimentos que a tradição deste passado luminoso nos legou. Foram séculos de História,

foram incontáveis lutas e disputas pelo predomínio de uma ou de outra concepção filosófica

dentre tantas que habitaram a consciência dos seres humanos. Foram estas lutas que forjaram

ao longo da História a construção das instituições que, hoje em dia, se nos apresentam como

algo de eterno. Do alto de mais de 25 séculos de civilização, aprendemos por meio das nossas

instituições pedagógicas e dos sistemas de dominação a elas relacionados a nos ver como

herdeiros de um legado filosófico, científico, social e político que deve ser transmitido às

novas gerações. Aprendemos também – especialmente nós, os pedagogos e professores – a

nos ver como responsáveis pela transmissão desse precioso legado. Aprendemos a acreditar

no papel central da educação como fator de desenvolvimento da sociedade, como lugar de

formação do indivíduo que deverá ser capaz de viver e participar produtiva e ativamente da

vida social, harmonizando-se e harmonizando-a. Desenvolveu-se assim o “mito da educação”.

E, no entanto, o “mito da educação” como o centro e grande bastião para o

desenvolvimento da civilização é, ele próprio, algo relativamente recente na história da

humanidade. Foi somente a partir do século XVII que a importância da pedagogia ganha

expressão e passa, nos dois séculos seguintes, a exercer uma maior atração na sociedade.

Segundo Cambi (1999, p. 390):

Na época contemporânea afirmou-se e cresceu o “mito da educação”. Em razão

justamente de sua centralidade política e social, a educação foi vista como o

fator-chave do desenvolvimento social, como o fulcro da evolução da sociedade

no seu conjunto, como o “lugar” em que se vem estabelecer o intercâmbio social

além de sua coesão. A educação colocou-se como substituta da política, como

via para operar a construção do homem moderno (indivíduo e cidadão ao

mesmo tempo, autônomo e socializado) e para realizar uma sociedade orgânica,

mas na liberdade, mediante livre colaboração de todos.

Embora desde muito antes – já com os gregos, por exemplo, com a noção de

Paideia e seu ideal de formação humanística e universal do homem – a educação tenha sido

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alvo de reflexões importantes e, com o advento do cristianismo, a instituição Igreja tenha

tomado para si a tarefa de pensar e realizar a formação religiosa, é somente a partir da Idade

Contemporânea que veremos a educação tornar-se esta instituição, que chegou a ter nos dias de

hoje essa enorme penetração na sociedade, comparável talvez enquanto presença em toda a

sociedade à instituição religiosa. Em cada bairro, em cada pequeno vilarejo, no campo ou nas

grandes cidades sempre há escolas. Alguns dados podem dar uma medida mais evidente: temos

hoje no Brasil cerca de 50 milhões de alunos matriculados na educação básica. Especificamente

no ensino fundamental temos mais de 29 milhões de alunos em pouco mais de 144 mil escolas

espalhadas por todo o país. E são mais de dois milhões de professores atuando. A educação

tornou-se hoje um problema de enormes proporções (Anuário Brasileiro, 2014).

E quando, hoje em dia, pensamos educação, temos no nosso imaginário a visão de

escola: sala de aula, carteiras enfileiradas, quadro negro, giz, o pátio, alunos, professor... Em

outras palavras, educação e escola são muitas vezes tomados como sinônimos. E são imagens

como estas a seguir que se plasmaram no nosso inconsciente e se naturalizaram como a forma

última, eficaz e eficiente de produzir ensino/educação.

Quando pensamos na palavra tradicional, estas imagens parecem misturar-se com

a sabedoria do legado da civilização, amalgamando em nós um sentido de continuidade, um

sentimento de que tudo sempre foi assim.

Figura 1: Pátio de escola. Fonte: TV Sergipe5

5 Disponível em <http://g1.globo.com/se/sergipe/noticia/2012/11/faltam-professores-em-escola-de-se-com-pior-

desempenho-no-enem-2011.html>. Acesso em: 04/04/2015.

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Figura 2: Sala de aula. Fonte: Notícias no Leste6

As imagens são tão plasmadas em nós como modelo único e insubstituível que, quando

se fala em modernizar a escola e atualizar o ensino, pensa-se na introdução das novas tecnologias sem

contudo alterar as formas de se atuar no espaço da sala de aula. Uma breve pesquisa por imagens na

Internet sob o título “escola do futuro” nos darão uma profusão de imagens como a seguir:

Figura 3: Sala de aula do “futuro”. Fonte: Revista Exame.com7

6 Disponível em <http://noticiasnoleste.com.br/wp-content/uploads/2013/03/sala-de-aula.jpg>. Acesso em 04/04/2015.

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Discutiremos no final deste capítulo as características que se encontram presentes neste

modelo, nesta forma de organizar o trabalho, na disposição das carteiras, da lousa e o lugar que neste

espaço ocupam o professor e os alunos. Mas é preciso enfatizar antes este aspecto recente da valorização

da escola como panaceia para a questão social. Ainda em Cambi (1999, p.390) temos que a educação:

com o iluminismo, foi – em Rousseau, por exemplo – a via para reorganizar

a sociedade e, ao mesmo tempo para pôr o homem (com a sua “natureza”,

com os seus direitos) no centro dela, restaurando uma verdadeira e profunda

simbiose entre homem e sociedade.

Pensar o quanto é relativamente nova esta ideia – se pensamos no tempo maior da

História – da escola como redentora da sociedade, como força capaz de promover o estado de

bem-estar social talvez seja útil para que possamos nos livrar dela e relativizar o poder que

atribuímos à escola como aparato para a solução dos males humanos.

Além disso, é importante ressaltar que, ao atrelarmos os termos Educação e Escola como

se fossem uma mesma coisa, deixamos de perceber que educação e escolarização são coisas

diferentes. Destaco aqui as ideias de David Hamilton (2001), que propõe a questão sobre “onde se

originou a escolarização moderna”. No artigo Notas de Lugar Nenhum: sobre os primórdios da

escolarização moderna, questiona a visão historiográfica embasada numa visão de continuidade dos

processos históricos. Nesta abordagem, aponta ele, temos uma visão na qual as coisas parecem

evoluir, de um estado menos elaborado, menos organizado para outro mais avançado. “Tais

pressupostos, entretanto, são imediatamente limitadores. Eles dão atenção preferencial à continuidade

em detrimento da mudança. Destacam a evolução ao invés da gênese das instituições sociais” (p. 47).

É neste sentido que busco a seguir retomar as origens da construção da instituição escolar,

enfatizando que a “história da escolarização não é idêntica à história da educação” (idem, p. 51). Esta

busca será acompanhada por algumas imagens que escolhi (pinturas, ilustrações, fotografias). Elas serão

parte integrante da pesquisa compondo com a escrita, conforme já descrito no item que trata dos

caminhos investigativos. Defendo uma desconstrução, uma desnaturalização da imagem de escola com a

qual nos habituamos hoje em dia e considero que, para realizar esta tarefa, será útil olharmos outras

imagens que já foram tidas como naturais na compreensão e visão de educação da humanidade. Para o

estudo histórico buscarei principalmente os trabalhos artísticos que foram produzidos nas respectivas

épocas das quais estivermos falando. Tentamos, desta forma, trazer ao olhar do leitor um fragmento que

seja da visão, da imagem que se tinha de educação.

7 GUSMÃO, Gustavo. Uso da tecnologia na Educação precisa ser planejado. Disponível em

<http://exame.abril.com.br>. Acesso em 05/04/2015.

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Buscando as origens da formação da atual visão de escola

O processo de construção da escola e de sua constituição como Instituição de

Ensino assenta-se naquilo que, já na minha dissertação de mestrado, chamei de pilares da

escolarização. Assim como um edifício precisa se apoiar em pilares, também as instituições

humanas se apoiam nas visões de homem e de mundo que se impõem em determinada época

ou em determinada sociedade.

O primeiro desses pilares foi o surgimento, na História da Humanidade, da noção

de Infância. Esse fenômeno social viria a se constituir em um primeiro pilar para o processo

de escolarização. Em outras palavras, para que a sociedade se mobilizasse no sentido de

construir um espaço destinado a abrigar e educar as crianças e adolescentes foi necessário

antes que a própria sociedade compreendesse a infância como uma etapa específica da

existência humana e, portanto, merecedora de um tratamento específico. A evolução desta

compreensão, a evolução deste conceito de infância, levou-nos ao ponto de termos hoje em

dia o Estatuto da Criança e do Adolescente. Autores da área de História da Educação – como

David Hamilton (2001), Philippe Ariès (1981), Julia Varela e Fernando Alvarez-Uria (1992) e

ainda Mario Alighiero Manacorda (1989) – foram essenciais para a compreensão do

surgimento histórico da noção de infância como um dos fatores que conduziu ao aparecimento

de instituições escolares como lugares para onde as crianças começaram a ser encaminhadas.

Sabemos que, antes disso, as sociedades já haviam produzido suas formas de

educar. A preocupação com a Educação esteve sempre presente. Pensemos, por exemplo, na

Grécia Antiga e em sua ágora onde os cidadãos se reuniam para o comércio, a política, mas

também para o teatro e o debate que cumpria função educativa. O projeto educativo grego

abrangia todo um ideal de formação humana. Em Sócrates temos a formação através do

diálogo entre o mestre que levanta dúvidas ao seu discípulo e o leva ao conhecimento de si

mesmo. Sua ênfase está na formação da alma. E em Platão temos, além disso, uma

preocupação política: a educação deveria preparar o cidadão para a vida na polis.

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Figura 4: Gravura da ágora com a Acrópoles ao fundo

Fonte: Mi Moleskine Arquitetónico8

A educação ocorria, por exemplo, na Academia de Platão (que podia ser um jardim

ou um pátio), onde ele ensinava aos seus discípulos. Nas ilustrações a seguir vemos situações de

educação e de ensino, mas dificilmente as chamaríamos de escolas, embora fossem as formas

correntes de promover educação. A palavra escola vem do grego Skholé, que significa tempo

livre para estudar (Masschelein, 2013, p. 26). Ou seja, escola era um tempo, não um lugar.

As imagens a seguir nos evocam este “tempo para estudar”, mostrando os

componentes de prazer (como no banquete que se vê na primeira) e de arte (na segunda), que

compunham o fazer educativo. Um tempo de fruição, um tempo para pensar.

8 El ágora de Atenas vs. El foro romano. Disponível em <http://moleskinearquitectonico.blogspot.com.br>.

Acesso em 08/05/2014.

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Figura 5: Afresco de Paestum, com cena de banquete, século V a.C.

Fonte: Acemprol9

Figura 6: Academia de Platão: mosaico de Pompéia. Museu Arqueológico Nacional (Nápoles).

Fonte: Suma Teológica10

9 Pintura da Grécia Antiga. Disponível em <http://www.acemprol.com>. Acesso em 05/05/2014.

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Neste passeio pelas imagens de educação e da “escola antes da escola”, podemos

passar da Grécia Antiga ao Império Romano. Muito diferente da nossa visão atual sobre os

cuidados com o recém-nascido, a rejeição da prole era comum. Cabia ao pai, o chefe da família,

a decisão sobre a vida ou morte do bebê. Ali veremos como centrais na tarefa de educar

crianças as figuras da nutriz e do pedagogo. A educação das crianças realizava-se na casa da

família (eventualmente uma casa de campo) e uma parenta idosa supervisionava seus estudos e

deveres e até mesmo a diversão. Na figura abaixo temos, segundo Veyne (1990, p. 33):

Um menino declama um dever de Retórica diante de seu pai (não do mestre).

Tanto os seus dois dedos da mão direita quanto sua postura corporal (inclusive

a perna direita levemente inclinada para trás) compõem a eloquência; o papiro

na mão esquerda é o símbolo de sua cultura, de sua dignidade social. O estudo

na Antiguidade existia para adornar o espírito e instruir o estudante nas belas

letras. Em Roma não havia utilitarismo na Educação.

Figura 7: Detalhe de um sarcófago da primeira metade do século II (Paris, Louvre).

Fonte: Idade Média – www.ricardocota.com11

10 O Ser (II) – Platão: o ser e o outro diverso do ser. Disponível em <https://sumateologica.wordpress.com>.

Acesso em 05/05/2014. 11 COSTA, Ricardo. A Educação na Idade Média. A busca da Sabedoria como caminho para a Felicidade: al-

Farabi e Ramon Llull. Disponível em <http://www.ricardocosta.com>. Acesso em 05/05/2014.

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Figura 8: Ramon Llull conversa a respeito de seus livros com seu discípulo Thomas Le Myésier (detalhe da

miniatura 11 do Breviculum).

Fonte: Idade Média – www.ricardocota.com12

E avançando nesta mirada pela História, buscando as imagens de escola que existiram,

temos no Mestre e seu discípulo a forma mais frequente, entre as famílias mais abastadas, de

preparar seus filhos para a vida em sociedade. Teremos também a instituição do espaço de ensino

para a formação religiosa quando pensamos nos primeiros mosteiros da Antiguidade Clássica. O

que queremos destacar aqui é justamente o caráter de institucionalização que entra em voga a partir

da construção desta noção de Infância. É a partir dela que se iniciaria este processo.

12 COSTA, Ricardo. A Educação na Idade Média. A busca da Sabedoria como caminho para a Felicidade: al-Farabi e

Ramon Llull. Disponível em <http://www.ricardocosta.com>. Acesso em 05/05/2014.

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Figura 9: Um grupo de discípulos estuda uma lição com seu mestre, que lê (repare nos olhos de todos: tanto os

do professor quanto os dos estudantes fixam atentamente os livros abertos). Iluminura do século XIII

(Bibliothèque Sainte-Geneviève, Paris, MS 2200, folio 58).

Fonte: Idade Média – www.ricardocota.com13

13 COSTA, Ricardo. A Educação na Idade Média. A busca da Sabedoria como caminho para a Felicidade: al-Farabi e

Ramon Llull. Disponível em <http://www.ricardocosta.com>. Acesso em 05/05/2014.

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A construção da noção de infância e o pensamento religioso

“Não existe cidade mais disposta a aproveitar a vida e a

evitar aflições do que Eusápia. E, a fim de que o salto da

vida para a morte seja menos brusco, os habitantes

construíram no subsolo uma cópia idêntica da cidade”.

(Ítalo Calvino)

Baseando-me nos autores já citados e também no vasto trabalho de Franc'o Cambi,

trago à reflexão, nesta tese, a ideia de que as sociedades, em todo o período que vai da

Antiguidade Clássica até a Idade Média, não atribuíam um valor diferenciado para a Infância. Ela

não era vista como uma fase específica da vida humana. Ao contrário, a alta mortalidade infantil

talvez explique a pouca atenção investida na criança. De acordo com Cambi (1999, p. 176):

As crianças na Idade Média têm um papel social mínimo, sendo muitas

vezes consideradas no mesmo nível que os animais (sobretudo pela altíssima

mortalidade infantil, que impedia um forte investimento afetivo desde o

nascimento), mas não na sua especificidade psicológica e física, a tal ponto

que são geralmente representadas como ‘pequenos homens’, tanto na

vestimenta quanto na participação na vida social.

Figura 10: Aula em Universidade Medieval. Laurentius de Voltolina.

Fonte: Idade Média – Glória da Idade Média14

14 Ciência, invenções, Universidades, hospitais, educação, descobertas, culinária, nomes: a lista interminável

do progresso mundial. Disponível em <http://gloriadaidademedia.blogspot.com.br>. Acesso em 05/05/2014.

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Numa síntese das proposições destes autores, podemos dizer que até o

Renascimento a instituição escola ainda era muito fraca na sociedade, e não estava

institucionalizada. Seu processo de institucionalização começaria no período seguinte, a partir

do Renascimento, com o advento da Modernidade.

No famoso quadro de Pieter Bruegel vemos os jogos infantis, mas olhando

atentamente, chama a atenção o fato de que todos que brincam são adultos, sugerindo uma

não separação entre o mundo adulto e o infantil.

Figura 11: Jogos infantis. Pieter Bruegel (1525- 1569). Fonte: Wikiart15.

Assim que a criança ganhava alguma autonomia e podia se defender minimamente, ela

passava a participar de todos os espaços da vida em comum: festas, trabalho e até mesmo nas

guerras (havia soldados de dez, doze anos). Sua educação era feita nas oficinas (voltada para a

aprendizagem de uma técnica ou ofício) ou nas igrejas (para a devoção e formação moral).

Até aqui podemos dizer que a educação da nobreza se dava pela aprendizagem do

ofício das armas e as classes populares eram dirigidas a aprendizagem dos ofícios (de ferreiro,

15 Children's Games. Disponível em <http://www.wikiart.org>. Acesso em 08/07/2015.

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açougueiro, padeiro etc.). Firmavam-se contratos entre a família e o mestre, que recebia um

aprendiz de cada vez. As imagens a seguir ilustram melhor:

Figura 12: O mestre açougueiro e o aprendiz. Fonte: Idade Média16.

Figura 13: O mestre padeiro e seu aprendiz. Fonte: Idade Média 17

16 Relações entre patrões e empregados nas corporações de ofício. Disponível em

<https://idademedia.wordpress.com/2011/09/11>. Acesso em 05/05/2014.

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Figura 14: Arte do códice de esgrima medieval Gladiatória em que se mostra a esgrima de espada longa armada.

Fonte: Wikipédia18.

Paralelamente ao estudo das origens da formação da instituição escola, proponho

aqui outro olhar sobre o estudo da História, uma segunda digressão ao presente estudo:

investigo a forma como, ao longo do tempo, foram respondidas grandes questões filosóficas

(de onde viemos? Para onde vamos? Quem somos nós?). Entendo que a importância de

proceder a este olhar se dá pelo fato de que, dependendo da maneira como respondemos a

estas questões, desenvolveremos modos específicos de educar. E, em cada tempo, estas

respostas não serão nunca únicas ou monolíticas, mas encontraremos certamente a

predominância de uma ou outra forma. Encontraremos o discurso hegemônico que pauta os

procedimentos de inclusão ou de exclusão a que estarão sujeitos os indivíduos de uma dada

sociedade. No livro A ordem do discurso, Foucault nos propõe a ideia de “vontade de

verdade” e os mecanismos pelos quais esta vontade de verdade se mascara e se impregna no

corpo social como riqueza, como fecundidade, como verdade. Segundo este autor (1999, p.

20), “e ignoramos, em contrapartida, a vontade de verdade, como prodigiosa maquinaria

17 Relações entre patrões e empregados nas corporações de ofício. Disponível em

<https://idademedia.wordpress.com/2011/09/11>. Acesso em 05/05/2014. 18 Formação de linhagens na nobreza galega da Baixa Idade Média. Disponível em <http://www.wikipedia.org>.

Acesso em 05/05/2014.

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destinada a excluir todos aqueles que, ponto por ponto, em nossa história, procuraram

contornar essa vontade de verdade e recolocá-la em questão...”

O longo período histórico que vai desde o fim do século V até finais do século

XV e que chamamos de Idade Medieval se caracteriza pela forte presença da igreja, pela sua

consolidação, expansão e difusão pela Europa. Através da Igreja o cristianismo é difundido

como principal forma de concepção de mundo. Trata-se de um período impregnado dos

valores espirituais (como o de superação da vida mundana, de renúncia aos prazeres

terrenos); um período impregnado de mitos e pautado por rituais que orientam a vida e

convivência social. O amálgama que sedimentava as relações era dado pelo pensamento

religioso ou, dizendo de outra maneira, as respostas às grandes questões da existência eram

dadas pela Fé. Segundo Cambi (p. 145), “a Igreja foi o ‘palco fixo’ por trás do qual se

moveu toda a história da Idade Média e um dos motores do seu inquieto desenvolvimento

(ao lado do Império e das cidades), talvez o motor por excelência”.

A educação teve nesse contexto enorme importância e a Igreja se dedicou a ela

profundamente, discutindo e implementando modelos educativos e práticas de formação e

organizando as suas instituições de ensino. Mas o projeto educativo da Igreja não se ateve

unicamente à instituição escolar: da arquitetura à música, da literatura à pintura e escultura,

a Igreja soube lançar mão de todos os recursos que iam, assim, compondo o imaginário do

homem medieval. Entre as ameaças dos suplícios do Inferno e o convite à expiação da culpa

dos pecados, a Igreja Católica assume o comando da educação através de um vasto

programa que incluía a construção de enormes catedrais, ricamente ornadas de pinturas e

esculturas com forte teor doutrinário, e nas quais a própria arquitetura cumpria a função de

ensinar ao homem medieval o respeito e a obediência aos seus desígnios. Com seus vitrais,

suas altas torres e abóbodas, a inferioridade do homem em relação a Deus fazia-se vivência

concreta. Os templos não eram apenas destinados à prática religiosa: neles havia bibliotecas

e escolas de música. Também eram centros de cultura e educação.

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Figura 15: Interior da Catedral de Notre Dame, Paris. Sua construção foi iniciada em 1163 e concluída em 1345.

Fonte: TurboSquid19

A pintura recorre a um repertório medieval de referências teológicas cristãs,

propondo uma imagem do Inferno como inventário de torturas incessantes, lugares de suplício

e condenação eterna dos que incorrem nos chamados pecados capitais, sem distinção do seu

estado ou condição social.

19 Notre Dame Cathedral Paris. Disponível em <http://www.turbosquid.com>. Acesso em 05/05/2014.

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Figura 16: Afresco de Giotto, A Lamentação, c. 1305, Cappella Degli Scrovegni, Pádua. Fonte: Wikipédia20

Os afrescos nas igrejas ou as iluminuras nos livros eram formas de educar,

especialmente os monges nos mosteiros, o que me permite enfatizar aqui a ideia de que

educar não estava ligado à existência de um espaço escolar.

Figura 17: O inferno. Pintura em óleo sobre madeira. Autor anônimo português do século XVI.

Fonte: Uol Educação21

20 Estilo Gótico. Disponível em <http://www.wikipedia.org>. Acesso em 06/05/2014

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Figura 18: Iluminura que ilustra o calvário de Cristo.

Fonte: abrancoalmeida.com22

Entre castigos e devoções e almejando a formação do homem pio, temente a Deus e

obediente ao clero, o educar se revestia do caráter de sacerdócio (que ainda hoje influencia muitos

educadores). Até aqui, podemos dizer que a fé era tida como a resposta para as questões centrais

do homem: de onde viemos? De Deus. Quem somos nós? Somos filhos de Deus. Para onde

vamos? Se tivermos nosso comportamento adequado aos desígnios da Igreja, voltaremos a Deus.

21 Auto da Barca do Inferno: Análise da obra de Gil Vicente. Disponível em <http://educacao.uol.com.br>.

Acesso em 05/05/2014. 22 Iluminuras do advento. Disponível em <http://abrancoalmeida.com>. Acesso em 05/05/2014.

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Figura 19: Desfiles da monarquia terminavam nos átrios de igrejas. Procissão das relíquias de Luis IX, ilustração

de manuscrito, cardeal-mestre Bourbon, séc. XIII. Biblioteca Nacional da França, Paris.

Fonte: História Viva23

Figura 20: O jardim das delícias. Hieronymus Bosch.

Fonte: Wikipédia24

23 Os animados cemitérios medievais. Disponível em <http://www2.uol.com.br/>. Acesso em 05/05/2014.

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A apropriação da infância: os jesuítas e a Ratio Studiorum

O fim dos anos quatrocentos verá surgirem profundas mudanças de toda ordem

(sociais, econômicas, geográficas, políticas, religiosas, ideológicas, culturais e pedagógicas).

Invenções técnicas como a bússola, a imprensa de Gutenberg e o domínio do emprego da

pólvora trariam novas e importantes mudanças no cenário europeu. As crises da Era Medieval

trarão o questionamento da visão religiosa e a defesa da razão como fundamento para o

desenvolvimento de toda potencialidade humana. Fé e razão disputam os espaços de

organização da sociedade e se articulam para realizar seus projetos de hegemonia. Como nos

mostra Foucault em Vigiar e Punir, a produção dos mecanismos de controle dos corpos e

mentes serão produções tanto de origem religiosa como dos organismos sociais (exército,

prisões, hospitais etc.). Mas o surgimento do pensamento científico moderno traria

consequências profundas para as concepções de homem e de mundo até então predominantes.

A força da Igreja Católica também sofre alguns reveses como, por exemplo, o

movimento da Reforma Protestante. Embora estejamos acostumados a pensar na Reforma

como um movimento religioso, um cisma entre tendências e visões espirituais dentro da

própria Igreja, é importante lembrar que outras forças foram determinantes, como a burguesia

financeira (que se insurgia contra o fiscalismo papal), os movimentos de camponeses na

Alemanha contra os grandes proprietários de terras e a ampliação da força de protesto dos

novos intelectuais mais propensos a uma visão laica do homem e da sociedade. Isso sem falar

do desejo de alguns reis de se libertarem da ingerência do papa nos seus domínios.

O pensamento e as ações de Lutero tiveram grande impacto na forma de pensar a

educação, ao defender uma educação laica e gratuita, afirmando o conceito de indivíduo autônomo e

responsável e não mais condicionado à relação com a verdade divina tal como mediada pela igreja.

É neste contexto que ganha força a noção de infância e, segundo Varela (1994, p. 87),

vai se produzir uma separação cada vez mais marcada entre o mundo dos

adultos e o das crianças, e vai surgir a necessidade de delinear, de pôr em

ação, novas formas específicas de educação. Foi nesse quadro que teve lugar

o surgimento de novas instituições educacionais.

Ainda segundo esta autora (idem, p. 88):

24 O Jardim das Delícias Terrenas. Disponível em <http://wikipedia.org>. Acesso em 05/04/2015.

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Para levar adiante seu projeto de formação de bons cristãos, os mestres

jesuítas não apenas reforçaram o estatuto conferido à “infância” com a opção

de educá-la em espaços fechados, nos colégios, mas sentiram também a

necessidade de controlar os saberes que iam transmitir e de organizar estes

saberes de tal forma que se adequassem às supostas capacidades infantis.

Figura 21: Os monges recebiam nos mosteiros indistintamente todas as crianças a eles entregues, vestindo-as,

alimentando-as e educando-as, num sistema integral de formação educacional.

Fonte: Glória da Idade Média25

Pela primeira vez, sob o comando da Igreja, surge um projeto de sistematização e

de codificação precisa e minuciosa do fazer pedagógico. Estava-se diante do que Varela

(idem) chamou de “pedagogização do conhecimento”.

Embora tardia, a sistematização de todo este ideário se deu com a publicação da

Ratio Studiorum, em 1599, obra que resume o processo de elaboração das normas que devem

reger a organização da vida dos colégios. Elaborada pela Companhia de Jesus, a Ratio tinha a

25 A Igreja extirpou a escravidão na Idade Média. Disponível em <http://gloriadaidademedia.blogspot.com.br>.

Acesso em 05/05/2014.

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finalidade de prescrever de forma completa e minuciosa as atividades e práticas que deveriam

formar o “rebanho” dócil e obediente.

Figuras 22 e 23: Páginas de abertura da Ratio Studiorum, publicada em 1599.

Fonte: Spiritual Journey26

Figuras 24 e 25: Páginas iniciais da Ratio Studiorum.

Fonte: Loyola University Chicago Digital Special Collections27

26 Spiritual Journeys. Disponível em <http://libraries.slu.edu/digital/spiritual-journeys/ratio.html>. Acesso em 12/12/2015.

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O reforço à noção de infância levava ao seu isolamento em espaços fechados.

Empenhados no projeto de formar bons cristãos, os jesuítas se dedicaram a selecionar, organizar

e controlar os saberes que deveriam ser transmitidos às crianças e adolescentes, censurando

aqueles que eram considerados maus em relação à ortodoxia católica. A transmissão dos saberes

adquiria assim uma natureza moralizante. Segundo Foucault (1987, p. 137),

a ideia de um “programa” escolar que acompanharia a criança até o termo de

sua educação e que implicaria de ano em ano, de mês em mês, em exercícios

de complexidade crescente, apareceu primeiro, parece, num grupo religioso,

os Irmãos da Vida Comum.

Os Irmãos da Vida Comum pertenciam à ordem dos jesuítas, cuja obra

pedagógica estamos analisando. Segundo Varela (idem, p. 89) três efeitos importantes

resultaram do esforço jesuíta de “pedagogização do conhecimento”, e podemos vê-los ainda

hoje como características do modo de ensinar.

O primeiro efeito é que “a aquisição desses saberes moralizados não exigia uma

cooperação” (ibidem). Esta é uma marca importante que se inscreve no ideário da escola e que

nos interessa destacar. Como vimos, a aprendizagem própria do modelo do mestre e seu

aprendiz implicava numa atividade cooperativa entre eles. Para fazer o pão, para fazer um par

de sapatos ou qualquer obra, mestre e aprendiz trabalhavam juntos, em cooperação. Porém, com

os saberes codificados, “os mestres passaram a ser os únicos detentores” e os estudantes passam

a ser aqueles que deveriam adquirir (quase sempre por meio da memorização) os ensinamentos.

O segundo efeito (ainda de acordo com Varela) liga-se ao fato de que aquilo que

passa a ser importante ensinar são os saberes selecionados como verdadeiros, os saberes da

doutrina e tradição católicas. A preocupação com a formação centra-se nas questões espirituais e

desvincula-se dos problemas sociais ou da vida material e cotidiana, entendida como carregada de

erro e ignorância. Cria-se a “cultura culta, uma cultura que, com o passar do tempo, converteu-se

na cultura dominante e reclamou para si o monopólio da verdade e neutralidade” (idem).

E um terceiro efeito resultou desse processo: a constituição de um aparato para a

disciplinarização dos estudantes. A virtude e a verdade, segundo os cânones da doutrina

seriam atingidas por meio da renúncia de si mesmo. Estes conteúdos moralizantes foram

instaurando todo um aparato disciplinar. Segundo Varela (idem, p. 89) “a disciplina e a

27 Ratio Atque Institution Studiorum Societatis Iesu. Disponível em <http://www.lib.luc.edu>. Acesso em 04/04/2014.

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manutenção da ordem nas salas de aula passaram a ocupar um papel central no interior do

sistema de ensino até chegar praticamente a eclipsar a própria transmissão de conhecimentos”.

Além da abolição do trabalho cooperativo entre mestre e discípulo, nos colégios

jesuítas encontrava-se uma organização que colocava os alunos em competição. Segundo Foucault

(1987), inspirados nos modelos militares, os alunos eram divididos em grupos de dez (decúria) e a

cada decúria correspondia uma outra adversária. Assim, formavam dois exércitos na classe que se

confrontavam no trabalho e na aprendizagem. Seu desempenho garantia a sua classificação, bem

como a de sua decúria. O aparato disciplinar foi se desenvolvendo com base na correção dos corpos

e o recurso à violência fazia-se costumeiro. Reunidas e fechadas num espaço destinado à educação,

crianças e adolescentes não deveriam reagir a este enclausuramento, sob ameaça de castigos e

punições. As práticas de interrogatório utilizadas nos processos da Inquisição serviriam de

inspiração – ainda que abrandadas – para a domesticação das novas gerações. A instituição escolar

nascia, assim, marcada pela violência, pelos castigos e punições como forma de educar corpos,

mentes e espíritos. A organização do tempo e do espaço era destinada a garantir o controle dos

alunos. Ainda com Foucault (idem, p. 128): “durante séculos, as ordens religiosas foram mestras de

disciplinas: eram especialistas do tempo, grandes técnicos do ritmo e das atividades regulares”.

Interessa para este trabalho destacar o fato de que na própria gênese da institucionalização

da escola, a partir da construção da noção de infância, inscrevem-se na escola alguns aspectos que,

acredito, ainda não conseguimos superar: a perda de relações cooperativas entre mestre e aprendiz, o

esvaziamento de significação baseada na vida material e cotidiana do aprendiz e a ênfase na disciplina

como algo externo ao aluno, como uma docilização dos corpos. A tarefa educativa, nestes inícios,

constituiu-se como confronto entre o projeto do mestre e os desejos do aprendiz. À imagem de

infância pura, anjos do paraíso, deveriam moldar-se as crianças reais. Os desvios de um certo ideal

deveriam ser combatidos, enquadrados a um padrão entendido como divino.

Embora estejamos seguindo uma linha relativamente cronológica neste estudo,

ressalvo que a constituição da escola não se deu de maneira linear. Diferentes projetos coexistiram

e, ao longo dos anos, disputaram seus espaços e hegemonias. Estas disputas se acirraram e

ganharam proporções alarmantes para aqueles que detinham o poder do discurso de verdade e o

uso da força e da coerção (lembremo-nos do poder da Inquisição) ao aumentarem seus tentáculos

revelariam o enfraquecimento e a crise da fé como amálgama das relações sociais.

O período a seguir, irá desempenhar um papel de extrema importância na constituição

da Escola, no qual o surgimento do Estado Moderno terá um papel essencial.

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O Renascimento e o surgimento do pensamento científico moderno

“Cada habitante de Eudóxia compara a ordem imóvel do

tapete a uma imagem sua da cidade, uma angústia sua, e

todos podem encontrar, escondidas entre os arabescos, uma

resposta, a história de suas vidas, as vicissitudes do destino”.

(Ítalo Calvino)

A partir do Renascimento, inicia-se na sociedade uma ruptura com as formas de

explicação do mundo, do homem e da natureza baseadas na fé e é proposto o modelo racional como

forma de explicar o mundo e a sociedade. Apoiada no uso da razão, a ciência moderna almeja

explicá-los e planificá-los. O desejo de resposta às questões que sempre inquietaram o pensamento

humano passará a buscar na razão sua força de satisfação. Em outras palavras podemos dizer que ela

será o principal componente na elaboração das respostas àquelas grandes perguntas. René Descartes

será um dos expoentes de sua defesa como princípio para acessar o conhecimento; inaugura-se com

ele o racionalismo. As ciências ganham um desenvolvimento antes nunca visto e a busca dos

filósofos e cientistas é orientada para a questão de um método para se chegar ao saber.

A definição do método científico iniciada por Galileu e mais tarde completada por

Newton assentaria suas bases na observação, hipótese, matematização e verificação experimental. A

teoria heliocêntrica (elaborada por Copérnico) terá sua possibilidade de comprovação com o

telescópio aperfeiçoado por Galileu, fundando as bases de uma nova visão de homem e de mundo.

As grandes navegações realizadas nos séculos XV e XVI também contribuíram

para essa nova visão. Contra a velha imaginação de uma época que temia os monstros que

habitavam os mares, contra a visão da terra como algo plano e que no seu fim seria um grande

abismo no qual as embarcações cairiam, tínhamos agora a visão da Terra redonda e a

descoberta de novas terras a serem exploradas. Tudo isso forjava transformações e exigia um

novo tipo de homem e por isso um novo tipo de educação.

É neste período que veremos surgir com mais força o “mito da educação”. Como

vimos, o pensamento religioso, a fé como resposta às questões do homem, foi a marca central

da sociedade medieval, que agora se encerrava. O surgimento dos reis absolutistas e das

nações (o que caracteriza o começo da modernidade) levaria à laicização da sociedade. O

pensamento religioso perde sua força de estruturação da sociedade. É o pensamento científico

– o conhecimento – que surge como projeto para a sociedade como um todo. E a escola

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emerge como o lugar em que ele deverá ser difundido. Se antes nos remetíamos a Deus e à fé,

agora nos remetemos ao conhecimento e à razão. Não mais as explicações pelo milagre, o

homem passava a se ver como capaz de produzir e explicar os fenômenos. Neste contexto,

vemos que a escolarização assume papel central.

O avanço do pensamento científico como alguma coisa objetiva e observável

levaria, nos séculos seguintes, a se enxergar como alvo expurgar do conhecimento qualquer

componente que estivesse fora do controle da razão e da lógica. Nesta época, outros projetos

(como o dos alquimistas) passariam a ser desacreditados. Saberes intuitivos ou ligados a

estados mentais diferentes (como os das bruxas) seriam projetos vencidos nesta nova etapa.

Figura 26: O sistema heliocêntrico de Copérnico. Fonte: Astro Mía28

O pensamento científico moderno lançava as bases para uma nova visão de homem

e de mundo: postulava por um método de construção do saber que deveria ser empírico e

racional, imprimindo profunda influência no âmbito da pedagogia e da educação. Claro está que

28 Sistema heliocéntrico. De la Prehistoria a la Edad Media. Disponível em <http://www.astromia.com>. Acesso

em 20/05/2014.

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este processo não se deu de forma linear. Em muitos momentos o pensamento religioso e o

científico se uniram em favor de projetos de hegemonia. A igreja continuaria a se empenhar na

produção do conhecimento, sendo-lhe atribuída a prerrogativa de determinar os fundamentos do

conhecimento verdadeiro e de salvaguardar o controle sobre ele. Às ideias novas que surgiam,

como a do universo infinito e da pluralidade dos mundos defendidas por Giordano Bruno, a

igreja respondia com processos, excomunhões e condenações à fogueira da Inquisição.

Figura 27: O Julgamento de Giordano Bruno pela Inquisição Romana.

Relevo em bronze por Ettore Ferrari, Campo de Fiori, Roma.

Fonte: Wikipédia29

Entre continuidades e descontinuidades, acordos e desacordos, uma nova forma de

conceber o homem e o universo, baseando-se nas observações e interpretações dos fenômenos,

a revolução do pensamento iria se aprofundando. O exemplo mais conhecido é o do físico,

astrônomo e matemático Galileu Galilei cujas obras (ora aceitas e publicadas, ora proscritas e

inscritas no Índice dos livros proibidos) alcançariam ampla repercussão em toda a Europa.

O modo de pensamento científico irá inspirar e refletir-se na nascente instituição

escola, propondo a disciplinarização do conhecimento e sua organização a partir do simples

para o mais complexo. Embora saibamos que isto não se deu de forma linear, podemos dizer

29 Giordano Bruno. Disponível em <http://www.wikipedia.org>. Acesso em 20/05/2014.

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que o pensamento científico moderno começaria então a se constituir em mais um pilar para o

processo de escolarização.

Avançar no estudo sobre este período da história tem, para esta tese, importância

fundamental. Compreender, ainda que em linhas gerais, o espírito e a mentalidade dos

movimentos sociais que moveram e influenciaram a definição da forma educativa e a estrutura da

instituição escolar tem como propósito, neste trabalho, buscar possíveis respostas à pergunta sobre

por que é tão difícil mudar a escola e, além disso, pensar “a reviravolta que a inclusão impõe”.

Ao elencar as principais características do pensamento revolucionário que surge no

século XVII poderemos ouvir seus ecos ressoando até os dias de hoje no pensamento pedagógico.

Temos no pensamento iluminista uma revolução racionalista, que busca a tudo

esclarecer por meio do saber. É pela razão que se chega à verdade do conhecimento, ou

melhor, ao conhecimento verdadeiro. Alia-se à ideia de razão a crença na perfeição da

natureza. Passamos a ter uma visão calcada na materialização dos fenômenos que, pela

observação, podem ser apreendidos. O empirismo passa a ser a principal forma de produção

do conhecimento. A elaboração de experimentos, a observação sistemática e a corroboração

(ou não) dos resultados são os fundamentos para a elaboração de uma teoria científica.

Contra o racionalismo puro de Descartes surgiria um movimento (que tinha entre

seus expoentes John Locke e David Hume) cujas ideias se orientam para o que poderíamos

chamar de uma racionalidade empírica: a experiência sensorial atrelada a uma indagação

racional seria o caminho para a descoberta da verdade (Cambi, 1999).

Observa-se aqui uma laicização do pensamento a partir da separação entre fé e

realidade natural. A natureza, através do processo científico, pode agora ser submetida ao

controle do homem e à sua manipulação. Este movimento intelectual de cientistas e filósofos

traz no seu bojo o desejo de superação do senso comum, rejeita a visão antropomórfica da

natureza, até então reinante. Nos séculos seguintes ao Renascimento ocorre paulatinamente

uma liberação do homem em relação ao sagrado e ao mundo sacralizado, tendo na Ciência sua

possibilidade de superação das superstições e do senso comum.

Esta é sem dúvida uma marca presente hoje em dia na nossa mentalidade pedagógica.

Nós, professores, ciosos e responsáveis do nosso papel na sociedade, entendemos que a ciência tem a

função de tirar os alunos da obscuridade do senso comum e elevá-los a uma visão mais racional e

abstrata (não antropomórfica) do mundo e dos fenômenos. Esta é a impressão que temos de nós

mesmos como divulgadores da ciência e da cultura. Mas também aqui caberá uma reflexão mais

profunda sobre o educar e sobre o ensinar. Acostumamo-nos a pensar que ao ensinar estamos lidando

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com a Ciência, porém como veremos a seguir, o que fazemos é lidar com Conteúdos. As descobertas

científicas, que no âmbito da pesquisa são formuladas como hipóteses, para efeito de ensino são

selecionadas, classificadas e embaladas para o consumo com o selo de verdades científicas.

Figura 28: Observação do satélite de Júpiter por Galileu.

Fonte: Canal Académie30

30 De la lunette de Galilée à l’ELT. Disponível em <http://www.canalacademie.com/>. Acesso em 20/05/2014.

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Uma reapropriação da infância: Comenius e a Didática Magna

A preocupação com a pedagogia é evidenciada, por exemplo, na intensa atividade

desenvolvida por Comenius (1592 – 1670). Em disputa com a educação dos jesuítas (que

ainda tinham sua presença forte e disseminada na sociedade), Comenius irá se dedicar a

prescrever uma organização minuciosa e precisa da vida escolar, a divisão do tempo das

lições, os equipamentos adequados, a estruturação dos exercícios e a ênfase na verificação

através de exames revelam um processo de revisão da antiga escolástica e de racionalização

dos métodos de ensino. Comenius foi bispo ligado à Reforma Protestante, distinguindo-se

como homem de fé e de ciência. Seu método visa a formação do homem sábio, instruído no

conhecimento do mundo e também piedoso cristão.

Em consonância com as ideias científicas que estavam se propagando neste

momento, vemos em Comenius uma enorme preocupação em organizar a vida escolar (ainda

que existissem muito poucas escolas), em submetê-la a sistemas de controle e planificação.

São instituídos rituais e introduzidos instrumentos como a chamada e o registro diário, como

forma de organizar a atividade de ensino e com a pretensão de mensurar a respectiva

aprendizagem. Consoante ao espírito de iluminação que a filosofia inspirava, encontramos no

seu famoso Orbis Pictus, publicado em 1658, o que hoje chamaríamos de livro didático. Seu

esforço em produzir um material didático ilustrado, utilizando para isto a xilogravura, visava

ensinar aos alunos os principais temas por ele considerados. Segundo Miranda (2011),

a obra foi estruturada para mostrar a figuração das principais coisas do

mundo - com imagens em xilogravura -; a nomenclatura de cada coisa, com

os nomes dos assuntos de cada unidade em latim e na língua materna; e suas

particularidades, com um texto que acompanha cada unidade.

A obra de Comenius, profundamente engajada no pensamento científico e em

consonância com a Reforma Protestante, propõe a universalização da educação como forma

de disciplinar as diversas classes e grupos sociais. Ainda em Miranda (idem),

sem dúvida, as grandes metáforas que inspiraram Comenius são a concepção

mecânica de natureza e a organização da oficina dos artesãos. Porém, mais

que isso, Comenius talvez tenha sido o primeiro educador a colocar em livro

uma iconologia didática em prol da educação escolar.

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A concepção de aluno que permeia seu esforço é pautada pela ideia de alguém

que, como um vaso, um receptáculo, recebe as informações criteriosamente organizadas para

ele. Além disso, temos na contribuição de Comenius um golpe fatal na constituição da própria

profissão de professor. No artigo A aula como acontecimento o professor João Wanderley

Geraldi nos atenta para o fato de que até este momento a figura do mestre estava revestida de

uma reverência ao saber que ele estava produzindo, ou seja, “ensinavam aqueles que estavam

produzindo conhecimento” (Geraldi, 2004, p. 10).

Para compreendermos o processo que se instaurava a partir dos esforços de

Comenius, trago à reflexão uma metáfora proposta por ele na sua Didática Magna e também

citada por Geraldi:

serão hábeis para ensinar mesmo aqueles a quem a natureza não dotou de muita

habilidade para ensinar, pois a missão de cada um não é tanto tirar da própria

mente o que deve ensinar, como sobretudo comunicar e infundir na juventude

uma erudição já preparada e com instrumentos também já preparados, colocados

nas suas mãos. Com efeito, assim como qualquer organista executa qualquer

sinfonia, olhando para a partitura, a qual talvez ele não fosse capaz de compor,

nem de executar de cor só com a voz ou com o órgão, assim também porque é

que não há de o professor ensinar na escola todas as coisas, se tudo aquilo que

deverá ensinar e, bem assim, os modos como o há de ensinar, o tem escrito

como que em partituras? (Comenius, XXXII – 4).

E assim podemos ver que na obra de Comenius temos, de um lado, o culto à ciência,

o desejo de ensinar todas as descobertas que a ciência ensejava e, de outro, o que poderíamos

chamar de “escolastização” da ciência. Movido pelo ímpeto de “ensinar tudo a todos” Comenius

defende a seleção e organização dos conteúdos que deveriam ser transmitidos aos alunos e com

isto ele retira do ensinar o aspecto de produzir a ciência – ao professor caberá o papel de

reproduzir os conhecimentos produzidos por outros (pelos sábios e cientistas). Esta característica

do ensino permanece até os dias de hoje, ou seja, embora na ciência o pesquisador esteja lidando

com hipóteses que o levam a perceber a provisoriedade do seu conhecimento, quando

transportamos as conquistas científicas para o âmbito escolar todo o processo de produção do

conhecimento é esvaziado e passamos a lidar com conteúdos tidos como certos e definitivos.

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Figura 29: O livro Orbis Pictus, cuja tradução é Mundo Ilustrado, foi escrito por Comenius para auxiliá-lo no

ensino de seus alunos. Nesta página vê-se a introdução, na qual o mestre convida o aluno a ser sábio. O mestre

lhe mostrará todas as coisas e as nomeará. Fonte: Centro de Investigación MANES - Manuales Escolares31

Figura 30: Mais páginas do Orbis Pictus. Fonte: Centro de Investigación MANES - Manuales Escolares32

31 Jan Amós Komensky (Comenius): Orbis Sensualium Pictus. Disponível em <http://www.uned.es>. Acesso em

20/04/2014.

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Avançando na busca pelas marcas deixadas por tantos pensadores, tomemos, por

exemplo, um dos principais filósofos e um dos precursores do iluminismo, o pensador John

Locke (1632 – 1704). Contestando a crença nas ideias inatas, ele traria para o debate a

importância da aquisição do conhecimento através dos sentidos, ou seja, que o conhecimento

é determinado pela experiência. O empirismo de Locke traria para o campo pedagógico

importantes consequências que podemos sentir ainda hoje. Destaco alguns de seus princípios

que temos hoje como atuais e contemporâneos. Segundo Cambi (idem, p. 316), para Locke:

Tais princípios são: 1. A mens sana in corpore sano, afirmada como um

“estado feliz neste mundo” e como critério-guia de todo educador; 2. A

importância do “raciocinar com as crianças” como meio de ensino; 3. A

prioridade da formação prático-moral em relação à intelectual e do critério

da “utilidade” das disciplinas a ensinar aos jovens; 4. A centralidade da

experiência, que desenvolve a natural curiosidade das crianças, amadurece

seus interesses e se afirma também através do jogo e do trabalho.

Estas ideias foram defendidas há mais de 300 anos (a publicação do Pensamentos

sobre a Educação data de 1693). Em linhas gerais temos em sua obra algumas bases para as

transformações sociais que estavam ocorrendo (dentre elas, a contestação do inatismo que se

desdobra na defesa da separação entre Estado e Igreja). Mas retomo aqui a ideia que importa

para este trabalho, ou seja, entre as ideias dos filósofos e cientistas sobre a educação e as

efetivas práticas que estavam se realizando, teremos uma distância que se constitui até mesmo

pela fraca presença de instituições escolares espalhadas na sociedade. A escola era uma

instituição destinada a poucos, a uma pequena elite.

O cenário de todo este período é marcado por disputas de diferentes matizes. No

campo religioso luteranos, calvinistas e católicos buscam ampliar suas áreas de influência. Porém,

outra disputa ocorria no âmbito político com a laicização do estado, afastando a Igreja Católica da

sua tradicional hegemonia. E ainda no campo econômico teremos a burguesia ampliando sua

força e influência. Tudo isso levava a uma busca pela formação do rebanho (no caso religioso), do

povo (do ponto de vista do poder político) ou do trabalhador (na visão do empreendedor burguês).

Segundo Hamilton (2001, p. 58):

A organização integrada da vida pessoal, da vida familiar e da vida pública

para atender aos propósitos disciplinares sobrepostos de ordem mental,

corporal e social é um traço permanente da Europa dos séculos XVI e XVII.

32 Jan Amós Komensky (Comenius): Orbis Sensualium Pictus. Disponível em <http://www.uned.es>. Acesso em

20/04/2014.

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Neste contexto veríamos surgir a figura do cidadão, que passa a ter deveres como

indivíduo, mas também responsabilidades da cidadania. Gradativamente foram se construindo

as bases para o surgimento do Estado Moderno, que centraliza a autoridade e o poder e, para

garantir sua permanência, lança mão da criação de instituições. Ainda em Hamilton “as

aspirações políticas do Estado Moderno deviam ser incentivadas através de uma matriz

institucional patrocinada pelo Estado – a escolarização moderna” (idem, p. 68). É só a partir

deste momento que começaria a surgir a instituição escolar, e tanto a influência religiosa

quanto a civil se tornaram parte integrante desta instituição nascente.

Uma mudança de extrema importância para a história da escola é operada de

forma mais definitiva no final do século XVII, quando o espaço fechado onde se exercerá o

ensino emerge como dispositivo institucional. Segundo Philippe Ariés, citado por Varela e

Alvarez-Uria (1992, p. 76):

A escola substituiu a aprendizagem como meio de educação. Isso quer dizer

que a criança deixou de ser misturada aos adultos e de aprender a vida

diretamente, através do contato com eles. A despeito das muitas reticências e

retardamentos, a criança foi separada dos adultos e mantida à distância numa

espécie de quarentena, antes de ser solta no mundo. Essa quarentena foi a

escola, o colégio. Começou então um longo processo de enclausuramento

das crianças (como dos loucos, dos pobres e das prostitutas) que se

estenderia até nossos dias, e ao qual se dá o nome de escolarização.

Este aspecto é de extrema importância para entender as características da

instituição escolar: a criação de um espaço destinado a guardar a infância.

Para o escopo deste trabalho faz-se necessário ressaltar o quão recente, o quão

nova (em termos de história da civilização) é o surgimento desta instituição nestes moldes, ou

seja, como um lugar para onde são enviadas as crianças. Estamos acostumados a pensar a

escola como uma instituição ancestral, tão antiga quanto a nossa História, porém a visão que

estes historiadores nos apresentam mostra um quadro bem diferente. É novamente em David

Hamilton (2001, p. 48) que este ponto de vista é melhor explicitado:

Da mesma forma, este ensaio parte de um pressuposto excêntrico (fora do

centro): o de que a escolarização moderna não teve ancestrais institucionais. Se,

por um lado, é conscientemente desafiadora e desconfortante, essa premissa de

trabalho – de que a escolarização moderna veio de lugar nenhum – é também

libertadora. Ela desatrela a investigação da escolarização moderna do curso da

teorização linear, que coloca uma coisa após a outra.

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O título do artigo acima citado (Notas de lugar nenhum – sobre os primórdios

da escolarização moderna) é sugestivo e reforça a ideia de que foi necessário primeiro

distinguir as crianças como um grupo separado para, a seguir, construir um lugar, uma

instituição para onde enviá-las.

Até aqui apresentamos alguns dos pilares que sustentam a instituição escolar e

forjam suas principais características. Em síntese podemos dizer que, na história da

Educação, a escola é uma instituição bastante recente, fruto de rupturas e mudanças

envolvidas em aparentes continuidades e processos. Vimos que ela se apoiou primeiramente

na noção de infância (chamamos de primeiro pilar) e agora temos o surgimento do

pensamento científico moderno (segundo pilar).

O ideal de disciplinarização e de formação do homem adequado e adaptado às

exigências que a sociedade lhe impõe seriam, desde o nascimento, as principais marcas da

instituição escola. Com o surgimento da ciência moderna estaríamos diante de uma revolução

do pensamento que aspira à verdade racional: as Luzes da Ciência e da Razão deveriam trazer

a resposta para a formação do homem moderno.

Geraldi, no livro Portos de Passagem (2013), mostra-nos como a sociedade que se

encerrava – a sociedade medieval – tinha um amálgama comum, algo que sedimentava as

relações: o pensamento religioso. Com a laicização da sociedade forjada pela defesa do uso da

razão como forma de explicação do mundo, que caracteriza o começo da modernidade, a

sociedade perde o pensamento (religioso) capaz de lhe dar este amálgama. Então o pensamento

científico – o conhecimento – aparece como esta seiva amalgamadora da sociedade. E a escola

emerge como o lugar em que todos devem aprender um conjunto específico de conhecimentos –

os conteúdos – selecionados como capazes de produzir este amálgama. Veremos então serem

fortalecidos os processos de pedagogização da infância, já iniciados pela Igreja, e que seriam

então transformados pela racionalidade técnica que a ciência propicia.

De acordo ainda com Geraldi, cria-se (com o surgimento da ciência moderna) um

novo sistema antropocultural de referências a que todos se remetem. Até aquele momento o

pensamento religioso, Deus e a fé proviam (ou deveriam prover) o homem das respostas às

suas angústias e inquietações. Porém, agora a razão e o conhecimento seriam capazes (ou

deveriam ser) de nos livrar das explicações milagrosas, deveriam nos fazer acessar a verdade.

Começava a se criar e difundir a partir dali o modelo que constitui a ciência moderna.

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E hoje, já entrados no século XXI, nossas certezas se esvaem e começamos a nos

aperceber de que é necessário colocar em dúvida estas verdades científicas. É o que nos

mostra Jorge Larrosa, em Agamenon e seu porqueiro (2000):

Se a realidade parece um invento europeu recente, talvez possamos fazer agora

uma brevíssima consideração sobre a verdade, com o fim de chamar a atenção

de vocês sobre o funcionamento do modelo positivo de verdade, do modelo da

adequação ou da correspondência entre as proposições e a realidade, do

modelo que constitui a ciência moderna e nosso sentido comum desse modelo

de acordo com o qual a ciência é a teoria do real e, por isso, o principal jogo

do verdadeiro ou do falso relativamente à realidade. (Idem, p. 163).

A revolução instaurada pelo pensamento científico moderno e da qual somos hoje

herdeiros nos habituou a pensar que só esta forma é capaz de produzir verdades e certezas. Mas

será que a verdade é a verdade? É o porqueiro de Agamenon (que Larrosa nos apresenta por meio

de um apólogo de Antonio Machado) que nos incita e nos coloca a dúvida: “não me convence”.

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Figura 31: Frontispício da Encyclopédie (editada em 1772 por Diderot e d’Alembert), desenhado por Charles-

Nicolas Cochin e gravado por Bonaventur-Louis Prévost. Esta obra está carregada de simbolismo: a figura do

centro representa a verdade – rodeada por luz intensa (o símbolo central do iluminismo). Duas outras figuras à direita,

a razão e a filosofia, estão a retirar o manto sobre a verdade. Fonte: Wikipédia33

33 Iluminismo. Disponível em <http://www.wikipedia.org>. Acesso em 20/05/2014.

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O capitalismo industrial e o primado da economia

“Mesmo as mercadorias que os vendedores expõem em suas

bancas valem não por si próprias mas como símbolos de

outras coisas: a tira bordada para a testa significa

elegância; a liteira dourada, poder; os volumes de Averróis,

sabedoria; a pulseira para o tornozelo, voluptuosidade”.

(Ítalo Calvino)

Na esteira das ideias do pensamento iluminista e principalmente ocasionada pela

crise econômica gerada por diversos fatores (dentre os quais se destaca a crise agrícola, que

colocou o fantasma da fome a rondar a população), o século XVIII veria irromper na França

uma revolução que ameaçaria as nações europeias. As lutas políticas que colocavam em foco

os problemas das classes sociais e da enorme desigualdade na distribuição das riquezas teriam

nos princípios da liberdade, igualdade e fraternidade sua expressão de síntese.

Neste período veremos a nascente revolução industrial ser forjada graças ao

fortalecimento da burguesia, que vinha acumulando capital e ampliando o comércio em nível

mundial. Em virtude de mudanças na produção agrícola ocorre, em várias partes da Europa,

um deslocamento da população rural para a zona urbana, criando enorme concentração

urbana. Uma das principais transformações ocorridas neste período foi o surgimento das

máquinas (em especial a máquina a vapor) que passaram a substituir partes do processo

produtivo até então realizado pela mão humana. Esta revolução traz consigo um intenso

aumento da pobreza de populações empurradas do campo para a periferia das cidades.

A partir da revolução industrial ocorre uma importante mudança nos processos

produtivos e nas relações econômicas e sociais. A produção dos bens de consumo iria passar,

nesse momento, do modelo artesanal, das corporações de ofício para o modelo da fábrica.

Segundo Cambi (1999, p. 370):

A Revolução Industrial vem transformar profundamente a sociedade

moderna – no sistema produtivo e no estilo de trabalho, na mentalidade e nas

instituições (família, paróquia, vila), na consciência individual – produzindo

também uma nova classe social (o proletariado) e um novo sujeito

socioeconômico (o operário).

Se de um lado o crescente empresariado – mais adepto a uma visão laica da

sociedade – usaria sua influência para reivindicar a construção de escolas públicas destinadas

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à educação do povo para o trabalho nas fábricas, de outro, a criação de escolas públicas em

larga escala – como no caso da Prússia (atual Alemanha) – teria como intento a unificação da

nação, garantindo a transmissão de valores cívicos e a obediência ao Estado. Com ênfase nos

interesses econômicos ou nos interesses políticos, a escola ia se constituindo e se alastrando.

Neste período, liderada por pensadores que representavam as ideias e o

pensamento burgueses, a Europa iria ampliar suas reinvindicações por uma educação pública

e estatal. Segundo Cambi (1999, p. 365) na França, por exemplo,

nasce um sistema educativo moderno e orgânico, que permanecerá

longamente como um exemplo a imitar para a Europa inteira e que fornecerá

os fundamentos para a escola contemporânea, com seu caráter estatal,

centralizado, organicamente articulado, unificado por horários, programas e

livros de texto.

Figura 32: Uma rua de um bairro pobre de Londres (Dudley Street).

Gravura de Gustave Doré de 1872. Fonte: Imago História34

Um terceiro pilar se constituiria assim para apoiar esse modelo de escola que vivemos

hoje o qual está ligado ao surgimento e expansão do capitalismo e da sociedade industrial.

34 A Revolução Industrial. Disponível em <http://imagohistoria.blogspot.com.br>. Acesso em 20/05/2014

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Figura 33: Crianças na fábrica. Gravura de Gustave Doré de 1872.

Fonte: Imagens Históricas35

No campo das ideias, ampliavam-se os ecos dos esforços de pensadores que, desde

o final de Renascimento, empenharam-se em conhecer e sistematizar os fenômenos. De Francis

Bacon (1561 – 1626) a Isaac Newton (1642 – 1727), aprofundava-se o debate em torno de uma

visão mecanicista do universo, substituindo visões mais animistas e fortalecendo a convicção

nas possibilidades de conhecer e controlar a natureza. De acordo com Hamilton (1999, p. 14),

Isaac Newton fue una gran figura de esta transformación filosófica general.

El éxito alcanzado al explicar el funcionamento del movimiento planetário y

terrestre en los Principia (1687), sirvió como modelo y motivacion para los

pensadores de otros campos.

Neste momento veremos a importante figura do filósofo e economista Adam

Smith (1723 – 1790) influenciar de forma decisiva, com suas teses do liberalismo econômico,

amplos setores da sociedade. Em A riqueza das nações, inspirando-se no impacto causado

pelo pensamento newtoniano, Smith destacaria as virtudes da liberdade econômica em

35 Revolução Industrial. Disponível em <http://imagenshistoricas.blogspot.com.br>. Acesso em 20/05/2014

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detrimento das restrições comerciais, vinculando o interesse pessoal da ganância como capaz

de beneficiar o conjunto da sociedade (idem, p. 15). A força da burguesia europeia impõe seu

modelo de modernização, apoiando-se nos Estados (que passariam a assumir o controle e

dirigir o funcionamento da vida, inspirando-se numa racionalidade técnica) e pressionando-os.

O estudo da História que temos desenvolvido neste trabalho é baseado no ponto

de vista de que os recursos materiais, o modo de produção dos bens necessários para a

sociedade e as ideias produzidas influenciam-se mutuamente. E, principalmente, que todo este

movimento influencia e produz determinadas práticas educativas.

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A massificação da infância

Essas transformações que se operaram nos processos produtivos e nas ideias

também se refletiram nas formas de organizar a jovem instituição. É somente a partir deste

período que veremos ser generalizado o modelo de ensino baseado na lousa e giz. As ideias de

Comenius de quase 150 anos antes, somente agora encontrariam ambiente e condições

materiais e ideológicas para se disseminarem. Inspirada pelo modelo de produção em massa

propiciado pela revolução industrial, a escola buscou formas de promover o ensino em grande

escala, dividindo os alunos por grau de aproveitamento e trabalhando o modo de transmissão

simultânea dos conhecimentos previamente organizados.

Com sua influência Adam Smith traz ao debate noções como “divisão do

trabalho” e “distinção de classe social” e, no campo das práticas educativas e da organização

do trabalho escolar, veremos surgir a noção de classes como grupo de alunos. Temos nesta

noção um importante modelo que apoia a instituição escolar. A formação de grupos de 30 ou

40 alunos classificados por idade ou nível de aprendizagem promoveria o ensino simultâneo,

ou seja, uma mesma aula para todos e não mais os cursos individualizados.

As necessidades impostas pelo modo de produção capitalista buscariam nas

tradições desenvolvidas pelas ordens religiosas a inspiração para organizar o trabalho. Segundo

Foucault (1987, p. 128), para acostumar as populações rurais ao trabalho na indústria apelava-se

às congregações: “os operários são enquadrados em ‘fábricas-conventos’”. E, ainda com

Foucault (idem), veremos esta mesma inspiração se deslocar para a organização das escolas:

“nas escolas elementares, a divisão do tempo torna-se cada vez mais esmiuçante; as atividades

são cercadas o mais possível por ordens a que se tem que responder imediatamente”.

Dois exemplos interessantes de organização escolar vêm das propostas do educador

Andrew Bell (1753 – 1832) e, pouco depois dele, de outro educador, Joseph Lancaster (1778 –

1838) e o Sistema Monitorial ou Ensino Mútuo para a escolarização de crianças em orfanatos

ou escolas caritativas, ambos fortemente influenciados pelas ideias de Smith. O crescente

número de matrículas exigia soluções para administrar o ensino nestas instituições. No modelo

de Ensino Mútuo, a classe – que chegava a ter 100 alunos – era dividida em grupos que ficavam

a cargo de um monitor – um aluno (geralmente mais velho) que ficava responsável pela

organização da escola, pela limpeza e pela manutenção da ordem. Estes monitores transmitiam

a lição a ser memorizada pelos estudantes, que depois poderiam se dirigir às suas mesas para

escrevê-las. A ilustração a seguir mostra uma classe de ensino mútuo.

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Figura 34: Ilustração de escola do século XIX de ensino mútuo. Fonte: História da Educação36

Controlar a atividade dos alunos, administrar calculadamente o tempo tornaram-se

objetivos centrais nas questões pedagógicas. Foucault (idem, ibidem) nos dá ainda uma

medida da importância dedicada ao controle do tempo:

No começo do século XIX, serão propostos para a escola mútua horários

como o seguinte: 8,45 entrada do monitor, 8,52 chamado do monitor, 8,56

entrada das crianças e oração, 9 horas entrada nos bancos, 9,04 primeira

lousa, 9,08 fim do ditado, 9,12 segunda lousa, etc.

O controle do tempo, dos corpos e das vontades vai se aprimorando e constituindo

seu legado. A imagem anterior representa uma escola do século XIX, por volta do ano de

1820. Ou seja, cerca de 200 anos atrás, esta instituição buscava formas de se organizar, em

nada parecidas com o modelo atual. Em toda a Europa eram intensificados os debates sobre a

educação, a escola e os métodos de sua organização. Os métodos de ensino mais comuns e

presentes especialmente nas universidades (até princípios do século XVIII) ainda eram

bastante medievais: o professor ditava sua conferência e procedia ao exame dos alunos

verificando o quanto eles haviam retido de sua exposição. Mas as mudanças econômicas que

estavam sendo operadas em todos os setores da sociedade, as novas ideias que se difundiam e

a facilidade provocada pela disseminação de publicações de textos impressos levavam

professores universitários (dentre eles, o próprio Smith) a adotarem métodos relativamente

36 Ensino Mútuo ou Método Lancasteriano. Disponível em <https://historiadaeducacaobrasileira.wordpress.com>.

Acesso em 20/05/2014

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improvisados de ensino e exame. Não mais o ditado frio e distante, mas um discurso e um

diálogo com os alunos iriam orientar a instituição da aula. George Jardine (professor escocês,

discípulo de Smith) e outros professores estavam entre os defensores desta mudança.

Era introduzida uma nova preocupação quanto à formação dos estudantes, até

então voltada para desenvolver as virtudes da obediência e da fé, preocupando-se agora com a

atenção e compreensão dos alunos. O sistema da aula passaria a ser defendido como modelo

da instrução simultânea. Neste sistema a defesa do princípio da emulação como fator de

estímulo para a aprendizagem ganharia ampla repercussão, sendo prescrito a partir de então, a

reunião de grupos de 30, 40 e até 50 alunos que, referidos ao mestre, receberiam a aula.

Finalmente as ideias de Comenius ganhariam corpo. Durante o século XIX é difundida na

Europa a escola pública de massas que iria consolidar o modelo de organização conhecido

como Ensino Simultâneo no qual todos devem fazer a mesma coisa, ao mesmo tempo.

Figura 35: Ensino simultâneo assente no agrupamento constituído pela classe e sala de aula. Fonte: In Learning37

Se na primeira metade do século XIX as ideias do novo liberalismo econômico se

impregnaram no pensamento pedagógico, na sua segunda metade veríamos inúmeros

pensadores e educadores se empenharem em fazer nascer aquilo que ficou conhecido como a

pedagogia científica. Seu projeto se separava (ou tentava) da filosofia e da política e buscava

construir os saberes pedagógicos à luz das ciências positivas. Lançando mão dos

conhecimentos da fisiologia, da psicologia e da antropologia (mais ligados ao homem) e da

37 Modos de Organização Escolar - consequências para o espaço escolar. Disponível em <http://in-learning.ist.utl.pt>.

Acesso em 20/05/2014

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sociologia (ligada à sociedade) – saberes estes que reivindicavam para si o estatuto de ciência

– a pedagogia adotava o paradigma científico, indutivo e experimental, articulando-se em

torno de conhecimentos baseados em “fatos” (Cambi, idem, p. 498).

O sociólogo francês Emile Durkheim (1858-1917) exerceria enorme influência

que se estendeu ao século XX, ao elaborar uma teoria da educação como socialização.

Durkheim foi fortemente influenciado pelo positivismo, logrando aperfeiçoar as ideias de

Comte (1798-1857), ele defende a educação como função da sociedade e, organizada em

instituições específicas, esta deve introduzir ao aprendizado de técnicas, linguagens e normas

sociais as novas gerações, integrando-as à sociedade.

É também neste período que começa a tomar corpo a pedagogia experimental.

Baseando-se na psicologia experimental – e também fortemente influenciada pelo modelo

positivista – busca entender e codificar os princípios do comportamento infantil, utilizando-se

para isto de intervenções deliberadas e controladas de determinadas situações (educativas ou

experimentais). Ainda segundo Cambi (idem, p. 500) “a pedagogia experimental nasce como não

valorativa (deixa de fora os ‘juízos de valor’) e visa aos aspectos objetivos e mensuráveis da

experiência educativa submetida a experimentação”. Este modelo teria importante

desenvolvimento e penetração no século XX, especialmente nas suas últimas décadas.

E assim, concluindo este estudo da história da escola, vimos que no plano mais

amplo da sociedade, sobrepujando as questões da fé e da razão, as sociedades capitalistas

industriais começaram a encontrar no comércio, na venda e no consumo das mercadorias uma

maneira de viver. Numa sociedade pautada pela resposta teológica às grandes questões

filosóficas (Idade Média) a educação será marcada pela doutrinação, será focada no valor da

fé com todas as consequências desta tomada de posição em favor deste valor. Por outro lado,

numa sociedade que luta para se emancipar dos ditames religiosos (Renascimento) e busca a

valorização da capacidade humana de pensar, de racionar, também a educação será entendida

como a possibilidade de desenvolver o engenho humano e o valor central será a razão. E por

último, ou pelo menos até onde chegam os nossos tempos atuais, numa sociedade voltada para

a produção e circulação dos bens materiais, temos como valor central a Matéria. E a educação

será a preparação para o mercado. Todos esses processos históricos que se constituíram em

pilares para a construção da instituição escola tal qual a conhecemos hoje também a tornam

esse lugar onde se manifestam seus conflitos e contradições.

Até aqui nosso passeio pela História da Pedagogia ajudou a compreender os

porquês embutidos no modelo educacional vigente. Buscamos, ainda que em linhas gerais,

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conhecer aspectos de sua genealogia e pudemos descortinar aspectos do projeto de escola que

adquiriu hegemonia e preponderância até os dias de hoje, reconhecendo os discursos de poder

que nela se encontravam subjacentes. Nosso percurso genealógico foi pautado por aquilo que

de transformador reconhecemos no pensamento foucaultiano (1984, p. 13):

Ora, se o genealogista tem o cuidado de escutar a história em vez de

acreditar na metafísica, o que é que ele aprende? Que atrás das coisas há

"algo inteiramente diferente": não seu segredo essencial e sem data, mas o

segredo que elas são sem essência, ou que sua essência foi construída peça

por peça a partir de figuras que lhe eram estranhas. A razão? Mas ela nasceu

de uma maneira inteiramente "desrazoável" − do acaso. A dedicação à

verdade e ao rigor dos métodos científicos? Da paixão dos cientistas, de seu

ódio recíproco, de suas discussões fanáticas e sempre retomadas, da

necessidade de suprimir a paixão − armas lentamente forjadas ao longo das

lutas pessoais". E a liberdade, seriada, na raiz do homem o que o liga ao ser

e à verdade? De fato, ela é apenas uma "invenção das classes dominantes". O

que se encontra no começo histórico das coisas não é a identidade ainda

preservada da origem − é a discórdia entre as coisas, é o disparate.

Nosso estudo teve como propósito perceber que a escola não é eterna nem natural, é

uma instituição que se encontra na interseção entre as ideias e os recursos materiais que se fizeram

presentes ao longo da história, que esta instituição viveu caminhos e descaminhos, continuidades

e descontinuidades e que se constituiu e desconstituiu no embate entre os diferentes atores, seres

humanos que protagonizaram processos históricos. Seguimos então com o propósito de, tendo

percebido e retirado os véus que turvavam a visão daqueles pilares ocultos sobre os quais foi se

assentando esta instituição, dar o passo seguinte no sentido de desnaturalizar o olhar para a escola

e buscarmos o espanto, ou seja o estranhamento com este modelo, para então buscarmos outras

possibilidades, outras “verdades” ainda que, como tudo, sempre provisórias.

O estudo da História teve como pano de fundo o propósito de fazer refletir sobre o

não determinismo das instituições e práticas humanas. Conhecer o passado para, compreendendo-

o, liberar-se das amarras das mistificações e, aprendendo com ele, ousar outros futuros. É tempo

de reconhecermos que entre o tempo que vivemos em nossa sociedade – com toda a velocidade

que a tecnologia impõe e todas as mudanças nos valores, na cultura e nas instituições – e o tempo

que passamos na escola – com sua lenta reprodução de velhas práticas – há um descompasso. É

tempo de buscarmos novas formas de tornar nossa escola menos anacrônica.

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A escola de hoje e as marcas da sua constituição

E a escola? O que é ela hoje? Quais marcas ela guarda do passado? Será que está

fadada ao enrijecimento de suas formas de organização? Será que pode se transformar?

Defendo uma ideia simples: a escola se tornou um lugar. Um lugar que foi

construído socialmente e que traz as marcas dos embates e lutas por hegemonia e, certamente,

a forma de hoje é a propugnada por aqueles que venceram estas lutas ao longo da trajetória

histórica. Além de um lugar, ela é também um tempo. Do não lugar da Grécia antiga, do

Skholé que significava tempo livre para estudar e pensar, aos dias de hoje, em que sua

edificação se estabeleceu, temos uma trajetória que cristalizou esta instituição dada como

espaço/tempo imutável. A escola é um lugar e um tempo.

Hoje, muitos anos transcorridos nos quais as sociedades se empenharam em

promover a educação e o preparo das gerações vindouras, a escola habita o nosso imaginário

com este status de espaço/tempo destinado à preparação das crianças e dos jovens. Neste lugar

está prevista a realização de relações educativas. Mas, em torno desse espaço/tempo, orbita

um mundo atravessado por transformações. A informação e a comunicação circulam nos

espaços vivenciais, tanto de professores como de alunos, numa velocidade jamais imaginada

como possível. E nós, milhares de professores, em milhares de salas de aula, diante dos

milhões de crianças e adolescentes, agimos como se tudo pudesse ou devesse continuar sendo

como sempre foi. Estudar a história da constituição da escola teve como objetivo desvelar e

permitir a compreensão de que ela não foi sempre assim. É neste sentido que considero

importante analisarmos as principais características que se construíram. E, a partir daí,

perguntar sobre o tipo de relações que este modelo, esta forma escolar, prevê.

Uma primeira constatação que o estudo da História da Pedagogia me permite é que a

construção deste lugar escola instituiu certo tipo de relações entre seres humanos (crianças e

adultos) voltadas para a produção da normalidade, a padronização dos comportamentos.

Este lugar social, este lugar escola tem uma materialidade física: o prédio, os

corredores por onde se deve andar (ainda hoje, muitas vezes em fila e em silêncio), a sala de

aula para onde se deve caminhar, as carteiras e cadeiras onde se deve sentar, a lousa e o

professor para onde se deve olhar. Esta materialidade física que se constituiu na arquitetura

escolar determina ou tenta determinar as ações possíveis, o que é e o que não é permitido

neste ambiente. Quer dizer, o espaço físico foi se constituindo também como adestrador.

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Então minha hipótese é a de que, para que se possa repensar a educação, é preciso

redefinir este lugar escola, dando a ele novas funções e significações. O que quero salientar

aqui é que a educação tem ocorrido de muitas formas e em muitos espaços ao longo da nossa

História, mas a escola consagrou-se como lugar de ensino. Separo aqui os termos Educação e

Ensino. Enfatizo, ainda que correndo o risco de me tornar repetitiva, que nem sempre este lugar

escola existiu. Embora isso possa parecer óbvio, a forma como pretendo abordar este trabalho

está ligada a este óbvio. Entendo que às vezes é necessário dizer o óbvio para que possamos

discuti-lo. Assim, se paramos para pensar em outras instituições sociais, poderemos lançar

perguntas interessantes sobre o que está embutido nas arquiteturas destas instituições. Por

exemplo, a instituição Igreja, que já existia muito tempo antes da escola, conduz a certo

comportamento das pessoas que nela adentram. Também os hospícios, hospitais, asilos, como

bem nos mostrou Foucault, as instituições instituem os modos de coexistência e vice-versa.

Numa discussão mais atual, o sociólogo polonês Zigmunt Bauman (2000) nos oferece análises

interessantes sobre os espaços públicos (como praças e shopping centers) e a forma como eles

são construídos para determinar (de maneira invisível) os comportamentos ali esperados.

Assim, do não lugar, ou seja, de uma situação na qual a educação ocorria de forma

difusa por todos os espaços da sociedade, como vimos na Grécia Antiga e na Europa Medieval,

até chegarmos aos enormes edifícios com suas salas de aula, corredores e pátio, percorremos

muitos caminhos e diferentes formas de organizar o ensino. Do ensino que se dava na relação

entre o mestre e seu discípulo, passamos à constituição de pequenos grupos e, depois, de

classes. Passamos do espaço aberto e vivo aos espaços fechados que separam a criança do

mundo externo. Passamos do tempo livre para aprender (da Skholé), para os tempos rotinizados

e vigiados da escola de hoje. Nas duas imagens a seguir temos exemplos do ensino

individualizado que foi a principal característica dos modelos de educação até o século XVIII.

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Figura 36: Ilustração de Rousseau e crianças. Fonte: Assuntos de Pedagogia38

Figura 37: Ensino individual. “Le Maître d’école”. Adriaen Van Ostade. 1662. Fonte: In Learning39

Figura 38: Henri Jules Jean Geoffroy – “The Children’s Class” (1889). Fonte: Jurjo Torres40

38 Disponível em <http://assuntosdepedagogia.zip.net/arch2005-09-04_2005-09-10.html>. Acesso em 15/07/14 39 Modos de Organização Escolar - consequências para o espaço escolar. Disponível em <http://in-learning.ist.utl.pt>.

Acesso em 15/07/14

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Na figura 38 podemos ver uma classe com muitos alunos, mas divididos em diferentes

atividades. Enquanto alguns trabalham na lousa de ardósia, podemos observar um menino que

realiza uma cópia de um livro, outro desenha utilizando uma régua, uma dupla trabalha na produção

de um texto... Pouco mais de cem anos nos separam desta sala de aula. A racionalização do processo

de ensino-aprendizagem conduziria ao ensino coletivo e simultâneo, uma mesma aula para vários

alunos, uma organização pedagógica em que todos devem fazer a mesma coisa ao mesmo tempo.

Como vimos, o surgimento da instituição escolar teve como um de seus primeiros

fatores a separação entre a infância e o mundo adulto. Esta separação se concretizou quando

foram construídos espaços específicos para educar as crianças: as escolas. Dentro de seus

muros uma população passa a conviver, o alunado. Neste lugar estão previstas certas rotinas e

são distribuídos os papéis aos diferentes sujeitos que ali se encontram. O espaço e o tempo

estão organizados de forma a garantir que ocorram certos acontecimentos previstos e

estruturados segundo aquelas prescrições que se forjaram historicamente.

Em resumo, a produção dos saberes escolares e a determinação das práticas prescritas

e autorizadas, inscrevem-se num processo histórico que tem referência nos discursos de verdade

que o jogo entre os desígnios da Fé (com a força da igreja), da Razão (com as descobertas da

racionalidade científica) e os interesses do Capital fizeram surgir. Cada um, a seu modo, logrou

informar o olhar daqueles que se dedicavam a produzir este espaço de preparação das novas

gerações. A produção deste espaço/escola foi se constituindo a partir da visão paradigmática de

cada uma dessas vertentes. Assentada nos pilares que se constituíram na sociedade – entre os

quais destacamos a noção de infância, o pensamento científico moderno e o capitalismo industrial

– e que dão sustentação aos seus modos de organização interna, vimos a escola multiplicar-se e

disseminar-se na vida moderna. A escola tornou-se esse lugar metodizado, marcado por rotinas

fixas, um lugar normalizado, no qual só devem ocorrer acontecimentos previstos. E tudo se passa

como se assim fosse, como se sempre tivesse sido... Será?

Mudar a escola para que nela possam caber todos os alunos passa por desconstruir este

espaço/tempo já instituído. Mas não é o mesmo que começar a construir uma casa num terreno

vazio: nossa casa já está construída e, portanto, é muito mais do que a tarefa de fazer uma grande

reforma. Mas esta reforma não é só física, é também (e talvez mais) uma reformulação das ideias

que presidem esta empreita de educar. Trata-se de desvelar os paradigmas que se instauraram no

âmbito da escola, de questioná-los, de compreender seu estatuto histórico para que possamos pensar

40 SANTOMÉ, J.T. Sobre los libros de texto. Algunas objeciones. Disponível em <http://jurjotorres.com/>.

Acesso em 15/07/14.

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novas maneiras de receber as novas gerações, pensar em como apresentar o nosso mundo, deixando

ao mesmo tempo o espaço para a irrupção do novo e do inusitado que toda nova geração traz

consigo. E permanece a questão: como podemos alterar nossas práticas, como podemos transformar

este lugar escola? E ainda mais importante: em que direção queremos transformá-la?

Das instituições que temos na sociedade e que são vividas por nós como

tradicionais temos, por exemplo, o casamento como uma delas. Esta foi a ou uma das

instituições que mais se transformou: da sagrada família ao casamento gay, temos pouco mais

que cinco décadas em que esta instituição vista como eterna e imutável sofreu alterações

profundas. E a nossa velha e boa escola? Continuará impassível?

Figura 39: A organização frontalizada do espaço da sala de aula. Fonte: In Learning41

Creio que para seguir com este trabalho é preciso enfrentar mais um passo:

colocar em questão, olhar com estranhamento, desconstruir isto que chamei de pilares da

escolarização. Será que a racionalidade científica ainda pode legitimar nossos esforços de

formação das novas gerações? Será que o modelo capitalista industrial responde ou

corresponde às promessas de “liberdade, igualdade e fraternidade”? E a infância? Quem e o

que é ela na nossa pós-modernidade? Essas serão as reflexões a que me proponho a seguir.

41 Modos de Organização Escolar - consequências para o espaço escolar. Disponível em <http://in-learning.ist.utl.pt>.

Acesso em 15/07/14

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A “racionalidade” do modelo: uma discussão necessária

Vimos até aqui o esforço desenvolvido por educadores e filósofos se orientar para a

laicização da educação. Iluminados pelas luzes da ciência, ora compondo com o pensamento

religioso, ora promovendo rupturas mais impactantes, pensadores e educadores desenvolveram

suas concepções e seus projetos de sociedade. O desejo de racionalidade, que talvez Foucault

chamasse de “vontade de verdade”, exerceria forte influência no modo de se pensar o homem e a

sociedade, repercutindo nos modos de fazer e pensar a educação até os dias de hoje. O status de

verdade que a ciência positiva angariou para si colocaria a educação científica como apanágio

para a formação do homem, que deveria, assim, ser preparado para viver numa sociedade racional

e progressista. Cresce o mito da educação como a via para construir a sociedade equilibrada,

orgânica, apta a desenvolver o progresso (entendido de um ponto de vista positivista: para uma

sociedade fundada nos valores da razão, uma educação racional e científica). Temos nas análises

do professor Tomaz Tadeu da Silva (1994, p. 255) reflexões sobre esta problemática:

É difícil pensar a educação fora do contexto do predomínio da Razão, tal

como definida e elaborada pelo Iluminismo. A história da educação de

massas e a do pensamento ilustrado quase se confundem. A educação

institucionalizada é um dos mecanismos pelos quais a Razão se instala e se

difunde, os currículos educacionais são baseados na concepção de Razão, o

cultivo da Razão é um dos principais objetivos educacionais. Em muitos

sentidos, educação significa produção da racionalidade.

A esta altura de nossa conversa, e para seguir com este trabalho, iremos encontrar

inspiração nas ideias de Thomas Kuhn a respeito das revoluções científicas. Para o nosso

propósito, alguns conceitos que ele nos apresenta são úteis e serão utilizados

comparativamente aos problemas que se nos apresentam na área educacional.

No livro A estrutura das revoluções científicas, Kuhn descreve os processos que

envolvem a ciência e o pensamento científico, apresentando seus períodos de tranquilidade e

os de crise. Para Kuhn a ciência avança ou retrocede transitando entre diferentes fases.

Resumidamente podemos dizer que, para ele, um problema científico ou mesmo uma ciência

possuem fases diferentes em torno das quais se dá a produção do conhecimento científico,

sendo que estas fases caracterizam a produção mesma deste conhecimento. Assim, temos o

estágio pré-paradigmático no qual diferentes teorias estão em vigência e os adeptos de uma ou

de outra competem entre si. Em algum momento do desenvolvimento das pesquisas, os

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cientistas ligados a determinado campo de estudo se tornam capazes de estabelecer os

fundamentos pertinentes a ele: “elaboram um paradigma capaz de orientar as pesquisas de

todo o grupo”. (Kuhn, 2000, p. 42)

Instaura-se a partir daí um período que Kuhn denomina de “ciência normal”, no

qual o paradigma vitorioso orienta o olhar do cientista. Segundo Kuhn (idem, p. 147 e 148):

Outras experiências demonstram que o tamanho, a cor, etc., percebidos de

objetos apresentados experimentalmente também varia com a experiência e o

treino prévios do participante. Ao examinar a rica literatura da qual esses

exemplos foram extraídos, somos levados a suspeitar de que alguma coisa

semelhante a um paradigma é um pré-requisito para a própria percepção. O

que um homem vê depende tanto daquilo que ele olha como daquilo que sua

experiência visual-conceitual prévia o ensinou a ver.

O período de “ciência normal” torna-se fértil ao permitir que os cientistas se

dediquem à atividade de “solucionar quebra-cabeças”. O trabalho da chamada ciência normal

“não visa produzir uma novidade inesperada” (idem, p. 58). Informados pelo paradigma

vigente, os cientistas avançam na produção científica, solucionando os problemas inscritos no

seu campo de pesquisa. Os dados coletados oferecem possibilidades de elaboração frutífera.

No entanto, em algum momento da vida de uma comunidade científica surgem

problemas que resistem às soluções até ali garantidas pelo paradigma. Inicialmente a anomalia

será vista como uma inabilidade do cientista e não uma inadequação do paradigma. A

persistência da anomalia confronta a atividade científica, questionando os pressupostos sobre os

quais se orientou até então. Neste momento surgem resistências por parte de muitos cientistas

que se mantém convictos de que o antigo paradigma acabará por solucionar os problemas que a

anomalia evidencia. Será na persistência do fracasso na resolução de um quebra-cabeça

importante que se originará a crise do paradigma. De acordo com Kuhn (idem, p. 184)

Por isso, o teste de um paradigma ocorre somente depois que o fracasso

persistente na resolução de um quebra-cabeça importante dá origem a uma

crise. E, mesmo então, ocorre somente depois que o sentimento de crise

evocar um candidato alternativo a paradigma.

O período de crise do paradigma abre a perspectiva de surgirem ou de passarem a

ser considerados paradigmas rivais e conflitantes que entrarão em competição. É interessante

salientar que, para Kuhn, a transição entre estes paradigmas em competição não pode ser feita

suavemente, passo a passo, pela simples análise lógica ou por experiências neutras destinadas a

estabelecer a pertinência ou não do novo paradigma. Estes momentos nem mesmo podem ser

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chamados de transição, pois caracterizam-se por verdadeiras revoluções. O período de crise

caracteriza-se pelo debate no qual entram em disputa os diferentes paradigmas.

Outro aspecto apresentado por Kuhn explicita o caráter não cumulativo da ciência, pois,

se assim fosse, “os novos conhecimentos substituiriam a ignorância, em vez de substituir outros

conhecimentos de tipo distinto e incompatível” (idem, p. 129).

Outra ideia que aqui nos interessa diz respeito à comparação que ele faz entre os

momentos de crise da ciência e os momentos revolucionários da sociedade. Diríamos que

diferentes projetos se encontram em competição, disputando a cena institucional, defendendo ou

atacando estas mesmas instituições e propondo novas estruturas. Kuhn nos atenta para o fato de

que estas disputas se dão no seio de uma comunidade relevante e buscam seu consentimento.

Para descobrir como as revoluções científicas são produzidas, teremos,

portanto, que examinar não apenas o impacto da natureza e da Lógica, mas

igualmente as técnicas de argumentação persuasiva que são eficazes no

interior dos grupos muito especiais que constituem a comunidade dos

cientistas. (Idem, p. 128. Grifo meu)

A questão passa então a se revestir de aspectos de conversão e de fé no novo

paradigma, entendido como uma nova verdade revelada. É um novo discurso dotado de

argumentos suficientemente persuasivos que terá que ser assimilado pela comunidade. Volto

ao diálogo com Foucault (1999, p. 16), quando ele discute os deslocamentos ocorridos na

produção da verdade:

Essa divisão histórica deu sem dúvida sua forma geral à nossa vontade de saber.

Mas não cessou, contudo, de se deslocar: as grandes mutações científicas podem

talvez ser lidas, às vezes, como consequências de uma descoberta, mas podem

também ser lidas como a aparição de novas formas na vontade de verdade.

Assim também podemos dizer que, no processo de institucionalização da escola,

produziram-se discursos que ganharam status de verdade e que, ao serem incutidos nos atores desta

cena, tornaram-se paradigmas nem sempre explícitos (ou, dito de outro modo: muitas vezes ocultos).

Embora possam ser apontadas críticas e questões ao pensamento kuhniano (que

não cabem no espaço deste trabalho), interessa-nos destacar neste autor esta ideia de um

paradigma que orienta o olhar do observador. Esta ideia é útil para tentarmos enxergar alguns

dos aspectos que permeiam o espaço da instituição escolar. Podemos pensar, a partir de suas

pesquisas, numa extrapolação para o modo de pensar que orienta o trabalho docente. Encontro

em Nudler respaldo para esta forma de propor nossa reflexão. Segundo a autora (1975):

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Extrapolando – embora se force a intensão original do autor – esse

pensamento para o domínio da vida cotidiana, podemos dizer que cada

indivíduo possui um paradigma para se ligar ao mundo; um esquema

categorial “existencial”; um sistema de referências que organiza sua

percepção, interpretação e valoração do mundo.

Creio que as considerações anteriores já nos permitem questionar alguns pilares

que sustentam nosso edifício escolar. Começando pelo princípio da racionalidade ao qual se

tem, na escola, empenhado tanto apreço. A discussão tão acirrada entre as ciências exatas e as

ciências humanas (tão inexatas) e o desejo que, nos seus inícios, orientou esta última a buscar

o crivo e o status de ciência exata, têm sofrido reviravoltas importantes na pós-modernidade.

As formulações de Silva (1994, p. 256) ajudam a repensar estas questões no contexto da pós-

modernidade. Segundo ele:

As perspectivas pós-modernista e pós-estruturalista, em conjunto, colocam

em questão esse predomínio de uma Razão, universal e abstratamente

definida. Nessa visão, a noção predominante de Razão é encarada como

produto de uma construção histórica que deve suas características às

condições da época em que foi desenvolvida e não a uma essência humana

abstrata e universalizante.

O pensamento de Boaventura Souza Santos também nos ajuda a compreender o

modo como as mudanças vêm ocorrendo na pós-modernidade. Esse autor analisa os movimentos

pelos quais tem passado o estudo das humanidades, descrevendo duas grandes correntes: uma de

filiação positivista a qual “consistiu em aplicar, na medida do possível, ao estudo da sociedade

todos os princípios epistemológicos e metodológicos que presidiam ao estudo da natureza desde o

século XVI” (Santos, 2010, p. 33). A segunda corrente rompe com a anterior e “consistiu em

reivindicar para as ciências sociais um estatuto epistemológico e metodológico próprio, com base

na especificidade do ser humano e sua distinção polar em relação à natureza”.

Já não estamos mais (na pós-modernidade) preocupados em fazer das ciências

humanas uma cópia do modelo das exatas. Mas, talvez mais impactante do que este rompimento

com os cânones da ciência clássica, seja o fato de que ela própria (nossa velha e boa ciência

clássica), está em crise. Assentada na formulação de leis que se obtém a partir da observação do

real, a ciência moderna foi fundada na convicção de que esta observação se faz a partir de um

ponto exterior ao objeto, como um olhar neutro e equidistante, um olhar sem tempo nem espaço.

Um olhar embasado no pressuposto da ordem e estabilidade do mundo, na percepção de que

determinadas causas implicam em determinadas consequências sempre inalteráveis, na ideia de

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que o passado se repete no futuro (Santos, idem, p. 30) e que o tempo seria algo desprezível para

determinar os fenômenos naturais. A ciência clássica se dedicou desde os seus inícios a estudar a

natureza segundo a perspectiva da reversibilidade, ou seja, dado um fenômeno, se forem repetidas

as mesmas condições iniciais, tudo deverá se repetir. Ainda citando Santos (idem, p. 30 e 31):

Segundo a mecânica newtoniana, o mundo da matéria é uma máquina cujas

operações se podem determinar exatamente por meio de leis físicas e

matemáticas, um mundo estático e eterno a flutuar num espaço vazio, um

mundo que o racionalismo cartesiano torna cognoscível por via da sua

decomposição nos elementos que o constituem.

O que a ciência da pós-modernidade está a nos mostrar é que este seu fundamento da

reversibilidade se encontra em transformação. O químico russo Ilya Prigogine (Prêmio Nobel de

Química de 1977) é uma dentre as muitas vozes que têm apontado novas perspectivas para a

ciência, trazendo a questão da irreversibilidade e, portanto, do tempo como aspecto constitutivo

do seu campo de estudos. Antes desprezado como ilusão, “o tempo é ‘real’ e a irreversibilidade

cumpre, na natureza, um papel constitutivo fundamental” (Prigogine, 1996, p. 38).

O ideal de um saber real e objetivo enfrenta na pós-modernidade um abalo

provocado pela introdução do tempo (e com ele a história) como elemento constitutivo do real

e, portanto, “já não podemos continuar falando unicamente de ‘leis universais extra-

históricas’, mas que, além disso, temos que acrescentar o ‘temporal e o local’; entretanto, isto

implica afastar-se dos ideais da ciência tradicional” (idem, 1996, p.40).

As consequências destas transformações do pensamento não podem ser ignoradas

e produzem impactos na compreensão da teoria. A crise do paradigma da reversibilidade

introduz o tempo, a história e o sujeito na cena da produção de conhecimentos e nos permite

reconhecer a possibilidade de superação da dicotomia entre ciências naturais e ciências

sociais. Permite-nos questionar o status das ciências naturais, cuja suposta racionalidade seria

a única forma de produzir verdades inequívocas.

A possibilidade de narrar objetivamente aquilo que se observa de um ponto de

vista exterior ao objeto tem se mostrado uma tarefa problemática, uma vez que um sujeito

neutro e equidistante dos objetos que observa e descreve (princípio fundante do pensamento

científico) está sob questionamento e, mais que isso, tem-se a partir de agora a compreensão

de uma impossibilidade de dissociação entre este mesmo sujeito e seu objeto.

Antoni J. Colom (um professor espanhol que tem se dedicado a estudar as novas

teorias surgidas na pós-modernidade) nos atenta para o problema da narrativa mesma da

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realidade, da comunicação científica, colocando em questão o problema de nossa própria

percepção do real. Segundo Colom (2004)

... o problema talvez seja mais profundo e complexo do que o que foi insinuado

até agora, já que possivelmente não se trate apenas de um problema de

comunicação interindividual, mas de nossa própria capacidade de percepção; ou

seja, o que vemos é realmente o que existe ou é unicamente o que percebemos?

Ou, o que seria ainda pior para nossas intenções de transmissão do saber: a

realidade é como se nos apresenta ou, simplesmente, percebemos uma

manifestação aparente dela? Enfim, tudo é como nos parece ser?

A ciência clássica (se é que assim a podemos chamar, dada toda a discussão sobre os

discursos e a vontade de verdade que pudemos vislumbrar em nosso estudo) e sua forma de

produzir discursos de verdade estão em uma crise que impacta a própria forma de produzir novos

conhecimentos. A simples descrição do “real” como aquilo que é, a crença de que por meio do

discurso científico podemos narrá-lo e determinar suas causas e dominar seus efeitos, sofre

profundas mudanças na pós-modernidade e introduz no debate o problema sobre a forma e as

condições históricas em que tal ou tal objeto foi analisado e determinados saberes (teorias, leis)

foram constituídos. A produção do conhecimento, antes vista como fruto de uma racionalidade

neutra e superior, vê-se agora atravessada pelo tempo, pelo sujeito, pelo acaso e pelas questões

do poder e das dinâmicas de hegemonia de um determinado contexto no qual este conhecimento

foi produzido. Passa a ter maior evidência o fato de que os conhecimentos são transitórios e

mutáveis. Chamo ao debate outro autor que ajuda a explicitar as consequências que advém da

crise dos paradigmas. Segundo Plastino (2010, p. 37):

A irrupção do tempo, da história e do sujeito derruba assim não apenas a

concepção do real-objetivo (como algo que é), mas também invalida a

concepção do saber como reflexo disso, capaz de ser pensado omitindo-se as

condições históricas de sua produção. A irrupção do sujeito, isto é, da

história, ou seja, do novo, do não determinado, impõe a mudança radical na

compreensão da teoria. Esta não mais pode ser considerada como um olhar

neutro sobre aquilo que é, mas deve ser pensada como uma prática social

coconstitutiva daquilo que advém, prática esta intimamente entrelaçada ao

contexto global da sociedade na qual ela é produzida.

Talvez o leitor esteja pensando que tudo isso que acabo de apresentar sejam ideias

já bastante conhecidas. A primeira edição do livro de Thomas Kuhn é de 1962, o químico

Prigogine teve seu prêmio Nobel em 1977, o filósofo e historiador das ideias Michel Foucault

publicou suas obras nas décadas de 1960 e 1970, Boaventura Souza Santos publicou o

Discurso sobre as ciências em 1985. Para ser sincera, não sei se o leitor se questiona sobre

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isto, mas eu mesma estou me perguntando. De fato, toda esta discussão em torno da ciência,

dos paradigmas e das crises que estão postas na pós-modernidade já é bastante discutida.

Porém, no meu entender, tudo isto ainda permanece no campo das discussões teóricas, no

âmbito das produções acadêmicas. Minha própria experiência de formação de professores tem

me mostrado que, em muitos casos, tudo isso se passa em altas esferas das elites de

intelectuais e ainda não chegou nem ao espaço de formação de professores e muito menos ao

espaço escolar. A própria compreensão da ciência moderna e os esforços que ela realizou no

sentido de produzir conhecimentos (antes mesmo de adentrarmos na discussão sobre a ciência

na pós-modernidade) tem uma compreensão bastante superficial no ambiente pedagógico.

Podemos dizer, mesmo arriscando uma generalização, que os professores não são

formados nem mesmo para aprender e entender como funciona a ciência. Nossa formação

inicial está muito mais voltada para questões do desenvolvimento infantil, aspectos da

sociologia que dizem respeito ao papel da escola na sociedade, história da educação... O

pedagogo e a pedagoga passam seus anos de formação universitária lendo, estudando e

reproduzindo os textos das ditas ciências aplicadas à educação, mas não realizam nenhum

estudo ligado diretamente às áreas das ciências naturais. Ou seja, o pedagogo (refiro-me ao

estudante que se prepara para atuar na Educação Infantil e no Ensino Fundamental I) irá

ensinar às crianças as noções de ciência que se encontram organizadas e resumidas nos

currículos escolares, sem ter ele mesmo uma experiência científica prática. Sua formação não

está voltada para formá-lo e prepará-lo para o exercício da ciência e seus métodos e nem

mesmo para aprender conhecimentos específicos de qualquer área do conhecimento (da

Literatura à Matemática, da Filosofia à Geografia). O professor terá apenas algumas

orientações gerais sobre como ensinar estas disciplinas sem, contudo, realizar um maior

aprofundamento em qualquer uma delas. O passeio pela história deve ter nos ajudado a ver o

quanto a concepção de Comenius, seu livro didático, sua proposta de um professor como

mero repetidor de uma “partitura” se encontra presente no modelo de formação do pedagogo.

Ao discutir a crise da educação nos Estados Unidos dos anos 1950, a filósofa

Hannah Arendt destaca três pressupostos básicos que estariam na origem dessa crise. Para o

tema que estamos discutindo aqui, interessa-nos o segundo pressuposto apresentado por

Arendt, o qual revela de certa forma características gerais da formação do educador.

O segundo pressuposto básico que veio à tona na presente crise tem a ver

com o ensino. Sob a influência da Psicologia moderna e dos princípios do

Pragmatismo, a Pedagogia transformou-se em uma ciência do ensino em

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geral a ponto de se emancipar inteiramente da matéria efetiva a ser ensinada.

Um professor, pensava-se, é um homem que pode simplesmente ensinar

qualquer coisa; sua formação é no ensino, e não no domínio de qualquer

assunto particular. (Arendt, 2003, p. 231)

Embora esteja se referindo a efeitos surgidos mais recentemente, pudemos

constatar que eles remontam a tempos um pouco mais distantes e surgem das tentativas de

constituir as ciências humanas segundo o modelo das ciências exatas, surgem da tentativa

de racionalizar o fazer pedagógico.

Nossa formação inicial não tem dado conta nem de aprofundar uma certa gama de

conhecimentos e nem sequer de nos levar a compreender como estes conhecimentos foram

construídos – a questão do método científico – ao longo da história. Temos no pensamento de

Jean Piaget (1970, p. 39) uma explicitação dos questionamentos que tento expor aqui:

No curso dos últimos anos cada vez mais se tem insistido – e não

deixaremos de repeti-lo – na lacuna fundamental da maioria dos métodos de

ensino que, numa civilização em grande parte baseada nas ciências

experimentais, negligencia quase totalmente a formação do espírito

experimental entre os alunos.

Negligencia-se a formação do espírito experimental entre os alunos e,

principalmente entre os estudantes de pedagogia. E nos vemos a braços com a tarefa de

compreender a crise da ciência sem mesmo termos compreendido um pouco melhor a ciência

antes dessa crise, a ciência da modernidade.

Nossa formação inicial se assenta na ideia de que um professor “pode

simplesmente ensinar qualquer coisa” (Arendt, 2003, p.231) pois a ele cabe somente

reproduzir os conhecimentos produzidos pelos cientistas ou pelos estudiosos e autores dos

diferentes campos do conhecimento. Mas agora, antes mesmo de termos conseguido avançar

numa pedagogia que dê conta de colocar na sala de aula uma dinâmica que permita a

experimentação e o espírito científico, os educadores observam, talvez sem compreender mais

a fundo, a discussão que coloca em questão o próprio sentido formativo do conhecimento, sua

transitoriedade. E talvez fique a pergunta: se ele é tão transitório, por que ensiná-lo?

Fica-nos ainda outra questão: de que forma isso tem a ver com a sala de aula? Que

consequências toda esta discussão pode trazer para nossas práticas pedagógicas concretas?

Para o nosso trabalho interessa de toda esta discussão a reflexão sobre o trabalho educativo.

Sendo o educar uma atividade humana, que acontece entre humanos, que se investiu de, que

reivindicou para si um estatuto de racionalidade científica, a crise da ciência deve repercutir

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neste campo, deve trazer para a nossa área de atuação questionamentos úteis e consequências

ainda por serem avaliadas. Se a própria ciência moderna, que tanto defendeu uma objetividade

isenta e equidistante em relação aos fenômenos aos quais se dedica, vê-se às voltas com uma

crise que introduz a subjetividade como algo determinante e não mensurável, será que ainda

poderemos continuar a pensar em fórmulas racionalizadas de transmitir conhecimentos e obter

aprendizagem que, como vimos, nada têm de efetivamente experimental e científico?

Por outro lado, toda esta discussão nos permite questionar a racionalidade tão

propugnada pela modernidade, permite-nos compreender as insuficiências que são próprias do

modelo racionalista ao esquivar-se dos problemas que a complexidade impõe. Seja pelo fato

de que a ciência moderna chega à sala de aula como farsa encenada pelo livro didático e pela

exposição dogmática do saber, seja pelo fato de que a ciência moderna vê-se em crise na sua

forma mesma de produzir o conhecimento, sem dúvida tudo isto nos leva a perceber que

estamos diante de uma crise que afeta e abala um dos pilares da instituição escolar, o qual nos

conduziu a pensar na racionalidade técnica e científica como axioma da ação pedagógica.

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A “equidade e produtividade” do modelo: mais questões em aberto

Nosso estudo histórico deve ter servido para mostrar o quanto a instituição escolar

teve entre suas bases de sustentação o surgimento do capitalismo industrial. Este complexo

processo, surgido a partir das revoluções burguesa e industrial, promoveu impactantes

transformações econômicas e sociais que afetam de forma indelével as visões e as práticas

educativas na instituição escolar.

As alterações advindas com o capitalismo industrial, se por um lado trouxeram

como consequência a produção de bens de consumo e ampliaram as facilidades e

comodidades na vida contemporânea (pense-se por exemplo na ampliação da produção e

circulação de alimentos e mercadorias, e na ampliação do acesso às infraestruturas básicas

como água e energia elétrica), por outro se fundamentam na submissão de massas numerosas

de trabalhadores às leis do capital.

Uma profunda transformação é operada na sociedade moderna em função das

enormes alterações causadas por este sistema produtivo. Em outras palavras, o trabalho

humano iria se transformar de forma radical: do artesão ao operário, o capitalismo iria

transformar a própria relação do homem com seu trabalho e com o produto de seus esforços.

O trabalho como esforço do homem para transformar a natureza, imprimindo nela

sua força, sua intencionalidade e sua expressão pessoal sofreria perdas nestas características

ao se transformar – em função dos ditames do modo de produção capitalista industrial – em

trabalho em série, dividido em etapas que não se comunicam entre si e sobre as quais o

trabalhador deixa de possuir o controle. O modelo de produção capitalista, ao transformar o

trabalho em tarefa, em etapa estanque e mecânica da produção, esvazia-o de seu significado,

retira dele seu caráter de realização humana e de manifestação do humano no mundo. O

desvelamento das contradições inerentes às relações entre capital e trabalho, a produção de

maiores desigualdades em função da exploração da mais valia, tiveram no grande filósofo

alemão, Karl Marx (1818 – 1883) sua melhor explicitação (Marx, 1965).

Temos também em Hannah Arendt o aprofundamento da análise sobre os

problemas colocados pela sociedade capitalista. Enfrentando as questões da condição humana

e os meios que a humanidade utiliza para superar e suprir as necessidades da vida, esta autora

introduz o conceito de labor humano e problematiza:

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A revolução industrial substituiu todo artesanato pelo labor; o resultado foi

que as coisas do mundo moderno se tornaram produtos do labor, cujo destino

natural é serem consumidos, ao invés de produtos do trabalho, que se que se

destinam a ser usados. (Arendt, 2001, p. 137)

Sua análise avança para denunciar o problema que as transformações nas relações

de trabalho implicam. Ainda segundo Arendt (idem, p. 147):

Um dos óbvios sinais do perigo de que talvez estejamos a ponto de realizar o

ideal do animal laborans é a medida em que toda a nossa economia já se

tornou uma economia de desperdício, na qual todas as coisas devem ser

devoradas e abandonadas quase tão rapidamente quanto surgem no mundo, a

fim de que o processo não chegue a um fim repentino e catastrófico.

O século XX veria este modelo se espalhar por todo o planeta, colocando-nos nos

dias atuais diante do fenômeno da globalização. Iludidos pelas palavras de ordem da revolução

francesa – as tão sonhadas conquistas da liberdade, igualdade e fraternidade ou pelas promessas

de um bem estar social que decorreria do aumento da produção e distribuição de mercadorias –,

vemos surgir um sistema que, difundindo o mito da “aldeia global”, cria em nosso imaginário a

impressão de um discurso único e de um progresso para todos, mas que permanece atrelado aos

interesses hegemônicos de uma minoria (agora não mais restrita a esta ou aquela nação) que

impõe a lógica soberana do lucro, um pequeno grupo de atores globais que atua em seu próprio

benefício para uma concentração de riquezas talvez nunca antes experimentada na história.

A crise e a problemática das desigualdades e uma certa forma de propagandear o

fenômeno da globalização têm em Milton Santos análises acuradas que ajudam a

compreender a presença de uma ideologização maciça, que no mundo atual se torna o que este

autor chamou de “fabulação” (Santos, 2000, p. 9).

O mundo contemporâneo vem se organizando não mais em torno de potências

nacionais (que, até o início da segunda metade do século XX, exerciam seu domínio,

controlando determinadas áreas do globo e imprimindo seu ritmo, orquestrando a produção

nas diferentes regiões segundo a lógica da exploração da mais-valia e disputando os espaços

para a comercialização dos produtos). Segundo Santos, temos uma nova organização que se

dá em escala mundial e em torno de um motor único que “se tornou possível porque nos

encontramos em um novo patamar da internacionalização, com uma verdadeira mundialização

do produto, do dinheiro, do crédito, da dívida, do consumo, da informação” (idem, p. 15).

A competição se torna concorrência feroz, transmutada em competitividade.

Ainda com Santos (idem, p. 15):

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A atual competitividade entre as empresas é uma forma de exercício dessa

mais-valia universal, que se torna fugidia exatamente porque deixamos o

mundo da competição e entramos no mundo da competitividade. O exercício

da competitividade torna exponencial a briga entre as empresas e as conduz

a alimentar uma demanda diuturna de mais ciência, de mais tecnologia, de

melhor organização, para manter-se à frente da corrida.

O modelo que vivemos, regulado pela economia do lucro e pela ilusão do consumo

como fonte de satisfação e resposta para o problema da existência, revela a precariedade de soluções

que não enfrentem questões estruturais. Instala-se uma crise que é permanente e estrutural, mas que

se manifesta ora numa, ora noutra região. Ainda segundo Santos (opus cit, p. 17):

Então, neste período histórico, a crise é estrutural. Por isso, quando se

buscam soluções não estruturais, o resultado é a geração de mais crise. O que

é considerado solução parte do exclusivo interesse dos atores hegemônicos,

tendendo a participar de sua própria natureza e de suas próprias

características.

Este modelo econômico leva a um acirramento na exploração das riquezas do

planeta (materiais ou humanas) que conduz a crises que, longe de serem momentâneas,

inscrevem-se no cerne do próprio modelo. E o escândalo da situação planetária que

presenciamos denuncia o caráter de inadequação estrutural do modelo. O problema ecológico

tem na análise do filósofo Félix Guatari (1990, p. 7) uma visão que nos obriga a pensar:

O planeta Terra vive um período de intensas transformações técnico-

científicas, em contrapartida das quais engendram-se fenômenos de

desequilíbrios ecológicos que, se não forem remediados, no limite, ameaçam

a vida em sua superfície. Paralelamente a tais perturbações, os modos de

vida humanos individuais e coletivos evoluem no sentido de uma

progressiva deterioração. As redes de parentesco tendem a se reduzir ao

mínimo, a vida doméstica vem sendo gangrenada pelo consumo da mídia, a

vida conjugal e familiar se encontra frequentemente “ossificada” por uma

espécie de padronização dos comportamentos, as relações de vizinhança

estão geralmente reduzidas a sua mais pobre expressão...

E se antes vimos que a ciência, em larga medida, conciliou-se com a igreja (adequando

seus discursos para se beneficiar da hegemonia que ela representava), nós a vemos agora sendo

colocada a serviço do capital. O desenvolvimento do “progresso científico” se atrelar aos interesses

das grandes corporações globais, que reclamam mais e mais inovações técnicas que permitam uma

exploração cada vez maior daquilo que Milton Santos chamou de mais-valia global.

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Quando, na universidade, somos solicitados todos os dias a trabalhar para

melhorar a produtividade como se fosse algo abstrato e individual, estamos

impelidos a oferecer às grandes empresas possibilidades ainda maiores de

aumentar sua mais-valia. Novos laboratórios são chamados a encontrar as

novas técnicas, os novos materiais, as novas soluções organizacionais e

políticas que permitam às empresas fazer crescer a sua produtividade e o seu

lucro. (Santos, op. cit., p. 15)

E a fábula da “aldeia global” dissimula o fato de que o mundo se torna menos unido,

mais desigual, povoado por uma cidadania que, longe de se aproximar de uma convivência

universal mais solidária, perde-se no individualismo, amortece-se no consumismo. A vida no

mundo contemporâneo se apoia na exacerbação do individualismo consumista.

Na pós-modernidade, nesse nosso mundo contemporâneo, operou-se uma

libertação das tradições antigas que subjugavam o indivíduo, emancipando-o e o liberando das

concepções que o aprisionavam, por meio do medo e da culpa, ao pensamento religioso. O

estudo da História nos ajuda a compreender o processo de liberação experimentado a partir da

revolução científica. A este processo o influente historiador das religiões Mircea Eliade (1907

– 1986) chamou de dessacralização do homem e do mundo. Segundo ele “o homem moderno

a-religioso assume uma nova situação existencial: reconhece-se unicamente sujeito agente da

História, e recusa todo o apelo à transcendência” (Eliade, 1956, p. 210).

E, no entanto, liberado dos mitos e superstições que o jugo do pensamento

religioso impunha, o homem moderno perde a sensação de conforto e tranquilidade que a

resposta transcendental lhe proporcionava, na medida em que fornecia uma solução exemplar

para as questões e angústias da existência.

Solução exemplar, não somente porque é indefinidamente repetível, mas

também porque é considerada de origem transcendental e, por consequência,

valorizada como revelação recebida de um outro mundo, trans-humano. A

solução religiosa não somente resolve a crise, mas ao mesmo tempo torna a

existência “aberta” a valores que já não são contingentes nem particulares,

permitindo assim ao homem ultrapassar as situações pessoais e, no fim de

contas, o acesso ao mundo do espírito. (idem, p. 217).

Liberado, mas também alijado da resposta teológica e incapaz de encontrar ou

produzir respostas totais que ultrapassem as situações pessoais, vemos o individualismo eivado

de hedonismo surgir como regra de vida nas sociedades contemporâneas. A referência a si

próprio e à satisfação das necessidades/desejos pessoais se alia, no mundo moderno, ao modelo

de produção e circulação de mercadorias que nos relega à condição de homens/mulheres-massa.

Aprendemos por meio da mídia mundializada quais são os comportamentos capazes de nos

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tornarem aceitos e felizes. O hedonismo da sociedade pós-moderna exacerba a máxima do

“mais prazer, tempo livre e consumo, menos trabalho, esforço e produção”.

O mundo burguês do século XX com seu “homem novo” inaugura o fenômeno do

homem-massa, o qual perde suas características de interioridade e de espiritualidade, esquecendo-se

ou se livrando do passado, mas frequentemente caindo numa rebeldia inócua ou num

embrutecimento vazio que se inebria no consumo como medida da felicidade. Nosso mundo é o

mundo do consumo, nossa sociedade é a sociedade de consumidores. Mas, numa estranha pirueta,

para que o indivíduo da sociedade de consumo possa se tornar sujeito, ele antes deve se tornar

mercadoria, desenvolvendo habilidades atraentes ao mercado de trabalho. Esvazia-se assim, a

dignidade do trabalho ao tornar o indivíduo mais um produto que espera ser consumido no mercado.

No livro Vida para consumo, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman (2008, p. 17 e

18) aponta para as novas características da mão-de-obra que são exigidas pelo capital. A busca

por um empregado mais flexível e disposto a todo e qualquer esforço para continuar sendo visto

e apreciado como mercadoria desejável se tornou corrente. Este novo empregado deve ser

alguém livre de vínculos e ligações emocionais, pronto a se moldar às mudanças de qualquer

ordem que se imponham na realização do trabalho, alguém que muda de emprego com

facilidade e que também não causará problemas à empresa quando tiver que ser descartado.

Instaura-se uma crise no sujeito cartesiano (aquele do “penso logo existo”) a quem

se atribuía certa soberania na relação com o objeto de consumo. E podemos entender com

Bauman (idem, 20) que:

Na sociedade de consumidores, ninguém pode se tornar sujeito sem primeiro

virar mercadoria, e ninguém pode manter segura sua subjetividade sem

reanimar, ressuscitar e recarregar de maneira perpétua as capacidades

esperadas e exigidas de uma mercadoria vendável.

E a escola, em todo este contexto, desempenha mais e mais seu papel de reprodutora

das relações sociais e econômicas que se estabelecem neste modelo. E exige-se da escola que

trabalhemos para formar “mercadorias” aptas a serem consumidas no mercado de trabalho.

Das análises que pudemos fazer sobre este pilar no qual se assenta nossa instituição

escolar – o capitalismo industrial e globalizado –, a partir do diálogo com autores como Marx, Arendt,

Santos, Guatari, Eliade, Bauman, mas que poderíamos acrescentar muitos outros, salta mais um

questionamento que o trabalho de Bourdieu e Passeron suscita: o problema das relações entre a Escola

e as classes sociais. Uma vez institucionalizado o sistema de ensino, este atuará para se perpetuar para

tanto deve prestar contas a quem o mantém. Dito de outro modo: como pudemos apontar pelo estudo

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da História, a escolarização surge como demanda de uma classe – a burguesia – que vê nela o

instrumento para formação dos trabalhadores. Em Bourdieu e Passeron (1992, p. 64) temos que:

Todo sistema de ensino institucionalizado (SE) deve as características

específicas de sua estrutura e de seu funcionamento ao fato de que lhe é preciso

produzir e reproduzir, pelos meios próprios da instituição, as condições

institucionais cuja existência e persistência (auto-reprodução da instituição) são

necessários tanto ao exercício de sua função própria de inculcação quanto à

realização de sua função de reprodução de um arbitrário cultural do qual ele não

é o produtor (reprodução cultural) e cuja reprodução contribui à reprodução das

relações entre os grupos ou as classes (reprodução social).

O trabalho destes autores nos ajuda a compreender o modo de inculcação da

cultura dominante – que no mundo atual se manifesta pelo capitalismo globalizado – como

cultura legítima, cabendo, neste contexto, à escola sua reprodução e legitimação. Legitima-

se a competitividade do sistema, e a exclusão daqueles que não partilham de um mesmo

capital cultural se torna decorrência “natural”, dissimulando sua arbitrariedade e

perversidade. É esta invisibilidade dos mecanismos de exclusão que asseguram sua

reprodutibilidade. Ainda com Bourdieu e Passeron (idem, p. 218)

Assim, numa sociedade em que a obtenção dos privilégios sociais depende

cada vez mais estreitamente da posse de títulos escolares, a Escola tem apenas

por função assegurar a sucessão discreta a direitos de burguesia que não

poderiam mais se transmitir de uma maneira direta e declarada. Instrumento

privilegiado da sociodicéia burguesa que confere aos privilegiados o privilégio

supremo de não aparecer como privilegiados, ela consegue tanto mais

facilmente convencer os deserdados que eles devem seu destino escolar e

social à sua ausência de dons ou de méritos, quanto em matéria de cultura a

absoluta privação de posse exclui a consciência da privação de posse.

Toda esta reflexão nos permite questionar as tão propaladas “equidade e

produtividade” deste modelo. No mundo competitivo e no qual a exclusão já se coloca de

antemão como o destino naturalizado para uma enorme parte da população, que lugar existe

para o diferente, para a Diferença? E, mais ainda, se estamos atados, mergulhados mesmo

neste modelo econômico, que naturaliza a desigualdade e instrumentaliza a escola para a

reprodução deste estado de coisas, que lugar existe para se pensar e fazer uma outra escola?

Para criar outras relações no espaço educativo?

Distancio-me um pouco do debate com os tantos e tão importantes intelectuais e

pensadores de nosso tempo, sem deixar, no entanto, de reconhecer a pertinência, importância

e necessidade de suas reflexões, e volto-me à matéria viva de minha própria experiência que,

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no partilhar cotidiano com tantos educadores, coloca-me de chofre uma pergunta (que eu

mesma não esperava): mas que raio é isto tudo? Ouço suas vozes que me indagam: O que isso

tudo tem a ver com a sala de aula e os meus alunos? Por que uma simples professora precisa

saber disso tudo? Não basta ser boa com crianças? É novamente um raio que me atinge. E me

devolve ao dia a dia, ao pequeno de nossas lidas diárias que, muitas vezes, afastam-nos das

reflexões mais amplas, cercam-nos pela correria e pelo imperativo do agir. E me dou conta de

que nossa formação quase nunca dá conta de religar os saberes criados no âmbito da produção

teórica, científica e intelectual com a experiência concreta na escola.

E, assim como nossa formação dos educadores é falha na compreensão da ciência e

dos seus métodos de produção de conhecimento, é falha também na compreensão das relações

mais amplas da sociedade, nos seus mecanismos de produção e reprodução dos poderes que se

encontram na base da desigualdade social e é falha, ainda, em propiciar uma articulação destes

saberes com as práticas que se desenvolvem na vida da escola, no nosso dia a dia.

Aqui neste trecho tenho enfocado a problemática das relações econômicas e sociais

que permeiam nosso mundo. Mas nem mesmo uma visão sobre o que seja o capitalismo, a

democracia ou as correlações entre as forças políticas e econômicas que regem o mundo

contemporâneo encontra uma compreensão mais crítica e acurada na formação inicial do

pedagogo. O próprio entendimento sobre o capitalismo e sua lógica assentada na produção do

lucro muito frequentemente não encontra uma explicitação e análise que possa contribuir para

uma tomada de consciência sobre o nosso modo de estar e agir no mundo. Naturaliza-se a vida

de e para o consumo como a melhor consequência do progresso humano e as ideologias que se

colocam como alternativas (o socialismo, o comunismo) são vistas como baseadas em sistemas

fechados (ditatoriais mesmo) que retiram as liberdades individuais. E mesmo quando somos

alvo de uma formação mais crítica, que nos convida à leitura de teóricos que (como os autores

citados acima) produziram interpretações abrangentes, em nossa formação este conhecimento

se apresenta fragmentado e desarticulado da realidade (ou pelo menos de nossa realidade mais

concreta da sala de aula, dos alunos, da escola). As autoras Garcia e Alves (2000, p. 84 e 85)

atentam para esta questão, discutindo as reações dos estudantes quando solicitados a articular os

conteúdos aprendidos nas disciplinas fundamentais da educação e suas observações de estágio.

Segundo elas: “para eles são fragmentos de um conhecimento desarticulado que não lhes parece

ter qualquer sentido, pois não os ajuda a compreender o real”.

As últimas observações deverão ser retomadas nas conclusões deste trabalho. Para o

momento, interessa-nos destacar os problemas levantados pela análise que fizemos, ainda que

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geral, do capitalismo, suas crises consecutivas e que se constituem em uma crise estrutural.

Interessa-nos deixar como questão o quanto achamos aceitável este modelo cujas características

se ligam ao esvaziamento da dignidade do trabalho, suas características que produzem

desigualdade, um sistema que atua como explorador/destruidor das riquezas naturais do planeta

e que, em última análise, transforma o homem em mercadoria. Dito de outro modo, as

observações que fizemos sobre o sistema econômico sob o qual vivemos tiveram por objetivo

descontruir sua lógica oculta e colocar em questão sua pretensa “equidade e produtividade”.

Porque a tarefa de educar, mesmo quando se age tentando cobrir-se com um manto de

uma suposta neutralidade, revela-se impregnada de nossas concepções de homem e de mundo, de

ideologia e valores, é uma tarefa que envolve nosso posicionamento perante o mundo.

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E a infância? O que é ela no mundo atual?

Nosso estudo, ao retomar as análises de historiadores como Ariés, Manacorda, Varela,

Hamilton, Julia e Cambi, ajudou a explicitar a importância do surgimento da noção de infância na

constituição da escola, mostrando que é necessário compreender a interdependência entre infância e

escola. À construção de uma percepção de uma etapa diferenciada da vida humana correspondeu o

isolamento desta população em espaços destinados à sua “civilização” – a escola. Varela e Alvarez-

Uria (1992, p. 78) destacam este caráter de enclausuramento e moralização que os projetos

religiosos (tanto católico quanto protestante) tiveram e, ainda, as perspectivas higienistas às quais se

vinculavam e que se difundiram a partir do século XVII. Segundo eles:

O isolamento converte-se assim num dispositivo que contribui para a

constituição da infância ao mesmo tempo que o próprio conceito de infância

ficará associado de forma quase natural à demarcação espaço-temporal.

(Grifo meu na palavra isolamento).

Muito lentamente iria se constituir esta separação entre infância e mundo adulto,

que seria também o seu isolamento do mundo adulto, da vida comum de todos, ou o que Ariés

chamou de quarentena e que colocaria a escola como espaço e meio de educação.

Destaca-se ainda do estudo da História que este processo não se deu de forma linear –

não poderíamos falar em uma escolarização institucional e difundida na sociedade até o surgimento do

estado moderno. Cumpre ressaltar, ainda, que o aparecimento da escola não se deu como continuidade

ou como evolução lenta e gradual em direção a formas mais aperfeiçoadas de organização social.

Apoio-me em Hamilton, em seu ensaio Notas de lugar nenhum (2001), para com ele enfatizar que “a

história da escolarização não é idêntica à história da educação” (p. 51). Depreendo, deste estudo, as

manobras colocadas em ação pelo pensamento do liberalismo econômico, que defendiam o Estado

como responsável pela criação e manutenção de instituições capazes de treinar e civilizar a população

– mas que, em última análise, atrelaram-se aos seus interesses econômicos – apropriando-se de

discursos da tradição (Comenius e outros) para reforçar a ilusão de uma instituição universal e eterna

(Varela e Alvarez-Uria, idem, p. 68), uma instituição que, supostamente, sempre existira:

Se a Escola existiu sempre e por toda parte, não só está justificado que

continue existindo, mas também que sua universalidade e eternidade a fazem

tão natural como a vida mesma, convertendo, de rebote, seu questionamento

em algo impensável ou antinatural. Isso explica por que as críticas mais ou

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menos radicais à instituição escolar são imediatamente identificadas com

concepções quiméricas que levam ao caos e ao irracionalismo.

Naturalizou-se no processo histórico, nossa percepção da infância. Uma vez criada

essa noção e, estando ela ligada à construção de espaços para o seu confinamento, naturalizou-se

também a compreensão de que “lugar de criança é na escola e escola é lugar de criança”. Mas

como não discutir a questão da infância se nossa tarefa é conviver com ela e educá-la, na escola?

Retomo aqui algumas ideias que apresentei num artigo intitulado Proposta para

uma escola deste milênio (publicação eletrônica sob a coordenação da professora Mantoan) que

podem contribuir para aprofundar esta temática. Do artigo retomo um aspecto que não pode ser

esquecido, o fato de que o tempo de maturação e de dependência que nós, seres humanos, temos

ao nascer é maior do que em qualquer outra espécie. A plasticidade de nosso cérebro, nossa

biologia humana é a mais incompleta ao nascermos. Temos um longo período de dependência

de outro ser humano para garantir nossa sobrevivência e poderíamos lembrar os mitos de

meninos-lobos para dizer que só nos tornamos humanos no convívio com humanos.

Mas, para além deste período em que somos totalmente dependentes, estende-se

esta criação da cultura humana que é a infância. Nossa cultura humana, com o objetivo de

perpetuar-se, prepara as novas gerações e as introduz ao nosso modo de vida. E esse tempo de

preparação se torna mais longo à medida em que cresce o cabedal de conhecimentos e

comportamentos construídos por essa mesma cultura. É no pensamento de Arendt que

encontramos a inspiração para essas reflexões, quando ela aponta para o fato de que a criança

humana nasce para a vida nos seus aspectos naturais e biológicos, nasce para sobreviver como

continuidade natural da espécie, mas, também, nasce para um mundo de construções

simbólicas, de condutas esperadas, de cultura. Assim, a autora nos introduz a uma das questões

essenciais da educação ao perguntar: “por que educamos?” (Arendt, 2003). E a resposta é a

natalidade, o fato de que seres nascem para o mundo e de que seres humanos nascem para o

mundo humano. E esta realidade exige “um processo de iniciação em seus significados,

práticas, sentidos e linguagem, ou seja, exigem a formação por meio de um processo educativo”

(Carvalho, 2009, p. 19). E este processo educativo é colocado a cargo do professor e da escola.

E neste ponto se faz necessário buscar compreender o compromisso que o mundo

adulto assume – por meio da escola e do professor – face ao aparecimento desse novo no mundo – a

criança. E esse mundo adulto da pós-modernidade se vê diante de crises (esboçadas nas discussões

anteriores sobre a ciência e o capitalismo globalizado), em que a perda das respostas nas quais nos

apoiávamos – a fé, a razão, a matéria e que constituíam o amálgama social que parecia nos sustentar

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– desestabiliza e nos coloca diante de incertezas que são difíceis de conviver quando se tem diante

de si a criança pela qual nos tornamos responsáveis. Da arte (a música e o cinema) retiro dois

exemplos para expressar as angústias e o insólito desses nossos tempos. Uma bela canção do

compositor popular Ivan Lins, “Aos nossos filhos”, gravada nos anos 1970, quando ainda vivíamos

sob a ditadura militar, vem-me à cabeça. Diz assim nos seus primeiros versos:

Perdoem a cara amarrada, perdoem a falta de abraço,

Perdoem a falta de espaço, os dias eram assim.

Perdoem por tantos perigos, perdoem a falta de abrigo,

Perdoem a falta de amigos, os dias eram assim.

O segundo exemplo vem com o filme “A vida é bela”, dirigido e protagonizado

por Roberto Benigni, que conta a história de Guido, um italiano que, levado para um campo

de concentração nazista durante a Segunda Guerra mundial, usa sua imaginação para fazer seu

pequeno filho acreditar que estão participando de uma grande brincadeira, com o intuito de

protegê-lo do terror e da violência que os cercam.

Como educadores, Hannah Arendt nos faz atentar para este fato, estamos diante

da criança e do jovem como representantes de um mundo pelo qual devemos assumir a

responsabilidade. Nosso papel é o de introduzi-la no mundo, ensiná-la sobre seus significados

para que ela possa frui-lo tal como ele é. Mas parece que nós mesmos, os adultos, não temos

tanta certeza de que queremos este mundo tal como é, e nos desculpamos por ele. As

incertezas e os perigos que nos envolvem no turbilhão da pós-modernidade nos esvaziaram de

nossas certezas e corremos o risco de oscilar entre o pedir perdão e o fantasiar uma realidade

colorida. Esta última, principalmente, é uma especialidade dos programas de entretenimento

que a mídia veicula, que o consumo promete.

Esse mundo no qual habitamos, por um lado esvazia-nos das certezas e por outro

proclama-se como o “futuro prometido”, e mergulha-nos numa vida de “progresso” e

desenvolvimento técnico que oculta a barbárie ética necessária para manter a fábula da aldeia global. E

se o mundo adulto, vendo-se insatisfeito, enfrenta dificuldades para assumir perante a criança isto que

aí está, temos visto, por outro lado, um movimento muito disseminado de colocar na criança o centro

de atenções – quem sabe não está nela a nossa redenção? Nos séculos XIX e XX se desenvolveu

fortemente a ideia da importância da educação, que passa a ganhar centralidade no debate dos projetos

políticos e econômicos em disputa: difunde-se o “mito da educação” e a seu lado o “mito da infância”.

Creio que é necessário pensarmos em como a noção de infância tem sido vivida na

contemporaneidade, na pós-modernidade. Passeando pela história pudemos ver o quanto se

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transformou esta noção ao longo do tempo. De um status praticamente inexistente ao Estatuto da

Criança e do Adolescente temos uma mudança na forma de ver e se relacionar com a criança

bastante importante nos últimos tempos. De uma existência ameaçada pela rejeição dos pais (na

Antiguidade o pai tinha o poder de rejeitar os filhos, em especial as meninas e os que nasciam

com problemas físicos), passou-se na Idade Média, com a afirmação do cristianismo, a uma

profunda transformação na célula educativa fundamental e primária: a família (Cambi, idem, p.

133). Esta transformação se deu também e concomitantemente em relação ao modo de se encarar

a mulher, que passa a ter papel relevante no cuidado amoroso com a prole. A ambiguidade e

dualidade fundantes do pensamento cristão – dividido entre Deus e o Diabo, entre o Bem e o Mal,

entre o Espiritual e o Mundano – difunde uma visão da criança que, assim como a visão de

mulher (ora vista como Eva corruptora, ora como Virgem Maria redentora), oscila entre anjo e

demônio, entre a inocência e o pecado. E, a par com as transformações sociais, econômicas e

culturais, veríamos a modernidade propor outro modo de se pensar, cuja síntese podemos

identificar no pensamento de Rousseau e o seu “bom selvagem” – uma infância pura e virtuosa,

que deveria ser afastada do convívio social, fonte de todo mal e corrupção.

A Pedagogia, nos séculos XIX e XX, investe-se de um pensamento puericêntrico –

centrado na criança – e surgem as escolas ativas que ganham forte repercussão no debate pedagógico,

filosófico, político, mas que permanecem experiências isoladas – tornando-se alvo de críticas, de

debates, acusadas como “concepções quiméricas” –, mas que não chegam a abalar a instituição escolar

e a vasta estrutura dos sistemas tradicionais de ensino que se pulverizaram pelas sociedades.

Porém, ainda que na escola os modelos educacionais continuassem reproduzindo o

caráter autoritário, doutrinário e conformista (próprio do pensamento religioso), a sociedade (Estado,

família, meios de comunicação) iria viver grandes alterações no modo de entender a infância com o

surgimento do “Século da Infância”. E, influenciado pela modernidade científica e industrial, veríamos

ser difundido o apelo à “criança cidadã”. Reforça-se o “mito da educação” e tanto as pedagogias

renovadoras do ocidente quanto as revolucionárias (veja-se as produções dos pedagogos soviéticos)

assumiam a pedagogia como espaço e ação para reprojetar o homem. Agora protegida e merecedora

de cuidados e atenção, a infância ganha o centro e o foco das atenções sociais.

E proliferou a produção de saberes sobre a criança que se tornou objeto da ciência

positiva. As reflexões críticas de Jorge Larossa (2000, p. 183) sobre o “enigma da infância”

nos atentam para o fato de que:

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Podemos, no entanto, abrir um livro de psicologia infantil e saberemos de

suas satisfações, de seus medos, de suas necessidades, de seus peculiares

modos de sentir e de pensar. Podemos ler um estudo sociológico e

saberemos de seu desamparo, da violência que se exerce sobre elas, de seu

abandono, de sua miséria.

Toda essa produção, que se desenvolveu na esteira do pensamento científico

moderno, visa nomear, explicar e compreender com o objetivo de interferir e converter a

criança “na matéria prima para a realização de nossos projetos sobre o mundo, de nossas

previsões, nossos desejos e nossas expectativas sobre o futuro” (idem, 188). Sobre este uso e

manipulação, Arendt nos chamava a atenção para o caráter autoritário e totalitário de uma

educação que retira da criança – essa recém-chegada – a oportunidade de introduzir com sua

chegada o novo – o inesperado e imponderável – no mundo.

Nossa época contemporânea se vê às voltas com intensas discussões sobre a

infância, desenvolve políticas educacionais e planos mil para ela “feitos tal qual se fazem os

planos e projetos: com um diagnóstico da situação, objetivos, estratégias e uma série de

mecanismos de avaliação” (|Larossa, idem, p. 184).

Mas, antes mesmo que se pudesse beneficiar deste novo lugar na sociedade

ocorreu que, assim como o indivíduo na contemporaneidade se vê transformado em “massa”

sujeita aos mecanismos de controle ideológicos, em mercadoria que deve se esforçar para

estar sempre desejável no mercado, temos a criança que é apreendida pela lógica do consumo

e se torna ela mesma uma fatia do mercado.

A criança, na feliz expressão que dá título ao documentário da cineasta Stela Renner,

torna-se “a alma do negócio” (Documentário Criança, a alma do negócio. Ver referência). Alvo

da pesada propaganda, o documentário mostra as mudanças que ocorreram a partir da ampla

presença e penetração da mídia nos lares de hoje em dia. Dados de diversas fontes de pesquisas

estatísticas, apresentados no documentário, mostram que as crianças passam cada vez mais tempo

diante da TV, recebendo informações das quais elas ainda não são capazes de separar a parte real

da imaginária. Um mundo mágico e fantasioso se coloca diante delas e a publicidade promete,

mais do que a alegria da posse, a inscrição no mundo dos consumidores, a inserção na

comunidade cujos pares são também consumidores dos mesmos produtos.

Em artigo de 2009, o professor Jean-Paul Laurens (Universidade Paul Valery,

Paris) sintetiza o problema do assédio da mídia sobre esta geração:

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A escola nunca teve o monopólio da educação das crianças. Essa função é

compartilhada com a instituição religiosa e a família. Em certos casos, com a

natureza (a escola da vida). Hoje, daria para falar em escola das ruas. Desde

os anos 1960, a escola oficial deve atuar junto com um novo parceiro no

campo da educação dos jovens: os meios de comunicação de massa.

Televisão, rádio, cinema e jornais, queira-se ou não, desempenham um papel

de verdadeira “escola paralela” na socialização.

Embora saibamos que, ao longo da história, outras instituições se arrogaram a tarefa

de educar e que muitas outras manifestações (a Arte, a Arquitetura, a Música etc.) concorreram

para realizar a formação humana (como vimos no terceiro capítulo), tem-se hoje um acesso à

criança que se faz por meio de todo o aparato midiático que toma proporções nunca antes

experimentadas na História. Laurens chama a atenção para o problema de uma mídia que, por

um lado, transforma as crianças em adultos “prematuros” e, por outro, infantiliza os adultos.

A escola que é, ou deveria ser, o lugar de apresentar o mundo às novas gerações,

vê-se ameaçada por este assédio midiático e continua empenhada em apresentar um mundo

velho e enrijecido. Uma rápida comparação entre um livro didático e um programa infantil

pode nos dar uma medida do desinteresse de um e o deslumbramento do outro aos olhos de

uma criança. Uma reação de indignação da parte dos educadores tem, muitas e muitas vezes,

como resposta uma rejeição a esta linguagem, a estes novos recursos, uma recusa em permitir

a entrada de novas tecnologias no espaço da aula ou, quando cede a elas o faz segundo a velha

forma expositiva, usando os recursos tecnológicos segundo a lógica do “lousa e giz”.

Face à velocidade e à facilidade de acesso à informação ainda vemos a escola

fechada em si mesma, debruçada sobre suas velhas formas de ensinar conhecimentos para os

quais dificilmente as crianças de hoje percebem valor e utilidade. A tarefa legada à escola de

introduzir a criança no mundo vê-se comprometida. Uma escola presa ao passado, anacrônica

e ultrapassada pelo modo de vida na sociedade atual enfrenta um processo de desvalorização

por parte da sociedade. Incapaz de transformar-se, a escola vê-se questionada e boa mostra

disso podemos depreender da problemática da violência nas escolas.

Outro sintoma desta situação de desvalorização que a escola tem sofrido pode ser

exemplificado pelo crescimento dos movimentos por uma sociedade sem escolas. Especialmente

na Internet encontramos hoje divulgação das ideias da educação sem escolas ou da escolarização

no lar. Cito um vídeo que me chamou especial atenção: a palestra de um menino de doze anos

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proferida na Universidade de Nebrasca (EUA), que integra o ciclo de palestras TEDx42. O

menino, Logan LaPlante, conta sobre sua experiência de ter deixado o sistema tradicional de

ensino e adotado o que ele chama de Hackschooling – rackear as aprendizagens pela rede, ou no

grupo de convívio (família, amigos), ou ainda em lugares como acampamentos, oficinas etc. – e

de como ele aprende fazendo experimentos ou vivenciando situações diferentes. A principal

ênfase dos seus quase doze minutos de discurso é centrada no foco do “ser feliz (palavra que ele

repete cerca de dezoito vezes) saudável e criativo”. O movimento em torno da desescolarização

parece nos dizer que a única saída para a educação é a dissolução da escola. Será?

Nossa sociedade de consumo vendeu o sonho de um estar no mundo sempre bem,

sempre feliz, difundiu uma ideia de felicidade como uma lista de compras. E, como o consumo

precisa sempre se renovar (problema já apontado por Marx nas análises sobre o capital), cria-se

incessantemente novos produtos, fazendo com que a busca nunca chegue ao fim. É em Bauman que

encontro melhor síntese para esta corrida que resulta cada vez mais em infelicidade e insatisfação e

que impele o indivíduo a continuar na busca (Bauman, 2009, p. 18).

Alterando sutilmente o sonho da felicidade – da visão de uma vida plena e

satisfatória para a busca dos meios considerados necessários para que uma vida

assim seja alcançada –, os mercados fazem com que essa busca nunca possa

terminar. Seus alvos substituem uns aos outros a uma velocidade estonteante.

Na sociedade dos consumidores o valor supremo é o de uma vida feliz. Sua

promessa é a de um bem-estar aqui e agora (não mais no futuro ou no além vida). Uma

sociedade cujo valor central é o da felicidade instantânea e perpétua, que se recusa a tolerar

qualquer dor ou insatisfação (Bauman, idem, p. 60). E, no entanto, descobrimos que, ao

contrário das promessas, o consumo não se constitui em sinônimo de felicidade. Constatamos

que “a promessa de satisfação só permanece sedutora enquanto o desejo continua insatisfeito”

(ibidem, p. 63). A insatisfação e a insegurança do mundo adulto com a vida por meio do olhar

agudo de Arendt nos levam a reflexões (Arendt, idem, p. 241):

O homem moderno, por outro lado, não poderia encontrar nenhuma

expressão mais clara para sua insatisfação com o mundo, para seu desgosto

42 TED (Technology, Entertainment, Design) é uma série de conferências realizadas na Europa, na

Ásia e nas Américas pela fundação Sapling, dos Estados Unidos, sem fins lucrativos, destinadas à

disseminação de ideias – segundo as palavras da própria organização, "ideias que merecem ser

disseminadas". Suas apresentações são limitadas a dezesseis minutos, e os vídeos são amplamente

divulgados na Internet. Entre os palestrantes estão Bill Clinton, Al Gore, Bill Gates e diversos

ganhadores do Prêmio Nobel.

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com o estado de coisas, que sua recusa a assumir, em relação às crianças a

responsabilidade por tudo isso.

E vemos uma tendência, um movimento, um discurso que leva a colocar na satisfação

dos desejos da criança um substitutivo e uma forma de amenizar as dores da existência. Nossa

incerteza com as próprias certezas, nossa recusa em assumir este mundo que iremos legar às novas

gerações, parece buscar na espontaneidade, na inocência e verdade do ser criança uma resposta para

o estar no mundo. E a tão sonhada criança cidadã, – talvez por não estarmos tão certos dos

significados desse exercício de cidadania, talvez por não nos termos dado conta da complexidade e

dificuldade que envolve a cidadania como atividade política coletiva entre adultos, ou talvez por

nossa infantilização –, se vê alçada ao status de rainha. A infância nunca foi tão rainha.

A título de ilustrar o problema bastaria ligar a TV. Mesmo que estejamos em uma

programação adulta, veremos o assédio da propaganda feita com a mensagem de consumo guiada

pelos desejos da criança. Vendem-se produtos alimentícios, automóveis, roupas, tudo, praticamente

utilizando a criança como garota propaganda. Do menino que imagina o pai como um gigante

porque dirige certo tipo de caminhonete à menina que diz à mãe e ao vendedor qual a marca de

presunto deve ser comprada, passando por incontáveis exemplos, vemos uma apropriação da

infância que está muito longe da escola, que nada tem a ver com a escola, mas que forma e informa

a esta criança que nos vem ao encontro na escola. E isto não tem nenhuma relação com questões

como classe social ou nível cultural das famílias. É um fenômeno difuso por toda a sociedade. Não é

possível pensar a educação sem questionar o que se tem feito por meios dos mecanismos midiáticos.

A criança como o novo que chega (para um mundo adulto que se nega a aceitar o

que fez do próprio mundo, que teme o totalitarismo que o traumatizou, mas que também

rejeita os esforços que se impõem para equilibrar direitos e deveres numa sociedade

democrática) recebe a responsabilidade de mudar o mundo. Arendt adverte para a gravidade

dos riscos de uma educação que não intervenha na infância, deixando-a à própria sorte. Diante

do medo de “arrancar das mãos da criança a oportunidade de trazer o novo” vemos o mundo

adulto abrir mão de agir sobre e com a infância, submetendo-se aos seus ditames e caprichos.

É o monólogo da infância ao qual este adulto aquiesce. Cria-se uma outra forma de abandonar

a criança ao seu mundo, criando uma linha a nos separar. E com tudo isto perde-se de vista

que é no diálogo entre o velho e o novo que se pode preservar e se renovar a vida.

Até aqui discorremos sobre o processo de formação da escola para desvelar os

paradigmas que na sua constituição se engendraram. Até aqui buscamos explicitar a compreensão

acerca da instituição escolar e do quanto o próprio processo histórico que a constituiu marca o tipo

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de relação entre professor e aluno que deverá ocorrer no espaço escolar. Este trabalho

fundamenta-se na ideia de que de todo este processo histórico constituiu um tipo de instituição

cujas características “já não servem à vida, já não preparam para a vida” (Freinet) dos dias de hoje

e menos ainda para a promoção de uma educação inclusiva. Este estudo colocou-se para mim

como forma de entender o mundo no qual eu vivo e assim, pensar interpretações para a pergunta:

como foi que a escola se tornou o que ela é hoje? Pois, embora tenhamos crescido acreditando no

mito da educação, acreditando que ela poderia transformar a sociedade, vemos que a sociedade

determina o modo como a escola se produz e o modo como ela deve reproduzir esta sociedade.

Mais uma vez as exortações de Mantoan (2003, p.15) me amimam a empreitada:

A escola se entupiu do formalismo da racionalidade e cindiu-se em

modalidades de ensino, tipos de serviço, grades curriculares, burocracia.

Uma ruptura de base em sua estrutura organizacional, como propõe a

inclusão, é uma saída para que a escola possa fluir, novamente, espalhando

sua ação formadora por todos os que dela participam.

Pode parecer simples concluir que o formato desta instituição atrapalha e inibe a

possibilidade de se realizar uma educação na qual professor e aluno trabalhem juntos na produção

de aprendizagens, atrapalha e inibe a consecução do objetivo de permitir que todos os alunos

sejam respeitados nos seus ritmos e possibilidades. Mas acho que não estaria errando ao concluir

por esta inadequação inscrita nas próprias origens da instituição escolar, na sua genealogia.

O fazer pedagógico se naturalizou na instituição escolar a tal ponto, o sistema da

aula que emana do professor para o aluno arraigou-se de tal maneira, que se torna difícil

enxergar as inadequações que lhes são próprias, formam-se imagens abstratas da escola, do

professor, do aluno. E passa-se a lidar com abstrações que pouco contribuem para uma

alteração efetiva nesta problemática. Um olhar mais atento para dentro da escola,

especialmente se focarmos nos níveis escolares que trabalham com adolescentes, certamente

mostrará situações de litígio entre professores e alunos que não são expressas, enormes

dificuldades nas relações entre professores e alunos poderão ser percebidas. As coisas não

acontecem segundo as prescrições dos manuais ou tratados pedagógicos.

Um exemplo interessante é dado pelo sociólogo francês François Dubet que, em

entrevista concedida à Revista Brasileira de Educação (Dubet, 1997, p. 222-231), relata as

dificuldades que encontrou “quando um sociólogo quer saber o que é ser professor” (título da

entrevista). Tendo se sentido desafiado pelas descrições que os professores (com quem trabalhava

num projeto de pesquisa) faziam da profissão, Dubet resolveu lecionar, por um ano, aulas de

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História e Geografia para adolescentes. Suas observações, no trabalho direto com eles, levaram-

no a uma compreensão da complexidade das relações que se estabelecem no ambiente escolar.

Segundo Dubet (idem, p. 223): “realmente, a relação escolar é a priori desregulada. Cada vez que

se entra na sala, é preciso reconstruir a relação: com este tipo de alunos ela nunca se torna rotina”.

Assim, pois, para que possamos repensar a educação numa perspectiva inclusiva e

de qualidade para todos os alunos é necessário identificar as características que estão inscritas

no modelo tradicional e que obstruem a construção de um espaço inclusivo, de um espaço

mais orgânico e humanizado. É necessário, pois, proceder a uma desconstrução deste edifício

escolar, para podermos fazer sua reconstrução em outras bases. Sei, porém, que é necessário

compreender as tantas dificuldades que têm sido vivenciadas por tantos educadores, que há

também complexidades importantes a envolvê-los.

É neste sentido que procedermos a seguir a uma explicitação de algumas

características deste modelo de escola que surgiu – fortemente inspirada nos paradigmas da

ciência moderna, ainda com profundas referências nas visões da fé e de sacerdócio da

educação (embora laica), e tendo sido adequada aos interesses econômicos que a sociedade

capitalista impõe – e que, a meu ver, são características que, envolvendo o ambiente escolar e

as práticas pedagógicas ali presentes, dificultam a transformação da escola.

Assim, veremos a seguir as características de que vimos falando e que constituem hoje

a instituição escolar. As três primeiras características estão mais ligadas a aspectos relacionais entre

os atores da cena escolar (o professor, o aluno e o conhecimento) e aos papéis que se estabeleceram

para eles. As quatro últimas estão mais ligadas ao ensino e às práticas pedagógicas em si.

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Características da escola e do ensino

1. Identidades fixadas para os sujeitos na escola

Salta do estudo da genealogia da escola todo o esforço realizado na elaboração de

um conhecimento racional e sistemático, na construção de um modelo explicativo unitário do

mundo, na separação entre fé e realidade natural e na busca por submeter a natureza, por meio

dos processos de racionalização científica, ao controle e manipulação do homem.

O afã de conhecer, que no paradigma da modernidade ganha no conhecimento

científico status de verdade, teve na educação importante repercussão, atingida diretamente pela

revolução científica. Busca-se a partir de então a racionalização dos saberes educacionais; o

foco investigativo dirige-se tanto à forma de transmissão dos conhecimentos – ensino e

aprendizagem – quanto ao objeto desta transmissão – a criança. A produção de um saber

racional e desencarnado, movido pela racionalidade científica iria colocar a criança como foco e

objeto de conhecimento e se destinaria a prescrever modelos para a pedagogia. A suposição de

que podemos saber tudo sobre a criança e, portanto, de posse desse saber agir sobre ela está no

cerne da racionalidade técnico-científica da modernidade. Mas, a pós-modernidade viria nos

chacoalhar estas certezas, conforme já esboçamos ao discutir a questão da infância e que retomo

com Larossa a reflexão crítica para esse afã esquadrinhador (Larossa, 2000, p. 184): “a infância

é algo que nossos saberes, nossas práticas e nossas instituições já capturaram: algo que podemos

explicar e nomear, algo sobre o qual podemos intervir, algo que podemos acolher”.

A criança ganha assim uma certa identidade, para ela fixada por nossos saberes

racionais e técnicos. As ciências que orbitam em torno da educação nos dão – especialmente no

período de formação para a profissão de educador – um vasto aparato explicativo sobre a infância,

o adolescente. E vemos que se trata de uma criança ou adolescente genérico, alguém que, tornado

objeto de estudo racional, nos é apresentado já dissecado, esquadrinhado nas suas características,

mas que nunca é a criança concreta, de carne e osso com a qual nos deparamos no nosso dia-a-dia

na relação educativa. “As crianças, esses seres estranhos dos quais nada se sabe, esses seres

selvagens que não entendem nossa língua” (idem, p. 183).

Mas, se nos inclinássemos a pensar que a esta identidade fixada pelos cânones

científico, a instituição escolar opôs o professor, cuja identidade fixada pelo seu papel, seria

supostamente a do detentor do saber, a fonte da autoridade, vimos que nas continuidades e

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descontinuidades do processo histórico este não foi o papel e nem a identidade a ele

destinados. Como vimos na genealogia da instituição escolar, instituiu-se como papel do

professor – já na sua gênese – a reprodução de saberes que se produzem alhures. Sua

identidade é fixada como a de alguém que não produz saberes, nem sobre o mundo e nem

sobre a sua própria profissão, alguém que só reproduz os saberes autorizados pelo crivo da

racionalidade técnica. Retomo o diálogo com Geraldi (2004, p. 12), que nos recorda sobre o

momento da emergência da profissão de professor:

Deste ponto de vista, o processo de educação se dá como se um de seus

agentes, o professor, executasse uma partitura. O professor não precisa ser

douto, mas saber tudo o que deve fazer, e este “tudo” lhe é dado nas mãos

pelos doutos, que preparariam o que ensinar e como ensinar.

Na pequena genealogia da escola realizada neste trabalho, pudemos ver também

que a educação, durante muito tempo na História, dava-se entre o mestre e seu discípulo.

Geraldi salienta que neste quadro o mestre era alguém que produzia determinado saber. Alguém

que investigava a natureza, o mundo, as pessoas. Como vimos em nosso estudo, aquele que

ensinava um ofício ao seu aprendiz possuía um conhecimento próprio, era autor de seu ofício e

trabalhava em cooperação com o aprendiz. Mas, do mestre de seu ofício ao operário da fábrica,

ocorre uma desapropriação de seus saberes, que também orienta o trabalho do professor. Sua

identidade foi fixada como a de reprodutor de conhecimentos que ele não produz. O papel a ele

atribuído foi o de mantenedor da ordem, de transmissor de conteúdos, de disciplinador. Ainda

que desvalorizado, atribuiu-se ao professor um lugar e um papel de superioridade e mando

sobre a criança, mas de inferioridade em relação a todo o resto da sociedade.

A criança passa a ser vista e concebida como objeto a que as ciências dirigem suas

vontades de saber e, no aprofundamento dos poderes explicativos sobre a natureza, os

fenômenos e o homem, ganham o foco a pessoa com deficiência e a criança com deficiência.

Surgem as incontáveis classificações, hierarquizações e discriminações de que o “olhar

clínico” se torna instrumento. Fixa-se, a partir de um rótulo, a identidade deste outro: o que

foge à norma, o diferente. O filósofo Deleuze, cuja obra tratou de compreender a questão da

diferença, chama nossa atenção para o problema da identidade (Deleuze, 2009, p. 8):

O primado da identidade, seja qual for a maneira pela qual esta é concebida,

define o mundo da representação. Mas o pensamento moderno nasce da

falência da representação, assim como da perda das identidades, e da

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descoberta de todas as forças que agem sob a representação do idêntico. O

mundo moderno é o dos simulacros.

A escola tradicional – uma vez fixadas as identidades professor e alunos – foi o

campo fértil para o surgimento de relações prescritas para estas identidades. Relações entre

protótipos: o professor que ensina e o aluno que tem que aprender. E, em tudo isso, perde-se

a subjetividade, desaparece a relação de alteridade. Duas identidades fixadas que se

encontram em relação sem que esta relação de encontro os altere, os modifique. Relações

entre identidades e não entre sujeitos.

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2. Exclusão da sensibilidade em benefício da racionalidade

Fixadas as identidades, tudo deverá se passar segundo a lógica que a racionalidade

prescreve. Instaura-se neste espaço/tempo escola uma racionalidade inspirada no sucesso obtido

pela ciência em explicar, prever, controlar a natureza. Tudo é passível de ser apreendido pelo

método científico. Tudo é uma questão de método, inclusive ensinar. Como se comporta o

oxigênio na presença de substâncias inflamáveis? O que é necessário para provocar uma

combustão? Como ela pode ser controlada? Os elementos comportam-se de maneira previsível

e assim o homem assume o comando e controle. O pensamento causal – a toda causa

corresponde um efeito, controlada a causa, controla-se o efeito –, expandiu barreiras e ampliou

seu domínio e aplicação, como vimos no percurso histórico da escolarização.

O modelo científico se impõe no imaginário da instituição escolar, seus

paradigmas nos colocam lentes que nos informam sobre um modo de olhar e ver: para todo

efeito observado existe uma causa e toda causa produz um efeito. Numa extrapolação

apressada partiu-se do ensino como causa para chegar a aprendizagem como efeito direto e

proporcional. Assim, no caso da instituição escolar a “aula” dada pelo professor deve produzir

o efeito aquisição dos ensinamentos transmitidos por ele ao aluno. Em presença de um

comburente, um combustível e uma fonte de calor produz-se a combustão.

A partir desta concepção busca-se adequar métodos para transmitir os

conhecimentos. A racionalização engendrada pelos cânones da ciência moderna se torna na

escola um racionalismo que pressupõe que uma mesma causa – a aula – deverá produzir o

mesmo efeito – a aprendizagem – em todos os alunos. E mais ainda, deve produzir a mesma

aprendizagem, igual para todos. Entende-se a relação ensino aprendizagem como uma relação

diretamente proporcional, ficando aí subentendido que ensinar é transmitir conhecimentos,

excluindo-se daí o subjetivo, o afetivo. Mas nós, professores e educadores, sabemos que as

coisas não acontecem desta forma. Mas, ainda ancorados pela racionalização própria do

pensamento científico, buscamos explicações e comumente são levantadas duas hipóteses: o

professor não ensinou direito ou o aluno tem problemas de aprendizagem. Na primeira

hipótese temos que, como educadores dedicados e conscienciosos, assumimos uma “culpa”

pela não aprendizagem do aluno, imaginando que a aula não foi eficaz o bastante para

produzir o efeito desejado. Se não é o próprio professor a se culpar pelo fracasso dos alunos,

outros especialistas se encarregarão de fazê-lo. Outra saída para o sentimento de culpa é

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transferi-la ao professor do ano anterior. Veremos que o ensino seriado permite uma espécie

de “lavar as mãos”: “Este aluno chegou a mim sem os requisitos previstos para esta série!”.

A segunda hipótese busca sua justificativa racional nas deficiências dos alunos,

nas suas dificuldades pessoais. No entanto, no nosso dia-a-dia dentro desta instituição,

constatamos a insuficiência deste modo de pensar para dar conta das relações humanas. De

acordo com Mantoan (2003, p. 19):

A lógica dessa organização é marcada por uma visão determinista,

mecanicista, formalista, reducionista, própria do pensamento científico

moderno, que ignora o subjetivo, o afetivo, o criador, sem os quais não

conseguimos romper com o velho modelo escolar para produzir a reviravolta

que a inclusão impõe.

Assim como o cientista que, praticando a ciência normal (segundo Tomas Kuhn),

realiza o seu trabalho sem esperar novidades (ele procura comprovar as teses estabelecidas

pelo paradigma dominante), também o professor busca praticar o “ensino normal”, cujo

resultado esperado é a aprendizagem do aluno. Freinet já apontava para este problema, em

muitos de seus livros ele aborda a questão, como por exemplo nas obras em que expõe suas

ideias sobre o Método Natural (Freinet, 1977, p. 46):

Reside aí precisamente o grande erro escolástico e científico, jugar que se

pode proceder com as engrenagens complexas de vida como se faz com um

mecanismo movido por rodas dentadas. Não dizemos que os princípios dos

dentes e das engrenagens sejam falsos. Pelo contrário, nós próprios a tal nos

referimos no decorrer das nossas investigações. Porém, o princípio, ou a lei

mecânica não devem fazer-nos esquecer que a vida é algo de mais subtil, de

muito mais evoluído, ao lado da qual as descobertas mais surpreendentes da

ciência nos surgem apenas como um balbuciar elementar.

Nesta suposta racionalidade de engrenagens, a relação esvazia-se de subjetividade

e de afetividade, torna-se relação de transmissão. Praticam-se rotinas repousantes que

distanciam o professor da interação com a criança. Não se busca a interação entre

subjetividades e as possibilidades que esta relação poderia produzir, mas buscam-se culpados.

A lógica da instituição escolar tem resultado no que poderíamos chamar de Pedagogia do

Inquérito, na qual é instaurado o processo para descobrir os culpados pelo fracasso da

educação. Numa lógica kafkiana, aluno ou professor, dependendo da perspectiva que se adote,

serão julgados e condenados, muitas vezes sem nem saberem que havia um processo.

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Volto mais uma vez ao passado, desta vez para buscar inspiração em outros

exemplos já produzidos. Sócrates que, como filósofo, produzia conhecimento, deixou-nos

uma lição, se pensamos nas suas escolhas para transmitir seus saberes aos discípulos.

Evitando a mera transmissão de suas ideias por meio de discursos, ele buscava o diálogo, as

perguntas que iam conduzindo o discípulo para as conclusões. Sócrates mostrava-se

profundamente interessado por aquilo que seu aprendiz pensava, nas respostas que produzia, e

nestes diálogos ia construindo relações entre ele e o discípulo, produzindo educação.

Parar de buscar culpados implica em permitir a entrada da sensibilidade para o

âmbito desta relação. Implica em reconhecer que nosso papel de educadores é também o de

nos interessarmos pela criança, querermos conhecer o que se passa com ela. Implica na

compreensão do que nos fala Freinet (idem, 170) no seu terceiro invariante:

O comportamento escolar de uma criança depende do seu estado fisiológico,

orgânico e constitucional. Existe a tendência para considerar desumanamente

que a criança que trabalha mal ou se comporta de forma repreensível o faz

intencionalmente e por maldade.

Interessar-se pela criança e reconhecer que ela é “da mesma natureza que o adulto”,

nos coloca a obrigação de olharmos para nós mesmos e reconhecermos nossos próprios

processos e desejos. A entrada da sensibilidade para o espaço/tempo da sala de aula, não quer

dizer, contudo, que de agora em diante basta praticar uma “pedagogia do amor” como panaceia

para os males da educação. Quer dizer tão somente que na relação entre subjetividades

incorpora-se o sensível, o sutil, os desejos de sucessos, os fracassos como obstáculos a serem

superados, o humano e, nisto tudo, o imponderável que nossa humanidade comporta.

A aprendizagem tem a ver com a relação pessoal e subjetiva que estabeleço com

meu interlocutor, a educação é da ordem do sensível, do sutil.

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3. Separação entre saber e fazer: a destituição do trabalho em benefício do jogo

Os processos históricos que estudamos na genealogia da escola foram

constituindo uma separação entre o saber e o fazer. Tanto o trabalho dos jesuítas, como a obra

de Comenius e seus seguidores dedicaram grande parte de seus esforços a uma codificação

minuciosa dos conteúdos a serem transmitidos. Surgiria em ambos os processos (dos jesuítas

e de Comenius) uma cultura intelectualista. Operava-se uma verdadeira destilação do

conhecimento a ser transmitido. O mestre passa a ser o que sabe um saber (codificado,

destilado dos perigos que o rondam, depurado das sombras que poderiam maculá-lo, livre das

dúvidas e incertezas que o processo de sua criação necessariamente comporta) que será

transmitido ao aluno. O professor será então aquele que professa a palavra pura, a verdade

estabelecida, transmite o saber. Cria-se uma cultura livresca e vazia de sentidos ligados a vida

prática e cotidiana, uma cultura de erudição e retórica. Freinet chamava a isto de escolástica.

É esta cultura (e somente esta) que deverá ser assimilada pelo aluno e a visão de

escola que se instala será pautada pela acumulação, por parte do aluno, daquilo que o mestre

deposita em sua cabeça. Quanto mais informações o aluno for capaz de reproduzir, maior

qualidade se atribui ao processo educativo. Segundo Mantoan (2013, p. 60):

Vigora ainda a visão conservadora de que as escolas de qualidade são as que

enchem as cabeças dos alunos com datas, fórmulas, conceitos justapostos,

fragmentados. A qualidade desse ensino resulta do primado e da

supervalorização do conteúdo acadêmico em todos os seus níveis.

Mas, num “golpe de mestre” (que o estudo da história ajudou a compreender), ao

mesmo tempo em que o professor ganha o status de detentor de um saber, ele perde a

capacidade de produzir saberes. Ele se torna um veículo de entrega ao aluno de saberes

produzidos em outras instâncias. Não é mais um mestre que pensa e produz saberes, torna-se

um repetidor, um executor de propostas concebidas em outras instâncias, como já vimos ao

discutir as identidades fixadas de professor e de aluno, mas que é importante retomar aqui.

O esforço empenhado por aqueles que se interessaram em sistematizar a forma

escolar e a forma de ensinar (desde os Jesuítas, passando por Comenius até os modelos de

ensino mútuo e chegando aos “sistemas de ensino apostilado” dos dias atuais) levou à redução

desta atividade a um caráter de reprodução de saberes produzidos fora do âmbito da relação

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pedagógica. O professor, desapropriado de seus saberes, passa a ser o transmissor de

conteúdos e informações contidos nos livros didáticos e nas apostilas43.

Separação entre saberes eruditos e racionais e os saberes da vida cotidiana, separação

entre quem sabe e quem faz. Mas há, ainda, mais uma grave consequência para esta separação entre

saber e fazer para a qual pouco se atenta. Toda esta cultura livresca e intelectualizada nutre profundo

desprezo pelo trabalho manual. O conhecimento, concebe-se, é transmitido pela palavra e é ela que

detém o lugar de destaque e honra. A sala de aula é organizada como um lugar, um espaço/tempo de

culto à palavra, não como um lugar de trabalho, nunca como uma oficina. Isto fica bem evidente nas

concepções da aula de artes como uma atividade menor, para os momentos de descanso ou para

cumprir horários, “encher o tempo”, quando nada de “mais importante” deve ser feito.

Toda a nossa sociedade está impregnada desta concepção de desvalia do trabalho

manual. Começando pelas profissões que se inserem nesta categoria e chegando ao próprio

desvalor que desde sempre se atribuiu ao trabalho doméstico, relegando a mulher a uma

condição de inferioridade. Mas na escola isto tem particular apelo. A dicotomia que se formou

entre saber e fazer, na sala de aula pode ser percebida quando olhamos para o desprezo que se

tem com as tarefas de limpeza e organização.

Mas uma suposta “modernização” da escola foi operada (especialmente no século

XX) que, para minimizar os efeitos maçantes que esta pedagogia verborrágica ocasionou,

lançou mão do jogo como recurso didático. O trabalho acadêmico desprovido de significação

prática, típico da escolástica é desinteressante e, para manter os alunos de alguma forma

interessados nos conteúdos, produz-se o jogo. Introduz-se a competição como forma de

mobilizar as crianças para aprenderem os conteúdos. Responder mais e mais rapidamente às

questões apresentadas se torna o objetivo e com isso vai se perdendo a possibilidade de uma

realização cooperativa e construtiva que um trabalho orgânico e integrado aos interesses do

grupo permitiria.

Recuperar o valor do trabalho em todas as suas formas (manual, intelectual,

criativo etc.) é um exercício para o qual Freinet nos convida. Uma ampla discussão feita por

ele propõe o trabalho como força vital na criança. Relembro aqui o invariante de número 10

de seu livro Para uma escola do povo (1978, p. XX): “não é o jogo que é natural na criança,

43 Uma ampla e profunda discussão sobre o problema dos sistemas apostilados foi desenvolvida pela

professora Tânia Laurindo na sua tese de doutorado: “Fora de lugar: ação e reflexão na coordenação

pedagógica em uma escola de sistema apostilado” (UFSCar, São Carlos, 2012).

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mas sim o trabalho”. A atenção dada por ele a este aspecto foi defendida em toda a sua obra,

mas em especial no livro A educação do trabalho (1998, p. 189):

Não há na criança necessidade natural do jogo; há apenas necessidade de

trabalho, isto é, a necessidade orgânica de usar o potencial de vida numa

atividade ao mesmo tempo individual e social, que tenha uma finalidade

perfeitamente compreendida, de acordo com as possibilidades infantis, e que

apresente uma grande amplitude de reações: fadiga-repouso, agitação-calma;

emoção-tranquilidade; medo-segurança; risco-vitória. Além disso, é preciso

que esse trabalho preserve uma das tendências psíquicas mais urgentes,

sobretudo desta idade: o sentimento de potência, o desejo permanente de se

superar, de superar os outros, de conquistar vitórias, pequenas ou grandes, de

dominar alguém ou alguma coisa.

Em resumo, a separação entre saber e fazer que se tornou paradigmática na

instituição escolar transformou aluno e professor em repetidores de conhecimentos e saberes

desvitalizados que se produzem longe da escola. E o recurso ao jogo tornou-se moeda corrente

para dar aspecto atraente a conteúdos empoeirados. Porém, as mudanças que presenciamos nos

últimos vinte ou trinta anos na forma de circulação da informação (basta pegarmos somente o

exemplo da Internet) tem tornado cada vez mais anacrônica e desatualizada esta escola, embora

ainda se atribua tanto valor à sua capacidade de transmitir os conteúdos acadêmicos.

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4. A frontalização do ensino: exclusão do acontecimento

Outra característica da instituição escolar é a organização do mobiliário da sala de

aula: todas as carteiras dispostas em filas apontando para frente da sala onde estão o professor

e a lousa. Esta disposição institui a aula, estabelece o ensino frontalizado e o modo de

conduzir o trabalho pedagógico.

É interessante observar como as prescrições de Comenius se encontram ainda tão

vivas e presentes na escola de hoje. A frontalização do ensino promove um distanciamento do

professor de seus alunos. Ao abordar os problemas que podem surgir com a utilização de seu

método, Comenius propõe várias providências, como vemos na sua proposta para o problema

1: como pode um só professor ser suficiente para qualquer número de alunos?

II. Se nunca se instruir um aluno sozinho, nem privadamente fora da escola,

nem publicamente na escola, mas todos ao mesmo tempo e de uma só vez.

Por isso, o professor não deverá aproximar-se de nenhum aluno em

particular, nem permitir que qualquer aluno, separando-se dos outros, se

aproxime dele, mas, mantendo-se na cátedra (de onde pode ser visto e

ouvido por todos), como o sol, espalhará os seus raios sobre todos; e todos,

com os olhos, os ouvidos e os espíritos voltados para ele, receberão tudo o

que ele expuser com palavras, ou mostrar com gestos ou gráficos. Deste

modo, com um só vaso de cal poderão caiar-se, não duas paredes, mas

muitíssimas. (Comenius, 1621-1657, p. 93).

A sala de aula normal, com suas carteiras enfileiradas, a lousa na frente, os livros

didáticos abertos na mesma página, o silêncio dos corpos dóceis, permite a repetição da

rotina, uma rotina que é repousante, pois basta ministrar a aula – a mesma aula – para todos os

alunos. Basta reproduzir o conhecimento já criado por outros. Basta manter a ordem na classe,

fazendo com que os alunos escutem e reproduzam. É uma espécie de ordem “panoptípica”

para a qual nos alertava Foucault. O professor em pé a frente da classe pode a todos observar

ou, pelo menos, fazer com que os alunos se sintam observados, que se saibam vigiados para

que nada que não estiver previsto aconteça. Mantoan (2013, p. 65) ressalta e retoma as ideias

de Paulo Freire para explicitar um problema intrínseco à lógica desta forma de ensino:

O professor palestrante, tradicionalmente identificado com a lógica de distribuição

do ensino, é o que pratica a pedagogia do “A” para e sobre “B”. Essa

unidirecionalidade supõe que os alunos ouçam diariamente um discurso, nem

sempre dos mais atraentes, em um palco distante, que separa o orador do público.

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A força desta racionalização na organização da sala de aula se faz sentir, pois a

simples sugestão de alterar esta dinâmica e colocar os alunos para trabalhar em grupos já

angustia o zeloso professor que deve a tudo controlar. O professor na frente da sala e a lousa

como catalizador das atenções é talvez a mais naturalizada das instituições da sala de aula. Ela

institui certo tipo de relações que devem ocorrer neste espaço, traz sensação de controle, traz

sentimento de conforto de se sentir no comando do tempo de cada um dos alunos vistos como

um todo indistinguível. Institui-se o acontecimento previsto: a aula. E ainda assim, o suposto

repouso proporcionado por estas rotinas se vê dia-a-dia ameaçado pela indisciplina dos alunos.

E muitas vezes a indisciplina é o acontecimento: uma discussão entre dois colegas, um desafio

para o jogo de futebol que acontece no recreio (quando e se isto é permitido) e que poderiam se

transformar em pontes para investigações sobre nossa cultura esportiva, as crônicas nos jornais,

as tabelas e quadros dos campeonatos e tantos outros aspectos que envolvem este tema e que

tanto interessam aos adolescentes são imediatamente caladas e o assunto da aula é retomado. Do

seu lugar à frente da sala o professor não pode permitir que distrações e ruídos atrapalhem a

transmissão dos conteúdos tão valorizados pela cultura livresca e intelectualista própria da

instituição escolar. Sua voz deve ser ouvida por todos e nenhuma outra pode interrompê-la.

E, mais delicado do que isto, do “professor-sol” ao professor desencarnado e mero

repetidor de uma partitura (ambos imaginados e propostos por Comenius) nem sempre nós,

humildes mortais, conseguimos desempenhar os modelos propostos. Em Freinet encontro uma

importante ponderação para esta questão:

A escola tradicional exige bastante mais do professor, menos aliás – o que é

mais grave – no domínio da técnica que sob o ponto de vista das qualidades

pessoais e psíquicas que nem sempre depende dele possuir ou adquirir:

calma, equidade, autoridade pessoal, intuição, paciência, domínio de si,

abnegação, dedicação... e amor! E como os professores são homens, que,

portanto só muito excepcionalmente possuem todas estas qualidades

consideradas essenciais, é todo o sistema pedagógico que se desmorona, os

professores impotentes que se cansam e acabam por se desinteressar

instalando-se uma rotina banal... (Freinet, 1978, p. 120).

Diferentemente do mestre e seu discípulo que trabalhavam juntos, o que se

consolidou em todo esse processo histórico foi um distanciamento entre eles, que teve como

uma de suas concretizações físicas a criação do estrado, colocado para dar ao mestre a altura

que seu papel impunha. Embora, felizmente, já tenhamos, há muito, abolido este

“equipamento” das salas de aula, seu lugar simbólico ainda permanece no ensino frontalizado.

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A produção do espaço escolar e do modelo de trabalho pedagógico – que a

genealogia da escolarização procurou explicitar – vem se dando segundo uma matriz

epistemológica que Deleuze e Guatari (1995) caracterizaram como árvore e raízes e cuja

hierarquia estabelece os modos de comunicação: da raiz e do tronco (centrais) para os galhos e

ramos (periféricos). Porém, o que acontece efetivamente numa sala de aula, por mais que se tente

manter a ordem do uno, são relações rizomáticas: a voz e frontalidade do mestre não calam, nem

impedem a multiplicidade de interações que se dão entre os alunos, que se dão nas ligações que

são trazidas por eles de seus diferentes contextos. Estes autores nos lembram que “uma das

características mais importantes do rizoma talvez seja a de ter sempre múltiplas entradas” (idem,

p. 8). Assim é o espaço e as relações na sala de aula: múltiplas entradas, começos sem começos,

interferências de toda ordem, mas que, no silêncio imposto pelo mestre à frente, não se visibiliza.

Mas os velhos métodos de ensino parecem não reconhecer a multiplicidade deste

espaço e das relações que ali ocorrem: o rizoma de que é feito. Buscar uma nova organização do

espaço escolar, do espaço da sala de aula envolve a compreensão de uma nova matriz

epistemológica como a que nos oferece Deleuze. A organização do trabalho em ateliês, os

diferentes planos de trabalho individuais que nos propõe Freinet são, a meu ver, pistas

interessantes para se pensar a educação segundo uma nova matriz epistemológica, um diálogo que

se promete profícuo.

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5. O ensino simultâneo

Estando todos os alunos dispostos nas fileiras e virados para frente da sala onde

estão o professor e a lousa, todos deverão fazer a mesma coisa e ao mesmo tempo. O controle

deste tempo deve estar nas mãos do professor; claro está que, num modelo assim, todos devem

ter o mesmo ritmo, caso contrário atrapalharão o bom andamento do trabalho. A formação de

turmas numerosas se torna permitida, pois todos devem fazer a mesma coisa ao mesmo tempo,

não importando o número de alunos. É a ciência do educar, ou melhor dizendo, uma certa

ciência do educar, autorizando e legitimando o modelo, mesmo que muitos e muitos professores

já tenham denunciado as dificuldades de trabalhar em ambientes populosos e massificados.

Neste modo de ensinar cabe ao professor professar a lição, a mesma e única lição,

que todos deverão realizar simultaneamente. Contrariando a natureza própria das crianças,

suas necessidades de movimento, sua curiosidade e desejo de manipular e conhecer o mundo

a sua volta, elas se veem obrigadas a se conformar ao ritmo imposto. Mantoan (2013, p. 64)

nos alerta para a persistência de professores nas práticas do ensino tradicional, entre as quais

destaco duas que se ligam diretamente ao modelo de ensino simultâneo:

Propor trabalhos coletivos, que nada mais são do que atividades

individuais realizadas ao mesmo tempo pela turma;

Servir-se da folha mimeografada ou xerocada para que todos os alunos as

preencham ao mesmo tempo, respondendo às mesmas perguntas, com as

mesmas respostas

O que deveria ser um ensino igual e simultâneo para todos se torna o que a autora

denuncia como “o ensino para alguns alunos”.

A escola deveria ser o lugar de formação das novas gerações para fomentar o

avanço da ciência (se tomarmos como referência o projeto da modernidade, reconhecendo que

nas escolas ainda nem chegamos na pós-modernidade), no entanto ela se tornou o lugar onde

não há espaço para “fazer ciência”: fazer perguntas, valorizar a curiosidade, formular

hipóteses, construir formas de investigar, corroborar ou não as hipóteses formuladas... São

processos necessários à investigação científica que foram banidos da escola. E, para dar uma

roupagem com ares de inovação, vemos professores ou escolas aderirem a novas práticas de

propor projetos que são gestados pela coordenação ou por instâncias mais altas, “totalmente

desvinculados das experiências e dos interesses dos alunos, que só servem para demonstrar a

pseudoadesão do professor às inovações” (idem, p. 64). Restou ao professor e ao aluno a

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repetição de conhecimentos prontos – os conteúdos. Restou à escola o papel e lugar de “culto

à ciência”. Vale destacar que culto é atividade própria da religião.

Mais uma vez encontramos nos invariantes propostos por Freinet a crítica a este

modo de ensinar e a proposição para agir de outro modo. É o invariante número 11 (idem, p.

185) que nos dá as pistas para uma transformação da escola:

A via normal de aquisição não é unicamente a observação, a explicação e a

demonstração, processos essenciais da escola, mas a experiência tateante,

conduta natural e universal.

A escola tradicional atua exclusivamente por meio de explicações. As

experiências, quando se fazem, intervêm apenas como complemento de

demonstração.

Ora, a explicação, ainda que ajudada pela demonstração, não proporciona

mais do que uma aquisição superficial e formal, que nunca radica na vida do

indivíduo, no seu meio.

A experiência tateante de que nos fala Freinet não ocorre para os alunos de uma

classe de forma simultânea. Ela é o exercício da indagação, da busca de respostas para

problemas que interessam ao aluno. Ela envolve a formulação de hipóteses e sua

confrontação. Mas uma organização do trabalho escolar que permita este exercício do tateio

experimental coloca para o professor a perda do controle de uma aquisição, por parte dos

alunos, de maneira paulatina e disciplinada. “Abram todos o livro na página tal” é uma

garantia de transmitir as informações previstas para aquele grupo, naquele dia.

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6. A classe homogênea: a exclusão do conflito

Para que todos possam assistir à mesma aula é preciso que não haja diferenças

significativas entre os alunos. É necessário que exista uma homogeneidade da classe. Não

cabe a diferença, pois ela é fonte de conflitos que pode levar a rupturas da frágil e enganosa

harmonia que se preconizava para o trabalho escolar. Conflitos ou rupturas que ameaçam

nossa compreensão e segurança dentro do espaço escolar. Segundo Burbules (2012, p. 176),

As disrupções a que a diferença pode levar têm crescentemente estimulado

os educadores (oriundos de um leque de posições políticas e morais bem

diferentes) a cada vez mais, defender ambientes organizados em torno de

grupos relativamente mais homogêneos. (Grifo meu)

A possibilidade de aprendermos com o conflito não tem encontrado espaço nos

modelos tradicionais de ensino. Em vez disso, busca-se retirar do caminho qualquer obstáculo

que possa levar ao conflito, busca-se a homogeneidade.

Para Deleuze (2009, p. 39) a complexidade da questão da diferença solicita o

esforço da filosofia:

Tirar a diferença de seu estado de maldição parece ser, assim, a tarefa da

filosofia da diferença. Não poderia a diferença tornar-se um organismo

harmonioso e relacionar a determinação com outras determinações numa

forma, isto é, no elemento coerente de uma representação orgânica?

Este é um efeito ainda mais perverso desta racionalização: a anulação da diferença

pela instauração de um modelo arbitrário e homogeneizante. E como esta anulação é

impossível, a diferença se torna um problema. A normalização e a padronização de todos os

alunos é adotada como meta. O aluno que não corresponde às exigências previstas pela aula é

percebido como um empecilho ao bom andamento do trabalho. Em nome de uma suposta

igualdade as diferenças são sufocadas. É aqui que podemos ver o quanto a entrada do

“diferente” constitui um problema e vemos o recurso à tolerância se tornar nefasto. É aqui que

vemos surgir a expressão “aluno de inclusão” – o aluno tolerado porque diferente como se

todos os outros fossem iguais. A diferença é julgada segundo quadros de referências e padrões

de normalidade, mas sem buscar a adoção de um outro ponto de vista, o ponto de vista

daquele sobre quem se fala ou se tece julgamento discriminatório.

Mantoan (2013, p. 64) traz uma análise contundente desta problemática:

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É assim que a exclusão se alastra e se perpetua, atingindo a todos os alunos,

não apenas os que apresentam uma dificuldade maior de aprender ou uma

deficiência específica. Porque em cada sala de aula sempre existem alunos

que rejeitam propostas de trabalho escolar descontextualizadas, sem sentido

e atrativos intelectuais, sempre existem aqueles que protestam, a seu modo,

contra um ensino que não os desafia e não atende às suas motivações e

interesses pessoais.

As críticas que têm sido feitas aos modelos padronizadores na educação têm já

favorecido uma mudança de perspectiva e levado ao debate a importância de prestar atenção à

própria caracterização da diferença como algo produzido social e culturalmente. Ou como

argumenta Burbules (idem, p. 180): “finalmente, fez as pessoas perceberem que essas diferenças

estão relacionadas a determinadas estruturas de significação que são produzidas, ou construídas –

não são inerentes; portanto poderiam ter sido construídas de outra maneira”. Mais à frente, Burbules

(idem, p. 201) conclui: “Ao transferirem a necessidade de justificativa do pressuposto de

semelhança para uma consciência da diferença e sensibilidade para com ela, essas perspectivas

críticas criaram a possibilidade de repensarmos a educação de uma forma significativamente nova”.

Destaco da argumentação deste autor o questionamento ao “pressuposto de

semelhança” que temos visto como um axioma fundante da instituição escolar. A

homogeneização do alunado foi se constituindo no próprio processo de institucionalização da

escola, instituindo-se como o modo de organizar os grupos de alunos a fim de ensinar.

Nos invariantes de Freinet iremos encontrar o questionamento a esta característica

do modelo tradicional. O invariante de número 21 (idem, p. 196) alerta-nos: “A criança não

gosta do trabalho em rebanho a que o indivíduo tem de sujeitar-se. Gosta do trabalho

individual ou do trabalho em equipa no seio de uma comunidade cooperativa.”

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7. O ensino seriado e a avaliação

Para que se possam formar classes homogêneas é preciso classificar os alunos,

medir seu grau de aproveitamento. Institui-se a avaliação como forma de enquadrar os alunos.

O ensino seriado institui as provas, exames e avaliações que serão, a partir de então, o meio

de garantir que o aluno adquiriu os conhecimentos na versão exata em que foram transmitidos

pelo professor. Mas, mais que isso, institui o modelo exemplar de aluno e com ele, institui-se

o fracasso para aqueles que não se ajustam à norma.

Ensinar nesse modelo é ensinar o que está previsto para aquele grau de escolaridade.

É transmitir o conteúdo daquela série, supondo que o aluno possui os pré-requisitos que devem ter

sido adquiridos nas séries anteriores. É mais que conhecida a reclamação de professores que se

defrontam com alunos com alguma dificuldade na sua aquisição da escrita. Proclamam aos

quatros ventos nas salas de professores o absurdo de terem em suas classes alunos que “ainda não

estão alfabetizados!”. É como se dissessem: “o que faz na minha classe este aluno?”. Em nenhum

momento lhes ocorre a possibilidade de conhecer as necessidades daquela criança e de se

ocuparem de lhe proporcionar as oportunidades para se desenvolverem. Muito menos se lhes

ocorre perguntar: “o que sabe este aluno?”.

A explicitação e discussão desta problemática tem encontrado na produção da

professora Mantoan (2007, p. 65) uma viva e contundente denúncia:

O sistema educacional se porta como mais um instrumento de seleção social, que

se arroga o direito de fazer triagens da população escolar, retirando de alguns

alunos as vantagens de crescer em ambientes escolares abertos às diferenças.

A educação bancária, que Paulo Freire (1978) já desvelava e denunciava na

década de 1970, e na qual o professor “deposita” na cabeça do aluno os conteúdos para ele

selecionados e ao final de um certo período (bimestre, trimestre) “cobra a devolução” destes

conteúdos e recompensa esta devolução com a “nota” é ainda hoje o modelo paradigmático

em nossa sociedade. Assim como o trabalho passa a ser concebido no mundo moderno como

uma forma de ganhar a vida, também a escola e o “trabalho” que nela as crianças são

chamadas a realizaram passa a ser uma forma de ganhar a aprovação.

Uma vasta e proveitosa discussão sobre o problema da reprovação já tem sido

feita e cito aqui como exemplo o trabalho do professor Vitor Paro (2001). O sistema de

avaliação que ainda vigora, ao reprovar os alunos que não se enquadram ao modelo, vai

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seguindo seu percurso, atribuindo ao aluno um fracasso que uma análise crítica já mostrou

que é muito mais da escola e do professor. Mas quem o sofre é o aluno. É mais um invariante

(o de número 10) de Freinet (idem, p. 181) que deve ser considerado para que possamos sair

deste círculo vicioso em que a escola se meteu: “todo indivíduo quer ser bem sucedido. O

fracasso é inibidor, destruidor do ânimo e do entusiasmo”. Tanto já se escreveu sobre o

fracasso escolar e, ainda, tão pouco de efetivo se fez contra ele. Continuo o diálogo com

Freinet, retomo aqui mais dois de seus invariantes – o de número 19 e o 21 Freinet (idem, p.

194 e p. 196). No invariante 19 já nos apresenta sua concepção de avaliação:

As notas e classificações constituem sempre um erro.

A nota é a apreciação feita por um adulto do trabalho da criança. Seria válida

se fosse objetiva e justa. Pode sê-lo, parcialmente pelo menos, quando se

trata de aquisições simples; por exemplo: a técnica das quatro operações

aritméticas. Mas quando se trata de trabalhos mais complexos, em que a

inteligência, a compreensão e as próprias noções de comportamento entram

em jogo, qualquer medida sistemática é desencorajadora.

Seguindo esta linha de raciocínio temos os seus comentários sobre o invariante 21:

É inútil classificar os alunos por turmas ou cursos: nunca têm as mesmas

necessidades ou aptidões, sendo profundamente irracional pretender que

todos avancem ao mesmo ritmo. Uns enervam-se porque têm de marcar

passo, enquanto desejariam e poderiam andar mais depressa. Outros

desanimam porque são incapazes de continuar sem auxílio. Só uma pequena

minoria aproveita o trabalho assim organizado. Procurámos e encontrámos a

possibilidade de permitir que as crianças trabalhem ao seu ritmo próprio, no

seio de uma comunidade viva.

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A escola e as consequências que decorrem de suas características: ainda uma reflexão

Para encerrar toda esta análise e este capítulo que começou com a genealogia da

escola ainda resta por fazer uma reflexão sobre as consequências que estas características

fomentam no espaço escolar, na sala de aula e principalmente na formação do aluno. Falamos das

características, mas ainda não aprofundamos a reflexão sobre suas consequências. Proponho,

então, darmos uma olhadela para esta sala de aula tradicional, ainda que fictícia e modelar, para

pensarmos sobre o que este modelo está favorecendo para a formação destes alunos.

Assim, vamos imaginar todos aqueles estudantes sentados nas suas carteiras enfileiradas

e viradas para a frente onde a professora já encheu a lousa com um texto que deve ser copiado por

todos, ou nas classes “modernizadas” já colocou na tela a apresentação do conteúdo. Eles deveriam

copiar no mesmo ritmo, mas sempre tem aquele aluno que termina mais depressa. Ele, então, avisa a

professora que já acabou (dá uma olhada para os colegas em volta) e pergunta sobre o que ele pode

fazer agora. A professora, sem se dirigir à carteira deste aluno, pede que ele espere os outros

terminarem. Uma simples cena que pode nos dizer muito sobre o que ali se ensina e se aprende.

Proponho um desvelamento desta cena e algumas reflexões em contraponto,

apelando para possíveis caminhos apontados pela Pedagogia Freinet. Como já vim fazendo ao

discutir as características da escola – trazendo propostas ou formulações da Pedagogia Freinet

como possibilidade de contraposição a elas – também aqui proponho a reflexão sobre alguns

dos eixos desta pedagogia e suas possibilidades para pensar novos modos de fazer escola.

Começo com uma questão: por que o aluno avisa que já acabou? E ainda por cima

dá uma olhada para os colegas? Não é difícil concluir que ele se gaba para os colegas, pois

terminou primeiro. E, num ambiente em que todos estão fazendo a mesma coisa, ao mesmo

tempo (própria do ensino simultâneo), a competição para ver quem termina primeiro aflora,

mesmo que esta conscienciosa professora tenha iniciado a manhã de trabalho com uma bela

preleção ou uma história de um livro infantil sobre a importância da cooperação entre as

pessoas. A competição vai sendo aprendida no agir, embora o falar, o discurso, diga outra coisa.

O que buscamos na organização de nossas classes segundo os princípios da

Pedagogia Freinet é, pelo contrário criar um ambiente que favoreça a cooperação entre os

alunos. Os complexos de interesses que se tornam projetos de trabalho de todo o grupo têm

como premissa que todos poderão contribuir, segundo suas capacidades e seus potenciais para

a consecução de uma obra coletiva: um álbum, uma maquete, um painel de pinturas... Não

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queremos dizer com isto que está banida de nossas salas a competição – às vezes saudável e

estimulante – , mas que ela se inscreve numa produção coletiva e que poderá favorecer um

desempenho que se engaja num compromisso de desenvolvimento pessoal.

Um exemplo concreto de como trabalhamos numa sala Freinet poderá ser mais útil para

explicitar o que quero dizer. Uma turma de 2º ano da Escola Curumim estava envolvida com a

pesquisa sobre as danças e brincadeiras típicas nas diferentes regiões do Brasil. Para divulgar suas

descobertas eles queriam fazer um grande mapa do Brasil no qual eles iriam colar seus desenhos

representando as diferentes danças que haviam pesquisado. Para fazer o mapa duas alunas muito

habilidosas utilizaram a técnica do retroprojetor – elas projetaram o mapa numa grande folha de

papel pardo pregada na parede e, com canetas grossas de hidrocor foram contornando o desenho.

Quando este trabalho ficou pronto era preciso colorir todo o mapa. A técnica de pintar com as mãos

era própria para aquela superfície tão grande e dois alunos (um que tinha Síndrome de Down e outro

com Deficiência Intelectual) ficaram responsáveis por esta etapa do trabalho e foram ajudados pelas

meninas que haviam feito o contorno do mapa. Enquanto isso, nos outros ateliês, outros alunos se

encarregavam de desenhar as personagens que representavam as diferentes danças regionais. Dia a

dia o projeto ia ganhando forma. Pequenos textos explicativos também foram feitos e quando os

alunos expuseram seu trabalho no painel na entrada da escola todos se sentiam autores do belo

trabalho. Esta é uma outra cena possível para a organização da sala na qual o trabalho cooperativo é

vivido como uma necessidade para a realização e satisfação de todos no grupo.

Voltando a nossa análise daquela cena tradicional podemos nos indagar sobre o

que leva este menino a perguntar sobre o que pode fazer a seguir. Não é exagerado pensar que

a professora pode mandá-lo esperar em silêncio, com os braços cruzados (lembrem-se que

estamos fazendo um exercício de ficção, e sabemos que o ambiente nas escolas é bem mais

tumultuado e complexo). Podemos perceber mais uma consequência que está se forjando na

formação deste menino e de seus colegas que está ligada à impossibilidade de tomar decisões.

Ele pergunta à professora porque não pode decidir por si mesmo o que quer fazer a seguir. É a

heteronomia que vai se perpetuando no processo de formação desta criança. Embora muito se

diga sobre a importância de permitir o desenvolvimento da autonomia, mais uma vez,

constatamos nas práticas correntes no modelo tradicional, e mesmo nas suas práticas

atualizadas, o impedimento de seu exercício instituído pelo próprio modelo.

O trabalho pedagógico que prevê a Pedagogia Freinet organiza-se em torno de

escolhas e compromissos que o aluno vai aprendendo a assumir no seu processo de

desenvolvimento. Assim, os Planos de Trabalho, as metas que ele elege (claro que muitas vezes

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com a orientação da professora) visam a estimular o aluno a tomar decisões. Quando ele

terminar determinado trabalho, pode consultar seu próprio Plano e ver quais atividades poderá

desenvolver na sequência. A construção da autonomia vai se forjando dia a dia num processo

paulatino que, é certo, nem sempre é linear e de acordo com um figurino (da própria Pedagogia

Freinet), mas que é oportunizado e envolve o trabalho do professor num diálogo com o aluno.

Outra observação que podemos fazer, voltando àquela cena, é que a professora

não irá ler o que o aluno escreveu. Talvez, se for uma professora muito conscienciosa, ela

poderá ir até a carteira dele, tomar seu caderno e corrigir sua escrita. Mas ela não irá ler o

aluno, pois só lemos quando não sabemos ainda o que está escrito e, neste caso, a professora

já sabe, afinal foi ela mesma quem escreveu na lousa. Estamos diante de uma situação

formadora que informa (e forma) àquele aluno de que escrever é repetir o que já está escrito.

Não há possibilidade de criação ou de expressão original de si mesmo pela palavra e, diga-se

de passagem, por qualquer outro meio expressivo. Temos então, na mera repetição do já

pronto, mais uma consequência para a formação do aluno.

A livre expressão de que nos fala Freinet se apoia numa prática muito presente na

sua sala de aula: o texto do aluno será lido aos demais do grupo. Escreve-se para comunicar

suas ideias e sentimentos e esta produção será submetida ao grupo. O texto é lido porque

ninguém sabe ainda o que foi escrito. Ele poderá ser escolhido para ser publicado (no jornal

da turma, num álbum que está sendo produzido, num boletim da escola etc.), ganhando assim

sua característica de produção concreta no seio de uma comunidade.

Ainda uma questão podemos lançar para a cena descrita. Ao terminar a cópia, é

possível imaginar que este aluno dá um suspiro de alívio de quem diz: “ufa, acabei!”. Mas por que

uma criança, cheia de vida, apressa-se em livrar-se logo da cópia? Para uma tarefa sem graça e

mecânica, nossa melhor resposta é mesmo a de alívio ao terminarmos. O trabalho se torna tarefa,

muitas vezes sem vida e sem significado. Chega-se mesmo à admissão de que o recomendado é não

ultrapassar um x de minutos e que depois precisa descansar. E, por mais que queiramos defender as

virtudes do trabalho, agimos na prática ensinando nossos alunos um tarefismo vazio e sem graça.

Com a Pedagogia Freinet buscamos favorecer o engajamento em um trabalho que

responda às necessidades da criança, que seja funcional. Se observarmos a nós mesmos,

adultos, veremos que quando nos engajamos em um trabalho que nos absorve e interessa,

podemos passar horas dedicados a um esforço que no fundo nos alimenta e realiza. Assim

também acontece com a criança. Nosso esforço pedagógico deve ser sempre no sentido de

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encontrar o trabalho que permita a expressão da criança no mundo. Um trabalho que seja

criativo e que esteja ligado aos interesses da criança, suas necessidades vitais.

As consequências educativas que acabamos de elencar, embora certamente não

esgotem a questão, podemos resumir como eixos para a formação da criança e do adolescente

na escola tradicional: competição, heteronomia, repetição e tarefismo. E, assim, todo o nosso

edifício pedagógico construído ao longo dos anos mostra suas fendas, a escola vê-se numa crise.

A sociedade mutante, nossa “modernidade líquida” olha para a instituição escolar e aponta suas

ineficiências, questiona seus métodos. Mas, muitas vezes, esta escola segue praticando seu

velho script sem se preocupar ou mesmo reconhecer a crise ou, por outro lado, lança-se em

ativismos transformistas que correm o risco de desvalorizar ainda mais esta instituição e

enfraquecer suas possibilidades de exercer um efetivo papel na formação das novas gerações.

Mas, se não queremos destruir a escola, acredito que as respostas mais capazes de

superar o impasse que se coloca devem ser buscadas na própria escola, que ela se volte um

pouco para si mesma, se reconheça e reconheça seu papel na sociedade e, revalorizando-o,

possa, a partir daí, voltar o olhar para a sociedade para estabelecer um diálogo que renove

suas relações.

E, para que possamos enfrentar a crise é preciso construir novas respostas,

embasadas no conhecimento do passado, que ofereçam outros vislumbres de futuros. É

preciso retomar as questões colocadas no quadro inicial desta tese:

Como transformar a escola num ambiente em que o acontecimento seja colocado como

centro do processo educativo?

Como fazer da escola um lugar de relações subjetivas não pré-estabelecidas, um lugar de

relações autênticas e cooperativas?

Em que a Pedagogia Freinet pode contribuir nas respostas a estas questões?

Temos, na Pedagogia Freinet alguns vislumbres para novas possibilidades, outros

eixos a guiar a prática: a cooperação, a autonomia, a livre expressão e o trabalho.

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Figura 40: Freinet e seus alunos.

Fonte: Les amis de Freinet44.

As questões deste trabalho, o estudo da história, as análises sobre o modelo

escolar institucionalizado, tudo o que foi apresentado até aqui, foi e está sendo feito por

alguém que, tendo vivido as dificuldades do processo, pode dizer “de cátedra”: sei que não é

fácil. E, no entanto, nas situações vividas com os alunos encontrei perguntas. Nas situações

vividas com os alunos encontrei respostas. Nas situações vividas com os alunos encontrei a

mim mesma e me encontrei com eles. Volto então à escola. Não aquela das teorias e análises

(ainda que aquela, sim, mesmo que pela negação das características que nela se

impregnaram), mas aquela onde piso, onde caminho todos os dias.

44 Disponível em <http://www.amisdefreinet.org/goupil> Acesso em 12/07/2014.

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3. A NARRATIVA COMO INVESTIGAÇÃO DE SI ABRINDO POSSIBILIDADES

PARA A REFLEXÃO E COMPREENSÃO

“A ciência é grosseira, a vida é sutil, e é para corrigir

essa distância que a literatura nos importa. Por outro

lado, o saber que ela mobiliza nunca é inteiro nem

derradeiro; a literatura não diz que sabe alguma coisa,

mas que sabe de alguma coisa; ou melhor; que ela sabe

algo das coisas – que sabe muito sobre os homens”.

(Roland Barthes)

A narrativa do vivido será, a partir daqui, nosso caminho para tentar explicitar as

reflexões tornadas possíveis no processo e com isso buscar as lições. A lida com as crianças

trazia os questionamentos à minha própria ação, mas também os estudos, as leituras e

discussões que o contato com a vida acadêmica sempre me estimularam me levavam a refletir

sobre essa lida, colocá-la em dúvida, questioná-la.

Antes de qualquer coisa, explicito mais uma vez que grande parte de minha

história pessoal e profissional está narrada na dissertação de mestrado que defendi em 2004, e

entendo que muito deste trabalho de tese está ligado a uma retomada e um aprofundamento de

muitas das ideias já desenhadas na dissertação.

Os recortes que escolhi fazer agora de toda aquela narrativa da dissertação se

ligam a reflexões que se tornaram possíveis, justamente, a partir deste aprofundamento. Serão

alguns episódios que irei narrar como forma de explicitar momentos e acontecimentos que me

proporcionaram aprendizagens e des-aprendizagens. Os quatro primeiros são episódios em

modo de novela de formação. Creio que se justificam como forma de explicitar o lugar de

onde falo, as experiências que me constituíram, mas também como reflexões sobre as

características da escola tradicional e os desafios que se colocaram a mim quando me vi a

braços com a tarefa de praticar uma outra pedagogia, rompendo com o modelo no qual me

formei. Na sequência entrarão outros episódios mais recentes nesta minha trajetória de

educadora, exercendo o papel de coordenadora e diretora de escola, mas que também

tematizam as características da instituição escolar descritas no terceiro capítulo.

Algumas características da Pedagogia Freinet diferenciam-se radicalmente daquelas

do modelo tradicional descritas no capítulo 2. Acredito que não seja necessária aqui uma

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exposição sobre a biografia deste professor primário, criador de um movimento internacional de

educadores, autor de vasta obra pedagógica. Existe já uma bibliografia importante sobre este

tema, uma ampla literatura. As obras de Elise Freinet são referências básicas, tanto do ponto de

vista biográfico quanto das suas ideias e criações em pedagogia. No Brasil, as obras de Sampaio

(2002) e Oliveira (1995) e Santos (1993) são referências necessárias para aqueles que se

interessam em conhecer sua vida, sua obra e o contexto no qual ele viveu.

Muitas teses e dissertações que abordam a Pedagogia Freinet e apresentam sua vida e

obra também já têm sido defendidas. Destaco, por exemplo, as reflexões da tese de Boleiz (2012),

que realiza um estudo comparativo entre Célestin Freinet e Paulo Freire, como trabalho relevante

tanto no aspecto da biografia de Freinet quanto na análise sobre um eixo central de sua pedagogia:

o trabalho. Além desses, temos a dissertação da professora Munhoz (2010) que apresenta Freinet

e o movimento internacional que ele ajudou a criar, destacando assim um aspecto fundamental

desta pedagogia (que é o de se propor a uma constante reflexão, por parte dos professores sobre

suas práticas). Muitos outros trabalhos são citados nas referências bibliográficas desta tese.

Mas para o escopo deste trabalho interessa descrever alguns instrumentos, uma certa

forma de organizar o espaço/tempo da sala de aula, para que possamos discutir alguns temas que nela

se fazem presentes. Assim, dos episódios narrados irei destacar instrumentos da Pedagogia Freinet que

se encontravam em ação naquela sala, naquele momento, com aquela turma e aquela professora, para

depois discutirmos os temas e as aprendizagens tornadas possíveis a partir da experiência. Ou seja,

entre a narrativa (os episódios) e as lições e reflexões que pude tirar da experiência vivida, irei interpor

breves apresentações dos instrumentos da Pedagogia Freinet. São eles que, a meu ver, dão

materialidade ao fazer pedagógico inovador e propiciam a construção de novas relações, mais

cooperativas e humanizadas entre professores e alunos. Essas descrições dos instrumentos, mesmo

não sendo ainda a discussão sobre o tema geral da tese, fazem-se necessárias para explicitar um outro

modo de organizar o trabalho pedagógico a fim de podermos discutir suas consequências. Dito de

outra maneira, o que acontece quando praticamos uma outra dinâmica? O capítulo pretende apresentar

as ideias que constituem esta tese, a partir da minha experiência com os instrumentos da Pedagogia

Freinet e sua filosofia. Em suma, é uma tese com Freinet e não sobre Freinet.

Para iniciar esta tarefa chamo ao diálogo o próprio Freinet, que no livro Para uma

escola do povo chama a atenção:

Porque queremos construir efetiva e solidamente a partir do real, procuramos

instrumentos, técnicas e uma organização que permitam resultados educativos

máximos com professores que se conservam na órbita do humano: quer dizer que

podem perder a calma em muitas circunstâncias, que nem sempre manifestam

uma habilidade notável, sabem dedicar-se, é certo, mas são incapazes na maioria

das vezes de alcançar a comunhão e o amor. (Freinet, 1978, p. 121).

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“Professores que se conservam na órbita do humano”: destaco este trecho porque

começo por aí para pensar nas narrativas e nas lições que se tornaram possíveis a partir do vivido,

pois é só na “órbita do humano” que se pode falar em subjetividade das relações. E como seres

humanos (ocupando o lugar de educadores) em relação de alteridade com outros seres humanos

(ocupando o lugar de educandos), proponho pensarmos nos instrumentos da Pedagogia Freinet

não como fórmulas, não como receitas, mas como possibilidades de se constituírem relações

cooperativas, autênticas e capazes de acolher acontecimentos. Reforço a advertência: é preciso

que sejam compreendidos como escolhas conscientes que fazemos na busca de transformar a

prática pedagógica. Ou seja, eles não são receitas simplificadas do como fazer. O que propõe são

“novas instituições” que queremos viver na sala de aula45.

Mas nós professores somos seres que se perguntam sobre o como. Como eu faço

na sala de aula? A pergunta “como?” em educação, na perspectiva que adoto, só pode ser

respondida com um “como eu fiz”, pois as situações não se repetem. Posso contar como vivi,

mas o outro a quem me dirijo não viverá a mesma cena. Minha experiência, se compartilhada,

pode inspirar, sugerir, mas não se pode esperar que ela seja repetida. As imagens de outras

cenas de uma outra vida escolar possível irão compor a sequência deste trabalho.

À guisa de enfatizar a impossibilidade de sermos o “professor sol” de que nos fala

Comenius e compreendendo que o professor repetidor dos saberes construídos alhures encontra-se

esvaziado das certezas e verdades que a ciência nos prometia, retomo o diálogo com Larrosa:

Talvez tenhamos que aprender a pronunciar na sala de aula uma palavra

humana, isto é, insegura e balbuciante, que não se solidifique na verdade. Talvez

tenhamos que redescobrir o segredo de uma relação pedagógica humana, isto é,

frágil e atenta, que não passe pela propriedade. (Larrosa, 2000, p. 165)

45 O uso da palavra “instituição” – escolhida por mim neste trabalho – pode dar margem a compreensões

equívocas, mas ainda assim escolho utilizá-la e explico que sua utilização busca marcar a diferença que

estas “novas instituições” têm em relação às velhas. Contra a velha instituição, por exemplo, da lousa e do

professor frontalizando e determinando o espaço e o tempo do trabalho escolar, veremos a instituição da

Roda de Conversa, ou da classe em ateliês para modificar o espaço, o tempo e as relações educativas. São

instituições que se colocam a serviço da constituição da sala de aula como um “canteiro de obras”,

expressão utilizada por Freinet e que ilumina o tipo de trabalho e de relações que se deseja estabelecer neste

ambiente arejado e renovado.

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Uma novela que me formou: retomando alguns passos de minha trajetória

Minha formação inicial já havia provocado comissuras na ingênua e entusiasmada

jovem que entrara na faculdade cheia de certezas. Dizia mesmo – com o entusiasmo ainda intacto

da juventude –, nas conversas informais, aos amigos e colegas, que era preciso dizer à sociedade,

explicar aos governantes, que para podermos sair do estágio de pobreza e subdesenvolvimento em

que nos encontrávamos, era preciso educar o povo, levar a eles os conhecimentos e a cultura que

nos libertariam da ignorância e atraso. Confesso minha ingenuidade...

Uma necessária ducha de água fria caiu na minha cabeça quando comecei a tomar

contato com as teorias sociológicas, em especial as ideias de Althusser e de Bourdieu, sobre os

problemas da educação como aparelho ideológico de estado e a reprodução do status quo. A

visão crítica da Educação teve, para mim, um forte impacto que me levaria a muitos

questionamentos e a uma sensação de imobilidade e impotência. Mas junto com o choque

nascia um desejo de resistir e o sentimento de que nem tudo estava perdido. Os próprios

professores nos estimulavam a uma criticidade, mas também nos apontavam para as “brechas

do sistema” – expressão muito corrente naqueles tempos de ditadura militar em que

conversávamos em voz baixa e com a sensação de um gelo na nuca de alguém a nos espiar.

A visão crítica da educação que foi parte fundamental de minha formação inicial

me apontava para dois caminhos: acomodar-me e, como um avestruz, fingir que estava tudo

certo e seguir reproduzindo velhos modelos, ou tentar novas possibilidades, buscar conhecer

outras experiências.

Assim, ainda estudante de Pedagogia no final dos anos 1970 e início dos 1980,

quando busquei trabalho como professora, foi natural para mim querer conhecer experiências

novas em educação. As críticas ao ensino tradicional calavam fundo na jovem que eu era e

aquele desejo de me engajar em projetos inovadores me levou, no ano de 1980, durante os

meses de maio e junho, a um estágio na Escola Curumim.

Senti um sopro de esperança, uma admiração pelo trabalho que as pessoas faziam

ali, sentia-me identificada nas conversas com professores desta escola. Tudo o que queria era

aprender mais sobre a educação alternativa. Embora com muitas discussões e desentendimentos

(presentes naquela escola e exaustivamente narrados na dissertação de mestrado) a proposta da

Pedagogia Freinet ia ganhando espaço na equipe e eu fui me encantando com sua filosofia, com

seus instrumentos e as possibilidades que eu antevia de uma prática mais coerente com as

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aprendizagens que a formação inicial me oportunizara. Fui encontrando as ancoragens

necessárias para desenvolver as práticas da professora que eu queria ser.

No mês de julho trabalhei com outra professora no curso de férias oferecido pela

escola. No mês de outubro daquele mesmo ano surgiu a oportunidade de substituir uma professora;

assumi uma turma de crianças de dois a quatro anos em dupla com outra professora. No ano

seguinte, naquele mesmo esquema de trabalhar em dupla com outra professora, assumi uma turma

de crianças de quatro a seis anos. Fazíamos muitas reuniões pedagógicas e encontros informais nas

nossas casas. Comecei a ler os livros disponíveis sobre a Pedagogia Freinet, ouvia muito o que as

outras professoras falavam e ia tentando incorporar os princípios desta pedagogia. No final do ano

(1981) nasceu minha filha Mariana e então passei o primeiro semestre de 1982 afastada da Escola.

Quando voltei, em agosto, assumi com outra professora a classe de quatro a seis anos. Era uma

turma grande, com vinte e oito alunos, e minha colega enfrentava sérias dificuldades pessoais que a

obrigavam a faltar com frequência. Mas estávamos muito empenhadas em aprender e utilizar os

instrumentos da Pedagogia Freinet em nossa sala, havíamos organizado vários ateliês.

Por formador que se constituiu faço a seguir a narrativa de um episódio que

ocorreu naquele ano com aquela turma.

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1ª NARRATIVA: da solidão de ser professora à construção de outro modo de estar na sala de aula. Uma data imprecisa de lembranças muito vivas.

Cheguei à escola às 13:00. Meus alunos também estavam chegando. Passei pela cozinha para tomar um café e a secretária veio me avisar que a Edi (minha colega de docência) tinha telefonado, dizendo que hoje não viria novamente. Fui para a área externa, procurei minha turma, alguns estavam jogando bola no gramado, outros brincavam no tanque de areia. Fui chamando todos eles: “pra sala! Pra sala!”

Eles foram entrando e eu fui buscar o Peri e o Raoni que ainda brincavam lá fora. “Ah... espera um pouquinho...”, “já vou...” Um pouco relutantes – pois a brincadeira estava divertida – eles vieram. “Vamos fazer nossa Roda, turma?”

Sentamos todos no espaço da sala que era reservado para a Roda. Eram 28 alunos presentes naquele dia e o espaço era pequeno. Então fui organizando com eles para que todos pudéssemos nos ver e ouvir. “Senta mais pra cá”, “dá espaço pra sua colega...” Em seguida iniciamos a Roda.

“Quem é o responsável pelo nosso calendário da semana?” (esse calendário era uma locomotiva: seus vagões recortados em papel cartão e pendurados em um cordão formavam o nosso trenzinho, representando o domingo e os outros dias da semana). Eu tinha preparado este material no fim de semana e estava contente de mostrar a eles como deveríamos usar esse “trenzinho da semana” que tinha, para mim, o objetivo pedagógico de ensinar este conteúdo.

Piatã se apresentou e virou de costas o vagão da quarta-feira do nosso trenzinho. “Hoje é quarta, né Gláucia?”, “sim, turma. Bom, tenho que dizer uma coisa: hoje a Edi faltou.” Alguém pergunta: “ela está doente?” , “sim, mas amanhã ela vem, tá bom?”

Fizemos uma rodada de novidades. O Irati contou que tinha um cachorrinho e os colegas gostaram de saber. Eles comentam sobre seus bichos de estimação. Proponho que a gente pesquise sobre cachorros e outros bichos de estimação e várias crianças se animam com a ideia. Mas logo começa uma pequena confusão entre alguns meninos. Alguém grita: “para, Peri!”. Pergunto o que foi. “Ele tá me beliscando!”, “olha pessoal, hoje eu estou sozinha, então preciso que vocês se comportem bem. Vamos trabalhar tranquilos, tá?”

Continuamos mais um pouco na Roda e vejo que eles começam a se agitar. Eu ainda queria que aproveitássemos o tempo para conversar sobre os dias da semana e do mês, queria explorar outro material preparado (um calendário com os dias do mês) e pretendia ensinar isto a eles. Mas a agitação foi aumentando...

“Vocês querem começar o trabalho nos ateliês?”, “sim”, “então, tá. Venham colocar seus nomes no quadro de ateliês” (um quadro de pregas no qual colocávamos os ateliês que estavam em funcionamento no dia, e nas pregas abaixo de cada ateliê cada aluno devia colocar o cartãozinho com o seu nome).

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“Hoje tem ateliê de desenho, de recorte/colagem, de escrita no caderno, de casinha e de leitura”, “ah... Gláucia... a gente queria o ateliê de pintura” (Peri e Raoni), “ah... não sei não... Acho que hoje não dá porque a Edi não está aqui pra ajudar”, “mas deixa... vai? A gente sabe fazer sozinho...”

Outra criança (um dos menores da turma) vem me perguntar alguma coisa e vou atendê-la, deixando os dois sem resposta. Logo depois fui olhar o quadro de ateliês e vejo que algumas crianças já se dirigiram para o trabalho, mas não colocaram seus cartões de nome nas respectivas pregas. Então vou procurá-los para que venham fazer isto. Este quadro de pregas era importante, nas nossas reuniões pedagógicas conversávamos muito sobre a necessidade de registrar o que as crianças faziam, que ateliês elas estavam escolhendo. A partir dele eu anotava num outro quadro bem grande o que cada criança tinha feito de ateliê a cada dia. O objetivo era ter um controle sobre as atividades das crianças para que pudéssemos fazer o Relatório Individual para os pais.

Como as crianças estavam trabalhando nos diferentes ateliês eu aproveitei para dar uma passeada pela sala, olhar o trabalho deles, ver se precisavam de algo. Sentei-me ao lado de um grupinho que estava no ateliê de escrita.

De repente escuto um barulho de vidro se quebrando.

Nossa sala era toda dividida em cantos, com prateleiras ou biombos (de no máximo 1,20m de altura) separando cada ambiente. Então, ali sentada com as crianças, eu não podia ver o que estava acontecendo lá no outro canto da sala, de onde vinha o barulho. Em voz alta perguntei o que estava acontecendo. “Pode deixar Gláucia! Não foi nada!”.

Pedi que esperassem um pouquinho, que eu já estava chegando lá. Mas, ao chegar, vejo que Peri já tinha ido buscar vassoura e pá e estava recolhendo os cacos. As outras crianças do ateliê também estavam arrumando a bagunça. Ajudei-os a reorganizar o espaço. Estava tudo bem. Eles voltaram ao trabalho.

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OS INSTRUMENTOS DA PEDAGOGIA FREINET EM AÇÃO

RODA DE CONVERSA

É assim que começamos o dia com as crianças.

Figura 41: Roda de conversa de uma turma de 4º ano na Escola Curumim. Fonte: acervo da autora.

A roda de conversa institui-se como espaço/tempo para as expressões de cada

um e se constitui como possibilidade do acolhimento a todos e a cada um. Um espaço circular

(não mais frontalizado) que se orienta para o acolhimento à palavra da criança, à sua

expressão autêntica e para a construção do diálogo que vai se dar entre professor e aluno

(mas também entre aluno e aluno, dimensão esta não prevista no modelo tradicional). A

professora Andréa Siste (2003, p. 87) nos dá uma medida deste momento na vida do grupo:

a roda é o primeiro momento do dia, nosso primeiro olhar. A própria

situação física já nos proporciona um prazer imenso: sentados no chão, em

círculo, num canto da sala (de preferência longe da porta para evitar

interrupções), podemos ver e ouvir cada um, e somos vistos e ouvidos por

todos também. É o momento da acolhida aos que chegam, tímidos no início.

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Na Roda vamos ver todos que vieram, saber se faltou alguém, vamos marcar o

calendário, escolher os Ajudantes da Semana e pode ser também o momento de organizar

a rotina de trabalho do dia ou da semana. O registro das conversas da Roda é feito no

Livro da Vida (outro instrumento da Pedagogia Freinet que abordaremos mais adiante).

Assim, as crianças e a professora trazem suas novidades para a Roda. Cada um

que quiser falar precisa se inscrever e esperar a sua vez. Nas turmas que já dominam a

escrita, costuma-se combinar com as crianças que tragam suas novidades para serem lidas

aos colegas. As novidades (faladas ou escritas) que vão sendo trazidas pelas crianças

costumam despertar o interesse das outras. O papel do professor reveste-se de cuidado e

atenção para perceber e explorar este interesse. Procurar as possibilidades de exploração

que a novidade trazida oferece envolve nossa escuta atenta e livre de ideias

preconcebidas. É então que podem surgir temas ou projetos de trabalho do grupo. A partir

daí podemos fazer outras coisas na Roda como, por exemplo, compartilhar informações

que eles estão pesquisando sobre os assuntos em torno do projeto.

Figura 42: Roda de conversa de uma turma de 2º ano na Escola Curumim. Fonte: acervo da autora.

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A CLASSE EM ATELIÊS

É nos ateliês que iremos realizar nossos projetos. A sala se transforma num

canteiro de obras. Pintura, escrita, leitura, fichas de atividades, recorte e colagem,

pesquisas e experiências, o computador: são inúmeras as possibilidades de organização do

trabalho. Nos ateliês oferecemos os materiais necessários para que a criança dê

seguimento aos seus projetos, seus interesses e necessidades.

Figura 43: Trabalho em ateliês de uma turma de Infantil (4 a 5 anos) na Escola Curumim. Fonte: acervo da autora.

Diversas atividades acontecem ao mesmo tempo. Não mais a simultaneidade

de todos fazerem a mesma coisa ao mesmo tempo: temos, nesta forma de organizar o

trabalho no espaço/tempo da sala de aula, a possibilidade de atender às diferentes

necessidades e interesses das crianças. Todos fazendo diferentes trabalhos ao mesmo

tempo, cada um segundo suas necessidades, possibilidades e interesses – inverte-se a

ideia de simultâneo para um “tudo ao mesmo tempo agora”.

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REFLEXÕES SOBRE O EPISÓDIO

“O que era vidro se quebrou” e se abriu um novo encontro

O pequeno episódio, orientado pelas concepções da Pedagogia Freinet, inscrevia-

se no quadro de uma desconstrução do modelo frontalizado e simultâneo. Iniciávamos o dia

com a Roda de Conversa, abria-se o espaço para a expressão livre das crianças. Mas tudo isto

apresentado assim parece algo simples. Basta sentar-se com as crianças em círculo, conversar

e pronto: está “desfrontalizado” o ensino e agora temos uma relação de acolhimento, de

expressão livre e de ordem democrática na sala de aula. Instaura-se o exercício da cidadania.

É isto mesmo! Mas também não é. As crianças, aquelas ali bem concretas e encarnadas diante

de mim, beliscavam-se, inquietavam-se. Logo começava uma agitação entre elas. E a

professora que eu era ainda se angustiava com os riscos de uma perda de controle.

Após a Roda de Conversa as crianças iam todas trabalhar em diferentes ateliês, cada

uma buscando um trabalho que as satisfizesse nas suas necessidades de produzir algo, de se

expressar. Era assim, mas também não era. Não era tão harmonioso assim este momento.

Algumas crianças encontravam uma atividade, um trabalho ao qual se dedicar, outras ficavam

um pouco perdidas e necessitavam de minha ajuda (Peri e Raoni foram para o ateliê de pintura

mesmo sem a minha concordância). Aqueles alunos, embora fossem crianças pequenas, me

mostravam ser capazes de tomar para si a responsabilidade pelo bom andamento do trabalho,

mas também se mostravam perdidos. As crianças trabalhavam muito, estando eu “sozinha” ou

acompanhada da outra professora, mas eu não percebia este trabalho, sentia que não estava

interferindo adequadamente para produzir neles as corretas aprendizagens. Preocupava-me em

produzir os quadros de controle da frequência em cada ateliê.

E também me sentia só diante da turma. Um certo modelo do ofício de ser

professor colocava-me esta sensação de solidão diante do grupo de alunos. Por que

dizemos que estamos sós diante de uma classe? A História da institucionalização da escola

analisada no terceiro capítulo pode nos mostrar o quanto esse processo se deu de forma a

construir relações de controle sobre a criança, sobre a infância, enquadrando-a aos princípios

ora da doutrinação, ora da racionalização, ora do adestramento e da conformação às

necessidades de formação de trabalhadores.

Como vimos, o projeto religioso – em que o exemplo da Ratio Studiorum elaborada pela

Companhia de Jesus se destaca – foi minuciosamente sistematizado para selecionar, organizar e

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controlar os conteúdos e os fazeres educativos, prescrevendo um certo modo de estar em relação com

os alunos que esvaziava desta relação o componente de cooperação entre mestre e aprendiz. Instituía-

se um modo de conceber o aluno como alguém a ser domado, alguém contra quem se coloca a figura

do professor. É certo que no próprio processo histórico este modelo foi sendo superado nas e pelas

transformações sociais e políticas que continuaram se dando, porém as práticas, os gestos que já

haviam sido difundidos como a forma pedagógica de realizar o trabalho de ensino permaneceram,

continuaram a desempenhar no imaginário das gerações que se seguiram o papel de modelo para o

modo de relacionamento entre professor e aluno. Pudemos ver isto no próprio surgimento de outros

projetos educativos (entre os quais demos já alguma atenção para as ideias de Comenius). Separado do

aluno, fisicamente distante dele, coloca-se o “professor sol”. A cooperação que se exigirá do aluno

será a de manter-se atento e em silêncio, ouvindo as palavras do mestre.

O papel do professor foi construído de forma a enfatizar como sua a atribuição de

conduzir o aluno. Instalou-se como cerne do fazer pedagógico a ideia de um exercício de controle

sobre a criança, sobre seu corpo e seu pensamento: dentro da sala de aula, os alunos devem pensar

naquilo que diz o professor, devem reagir com “aprendizagem” aos ensinamentos que ele apresenta.

O mestre sabe mais, o mestre sabe o que o aluno deve aprender. O sentimento de solidão instala-se

na própria relação, pois passa-se a entender que esta é uma relação na qual o fazer, a ação do

professor se dá sobre ou contra o aluno e não com o aluno. Logo, estamos sós.

Sei que não estive sozinha neste sentimento de solidão diante de crianças. Minha

experiência profissional, as tantas conversas em momentos de formação de professores, a

escuta de suas angústias e preocupações têm me mostrado que este é um tema recorrente.

A professora Sílvia Cristina Salomão desenvolveu sua dissertação de mestrado

fazendo uma pesquisa qualitativa a partir de sua própria experiência como professora de

Educação Infantil numa rede municipal. Fundamentando sua prática pedagógica em Freinet

e em Freire, seu trabalho defende a importância da escuta à palavra da criança e da

legitimidade da fala infantil como algo confiável e capaz de promover o protagonismo

infantil no processo educativo. Falando sobre o lugar do adulto na relação pedagógica,

conta-nos de seus receios docentes (Salomão, 2008, p. 37):

Falo dos riscos, que minha formação acusava, em perder o controle docente, em

assumir o imprevisto do cotidiano, em não se fazer nada de novo com os pequenos

e ficar apenas na escuta e registro descritivo do cotidiano. Enfim, de não saber o

que fazer e como encaminhar tanta vida nessas falas (grifos da autora).

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Há mesmo um risco quando nos engajamos em outros caminhos pedagógicos,

quando rompemos com os modelos vigentes. Então por quê? Para quê? Por que enfrentar tantos

riscos? Não seria mais fácil procurar a tranquilidade e segurança de rotinas repousantes, já

“consagradas” pelo discurso pedagógico? Não seria mais fácil e “garantido” ministrar a aula,

transmitir os conteúdos previstos e depois avaliar o grau de sua assimilação pelos alunos?

Nos anos 1960 Piaget publicou Psicologia e Pedagogia, uma das poucas obras

suas (dentre sua vasta produção) em que discute a questão da educação e na qual tenta

explicitar algumas possíveis consequências que seus estudos poderiam ter para as práticas

educativas, possíveis aproveitamentos no campo educacional para toda a pesquisa que

realizara. O próprio Piaget, ao constatar que ainda pouco progredira a prática dos métodos

ativos nas escolas, argumenta (Piaget, 1970, p. 69):

Porque os métodos ativos são muito mais difíceis de serem empregados do

que os métodos receptivos correntes. Por um lado, exigem do mestre um

trabalho bem mais diferenciado e bem mais ativo, enquanto dar lições é

menos fatigante e corresponde a uma tendência muito mais natural no adulto

em geral e no adulto pedagogo em particular.

Empresto da expressão artística e literária do conto de Calvino (colocado logo no

prólogo desta tese) a ideia do estranhamento necessário para de possamos desnaturalizar as

práticas tradicionais instaladas nas escolas há tanto tempo. Sua imagem de alguém acometido

por um raio que ilumina e faz ver as coisas, até ali tão naturalizadas, “semáforos, veículos,

cartazes, fardas, monumentos” como “tão afastadas do significado do mundo” faz sacudir

minha visão. Desequilibra-me e tira do lugar das certezas daqueles que acreditam que “está

tudo no lugar. Está tudo andando como deve andar. Cada coisa é consequência da outra. Cada

coisa está vinculada às outras. Não vemos nada de absurdo ou de injustificado!”

A inspiração que a leitura dos textos de Freinet trazia me proporcionava outras

visões do espaço da sala de aula, outros modos possíveis de me relacionar com as crianças. A

cena daquela sala do episódio narrado tinha uma forma de organizar o trabalho escolar que

rompia com duas das características do ensino tradicional: a frontalização do ensino e o

ensino simultâneo. Dediquei-me a promover uma outra forma de trabalhar, organizando os

diferentes espaços da sala, arrumando formas de ter prateleiras e estantes (que os parcos

recursos daquela escola cooperativa e iniciante limitavam) para criar um outro cenário, um

lugar diferente, mas no qual eu ainda não sabia me movimentar, sentia-me perdida. E,

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principalmente, com a presença de uns outros (as crianças) que não respondiam do modo

como eu sonhara ao ler as propostas de Freinet.

Ao invés dos riscos provenientes de meu imaginário de professora a quem era

atribuída a tarefa de ensinar e manter o controle sobre o ensinado, escolhi me preocupar com

os riscos concretos que inadvertidamente deixei passar: os frascos de tinta para o ateliê de

pintura eram de vidro e o vidro pode quebrar! Tive que fazer uma aprendizagem simples, que

parece quase uma bobagem, um detalhe ao qual quem não está no dia a dia da sala de aula não

dá muita importância: aprendi a usar frascos plásticos para guardar tintas, cola, anilina etc.

Para realizar um trabalho cooperativo e autônomo uma das preocupações que precisamos ter é

de garantir o acesso fácil e seguro aos materiais de trabalho.

Dividir a classe em ateliês para atender às diferentes necessidades daquelas

crianças (era uma turma de quatro a seis anos de idade) envolvia o risco de não saber

exatamente o que cada criança estava fazendo em cada momento do período de aula.

Enquanto aqueles dois meninos trabalhavam com a pintura, eu estava no outro lado da sala,

ocupada em ajudar outras crianças.

Voltava-me para as leituras do parco material sobre a Pedagogia Freinet

disponível naquela época. Dentre elas, uma publicação do Dossiê Pedagógico da Revista

L’Educateur (publicação do Movimento Freinet francês) me ajudava a refletir sobre minhas

práticas, instigava-me a seguir adiante. Nesta publicação encontramos que:

... nada será feito se não houver uma transformação das relações professor-

aluno, pois a Pedagogia Freinet é uma educação na confiança que é

acompanhada de uma real atitude das crianças de se encarregarem de seu

modo de vida e de trabalho. (L’Educateur, 1979)

Aprender a estar com as crianças promovendo uma transformação nestas relações

envolve um trabalho de nossa parte de proceder a um estranhamento deste papel para romper

com os paradigmas do modelo tradicional. Ainda em Salomão (idem, p. 21):

Para isso, é necessário, mas não suficiente, que haja como ponto de partida o

olhar de estranhamento do educador para com suas próprias práticas

cotidianas, no cenário do próprio espaço educativo, relacionado com a

infância, a criança, seus tempos e espaços.

Com Larossa (idem, p. 184) pudemos compreender que “a infância é um outro:

aquilo que, sempre além de qualquer tentativa de captura, inquieta a segurança de nossos

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saberes, questiona o poder de nossas práticas e abre um vazio em que se abisma o edifício

bem construído de nossas instituições de acolhimento”. As dificuldades logo se apresentam

quando nos lançamos nesta empreitada de relacionar-se com a alteridade de que se reveste a

infância. Talvez seja preciso pensar no modo como em qualquer aspecto e em qualquer

tempo de nossa vida nos relacionamos com os outros, quaisquer outros (adultos ou crianças).

O primeiro invariante de Freinet (“a criança é da mesma natureza que o adulto”) coloca-me

diante de um outro que, embora da mesma natureza que eu, leva-me a perceber o pouco que

sei de mim, leva-me a pensar na alteridade do eu mesmo. Não sou sempre igual, não sou

sempre um, sou estranho de mim, não me compreendo.

A experiência vivida logo naquele início de carreira me mostrava algo que eu

ainda não conseguia perceber: que podemos estar com os alunos. Sem dúvida há um caráter

de alteridade na relação professor aluno. Assumir esta alteridade da criança abre o fazer

pedagógico para o campo do inesperado, do imponderável. A pedagogia dos gabinetes lida

com uma criança ideal, mas não é ela que encontramos na sala de aula. Neste espaço/tempo

da sala de aula vivemos um encontro com a criança, o “outro concreto” ao qual Fina Birulés

já nos alertava. O projeto da modernidade pretendeu excluir das relações professor/aluno seu

caráter de subjetividade, prevendo relações racionalizadas e estereotipadas, porém, é preciso

reconhecer que, sendo relações entre pessoas, a subjetividade nunca esteve ausente.

Assumir o caráter subjetivo do encontro com este outro, a criança, é uma

aprendizagem que pode ajudar a desenvolver uma “educação na confiança”, e assim superar as

marcas da instituição escolar. Ensinou-me que educar é um trabalho coletivo porque se faz com

outros adultos (pais, colegas, coordenação, direção), mas principalmente com as crianças – nossos

primeiros parceiros. E a própria experiência ia me levando a perceber que nos dias em que a outra

professora faltava a turma se encarregava com mais afinco e responsabilidade da organização do

trabalho. Levava-me a perceber que eu estava acompanhada por 28 pessoas/crianças. Esta e outras

experiências foram me ensinando a confiar nas crianças. Fui aprendendo com Freinet, na prática

desta pedagogia, a deixar brotarem outras formas para esta relação (Freinet, 1991, p. 104):

Essa nova intimidade estabelecida pelo trabalho entre o adulto e a criança,

esse novo grafismo aparentemente sem objeto, valorizado pela matéria ou

pela cor, esse texto eternizado pela imprensa, esse poema que é o cântico da

alma, esse cântico que é como um apelo do ser para o afeto que nos

ultrapassa – é de tudo isso que vive a criança, normalmente alimentada de

pão e conhecimentos, é tudo isso que a engrandece e a idealiza, que lhe abre

o coração e o espírito.

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2ª NARRATIVA: um fracasso que não se silenciou

Ainda no ano de 1984 (quando havíamos recém-mudado a escola para o endereço da Rua Jasmim) eu trabalhava como professora numa turma de 1ª e 2ª série acoplada. Eram poucos alunos (somente dez) e a solução acordada com os pais foi a de reunir as turmas (seis alunos de 1ª série e quatro de 2ª série). Eu me sentia insegura e preocupada com o desafio, mas confiante nas propostas que a Pedagogia Freinet me apontava para atender às diferentes necessidades e níveis de aprendizagem dos alunos. O trabalho em ateliês, a imprensa que tínhamos na nossa sala para produzir o Jornal da Turma e a própria parceria com os pais eram pontos de apoio para conduzir o trabalho. O ano letivo foi se desenrolando, fui seguindo nos meus tateios para aprender a trabalhar com o Método Natural da Alfabetização.

No segundo semestre a escola foi procurada pela mãe de uma criança, para matricular seu filho. Ela foi atendida pela coordenadora, que depois me procurou para falar do caso. Tratava-se de um menino com deficiência intelectual severa. A coordenadora descreveu, em linhas gerais, a situação dele salientando que, além das visíveis dificuldades de fala e expressão, ele apresentava um comportamento hiperativo bastante acentuado. Na entrevista inicial com a mãe o menino estava presente e ela não havia conseguido fazer um contato, um diálogo com ele.

Fiquei bastante ansiosa mas, pensando em outras crianças que já havíamos recebido (com dificuldades ou deficiências leves, é importante explicitar), respondi que poderíamos fazer uma tentativa. E assim, no dia seguinte, Jupi veio para a minha sala.

Eu estava na porta da sala e chamei Jupi (que veio acompanhado da mãe) para entrar. Ele não me olhou nem respondeu, mas foi entrando na sala, procurando alguma coisa. Andava pelo espaço sem se fixar em nenhum objeto ou pessoa. Chamei a turma para nos sentarmos na Roda e ele continuou andando. Logo veio olhar para o grupo, agora sentado em roda e começou a “conversar” balbuciando palavras que eu não compreendia, dirigindo-se a um dos meninos da turma. Continuamos ali sentados e eu o chamei novamente: “venha sentar aqui comigo, Jupi”. Mas poucos minutos depois ele voltou a andar pela sala, dirigiu-se a uma prateleira onde guardávamos o material de desenho e recorte/colagem (papéis, algumas cartolinas, lápis, giz de cera, tubos de cola, tesouras) e derrubou vários destes materiais no chão e, deixando tudo ali, continuou a andar.

Nossa sala era pequena e, além da porta de entrada, tinha também uma segunda porta que dava para um pequeno corredor que levava à secretaria. Jupi saiu da sala por aquela porta e em pouco tempo estava lá fora, na área externa da escola (que era uma chácara bem grande). Fui ao seu encalço. Corri para alcançá-lo. Trouxe-o de volta à sala, mas o outros já estavam dispersos, três deles haviam saído da sala e ido para a amoreira que ficava no fundo da chácara.

O pânico foi se instalando em mim. Aquele menino não parou um só segundo. Foram, talvez, as mais longas quatro horas de aula de que me recordo. Em tudo

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ele tocava, falava o tempo todo, repetindo frases que eu não compreendia, andava de um lado para o outro, tentava sair da sala e, quando eu tocava em seu braço pedindo para voltar, ele escapulia para outro lado... Naquele dia, deixei a turma sozinha várias vezes para ir atrás dele e trazê-lo de volta à sala.

No final do dia procurei a coordenadora e disse que sentia que não daria conta de trabalhar com aquele menino. Ela concordou comigo e logo no dia seguinte procurou a mãe para dizer que seu filho precisaria de um trabalho especializado e que nós não poderíamos acolhê-lo.

Voltei ao trabalho, fui tocando em frente. Mas a dúvida se instalou. Por que não aquele menino? Já havíamos trabalhado com alguns casos de crianças com algum tipo de deficiência. Um livro de Freinet – A Saúde Mental da Criança (1978) – bastante inspirador e que trata da possibilidade de acolhimento de todas as crianças na escola, fazia-me questionar a decisão que havia tomado. Qual é o critério? Se uma criança pode ir à escola e esta deve estar preparada para recebê-la e atendê-la nas suas necessidades (um princípio da Pedagogia Freinet), por que não outra?

Me senti incapaz de responder a esta pergunta. A saída encontrada naquele momento foi mandá-lo embora.

Mas, naqueles tempos, ainda não se falava em inclusão da forma como hoje a compreendemos. As justificativas para a segregação de pessoas com deficiência em instituições “especializadas” eram o discurso corrente, a visão naturalizada do que se entendia como papel da instituição escolar: uma escola para as crianças “normais”, outra escola para as “não normais”.

Aquela experiência (da recusa) foi se escondendo no fundo da minha memória, outros desafios foram se apresentando, mas a dúvida incomodava; como um calo, intermitentemente, fazia-se doer e lembrar.

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REFLEXÕES SOBRE O EPISÓDIO

Aprender com o fracasso, aprender com o sucesso, aprender com a diferença

Embora se possa constatar o fracasso nesta experiência narrada, creio que ainda se

pode tirar alguma reflexão interessante ou, talvez, até mesmo por isto (pelo fracasso) é que

vale a pena expô-la e pensar nela.

Há trinta anos a percepção geral da sociedade sobre o lugar para o qual deveria ser

destinada a pessoa com deficiência estava bem estabelecido: a certeza era geral quanto ao

imperativo de sua segregação, de seu confinamento em instituições fechadas. Nosso estudo da

história da escolarização pôde esboçar as linhas gerais pelas quais esta noção foi se formando

socialmente. Poucas referências podemos encontrar sobre as pessoas com deficiência antes da

Idade Média, quando a força do pensamento religioso, exercendo sua hegemonia por meio da

culpa e da punição ao pecado, enxerga essas pessoas como culpadas por sua condição, devendo

ser excluídas ou mesmo castigadas e mortas por seus pecados ou de seus ascendentes. Possuídas

pelo demônio, bruxas ou criaturas bizarras deveriam ser queimadas nas fogueiras da Inquisição.

Naturalizou-se a compreensão da necessidade de segregá-las e a história da pessoa com

deficiência tem sido a história de sua segregação e exclusão, ainda que, muitas vezes, a influência

do pensamento cristão tenha atuado no sentido de dar assistência a elas. A igreja tomava para si a

responsabilidade de atender, educar e dar salvação às pessoas com deficiência.

A partir do século XVI, com o advento do pensamento científico moderno,

teríamos o desenvolvimento da ciência médica que passaria a entender a deficiência como um

problema médico, defendendo que estas pessoas deveriam ter tratamento adequado. É neste

sentido que a segregação do deficiente em instituições aprofunda-se cada vez mais, sendo os

asilos e hospitais os locais para onde eram encaminhados. Este processo foi desenvolvido de

forma que, a partir do século XIX, ampliou-se a criação de instituições com uma abordagem

médica para pessoas com deficiência. A criação, em especial, de instituições manicomiais

visava a separação do deficiente da família e da sociedade. No Brasil, datam de meados do

século XIX as primeiras instituições voltadas para o atendimento de pessoas cegas e surdas.

Neste contexto e durante muito tempo depois, a educação especial foi organizada

de forma paralela à educação regular, baseando-se na concepção de que se deveria ter, por um

lado, um sistema rígido de ensino (a cujas estruturas não se adequariam alunos com

deficiências) e, por outro lado, as instituições mais preparadas para atender as necessidades

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específicas das pessoas com deficiência (onde eles estariam melhor atendidos). Foi

constituído assim um sistema paralelo de ensino. De acordo com o documento elaborado pelo

Grupo de Trabalho designado em 2006 pelo Ministério da Educação, que define a Política

Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva:

“Essa concepção exerceu impacto duradouro na história da educação

especial, resultando em práticas que enfatizavam os aspectos relacionados à

deficiência, em contraposição à sua dimensão pedagógica”.

Somente a partir da segunda metade do século XX é que se iniciaria uma

discussão sobre os direitos humanos, incluindo a discussão sobre os direitos da pessoa com

deficiência. Ainda segundo o documento citado (BRASIL, 2006, p.330):

O desenvolvimento de estudos no campo da educação e dos direitos

humanos vêm modificando os conceitos, as legislações, as práticas

educacionais e de gestão, indicando a necessidade de se promover uma

reestruturação das escolas de ensino regular e da educação especial. Em

1994, a Declaração de Salamanca proclama que as escolas regulares com

orientação inclusiva constituem os meios mais eficazes de combater atitudes

discriminatórias e que alunos com necessidades educacionais especiais

devem ter acesso à escola regular, tendo como princípio orientador que “as

escolas deveriam acomodar todas as crianças independentemente de suas

condições físicas, intelectuais, sociais, emocionais, linguísticas ou outras”.

Em relação à discussão que temos levado neste trabalho, interessa destacar que

estas mudanças que foram se impondo nos últimos anos dependem, para que continuem

avançando, de que sejam explicitadas e reforçadas as críticas àquilo que vinha sendo tido

como certo e imutável: a escola tradicional.

É neste sentido que os princípios que nos “suleavam” (e aqui a expressão “sulear”,

emprestada de Boaventura Souza Santos, cabe perfeitamente bem pois buscávamos nos

posicionar de um outro lado, em um outro ângulo, para a composição de nossas visões)

naquela escola – inspirados na Pedagogia Freinet – nos idos da década de 1980 já nos

permitiam trabalhar com algumas crianças que, em função de nossas posturas e

posicionamento pedagógico, eram incluídas e “escapavam” da segregação institucional. Já

nos fazíamos como uma escola diferente, como uma escola aberta às diferenças pelos próprios

princípios freinetianos que nos orientavam e nos constituíam.

Quando a inclusão se tornou, nos anos 1990, um tema social e uma reivindicação

da sociedade, nossa decisão em favor dela já estava tomada. As considerações feitas por

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Freinet nos anos 1950 a respeito do que ele chamou de doenças escolares” tinham, para nós,

repercussões que já nos impulsionavam à inclusão: recebíamos alunos que haviam fracassado

nas escolas tradicionais ou que nem sequer haviam sido aceitos nelas. A percepção da

inadequação do ensino tradicional estimulava-nos a outros desafios. Elise Freinet escreve no

prefácio do livro A saúde mental da criança (1978, p. 10) a síntese das ideias de Freinet e do

movimento de educadores que ele organizou e que também nos inspiravam:

É o ensino desvitalizado e constrangedor que provoca, nas crianças,

fisiológica e psiquicamente frágeis, as doenças escolares. Porque é preciso

chamá-las pelo seu nome, de tal maneira os seus sintomas são significativos

quanto a síndromas caracterizados: o escolismo, a domesticação, os

complexos e as fobias, a anorexia escolar são desregramentos profundos

inscritos no processo generalizado da dislexia.

Existiram fracassos, é certo. O episódio narrado infelizmente explicita isso. Mas os

fracassos constituíram desafios para a sua superação. O fracasso e os erros fazem parte do

processo. Mas o que poderia ter sido resolvido como uma racionalização que encontrava

respaldo nas práticas correntes de exclusão e segregação, ao continuar incomodando, ao

continuar presente como fonte de inquietação, motivava-me à busca por outras respostas. O

processo de inclusão foi se instaurando gradativamente na escola como uma prática sistemática.

Uma reflexão diz respeito aos perigos que podem advir quando simplesmente são

matriculados alunos com deficiência em classes de ensino simultâneo: o risco da

discriminação e exclusão ficarão rondando esta criança e o grupo no qual ela foi incluída. É

neste sentido que a diferença é uma presença natural quando falamos da dinâmica que a

Pedagogia Freinet propõe: nos ateliês todos fazem coisas diferentes, buscam atender suas

necessidades segundo seus ritmos, potencialidades, interesses, situação que é bem diferente

do ensino simultâneo no qual todos fazem a mesma coisa ao mesmo tempo e, neste caso, a

entrada do diferente é um transtorno que leva ao atendimento diferenciado somente para a

criança com deficiência que está sendo incluída ali.

Mantoan (2013, p. 63) nos alerta para o problema de uma inclusão que não toque

mais a fundo no problema da “velha matriz de concepção do ensino escolar”. O ensino

simultâneo é regido pela lógica de que a homogeneidade da classe é o requisito para o

trabalho pedagógico de exposição dos conteúdos a serem assimilados pelo aluno. Neste

contexto e sob estas concepções, o diferente é singularizado, destaca-se. É como se só

houvesse uma diferença, um diferente e todos os outros fossem iguais. A sequência desta

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lógica é ministrar duas aulas: uma para a criança que apresenta qualquer dificuldade para

adquirir os conteúdos previstos e, outra, para o resto da turma (os iguais). Segue mais uma

consequência que é mais problemática ainda: a questão da avaliação.

O exemplo daquele primeiro relato lá no início deste trabalho, quando narrei a reunião

de conselho de classe e o caso daquele menino com Síndrome de Down, já dá uma mostra dos

embates que é necessário enfrentar para poder fazer frente ao trabalho inclusivo. A discussão

naquele Conselho de Classe já se inscrevia num quadro social que avançava na defesa da inclusão e

dentro da escola o ambiente tinha gradualmente se transformado. Em 1999 já se tinha a Declaração

de Salamanca (Espanha, 1994) embasando as Diretrizes Nacionais da Educação brasileira. Porém, a

discussão sobre a avaliação ainda resvalava, ainda ecoavam as questões da meritocracia presentes

no imaginário dos professores. É no diálogo com Mantoan (idem, p. 63) que vejo ser explicitado o

que, como coordenadora da escola, defendia nos diálogos com eles:

A avaliação do desenvolvimento dos alunos também muda, para ser coerente

com as outras inovações propostas. Acompanha-se o percurso de cada

estudante, do ponto de vista da evolução de suas competências para resolver

problemas de toda ordem, mobilizando e aplicando conteúdos acadêmicos e

outros meios que possam ser úteis para se chegar a soluções pretendidas;

apreciam-se seus progressos na organização dos estudos; no tratamento das

informações e na participação na vida social da escola.

A entrada de crianças com necessidades especiais torna difícil a reprodução dos

velhos métodos, repetindo as velhas avaliações e classificações. As adaptações e mudanças

que vamos fazendo no trabalho, são destinadas a todas as crianças, não só para crianças com

deficiências e, ao atenderem melhor as crianças com deficiências, ajudam a criar o ambiente

inclusivo para todos.

Este processo gradativo de assumir a inclusão na Escola Curumim aos poucos

ganhou mais consistência, foi sendo assumido por todos nós, cada vez com mais convicção

e disposição. Isto porque, se o fracasso mobilizou a atenção e foi fator de estímulo para sua

superação, o sucesso também exerceu papel fundamental no fortalecimento de nossas

práticas na busca de uma pedagogia da diferença (para todos). Outras experiências vieram,

novos desafios foram enfrentados e com eles fui aprendendo a fazer um trabalho

pedagógico com e para todas as crianças.

A dissertação de mestrado da professora Laurindo (a qual tive oportunidade de

acompanhar e participar) constitui rico exemplo de um estudo de caso que aborda sua própria

experiência com a inclusão na Escola Curumim, no ano de 1999. As reflexões que ela faz

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sobre as dificuldades enfrentadas face à inclusão nos dão pistas sobre os desafios (que são

sempre pessoais e escapam às racionalizações sobre as quais se assentava a escola

tradicional). Seu trabalho enfrenta as questões de nossa formação (tanto as vivências sociais

como as escolares), que dão uma sensação de despreparo. Nas suas palavras (2003, p. 8):

Estava aí, portanto, uma constatação que me levou a refletir sobre a situação

vivida por nós, professoras e professores, com o trabalho de inclusão: fomos

criados para uma sociedade na qual a diferença é considerada incapacidade e

o sujeito diferente não só como incapaz mas como “monstro assustador”

porque capaz de ação imponderável.

No próprio título de sua dissertação (“A educação pelo outro: Lorelai, uma

experiência de inclusão”), Laurindo explicita e reflete sobre as dificuldades que se colocam a

nós quando diante do desafio da inclusão. Enfatizo a expressão “a educação pelo outro”, que

já aponta para um processo que não é só o de educar “o outro”, mas também educar-se “pelo

outro”. A autora reflete (idem, p. 20): “vivi e senti tudo isso, mas nunca deixei de estar

disposta a trabalhar com todas as crianças sem distinção, lutando bravamente comigo mesma,

com meus medos, nojos e preconceitos”.

Vínhamos trabalhando no sentido de superar a velha matriz tradicional, mas ainda

tínhamos que trabalhar para superar os “medos, nojos e preconceitos”, que se inscreviam em

nossa formação. Este processo envolve um trabalho pessoal de desconstruir as identidades

para nós fixadas em nossa formação. A primeira das características elencadas sobre a escola

tradicional (as identidades fixadas dos sujeitos na escola) aponta para a problemática que se

estabelece nas relações entre professor e aluno: preparamo-nos nos bancos universitários para

entrar numa sala de aula padrão e para ensinar um aluno ideal que nos foi apresentado.

A escolha de trazer para este diálogo o trabalho de Laurindo tem mais um motivo

importante: ainda que de forma não totalmente direta, estive presente e participando, como orientadora

pedagógica, de toda a experiência ali narrada. Esta é uma aprendizagem que pude fazer sobre a

necessidade de parcerias na construção de um ambiente educativo inclusivo: é papel da coordenação,

da direção estar presente na sala de aula, entrar neste espaço, às vezes só mesmo para quebrar um

círculo de crise que se estabeleceu nas tensões que naturalmente fazem parte do convívio das crianças

– entre si ou com o adulto. Porque tensões e conflitos são parte inerente do trabalho de relacionar-se

todos os dias, num espaço institucional com outros seres humanos. Fui muitas vezes, e ainda vou, à

sala de aula, ajudar as professoras, intervir nas situações com as crianças. Embora no episódio narrado

o que se expressou foi uma recusa à matrícula de Jupi, tive, nos anos seguintes, outras oportunidades

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de receber alunos com deficiências. Nos diálogos e orientações com os professores, depois, quando

me tornei orientadora (e depois diretora), a experiência vivida permitia-me uma compreensão mais

profunda sobre as dificuldades que eles enfrentam.

Fosse no papel de professora, orientadora ou diretora, colocava-se para mim o

imperativo de uma escola para todas as crianças, colocava-se a inclusão como uma “lei” na

escola. Mas, mesmo sendo “a lei para todos”, não pode ser algo que a direção da escola impõe aos

seus professores: “aí está este aluno: trabalhe com ele, faça a inclusão”. Ou seja, se “a lei é para

todos”, a coordenação e a direção devem participar. É importante explicitar que inclusão a gente

faz junto, todo mundo na escola – do porteiro à direção. Hoje temos, em todas as classes, vagas

(duas ou às vezes mais) para crianças ou adolescentes com algum tipo de deficiência, transtorno

ou incapacidade. Os quadros anexos (ver Anexos X) mostram quantitativamente como está

construída dentro da nossa proposta a política de inclusão da escola.

No episódio Jupi, aquela mãe buscava uma escola regular para seu filho de maneira

tímida e conformada. Ela foi ousada sob certo ângulo, pois a solução vigente era a da instituição

especializada. Hoje somos procurados por pais e mães para matricular seus filhos que têm alguma

deficiência e também por professores, estudantes e outros profissionais interessados em conhecer

nosso trabalho. Neste sentido é impossível não se animar com um certo otimismo, se pensamos no

quanto o quadro geral da sociedade mudou nos últimos trinta anos. Além disso, a legislação para a

inclusão tem avançado positivamente e instituiu o Atendimento Educacional Especializado. A

presença deste profissional dá suporte para o processo de construção de uma escola efetivamente

para todos, na medida em que ele seja recebido como parceiro e que não lhe seja atribuído o papel

de promover uma “normalização” da criança com deficiência (e muito menos o de substituto do

professor). É preciso ter em mente que a inclusão é na sala de aula, onde ocorre o convívio entre os

alunos. É lá que todos os alunos devem ser incluídos, é lá que todos devem se encontrar.

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AFINAL, PARA QUE ESTAMOS PREPARADOS?

As reflexões anteriores levam-me a outras considerações sobre questionamentos

mais frequentes e incisivos feitos por professores e professoras nas inúmeras ocasiões de

formação em que trabalhei – minicursos, palestras, aulas – a alegação por parte deles: “mas nós

não estamos preparados para trabalhar com esta criança com deficiência”. Uma constatação que

se faz necessária diz respeito à questão do “estar preparado”. Nosso modelo de formação

apresenta-nos um aluno ideal, tornado conhecido pela nossa ciência positiva. E, embora não

seja com este aluno ideal que nos encontramos no cotidiano da escola, apegamo-nos às

prescrições racionalistas e lançamos mão dos mecanismos colocados à nossa disposição (como

a seriação e a avaliação padronizadora) para colocar dentro de uma “curva” os desvios mais ou

menos aceitáveis. Ficamos com uma falsa sensação de preparo quando classificamos e seriamos

os alunos. A reprovação escolar é uma forma de confirmarmos nosso “preparo” para excluir os

que não se comportam segundo o modelo. Aplicam-se provas, testes e avaliações que dizem

muito sobre o que se quer que o aluno saiba, o que ele deveria reproduzir dos ensinamentos e

explicações que lhes fornecemos, mas pouco sobre o que ele possa querer saber. Muito pouco

sobre quem é este outro com quem nos relacionamos no espaço da sala de aula.

Uma aprendizagem que tenho como das mais preciosas é que somente convivendo

com as crianças com deficiências é que podemos aprender a construir um convívio respeitoso,

construtivo, produtivo, saudável. Pode-se discutir métodos inovadores, reciclar práticas

tradicionais, mas somente a partir da mudança do corpo discente é que o corpo docente se

verá efetivamente diante da exigência de praticar uma nova pedagogia. A mudança do corpo

discente (entendida aqui como a entrada das crianças com deficiências) irá trazer novas

aprendizagens para o corpo docente e ajudará a compor novas transformações para o espaço

escolar. Aprendi que a Inclusão poderá se constituir em motivo para construirmos a escola

como um lugar seguro e bom para todos. Um lugar de encontro.

No episódio narrado, eu também me sentia “sem preparo” para receber aquele

aluno. Mas me manter insatisfeita com meu “despreparo” implicou em não desistência.

Implicou também em não buscar o caminho de uma certa preparação que se liga ao desejo de

saber tudo sobre a deficiência, que se liga ao desejo de reduzir nossa ignorância sobre as

características de cada uma das deficiências.

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Assim como a instituição escolar teve sua constituição vinculada ao pensamento

científico, também no período do final do século XVIII e inícios do século XIX surge a

medicina tal qual a conhecemos hoje em dia: uma ciência fundada no olhar clínico para a

anatomia e patologia. Ela se torna o campo do discurso científico sobre o indivíduo, tomando

o homem como objeto do saber positivo. Tomaria para si a tarefa de definir o homem-modelo

e o estudo dos desvios (doenças) objetivam ao tratamento e à normalização.

O avanço da ciência aprofundaria e legitimaria os procedimentos classificatórios,

ampliando o aspecto normativo da medicina. Ganha ampla repercussão o discurso do

diagnóstico. Para além das doenças do corpo, entram na composição dos saberes médicos

científicos as doenças e transtornos mentais. Nesta linha é que surgem os manuais de

diagnósticos, dentre os quais, o Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, o

DSM (Manual de Estatística e Diagnóstico), que é considerado um instrumento importante

entre aqueles que se dedicam ao campo. Toda ordem de comportamento que se desvia de um

padrão estabelecido ganha rótulo de doença e é elaborado um remédio para o mal. Trata-se do

fenômeno da medicalização (a que já nos referimos no primeiro capítulo desta tese), que tem

tido repercussões sobre as questões da educação especial.

Esta forma de encarar a questão da educação especial está bastante disseminada.

São promovidos cursos para professores com o objetivo de ensinar “tudo sobre o autismo” ou,

pior, “tudo o que o professor precisa saber sobre o autismo”, ou sobre a Síndrome de Down,

ou sobre os Transtornos do comportamento (os famigerados TDA, TDAH e outras infindáveis

siglas). Como se agora, de posse dos conhecimentos sobre a deficiência, nós estivéssemos

“prontos” para o trabalho com estas crianças, “prontos” para submetê-las às nossas práticas.

Claro que buscar conhecimentos sobre as crianças (com ou sem deficiência), aprender

sobre suas dificuldades e necessidades é mais do que necessário, é compromisso de nossa profissão.

Mas, para além do conhecimento técnico e científico (que em muitos casos deve ser colocado entre

muitas aspas) sobre as deficiências, há uma aprendizagem que se faz na relação, que é da ordem do

subjetivo e que só se faz possível no encontro com o outro. Aprendi com as muitas experiências

vividas que nunca serei capaz de saber tudo sobre qualquer coisa, menos ainda sobre outros seres

humanos (e talvez esta seja a maravilha de educar). Aprendi com Freinet que “a vida prepara-se pela

vida” (1991, p. 23) e esta aprendizagem é desdobrada para compreender que o convívio com a

diferença é aprendido no convívio. Estar preparado para trabalhar com crianças com qualquer tipo

de deficiência é estar disposto (não pronto) e aberto a um convívio que nos educa, que nos forma e

nos transforma. A inclusão prepara-se pela inclusão.

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3ª NARRATIVA: expressões livremente impressas e a doce experiência de si e do outro

No ano seguinte (1985) assumi uma turma de 1ª série com 15 alunos. Eu continuava desafiada ao trabalho com a Pedagogia Freinet: alfabetizar sem cartilha, sem apostila, utilizando a Imprensa Escolar para a produção do Jornal com os textos livres dos alunos. Iniciávamos o dia com a Roda de Conversa mas, na hora de organizar os ateliês, eu ainda me via num tumulto, achava que os combinados para que eles se dirigissem aos seus trabalhos ficavam confusos. Eu me preocupava muito em “não perder tempo”, mas até que os ateliês entrassem em funcionamento eu sentia que precisava orientar cada criança, encaminhá-la ao trabalho, garantir que ela tivesse uma atividade adequada às suas necessidades para realizar. Preocupava-me e buscava me certificar de que cada um realizasse o trabalho sob a minha supervisão. Talvez seja importante mencionar que dentro da escola não havia um consenso quanto à adoção da Pedagogia Freinet e, portanto, o sucesso do trabalho com aquela turma tinha um peso maior para mim, como defensora da proposta. Mesmo com uma classe de crianças ditas “normais”, é claro que eles eram muito diferentes entre si. Havia dois meninos (que chamarei de Joaci e Acir) que me preocupavam bastante pois, cada um à sua maneira, recusava-se a fazer qualquer trabalho. Aquilo me deixava estarrecida: como assim? Numa proposta pedagógica que enxerga o trabalho como uma necessidade vital para toda criança, por que eles se recusam? Será que estou oferecendo opções adequadas? Será que não estou percebendo seus interesses e necessidades? O que está “travando” esses meninos?

O semestre estava correndo e eles ainda não mostravam avanços no domínio da escrita. Pelo menos não para mim, o que me afligia mais e mais. Como fazer para ajudá-los a dar o “clique”? (era assim que, nas nossas conversas informais sobre o trabalho de alfabetização, denominávamos o processo de descoberta da escrita e da leitura). Voltava à leitura de Freinet. Achei num livro de Bruno Ciari (1978) o relato de uma técnica que ele utilizava com seus alunos, a partir do texto livre surgido na roda de conversa. Escolhido o texto que motivara o interesse dos alunos, este seria transcrito num cartaz: na parte superior, a frase deveria ser escrita com letras de imprensa e, na inferior, com letra manuscrita. No meio do cartaz, as crianças poderiam ilustrar as palavras principais. Pus as mãos à obra. Na roda inicial da segunda-feira escolhíamos um texto (uma história contada por uma das crianças), extraíamos a frase principal e a colocávamos no cartaz. As palavras significativas estariam bem visíveis e as crianças poderiam consultá-las como referência para suas outras produções, para suas outras tentativas de escrita.

Fomos seguindo, mas eu não tinha certeza de que aquilo estava sendo útil para aqueles meninos. Certo dia as crianças estavam trabalhando nos ateliês e um deles estava no ateliê de escrita. Eu atendia a outra criança quando Joaci, de lá de sua carteira, pergunta: “Gláucia, doce é com C ou com S?” Parei o que estava fazendo e fui ver o trabalho dele. Joaci estava escrevendo! Do jeito dele, mostrava para mim que já sabia as letras da palavra doce (só tinha uma questão ortográfica a resolver) e várias outras palavras que compunham seu texto. Doce experiência!

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Mas eu ainda não estava tão segura de que a turma toda estava no rumo certo, de que estavam envolvidos do jeito que eu gostaria que estivessem. Achava que o trabalho nos ateliês era muito tumultuado e que eles não tinham autonomia, por exemplo, para fazerem o jornal. Foi mais perto do fim do ano que um “clique” finalmente aconteceu para mim. Havíamos discutido em roda sobre o que faríamos para o final do ano e, embora eu achasse que eles não iriam nem pensar em propor mais um jornal (eu já estava até mesmo conformada que talvez eles nem gostassem tanto assim de trabalhar com a imprensa), qual não foi a minha surpresa quando eles disseram que queriam fazer um Jornal do Natal. Fiquei feliz e já comecei a perguntar sobre quais textos iríamos publicar, como faríamos as escolhas... Em uma palavra, tentei assumir o comando daquela produção.

Mas as crianças não deixaram. Saíram da roda e foram direto para o ateliê de imprensa. Foram se organizando entre eles, alguns se sentaram diante da caixa de tipos e, conversando entre si, iam decidindo qual frase formar. Então eles a compunham nos componedores e a seguir outras crianças já levavam a frase para o prelo e começavam a sua impressão. Tentei chegar ali e interferir no trabalho deles: “turma, o que vocês estão fazendo? Vocês já sabem quais textos querem imprimir?” Mas eles foram claros comigo: “Gláucia, pode deixar, nós vamos fazer isso sozinhos”. Um deles, muito gentilmente, levou-me para fora da sala! E as crianças voltaram ao trabalho, inclusive Joaci e Acir.

O que era isso? Entre rejeitada pelos meus próprios alunos e feliz pela capacidade de iniciativa e de trabalho que eles estavam demonstrando, saí da sala. Quando voltei eles continuavam a produzir o jornal – uma coisa linda, diga-se de passagem – e fui para a minha mesa, procurar outro trabalho para fazer.

O ano letivo chegou ao fim e eu estava contente com os resultados, mas percebo hoje que ainda não compreendia o significado daquela experiência. Ainda teria que viver muita coisa para começar a reunir as pontas dessas fitas que iam se desenrolando no processo de me tornar uma educadora freinetiana.

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OS INSTRUMENTOS DA PEDAGOGIA FREINET EM AÇÃO

O TEXTO LIVRE, O JORNAL ESCOLAR, A IMPRENSA

Para dar aos textos livres de suas crianças o valor de letra impressa, Freinet

introduziu o Jornal Escolar, utilizando a imprensa escolar. Os textos que foram lidos na

Roda de Conversa podem então ser escolhidos para figurarem no jornal da turma. Como

princípio geral o Jornal Escolar não precisa ter o formato dos jornais comuns, eles têm

como objetivo valorizar o texto livre da criança, multiplicando-o e divulgando-o na

comunidade. Ao defendê-los, Freinet escreve (1974, p. 21):

Nas nossas classes, a criança conta primeiro e, mais tarde, escreve

livremente aquilo que sente necessidade de exprimir, de exteriorizar, de

comunicar aos que com ela convivem ou aos seus correspondentes. Não

escreve uma coisa qualquer. A “espontaneidade” que tem sido tão

discutida, não deve ser para nós uma fórmula pedagógica. A criança

exprime-se inserida num contexto que nos cabe tornar o mais educativo

possível, com objetivos que devemos englobar nas nossas técnicas de vida.

Elise Freinet descreve os esforços iniciais para introduzir a Imprensa Escolar.

Dar vida à técnica do Texto Livre, permitindo que ele fosse multiplicado, foi sempre o

principal objetivo. O Jornal Escolar é “uma recolha de textos livres de crianças, expressão

fiel dos principais interesses da classe no seu meio ambiente” (Freinet, 1974, p. 40).

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Figura 44: A imprensa escolar na minha classe de 1ª série: o prelo (à esquerda) e o aluno trabalhando na caixa de

tipos (à direita). O menino ajoelhado recolhe alguns tipos que caíram (1983). Fonte: acervo da autora.

A livre expressão abre ao adulto a possibilidade de entrar em contato com a

infância, conhecer seus interesses, sua forma de ver as coisas que a cercam; permite, de

certa maneira, “entrar” em sua psicologia, comungar com ela a experiência do mundo.

Figura 45: Dois alunos apresentam a caixa de tipos a um visitante numa exposição (Escola Curumim, 1983).

Fonte: acervo da autora.

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Os tempos mudaram e, com eles, os modos de se produzir a expressão;

mudaram as mídias, outros instrumentos e ferramentas. O próprio Freinet se expressou

claramente quanto à necessidade de propiciar às crianças uma apropriação dos meios que

cada época oferece (1974, p. 11): “cada época tem uma linguagem e utensílios que lhe são

próprios”. E mais à frente explicita:

Estamos atualmente na aurora de um novo período: a imprensa impôs a tal

ponto a sua soberania que mesmo o manual mais rico não passa de um “ersatz”

da riqueza gráfica posta à disposição de todos pela técnica contemporânea. A

própria escrita manuscrita tende a minimizar-se num mundo em que a máquina

de escrever, a poligrafia, o disco, a rádio, o cinema, a televisão, o gravador,

intensificam e aceleram a intercomunicação e as trocas.

Hoje usamos outras tecnologias para reproduzir os textos, mas o princípio

fundamental permanece. Não mais os velhos manuais, mas a palavra da criança, sua

expressão ganhando leitores. O Jornal Escolar recupera a escrita na sua função social: a

criança escreve para ser lida. Hoje temos a internet, que não pode ser ignorada ou

rejeitada (como, às vezes, ainda se faz). Na escola onde trabalho, as crianças têm (cada

turma) um blog que elas alimentam com textos, notícias, pesquisas. O que permanece

como espírito desta mudança na dinâmica da sala de aula, nos instrumentos que nós

professores iremos introduzir, é novamente Freinet que, em “Pedagogia do Bom Senso”,

fala-nos de forma poética: “as crianças precisam de pão e rosas”:

Precisam sentir que encontraram em você, e na sua escola, a ressonância de

falar com alguém que as escute, de escrever a alguém que as leia ou as

compreenda, de produzir alguma coisa de útil e de belo, que é a expressão de

tudo o que trazem nelas, de generoso e de superior. (FREINET, 1991, p. 104)

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Figura 46: Páginas internas do mesmo Jornal. Fonte: acervo da autora.

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OS ÁLBUNS

Na mesma linha do Jornal Escolar, temos os álbuns, individuais ou coletivos.

Podem ser uma coletânea de textos livres, o registro de uma pesquisa ou de um projeto

que o grupo realizou, o registro de uma aula passeio etc.

São sempre bem ilustrados com desenhos ou pinturas. No final do ano letivo

os álbuns coletivos são levados à biblioteca para serem arquivados. Eles se tornarão

fonte de consulta para outros alunos e, assim, pode-se transitar do aluno consumidor de

apostilas para o aluno autor.

Figura 47: Álbuns de alunos de uma turma de 2º ano.

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REFLEXÕES SOBRE O EPISÓDIO

Deixar falar a criança para conhecê-la; pelo trabalho transformar esta palavra

em objeto de fruição para todos

A pergunta que me fazia como professora, naquele momento, era sobre a motivação e

interesse de Joaci. Formulava a hipótese de que sua recusa em trabalhar estava ligada ao

desinteresse pelo que era proposto. A preocupação com o processo de alfabetização mobilizava

minhas atenções. Coloquei as mãos à obra para proporcionar mais materiais de leitura. Então, além

dos cartazes com o texto escolhido na roda, produzi um fichário de palavras para a turma: pequenos

retângulos de cartolina (10cm x 7cm) com uma figura (recortada de revistas) e a respectiva palavra

escrita em letra bastão e script. Lembro-me que isto também não chamou a atenção de Joaci e, mais

ainda, lembro-me da frustração que isto me causou. Mas, apesar de empenhada em aprender a

conduzir o trabalho pedagógico segundo os princípios da Pedagogia Freinet, naquele momento, o

que fiz foi não fazer nada. Nem posso dizer que o que fiz foi esperar tranquilamente, confiando que

o tempo de cada um é diferente e que as formas das crianças de se aproximarem de algo

desconhecido para elas passa por caminhos muito particulares, que quase nunca estão à vista e

muito menos sob nosso controle. Esperei, mas não tranquilamente. Fomos seguindo nosso dia-a-dia.

Mas eu me encontrava em uma espécie de “estado de suspensão” e hoje diria que era nisto que se

constituía o meu próprio tateio experimental. Fui aprendendo, aos poucos, que o conhecimento

sobre a experiência nem sempre se dá concomitantemente à experiência.

Uma certa esperança às escuras, mas não uma esperança passiva, ia me

constituindo. Eu acreditava nas possibilidades de uma alfabetização sem cartilhas, sem

explicações professorais; voltava-me aos estudos de Piaget, encontrava neste autor as

explicações sobre como se dá o desenvolvimento e a aquisição de conhecimentos pela

criança, mas me sentia numa situação de risco, com medo de que fracassássemos (meu

aluno e eu). Continuei buscando.

Trago ao diálogo as reflexões propostas pelo filósofo Jacques Rancière (2010)

que só vim a conhecer muitos anos depois, mas que fizeram sentido para as questões que me

colocava nos meus inícios de professora. Rancière nos apresenta a história de Joseph

Jacotot, um pedagogo francês do início do século XIX. Rancière já alerta que a voz solitária

deste mestre “em um momento vital da constituição dos ideais, das práticas e das

instituições que ainda governam nosso presente, ergueu-se como uma dissonância inaudita”

a apontar para as incoerências da instituição pedagógica.

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Tendo vivido uma experiência de ensinar a alunos holandeses sem saber uma

palavra deste idioma, e tendo constatado que ela havia contrariado os princípios da pedagogia

que ele próprio praticara por toda a vida, Jacotot viu-se diante de uma revelação que “se

relaciona ao seguinte: é preciso inverter a lógica do sistema explicador. A explicação não é

necessária para socorrer uma incapacidade de compreender” (idem, p. 23). Esta revelação

levaria Jacotot a uma aventura intelectual que causou comoção e polêmica em diversos meios

intelectuais e políticos da época e, vale ressaltar, também neste início de século XXI, quando

é trazida novamente ao debate pelo filósofo.

As proposições deste professor partiam de uma crítica ao princípio da explicação

que já se difundira amplamente nos modelos pedagógicos vigentes que, para ele, constituem o

“princípio do embrutecimento”: quanto mais “esclarecido” o mestre explicador, mais irá

apoiar sua ação pedagógica neste procedimento de explicar, lançando mão do método mais e

mais apurado para se fazer entender:

O procedimento próprio do explicador consiste nesse duplo gesto inaugural:

por um lado, ele decreta o começo absoluto – somente agora tem início o ato

de aprender; por outro lado, ele cobre todas as coisas a serem aprendidas

desse véu de ignorância que ele próprio se encarrega de retirar (idem, p.24).

O espaço escolar constituído historicamente foi forjado como espaço de controle e

vigilância sobre a aprendizagem: medir, contabilizar os progressos ou retrocessos de cada

aluno e, por meio da explicação, controlar a forma como o aluno está aprendendo. No caso da

aquisição da escrita temos os métodos de alfabetização que partem do supostamente “mais

simples” para o “mais complexo”. Bastaria explicar ao meu aluno o como juntar as letras e

formar as palavras e tudo se resolveria. Freinet (1977, p. 27) alerta para o insólito desta

postura, desta forma de conceber a questão educativa:

Se a criança não compreendeu, é preciso explicar-lhe, fazer-lhe ganhar

consciência das razões de sua incompreensão. E só intelectualmente se pode

explicar, como se os mecanismos sensíveis do indivíduo funcionassem em

circuito fechado, no cérebro soberano.

Nossa faina de conhecer, capturar, esquadrinhar, catalogar a criança, esse

arcabouço de tudo que já sabemos sobre a infância, pode nos dar uma sensação de domínio,

um sentimento de segurança sobre o que e como fazer. Mas ainda assim ela nos escapa. É

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com Larossa (2000, p. 184) que dialogo para pensar nisto que ainda não sabemos sobre a

infância e que, portanto, nossas explicações não alcançam.

O que ainda não sabemos não é outra coisa senão o que se deixa medir e

anunciar pelo que sabemos, aquilo que o que sabemos se dá como meta, como

tarefa e como itinerário pré-fixado. A arrogância do saber não apenas está na

exibição do que já se conquistou, mas também no tamanho de seus projetos e

de suas ambições, em tudo aquilo que ainda está por conquistar, mas que já foi

assinalado e determinado como território de conquista possível.

Mas se entendo (com Freinet) que “a criança é da mesma natureza que o adulto” e é

também (com Larossa) o outro do qual nada sei, é preciso que reflitamos sobre nossa forma de

nos relacionarmos com o outro, seja ele adulto ou criança. Se quando me relaciono com adultos

entendo que se tratam de alteridades às quais se impõe o limite do respeito (não posso

transformá-los em objeto de minha vontade de poder, de saber), o mesmo não se dá (na tradição

da relação educativa) quando nos relacionamos com a infância. Se, entre adultos, minha

arrogância explicadora é interditada pelo outro, que se defende de igual para igual, a infância é

mais indefesa e suscetível. Provém daí todo o movimento histórico que coloca para a pedagogia

a função de formar o homem-cidadão de uma “nova ordem” que deveria ser construída por nós

mesmos nas relações políticas entre adultos. Mas esta manobra, denunciada por Hannah Arendt

(2003, p. 226), tira das mãos da criança suas oportunidades de, enquanto algo de novo que

adentra o nosso mundo, transformá-lo pela própria novidade que ela representa.

Pertence à própria natureza da condição humana o fato de que cada geração

se transforma em um mundo antigo, de tal modo que preparar uma nova

geração para um mundo novo só pode significar o desejo de arrancar das

mãos dos recém-chegados sua própria oportunidade face ao novo.

E, no entanto, é a própria Arendt quem coloca mais uma questão ao nos lembrar que a

educação tem a ver com o dar acesso – para o novo que chega – às heranças simbólicas do mundo

para que ela possa fruí-lo. E isto me coloca diante da responsabilidade que o estar com crianças

acarreta. Estamos então aqui em um ponto que nos coloca diante de duas negativas: nem quero

submeter a criança ao meu conhecimento, tornando-a objeto de minha ação, negando a ela sua

oportunidade de ser o novo no mundo, nem quero me eximir da responsabilidade que a presença,

a vinda de crianças ao mundo impõe-se a mim, como adulto que as recebe. Nem isto, nem aquilo.

Teimosamente eu acreditava na possibilidade de ser como o mestre emancipador,

que na leitura de Jacotot encontrei ressonância. Ser um mestre emancipador exige bem mais

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de nós, pois não se trata apenas de deixar nossos alunos à própria sorte e nem de submetê-los

ao nosso controle estrito. Cito mais um trecho de Rancière (2010, p. 31) que discute a questão

do trabalho do professor em Jacotot:

Eles haviam aprendido sem mestre explicador, mas não sem mestre. Antes,

não sabiam e, agora, sim. Logo, Jacotot havia lhes ensinado algo. No

entanto, ele nada lhes havia comunicado de sua ciência. Não era, portanto, a

ciência do Mestre que os alunos aprendiam. Ele havia sido mestre por força

da ordem que mergulhara os alunos no círculo de onde eles podiam sair

sozinhos, quando retirava sua inteligência para deixar as deles entregues

àquela do livro. (Grifo meu)

Do nosso estudo da história ecoam as perguntas: educar não estava ligado à

existência de um espaço escolar e de um professor explicador? Onde foi que aquele menino

aprendeu a escrever? Afinal, quem alfabetizou Joaci?

Nem deixá-los à própria sorte, nem fazer deles espectadores passivos de minhas

explicações. E, naquela turma tínhamos – eu e meus alunos – um instrumento bem concreto, a

impressora, para permitir os tateios, as pesquisas dos alunos quanto à palavra escrita. Uma

palavra escrita que revestia-se de significado e emergia do próprio contexto das crianças. Uma

palavra que ao ser apropriada permitia que as crianças se apropriassem ao mesmo tempo de

sua função social de comunicação e expressão. Escreve-se para ser lido.

Piaget, ao analisar as iniciativas pedagógicas dedicadas a favorecer processos

mais adaptados ao desenvolvimento da inteligência, escolheu citar o trabalho de Freinet como

um exemplo. Ele ressalta (1970, p. 71):

Sua célebre ideia da imprensa escolar constitui a esse respeito uma ilustração

particular entre outras, mas especialmente instrutiva, porque é evidente que

uma criança que imprime pequenos textos chegará a ler, a escrever e a

ortografar de uma maneira bem diferente do que se não possuísse qualquer

ideia sobre a fabricação dos documentos impressos de que se serviu.

E aqueles meus alunos, de repente, estavam produzindo algo de belo e de útil. Faziam

um Jornal do Natal e sabiam que seriam lidos, apropriavam-se da palavra escrita para expressar

suas ideias e sentimentos. Realizava-se o que Piaget salientou como objetivo de uma educação da

inteligência que é a “formação social da criança”. Lembro-me com alegria e espanto que Joaci foi

(idem, p.24) um dos primeiros a se sentar diante da caixa de tipos e, falando com a colega ao lado,

ia propondo frases para compor, ia escolhendo as letras na caixa e montando-as no componedor.

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Uma educação do trabalho (defendida por Freinet) se faz com trabalho e é preciso não só um

trabalho manual, não só um trabalho intelectual, mas um trabalho que envolva mãos e mente.

Na tese sobre a Pedagogia Freinet da professora Anne-Marie Milon Oliveira, as

reflexões sobre a centralidade do trabalho encontram síntese (1995, p. 139):

Este é o sentido profundo da expressão “Educação do Trabalho” usada por

Freinet: não é educação para o trabalho (profissionalização), nem tampouco

educação pelo trabalho como foi equivocadamente traduzido em português,

o que evoca a proposta liberal deweyana. Não há mediação entre educação e

trabalho, a educação é trabalho ou não é. Na perspectiva marxista, que aqui

influencia indubitavelmente Freinet, só o trabalho permite que os homens, ao

transformarem a natureza, se transformem a si próprios, se eduquem.

Uma aprendizagem que se fez possível é a de que trabalhar com uma organização

da sala de aula proposta pela Pedagogia Freinet introduz novas relações, introduz um “caos”

de vozes e silêncios que não pode se confundir com a simples utilização de novas técnicas,

meros instrumentos para moldar esse outro, essa alteridade diante da qual nos encontramos

todos os dias nesse espaço/tempo chamado escola. Trabalhar segundo esta nova perspectiva

significa compreender que ao introduzir novos instrumentos surgirá um novo tipo de relação

professor/aluno que aponta sua seta de transformação em duas direções: eu e o outro. É querer

promover um encontro que me transforma e transforma o outro.

O artigo de Tsoukala publicado no Dossier Pedagógico da Revista L’Educateur

(1991, p. 30) ajuda a compreender a dimensão mais profunda da concepção freinetiana de

trabalho. O autor faz reflexões sobre o trabalho alienado, comparando-o às tarefas escolares

em contraposição ao trabalho como produção humana, comparando-o ao texto livre de

Freinet. Neste texto Tsoukala faz uma longa citação de Oeuvres Ecónomiques de Marx:

Suponhamos que produzíssemos como seres humanos: cada um de nós se

afirmaria duplamente em sua produção – a si mesmo e ao outro.

1. Em minha produção eu realizaria minha individualidade, minha

particularidade; sentiria, ao trabalhar, o prazer de uma manifestação

individual de minha vida, e, na contemplação do objeto, teria a alegria

individual de reconhecer minha personalidade como força real,

concretamente apreensível e escapando a qualquer dúvida.

2. No teu prazer ou no teu uso de meu produto, sentiria a alegria espiritual

imediata de satisfazer, por meu trabalho, uma necessidade de um outro,

o objeto de sua necessidade.

3. Teria consciência de servir de mediador entre ti, como um complemento

a teu próprio ser e como uma parte necessária de ti mesmo, de ser

reconhecido e sentido por ti como um complemento de teu próprio ser,

aceito em teu espírito como em teu amor.

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4. Teria, em minhas manifestações individuais, a alegria de criar a

manifestação de tua vida, isto é, de realizar e de afirmar em minha atividade

individual minha verdadeira natureza, minha sociabilidade humana.

Nossas produções seriam como espelhos nos quais nossos seres irradiariam

um para o outro.

Viver com aqueles meus alunos a experiência de produzir algo que se

transformava em um objeto que seria apresentado aos outros foi uma aprendizagem que me

levou a querer sempre mais e mais trabalhar desta forma. E, hoje em dia, ver na escola o

fervilhar das crianças preparando as exposições de seus trabalhos para nossas festas ou tantos

outros momentos do dia-a-dia me faz pensar nesta centralidade do trabalho como expressão

de nossa humanidade, faz-me pensar que é de trabalho que as crianças têm sede.

Mais uma lição possível com as reflexões sobre o episódio: as crianças aprendem

conosco ou apesar de nós. Mas a escola foi desenvolvida em outra forma de pensar. Freinet

discutiu assiduamente este problema, combateu a escola tradicional:

Nunca virá a um educador tradicional a ideia de que a criança, colocada em

certas condições favoráveis, depois de ter feito um determinado número de

observações e de experiências, possa por si mesma resolver certas

dificuldades de que apenas o mestre julga deter o segredo. O saber, segundo

ele, desce de cima, não pode subir de baixo. (Freinet, 1977, p. 27)

Esta é uma boa lição para nos tirar do pedestal, mas também para que não nos

despojemos de um papel necessário e que só um adulto educador pode exercer no trabalho

pedagógico: o de ser ressonância para a palavra (e, às vezes, para a não palavra da criança), para a

sua voz e o seu silêncio ou a sua recusa em se mostrar a nós. É uma boa lição para nos lembrarmos

de que estaremos juntos no trabalho de aprender. É uma boa lição para nos fazer pensar sobre como

é ou pode ser esta relação com a criança. Para pensar sobre o que não sabemos da infância.

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4ª NARRATIVA: ciência e investigação e o tateio experimental

Outra situação vivida naquela mesma turma, com outro aluno, ainda repercute em minha memória, me traz reflexões.

Certo dia, estávamos já trabalhando nos ateliês e um menino, a quem chamo aqui de Rudá, me disse que queria pesquisar as formigas. Respondi que tudo bem, que iria procurar algum material (minha ideia era buscar algum livro na biblioteca) para que ele realizasse seu trabalho. Rudá disse que não, que não precisava porque ele estava observando (ele usou esta palavra mesmo) um formigueiro que havia no jardim, fora da sala. Disse a ele que, então, era preciso pegar uma prancheta para anotar o que estava vendo (mas, a bem da verdade, eu não sabia muito bem como orientá-lo naquela tarefa). Ele concordou com a prancheta e, alegremente saiu da sala para observar as formigas. Fui cuidar de outros afazeres, ajudar outras crianças. Algum tempo depois ele voltou muito animado e me disse: “Gláucia, eu descobri o que as formigas comem”, “ah é? O que você descobriu?”, “foi assim: eu fiquei olhando as formigas, elas estavam andando em fila, indo para o formigueiro. Então eu peguei umas folhas e coloquei no caminho delas. Elas não pegaram as folhas. Depois eu fui na mesa do lanche e pedi um pedaço de pão pra turma que tava lanchando e coloquei no caminho das formigas. Elas também não pegaram o pão. Então eu fui na cozinha e pedi um pouquinho de açúcar pra D. Maria. Eu pus o açúcar no caminho das formigas e elas pegaram! Então, as formigas comem açúcar!”

Fiquei encantada com o que aquele menino me contava: “muito bem!”, mas não sabia bem o que fazer com todo aquele trabalho dele. Propus que escrevesse um texto...

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OS INSTRUMENTOS DA PEDAGOGIA FREINET EM AÇÃO

OS PROJETOS COLETIVOS E OS PLANOS GERAIS ANUAIS

Como vimos, as Rodas de Conversa são um momento importante para compartilhar

informações e descobertas. As crianças trazem novidades e falam sobre coisas que as

interessam. Estas conversas são oportunidades para nós, professores, estarmos atentos aos

interesses e curiosidades do grupo. Às vezes lançando mais perguntas sobre um assunto

trazido por alguém ou simplesmente aproveitando uma chuva de perguntas lançadas pelas

próprias crianças sobre um assunto que as interessou. Em qualquer dos casos, a partir daí

pode-se propor a organização de um projeto e todo o grupo irá participar e contribuir na

busca de respostas às perguntas levantadas. A Roda é uma das formas pelas quais pode-se dar

a organização de um projeto coletivo no qual todo grupo estará comprometido. No

desenvolvimento do projeto cada um irá contribuir segundo suas possibilidades e capacidades.

Os projetos também podem surgir a partir de situações do próprio trabalho. Por exemplo, ao

prepararem uma culinária de lanche, pode surgir o interesse pela transformação dos

alimentos, que poderá se tornar uma pesquisa para todo o grupo.

Também a professora poderá trazer à turma uma proposta de trabalho para

contemplar os itens contidos nos Planos Gerais Anuais de trabalho do grupo (Freinet,

1978, p. 101). Estes planos contêm de forma sintética os programas curriculares para cada

série e são apresentados às crianças logo no início do ano. Por exemplo, o estudo do

município onde as crianças vivem encontra-se no Plano Geral Anual de uma classe de 3º ano

e a professora poderá trazer para a Roda de Conversa algumas curiosidades sobre a

cidade e propor uma investigação mais aprofundada por parte do grupo. Um levantamento

de tudo que eles sabem sobre sua cidade será sempre a etapa inicial. A seguir serão feitas

as perguntas sobre o que mais queremos descobrir. E, gradativamente, irá se construindo

um projeto do grupo. Muitas atividades serão desenvolvidas com o intuito de aprofundar

descobertas, partilhar informações sobre o tema em pauta. Por exemplo, uma Aula

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Passeio (outro instrumento fundamental da Pedagogia Freinet) poderá ser uma etapa

importante e necessária na realização deste projeto de conhecer o município.

Trago um exemplo do Relatório de Grupo da professora Paula que descreve

um projeto e as muitas atividades desenvolvidas com a turma durante todo um semestre:

“Nas primeiras semanas de aula de 2014 começamos a conversar sobre o calor e a situação da

estiagem. Quando o Gabriel Z. trouxe a reportagem de jornal com maiores informações sobre

o rio Atibaia a turma toda se empolgou. Montamos um ateliê de leitura de trechos do jornal.

Cada grupo teve que ler, pesquisar e reescrever sobre o assunto com as suas palavras.

Aprendemos sobre poluição, sobre a relação

entre a temperatura da água e a

mortalidade dos peixes, sobre a

profundidade do rio, sobre as diferentes

espécies de peixes, etc. Ficamos

particularmente impressionados com a

quantidade de lixo encontrada no fundo dos

rios e resolvemos pensar sobre a relação do

homem com o ambiente.

Conversamos sobre consumo e desperdício, sobre descarte e reutilização. Produzimos textos

sobre o tema e publicamos no informativo da escola. Queríamos saber como estava a situação

na nossa escola. Reviramos os lixos da escola em busca de pistas.

Conversamos com os alunos do 7°ano sobre os

alimentos encontrados no lixo orgânico. Aprendemos

com eles como fazer um minhocário e como os restos

de alimentos podem ser transformados em adubo.

Semanalmente alimentamos as minhocas com o lixo

orgânico produzido no nosso lanche coletivo.

Para a Festa Junina, além de organizar essas informações

sobre o lixo para apresentar, refletimos sobre elas dentro

dos ambientes urbanos e rurais. O que é consumido em

cada ambiente? Como o lixo é destinado?”

Trecho do Relatório de Grupo do 2º trimestre 2014, Professora

Paula Virgínia Rochetti, Escola Curumim.

Fotos: acervo da autora.

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PESQUISAS INDIVIDUAIS E O PLANO DE TRABALHO INDIVIDUAL

Uma criança pode trazer para a Roda um tema de seu interesse, ou mesmo o

interesse pode surgir de uma situação do trabalho (por exemplo, ao fazer uma pintura e

misturar duas cores a criança pode se perguntar sobre o que está acontecendo ali) e isto

poderá desencadear uma pesquisa. Nem sempre isto desperta a atenção do grupo todo.

Neste caso ela poderá conduzir uma pesquisa individual. A atenção que, como professores,

devemos dar a esta criança é a mesma que aos projetos coletivos. No Plano de Trabalho

Individual haverá a possibilidade desta criança se organizar para pesquisar seu tema.

Os projetos individuais são sempre estimulados na classe e periodicamente

são marcados momentos para que cada criança possa apresentar ao grupo os resultados

de sua pesquisa.

Figura 48: Plano de trabalho individual. Fonte: acervo da autora

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REFLEXÕES SOBRE O EPISÓDIO

Aprender com as crianças a se reencantar com o mundo

A lembrança desse episódio me é particularmente agradável. Lembro-me de meu

espanto com a perspicácia daquele menino. Ele pensou num experimento, formulou hipóteses, criou

um método para testar suas hipóteses, observou e tirou suas conclusões. É no mínimo espantoso, se

considerarmos as dificuldades que nós, estudantes dos cursos de mestrado e doutorado, enfrentamos

para realizar nossas pesquisas, definir a metodologia que iremos utilizar e todos os esforços e

sofrimentos que enfrentados no processo de produzir conhecimentos. E Rudá estava com sete anos!

Impossível não colocar uma exclamação aqui. E, no entanto, o episódio me traz, para além do alegre

espanto, dúvidas e inquietações. Ele me traz questões sobre a responsabilidade que existe no ato de

educar, na seriedade da tarefa que assumimos diante da criança e da sociedade.

Naqueles anos iniciais de exercício da minha profissão eu me encontrava cheia de

entusiasmo pelas novas teorias e propostas que sacudiam o campo das ciências humanas.

Achava mesmo, como é próprio (e salutar) da juventude, que a educação devia desempenhar

um papel transformador da sociedade. Em especial as aprendizagens na universidade haviam

me apresentado a Piaget e eu me sentia compelida a buscar na prática uma atuação coerente

com aquelas ideias, e me sentia com sorte de ter na Pedagogia Freinet um exemplo a seguir.

Mas naquele episódio eu constatava minhas insuficiências quanto ao domínio quer fosse do

assunto em si (“formigas”), quer fosse dos procedimentos que pudessem auxiliar uma

pesquisa mais consistente para que juntos, eu e Rudá, pudéssemos aprofundar as descobertas.

É bem verdade que, felizmente, naquela mesma época conversei com um amigo

biólogo, contando alegremente sobre a pesquisa de meu aluno e ele me explicou que “a formiga

não come açúcar, na verdade as formigas levam para o formigueiro várias coisas que encontram e

lá existe um fungo que se alimenta de tudo isso. As formigas se alimentam desse fungo que cresce

dentro do formigueiro”. “Ah! Entendi!” E fui logo conversar com Rudá, contar-lhe sobre o que

tinha aprendido. Procuramos livros na biblioteca e encontramos mais informações sobre o tema.

As contribuições de Piaget, sua pesquisa sobre o desenvolvimento da criança e

suas proposições sobre o modo como ela constrói seu conhecimento marcaram profundamente

as concepções de educação no século XX. Compreender o caráter ativo e construtivo dos

processos de aquisição de conhecimento pela criança nos colocou a nós, educadores

progressistas, um questionamento e um rompimento com os modelos formalistas, verbalistas

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e disciplinares até então reinantes. Piaget nos levou a reconhecer a importância de

proporcionar à criança um ambiente rico e capaz de favorecer o desenvolvimento do espírito

experimental. Segundo este autor (Piaget, 1970, p. 39):

No curso dos últimos anos cada vez mais se tem insistido – e não deixaremos de

repeti-lo – na lacuna fundamental da maioria dos métodos de ensino que, numa

civilização em grande parte baseada nas ciências experimentais, negligencia

quase totalmente a formação do espírito experimental entre os alunos.

Negligencia-se a formação do espirito experimental não só entre os alunos, mas também

na nossa formação inicial de professores, como vimos na discussão sobre a racionalidade do modelo

científico e, como o próprio episódio denunciou sobre minha formação. Apesar desta falta na

formação inicial de professores, difundiu-se no século XX um pensamento pedagógico que coloca

como centro a criança e sua atividade no e sobre o ambiente. Em termos das teorias sobre a educação,

iniciava-se uma ruptura com os modelos formalistas e verbalistas e os movimentos de renovação da

escola tiveram forte influência no pensamento pedagógico, embora em termos práticos ainda

perdurem, até hoje, os modelos de transmissão de saberes codificados e sistematizados em apostilas ou

livros didáticos, da aula frontalizada, do ensino simultâneo. Neste sentido, experiências como a vivida

por mim se alinhavam a estes ideais de mudança e transformação da escola.

Por outro lado, temos em Hannah Arendt uma discussão de extrema importância

acerca da instituição escolar, sobre a qual ela nos relembra seu papel de “instituição que

interpomos entre o domínio privado do lar e o mundo com o fito de fazer com que seja possível a

transição, de alguma forma, da família para o mundo” (Arendt, 2003, p. 238). E ainda nos aponta

a crise na educação e aborda o problema que adveio de uma certa transposição para o âmbito

educacional das visões do pragmatismo, filosofia particularmente difundida nos Estados Unidos e

que se tornou um pressuposto assumido na educação. Em suas palavras (idem, p. 232):

Esse pressuposto básico é o de que só é possível conhecer e compreender aquilo

que nós mesmos fizemos, e sua aplicação à educação é tão primária quanto

óbvia: consiste em substituir, na medida do possível, o aprendizado pelo fazer.

Confesso que, quando tomei contato com o pensamento de Arendt e li isto, minha

primeira reação foi de rejeição. Havia sempre defendido o valor da atividade da criança como

possibilidade de adquirir conhecimento e me empenhado em proporcionar aos meus alunos

um ambiente rico em experiências, muito material concreto para que eles pudessem manipular

e construir conhecimento. E, no entanto, apesar da rejeição inicial, o questionamento que

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Arendt colocava martelava minhas certezas, permanecia incomodando. Ainda mais se, ao

retomar/relembrar a experiência narrada neste episódio, constatava minha própria inabilidade

e despreparo para contribuir de forma mais efetiva no processo de Rudá. Mas continuei lendo

Arendt. Especialmente porque encontrei beleza e sensibilidade em suas proposições sobre o

modo pelo qual o mundo adulto deve se relacionar com a infância.

No modelo tradicional de ensino, mostrar à criança o que é e como é o mundo,

faz-se por meio da simples transmissão do conhecimento, com ênfase na transmissão oral e no

uso dos recursos como a lousa e livro didático. Piaget (1970, p. 41) alerta para o fato de que

“a aquisição dos conhecimentos depende naturalmente das transmissões”, mas “apenas sobre

esse processo é que durante muito tempo se baseou a escola tradicional”.

Se, com Arendt (idem, p. 244), reconheço que a crise na educação está ligada à atitude

disseminada em nossa sociedade de rejeição à tradição e, portanto, coloca-nos em desconfortável

situação, “pois é de seu ofício servir como mediador entre o velho e o novo, de tal modo que sua

própria profissão lhe exige um respeito extraordinário pelo passado”, entendo também como

necessário que o educador se atualize quanto ao mundo mesmo do qual ele faz parte e que, como

Piaget já ressaltava, trata-se de um mundo fortemente baseado nas ciências experimentais.

Se minha função de educadora é, como representante dos adultos, mostrar à criança o

mundo como ele é, é preciso entender também que, para que ela possa aprender sobre “o mundo

como ele é”, minhas explicações codificadas e sistematizadas não bastam. O modelo tradicional

recebe do pensamento de Piaget (idem, p. 41-2) uma análise da qual não podemos fugir:

Em uma palavra, desde que se trata da fala ou do ensino verbal, parte-se do

postulado implícito de que tal transmissão educativa fornece à criança os

instrumentos próprios da assimilação, ao mesmo tempo que os conhecimentos a

assimilar, esquecendo que esses instrumentos só podem ser adquiridos pela

atividade interna e que toda assimilação é uma reestruturação ou uma reinvenção.

Um pouco mais adiante (p. 42) Piaget conclui:

Numa palavra: a linguagem não basta para transmitir uma lógica e só é

compreendida graças aos instrumentos de assimilação lógicos de origem mais

profunda, visto que procedem da coordenação geral das ações e das operações.

Mas, infelizmente, em muitas escolas ainda vivemos uma situação de defasagem:

o professor explicador “dá sua aula” e o aluno tenta “assimilar” as informações usando seu

sistema de representações e, em muitos casos, usando somente a memória.

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Contar para as crianças, mostrar a elas, como é o nosso mundo não é dar aula

expositiva sobre ele, mas é sim, ajudá-la e permitir a ela atividades de experimentação que

possam lhe mostrar o mundo e permitam que ela mesma se relacione com o mundo, pois,

mesmo sabendo que haverá sempre a nossa intervenção, é preciso lembrar que haverá também

a ação da criança. Embora eu perceba que posso estar “chovendo no molhado” ou repetindo o

que já foi dito, entendo como importante esta discussão pois, o questionamento de Arendt

discute um certo ativismo pedagógico que se difundiu por meio de experiências inovadoras no

último século. Minha experiência profissional levou-me a esta aprendizagem de que educação

ativa e com espírito experimental não é o mesmo que ativismo em educação.

Este pequeno diálogo (não de duas, mas de três vozes, incluindo a minha própria)

em que me vi entre Arendt e Piaget, trouxe-me inquietações e dúvidas, pois as afirmações de

um e de outro me pareciam contraditórias em alguns momentos. Creio que o desafio que se

coloca para a transformação da escola é revestido de dificuldades que têm a ver com este

exercício de conciliar termos que podem, às vezes, parecer contraditórios. Como por exemplo

a tarefa de reconhecer a infância, sua novidade no mundo, mas também reconhecer o papel da

escola de introduzi-la no mundo, apresentá-lo a ela. Isto que enxerguei – hoje entendo melhor

– como contraditório, creio que tanto a prática da Pedagogia Freinet quanto a reflexão que se

faz possível com a produção desta tese encontram alguma conciliação. É em Freinet que

encontro uma quarta voz para esta conversa. Em Pedagogia do bom senso (1991) Freinet já

apontava sua crítica aos modelos que se apoiam exclusivamente na explicação (p. 42):

“Inútil desperdício de energia”, observam sentenciosamente os pedagogos, e

dizem: “Então? Iremos obrigar cada homem a redescobrir o carrinho de mão,

a máquina a vapor ou a virtude das sulfamidas? Homens com prática de

crianças coletaram material para elas, classificaram-nas, agruparam-nas.

Para que deixar a criança tatear, perder-se em inúteis labirintos! Existem

manuais escolares!” Isso mesmo... e que evitam às crianças o trabalho de

atirarem pedras nos lagos, e explicam-lhes, com fotografias e desenhos

elucidativos, o que ocorre quando uma pedra cai na água.

E hoje em dia as novas tecnologias tornaram estas exposições mais fantásticas e

atraentes e preparam com melhor maestria o cidadão para viver diante da tela. “Evitam o

trabalho”, evitam a sujeira nas mãos. Os produtos escolares tornaram-se vendáveis. Perde-se

neste processo a capacidade de pensar criticamente o produto, especialmente quando se trata

de crianças. A discussão que fizemos ao analisar a questão da infância nos dias de hoje

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reaparece aqui para que pensemos criticamente o uso indiscriminado da informação como

produto de consumo. Seguindo ainda as reflexões de Freinet (idem):

Hoje, todo mundo sabe andar de bicicleta. Como é possível que almas

generosas não tenham imaginado ainda, para uso das crianças, um manual

para ensinar a arte de andar de bicicleta sem quedas e machucados? Os

próprios pedagogos verificaram que esse manual em nada diminuiria as

tentativas e também não evitaria quedas e arranhões.

No Dossiê Pedagógico da Revista L’Educateur (1979, p. 5)46, temos uma proposição

que sintetiza o pensamento de Freinet: “a Pedagogia Freinet assume para fins educativos as

necessidades de cada criança”. Destaco aqui o uso do verbo “assumir”, que exige de nós a

imprescindível atitude responsável. Além disso, o que se propõe é assumir as “necessidades das

crianças”. Dentre as necessidades elencadas no documento, destaco uma que se encaixa na

discussão deste episódio, a necessidade de “criar, agir, conhecer”. Para assumir educativamente

esta necessidade da criança, é preciso lançar-se junto com ela no caminho de descobrir e

redescobrir o mundo. E, assim, reconhecer que o mundo que devemos apresentar a ela é também

o mundo que ela naturalmente problematiza e se encanta curiosamente por seus mistérios. É neste

sentido que podemos aprender o caráter cooperativo desta relação professor/aluno e seu caráter

ativo. Há uma ação do professor, no exemplo do episódio: eu estava agindo na organização do

trabalho da turma ao garantir que Rudá saísse para pesquisar. Rudá, por sua vez, coordenou ação e

reflexão, realizou tateios experimentais para responder à pergunta que ele se colocava.

Na prática da Pedagogia Freinet nos esforçamos para permitir que a criança se

aproprie de instrumentos de produção do conhecimento: manipular, experimentar, emitir

hipóteses, confrontá-las, ensaiar “teorizações”, fazer abstrações. Numa síntese, devemos

permitir o tateio experimental. Segundo o Dossiê Pedagógico (idem, p. 17):

É esse trabalho de pesquisa reflexiva sobre os materiais físicos ou mentais os mais

diversos que nós chamamos de tateio experimental. Uma verdadeira formação

científica exige o respeito a esse tateio e ao ritmo de aprendizagem que dele decorre.

No episódio narrado meu aluno estava profundamente envolvido no processo de

conhecer as formigas e para isto buscava observar e construía suas explicações. Ou seja, ele

realizava sua aprendizagem por meio do contato com objetos e materiais

46 Este Dossiê foi escrito por um grupo de educadores freinetianos em colaboração, o que constitui

assim um exemplo extremamente relevante quando se fala da formação do professor reflexivo. O

esforço de Freinet para criar e animar um movimento de educadores foi analisado no trabalho de

Munhoz (já citado).

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concretos(observação das formigas), mas também por meio de operações mentais, suas

abstrações a partir das observações. Era neste ponto em que minha interferência se tornava

necessária, pois suas conclusões eram ainda incompletas.

O documento especial da Revista Le Nouvel Educateur oferece reflexões sobre a

importância das representações mentais no processo de aprendizagem. O autor, Pierre Guerin

(1988, p. 3), um professor do movimento Freinet francês, defende: “assim como nós, a criança

constrói sistemas explicativos do mundo natural e social que a envolve a partir de suas

observações e das referências que memorizou”. Era o que eu presenciava com aquele meu

aluno. Ele fazia o seu “tateio experimental”.

Há mais uma lição que me importa aqui: também eu procedia a um “tateio

experimental”. A organização do trabalho naquela sala de aula era estruturada segundo uma

nova ordem escolar e isto abria algum espaço para estes tateios. Ainda segundo Guerin (idem,

p. 37): “levar em conta realmente as representações mentais iniciais da criança requer

incontestavelmente uma gestão diferente do tempo e do espaço escolares e a utilização de

instrumentos pedagógicos adaptados”.

Creio que a mais importante lição que aprendi diz respeito a uma tomada de

consciência da necessidade de continuarmos aprendendo. A aprendizagem de ser um professor

que se pretende não um repetidor, não um transmissor de informações, ocorre em diferentes

níveis. Estamos sempre aprendendo sobre quem é esta criança que está diante de nós. Mas

também estamos sempre aprendendo sobre as coisas e o mundo que ela descobre e que

descobrimos junto com ela. É preciso manter nossa curiosidade, é preciso colocar em ação

nossas habilidades de formular hipóteses, de descobrir coisas novas. Mantermo-nos junto com a

criança encantados com o mundo e tudo que há nele. E estamos, nisso tudo, aprendendo sempre

sobre nós mesmos. E isto não é fácil, não é pouco, e contém algo de maravilhoso.

* * *

Até aqui expus narrativas (episódios) que fizeram parte de minha formação

como professora de crianças. As próximas narrativas estão ligadas ao trabalho de

coordenadora e diretora da escola.

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5ª NARRATIVA: tensões e distensões no cotidiano da escola

“Do nada Likeke agrediu um colega com uma caneta. Ele estava sentado num banco do ônibus e golpeou Kerexu (que estava na poltrona à sua frente) na cabeça, várias vezes, provocando um corte que sangrava muito. Eles estavam entrando no ônibus, de volta da aula-passeio, da qual ele havia participado tranquila e alegremente”.

Quando, ao telefone, eu disse à mãe esta frase, a reação dela foi intensa. “Likeke não tem reações agressivas, assim, do nada. Algo deve ter acontecido”. Ela argumentou que em casa ele conseguia explicar que se sentia sozinho, que os amigos não ficavam com ele e que quando ele reagia agressivamente havia sempre um gatilho, um disparador para a reação.

Nas entrelinhas desta fala percebi a enorme angústia que esta mãe vivia. Ela buscava razões ou explicações razoáveis para o comportamento do filho. Respondi que sim, que eu compreendia que havia algum disparador para a agressividade dele e acrescentei: “acho que me expressei mal quando usei a expressão ‘do nada’ para falar do momento em que aquilo começou”. Disse ainda que nós (a professora, a professora auxiliar e eu) também estávamos procurando e fazendo hipóteses sobre o que havia gerado aquela agressão. Achávamos que ele tinha ficado contrariado quando, na volta do passeio, a professora tinha ficado na entrada do ônibus cuidando de outro colega dele, o Ubiraci, que é um menino de quem Likeke gosta muito, mas com quem também tem uma relação competitiva e tensa. Expliquei que estávamos achando que os cuidados que a professora Jandira estava dedicando ao Ubiraci haviam provocado ciúmes e disparado o impulso agressivo de Likeke. A mãe então falou de uma percepção dela de que a turma não tinha com ele o acolhimento de que ele necessitava. Disse ainda que achava que ele percebia isto e reagia.

O incidente ocorrera na volta de uma aula-passeio. Quando eles chegaram à escola, a coordenadora do 2º ano e eu recebemos os dois (Likeke e Kerexu) enquanto a professora levava a turma para a sala, para acalmá-los e conversar com eles. Atendi e cuidei primeiro de Kerexu, procurei ver o machucado, constatando que não era profundo, embora sangrasse bastante (pois a cabeça é uma região bastante irrigada), não haveria necessidade de dar pontos. Mandei chamar a mãe dele e enquanto ela não chegava fiquei conversando com ele, que se mostrava calmo, embora chateado com o ocorrido. A mãe de Kerexu chegou e expliquei o que tinha acontecido. Nós duas conversamos com Kerexu e procuramos nos certificar de que ele estava bem. Recomendei que ela o levasse a um Pronto Socorro ou um médico, para ter certeza de que não era grave. Ela concordou, mas disse que tinha certeza que não era grave. Disse a ela: “olha, o Likeke vai ficar suspenso da escola por três dias.” Ela respondeu: “nossa! Acho que é um pouco demais...”

Lembro-me que isso me deu mais tranquilidade, pois em outros incidentes semelhantes em outras turmas a reação de outros pais havia sido bem mais intransigente. Mas respondi a ela que era uma medida necessária e que estávamos tranquilas e seguras de nossa decisão.

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Mãe e filho foram embora e fui cuidar da situação de Likeke, que estava numa salinha de reuniões com a coordenadora Anauá. Ela também já havia pedido que chamassem a mãe dele. Durante todo o tempo em que esperávamos, estava muito difícil estabelecer uma conversa com Likeke. Ele gritava muito, com uma careta de raiva repetia apenas uma frase: “eu, eu, eu... Eu não devia estar aqui”.

Coloquei-o sentado na cadeira e nos sentamos uma de cada lado dele. Ele tentava nos bater e arranhar e nós segurávamos suas mãos, com firmeza e tranquilidade. E Likeke continuou gritando: “eu, eu, eu, eu não devia estar aqui. Ele que devia estar aqui, não eu!”. Por um breve momento ele parou de gritar e Anauá tentou conversar com ele, mas imediatamente ele recomeçou. Pedi que ela não falasse e ficamos as duas em silêncio, ao lado dele. Por cerca de 40 minutos ficamos ali esperando. Quando a mãe chegou estávamos os três na salinha e tenho certeza de que ela ainda pôde ouvir seus gritos antes de entrar. Mas, quando ela entrou, ele parou de gritar. Aprumou-se na cadeira, olhou pra ela e perguntou: “você vai me bater? Vai me deixar de castigo?”

Cumprimentei-a e lhe dei uma cadeira. Ficamos assim os quatro sentados num pequeno círculo. Iniciei a conversa explicando a ela o que havia acontecido. Explicar os fatos em frente ao Likeke era importante, a meu ver, para que ele percebesse que os adultos estavam de acordo entre si e não aprovavam este comportamento dele.

A mãe então olhou para o filho e perguntou: “por que você fez isto?”. Ele respondeu com gritos: “Por quê? Por que eu fiz isto?”. E voltou à mesma fala: “Eu, eu, eu não devia estar aqui”.

Então tomei a palavra: “mas agora você está aqui e o Kerexu teve que ir embora pra cuidar do machucado”. Ele me olhou cheio de dúvidas. Eu disse: “você não devia estar aqui porque você é um bom menino e acho que não queria machucar seu amigo. Mas parece que está muito difícil pra você se controlar. Agora a mamãe está triste. Acho que não foi isto que a mamãe te ensinou”. A mãe retomou: “a mamãe, quando fica brava, ela bate? É assim que a gente resolve as coisas em casa? E o papai? Ele bate?”. Likeke, com uma voz grave e séria, responde: “Não...!”

A conversa continuou assim por mais alguns minutos e então pedi que Anauá se afastasse com Likeke para que eu pudesse dar mais algumas palavras com a mãe. Disse a ela que, embora normalmente e nós fôssemos contrários ao uso de medicamentos psicotrópicos, eu via como necessária uma consulta a um psiquiatra que pudesse avaliar o caso. Ela me respondeu que, como eu já sabia, ele tinha um médico neurologista que o acompanhava e prescrevia medicações fitoterápicas. Insisti um pouco com ela, falando que a impulsividade e agressividade que ele apresentava eram dados muito importantes a serem considerados. Embora a conversa estivesse bastante difícil, carregada de emoções, sentia-me solidária com as dificuldades que esta família estava vivendo. Quando ela saiu com o filho combinamos que no dia seguinte nos falaríamos por telefone.

Mas o dia ainda não tinha terminado... Como era uma terça-feira, naquela noite tínhamos reunião pedagógica e a pauta seria a apresentação do trabalho da

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professora de Educação Física. Estávamos no mês de maio e, portanto, realizando os ensaios da quadrilha. Nanine iniciou o relato sobre as aulas de Educação Física. Mas logo passou a falar da dificuldade de trabalhar com Likeke: “ele bate nos colegas, belisca a mão daqueles que fazem par com ele no ensaio da quadrilha. É muito difícil pra mim ter que lidar com ele e com o grupo. Tem horas que eu consigo dar uma atenção mais individualizada pra ele, mas eu tenho que dar atenção ao grupo também. Eu me sinto dividida sabe, fico tensa e com medo que ele bata em alguém ou faça alguma coisa”.

A reunião torna-se então um momento de abordarmos este caso, mais ou menos como um “estudo de caso”. Estamos todos envolvidos com a questão, e falar sobre o assunto, usar a nossa “roda de conversa” para pensarmos juntos em como agir, é um recurso precioso.

Abro um parêntese para explicitar um pouco da cronologia do caso Likeke, ou daquilo que as pessoas presentes naquela reunião já sabiam. Quando este incidente ocorreu, Likeke já estava matriculado na escola há três anos. Ele iniciou na turma do Infantil. O primeiro contato da família com a escola foi feito pela coordenadora da Educação Infantil (eu acompanhava o caso um pouco mais à distância). Na entrevista inicial entre os pais e a coordenadora eles mencionaram as dificuldades de Likeke na escola anterior, onde seu comportamento agressivo havia levado a um pedido (por parte da escola) de que eles buscassem uma outra instituição. A turma na qual ele foi matriculado na Curumim tinha o Cauã como professor e considerávamos este um aspecto importante: uma figura masculina bastante estável e tranquila. O ano letivo já havia começado, estávamos em abril quando ele entrou. Sua adaptação inicial não apresentou maiores dificuldades, ele estabeleceu uma boa relação com o professor. Porém, aos poucos as dificuldades foram aparecendo. Dois aspectos chamavam nossa atenção: as dificuldades de relacionamento com os colegas e a baixa resistência a qualquer frustração. Também mostrou dificuldades no seu desenvolvimento cognitivo, suas produções e desenhos apresentavam pouca elaboração, nas conversas em roda mostrava baixa compreensão e pouca participação nos projetos da turma. Não posso deixar de explicitar o fato de que a dedicação de todos os professores envolvidos no trabalho (direto ou indireto) com ele tem sido intensa. A nosso pedido a família procurou a ajuda de uma terapeuta que, depois de um período de avaliação, levantou um diagnóstico de autismo.

Agora, no 2º ano, as dificuldades se acirraram. O tempo de trabalho em sala e as exigências são maiores. O grupo todo se sente desafiado com o projeto de dominar a escrita e a leitura, e muitos já se encontram num nível bastante avançado. Apesar das dificuldades, Likeke participa dessas dinâmicas, envolve-se com o trabalho no seu ritmo próprio. Os colegas sempre o convidam para as atividades ou brincadeiras. Ele é sempre chamado para jogar junto ou para brincar no recreio. E aqui fecho o parêntese para voltar à Reunião Pedagógica.

Jandira (a professora dele) relata a dificuldade de Likeke no grupo: “ele manifesta sentimentos de perseguição. Mas, ao mesmo tempo, ele implica com

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os outros, quer controlá-los. Quando eu o coloco perto de mim ele se irrita, dizendo que eu só fico chamando a atenção dele. Ele repete frases assim: ‘por que você só fala isso pra mim?’ , ‘por que só eu vou ficar do seu lado?’. Mas não é isso que acontece, sabe? Não é só ele que fica sentado perto de mim. Eu também chamo outras crianças quando elas precisam de ajuda individualizada”.

Jandira continua sua fala contando outro exemplo: “outro dia a gente estava na Roda Inicial, falando sobre a lição de casa. A atividade proposta era trazerem de casa a sugestão de um alimento típico das festas juninas para a nossa Culinária. Fui perguntando a cada criança qual era a sua ideia, que alimento tinha trazido. A ideia do Likeke era a paçoca, porém, antes que chegasse a vez dele, outra criança disse a palavra paçoca. Likeke ficou muito contrariado e gritava que era ele quem ia falar paçoca. Foi muito difícil acalmá-lo”. Falei: “eu sei que agora esse momento já passou, então não adianta mais eu dar alguma sugestão... Mas o que eu vou falar é mais pra gente pensar junto nas formas de agir nesses momentos difíceis. Você acha que era possível mostrar a ele um outro jeito de enxergar aquela situação? Sei lá... Se você dissesse assim: ‘olha que legal, Likeke! A sua comida já tem dois votos!’ Será que não seria uma forma de tirar ele daquela cisma?”. Jandira me olhou e senti em seu olhar uma concordância com a minha sugestão. Ela continuou seu relato dizendo que ele havia ficado muito irritado e saiu da sala e ficou ali ao lado da porta mexendo no próprio caderno com violência, tentando amassá-lo. Jandira continuou a atividade com as outras crianças. Lá fora passava uma coordenadora (Jaciara) que, vendo Likeke isolado da turma, aproximou-se e conversou com ele. Ela relatou que já de cara percebeu que Likeke estava “alterado”. Fez contato com ele por meio de uma brincadeira e ele foi se acalmando. Jandira então nos contou que outro alimento havia sido lembrado por outras duas crianças. E ela tinha se aproveitado disso para dizer a Likeke: “olha, vem ver, tem outra comida repetida. Agora não é só a paçoca”.

Jaciara comenta que pra ele tudo é perseguição. As falas dele revelam isso. Ele fica “emburrado” muitas vezes no dia.

Outra professora, a Araci, comenta: “acho que nesse casso é importante que se considere a necessidade dele usar medicação, é um caso, é um quadro bem mais grave do que outros que já tivemos”. Comento que isto está sendo considerado, que iremos conversar com a família.

Nanine volta a falar das suas aulas: “eu fico preocupada com a questão do tempo. Eu sinto que tem muita pressão de preparar a quadrilha pra festa (com prazo já apertado) e percebo essa demanda de um tempo específico para trabalhar esta necessidade do Likeke”. Outra professora mostra-se solidária com essas preocupações. Comenta: “acho que é muito difícil uma professora, sozinha com a turma toda, lá fora da classe, e tendo só 45 minutos de aula, dar conta de tudo”. Comento que se enxergamos a situação como tendo que dar conta, se “a dança da Quadrilha” é da professora e ela tem que fazer as crianças cumprirem isso, então é mesmo difícil. Porém, comento, é um projeto de todos. Não é só da

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professora. Criar uma relação de cooperação com o grupo passa por entender que estamos aqui juntos para fazer alguma coisa, no caso, dançar a Quadrilha.

Continuamos a falar sobre como lidar com Likeke. Proponho à Jandira que procure sempre iniciar as conversas com ele fazendo perguntas. “Por exemplo, quando for chamá-lo para sentar perto de você, você pode abordá-lo com uma pergunta carinhosa: ‘Likeke, você quer se sentar aqui perto de mim?’ Assim, ele terá oportunidade de se envolver com você de outra maneira. Sabe? Você vai mostrar pra ele um espaço de acolhimento que ele pode usufruir, mas que envolve a participação dele”. Ainda argumento com todos da reunião sobre o quanto é importante explicitarmos este espaço de acolhimento com as crianças. A reação das pessoas é acolhedora em relação à minha fala.

Araci volta a falar sobre a possibilidade de ele receber um tratamento medicamentoso, pois observa que tudo isso o faz sofrer bastante. Além disso, a escola, as professoras, todos que estão envolvidos com ele têm realizado muitos esforços para ajudá-lo. Mas esta agressividade dele coloca as outras crianças em situação perigosa. Concordo com ela e volto a dizer que estamos vendo a possibilidade disso com a família. Enfatizo nossa posição de cuidado em relação a esta questão que é bastante controversa e passa por uma decisão da família também (além do médico, é claro). Mas relembro ao grupo de alguns exemplos que tivemos no passado em que a medicação foi uma providência útil.

Outra professora faz então um relato pessoal muito emotivo: “sabe, eu tive uma infância que foi muito tumultuada, era difícil porque minha mãe tinha muitos problemas. Eu e meus irmãos sofríamos muito, eu me sentia responsável; acabei tendo problemas na escola também. E teve um tempo que eu tomei antidepressivos. Naquele momento, aquilo foi como uma tábua de salvação pra mim. Foi muito importante”. Esta fala inesperada dessa professora me tocou profundamente. Sinto-me comovida. Acho que tocou a todas nós que estávamos ali. No final da reunião, aproximei-me dela para abraçá-la.

O caso Likeke e essas conversas em reunião pedagógica reforçam em mim a consciência da escola como lugar de formação em serviço, pois é o lugar onde são vividas as relações entre professores e alunos, ente adultos e crianças. Ela deve ser este lugar de livre expressão também para o professor, um lugar de diálogo, de questionamentos e de reflexão sobre a prática.

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OS INSTRUMENTOS DA PEDAGOGIA FREINET EM AÇÃO

A AULA PASSEIO

Aula-passeio, como o próprio nome já diz é, um passeio que o professor e a

turma organizam para aprender alguma coisa, para ampliar conhecimentos em torno de

um projeto no qual estejam trabalhando: a ida a um serpentário, a um mercado, a um

museu, a um laboratório de pesquisa científica, à prefeitura, a uma estação de

tratamento de água etc. A escolha dependerá do tema (ou complexo de interesse) em

torno do qual a turma estiver trabalhando. Os passeios são cuidadosamente organizados

pela professora e pela turma. Coletam informações sobre o local a ser visitado, preparam

perguntas que poderão ser respondidas, observações que poderão ser feitas. Também se

deve estar atento aos cuidados com a segurança de todos. É importante estabelecer

bem todos os combinados para a atividade.

Figuras 49 e 50: Exemplo de uma Aula–passeio com um roteiro para conhecer o centro da cidade. As imagens

mostram a visita à Prefeitura Municipal e ao Museu de Arte Contemporânea de Campinas e na página seguinte a

continuação do passeio. Fonte: acervo da autora

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Neste longo roteiro que fizemos à pé

pelo centro de Campinas, depois do paço

municipal fomos à praça do Bicentenário

com o Monumento à Princesa, subimos

para a praça com a estátua de Carlos

Gomes. Ali paramos para um lanche.

Visitamos a igreja do Rosário e

continuamos até o Mercado Municipal.

Em tudo, em cada canto, explorávamos

cores, cheiros, sensações, barulhos.

E também aprendíamos a cuidar uns

dos outros, a cuidar cada um de si.

Na volta fizemos (ajudei a

professora) um Álbum Coletivo sobre

nosso passeio, sobre toda a experiência.

Fotos: acervo da autora

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Também se pode organizar uma aula-passeio com o objetivo de iniciar, de

desencadear um novo estudo. Pode também ocorrer que uma aula-passeio prevista para

estudar um certo assunto, traga outros assuntos inesperados que passarão a orientar a

curiosidade e a investigação da turma.

Quando Freinet introduziu este instrumento de trabalho na sua classe, ele se

inspirou na Pedagogia Ativa de Adolphe Ferrière. Segundo Oliveira (1995, p. 112 e 113):

Eles saem. Começam as famosas “aulas-passeio” (curiosa antinomia!) – que

vêm, tranquilamente, negar o disciplinamento forçado dos corpos e das

mentes das crianças do povo.

Professor e alunos passeiam na aldeia e nas plantações, visitam os artesãos,

observam seu trabalho ou os fenômenos da natureza. Tomam notas. Na volta

à sala de aula, os alunos descrevem o observado. Sem constrangimentos

escrevem na língua nacional. Freinet descobre que não há meio mais

poderoso de aprendizagem do que o envolvimento afetivo que liga

intrinsicamente os conteúdos de ensino aos interesses concretos dos alunos.

Figura 51: Aula passeio ao centro de Campinas. Fonte: acervo da autora

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A CULINÁRIA

Preparar o alimento, experimentar novos sabores, descobrir o valor nutritivo

de frutas, legumes, verduras, aprender sobre a cultura culinária como patrimônio de um

povo, descobrir a química da transformação dos alimentos... Isso e muito mais pode ser

explorado nas atividades de culinária com as crianças. Apresento a seguir um exemplo

que está registrado num álbum feito por uma turma de 2º ano e que agora se encontra no

acervo da biblioteca da escola. Transcrevo a seguir os registros das crianças e as

imagens deste trabalho realizado pela turma de 2º ano de 2013, com a professora Tânia

Rocha e professora auxiliar Janaína Costa. Creio que o exemplo fala por si.

DE ONDE VEM O POLVILHO?

Na nossa primeira culinária do ano, a turma escolheu preparar o pão de queijo. Em

roda de conversa surgiu a pergunta: qual seria a origem do pão de queijo? Fomos então

pesquisar a história deste alimento de que todos nós gostamos muito. Uma das histórias

que encontramos foi esta:

“No século XVIII, época do Império Português, a farinha era um alimento

muito caro e às vezes de baixa qualidade. Para continuar a preparar pães e

bolos, as cozinheiras das fazendas de Minas Gerais começaram a utilizar o

polvilho. Aos poucos foram incorporando ao pão de goma as sobras de

queijo endurecido que não era utilizado”.

Como a origem do pão de queijo se deu por conta de um dos seus ingredientes

principais, o polvilho, perguntamos então:

O QUE É POLVILHO?

DE ONDE VEM ESTE PÓ BRANCO E

MACIO?

Após algumas pesquisas, descobrimos que o

polvilho vem da mandioca.

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Resolvemos, então, fazer esta experiência que vamos descrever a seguir:

Primeiro picamos a mandioca e colocamos no liquidificador com um pouco de água

para bater.

O próximo passo foi coar essa mistura de

água e mandioca em um tecido, assim

retiramos toda a parte líquida (uma água

branca), e vimos a fibra da mandioca

muito parecida com uma farinha. Logo

uma das crianças disse: “farinha de

mandioca”.

Depois desse trabalho deixamos a água branca em descanso por mais ou menos duas horas.

O resultado foi uma água amarelada por cima e no fundo da travessa de vidro o pó

branco ainda úmido, mas que depois de secar se transformou em polvilho.

Fotos: acervo da autora.

.

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REFLEXÕES SOBRE O EPISÓDIO

O encontro entre alteridades e a autoridade como autoria de nossa própria maturidade

Este não é um episódio, mas muitos. A vida na escola é assim, composta de muitas

vozes, muitos momentos, muitas pessoas, seus passados, seus presentes e futuros, seus entornos

e contornos. Muitos eus e muitos outros. É neste espaço, que se compõe de muitos laços e

entrelaços, em que nos movimentamos, relacionamo-nos, vivemos. Teia da vida a nos tecer.

Tentarei puxar alguns laços visíveis na narrativa do episódio. Começo pelo mais fácil,

pelo que já se desenhou como reflexão e aprendizagem nos episódios anteriores desta tese: a

organização do trabalho segundo os princípios da Pedagogia Freinet. Assim, na sala de aula de Likeke,

pode-se observar pelos relatos da professora que uma organização plural e não unificada, nem

homogênea, estava em ação. Havia já um planejamento no qual o trabalho organizado em ateliês

permitia que cada criança realizasse o seu Plano de Trabalho individual, escolhendo o ateliê no qual

iria trabalhar. Projetos de toda a turma estavam em andamento (dentre os quais os que destacamos no

item anterior – Instrumentos da Pedagogia Freinet em ação – A aula-passeio e a culinária).

Não planejamos e ministramos uma mesma aula para toda a turma. Planejamos,

sim. Há uma falsa percepção de que na Pedagogia Freinet é “tudo livre”, “tudo solto” (muitas

vezes constatei este questionamento). Também não planejamos duas aulas: uma para a criança

ou o subgrupo com dificuldades e outra para o resto da turma. Nem, tampouco, planejamos

várias aulas, uma para cada criança. Planejamos uma organização do ambiente como uma

oficina de trabalho. Nos ocupamos em providenciar materiais, utensílios, fontes de consulta,

fichas de atividades. Nos ocupamos em conhecer os Planos de Trabalho de cada criança para

poder ajudá-las e nos ocupamos de alimentar, estimular os projetos do grupo lançando

perguntas, chamando a atenção com problematizações. Num ambiente assim, não se espera que

todos façam a mesma coisa ao mesmo tempo. Assim, temos melhores condições de atender às

diferentes necessidades e interesses das crianças mas, principalmente, temos um espaço e uma

organização na qual estimulamos as crianças a buscarem por si mesmas o atendimento de seus

interesses. É desconstruída a expectativa de uniformização. É valorizada e favorecida a

construção da autonomia. Um ambiente assim naturaliza a diferença que é inerente a cada um.

É descontruída uma relação de dependência entre professor e aluno. Um ambiente assim

favorece a construção de relações cooperativas entre a professora e as crianças e também das

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crianças entre si. Um ambiente acolhedor é condição para o desenvolvimento saudável de todas

as crianças, não importa se tenham ou não alguma incapacidade ou deficiência que as limite.

Com os instrumentos da Pedagogia Freinet em ação, aquela turma estava se

desenvolvendo e muitos projetos já estavam desencadeados a partir das conversas em Roda.

Cada um ia se envolvendo segundo seu ritmo e suas potencialidades com as pesquisas e

descobertas nos ateliês. Mas... como o relato do caso Likeke revela, ainda assim as dificuldades

aparecem... Não creio ser possível pensar pedagogia sem conflito. Educação é conflito. Seria

ingênuo acreditar que basta mudar os instrumentos pedagógicos e tudo estará resolvido e, como

que por decreto, todos passam a viver um clima idílico de respeito e cooperação.

Tem algo no relato do(s) episódio(s) que certamente não passou despercebido ao leitor:

Likeke foi suspenso das aulas por três dias! Talvez mesmo tenha se perguntado: “como assim? Não

é uma escola democrática e emancipadora? Que acolhe amorosamente todas as crianças?” Sim, é.

Mas isto não quer dizer que não existam regras que são anteriores às crianças que chegam na escola.

Não significa que teremos que inventar tudo de novo a cada ano, em cada novo começo. Como nos

diz Arendt, a criança chega a um mundo ao qual ela ainda não está familiarizada e nosso papel será

o de introduzi-la nele. Como adultos temos que assumir que já construímos socialmente a noção de

que a violência não é aceitável e quem a pratica perde o direito ao convívio com aqueles a quem

agrediu. Por mais que possa existir uma explicação, uma justificação (de ordem emocional,

neurológica etc.) para uma agressividade excessiva no comportamento de uma criança, para que se

possa construir um ambiente de acolhimento e de bem-estar para todos não se pode simplesmente

aceitá-la. A agressividade, até onde mostra minha experiência profissional, é normal, é comum, as

crianças nem sempre sabem se controlar e fazer uso da palavra para resolver suas questões. Estão

ainda construindo os filtros e censuras necessários para o convívio com os pares. Abrir mão do

papel de adulto que faz interdições, que explicita regras básicas de convívio, seria abandoná-las num

“mundo de crianças”, deixando-as à própria sorte.

Entendo como necessário enfrentar e aprofundar esta discussão e, embora esta

tese não tenha nenhuma pretensão de esgotar o assunto, gostaria de esboçar algumas ideias

que a própria experiência tem me oportunizado e que a narrativa do episódio acaba por exigir.

A análise dos pilares da escolarização, no nosso estudo, teve como intenção buscar

compreender este mundo em que vivemos; o desconforto em que se encontra o mundo adulto,

de que nos fala Arendt. Especialmente na discussão sobre o capitalismo industrial como um dos

pilares da escolarização, a reflexão e diálogo com autores como Santos, Guatari, Marx, Eliade,

Bourdieu, Passeron, Bauman, Arendt, explicitou os questionamentos, desvelou suas mazelas,

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ajudou-nos a pensar nossa aldeia global cuja crise embute-se nas suas próprias estruturas, mas

cuja fábula da qual se serve como mecanismo de reprodução a coloca sempre à beira da própria

destruição; permite-nos o olhar de desconstrução. É neste mundo de incertezas e de

inseguranças, mas povoado de sedutoras engenhocas tecnológicas e cuja lógica depende de

descartar o velho e consumir a última novidade, que se produz a ideologia do novo.

O século XX, como vimos, nasce como o “século da criança” e sob o signo da

liberdade, muitas experiências educacionais se realizaram com o intuito de inovar e reinventar

a educação e a escola. Sob certo ponto de vista, a Pedagogia Freinet também se inscreve neste

quadro. É uma pedagogia que propõe um lugar central para a criança na relação pedagógica e

que recupera o valor da construção de relações cooperativas no trabalho.

Tenho, entretanto, tido contato (por meio do estudo, ou de encontros, conversas

ou pela própria divulgação midiática – revistas, jornais, TV, internet) com diferentes

tendências que propõem a inovação ou a reinvenção da escola. Ora movidas pelo desejo de

“reprojetar” o cidadão do futuro, ora desencantadas com a modernidade que assume no

consumismo sua face individualista e predatória, ora simplesmente movidas por uma rebeldia

quase infantil e sem causa, tenho me deparado com ativismos pedagógicos que muitas vezes

se revestem de um niilismo que beira um perigoso abismo. Depreendo destas tendências uma

recusa à autoridade, uma recusa a tudo que possa significar imposição de regras de

comportamento para as crianças, como se elas fossem portadoras de uma verdade pura, como

se elas, e somente elas, pudessem criar e constituir seu mundo, suas regras.

Por outro lado, tenho também, na experiência da vida, convivido com a posição

contrária nesta curva, a posição do velho autoritarismo no qual não cabe o novo, no qual não

cabe a criança, nem sua palavra e expressão. E, embora esta atitude seja ainda a mais corrente

dentro das escolas, a situação tem mudado muito na sociedade em geral. Na análise que fizemos

sobre o problema da Infância no mundo contemporâneo foi destacada a questão do papel que se

vem atribuindo à criança, uma forma de encará-la que a alça ao lugar de rainha. Arendt foi

aguda na análise do problema da autoridade que tem instaurado uma crise tanto no âmbito

político como em muitos outros aspectos da vida social (2003, p. 128):

O sintoma mais significativo da crise, a indicar sua profundeza e seriedade, é

ter ela se espalhado em áreas pré-políticas tais como a criação dos filhos e a

educação, onde a autoridade no sentido mais lato sempre fora aceita como

uma necessidade natural, requerida obviamente tanto por necessidades

naturais, o desamparo da criança, como por necessidade política, a

continuidade de uma civilização estabelecida que somente pode ser garantida

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se os que são recém-chegados por nascimento forem guiados através de um

mundo pré-estabelecido no qual nasceram como estrangeiros.

Minha experiência pessoal e profissional tem me colocado vezes demais diante de uma

atitude de adultos (pais ou professores) que delegam às crianças decisões que pesam sobre seus

ombros, podem mesmo oprimi-las com uma responsabilidade para a qual não possuem ainda

maturidade para assumir. Uma reação às avessas também pode ocorrer e vemos crianças

autoritárias, acostumadas a impor seus desejos. Exemplos demais tenho presenciado de pais que

deixam aos filhos a decisão de escolher desde o eletrodoméstico ou o carro que será comprado pela

família até a escola na qual ele quer estudar. Mas crianças mimadas sempre existiram. Preocupa-me

um outro tipo de exemplo que também tenho visto: professores que se sentem autoritários por

qualquer proibição que tenham que impor aos alunos, professores que se gabam da atitude rebelde

(mas que tem muito de destrutiva) de seus alunos. O extremo desta atitude encontrei no exemplo de

uma escola que, ao matricular um novo aluno (com o ano letivo já iniciado), colocou-o numa turma

e, no dia seguinte, levou-o a outra para que escolhesse em qual delas ficaria. Se parece exagero, não

seria demais lembrar as avaliações feitas em muitas escolas pelos alunos que determinam o IBOPE

dos professores e, portanto, sua permanência ou não no emprego.

A retomada da reflexão sobre as questões do mundo adulto (suas marcas na pós-

modernidade) e o mundo da infância (e o como tem sido vivenciado) tem, para mim, o

propósito de pensar nestas relações, discutir caminhos para se chegar a um encontro entre

alteridades que não passe pela negação de nenhuma delas: nem negar à infância sua novidade,

nem negar ao adulto sua maturidade.

Tantas reflexões para explicar a suspensão de um aluno! Para mim, isto só reforça

a maravilhosa complexidade de viver este espaço/tempo escola, esta teia viva de relações

entre humanos. Só evidencia o caráter sempre investigativo que o estar no espaço escolar abre

como possibilidade o tempo todo.

Além disso, toda esta discussão me permite agora abordar uma questão que tem se

mostrado presente ao meu olhar sobre as questões da educação. Trata-se de pensar o objetivo, mais

que urgente e legítimo, de promover a formação de uma cidadania pautada pelos valores da

democracia. Em síntese, a construção de uma escola democrática. Minha trajetória profissional tem

me mostrado que esta proposição se reveste de uma interessante complexidade. Especialmente no

Brasil, cuja história da construção da democracia é bem recente, praticamente recém-nascida. Nossa

própria experiência da vida democrática com seus direitos e deveres é ainda tateante, temos ainda

dificuldade em assumir as responsabilidades que o processo democrático demanda. É mais fácil

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reivindicar direitos, mais difícil cumprir deveres. E, às vezes, uma transposição destes princípios

para o espaço escolar resvala do democrático para um democratismo.

As análises de Arendt ajudam também a ver o quanto a própria perda do sentido da

autoridade coloca (a nós, habitantes do mundo adulto) de novo confrontados com os problemas

elementares da convivência humana (idem, p. 187). É ainda com Arendt que dialogo:

Na educação, ao contrário, não pode haver tal ambiguidade face à perda

hodierna de autoridade. As crianças não podem derrubar a autoridade

educacional, como se estivessem sob a opressão de uma maioria adulta –

embora mesmo esse absurdo tratamento das crianças como uma minoria

oprimida carente de libertação tenha sido efetivamente submetido a prova na

prática educacional moderna. A autoridade foi recusada pelos adultos, e isso

somente pode significar uma coisa: que os adultos se recusam a assumir a

responsabilidade pelo mundo ao qual trouxeram as crianças (idem, p. 240).

Estas considerações levam a pensar no delicado trabalho de construir relações

democráticas com as crianças, sem, contudo, abrir mão da autoridade que nossa experiência

de adultos e nossa responsabilidade para com as crianças que recebemos nos confere.

Entender a não simetria da relação adulto criança, significa não uma licença para

simplesmente comandá-la e manipulá-la como a uma marionete, negando a ela seu status de

humanidade e nem a desistência de nos colocarmos como presença ativa diante dela, presença

capaz de promover sua segurança, de impedir sua temeridade e imprudência que possa

colocá-la em risco ou aos seus pares. Um ambiente democrático na sala de aula e na escola

não prescinde de nossa atuação. Nas reflexões de Paulo Freire encontro síntese:

Noutro momento deste texto me referi ao fato de não termos ainda resolvido

o problema da tensão entre a autoridade e a liberdade. Inclinados a superar a

tradição autoritária, tão presente entre nós resvalamos para formas

licenciosas de comportamento e descobrimos autoritarismo onde só houve o

exercício legítimo da autoridade. (Freire, 1996, p. 117)

Democracia não é cada um fazer o que quer, como quer; democracia não é

remédio milagroso que retira os conflitos e nos exime do difícil trabalho de aprender a

conviver. Há no trabalho de educar uma importante dose de continência ante o arrojo da

criança. Há no trabalho de educar uma dose de conservadorismo, que é o de conservar o

mundo para que a chegada do novo não o destrua, conservar a criança, protegendo-a dos

riscos de certa audácia imprudente. E é com Freinet que encontro respostas satisfatórias para o

equilíbrio neste encontro entre o novo e o velho, que não se reduza à negação de alteridades e

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nem à omissão ou diluição frente ao outro. Busco nos “ditos de Mathieu”, personagem por ele

criada para falar de uma Pedagogia do Bom Senso, as pistas para o estabelecimento de

relações humanas, de afeto e respeito (Freinet, 1991, p. 23):

“Se você não voltar a ser como uma criança...” não entrará no reino encantado

da pedagogia... Ao invés de procurar esquecer a infância, acostume-se a

revivê-la; reviva-a com os alunos, procurando compreender as possíveis

diferenças originadas pela diversidade de meios e pelo trágico dos

acontecimentos que influenciam tão cruelmente a infância contemporânea.

Voltar a ser como uma criança, talvez não seja demais dizer, não é voltar a ser criança. É

reviver com as crianças nossa infância para, com os olhos de hoje, olhar seus medos, compreender suas

necessidades de apoio, de continência, de estabilidade. Para, com os olhos de adultos, sabermos

compreender os sentimentos de injustiça que uma omissão de nossa parte pode causar ao seu desamparo.

Não é mera inversão das identidades, o que significaria cair no democratismo, o que seria reafirmar o

princípio da identidade. Voltar a ser como uma criança é algo que só minha maioridade e maturidade

podem conseguir pelo exercício de sair de um eu egocêntrico para chegar um pouco mais perto deste

outro diante de quem me encontro. Eis aí uma lição que aprendo e reaprendo a cada dia.

Há outra reflexão no episódio narrado que é uma lição para mim e que tem a ver com

uma certa forma de encarar a inclusão como se, ao lidar com a diferença, devêssemos tratar

desigualmente as crianças: um tratamento para os “normais” e outro para os “deficientes”. Esta

questão contém certa ingenuidade por parte de professores e educadores, que parecem conceber a

inclusão como um modo de conviver com a diferença como se nossa atitude tivesse que ser sempre a

de uma indulgência e aceitação incondicional. Como se lidar com crianças com deficiência fosse não

corrigi-las. Como se tudo nelas já estivesse dado. Nesta concepção, é o diferente que passa a ocupar o

lugar do rei. Quando o elevo a rei – eu o trato de forma desigual. Minha vivência e experiência com a

Pedagogia Freinet mostra que uma pedagogia efetivamente inclusiva é aquela que trata a todos

diferentemente quando se trata de respeitar suas personalidades, ritmos, gostos, talentos, dificuldades,

necessidades. Tratar diferentemente nem é tratar com paternalismo, nem é tratar como desigual. Uma

pedagogia efetivamente inclusiva trata a todos com igualdade nos seus direitos e deveres.

Este episódio composto de muitos episódios ainda enseja outras reflexões que

dizem respeito às relações entre adultos numa escola que se propõe inclusiva. Já no trabalho

de mestrado, ao narrar a história da Escola Curumim e os caminhos trilhados para manter viva

sua proposta, teci, nas conclusões, a reflexão sobre a necessidade de compreendermos o

trabalho escolar como um trabalho coletivo. Um trabalho que se faz com parcerias. Creio que

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o episódio explicita isto. Primeiro na relação dos profissionais da escola com os pais: somos

parceiros do mundo adulto a receber a infância. Depois nas relações entre professores e

coordenadores: somos parceiros entre nós, realizamos coletivamente o trabalho.

Por muito tempo (e certamente ainda hoje em muitos lugares) a escola recebeu os

pais para, como detentora dos saberes educacionais, apresentar-lhes os resultados dos

rendimentos do filho e, eventualmente, apontar insuficiências da educação no lar, quase

sempre como forma de justificar o fracasso do aluno. Porém, mais recentemente, a educação

tem, na sociedade capitalista, sido transmutada em prestação de serviços. O estudo da história

da escolarização nos ajudou a compreender que este fenômeno não surge do nada, que todo

um processo de apropriação da escola, seu aparelhamento como instrumento para a

reprodução das relações políticas e econômicas no âmbito mais amplo da sociedade, entrou

em ação com o surgimento do estado moderno. Em troca de e-mails do grupo de professores

freinetianos, a professora Anne-Marie Milon Oliveira (cuja obra é citada nesta tese) chama

nossa atenção para o fato de que as velhas pedagogias tradicionais têm retornado sob “novas

roupagens”. Cito um trecho do e-mail: “e hoje está voltando sob outra roupagem, a meu ver

muito mais perigosa, a da ‘gestão empresarial do ensino’ que assola secretarias pelo Brasil,

inclusive aqui no Rio de Janeiro, tanto no estado como no município”.

Além de muitos outros problemas que este assédio de uma visão empresarial da

escola acarreta, temos uma virada nas relações entre a família e a escola que, especialmente na

rede privada, transforma-se em relação prestador-de-serviço/cliente. O perigo de uma deterioração

nas relações escola-família (que, em âmbito mais amplo, traduzem as relações escola-sociedade) é

patente. Mas é neste espaço/tempo escola que nós, educadores e pais, vivemos e sofremos as

influências que se fazem sentir na sociedade, estejamos ou não conscientes disso.

A construção de relações de parceria passa pela compreensão do papel de cada um

dos atores desta cena e pelo respeito aos diferentes saberes que cada um aporta, bem como as

diferentes responsabilidades que cada um pode e deve assumir na educação das crianças

(lembrando que são elas o nosso elo de ligação). É papel da escola receber e acolher os pais,

tanto quanto as crianças. A escola compartilha com os pais a tarefa de educar, mas não pode

desempenhar um papel que não lhe pertence. No episódio, minha preocupação era de mostrar

a Likeke a concordância entre mim e sua mãe, mostrar nossa parceria, para que ele pudesse

encontrar consistência e segurança por parte dos adultos, de forma a poder sentir-se orientado,

sentir que saberíamos conduzir a situação, fazendo a ele as exigências que lhe dessem pistas

sobre o que se pode e o que não se pode fazer no convívio com seus colegas.

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A pedagogia tradicional (que chamamos de Pedagogia do Inquérito) quando da

discussão sobre suas características (a segunda característica, a de exclusão da sensibilidade

em favor da racionalidade) marca nossa existência, nosso agir e relacionar-se no mundo.

Cabia a mim, na vivência do episódio, buscar uma compreensão solidária com as dificuldades

que a mãe enfrentava para formar com ela um laço, uma parceria que nos ajudasse a sair de

um impasse que poderia se transformar numa mera e desastrosa troca de acusações. Formar

uma parceria, buscar pontos de convergência, compreender o que tínhamos em comum. Não é

da natureza deste papel o caráter terapêutico, embora exista sempre algo de terapêutico na

relação de abertura entre dois seres humanos. Faz parte do trabalho na escola, do trabalho

educativo compreender esta sua natureza humana: entre humanos nos educamos. É nesta

dimensão de ação entre humanidades que atuamos e aprendemos constantemente. Eis, então,

mais uma lição que é a do agir solidário, responsável e comprometido. Esta é uma lição que

não sei se já sei, mas posso dizer que me esforço em aprendê-la todos os dias.

Nossa conversa naquela reunião e tantas outras conversas que vínhamos fazendo em

busca de compreender para poder agir melhor no caso Likeke carecia ainda de mais uma construção

de parceria – desta vez com o médico e outros especialistas que poderiam ajudar no caso. A

coordenação estava agindo como parceira da professora. Hoje temos, na legislação, o apoio do

Atendimento Educacional Especializado que pode atuar como elo, como elemento de articulação entre

os profissionais, com o objetivo de criar melhores condições para o trabalho inclusivo. No caso

Likeke, efetivamente, o médico neurologista receitou, além da medicação fitoterápica, medicamentos

alopáticos que trouxeram muitos benefícios para ele. No entanto, a questão que se coloca para mim é a

de pensar por um outro ângulo. As abordagens típicas das visões mais cientificistas apresentam uma

tendência a lançar mão do recurso medicamentoso quase que como panaceia para os problemas de

comportamentos que fogem aos padrões normatizados por esta mesma visão. Já tecemos algumas

considerações e ensaiamos lições sobre esta problemática na discussão do segundo episódio. Creio

que a mais importante aprendizagem do caso Likeke é justamente a que diz respeito ao convívio como

processo terapêutico e curativo para toda e qualquer pessoa. A medicação não pode ser entendida

como panaceia, mas também não pode ser vista como algo de que não se pode nunca lançar mão.

Existem casos em que ela é necessária, do mesmo modo que para algumas crianças iremos lançar mão

de um andador, de uma cadeira de rodas ou qualquer outro aparato que a auxilie em suas realizações,

em seus esforços para viver, conviver e usufruir da vida. Mas é o convívio que propicia o conflito e é o

conflito que mobiliza as energias para sua superação.

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Ainda pensando nas reflexões sobre o trabalho coletivo que o contexto escolar

exige, quero explicitar nesta narrativa composta de tantos episódios o aspecto das relações entre

os adultos profissionais da escola. Naquela reunião pedagógica e em muitos outros momentos

do dia-a-dia escolar fazíamos o trabalho coletivo de refletir sobre nossas práticas, refletir sobre

o que tínhamos de conhecimentos, intuição, experiências, informações sobre o caso Likeke e

todo o seu quadro. A inclusão acontece quando, face à presença de crianças com transtornos,

deficiências ou síndromes, mobilizamos, em todos nós, esforços no sentido de construir um

convívio significativo – para nós e para estas crianças –, um convívio educativo de qualidade.

Mobilizar esforços é entender esta empreitada como nossa, sabendo que ela exige

que nos lancemos ao tateio experimental de que nos fala Freinet. O episódio mostra que,

diante das dificuldades que se apresentam, nós, professores, fazemos hipóteses, investigamos,

opomos restrições, ponderamos riscos, questionamos nossas capacidades. As falas da

professora Jandira testemunham para mim seu envolvimento, seu interesse e disposição para

construir com todo o seu grupo de alunos um ambiente inclusivo, um lugar seguro e bom.

Para finalizar as reflexões deste episódio creio que não poderia passar em branco a

aprendizagem e as lições que aprendo todos os dias no trabalho coletivo, pelo fato mesmo de

ser um trabalho coletivo. Ninguém faz educação sozinho, ninguém faz inclusão sozinho. É

nos esforços e articulações de todos, é no interesse e empenho de toda a equipe, seja pelo caso

Likeke, seja por tantos outros casos com os quais lidamos no nosso dia-a-dia, que vamos

aprendendo e fazendo educação e inclusão. É na ajuda mútua que prestamos uns aos outros e

numa certa cumplicidade que nos oferecemos no enfrentamento dos desafios que aprendemos.

Os esforços que a professora Jandira mostrava nas suas falas me trazem mais uma vez

e sempre a lição de que fazer inclusão – e educar também – é não estar nunca pronto. Não há

como querer munir-se de todos os saberes para, a partir daí, de posse desses saberes, entrar para a

sala de aula e fazer a inclusão. Como se agora pudéssemos ter a certeza de um agir certo e

eficiente. Esta é a promessa de uma visão racionalista e positivista, cuja impossibilidade já vimos

discutindo em toda esta tese. Esta é uma ilusão que somente perdura em nossas escolas porque

todo o imaginário do primado da razão – sob o qual nos formamos – articula-se em nossa

sociedade como uma promessa de progresso. A ciência médica, ao entrar no campo do

comportamento humano passou a definir o comportamento padrão, a classificar e diagnosticar as

doenças, especialmente as que dizem respeito a crianças-que-não-aprendem-na-escola. Uma gama

de especialidades (psicologia, fonoaudiologia, neuropsicologia etc.) passou a orbitar em torno de

cada faixa etária, estabelecendo os desvios dos comportamentos esperados e as atitudes corretas –

para o professor e para os pais – para corrigir os desvios. A promessa de progresso fundamenta-se

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na crença de que o acréscimo de informações pode trazer a resposta certa para o agir. A educação

que se submete a este discurso é aquela para a qual Larossa (2000, p. 193) aponta sua crítica:

A educação é, em suma, a obra de um pensamento calculador e de uma ação

técnica, em que se trata de conseguir um produto real mediante a intervenção

calculada num processo concebido como um campo de possibilidades. Uma

prática técnica, definitivamente, em que o resultado deve se produzir

segundo o que foi previsto antes de iniciar.

Não descarto, nem desprezo a importância das informações e do conhecimento que se

produz sobre o desenvolvimento das crianças, suas necessidades e dificuldades, mas creio que por

si só este conhecimento não basta; pode mesmo atrapalhar, às vezes, quando se descuida do

caráter singular e único de cada pessoa e, principalmente, do caráter singular e único das relações

que, como educadores, estabelecemos com as crianças. Fazemos o que é necessário fazer: tatear,

investigar, aprender. Assim se constrói experiência, assim se aprende que a experiência não se

repete – não entramos no mesmo rio duas vezes – mas aprendemos a abrir espaços de

subjetividade para estar com as crianças. É no acontecimento do encontro que aprendemos a tecer

relações humanas e humanizadoras. Ou não! Há sempre alguma margem de escolha por mais

marcados que sejamos pelo nosso passado, pelo nosso presente e pelos nossos sonhos de futuro.

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6ª NARRATIVA: uma quinta-feira... quando o diabo mostra o rabo...

Eram cerca de duas e meia da tarde. Estava voltando do Banco, entro na secretaria e vejo o Marani (que é do 3º ano manhã e também frequenta o Período Integral) sentado numa mesinha que temos ali. Sento-me ao seu lado e pergunto: o que aconteceu? Por que você veio para cá? Ele se mantém em silêncio. Num tom amigável procuro dizer a ele que tudo bem, que podemos conversar. Ele mostra uma cara amarrada, de poucos amigos. Então também altero o meu tom, também me mostrando um pouco menos amigável e digo a ele que se ele está aqui na secretaria é porque aconteceu alguma coisa e que ele deve ter perdido o direito de estar na sala com os amigos. Marani continua com o rosto mais e mais fechado. Sem muita paciência, digo a ele que então não vou ficar ali esperando e que quanto mais ele se fechar, mais tempo levará para resolver a situação.

Vou cuidar de outras coisas na secretaria. A coordenadora da Educação Infantil vem conversar sobre bilhete que temos que enviar aos pais sobre a Festa de encerramento dos Jogos da Amizade. Ela me mostra o rascunho que já preparou no qual explica que, como o clima está muito seco e quente, teremos que mudar um pouco o esquema da Festa, fazendo-a mais breve. Resolvo isso com ela, também atendo telefonema para tratar com fornecedor de materiais de construção para a reforma que faremos nas férias. Atendo o diretor de uma Escola de Inglês que veio pessoalmente à escola para oferecer aos nossos alunos um serviço especial (nada de terceirização! Jamais! Apenas um esquema que poderá ser conveniente para nossos alunos e seus pais). Mas quando vou conversar com ele, Jaci, coordenadora do Fundamental II, vem subindo devagar a escada de acesso à secretaria. Ela está machucada, estava acompanhando os Jogos da Amizade quando levou uma bolada de Bets no olho. As pessoas que estão na secretaria (inclusive eu) se agitam e se preocupam. O que aconteceu, Jaci? Machucou? O professor de Educação Física vem explicar que é bom levá-la ao médico e começa a falar sobre fundo de olho e “se a pessoa enxergar duplo pode ser um tipo de lesão e se enxergar turvo é outro sintoma...” Mas nem tenho tempo de ouvi-lo, pois o arquiteto que fará a obra de reforma me liga e pede que eu receba o vendedor das telhas que serão usadas na reforma. Enquanto falo ao telefone, vou olhando os e-mails e vejo que o responsável do terreno ao lado da nossa escola respondeu ao meu pedido de empréstimo de uma caixa d’água de 15 mil litros (embora tenhamos várias caixas, elas estão distribuídas pelos nossos diferentes ambientes e setores e isso complica muito a recepção de água do caminhão pipa). Penso no enorme problema que teremos em breve, pois este terreno ao lado irá abrigar um conjunto residencial com vários prédios de oito andares, o que certamente vai piorar o já difícil trânsito. Mas, neste momento em que as obras não começaram, este nosso vizinho irá nos ajudar com o problema do abastecimento de água que estamos vivendo no Estado de São Paulo. Peço às meninas da secretaria que avisem nosso encarregado da manutenção para ir amanhã buscá-la. Termino de atender o Diretor da Escola de Inglês, que ficou me esperando. A professora Jurema (do Período Integral) já está subindo pra conversarmos juntas com o Marani.

Sentamos em frente a ele na mesa onde aguardava. Perguntei à Jurema o que acontecera, ele continuava se recusando a falar. Ela explica: “encontrei o Marani

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com o colega Araripe na porta da sala conversando. O Araripe estava dando uma advertência para Marani, que ficava dando socos no ar enquanto Aimiri estava por perto. Marani inicialmente negou, mas depois admitiu”. Jurema me explica que, como Marani já há algum tempo estava apresentando esse comportamento provocativo e de ficar ameaçando o tempo todo, ela achou importante e necessário que ele perdesse o direito de ficar com o grupo (o comportamento era sempre de dar socos no ar). Marani faz Kung Fu e fica fazendo todos os movimentos do Kung Fu quando a Aimiri está por perto.

Marani resolve falar (com a voz ainda bastante engasgada): é, mas eu estava longe dela, não ia machucar ela”. Digo: “então você estava dando soco no ar. Com era isso? Me mostra”. Marani se fecha, fica com a cara amarrada e diz: “não vou fazer”. Percebo a tensão e intuo sofrimento no rosto desse menino, mas eu não estava entendendo qual era o problema, o que tinha de tão grave nesse gesto dele que motivara a professora a mandá-lo para a secretaria. Levantei e insisti para representarmos a cena e ele continuou negando. Pedi à Jaciara (coordenadora), que passava por ali, que me ajudasse a dramatizar a cena. Iniciamos alguns gestos (eu no papel de Marani e ela no de Aimiri). Marani até fechou os olhos, não queria ver a cena. Depois, ainda meio desconfiado abriu-os e acompanhou nossa dramatização.

Sentei-me novamente com ele e Jurema e perguntei se era assim mesmo que acontecia. Marani responde que sim, mas que “isso não tem nada a ver!” (acho que ele queria dizer que não havia machucado a Aimiri e nem ninguém, que não tinha nada de mais no que ele fazia). Jurema retomou o fato de que isso vinha acontecendo várias vezes e Marani retrucou dizendo que ela nunca pediu para parar. Jurema explica/relembra a ele que Aimiri é uma menina que precisa de nossa ajuda, que eles já tinham conversado sobre isso com o grupo (ele se mostra mais irritado com essa fala da professora. Seu rosto se fecha mais ainda).

Interfiro dizendo que nosso assunto não é Aimiri, mas sim ele, Marani. Ele responde: “vocês não entendem!”. Respondo: “é, acho que eu não estou entendendo mesmo. O que é que nós não entendemos? Você pode me dizer?”, “eu já tenho muitos problemas...” , “que problemas? Você quer me dizer? O que é que está te preocupando?”, “não, vocês não entendem...”, “e se você não falar, nós vamos continuar sem entender...”, “eu já tenho muitas coisas pra corrigir”. Procuro outra forma de abordar: “você acha que isso está te ajudando a ser mais amigo do Araripe? Mais amigo de Aimiri? E dos outros?”. Marani me olha nos olhos e responde em tom de desafio: “nunca que eu ia querer ser amigo dessa diaba!”

Um raio me atravessa. Susto e silêncio são nossas reações (minha e de Jurema). Ficamos perplexas. Como assim? Esse menino (normalmente tão educado, tranquilo, solidário) está chamando a Aimiri de diaba? A Aimiri, que tem tanta dificuldade (deficiência intelectual) e que estamos tão empenhados em incluir no convívio escolar? Olho mais atentamente para Marani. Uma calma me invade. “Ah... Agora eu entendi o problema”. Ele dá um suspiro de alívio ao me ouvir, ao perceber e sentir que acolho esta sua fala. Que não julgo e nem condeno. Continuo: “você está com problemas com a Aimiri, né?”, “é, aquela diaba!”, “ela

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está te incomodando? Ela te provoca?”, “ela faz muita coisa errada, muita coisa errada! E ninguém fala nada!”, “entendo que você está com problemas com Aimiri, mas essas provocações têm que parar. Vamos fazer um combinado de parar”. Ele continuou dizendo que não, que não ia parar.

“Então tem duas opções: ou combinamos isso aqui ou terei que chamar seus pais para conversarmos juntos”, “não! Você não vai chamar meus pais!!!”, “então você tem que aceitar o combinado”, “eu já tenho tantas coisas pra corrigir. Eu não aguento mais”, “quais coisas? Você quer contar?”, “não! É difícil pra mim”, “Tudo bem, eu respeito. Mas, aqui e agora temos que fechar esse combinado. Você consegue consertar isso? O jeito que você está tratando a Aimiri?”, “não vai adiantar nada, não vai ajudar quase nada”, “por que não vai adiantar?”, “você não entende. Eu tenho cem coisas pra consertar...”, “mas agora só estamos pedindo pra você pra consertar essa coisa”, “mas não vai adiantar. ”

Falamos as duas: vai sim! “Se for ajudar vai ser 1%, vai sobrar 99%”. Jurema diz: “1% já está bom, já é bom começo”. Eu digo: “Marani, sabe de uma coisa, eu entendi que você anda preocupado. Se quiser, pode vir conversar comigo numa outra hora. Se não quiser, tudo bem, eu entendo. Ou então, se quiser, depois num outro momento, você pode conversar com a Jurema, que é sua professora, ela está sempre com você. Tenho certeza que ela vai querer conversar”.

Marani desce com Jurema de volta à sala.

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6ª NARRATIVA (segunda parte): separação entre saber e fazer ou do zelo em cada coisa que se faz

Ao chegar à escola, na segunda-feira seguinte, vejo que Marani já está lá na mesinha da secretaria, conversando com a coordenadora Jaciara.

Depois de um tempo entro também na conversa, dizendo que sei que eles dois já conversaram bastante e que eu não preciso interferir. Mas pergunto se já resolveram o problema que trouxe o Marani à secretaria. Inicialmente ele não queria falar nada. Eu digo que entendo, que tudo bem. E então ele começa a falar. Vai explicando tudo que havia acontecido: “eu estava irritado e o Tinga ficou apontando pra mim e dizendo que eu ia perder o recreio”. Sem que eu peça Marani vai acrescentando detalhes à cena, retomando cada ponto e os momentos em que ficou irritado. A certa altura diz: “eu admito que falei palavrão, mas será que o Tinga não percebeu que eu estava nervoso?”

Fico escutando o que ele diz com muita atenção, às vezes perguntando e esclarecendo com ele os fatos e informações que ele traz. Espero que ele fale e explique tudo que deseja e depois pergunto se ele já falou sobre esses problemas com o Tinga e com a turma. Ele diz que sim, mas que não adiantou. Pergunto se ele já tentou levar para o Jornal de Parede. Ele diz que não, porque acha que se fizer isso ele irá perder o recreio. Continuamos a conversa e nem sei bem como, mas ele decide que irá fazer um bilhete para colocar o assunto no Jornal de Parede. Marani me pergunta se posso participar da reunião de Jornal de Parede. Pergunto que dia será a Roda de Jornal de Parede. Ele diz que é de segunda-feira. E volta pra sala com o propósito de escrever o bilhete. Pouco depois eu desço à sala e peço à professora que me chamem quando forem fazer a reunião. E no final da manhã sou chamada à sala pra participar da Roda.

Ao entrar vejo que eles estão sentados em Roda, mas está tudo muito apertado, a roda não está “redonda”. Marani abre um sorriso quando entro. Começo a afastar as carteiras e cadeiras para o fundo da sala para que a Roda fique mais aberta. Imediatamente Marani vem me ajudar nesta tarefa. Afastamos umas oito carteiras para o fundo da sala, abrindo um bom espaço. As crianças se espalham melhor, mas ainda deixamos as carteiras do canto direito da sala no mesmo lugar. A roda não chega a ficar bem redonda, mas como não quero atrapalhar muito o momento da turma eu me sento com eles e peço que continuem.

A professora está com o Livro da Vida na mão, anotando as coisas que eles vão discutindo. Marani levanta a mão para falar sobre o seu bilhete. Ele argumenta com os amigos, expõe seu ponto de vista sobre a situação vivida pouco antes na manhã de hoje.

Outras crianças erguem a mão pedindo a palavra. Então vejo que ainda não há um responsável por anotar as inscrições de fala. Pergunto à professora e ela devolve a pergunta à turma: “quem são os ajudantes de Jornal de Parede?” Dois

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alunos se apresentam (eles já estavam escalados na tabela feita pela turma) e finalmente começam a cuidar das inscrições. Providencio folhas de papel rascunho para que eles possam anotar os nomes e então, seguimos47.

Quando chega a vez de Marani falar, ele diz que se irrita muito quando os amigos não querem brincar com ele. Outro amigo, o Araripe, diz que não sabia disso, que Marani tinha que falar, que não tinha como adivinhar... Outra criança sentada lá no cantinho, onde ainda tinha umas carteiras atrapalhando a roda, pede a palavra. Eu e os outros que estavam sentados do outro lado não conseguíamos vê-la bem. Então, novamente me levanto e, com ajuda de algumas crianças, afasto as carteiras que ainda atrapalhavam a roda. Finalmente temos um espaço circular bem confortável onde todos podemos nos ver e ouvir bem. A reação de todas as crianças é muito positiva.

47 Parte desta conversa está registrada no Livro da Vida da turma (imagem digitalizada).

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OS INSTRUMENTOS DA PEDAGOGIA FREINET EM AÇÃO

O LIVRO DA VIDA

O livro da vida é um grande caderno no qual são anotados os momentos do dia a

dia. É um “diário de bordo” que registra a vida da sala, os combinados da turma, as conversas,

os projetos encampados. Todos podem deixar suas marcas e impressões. Não mais o livro

didático ou os sistemas apostilados nos quais tudo o que deve acontecer na sala está previsto

e prescrito: este livro permite que a vida das crianças e sua palavra torne-se acontecimento e

que, ao ser partilhado, torne-se aprendizagem. Oferece possibilidades de estruturar a

memória coletiva e individual, favorecer a comunicação entre as crianças e seus pais, valorizar

os sucessos de cada um e mostrar a riqueza daquilo que faz a vida de cada criança e a da

classe. Em outras palavras, o acontecimento se torna objeto de estudo, algo para se conhecer

e aprender. Como já escrevi em outro momento (Ferreira, 2003, p. 31):

A escrita ganha força de expressão e pode, assim, ser compreendida como

alguma coisa que serve para contar a história da vida do grupo. Muito

antes de aprender a ler e escrever, as crianças já são usuárias da escrita.

Figura 52: Roda de conversa de uma turma de 2º ano, com o Livro da Vida em frente à professora. Fonte: acervo da autora.

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O JORNAL DE PAREDE

“O enunciado teórico dos direitos e deveres do indivíduo na

comunidade não é suficiente: é a prática social que é

necessário desenvolver, a fim de que o homem saiba mais tarde

se conduzir livremente nas diversas ocasiões de sua vida”.

(Célèstin Freinet)

É uma dessas novas instituições na sala de aula de que temos falado nesta tese.

Um instrumento simples, um cartaz (uma cartolina) com três envelopes nos quais estão as

inscrições: “eu proponho”, “eu critico”, “eu felicito”. Algumas turmas acrescentam um quarto

envelope no qual escrevem “eu quero saber”. A vida da turma, naturalmente, tem seus

conflitos. Acolhê-los é só parte da tarefa educativa. A outra parte diz respeito ao exercício

do diálogo, da negociação, ou seja, o exercício da cooperação na busca de soluções para um

convívio ético. É, pois, um instrumento prático, uma “técnica” que guarda enormes

potencialidades como uma instituição na sala de aula para favorecer o convívio na diferença.

Figura 53: Página do Livro da Vida com o registro da reunião do Jornal de Parede. Fonte: acervo da autora.

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Entendo este instrumento da Pedagogia Freinet como um recurso precioso

para criarmos um ambiente de livre expressão, democrático e cooperativo. Nas reuniões

de leitura dos bilhetes colocados durante a semana nos envelopes, é oportunizada a

discussão e a definição de combinados. Ele permite, por exemplo, que o grupo discuta os

problemas de relacionamento que naturalmente surgem entre eles. Segundo os autores

do artigo da Revista Le Nouvel Educateur 168 (OUVRARD e TIBERI, 2005):

Quando os primeiros conflitos aparecem, eles nos dão ocasião de abordar a

noção de violência. Ela se apresenta de todas as formas: violências físicas,

violências verbais, roubos... As crianças sabem identificá-las, elas já têm a

noção do bem e do mal. Então, assim que seja identificada, etiquetada, ela é

proibida e “não se discute mais” mesmo que uma discussão fosse possível.

Mas, proibir uma violência não significa que ela vá desaparecer. Assim, no

correr das semanas, cada dia carrega uma série de queixas.

Muitas vezes os professores que iniciam esta prática sentem-se incomodados

com esta chuva de queixas, preocupam-se em “perder tempo” com reclamações pois, uma vez

aberto o espaço para esta expressão, amplificam-se as discussões. É justamente essa a

importância deste instrumento: ele abre o espaço da escuta que tem sido tão negligenciado

nos modelos tradicionais de ensino. E as crianças utilizam essa ferramenta com muita

propriedade, dirigem suas críticas e reclamações quando um colega faz algo que desagrada.

Aprendem a combinar as regras a partir das próprias necessidades que o convívio impõe.

Aprendem a “legislar” a vida do grupo, aprendem que há consequências para comportamentos

inadequados e que desrespeitam as pessoas do grupo. Aprendem que o convívio é feito de

direitos e deveres e que quando não se cumpre um dever pode-se perder um direito, ou que

alguém está tendo um direito desrespeitado. Ainda citando o artigo do LEducateur:

A existência de um lugar onde se pode escrever e, em seguida falar para toda

a classe, acontece como uma instância dissuasiva. Se não se fala nele agora,

ele será comentado mais tarde. Em todo caso é impossível agora se agredir

sem impunidade. A lei da negociação toma o lugar da lei do mais forte.

Outras aprendizagens igualmente importantes estão em curso quando se utiliza o

Jornal de Parede. Uma delas é sobre o registro dos combinados: os bilhetes são colados no

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Livro da Vida e a conversa é registrada. Faz-se uma Ata da reunião. Nas séries iniciais é a

própria professora que faz este registro e depois lê para o grupo mas, na medida em que

eles crescem, passa-se a ter uma criança (ou adolescente) responsável pelas anotações.

Além disso, não se destina somente às críticas. Aprender a felicitar é um aspecto

muito positivo para o convívio. Aprender a propor é outro. As crianças têm a chance de fazer

todo tipo de propostas e, neste exercício, aprendem a defender pontos de vista, argumentar.

Figura 54: Jornal de Parede de uma turma de 7º ano. Fonte: acervo da autora.

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A CORRESPONDÊNCIA

Embora não tenha aparecido explicitamente nos episódios narrados, não

poderia deixar de apresentar este importante instrumento da Pedagogia Freinet (que, se

pensarmos no mundo de hoje com as tantas formas de comunicação e troca entre as

pessoas, nas redes e intercâmbios), mostra o quão atuais eram as ideias deste educador.

Praticamos com nossas turmas a correspondência, que se trata da troca de cartas entre

duas turmas. Esta troca pode ser entre turmas de escolas diferentes ou dentro de uma

mesma escola, por exemplo, entre a turma da manhã e a turma da tarde. A

correspondência interescolar, assim como outros instrumentos freinetianos, tem esta

força de favorecer uma comunicação real e concreta: as crianças escrevem para alguém

de verdade e não para ver seu texto submetido à correção do professor.

Os professores combinam a troca de correspondência coletiva para suas

turmas. A carta coletiva tem um tamanho grande, ela é feita com folhas de sulfite coladas

umas às outras. Todos os alunos da classe podem expressar sentimentos comuns, contar

eventos ou fazer as perguntas que interessam à coletividade. Todos eles podem fazer

desenhos ou colagens para enfeitar a carta.

Depois da troca das cartas coletivas entre duas

turmas, pode surgir uma troca de correspondência

individual. A carta individual de uma criança é só

uma mensagem muito pessoal onde conta para outro

sobre coisas que viveu na vida doméstica, talvez,

mensagens que não tocam a totalidade das crianças

da outra classe. Assim, quando uma criança escreve,

ou faz tentativas de escritas, ou ainda alguém lhe

serve de escriba, fala de acontecimentos de sua

vida, serve-se da escrita para se comunicar.

O sentido vivo da comunicação pode ser vivido na

experiência da troca de correspondência. Foto: acervo da autora.

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REFLEXÕES SOBRE O EPISÓDIO

Aprender a escutar escutando, aprender a fazer fazendo. Deixar a vida entrar,

abrindo as portas para o acontecimento e a complexidade

Este episódio me faz lembrar de uma frase de Freinet: “é preciso deixar a vida

entrar na sala de aula”. Muitas vezes o que se lê nesta frase é uma imagem bucólica da

borboletinha entrando na sala, as crianças felizes e curiosas, a professora aproveitando o

momento e iniciando uma pesquisa. Ensinando as crianças a fazerem uma observação. Pode

ser que isso também corresponda à ideia de Freinet de deixar a vida entrar. Mas, para mim, é

muito mais que isso. É deixar que o conflito se expresse, é acolher o que está carregado de dor

e sofrimento também. É constatar que a complexidade se manifesta.

Já vimos discutindo o quanto é importante compreender a inclusão não como a simples

inserção de alunos com deficiência numa sala comum. Toda a discussão sobre a integração versus a

inclusão já nos alertou sobre os perigos que rondam concepções que não avançam na direção de

uma educação que se pretenda viva e pulsante, aberta a todas as suas contradições e superações.

Além disso, temos testemunhado a ineficácia dos discursos moralistas do tipo “vamos respeitar

nosso amiguinho, ele tem dificuldade...!”. Assim como no pensamento freinetiano deixar a vida

entrar na sala é receber toda a complexidade do convívio, também a inclusão implica em reconhecer

que conflitos irão adentrar a sala de aula. Creio que a imagem do rizoma deleuzeano (Deleuze e

Guatari, 1995, p. 14 e 15) nos dá outras possibilidades de pensar este espaço/tempo escola e suas

relações. Pensar uma transformação das práticas escolares, pensar uma nova educação é pensar

rizomaticamente o que acontece na sala de aula e nos espaços da escola.

Resumamos os principais caracteres de um rizoma: diferentemente das árvores

ou de suas raízes, o rizoma conecta um ponto qualquer com outro ponto

qualquer e cada um de seus traços não remete necessariamente a traços de

mesma natureza; ele põe em jogo regimes de signos muito diferentes,

inclusive estados de não-signos. O rizoma não se deixa reconduzir nem ao

Uno nem ao múltiplo. Ele não é o Uno que se torna dois, nem mesmo que se

tornaria diretamente três, quatro ou cinco etc. Ele não é um múltiplo que

deriva do Uno, nem ao qual o Uno se acrescentaria. Ele não é feito de

unidades, mas de dimensões, ou antes de direções movediças. Ele não tem

começo nem fim, mas sempre um meio pelo qual ele cresce e transborda.

Nas reflexões sobre o episódio é isto que aprendo. Vejo rizomas: no rosto fechado

de Marani toda a expectativa que ele colocava sobre si mesmo e a pergunta que me formulei

sobre como ele estava se sentindo em relação aos pais (“o que seus pais diriam de tudo

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aquilo?); nos seus gestos de socar o ar, o desejo de colocar para fora algo que incomodava,

seu desejo de tornar isto visível; na crítica do amigo Araripe e nas conversas que a turma já

fizera, as milhares de possíveis interpretações que cada um tinha sobre as questões a envolver

Aimiri; no olhar da professora, no seu pedido de que eu participasse daquela conversa e no

seu desejo de que seus alunos se entendessem e se respeitassem; na possibilidade do desabafo

que saía na voz engasgada de Marani ao recusar amizade com “aquela diaba”; no alívio que

seu rosto mostrou quando finalmente percebeu que eu havia entendido; no lugar que ocupei

como um nó da trama para que ele desengasgasse seu nós da garganta; na pequena porta que

encontramos – Jurema e eu – para melhorar 1% daqueles tantos problemas... Rizomas que se

ligam, entrelaçam-se com os outros significados que, não estando visíveis na concretude da

cena descrita, não deixavam de estar presentes, fazendo seus agenciamentos. No meio daquela

cena sem começo nem fim, muitas direções movediças transbordavam.

O episódio tematiza as muitas dimensões que o modelo cartesiano e racionalista

aplicado à educação omite. A racionalidade que exclui a sensibilidade tentaria apontar uma

resposta correta, reconduzir ao uno, ou mesmo ao múltiplo, para oferecer uma chave

interpretativa, mas, no episódio, algo de movediço mostrava-se em curso. Como, aliás, em todas

(ou quase) as situações que acontecem na escola, sejamos ou não capazes de percebê-las.

Nesta matéria viva e movediça que ali se desenrolava, percebia uma impossibilidade

que, infelizmente, é a marca corriqueira nas relações entre professores e alunos: um certo modo de

discursar para a criança, fazer preleções (sobre a amizade, o respeito, a cooperação...). Também é

possível discursar sobre regras e combinados mas, felizmente para mim, no meio daquela

conversa eu me sentia “balbuciante e insegura...” Não sabia mesmo o que acontecia com Marani.

Intuía algum sofrimento, estava nítido, mas não sabia o quê... Muito menos como ajudá-lo. Que

tantos problemas poderia ter aquele menino que estava estudando, bem alimentado, vestido e

tratado? Vivia esta impossibilidade de fazer discurso para ele ou sobre ele.

Expressar sentimentos e ideias é um dos eixos da Pedagogia Freinet, mas é

possível cair numa ingênua compreensão de que um lindo mundo da infância, com toda sua

doçura e ingenuidade se apresentará a nós. Mas, quando começamos a ouvir efetivamente a

criança, estes chavões logo se desmancham.

E naquela cena só me restava a escuta. Tentar ouvir a palavra dele. Acolhê-la sem

julgar. Uma lição que aprendo sempre é esta: não ouvir a criança com ouvidos adultos. É

preciso ouvi-la com ouvidos humanos – de um ser humano para outro. É preciso descer do

pedestal de instituição, é preciso sair do lugar de professor/coordenador/diretor. Do mergulho

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na história pude aprender que o papel institucional que nos é prescrito na escola se reveste de

uma mística de alguém que ilumina, que dirige: o professor Sol de Comenius. A escola nos

torna instituições. Mas instituições são desencarnadas, dizem muito pouco de nossa

pessoalidade, de nossa subjetividade. E, no momento em que nos deparamos com uma fala

como esta, é preciso aprender a lição: ouvir é mais difícil do que parece. E falar nem sempre é

resolver a questão. Não posso simplesmente calar sua fala com meus discursos, com minha

maioridade e experiência. Não posso exibir uma pretensa esperteza de alguém que, como um

detetive, descobriu o crime e o culpado. Muitas vezes o adulto exibe sua competência

linguística, sua lógica infalível para apontar a imaturidade e inadequação: o discurso sobre a

criança a desconsidera e prescreve comportamentos. Nesta forma de “diálogo” (poderíamos

dizer: pseudodiálogo), o aluno é instado a falar, mas somente para que se possa apontar suas

falhas, achar sua culpa. Não é diálogo, é interrogatório. Escutamos já com os ouvidos cheios

de nossas preconcepções. Acreditamo-nos já sabedores do problema e da resposta.

Marani expressava sentimentos contraditórios de incômodo, de rejeição a Aimiri.

Sentia-se excluído, sentia que era ela quem ganhava as atenções. Ele estava nos mostrando

suas angústias e as cobranças que ele sentia que pesavam sobre seus ombros. E com isso ele

se constituía no diferente para mim. No outro de mim, mas também, no reflexo de mim. Ele

me mostrava minhas próprias incertezas, colocava-me em contato com minhas angústias e

incertezas no trabalho com a inclusão. E, na escuta atenta e despojada de prescrições,

encontrei-me comigo mesma na face fechada e atormentada de Marani: muitas exigências ele

sentia que havia sobre seus pequenos ombros de menino. Muitas exigências eu sentia que o

papel, a instituição diretora, fazia pesar sobre mim. Foi o encontro que nos fez aprender.

É preciso aprender a viver relações de humanidade para poder aprender a viver

uma pedagogia da diferença. Uma pedagogia que não define quem é diferente, porque entende

que todos somos singulares e estamos no processo de devir. E isto não é fácil. E isto é difícil.

Cabe aqui também, agora sob um outro ângulo, uma outra dimensão nas direções

movediças em que nos movimentamos no ambiente escolar: a reflexão sobre o trabalho coletivo e

a construção de parcerias no cotidiano escolar. Jurema havia mandado Marani para a secretaria.

Quando uma criança é encaminhada à secretaria, uma de nós, coordenadoras (sempre há uma ou

duas coordenadoras presentes na escola), interrompe o que estiver fazendo para conversar com a

criança que nos foi encaminhada. Essas conversas têm sido para mim, fonte de muitas

aprendizagens. Tanto em relação ao seu teor e as parcerias que podemos formar com as crianças,

quanto na própria forma de fortalecer parcerias com as professoras. Evitar a simples “bronca” e

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constituir-me em aprendiz de sensibilidade na escuta subjetiva de Marani abria também para ela

este espaço de escuta. E isto me leva à segunda parte do episódio, à reunião do Jornal de Parede.

Fui convidada por Marani a estar presente naquela reunião do Jornal de Parede.

Isto me dava pistas de que a conversa que havíamos tido na sexta-feira anterior criara uma

relação de confiança entre nós. Minha escuta, meu ouvido era solicitado novamente. O

problema com Aimiri começava a resolver-se para ele, que, agora mais fortalecido, passava a

buscar a solução para seus relacionamentos com outros colegas.

Como vimos no estudo da história, a constituição do modelo frontalizado é regida

por uma concepção de ensino em que o saber emana de um centro que se coloca na figura do

mestre. A reunião do Jornal de Parede como uma outra forma de educar institui a

possibilidade de relações em roda (não frontais). É instituída a circulação de ideias e

discussões entre os alunos: a comunicação entre eles (e não para eles). Não é o professor que

informa, orienta, decide. O instrumento cria um cenário na sala de aula, mas não somente com

os móveis e as paredes: é a dinâmica que se estabelece, o modo de agir dentro do espaço, as

possibilidades que são oferecidas às pessoas que ali atuam. É novamente a imagem do rizoma

que melhor expressa o fervilhar destas comunicações. Não uma comunicação unidirecional e

centralizada, mas comunicações dinâmicas, entre todos, embora cada um tivesse que levantar

a mão e esperar sua vez para falar. Embora houvesse duas crianças responsáveis por anotar as

inscrições de fala. Todos tinham algo a dizer sobre aquele conflito vivido por Marani e alguns

colegas. Mas o convite de Marani me dizia também que o olhar mais maduro, a autoridade

não era rejeitada ali. As crianças pedem a presença do adulto.

Mais uma reflexão sobre o episódio diz respeito à preparação do momento da

reunião, o que requer cuidado do professor, seu papel é de enorme importância. Este momento

precisa de toda a seriedade que uma assembleia exige. O espaço físico pode refletir a

importância que estamos dando àquela atividade com nossas crianças. Naquele momento,

embora a professora estivesse presente na sala, ela estava envolvida em outra atividade. As

crianças precisavam de ajuda e minha ação concreta foi a de arrumar as carteiras, de

providenciar papel para fazer as inscrições de fala, entendendo o quanto tudo se reveste de

seriedade e o quanto é preciso dedicar zelo aos detalhes.

A institucionalização da escola teve como uma de suas bases a separação entre o saber

e o fazer (vimos isto na terceira característica da escola), com forte depreciação do segundo em

benefício do primeiro. Existe uma depreciação pelos fazeres mais concretos, mais ligados ao serviço

e um maior apreço ao trabalho mais “intelectualizado”. A ação de arrumar implica em se envolver

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com os alunos, fazer junto com eles o que precisa ser feito para que tudo funcione. Como

professores – ou coordenadores, ou diretores, não importa a hierarquia, nossa atitude de engajar-se

no trabalho efetivo para que a Roda fique bem confortável diz muito às crianças sobre o que

consideramos importante, qual o valor que damos para o evento que irá se desenrolar naquele

espaço/tempo. Somos um exemplo que está sendo aprendido e, neste caso, construímos confiança.

É a proposição do Dossiê Pedagógico (Debarbieux, 1991, p. 5) que inspira minhas aprendizagens:

“nada será feito se não houver uma transformação das relações professor aluno, porque a Pedagogia

Freinet é uma educação na confiança...” O sorriso de Marani e sua presteza em me ajudar a afastar

as cadeiras e carteiras me dava os indícios de que esta confiança estava sendo construída.

E há ainda uma reflexão que se liga a todas as anteriores: trata-se da questão do trabalho

coletivo na escola. O relato do episódio talvez não tenha conseguido explicitar as aprendizagens que

também fazíamos, eu e a professora, sobre este trabalho de formação em serviço. Aprendendo, eu

ensinava; ensinando, eu aprendia. Mas, assim como em relação às crianças, compreendendo meu

lugar assimétrico, eu evitava a “bronca” (ou a preleção que, como diz a sabedoria popular, “entra

por um ouvido e sai pelo outro”), também na relação com a professora uma relação de confiança, de

respeito, é construída. Trabalhar junto com os professores, estar com elas na sala, coloca-me

solidariamente na construção de melhores práticas para elas, para as crianças.

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LIÇÕES DA EXPERIÊNCIA

“Além da Terra, além do Céu,

no trampolim do sem-fim das estrelas,

no rastro dos astros,

na magnólia das nebulosas.

Além, muito além do sistema solar,

até onde alcançam o pensamento e o coração,

vamos!

vamos conjugar o verbo fundamental essencial,

o verbo transcendente, acima das gramáticas

e do medo e da moeda e da política,

o verbo sempreamar,

o verbo pluriamar,

razão de ser e de viver”.

(Carlos Drummond de Andrade)

Por que é tão difícil mudar a escola?

A pergunta inicial que orientou esta tese parece agora ainda mais ambiciosa do

que já parecia lá no início. Os riscos já se apresentavam. O chamado à personagem do conto

de Calvino, no prólogo deste trabalho, que se vê como que atingido por um raio de

significação diante da perda de significado de todas as coisas, indiciava a impossibilidade da

tarefa de explicitar dificuldades tão complexas e emaranhadas. Propunha um estranhamento

que, como um raio, ilumina e some; e, sumindo, deixa-nos quietos. “Quieto, porque no

momento em que levantei os braços e abri a boca a grande revelação foi como que engolida e

as palavras saíram assim, de chofre” (Calvino, 2001, p. 16). Já intuindo a dificuldade desta

tarefa, escolhi caminhos que me permitissem vislumbrar respostas, sabendo-as parciais,

sabendo-as pessoais, sabendo-as recortes, trechos; rizomas de uma trama maior, bem maior.

Os objetivos explicitados no primeiro capítulo (narrar a experiência vivida como

educadora, para dela extrair as lições sobre a inclusão e discutir as relações entre os atores da

cena escolar, notadamente professores e alunos quando frente a frente com a diferença, face à

inclusão), foram também a forma que encontrei de circunscrever a ambição da pergunta. Colocá-

la no seu devido lugar – pois é isto que se deve fazer com ambições desmedidas!

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Buscar a gênese, as raízes, as estruturas

Mas, ainda assim, não podia me furtar a um estudo – uma ambição mais comedida –,

a um esforço de compreensão da escola hoje; não podia me furtar à investigação que trouxesse

mais entendimento e respostas, ainda que parciais, para uma questão que se desdobra da

primeira: como é que a escola chegou a ser o que é hoje? A genealogia da escola se apresentou

como caminho que serviu para me situar na trama toda. Como seres históricos chegamos a um

mundo que já existia antes de nós, mas isto não quer dizer que ele já está pronto e determinado.

Conhecer o mundo ao qual se chega passa por compreender a história, mas também por vivê-la

como tempo de possibilidades – a história é também o que se faz hoje.

O estudo da história me proporcionou aproximações com as diferentes concepções

de homem e de mundo que orientaram e influenciaram os fazeres humanos em diferentes

aspectos da vida das sociedades. Estudar a história serviu para desmistificar a tradição.

Toda minha experiência profissional e de vida está ligada às questões da

educação. Assim, a história foi pensada sob o foco da pedagogia, da escola, este espaço/tempo

no qual, cotidianamente, dão-se as relações entre seres humanos. Entender como se

produziram teorias do conhecimento (como um dom da fé, como uma faculdade da razão,

como utilidade para a produção de bens) me ajudou a compreender os desdobramentos que

estes modos de conceber a vida e o mundo aportaram ao fazer educativo. Como ensina o

mestre Paulo Freire: toda educação é sempre uma teoria do conhecimento posta em prática.

Assim, procurei entender as influências que constituíram a escola lançando olhares

para o que chamei de pilares da escolarização: a noção de infância, o pensamento científico

moderno, o capitalismo industrial, buscando explicitar o que compreendi como fatores presentes

ainda hoje, na forma como se organiza, produz e reproduz a escola e o ensino. Este esforço de

compreensão ajudou na análise da instituição escolar e dos problemas estruturais que ela contém.

Desconstruir os pilares e encontrar rizomas e emaranhados de significação

Mas a pós-modernidade tem sido um tempo de desconstrução e, sendo uma pessoa que

vive neste hoje, compreender o ontem teve como desdobramento desconstruí-lo com as ferramentas

que este pensamento da tem produzido. Assim, foi necessário proceder a crítica às premissas, aos

paradigmas que historicamente se constituíram para informar os atores da cena escolar. Crítica e

desconstrução do pilar de racionalidade do pensamento científico moderno, cuja objetividade se vê às

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voltas com a impossibilidade de descartar a subjetividade, o tempo, o acaso e as dinâmicas de poder

do contexto no qual seu conhecimento é produzido. Uma racionalidade que se vê em crise. Crítica ao

pilar das propaladas equidade e produtividade prometidas pelo modo de produção capitalista, fábulas

de um modelo que esconde a farsa de um prometido bem-estar baseado no consumo. Uma

produtividade e equidade que, ameaçando os recursos e a vida no planeta, não podem mais negar sua

crise. E crítica e desconstrução do modo como a infância vem sendo concebida e tratada; este novo

que chega ao mundo e deve ser recebido pelo adulto, mas este adulto encontra-se em crise com seu

mundo e a infância vê-se ameaçada de ter que desempenhar um papel que não é seu – a “adultização”

da criança. Ela vê-se “abandonada” a um mundo da infância que, em última análise, poderíamos dizer

que é o mundo no qual o adulto desta sociedade em crise gostaria de estar – a infantilização do adulto.

Ao voltar os olhos para a história, pude enxergar não uma árvore com suas raízes, tronco

e as ramificações em galhos: vi o quanto de rizoma há na genealogia. Pensando em pilares a sustentar

a estruturação da instituição escolar, encontrei interdependências, agenciamentos; ou, como disseram

Deleuze e Guattari, “comunicações transversais entre linhas diferenciadas (que) embaralham as

árvores genealógicas” (1995, p. 7). Rizomas que se interligam como, por exemplo, o desenvolvimento

do pensamento científico sendo apropriado como razão para justificar a fé, ou os interesses do capital

que se apoiaram na ciência para “libertar” os cristãos do pagamento das indulgências à igreja, a ciência

que aperfeiçoa as tecnologias para servir aos interesses da produtividade que livra assim o capital das

obrigações que o trabalho e o trabalhador reclamam, ou as paixões com que cientistas defendem suas

lógicas pretensamente isentas de paixões, ou a materialidade das expressões do poder religioso nos

seus templos e riquezas, anéis e coroas ou... Pilares que são mais como rizomas, que ainda assim

possuem nós e arborescências. Um mundo líquido, como talvez dissesse Bauman. Um mundo ao qual

Edgar Morin nos convida a um pensamento complexo que não se reduza às dicotomias, abrindo

possibilidades para além do simples ou isto ou aquilo, abrindo possibilidade para o e isto e aquilo. Um

mundo de árvores e rizomas.

Aprendi nas lições da filosofia que os saberes produzidos sobre a infância nos dão a

sensação de que captamos o enigma da infância, mas aprendi que continuamos nós mesmos um

enigma para nosso olhar. Que não chegamos ao fim da viagem e ainda estamos por conhecer nossa

própria humanidade. Descobrirmo-nos frente a um espelho que não nos explica, que devolve

sempre uma imagem enigmática. E, talvez, seja isso o mais belo: a presença sempre desafiadora do

mistério, do enigma, do imponderável a nos devolver humildade na relação conosco, com os outros

adultos, com as crianças. A lição da história diz respeito a este saber difícil que é o da Pedagogia,

por se encontrar na intersecção de outros saberes. Um saber que é teórico, é técnico, é político.

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Aprendizagens que as crises ensejam e o retorno à experiência vivida

A lição da história nos mostrou também que em toda esta complexidade, nas

construções e desconstruções, vemo-nos em um mundo sempre em crise.

Aprendi, na experiência vivida, a viver e pensar as crises como momentos

profícuos. Não se pode voltar às velhas respostas de antes. A crise deve ser o momento de,

levando em conta o passado, pensar novas possibilidades que se fazem no presente para

construir outros futuros. Pensar a crise na educação é pensar formas de superá-la, não é voltar

aos velhos métodos. É fazer uma nova escola que, incluindo o novo, também inclui o velho.

E, neste emaranhado intrincado e enigmático, a narrativa de minha vivência e experiência

trouxe reflexões para o meu trabalho de pedagoga. Não sou filósofa, não sou historiadora, não sou

psicóloga, nem socióloga ou antropóloga. Interessa-me o que acontece na sala de aula, no espaço

escolar e, neste espaço que é atravessado por aquilo que os saberes destas outras áreas explicita, o que

acontece são relações: um maravilhoso rizoma em que milhares de hastes se interligam umas às

outras, interligam-se a tudo que está ali dentro, mas também ao que está, aparentemente, do lado de

fora (as relações sociais, econômicas e políticas e os saberes sobre elas produzidos); ao que ali é

passado, mas também é futuro, sendo no presente, um presente que é a expressão da complexidade.

A descrição das sete características deste espaço/tempo escola teve a pretensão

singela de explicitar alguns nós deste rizoma, nunca a temeridade de esgotá-lo. Foi o que minha

própria experiência foi me fazendo ver quando me encontrei diante de dificuldades para agir em

favor de uma mudança, de uma transformação da escola. Foi neste sentido que o caminho da

investigação narrativa se tornou a via necessária para adentrar este universo de complexidade,

explicitar características que nele enxerguei e cotejá-las com a própria experiência. A narrativa

teve sempre presente o sentido, destacado por Benjamin, de minha própria inserção no fluxo

narrativo. E foi assim que, narrando e refletindo sobre o narrado (o vivido), fui encontrando

oportunidade de explicitar lições ou de propor outras continuações para a história. Os episódios

foram conversando com a história, foram conversando com as crises, com as características

forjadas a partir dos paradigmas que a própria história constituiu. E desta conversa foram

nascendo as lições. E as próprias lições, além de conversar com as teorizações, conversavam

também entre si, uma lição aprendida antes entrava em diálogo com outra que vinha a seguir e

tudo isso me mostrava mais e mais os rizomas deleuzianos a se entrelaçarem.

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Para uma nova escola novos instrumentos de trabalho

Uma reflexão que foi pairando sobre todos os episódios tem a ver com a

transformação da escola (a pergunta inicial da tese) e a lição que pude ir explicitando sobre a

introdução de novos instrumentos (a Pedagogia Freinet) modificam as próprias características

deste espaço/tempo escola. É o que o próprio Freinet chamava de “materialismo escolar”, que

se constitui como pedra angular de sua obra, na medida em que quando nos encontramos face

a face com as crianças, a mudança concreta do meio material será o caminho mais efetivo e

seguro para constituirmos novas relações com elas. Foi por esta razão que a cada episódio

tornava-se necessário apresentar estes instrumentos da Pedagogia Freinet.

Uma lição muito preciosa para mim, é a de que transformar as práticas, as

instituições, os instrumentos do trabalho pedagógico, também me transforma – e isto não é

fácil, e isto é difícil. Há uma retórica bastante comum no ambiente de professores que

proclama uma “postura” democrática, mas cuja prática concreta repete as velhas fórmulas

autoritárias da aula e da avaliação. Não é possível transformar as relações do espaço/tempo

escola e sala de aula utilizando os velhos instrumentos, agindo segundo o princípio da

frontalização. Elas permanecerão relações de oposição. Foi esta uma lição que o primeiro

episódio me favoreceu: transformar o espaço daquela sala de aula, organizar o trabalho em

ateliês, permitir o burburinho, embora contivesse riscos da perda do controle, trazendo-me

certo pânico, trouxe-me também a possibilidade do trabalho cooperativo com os alunos.

Transformou a solidão numa outra intimidade na relação com eles.

O corpo docente aprende no encontro com o corpo discente

E desta primeira lição é desdobrada a segunda, que o episódio da recusa à matrícula

de Jupi me ensinou: é no encontro com o outro que nos preparamos para o que a relação nos

traz de aprendizagem. Se continuarmos a praticar um modelo de exclusão de crianças com

qualquer tipo de deficiência nunca poderemos aprender a praticar a inclusão, pois é na presença

do outro, na relação de alteridade, que nos formamos. Insisto na lição já enunciada nas reflexões

do próprio episódio: assim como disse Freinet, “a vida se prepara pela vida”, e também a

“inclusão se prepara pela inclusão”. E a lição se completa com a compreensão de que tudo isto

envolve uma atitude de abertura e hospitalidade à criança, ao outro.

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A escola tradicional, e todo o modelo que viemos discutindo, informa-nos da necessidade

de haver homogeneidade no grupo de alunos para que possamos desempenhar o papel de

transmissores de conhecimentos/informações. Ora, primeiro descobre-se que a pretensa

homogeneidade não existe. Segundo: descobre-se que no pretenso combinado em que cada ator da

cena escolar assumiria a identidade para eles fixada, os alunos, talvez por sua novidade e estrangeirice

no mundo, não assumem a identidade que se espera deles. Nem mesmo o professor – diga-se de

passagem – assume completamente uma identidade universal (que, no mais, também não existe).

Num quadro assim desenhado, a entrada do diferente, da criança com qualquer tipo de dificuldade ou

deficiência, é vista como um complicador para o funcionamento daquela máquina. E é esta presença

que irá denunciar a obsolescência da máquina. Em sua primeira experiência como professor, em 1920,

numa pequena aldeia dos alpes franceses, Freinet via-se diante de grandes dificuldades impostas por sua

própria saúde (debilitada pelos ferimentos da guerra), pela pobreza do meio escolar de poucos recursos e

as que se fizeram notar pelas próprias dificuldades e deficiências (cognitivas, emocionais,

socioeconômicas) de seus alunos. A presença de crianças com deficiência mental e seu entendimento de

que a escola é para todas as crianças o levaria a construir outras dinâmicas para o seu trabalho. Levá-lo-

ia a reconhecer as tantas “doenças escolares” que uma máquina obsoleta pode causar. E, debruçando-

se sobre cada um daqueles alunos, dedicou seus esforços de compreensão e entendimento, atribuindo-

lhes valor único, tornando-os fonte de suas preocupações e afetos. Transformar a sala de aula,

modificar as dinâmicas, respeitar os diferentes ritmos, estimular a fala e expressão de seus alunos,

confiar que para conhecê-los seria preciso ouvi-los, confiar na sua natureza humana, na sua centelha de

vida e no seu impulso de crescimento, numa palavra, descer do velho estrado do professor e ir ao

encontro das crianças, seriam as consequências naturais de quem educando, educa-se.

Arregaçar as mangas, engajar-se no trabalho, reencantar-se com o mundo

O que se desdobra desta segunda lição é o que o terceiro episódio me ensinou:

aprender é dar aos alunos e a si mesmo o tempo e a oportunidade do tateio experimental,

abandonando a postura explicadora, a fórmula unidirecional da transmissão de

conhecimentos. Sair do lugar frontalizado à frente da sala, o lugar do mestre explicador (de

Jacotot), não é sair da sala! Nosso trabalho de professor requer muita laboriosidade. Não é

possível se acomodar às rotinas cansadas e sem vida da pedagogia tradicional. Também não

será uma transformação da escola a simples superposição de tecnologias que “melhoram a

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aula”. É preciso trazer materiais, instrumentos de trabalho, tecnologias, ferramentas e

organizar tudo com as crianças para que elas, apropriando-se deles, possam trabalhar. Como

nos exorta Freinet: “é preciso ir ao encontro da vida”.

Desdobra-se da lição anterior a aprendizagem que vem com o quarto episódio: a

investigação do mundo, o interesse pelas coisas que existem. O que são? Como funcionam? Quem

inventou? Nossa formação, todo o edifício escolar, construiu-se para banir do espaço/tempo escola a

curiosidade e a investigação. A começar pelos próprios professores, que não mais precisam fazer

perguntas, nem pesquisar, pois já têm tudo dado e sistematizado nos livros e manuais didáticos. E

ficamos com a informação, em detrimento do conhecimento (o que Freinet chamava de “trabalho em

migalhas”): migalhas de leitura, de história, de matemática. O mundo moderno nos coloca como que

numa torre de Babel pela profusão de informações a que estamos submetidos. O poeta T. S. Eliot

lança a pergunta: “onde está o conhecimento que perdemos na informação?” É fácil se perder nesse

mar de informação. Para nós mesmos e para a criança a bússola que nos ajudará a construir uma vida

melhor liga-se à possibilidade de construirmos conhecimentos significativos. Com o bom senso que é

marca de sua pedagogia, Freinet (idem, p. 62), nos lembra que “a infância não é um saco que temos de

encher, mas uma pilha generosamente carregada”. Ela irá buscar o conhecimento que lhe seja

significativo, movida pelo interesse e curiosidade e é isto que lhe permitirá a elaboração de um

conhecimento organizado porque vivo e integrado às suas necessidades vitais. A criança, toda criança

– com dificuldades especiais ou não – quando proporcionamos a ela um meio rico e instigante, seguirá

nutrindo-se e fazendo crescer sua curiosidade. Mas, nós adultos formados na forma da acumulação de

informações já perdemos nossa faísca de curiosidade. Há um trabalho que, como professores,

precisamos fazer sobre nós mesmos, que é o de nos reencantarmos com o mundo e as coisas.

Recuperarmos nossa capacidade de espanto e interesse pelo conhecimento, pelo saber, pelo aprender.

Autoridade: autoria da própria idade. Maturidade para construir relação de escuta.

E as lições continuaram nas reflexões dos episódios narrados. Do quinto destaco a

necessidade de uma reconstrução da autoridade do adulto que não se perde no autoritarismo. “Voltar a

ser como uma criança”, como ensina Freinet, para, com olhos de adulto-criança, enxergar o que esta

relação exige de acolhimento e continência. A reflexão/lição que se é a de que a construção de

relações cooperativas entre professor e aluno demanda uma atitude de reconhecimento daquilo que há

de humanidade em todos nós. Mas demanda também um entendimento de nossa própria autoridade

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como autoria, autoria de nosso amadurecimento, de nossa idade. Embora nosso mundo venha

valorizando mais que nunca a juventude e a novidade, creio que é momento de trabalharmos para

recuperar o valor da maturidade. É ela que trará equilíbrio na relação com a infância. Esta lição

demanda a revalorização de uma certa assimetria do papel e do trabalho do professor.

Mas o sexto episódio me ensina que esta assimetria da relação adulto criança não se

faz no enrijecimento de identidades fixadas. Ela se dá na possibilidade do encontro, da escuta,

do acolhimento, da hospitalidade. O encontro que só é possível porque se faz de diferença, na

diferença, com a diferença. O mesmo, o igual, só prevê extensão, continuação, repetição. É

preciso diferença, relação é algo que ocorre nela. Se não compreendemos esta dimensão, a

relação torna-se a busca de encontrar nossa própria extensão no outro, o que por si só inviabiliza

a relação de alteridade. Não me encontrando no outro, tendo o outro me negado um espelho

narcísico, passo a condená-lo. Quando o aluno não nos apresenta a identidade para ele fixada, o

caminho que a pedagogia tradicional percorre é o da acusação (pedagogia do inquérito). A

prática de uma pedagogia da diferença se faz, dentre outras coisas, abandonando identidades

fixadas e recuperando um olhar de curioso interesse pelo outro diante de quem estamos.

O episódio explicita ainda uma outra lição que diz respeito à dificuldade tão

arraigada no pensamento pedagógico sobre a hierarquia do trabalho: trabalho intelectual

versus o trabalho manual. Revalorizar o trabalho é revalorizar todo trabalho: organizar a sala,

varrer o chão, elaborar uma pesquisa e, em tudo, dedicar zelo e cuidado.

E aqui tento fechar este trabalho, com algumas últimas considerações. Procurando

resposta para a pergunta formulada, postulo que mudar a escola é difícil porque educar é difícil.

É com Paulo Freire que dialogo nesta reflexão. Em Pedagogia da Autonomia (1996), o mestre

fala-nos das tantas exigências que se embutem no ensinar: rigorosidade metódica, pesquisa,

respeito aos saberes dos educandos, criticidade, estética e ética, risco, aceitação do novo etc.

(são 27 exigências). Concordo com todas elas, não descarto nenhuma. Mas reconheço que será

preciso considerar pelo menos quatro aspectos para uma empreitada assim tão exigente e difícil.

Da atualidade da Pedagogia Freinet

O primeiro aspecto já explicitei ao tocar a questão dos instrumentos. Quando

tenho diante de mim uma tarefa difícil, procuro instrumentos adequados para realizá-la. Só

minha “boa” personalidade não basta. Velhos instrumentos podem comprometer minha tarefa.

A medicina tem desenvolvido cada vez mais instrumentos que auxiliem a busca da cura, a

engenharia e arquitetura também. O artista escolhe seus pincéis e suas tintas. Em educação, os

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instrumentos são tanto as teorias do conhecimento quanto as instituições e as formas de

organizar o trabalho na sala de aula. A escola tradicional continua atada aos velhos

instrumentos de trabalho pedagógico, a escola “modernizada” os plastifica, sem contudo,

alterar as dinâmicas do trabalho na sala de aula. Os instrumentos que a Pedagogia Freinet

propõe prestam-se a alterações mais profundas na forma de se construir as relações entre

professor e alunos na sala de aula e está nisto sua força e sua atualidade.

A coragem de fazer, de correr os riscos, de transformar e transformar-se

Um segundo aspecto que vejo ao admitir as tantas e tão difíceis exigências do

trabalho de educar é que se aplicássemos isto à maternidade talvez não tivéssemos filhos. E,

no entanto, os temos: trazemos ao mundo novos seres. Uma certa leveza e alegria nos

encoraja. Um desejo de encontro com o futuro que a criança traz consigo anima-nos à

maternidade e paternidade. Mas, na escola, talvez se pensássemos demais na dificuldade do

educar filhos que nem são os nossos, mas que chegam ao mundo e, por nossa escolha de

profissão, assumimos a tarefa educá-los, talvez desistíssemos antes de começar. E, se não

desistimos, talvez seja este um testemunho de amor ao mundo e às crianças, um testemunho

de abertura para tudo que é difícil. Gosto de pensar que isto é mais do que motivo para que se

revalorize a profissão de educador, de professor. Nossa disponibilidade de mobilizar nossos

muitos registros na relação com as crianças faz desta profissão um exercício que, no mínimo,

merece mais respeito. Distingue-se neste trabalho esta característica de ação reflexiva, ação

que implica na mobilização de muitos dos nossos registros: afetivo, intelectual, emocional,

espiritual, corporal... Sentimos, muitos de nós, a “urgência de opções novas”. Mas a prática de

novas instituições na sala de aula traz, na concretude do encontro com o outro – a criança, o

aluno, que se expressa na sua inteireza e pessoalidade, nas suas idiossincrasias, desejos e

necessidades – o confronto que é próprio do estar em relação com o outro. É nesta relação que

se dá o educar e ela é relação de transformação contínua de mim e do outro.

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Não estamos sozinhos

E um terceiro aspecto que se desdobra dos anteriores é que, além das ferramentas

adequadas para a tarefa e da disposição, é preciso reconhecer que um trabalho assim tão

difícil não se faz sozinho. Ele se faz com as crianças e com nossos pares, colegas desta

profissão. É a lição do trabalho coletivo na escola. Trabalho coletivo entre professores,

trabalho coletivo com os alunos. Trabalho coletivo que se faz no respeito às individualidades,

sabendo que é a contribuição original de cada um que irá construir a beleza do todo.

Pensar a educação como trabalho coletivo é lembrar que não é preciso fazer as

descobertas e enfrentar os riscos sozinho. É preciso fazer rede, compartilhar com os pares. A

Pedagogia Freinet diferencia-se de outras propostas: além de ser uma pedagogia que parte da

base, ou seja, daqueles que estão na sala de aula – Freinet teve sempre muito orgulho de se

auto intitular “um simples professor primário” – é também a primeira vez na história em que

uma proposta pedagógica constitui uma rede de educadores e que, por isso mesmo, não se

cristaliza como um modelo fechado ou, pior, como uma franquia que o modelo neoliberal

empacota e vende no mercado da educação. Se entendemos a educação como um ponto de

interseção de muitos saberes, é preciso compreender também que ela é a interseção de muitos

fazeres. E por meio das trocas, dos apoios, das críticas e indagações que o diálogo em rede

possibilita, são criadas as condições para uma constante renovação destes mesmos saberes.

Creio que o poeta João Cabral de Melo Neto fala melhor para explicitar esta lição: “um galo

sozinho não tece a manhã, ele precisará sempre de outros galos...”

A imagem a seguir é exemplo e lição de minha experiência de um trabalho

coletivo de professores, coordenação e alunos. Um enorme painel em que a expressão de cada

um compôs um todo de arte e beleza.

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Figura 55: Painel da Festa Junina 2015 da Escola Curumim. Cada criança pintou sua bandeirinha com as cores e

artes que escolheu, compondo este mural de cerca de 9m x 4,5m. Fonte: acervo da autora.

A educação e a pergunta ética

O último aspecto que trago à consideração está ligado à pergunta ética. Diante de

tantos pequenos curumins, Tupãs, Bartiras, Raonis, Jupis, Joacis, Rudás, Peris, Likekes,

Maranis, Aimiris me encontrei a vida toda, neste caminho que trilhei na escola. Nunca encontrei

nenhum igual ao outro. Nunca a descrição de uma síndrome, um diagnóstico ou laudo médico

foi capaz de evitar em mim o espanto diante do enigma, diante da pessoa de carne e osso que se

encontrava à minha frente. Nunca fui capaz de sossegar e nem de retirar do encontro face a face

o seu inusitado. Porque a questão da educação, e mais ainda a questão da educação inclusiva,

por ser um saber e uma prática que se inserem na ordem das relações, não prescinde da questão

ética. E o que tenho aprendido na vida é que a ética é a resposta à pergunta: como vamos

conviver? E as respostas que construí para o convívio com tantos curumins foram as que juntos

construímos no diálogo, nem sempre fácil, nunca previsto ou pré-determinado.

Foi também no encontro com tantos educadores (Juremas, Jaciaras, Nanines,

Kauãs, Aracis, Jandiras, Anauás) e com as tantas mães e pais das crianças que aprendi que a

educação é um saber instável, nunca fixado, nunca acabado. Um saber que não se faz sozinho,

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um saber que me reconcilia com a certeza de que não estamos sozinhos e que precisamos uns

dos outros para nos educarmos.

Despeço-me com esta última imagem que me é muito cara: o Passeio da Lanterna da nossa

Festa Junina. Todos os anos o repetimos, é uma tradição alemã que foi, ao longo dos anos, recriada e

reinventada por nós. As crianças carregam suas lanternas com velas e caminham pela quadra cantando a

canção que diz: “eu vou com a minha lanterna, e ela comigo vai. No céu brilham estrelas, na terra

brilhamos nós. A luz se apagou, para casa eu vou, com a minha lanterna na mão”. Caminhamos em

torno da quadra e cada um vela pelo fogo, protegendo a sua chama. No momento final, sentados numa

grande roda, eles apagam suas velas fazendo um pedido. Plasma-se o sentimento de beleza pelo mundo

que se faz com o brilho de cada um e, ao se unir com os brilhos de todos os outros, produz o sentido de

encantamento pela vida e pelo mundo. Faltam-me palavras para descrever a seriedade e solenidade com

que as crianças vivem este momento. Na simbologia e magia deste passeio encontro um sentido e uma

certeza de que a inclusão é difícil, a educação é difícil, mas é também encantamento e beleza.

Figura 56: Passeio da Lanterna (Festa Junina da Escola Curumim). Fonte: acervo da autora.

Postulo esta tese, quer dizer, peço que me leiam e me acreditem, ou pelo menos

considerem as ideias aqui registradas. Deposito esta tese no espaço da academia, na sua

biblioteca, na esperança de que este seja um espaço preservado no tempo, que perdure para

que um dia alguém possa lê-la e usufruir do trabalho a que me propus.

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253

ANEXO

Este gráfico apresenta a evolução de matrículas da Escola Curumim entre os anos 2000 e 2014,

apresentando o total de alunos e o total de alunos com deficiência nas salas de aula.

Os dados indicam que o percentual de alunos de alunos com deficiência incluídos se manteve numa

faixa de 14% do total.